titulo
stringlengths
7
371
resumo
stringlengths
0
145k
categoria
stringclasses
17 values
texto
stringlengths
10
359k
link
stringlengths
47
265
Aspectos relevantes da competência comum da Justiça Federal
Todo juiz, seja de qualquer esfera, tem jurisdição. Assim, ele pode dizer “eu tenho jurisdição”. A partir do momento em que diz: “tenho jurisdição em Salvador”, está falando de competência, não de jurisdição. A competência da Justiça Federal está prevista nos arts. 108 e 109 da CF. O objetivo deste trabalho foi fornecer elementos necessários à compreensão do tema não apenas como mais um material puramente conceitual, mas sim crítico, trazendo os maiores questionamentos doutrinários e jurisprudenciais que assolam o ordenamento jurídico pátrio em matéria processual penal.
Direito Processual Penal
1. Introdução Trata-se a competência de um dos institutos cuja importância é indiscutível não apenas para o processo penal como para o direito como um todo. Assim como a jurisdição, a competência cuida de todo o arcabouço processual penal. Porém, não é demais lembrar que competência não se confunde com jurisdição, uma vez que esta última, do latim, jus dicere, significa dizer o direito, dar uma resposta a determinada solução[1]; noutro lado, competência é justamente o limite do poder jurisdicional. Portanto como lembra Paulo Rangel[2], possui a competência a natureza jurídica de um “pressuposto processual de validade do processo”, uma vez que, embora esteja o juiz investido do poder de julgar, caso não haja prévia delimitação legislativa desse poder, ocorrerá, inevitavelmente a nulidade do processo[3]. Em outras palavras, todo juiz, seja de qualquer esfera, tem jurisdição. Assim, o magistrado pode, a qualquer momento, afirmar “eu tenho jurisdição”. A competência entra aí a partir do momento em que o juiz vai além e diz: “eu tenho jurisdição em Salvador”. Em outras palavras, não mais se fala em jurisdição nesta afirmação e sim em competência. Desta forma, a competência o limite da jurisdição. Sabe-se que as atividades jurisdicionais são as únicas atividades imutáveis. Toda competência emana da Constituição, i.e., está contida na CF/88, mesmo que não expressamente, como é ocaso, v.g., da competência residual (da jurisdição estadual). Desdobra-se a competência em alguns critérios de classificação. Estão eles previstos no art. 69 do CPP que assim dispõe: “Art. 69.  Determinará a competência jurisdicional:  I – o lugar da infração: II – o domicílio ou residência do réu; III – a natureza da infração; IV – a distribuição; V – a conexão ou continência; VI – a prevenção; VII – a prerrogativa de função.” O artigo seguinte ao dispositivo supra esclarece a regra geral da competência processual penal, a saber: “a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução”. Trata-se de critério geral que só cede para a competência por prerrogativa de foro. Assim, o presente trabalho destina-se a analisar uma das exceções, qual seja, a Justiça Comum Federal, em sua competência comum. 2. Competência da justiça comum federal A competência da Justiça Federal está prevista nos arts. 108 e 109 da CF/88. A Bahia está na 1a Região, que compõe os 13 estados restantes. Cada Região é subdividida em seções e, conforme for, subsecções (na Bahia, só há 11). A competência originária da Justiça Federal, em matéria processual penal é julgar os crimes em que estejam envolvidos bens ou interesses da União. Vale lembrar que estão excluídas desta categoria as contravenções, em razão de própria previsão legal contida no art. 109, IV do CPP e da Súmula n. 38 do STJ, cabendo, portanto, as contravenções à competência da Justiça Estadual Comum. Expressamente contemplada na Constituição Federal, portanto, o art. 108 cuida da competência dos Tribunais Regionais Federais – TRFs, enquanto que o art. 109 trata da competência dos juízes federais. A abordagem deste trabalho será quanto à competência da justiça federal em primeiro grau, trazendo pontos mais relevantes dentro do tema, não apenas servindo de mais um mandamento conceitual, mas sim trazendo debates doutrinários e exposições jurisprudenciais acerca do tema. Assim, cuida a discussão em torno do art. 109 da CF/88. 2.1         Análise do art. 109 da Constituição Federal Para analisar a questão, necessário transcrever na íntegra o agora estudado art. 109 da CF/88. Assim: “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; II – as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País; III – as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional; IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral; V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo;(Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) VI – os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira; VII – os “habeas-corpus”, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição; VIII – os mandados de segurança e os “habeas-data” contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais; IX – os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar; X – os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o “exequatur”, e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização; XI – a disputa sobre direitos indígenas. § 1º – As causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte. § 2º – As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal. § 3º – Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual. § 4º – Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau. § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”[4]. Como dito anteriormente, a competência originária da Justiça Federal, no campo processual penal guarda relação com os crimes cometidos contra bens e interesses da União, o que resta claro nos incisos I a III do destaco dispositivo, não sendo necessária qualquer ressalva. A partir do inciso IV é que existem algumas ponderações, que serão feitas a seguir: a) Crimes políticos (inciso IV, primeira parte): A primeira grande questão é que a Carta da República não tratou de definir, atribuir conceito a crimes políticos. Já que o legislador não cuidou de definir tal categoria penal, a doutrina, esclarece Paulo Rangel[5] “define como crimes políticos os dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado como unidade orgânica das instituições políticas e sociais”. Tratam-se, portanto, dos crimes contra a segurança nacional, previstos na Lei n. 7.710, de 14 de dezembro de 1983. São os denominados crimes de competência específica. O art. 30 da referida Lei estabelece que a competência para julgar tais crimes seria da Justiça Militar. Entretanto, como se pode perceber, a Constituição não recepcionou tal dispositivo, pois trata de matéria de competência exclusiva da Justiça Federal. Embora se possa pensar que pelo fato de a lei ordinária ter sido criada em plena ditadura militar não haja hoje em pleno Estado Democrático de Direito (principalmente em razão da omissão do legislador em definir crimes político) que tal categoria não mais ocorra. Entretanto, três são os principais crimes políticos definidos pela Lei n. 7.170/83 que mais facilmente ocorrem. São eles: “Art. 80 – Entrar em entendimento ou negociação com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, para provocar guerra ou atos de hostilidade contra o Brasil. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos. Art. 18 – Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados. Pena: reclusão, de 2 a 6 anos. Art. 19 – Apoderar-se ou exercer o controle de aeronave, embarcação ou veículo de transporte coletivo, com emprego de violência ou grave ameaça à tripulação ou a passageiros. Pena: reclusão, de 2 a 10 anos. Parágrafo único – Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.” Uma observação importante a se fazer é que juízes federais julgam os crimes políticos em primeira instância, porém os recursos são de competência do STF. Ou seja, o recurso (extraordinário) vai diretamente para o STF,conforme estabelece o art. 102, II, b da Carta Magna. b) Infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas, empresas, públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral (incivo IV, última parte): Em primeiro lugar, é preciso identificar sempre a natureza jurídica do ente direto ou indireto que deve figurar como sujeito passivo dos referidos crimes. Assim, v.g., se ocorre um crime de roubo numa agência dos Correios, a competência é federal, em razão da natureza jurídica da ECT (empresa pública). Ressalte-se que se o assalto se der em uma agência franqueada, a competência não é mais federal,e sim da Justiça Comum Estadual. Em relação às contravenções, já foi visto que estão totalmente excluídas. Outra questão importante é quanto às fundações públicas. Poderíamos pensar que em razão da omissão do legislador, seriam as fundações públicas entes não englobados na competência federal? Responde-se negativamente, valendo-se do esclarecimento trazido por Nestor Távora e Rosmar Alencar acerca do entendimento doutrinário e jurisprudencial de que tais entes “seriam espécies do gênero autarquia”[6]. Por fim, necessário um esclarecimento em relação da cancelada Súmula 91 do STJ que previa a competência da Justiça Federal para os crimes praticados contra a fauna. Tal Súmula foi cancelada em 2000 (DJU, 23/11/200, p. 101) em razão de disposição da Lei n. 9.605/98 que disciplina os crimes contra fauna, destacando algumas infrações penais desta natureza não abarcadas pelas Justiça Federal, v.g., maus tratos contra animais domésticos. Portanto, desde 2000 os crimes ambientais desta natureza não competem mais à Justiça Federal. Entretanto, em caso de fauna e flora silvestres, a competência é descolada para a União, mesmo que não ocorra o crime em local de propriedade desta. Exemplo, tráfico de animais silvestres. c) Os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente (inciso V): O art. 21, I, da Constituição Federal atribui à União a obrigatoriedade de manter relações com Estados estrangeiros, o que, consequentemente, acarreta a elaboração de tratados e convenções. Desta forma, competirá à Justiça Federal a apuração e julgamento dos crimes desta natureza. Entretanto, como Lembram Távora e Alencar, “Além da existência do tratado ou convenção, é essencial que a infração praticada transcenda as fronteiras de mais de um país, ou seja, a internacionalidade da conduta é requisito objetivo para a fixação da competência federal. Logo, em que pese a existência de tratado ou convenção internacional, se a infração limitar-se às fronteiras brasileiras, a competência será de regra da Justiça Estadual. A título de exemplo, o tráfico interno de drogas é de competência da esfera estadual, já o internacional será julgado pela Justiça Federal. Nesse sentido, a Súmula 522 do STF: “salvo ocorrência de tráfico para o exterior, quando então a competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados o processo e julgamento dos crimes relativos a entorpecentes”[7]. Vale dizer que a competência nos crimes transnacionais não alcançam todos os delitos previstos em tratado, limita-se a competência federal a casos de ultra ou extra-territorialidade, aos casos em que houver cooperação internacional entre os agentes do crime ou quando entre os Estados, na sua prática e nos seus estatutos a mais de um país. d) As causas relativas a direitos humanos (inciso V-A): Acrescido pela EC n. 45/2004, o referido inciso surgiu em razão do movimento de federalização dos crimes com grau de violação dos direitos humanos, sob dois fortes argmentos: assegurar maior proteção à vítima e fortalecer e disseminar a responsabilidade da apuração. Trata-se de uma inovação que surgiu em razão do caso da missionária Doroty Stang, que: “[…] assassinada no Estado do Pará, quando então o Procurador Geral da República manifestou-se pelo deslocamento da competência da Justiça Estadual para a Federal, por aplicação do inciso V-A c/c parágrafo 5o da CF. O incidente não teve êxito, por entender o STJ que além da violação de direitos humanos e da existência de tratado ou convenção internacional, seria necessário que a polícia ou justiça estaduais não cumprissem o seu mister, ou seja, haveria o condicionamento à existência de algum obstáculo na esfera estadual, que dificultasse ou impedisse o êxito das investigações ou do processo”[8]. No mesmo sentido, argumenta Fredie Didier Jr. que “[…] o objetivo não-declarado é o de retirar da competência da justiça estadual causas que, em razão da sua magnitude, pudessem vir a sofrer com as influências políticas locais. É medida que se assemelha ao desaforamento, no procedimento para apuração de crime doloso contra a vida, perante o tribunal do júri […] Acolhido o pedido de deslocamento da competência, os atos até então praticados são válidos, pois a autoridade era competente. O julgamento do STJ é fato superveniente que altera a competência absoluta ex nunc”[9]. Entretanto, discordamos do entendimento do STJ e, data venia da ilustre posição de Didier Jr., preferindo o entendimento de Távora e Alencar, que assim esclarecem: “A competência da Justiça Federal, a nosso sentir, não pode estar condicionada à eficiência na órbita estadual, afinal, o próprio texto constitucional não fez e nem poderia fazer tal ressalva, que depõe contra a própria autonomia da Justiça Estadual. Nem se diga que tal expediente é similar ao desaforamento no âmbito do procedimento do Júri, pois lá, diferente daqui, deslocamos apenas a sessão de julgamento para a comarca mais próxima, em expediente que afeta a competência meramente territorial, que, diga-se de passagem, é meramente relativa, em prol de um bem maior que é a regularidade do julgamento em plenário (arts. 427 e 428, CPP). Já na fase do inquérito policial, quando o nosso legislador deseja que a polícia federal interfira, mesmo em crimes nitidamente de competência estadual, ele o faz de forma expressa, certificando os parâmetros para esta atuação, como ocorre na Lei n. 10.446/2002, autorizando a atuação da polícia federal nas infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme, sem prejuízo, contudo, da atividade paralela das polícias estaduais. A referida lei, no art. 1o, indica quais as infrações que comportariam tal atuação e, no parágrafo único, autoriza o Ministro da Justiça, por força própria, determinar a intervenção da polícia federal em casos similares. Temos com isso a atuação da polícia federal, qie auxilia as polícias estaduais, mantendo intocada a competência para julgamento de tais infrações”[10]. Assim, o que importa saber é que, não obstante haja discussões acerca da federalização acima mencionada, após a EC n. 45/2004, cuidam de competência da Justiça Federal as causas relativas a direitos humanos. e) Crimes contra a organização do trabalho (inciso VI, primeira parte): Previstos nos arts. 197 a 207 do CP, é preciso esclarecer que os crimes contra a organização do trabalho só serão julgados pela Justiça Federal quando houver ofensa à coletividade da categoria. Em outras palavras, obviamente que não caberá à JF processar e julgar os crimes contra o trabalhador considerado em sua pessoa. A despeito, ver a Súmula 115 do TFR. f) Crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira (inciso VI, parte final: Primeira grande observação é de que deverá haver expressa previsão legal para que a competência seja da Justiça Federal. No que diz respeito ao sistema financeiro nacional (SFN), é composto pelas instituições financeiras públicas e particulares, e as pessoas a elas equiparadas. Estão previstos tais crimes na Lei n. 7.492/86. Desta forma, se houver crime contra o sistema financeiro que não esteja previsto nesta Lei, a competência será da Justiça Comum Estadual[11]. No que diz respeito aos crimes contra a ordem econômico-financeira, estão previstos no Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei n. 8.078/90), também na Lei n. 8.137/90 (crimes contra a ordem econômica e relações de consumo), e, ainda, na Lei n. 8.176/91 (crimes contra a ordem econômica). No que pese a esta última categoria, é importante lembrar o entendimento de Távora e Alencar que nos chamam a atenção em relação à previsão legal. Ou seja, há previsão legal em um e não há em outro. Assim: “No que tange à ordem econômico-financeira, da mesma forma, necessita-se de previsão expressa na legislação ordinária para que haja apreciação perante a Justiça Federal. As Leis n. 8.137/1990 e 8.176/1991 tratam da matéria, contudo, por ausência de previsão nos respectivos textos, os crimes nelas previstos são apreciados em regra pela Justiça Estadual. Restaria assim o julgamento na seara federal quando estas infrações afetarem bens, serviços ou interesses de ente federal, por aplicação do inciso IV do art. 109 da CF” (STJ – CC 15206/RJ – Rel. Min. Fernando Gonçalves – DJ 23/6/1997, p. 29942)[12]. No mesmo sentido, Paulo Rangel: “Há uma determinação legal para que os crimes contra o sistema financeiro sejam julgados pela Justiça Federal, porém não há a mesma determinação legal com relação aos crimes previstos nas Leis ns. 8.078/90, 8.137/90 e 8.176/91. Portanto, a competência para processo e julgamento destes crimes será da Justiça comum Estadual.” g) O habeas corpus e o mandado de segurança em matéria criminal (incisos VII e VIII): É inquestionável que o HC e o MS possuem natureza jurídica de ação. Constituindo, portanto, como ações autônomas de impugnação, encontram respaldo constitucional (denominados de remédios constitucionais) nos seguintes incisos do art. 5o, da CF (LXVIII e LXIX): “LXVIII – conceder-se-á “habeas-corpus” sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;  LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por “habeas-corpus” ou “habeas-data”, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.” Quanto a esta categoria não há muito que dizer. Apenas é preciso dar atenção à autoridade coatora, posto que ela deve estar sob “o manto da jurisdição federal”[13], caso contrário não será de competência federal. h) Os crimes cometidos a bordo de navios e aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar (inciso XI): A primeira grande importância em relação a esta categoria, é identificar os conceitos de navios e aeronaves. É cediço que a expressão navio não comporta embarcações pequenas. Entretanto, o conceito de navio pode ser encontrado na Lei n. 2.180/1954. Além de obrigatoriamente possuir grande porte, para ser navio, a embarcação deverá possuir aptidão para realização de viagens internacionais. Desta forma, ficam fora, canoas, lanchas, botes etc. Paulo Rangel nos lembra que além de possuir grande porte e capacidade para realização de viagens internacionais, para afigurar-se como navio a embarcação deverá estar em alto-mar. O renomado promotor cita como exemplo o ocorrido na passagem de ano novo no Rio de Janeiro em 1988 para 1989, em que ocorre um acidente numa embarcação que comportava muitas pessoas, porém não estava em alto-mar (o caso Bateau Mouche). “Não obstante ter havido processo-crime, este se desenvolveu perante a Justiça comum Estadual. Nada mais certo”[14]. Duas observações importantes: se o navio não atracar ou partir para outro lugar o foro é de onde partir, não sendo assegurada a competência federal não em razão do deslocamento de competência, mas sim em razão da obrigatoriedade da territorialidade (art. 50, CP). Ou seja, o navio deverá estar sujeito à lei brasileira; se o navio vier do exterior e entrar no Brasil, mas não atracar, estando em alto-mar, a regra será da prevenção[15] Noutro ponto, o dispositivo também fala em aeronaves. O legislador cuidou de sua definição no art. 106 da Lei n. 7.565/1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica): “considera-se aeronave todo aparelho manobrável em voo, que possa sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas”. Tal distinção não é necessária em razão de a CF/88 ter usado a expressão aeronave, facilitando a interpretação. i) Os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro (inciso X): O art. 22, XIII e XV da Constituição Federal estabelecem, respectivamente, que caberá à União legislar sobre nacionalidade, cidadania e naturalização, e também sobre emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiro. Desta forma, tais infrações deverão ficar a cargo da Justiça Federal. Só uma ressalva, é que ingresso de estrangeiro não é crime, não há tipificação. Trata-se, sim, de deportação (esfera administrativa), mas há o crime de reingresso de estrangeiro que foi expulso (art. 338, CP). Por isso, no nosso particular, o legislador deveria ter utilizado a expressão reingresso. j) A disputa sobre direitos indígenas (inciso XI): Nem todo crime cometido contra índio é de competência da Justiça Federal. Tome-se como exemplo, o índio Galdino. Houve a condenação por homicídio, competência estadual (a despeito da Súmula 140 do STJ). Somente serão de competência federal quando atingirem a coletividade indígena. Por exemplo, o genocídio (Resp. 222.653/RR, DJ 30/10/2000), devendo-se ter cuidado, porque é juiz federal singular, não é Tribunal do Júri. Por fim, é necessário fazer uma observação quanto à competência territorial da Justiça Federal. Lembram Távora e Alencar: “A competência territorial da Justiça Federal é ditada, como regra, pelas normas gerais afetas à esfera estadual, prevalecendo o local da consumação da infração como determinante para identificação do foro competente (art. 70, CPP). Vale destacar apenas, com arrimo n CF, que nas comarcas que não forem sede de vara federal, e havendo previsão legal, poderá ocorrer o processamento e julgamento de crime federal perante a própria justiça estadual (parágrafo terceiro, art. 109, CF). Eventuais recursos serão endereçados ao competente TRF. Era o que ocorria como tráfico internacional de drogas. Contudo, com o advento da Lei n. 11.343/2006, o parágrafo único do art. 70 deu tratamento diverso à matéria, versando que “os crimes praticados nos Municípios que não sejam sede de vara federal serão processados e julgados na vara federal da circunscrição respectiva”[16]. Por fim, ressalte-se que poderá ocorrer conflito entre a competência estadual e a competência federal. Na verdade, seria mais um pseudo-conflito. Nestes casos, em razão da “maior gravidade” em crimes de competência estadual x federal, há a reunião do processo, quando conexo para ser julgado pela Justiça Federal (Súmula 122 STJ). 3. Conclusão Neste trabalho intitulado competência comum da justiça federal foram vistas questões precípuas para a consequente compreensão do tema, tais como que a jurisdição – jus dicere – é dizer o direito, dar uma resposta, uma solução a determinado caso. Foi dito também que apenas as atividades jurisdicionais são imutáveis e que todo juiz, seja de qualquer esfera, tem jurisdição. Assim, ele pode dizer “eu tenho jurisdição”. A partir do momento em que diz: “tenho jurisdição em Salvador”, está falando de competência, não de jurisdição. Toda competência está da Constituição Federal mesmo que não expressamente, por exemplo, a competência residual (da jurisdição estadual). A competência da Justiça Federal está prevista nos arts. 108 e 109 da CF. A Bahia está na 1a Região, que compõe os 13 estados restantes. Cada Região é subdividida em seções e, conforme for, subsecções (na Bahia, só há 11). Uma ressalva é de que a competência processual penal é absoluta, não se prorroga. Só há um caso de competência relativa, que são os crimes contra a honra. Em seguia foi feita uma análise minuciosa acerca da competência comum federal, após o esclarecimento de que a competência originária da Justiça Federal, em matéria processual penal é julgar os crimes em que estejam envolvidos bens ou interesses da União, excluindo-se as contravenções. Assim, o objetivo deste trabalho foi fornecer elementos necessários à compreensão do tema não apenas como mais um material puramente conceitual, mas sim crítico, trazendo os maiores questionamentos doutrinários e jurisprudenciais que assolam o ordenamento jurídico pátrio em matéria processual penal.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-92/aspectos-relevantes-da-competencia-comum-da-justica-federal/
A técnica do sistema recursal penal
Trata-se de trabalho técnico sobre a Técnica do Sistema Recursal Penal. Objetiva-se a contribuição didática em assunto tão relevante, pois, os recursos penais representam o duplo grau de jurisdição, que por sua vez, representa maior certeza e segurança na aplicação do Direito, restauração do direito porventura violado e, acima de tudo, uma base jurídica que está no próprio texto constitucional. Salienta-se que o trabalho em questão, analisa o procedimento recursal como técnica profissional, que na atualidade, muitas vezes, diferencia-se da prática forense.
Direito Processual Penal
1. Introdução A técnica jurídica, conforme a define CLAUDE DU PASQUIER, citado pelo Professor Aroldo Plínio Gonçalves (1992, p. 32), é “o conjunto de procedimentos pelos quais o Direito transforma em regras claras e práticas as diretivas da política jurídica”. O Ilustre Professor especifica que nos sistemas jurídicos que alcançaram certo grau de racionalidade, a aplicação do Direito é referida a critérios objetivamente definidos e delimitados pelas normas integrantes do próprio sistema (GONÇALVES, 1992, p. 45). O Direito Processual, como uma ciência de conhecimento organizado, especifica os procedimentos em relação ao sistema recursal. Trata-se, portanto, da técnica recursal, ou seja, de procedimentos pré-determinados, analisados e criados pela ciência do conhecimento real. Assim, conclui-se que tais procedimentos representam um complexo de normas que serão aplicadas ao caso concreto. Infelizmente, na atualidade, a prática não se identifica com a técnica. Entre tantas diferenças, salienta-se que a técnica depende do conhecimento prévio, mas, a prática, muitas vezes, é exercida sem o conhecimento. Este fato é percebido no dia-a-dia forense, o que leva a situações concretas de ineficiência processual e, por consequência, injustiça no órgão que tem como função primordial a aplicação da Justiça, ou seja, no Poder Judiciário. Assim, objetiva-se, neste trabalho técnico, a valorização da técnica recursal. Não se trata de um trabalho que critica os atuais procedimentos, mas sim, de forma didática, relembra-os para suas aplicações corretas. O Código de Processo Penal, instituído em 1941 e alterado diversas vezes no decorrer dos anos, possui muitas fragmentações em seu sistema estrutural. Salutar, neste aspecto, a aprovação do PLS 156 que possibilitará um sistema estrutural integral e pertinente a atualidade brasileira. Mas, enquanto as novas normas não surgem, é fundamental o conhecimento, “o saber técnico” da estrutura processual recursal da atualidade. Assim, segue-se para as explanações didáticas sobre os recursos criminais. 2. Teoria geral dos recursos 2.1 Conceitos A palavra recurso, do latim recursare que significa caminhar para trás, é o oposto da palavra processo, do latim procedere que significa caminhar para frente. Assim, recurso é o mecanismo processual destinado ao reexame processual. Como o processo é um progredir ordenado, no sentido de obter-se com a sentença a prestação da tutela jurisdicional que se busca, o recurso corresponderá sempre a um retorno, no sentido de reflexo, sobre o próprio percurso do processo, a partir daquilo que se decidiu para trás, a fim de que se reexamine a legitimidade e os próprios fundamentos da decisão impugnada. Segundo Tourinho Filho, “é o direito público subjetivo de se pedir o reexame de uma decisão”. Sob a perspectiva dos interesses das partes que se submetem às decisões judiciais, ou seja, os jurisdicionados, o recurso é um pedido de nova decisão judicial. Há manifestação de inconformismo cuja pretensão final é a obtenção de nova decisão diferente da anterior e, no plano jurídico ou prático, menos gravosa ou mais favorável. Observamos, portanto, que o duplo grau de jurisdição integra o exercício da ampla defesa. Porém, há, também, a perspectiva do interesse do Estado no controle dos atos jurisdicionais por ele praticados, quando irá revelar-se público, se a orientação for pela preocupação com a qualidade e a regularidade da atividade jurisdicional (PACELLI, 2011, p. 839). Entendemos que, quanto maior o número de recursos, fato que propicia a referida amplitude de defesa, mais numerosas serão às possibilidades das devidas tutelas de direito. Por outro lado, um número excessivo de recursos transforma a atividade jurisdicional lenta e, por consequência, oferece uma justiça ineficiente. A busca pela celeridade processual, tão desejada e comentada nos últimos tempos, deve ser criteriosa e cautelosa, ou seja, a efetividade processual não poderá ultrapassar os limites das garantias individuais. Assim, nos ensina o Professor Pacelli, referindo-se às súmulas vinculantes: “Alertávamos, em nota à edição anterior, que o processo de sumulalização – duvidamos, sinceramente, da existência de semelhante palavra – em matéria penal e processual penal poderia se revelar inconveniente, na medida em que a justiça acabaria por tender à massificação da realidade dos fenômenos do dia a dia, pondo em risco as especificidades de cada caso concreto”. (PACELLI, 2011, p. 841) O recurso depende de previsão legal. Ou seja, é sempre na lei que se baseia a existência de recurso contra decisão judicial. E pela Constituição Federal é direito de toda pessoa submetida a processo penal obter nova decisão sobre a matéria de seu interesse. Esta nova decisão, da segunda instância, irá substituir àquela impugnada na via recursal. Porém, pode o litigante pretender uma anulação e não uma substituição da decisão, por exemplo, quando se tratar de alegação de nulidade do processo ou da decisão, o que ocorrerá é a sua desconstituição, a reclamar a renovação do ato na mesma instância recorrida (PACELLI, 2011, p. 842). Ou seja, o processo retornará à 1ª instância para a renovação do ato. Salientamos, todavia, que a legislação reserva ao recurso a função de impugnação, exclusivamente, de decisões ainda não transitadas em julgado. Aos casos de sentenças transitadas em julgado são reservadas as ações autônomas de impugnação, como, por exemplo, a ação de revisão criminal. Abordam-se como fundamentos do recurso à necessidade psicológica do vencido, a falibilidade humana e as razões históricas do próprio direito. – A necessidade psicológica do vencido pode ser explicada como interesse subjetivo inerente do ser humano, de não aceitar uma decisão desfavorável a si, que lhe traga algum gravame ou prejuízo. – Da falibilidade humana parte-se em ter o recurso como um remédio jurídico previsto para corrigir erros, já que o julgador, na qualidade de ser humano, é passível de erro, falha. – As razões históricas do direito advêm da época do Império Romano, com o Imperador Adriano, onde primeiro surgiu o Recurso de Apelação como forma de rever decisões dos magistrados, por ser uma decisão errada, ilegal ou injusta. 3. Princípios recursais 3.1 Princípio do Duplo Grau de Jurisdição O Princípio do Duplo Grau de Jurisdição garante ao litigante a possibilidade de submeter ao reexame das decisões proferidas em primeiro grau, desde que atendidos os requisitos previstos em lei. Quando falamos em duplo grau entendemos que a revisão será feita por outro órgão da jurisdição, hierarquicamente superior na estrutura jurisdicional. A base jurídica dos recursos está no próprio texto constitucional, quando este organiza o Poder Judiciário em duplo grau com a atribuição primordialmente recursal dos Tribunais. O Princípio do Duplo Grau de Jurisdição representa maior certeza e segurança na aplicação do Direito. Objetiva a proteção ou restauração do direito porventura violado. É necessário, para uma justa composição do conflito de interesses, um segundo exame da relação jurídica posta em litígio. A exigência do duplo grau não alcança os acórdãos proferidos nas provocações que ocorrem por meio de recurso extraordinário e recurso especial. Ora, se o Supremo Tribunal Federal é competente para julgar uma lide originariamente, da sua decisão caberá recurso para quem? Trata-se aqui de clara hipótese de não cabimento do Duplo Grau de Jurisdição. Observamos, portanto, pela situação acima especificada, que a Constituição tacitamente admitiu que a supressão do direito de apelar não ofende o direito ao devido processo legal, na medida em que garantido está o acesso a mais alta Corte, a fim de proteger os direitos fundamentais.  Como nos ensina o ilustre Professor Pacelli, a jurisdição do STF e do STJ, quando alcançada pelos referidos recursos, cumpre outra missão e assim exemplifica: “Assim, em uma ação penal da competência originária dos tribunais de segunda instância, por exemplo, não se poderá alegar violação ao duplo grau de jurisdição, pela inexistência de recurso ordinário cabível. O referido órgão colegiado, nessas situações, estará atuando diretamente sobre as questões de fato e de direito, realizando, então, a instrução probatória e o julgamento. Estará garantindo, portanto, o reexame da matéria por mais de um único juiz (a pluralidade da decisão, pois), sobretudo quando a competência para o julgamento for atribuída, no respectivo Regimento Interno, ao Plenário do Tribunal. De todo modo, o afastamento da exigência do duplo grau em tais casos decorreria da própria Constituição”. (PACELLI, 2011, p. 844) 3.2 Princípio da Voluntariedade dos Recursos À parte sucumbente é conferida ampla liberdade para interpor recurso, objetivando a reforma ou a anulação da decisão com a qual se sentiu lesada. Em princípio somente a essa parte deve ser conferida ampla liberdade para interpor o recurso, demonstrando, assim, sua concordância ou não com o pronunciamento jurisdicional. Por isso se fala em recurso voluntário. Também o Ministério Público pode discordar da decisão e interpor o recurso como representante da parte/ Estado (titular da ação penal) ou como custos legis (fiscal da lei). O MP, tratando-se de ação penal pública, é regido pelo princípio da obrigatoriedade, mas em relação ao recurso não é obrigado a recorrer, só recorrendo se houver interesse na reforma ou na anulação da decisão (art. 574). Porém, para o parquet vigora a indisponibilidade, uma vez que, interposto o recurso, não poderá dele desistir (art. 576). “Art. 576.  O Ministério Público não poderá desistir de recurso que haja interposto.” Mas, a lei abre exceções em relação ao Princípio da Voluntariedade do recurso, prevendo o denominado recurso de ofício (recurso obrigatório, recurso necessário – reexame necessário). Trata-se de recurso que obrigatoriamente deve ser interposto pelo juiz. Ao contrário, a decisão não transitará em julgado (súmula 423, STF), ou seja, não produzirá efeitos. 3.2.1 Recurso de Ofício (lei) ou reexame necessário (doutrina) “STF Súmula nº 423 – 01/06/1964 – DJ de 6/7/1964: Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso “ex-oficio”, que se considera interposto “ex-lege”.” Em apenas três situações, o atual CPP condiciona a validade da decisão judicial ao reexame da matéria pelo órgão de hierarquia superior (recurso de ofício). São as seguintes: – Da decisão concessiva de habeas corpus (574, I); – Absolvição Sumária nos termos do art. 411 (574, II). (A Lei nº. 11.689/08 extinguiu esta hipótese, derrogando o art. 411 do CPP); – Crimes contra a economia popular – art. 7º da Lei n. 1.521/51 – Os juízes recorrerão de ofício sempre que absolverem os acusados em processo por crime contra a economia popular ou contra a saúde pública, ou quando determinarem o arquivamento dos autos do respectivo inquérito policial; – Da decisão que conceder a reabilitação (art. 746, CPP – ação destinada a apagar os antecedentes criminais). O recurso de ofício é considerado por muitos como uma extravagância judiciária e arcaica, hoje totalmente desnecessária. Para o Profº. Pacelli, são vigências inaceitáveis, vejamos seu parecer: “Não há como aceitar a vigência de quaisquer uma delas, dentro de um contexto garantista, e em cujo interior se reserva ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública. No sistema do Código de Processo Penal , de 1941, a medida era compreensível, já que até mesmo a iniciativa de instauração da ação penal era reservada ao juiz. (…) Mas da perspectiva do reexame necessário, não há como aceitá-las.” (PACELLI, 2011, p. 845) Podemos observar que nas três situações de recurso de ofício no Processo Penal, há um dado comum entre elas: referem-se às decisões contrárias aos interesses das funções acusatórias, pois, todas apresentam casos de deferimentos positivos ao acusado. Este ponto em comum estremece o Princípio Constitucional de Inocência do Acusado, onde a regra é a liberdade, e não a prisão. Neste aspecto, retorna-se a época da presunção da culpabilidade e não o da não-culpabilidade dos dias atuais. Certamente, o recurso de ofício não se sustenta em nenhuma justificação racional, mas, na realidade, representa, como muitos outros dispositivos do CPP, as características básicas do sistema instituído pelo Código de Processo Penal de 1941 e suas influências inquisitivas, onde a iniciativa da ação penal podia partir do próprio juiz e até mesmo da autoridade policial o que era de grande contribuição para a vigência do sistema inquisitivo. De qualquer forma, alguns apontamentos são relevantes sobre os dispositivos, pois, continuam em vigência. Vejamos: – quanto ao recurso da decisão que concede habeas corpus, não tem ele efeito suspensivo, ou seja, concedida à ordem, o acusado deve ser posto imediatamente em liberdade (art. 660, § 1º).   – o Ministério Público conhecerá da ordem de habeas corpus concedida, conforme art. 660, § 5º, portanto, caso o parquet entenda como necessário e cabível, poderá interpor o recurso em sentido estrito (art. 581, X). – em relação à Lei 1.521/51, salienta-se que, na atualidade, a matéria relativa aos crimes contra a economia popular, encontra-se regulada pela Lei nº. 8.137/90, na qual não há previsão de exigência de recurso de ofício ou reexame necessário. – em relação à decisão concessiva da reabilitação, o Ministério Público é regularmente intimado da aludida decisão (art. 745), portanto, sempre poderá, isto quando interessar a não-reabilitação, interpor o recurso de apelação (por tratar-se de decisão com força definitiva). – alguns autores entendem que o recurso ex officio é inconstitucional (embora esta interpretação seja minoritária) por não ter sido recepcionado pela Constituição Federal (129, I, CF – função do MP promover, privativamente, a ação pública, na forma da lei). STF já se manifestou pela constitucionalidade do recurso de ofício. Vejamos: “STJ – “PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. DECISÃO CONCESSIVA DE HABEAS CORPUS. REMESSA DE OFÍCIO (ART. 574, INCISO I, DO CPP). DISPOSITIVO NÃO REVOGADO PELO ART. 129, INCISO I, DA CF/88. Na linha de precedentes do Pretório Excelso, o reexame necessário previsto no art. 574 do CPP não foi tacitamente revogado pelo art. 129, inciso I, da Constituição Federal, devendo o juiz de primeiro grau remeter a decisão que conceder habeas corpus à apreciação da instância superior. Recurso provido.” (STJ, 5ª Turma, REsp 760.221/PA, Rel. Min. FELIX FISCHER, j. 15.12.2005, DJ 27.03.2006) 3.3 Princípio da Unirrecorribilidade (singularidade) O Princípio da Unirrecorribilidade significa que de cada decisão só cabe um recurso. Logo cada decisão pressupõe um recurso especifico. Porém, existem exceções a esse princípio. Citamos um exemplo: – réu condenado por dois crimes – 155 (furto) e 157 (roubo), CP; – o réu ingressa com apelação e o Tribunal mantém a condenação, nos dois crimes, sendo a decisão do 155 unânime e a do 157, por 2 x 1; – embora seja um único acórdão, existem duas decisões: uma unânime e outra por maioria;  – quanto ao crime unânime, a única alternativa é a interposição de recurso especial ou extraordinário; – mas a decisão do 157 desafia embargos infringentes e de nulidade; – Trata-se do denominado acórdão subjetivamente complexo. O réu irá interpor os dois recursos, o extraordinário e os embargos infringentes. Outra ressalva diz respeito aos recursos extraordinários, pois, apesar de o Recurso Extraordinário e o Recurso Especial estarem previstos para o mesmo momento processual (devem ser interpostos ao mesmo tempo), desde que presentes os pressupostos de admissibilidade, não constituem exceções ao referido principio, já que possuem fundamentos distintos (violação de texto expresso na Constituição e violação de texto expresso em lei ordinária, respectivamente). Alguns autores consideram tal hipótese inconstitucional, mas é um entendimento minoritário. Não há que se confundir este princípio com o da taxatividade, pois para este, todos os recursos estão previsto em um rol exaustivo, enquanto que para o da singularidade há a correspondência do recurso à decisão prolatada. Pode-se dizer que um princípio completa o outro. 3.4 Princípio da Fungibilidade dos Recursos Expressamente previsto no texto processual penal (art. 579), o Principio da Fungibilidade possibilita a aceitação do recurso mesmo que interposto erroneamente no lugar de outro. Para tanto, a ausência da má-fé é imprescindível para que seja interpretado como mero erro de forma. Assim, Profº. Pacelli o define:   “Trata-se da possibilidade do conhecimento dos recursos pelo órgão de revisão (competente para o seu julgamento), independente do acerto quanto à modalidade recursal prevista na lei. Nunca é demais lembrar: processo é meio, e não o fim do direito. Eventuais dificuldades na identificação do recurso cabível não devem conduzir à sua rejeição, sem o exame cuidadoso do caso concreto.” A fungibilidade recursal é largamente utilizada pelo Supremo Tribunal Federal. Vejamos uma decisão do Pretório Excelso: “DIREITO PROCESSUAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. DECISÃO MONOCRÁTICA. CONTRADIÇÃO INEXISTENTE. RECURSO RECEBIDO COMO AGRAVO REGIMENTAL. IMPROVIMENTO. 1. Trata-se de Embargos de Declaração opostos pelo Reclamante, alegando contradição na decisão monocrática que negou seguimento à Reclamação ajuizada. 2. Com base no princípio da fungibilidade, deve ser conhecido como agravo o recurso interposto. 3. Irretocável é a decisão que negou seguimento à reclamação, eis que ficou evidenciado o cumprimento do julgado, não havendo a alegada contradição indicada nas razões recursais. 4. Embargos de declaração conhecidos como agravo regimental, e como tal improvido.” (Rcl 5150 ED / SP – SÃO PAULO, EMB.DECL.NA RECLAMAÇÃO. Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Julgamento:  02/09/2008) No entanto, no Processo Penal à análise do prazo especifico do recurso possui grande relevância à verificação da utilização do Principio da Fungibilidade, ou seja, caso o recurso (errado) tenha sido apresentado dentro do seu prazo, porém, além do prazo previsto para o recurso cabível (o que seria o recurso correto), aquele (o errado) não será abrangido pelo principio, sendo considerado precluso. Posição esta prevalecente pelo Supremo Tribunal Federal. 3.5 Princípio da Vedação da Reformatio in pejus “Dispõe o art. 617 do Código de Processo Penal: “O tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença” (grifou-se). Fundamentos: o Tribunal não pode proceder de ofício contra o réu; ademais, houve trânsito em julgado para a acusação. E se o Tribunal viola essa regra? Há nulidade absoluta. Aliás, nem sequer nulidade absoluta pode o Tribunal reconhecer contra o réu (Súmula 160 do STF), quando somente ele recorreu. “Súmula 160 do STF diz o seguinte: “É nula a decisão do tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não argüida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício”. Assim, no caso de interposição de recurso apenas do réu, fica o juízo, responsável pela revisão da decisão, impossibilitado de agravar a situação do recorrente (art. 617), conforme preceitua o princípio da reformatio in pejus. Entretanto, no caso de apresentação de recursos por ambas as partes essa limitação não ocorre. Importante observarmos as possibilidades. – Quando somente a defesa recorre, trata-se de um desdobramento do direito de defesa, não podendo o Tribunal piorar a situação do réu, mas pode melhorar. E o efeito da proibição da reformatio in pejus quando somente a defesa recorre. – Em contrapartida, se houver recurso interposto somente pela acusação (Parquet, querelante ou assistente de acusação), poderá a instância superior impor gravame maior ao condenado, desde que, exista pedido nesse sentido. – Por outro lado, se o réu foi condenado e tanto a defesa quanto o MP recorreu, o Tribunal pode piorar a situação, negar provimento a ambos os recursos, negar o recurso da acusação e dar provimento ao recurso da defesa ou mesmo dar provimento parcial a ambos. O Tribunal pode fazer qualquer coisa, não estando atrelado às razões recursais. – A reformatio in mellius, assim denominada por alguns autores, que consiste na alteração favorável da situação do réu em recurso exclusivo da acusação, é perfeitamente possível, pela ausência de qualquer obstáculo de índole constitucional. Ou seja, o MP interpor o recurso e pedir a melhora da situação do réu. É salutar a lembrança: ao Estado, e a toda a sociedade, interessa (e deve interessar), na mesma medida, tanto a condenação do culpado quanto a absolvição do inocente. (PACELLI, 2011, p. 850). 3.5.1 Princípio da Proibição da Reformatio in Pejus Indireta A proibição da reformatio in pejus no processo penal tem aplicação tanto direta e indireta. Anulada uma sentença condenatória em recurso exclusivo do réu, não pode o juiz (na segunda sentença) fixar pena maior. Se pudesse o réu estaria sendo prejudicado (indiretamente) por um recurso interposto por ele mesmo. Fala-se em reforma indireta em razão de não resultar diretamente da decisão do órgão de segunda instância, mas da nova decisão proferida pelo juiz da causa, após o reconhecimento da nulidade da sentença. Nessa hipótese, com efeito, o recurso da defesa, no qual se alegou a existência da nulidade, teria sido provido, não havendo de se falar em decisão in pejus. O prejuízo somente ocorreria e ocorrerá a partir da nova decisão, quando, afastada a nulidade, for confirmada (ou repetida) a condenação, com imposição, porém, de sanção mais grave. (PACELLI, 2011, p. 818) 3.6 Princípio da Personalidade do Recurso “Art. 580.  No caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25), a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros.” Com previsão no art. 580 do CPP, o Princípio da Personalidade consiste na idéia que o recurso penal de natureza pessoal poderá favorecer apenas a parte que o interpôs, no caso do processo com mais de um réu. Enquanto que a parte do recurso que tenha natureza geral pode ser aplicada a todos os réus. No Processo Civil, o recurso somente favorece aquele que o interpôs. No Processo Penal, se o Tribunal der provimento ao recurso por critérios objetivos (que não sejam pessoais, como a menoridade), a decisão benéfica se estende à outra parte. Trata-se da extensibilidade dos efeitos das decisões benéficas dos recursos. Por exemplo: se em uma ação penal com vários réus, apenas um recorra da sentença condenatória, e o juízo ad quem anular o processo em função de uma nulidade insanável, todos os co-réus serão beneficiados. 3.7 Princípio da Irrecorribilidade das Interlocutórias Ao contrário da matéria de Processo Civil, em que nas decisões interlocutórias cabe recurso de agravo, em matéria penal as decisões proferidas no curso do processo são irrecorríveis, com exceções previstas no artigo 581 do CPP e outras expressamente previstas em leis especiais. Porém, tais decisões poderão ser apreciadas no julgamento do recurso interposto contra a decisão de mérito (ou seja, não precluem). 3.8 Princípio da Disponibilidade do Recurso O Princípio da Disponibilidade do Recurso se expressa de duas formas: renúncia e desistência. Esta leva à extinção da possibilidade de recurso, sendo que deve ocorrer após sua apresentação, diferentemente da renúncia, que ocorre antes da interposição do recurso e impossibilita sua ocorrência. No caso da renúncia advinda do réu, pode ocorrer sua invalidação. Isto deriva do fato de o recurso poder ser apresentado pelo réu, seu procurador ou seu defensor, conforme art. 577. Além disso, importante ressaltar que caso haja divergência de pensamento entre o acusado e seu advogado, deve prevalecer a deste, já que pressupõe de conhecimento técnico. Posição esta ratificada pelo STF na súmula 705. Diferente do que ocorre com o réu, no caso de Ação Penal de titularidade do Ministério Público, não pode o MP desistir do seu recurso após apresentado, conforme expresso no art. 576. Dessa forma, apenas o acusado, o querelante e seus respectivos defensores podem optar pela desistência do recurso de sua autoria. 3.9 Princípio da Taxatividade dos Recursos O Princípio da Taxatividade prevê que os recursos devem estar expressamente previstos no texto legal, ou seja, estão disponíveis apenas os recursos que estejam presentes em lei, não podendo haver extensão. O rol é taxativo. 3.10 Princípio da Complementariedade Conforme pacificado na doutrina e na jurisprudência, o Principio da Complementaridade prevê a possibilidade de complementação das razões recursais quando houver aclaramento, modificação ou acréscimo à decisão proferida anteriormente, como ocorre no caso do acolhimento dos Embargos de Declaração. Importante frisar que a complementação do recurso deve respeitar os limites do acréscimo da decisão. Caso isto não seja respeitado correndo-se o risco de acarretar na ocorrência da preclusão consumativa. 3.11 Princípio da Dialeticidade Segundo o Princípio da Dialeticidade, o recorrente deve expor as razões pelas quais deve ocorrer análise da decisão proferida anteriormente, expressando toda a revolta diante dessa, dando a oportunidade de a parte contraria contraditar especificamente as razões e delimitando o exame dos pedidos ao órgão jurisdicional. Trata-se da garantia de que o contraditório será exercido. 3.12 Princípio da Tempestividade A interposição do recurso deve ser feita dentro do prazo previsto em lei. A regra geral, no Processo Penal, é de 5 (cinco) dias, havendo alguns prazos menores e outros maiores. Os prazos recursais são fatais, peremptórios e contínuos, conforme previsão legal do artigo 798. 4. Classificações dos recursos Além da distinção entre recurso voluntário (art. 574) e recurso de ofício, bem como, os recursos parciais e totais, outras classificações são estabelecidas pela doutrina ou pela lei. 4.1. Quanto às suas fontes informativas – Recursos Constitucionais São previstos pela Constituição Federal e que têm por finalidade levar aos Tribunais Superiores o seu conhecimento ou defender os direitos fundamentais do indivíduo (exemplos: habeas corpus, mandado de segurança, recurso especial, recurso extraordinário). – Recursos Legais São previstos no Código de Processo Penal ou em outras leis processuais especiais (exemplos: apelação, recurso em sentido estrito, embargos de declaração, carta testemunhável, revisão criminal). – Recursos Regimentais São os instituídos nos regimentos dos tribunais (exemplo: agravos regimentais). Observação: nestas classificações foram consideradas, também, as ações de impugnações autônomas, como o habeas corpus, o mandado de segurança e a revisão criminal, estas que não são consideradas propriamente recursos. 4.2. Quantos aos seus critérios de motivação – Recursos Extraordinários Exigem requisitos próprios. São eles: recurso especial e extraordinário. 4.3. Recursos Ordinários Baseiam-se no mero inconformismo. São todos os outros recursos. Exemplos: apelação, recurso em sentido estrito, etc. 5. Juízo de admissibilidade Interposto o recurso, cabe ao órgão jurisdicional a quo verificar se deve ser ele processado e julgado. O juiz perante o qual é interposto o recurso deve realizar um juízo de sua admissibilidade, verificando se estão presentes, no caso, os pressupostos objetivos e subjetivos da impugnação, isto é, se há previsão legal e adequabilidade, se há tempestividade e se há legitimidade e interesse para recorrer. Mas, o recebimento do recurso pelo juiz a quo não subtrai do Juízo ad quem o exame dos pressupostos da impugnação; se aquele o conhecer, é possível que este não o faça, por entender não estar presente algum dos pressupostos exigíveis na hipótese. Em regra, portanto, o juízo de admissibilidade do recurso é feito em dois graus, ressalvada a hipótese de recurso para o mesmo órgão julgador (exemplo: embargos declaratórios). 5.1. Admissibilidade Os recursos regem-se, quanto à sua admissibilidade, pela lei em vigor ao tempo em que a decisão recorrida é proferida. Satisfeitos todos os pressupostos objetivos e subjetivos, o recurso deve ser recebido, processado e julgado; caso contrário não deve ser recebido ou conhecido. Neste caso, o recorrente passa a ser sucumbente, por lesão a seu direito, podendo lançar mão de outro recurso, se previsto em lei, para afastar a decisão de não conhecimento. Exemplos: – recurso em sentido estrito, quando rejeitada a apelação (art. 581, XV); – carta testemunhável na decisão de não conhecimento do recurso em sentido estrito (art. 639). 6. Pressupostos recursais Os pressupostos recursais são àqueles que antecedem a interposição do próprio recurso, ou seja, são antecedentes logicamente necessários à própria existência do recurso. Assim, classificam-se os pressupostos recursais: – pressuposto lógico: uma decisão judicial; – pressuposto fundamental: a sucumbência. Além destes pressupostos recursais existem os requisitos (por alguns teóricos, também, denominados pressupostos) próprios de cada recurso. Vejamos a seguir. 6.1 Requisitos específicos ou próprios Objetivos 1. Cabimento 2. Adequação 3. Tempestividade 4. Regularidade procedimental 5. Impedimentos recursais: fatos impeditivos (surgem antes da interposição) e fatos extintivos (surgem depois da interposição). Subjetivos 1. Legitimidade recursal 2. Interesse recursal (utilidade) 6.1.1 Requisitos recursais objetivos a) Cabimento (taxatividade ou legalidade) Para que se possa recorrer de uma decisão terminativa ou interlocutória, deve haver um recurso próprio previsto na lei. – Princípio da irrecorribilidade autônoma das decisões interlocutórias (salvo cabimento de RESE). b) Adequação Para cada espécie de decisão cabe um recurso específico, não podendo a parte utilizar-se de mais de um meio recursal. – Princípio da unirrecorribilidade (singularidade ou unicidade) CPP, art. 593, § 4º: “Quando cabível a apelação, não poderá ser usado o recurso em sentido estrito, ainda que somente de parte da decisão se recorra.” Exceções, alguns exemplos: – embargos de declaração e apelação; – embargos infringentes/nulidade e REsp/RExt; – REsp e RExt. c) Tempestividade As leis que instituem os Recursos prevêem para cada tipo recursal um prazo para sua interposição, devendo o lapso temporal ser observado sob pena de não ser conhecido pela instância superior. Termo inicial do prazo CPP, art. 798, § 5º: “Salvo os casos expressos, os prazos correrão: a) da intimação; b) da audiência ou sessão em que for proferida a decisão, se a ela estiver presente a parte; c) do dia em que a parte manifestar nos autos ciência inequívoca da sentença ou despacho.” Portanto, devemos salientar que o prazo é contado do dia da intimação e não da juntada do respectivo mandado aos autos (súmula 710 do STF), exceção da carta precatória, caso em que se conta da anexação do precatório. O termo inicial da contagem do prazo CPP é especificado no art. 798, § 1º: “Não se computará no prazo o dia do começo, incluindo-se, porém, o do vencimento.” Ministério Público Art. 800 § 2º: “Os prazos do Ministério Público contar-se-ão do termo de vista, salvo para a interposição do recurso (art. 798, § 5º).” Ou seja, o termo inicial para o MP recorrer é o mesmo estabelecido no art. 798, § 2º, acima citado. Para melhor esclarecimento, vejamos uma decisão do STF: “RECURSO. PRAZO. TERMO INICIAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. O termo inicial do prazo recursal para o Ministério Público, em ação penal, conta-se a partir da entrega do processo no setor administrativo da Procuradoria-Geral da Justiça, mediante carga devidamente formalizada, e não do ‘ciente’ que o membro do parquet, em dia que lhe interessar, venha a lançar. (Precedente: HC 83.255, Marco Aurélio, D.J. de 12.03.04). HC deferido para desconstituir o acórdão do Superior Tribunal de Justiça proferido no recurso especial intempestivo.” (STF, 2ª Turma, HC 84.153/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 01.06.2004, DJ 18.06.2004) Defesa Para a Defesa, intimação de acusado e defensor ⇒ começa a contagem depois da intimação do último. Vejamos uma decisão do STF que, apesar de antiga, esclarece a questão. “STF – “[…]. INTIMAÇÃO DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA – CONDENADO E DEFENSOR TÉCNICO, CONSTITUÍDO OU DATIVO – ORDEM DAS INTIMAÇÕES – TERMO INICIAL DO PRAZO RECURSAL – PRECEDENTES. Com a exigência da dupla intimação (…) É irrelevante a ordem em que essas intimações sejam feitas. Revela-se essencial, no entanto, que o prazo recursal só se inicie a partir da última intimação.” (STF, 1ª Turma, HC 67.714/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 20.03.1990, DJ 15.03.1991) Defensoria Pública O prazo será contado em dobro para o Defensor Público, conforme Lei n. 1.060/50, art. 5º, § 5º: “Nos Estados onde a Assistência Judiciária seja organizada e por eles mantida, o Defensor Público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado pessoalmente de todos os atos do processo, em ambas as Instâncias, contando-se-lhes em dobro todos os prazos.” Observação: STF: não se conta em dobro o prazo para o advogado dativo. “PROCESSUAL CIVIL. ADVOGADO DATIVO: PRAZO EM DOBRO: IMPOSSIBILIDADE. Lei 1.060/50, redação da Lei 7.871/89, art. 5º, § 5º. I. – Não se aplica ao advogado dativo a norma inscrita no art. 5º, § 5º, da Lei 1.060/50, redação da Lei 7.871/89, dado que as prerrogativas processuais da intimação pessoal e do prazo em dobro somente concernem aos Defensores Públicos (LC 80/94, art. 44, I, art. 89, I e art. 128, I). II. – Precedentes do STF: Pet 932-SP, Min. Celso de Mello; Ag 166.716-RS, Min. Moreira Alves; Ag 166.754-RS, Min. Sepúlveda Pertence; Ag 167.023-RS, Min. Celso de Mello; Ag 167.086-RS, Min. Marco Aurélio. III. – Agravo não provido.” (STF, Tribunal Pleno, CR-AgR-AgR 7870/EU, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, j. 07.03.2001, DJ 14.09.2001). d) Regularidade procedimental Para todo tipo de Recurso, deve-se observar as formalidades legais exigíveis para sua interposição. O CPP dispõe no art. 578, caput: “O recurso será interposto por petição ou por termo nos autos, assinado pelo recorrente ou por seu representante.” A regra é a petição. Observações: – recursos que podem ser interpostos também por termo: Apelação e Recurso em Sentido Estrito. – recursos que só podem ser interpostos por petição: Embargos Infringentes, Embargos Declaratórios, Carta Testemunhável, Recurso Especial, Recurso Extraordinário, Correição Parcial, além das ações constitucionais de habeas corpus e Revisão Criminal. Não há obrigação alguma que determine ao recorrente, no ato da interposição da petição ou termo, de dar seus motivos para a interposição, bastando que declare sua inconformidade com a sentença. A motivação será exposta nas razões do recurso. No processo penal, em atenção ao Princípio Constitucional da Ampla Defesa, não se pode levar o formalismo exagerado ao extremo de não se admitir o recurso apenas porque dessa manifestação não consta, expressamente, as palavras sacramentais exigíveis pela boa técnica processual. Neste aspecto é salutar a observação do art. 577 que prevê a possibilidade de recurso até mesmo pelo réu, pessoalmente, portanto haverá casos que os formalismos da petição e a própria motivação recursal será dispensada. Assim, repita-se a regra: no âmbito dos recursos da via ordinária, dispensam motivação para o respectivo conhecimento – excetos nos recursos de fundamentação vinculada, como os recursos extraordinários. (PACELLI, 2011, p. 863) Observação: a Lei 9800/99 dispõe sobre a interposição do recurso por meio de telex ou fax. Em seu art. 2º é expresso que a petição original deve ser entregue em juízo até 5 (cinco) dias da data do término do prazo recursal. e) Ausências de fatos impeditivos e extintivos – Fato impeditivo (antes da interposição) É aquele que impede a interposição do recurso ou o seu recebimento, e, portanto, surge antes de o recurso ser interposto. Considera-se fato impeditivo a renúncia ao direito de recorrer. A renúncia deve ser feita por manifestação expressa do ofendido. Em relação ao MP, não se trata propriamente de renúncia, pois, não há a necessidade de manifestação expressa pelo parquet, bastando que a impugnação não seja apresentada, assim, deixando o prazo recursal escoar. (PACELLI, 2011, p. 863) Observações: – o MP não pode renunciar nem desistir do recurso interposto (Princípio da Indisponibilidade). – antes de 2008, o não recolhimento à prisão nos casos que a lei exigisse, também, era um fato impeditivo para a interposição do recurso, porém, o art. 594 foi revogado expressamente pela Lei n.º 11.719/2008. E, ainda, observando que o art. 387, parágrafo único, dispõe: “O juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta”. (grifado) Ou seja, a prisão não configura mais pressuposto recursal. A pessoa pode recorrer sem estar presa (pela revogação do art. 594). Porém, o juiz poderá determinar a prisão preventiva (em casos específicos e extremamente necessários – em conformidade com a nova Lei 12.403/2011). Ou ainda, pode-se concluir que o processamento do recurso independe da necessidade da prisão cautelar ou de outra medida cautelar. Súmula n. 705 do STF: A renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta. Neste caso, entende-se que o defensor é o profissional que possui técnica e conhecimento para verificar o que é melhor ao condenado. – Fatos extintivos (depois da interposição) São fatos supervenientes à interposição do recurso, que impede seu conhecimento. Consideram-se fatos extintivos a desistência e a deserção por falta de preparo (pagamentos das custas processuais). Observação: lembrando que a hipótese de deserção como fuga do condenado, depois da interposição da apelação, também, era considerada como fato extintivo, porém, o art. 595, que previa a referida hipótese, foi revogado pela Lei nº 12.403, de 2011. Desistência Por força do Princípio da Indisponibilidade o MP não pode desistir de recurso que haja interposto, em conformidade com o art. 576. Portanto, somente a Defesa (acusado e defensor) pode desistir do recurso interposto, isto pelo Princípio da Disponibilidade recursal. Falta de preparo “CPP, art. 806. “Salvo o caso do art. 32, nas ações intentadas mediante queixa, nenhum ato ou diligência se realizará, sem que seja depositada em cartório a importância das custas. § 1º Igualmente, nenhum ato requerido no interesse da defesa será realizado, sem o prévio pagamento das custas, salvo se o acusado for pobre. § 2º A falta do pagamento das custas, nos prazos fixados em lei, ou marcados pelo juiz, importará renúncia à diligência requerida ou deserção do recurso interposto.” (Grifado) Entende-se que, somente nas ações privadas que não houve declarações de pobreza (Lei 1060/50 – assistência judiciária aos necessitados), às custas serão devidas. E, nestes casos, haverá a deserção por falta de preparo. Por outro lado, havendo tais declarações não serão casos de deserção. 6.1.2 Requisitos recursais subjetivos a) Legitimidade “Art. 577: O recurso poderá ser interposto pelo Ministério Público, ou pelo querelante, ou pelo réu, seu procurador ou seu defensor. Parágrafo único.  Não se admitirá, entretanto, recurso da parte que não tiver interesse na reforma ou modificação da decisão.” Legitimidade do Ministério Público – Ações penais públicas – como parte parcial/ acusação – PODE RECORRER; – Ações penais privadas com sentença absolutória – NÃO PODE RECORRER; – Ações penais privadas com sentença condenatória – atua como órgão da justiça/ fiscal da lei – PODE RECORRER. Legitimidade do ofendido/ querelante – Ações penais privadas exclusivas – ofendido, seu representante legal e seus sucessores – PODEM RECORRER; – Ações penais privadas personalíssimas – ofendido e seu representante legal – PODEM RECORRER; – Ações penais privadas subsidiárias da pública – ofendido, seu representante legal e seus sucessores – PODEM RECORRER; – Ações penais públicas – pelo assistente da acusação (se habilitado: prazo para recorrer será o mesmo do MP. Se não habilitado: ele poderá recorrer no prazo de 15 dias, contados do término do prazo do MP – art. 598, parágrafo único) – PODE RECORRER. Legitimação do acusado/ defensor – Acusado e defensor: legitimação autônoma e concorrente – PODEM RECORRER. – Acusado possui capacidade postulatória (manifestação do direito de autodefesa). b) Interesse (utilidade) CPP, art. 577, parágrafo único: “Não se admitirá, entretanto, recurso da parte que não tiver interesse na reforma ou modificação da decisão.” MINISTÉRIO PÚBLICO O MP tem interesse recursal como parte parcial (acusação) ou como órgão da justiça (fiscal da lei). – Pode recorrer na qualidade de fiscal da lei, buscando a correta aplicação da lei, ainda que o resultado do recurso venha a beneficiar o acusado. Ação penal privada comum – Sentença absolutória: NÃO TEM INTERESSE em recorrer se o querelante não o fez (princípio da disponibilidade da ação penal privada). – Sentença condenatória: TEM INTERESSE me recorrer, por exemplo, para o aumento da pena (correta aplicação da lei). Ação penal privada subsidiária – TEM INTERESSE em interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal. ACUSADO – Sentença condenatória: TEM INTERESSE em recorrer sempre que houver prejuízos ou decisões insatisfatórias. – Sentença absolutória: TEM INTERESSE em recorrer para alteração do seu fundamento (motivo: repercussão extrapenal – efeitos civis). OFENDIDO – Sentença absolutória: TEM INTERESSE. – Sentença condenatória: TEM INTERESSE em recorrer, por exemplo, visando à exata aplicação da justiça penal. Observação: o ofendido NÃO TEM INTERESSE em recorrer contra a concessão de benefícios penais da execução da pena, como o sursis (a atuação do ofendido se restringe à fase de conhecimento). 7. Efeitos dos recursos O efeito extrínseco dos recursos é evitar a coisa julgada. Ademais, além deste efeito temos: – devolutivo; – suspensivo; – extensivo; – regressivo. 7.1 Efeito Devolutivo Trata-se, no sentido amplo, de um efeito comum a todos os recursos. Ou seja, em todos há a transferência do conhecimento de determinada questão, tanto à instância superior como, eventualmente, à própria instância que proferiu a decisão (por exemplo, no caso de embargos de declaração). Em sentido estrito, efeito devolutivo só existe nos recursos em que se reexamina o mérito, como na apelação e na revisão, e não nos demais, em que pode ser examinada apenas uma questão processual. A instância superior pode avaliar questões de nulidade absoluta que envolva as partes, mesmo que não solicitadas, especialmente quando há prejuízo para o réu. Observação: entende-se devolutivo como remetivo – ato de remeter ao órgão superior toda a matéria controvérsia. Ou ainda, entende-se como “transferido”, ou seja, a controvérsia é transferida ao órgão superior para a devida apreciação. 7.2 Efeito suspensivo Pelo efeito suspensivo, o recurso funciona como condição suspensiva da eficácia da decisão, que não pode ser executada até que ocorra o seu julgamento. A lei deve prever expressamente as hipóteses em que ocorre tal efeito; no seu silêncio, o recurso não impede a eficácia da decisão recorrida. Exemplo: como não há mais a prisão para apelar, o réu solto, somente será levado à prisão, se condenado, depois do trânsito em julgado (que ocorre depois de ultrapassados os prazos para recorrer). Assim, podemos concluir que a apelação interposta contra sentença condenatória terá sempre o efeito suspensivo (PACELLI, 2011, p. 855). Observação: o mesmo não ocorrerá quando se tratar de sentença absolutória. Nesse caso, a lei impõe que o réu seja posto imediatamente em liberdade (art. 596), com o que o recurso contra ela interposto não terá efeito suspensivo (PACELLI, 2011, p. 855). 7.3 Efeito extensivo O efeito extensivo está previsto no artigo 580: “No caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25), a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros.” Trata-se de uma exceção ao Princípio da Personalidade do recurso. Por exemplo, não haveria sentido em manter-se a condenação de um co-réu quando, para outro, se decidiu no recurso que não há prova do fato criminoso; de manter a condenação por furto praticado durante o repouso noturno, quando para o co-réu ficou reconhecido que o crime não ocorreu em tal situação temporal; de manter-se a prisão de um quando se revelou que a prisão em flagrante do co-réu, detido nas mesmas circunstâncias, era irregular etc. O reconhecimento de uma causa extintiva da punibilidade comunicável (exemplo: renúncia ao direito de queixa ou representação) também se estende aos co-réus não recorrentes. Por outro lado, por exemplo, a atenuação da pena de um, por ser menor de 21 anos, por ter praticado o crime em virtude de violenta emoção ou pela concessão da liberdade provisória por ser primário e de bons antecedentes, não são estendidas o outro co-réu.  7.4 Efeito regressivo (ou iterativo, ou diferido) Fala-se, por fim, no efeito regressivo, que é o juízo de retratação possibilitado ao prolator da decisão, que pode alterá-la ou revogá-la inteiramente, quando se trata de determinadas impugnações, como no caso de recurso em sentido estrito (art. 589) e nos embargos de declaração, portanto, trata-se de possibilidades de retratação por parte do juízo a quo, àquele que proferiu a sentença. 8. Extinção Os recursos podem ser extintos antes de seu julgamento pelo juízo ou tribunal ad quem, se ocorrem certos fatos que a lei dá caráter de força extintiva. A primeira delas é a deserção, que ocorre pela falta de preparo ou pagamento das despesas exigidas por lei (art. 806, § 2). É também causa de extinção a desistência, faculdade concedida ao réu, seu defensor e curador, ao querelante e ao assistente. Não, porém, ao Ministério Público, como já visto. 9. Tabela de prazos recursais (rito ordinário – regras gerais)
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-92/a-tecnica-do-sistema-recursal-penal/
Ônus da prova no direito processual penal brasileiro: considerações conceituais
O presente estudo tem como objeto o Direito Processual Penal brasileiro. O processo penal tem como finalidade a reconstrução dos fatos (apuração do fato criminoso e de sua autoria) para a aplicação do direito material, o que se consegue através das provas produzidas pelas partes ou pelo juiz, sob o crivo do contraditório. As questões relativas ao processo penal sempre foram objetos de diversas discussões ao longo da história jurídica. Diversos estudiosos defenderam a humanização do processo penal, que evoluiu de um sistema inquisitório para um sistema acusatório. No entanto, ater-se-á, para a realização do presente estudo, questões relativas ao ônus da prova, o que será feito à luz dos princípios e garantias constitucionais, principalmente no que se refere à sua conceituação.
Direito Processual Penal
1. Introdução O presente estudo tem como objeto o Direito Processual Penal brasileiro. O processo penal tem como finalidade a reconstrução dos fatos (apuração do fato criminoso e de sua autoria) para a aplicação do direito material, o que se consegue através das provas produzidas pelas partes ou pelo juiz, sob o crivo do contraditório. Ater-se-á, para a realização do presente estudo, questões relativas ao ônus da prova, o que será feito à luz dos princípios e garantias constitucionais. As questões relativas ao processo penal sempre foram objetos de diversas discussões ao longo da história jurídica. Diversos estudiosos defenderam a humanização do processo penal, que evoluiu de um sistema inquisitório para um sistema acusatório. Hodiernamente, vários doutrinadores defendem a idéia de o réu, no processo penal, possuir mais acesso às provas e meios de provas para provar a inocência, buscando uma sentença absolutória da forma que lhe for mais conveniente. Essa mudança de visão em relação ao réu coaduna com os princípios basilares do devido processo legal, base do sistema acusatório. Essa corrente vem ganhando força na seara jurídica, principalmente quando analisamos o direito processual penal sob a ótica constitucional. Não poderia ser diferente, já que a atual Constituição da República é a norma maior de nosso ordenamento jurídico e, pois, tudo o que for contrário à Constituição padece do vício da inconstitucionalidade. A prova tem como finalidade a reconstrução dos fatos que guardam vínculo com o fato criminoso, influindo no convencimento do juiz. Mas, a quem incumbe o ônus de provar? O art. 156 do Código de Processo Penal (modificado pela Lei n. 11.690/08) estabelece que: “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”, assim, tem-se que o ônus da prova incumbe a quem alega. O termo ônus vem do latim onus ou oneris e quer dizer encargo, fardo, carga ou peso, entretanto, não se deve confundir ônus com dever, que é a subordinação ao interesse de outrem, cujo descumprimento acarreta uma pena ou sanção.   Como o processo judicial é um debate entre partes, amparado pelo princípio do contraditório (possibilidade das partes, no processo penal, acusador e acusado, de influenciar a decisão do juiz), decorre que as partes apresentem suas teses afirmativas ou negativas visando uma sentença favorável à tese formulada em detrimento da tese ex adversa. Aqui, o problema surge em relação a quem incumbe provar as alegações: à acusação (Ministério Público e querelante) ou ao acusado (réu). A este problema, a doutrina chama de ônus da prova, que comumente é conceituado como o encargo de que as partes têm de provar as suas alegações, sendo uma obrigação que se não for cumprida acarretará prejuízos apenas para o encarregado. Todavia, o processo é composto por partes e o sistema acusatório (modelo de processo penal adotado no Brasil) exige a presença de partes antagônicas, em posição de igualdade e com iguais direitos à prova, assim, boa parte da doutrina reconhece às partes (e não só a uma delas) um direito de provar suas alegações, distribuindo às partes o ônus da prova de suas teses. Superando a idéia de ônus da prova como encargo das partes, Antônio Magalhães Gomes Filho (1997, p. 85), à luz do princípio do contraditório, trata da relação entre as partes e a prova como direito à prova e não como ônus, pois o processo penal não constitui mero instrumento de pacificação de conflitos, mas sim instrumento para a mais exata reconstrução dos fatos sobre os quais irá versar a decisão judicial, sendo, portanto, garantia do acusado e da própria jurisdição. Leciona o referido doutrinador: “O reconhecimento de um verdadeiro direito subjetivo à prova, cujos titulares são as partes no processo (penal, no nosso casso), supõe considerar que as mesmas devem estar em condições de influir ativamente em todas as operações desenvolvidas para a constituição do material probatório que irá servir de base á decisão; nessa visão, a prova, antes de tudo, deve ser atividade aberta à iniciativa, participação e controle dos interessados no provimento jurisdicional.  (…) O direito à prova compreende, em segundo lugar, um poder de iniciativa em relação à introdução do material probatório no processo; trata-se do direito de proposição (indicação, requerimento) de provas (…).” (GOMES FILHO, 1997, p. 85) Este “direito à prova” não se restringe à comunhão das provas no processo criminal, ou seja, as provas são do processo e não exclusivamente de uma das partes. O “direito à prova” vai além: refere-se também ao direito de produzir provas. Dentro do processo, pois, o réu tem o direito de produzir provas suficientes para provar que é inocente, visando uma sentença absolutória que assim declare. Assim, para o desenvolvimento do presente trabalho, e adotando a tese da distribuição da atividade probatória (que a doutrina chama tradicionalmente de o ônus da prova) no processo penal brasileiro, passa-se a adotar o seguinte posicionamento acerca da relação entre as partes e a prova: se se presume a inocência, compete à acusação o ônus da prova, carreando os autos de provas suficientes para quebrar esta presunção e obter uma condenação; de outro lado, decorrente do princípio da ampla defesa, deve-se reconhecer ao réu o direito à prova, para produzir provas e contraprovas com a finalidade de influir no convencimento do juiz, que proferirá uma sentença quanto mais justa quanto melhor se puder reconstruir os fatos dentro do processo, o que somente se conseguirá de forma imparcial através do contraditório, ou seja, do debate construído pelo ônus da prova do acusador e do direito à prova do acusado. Ao fim do processo penal, a sentença proferida (condenatória ou absolutória) interessa ao réu, pois que seus efeitos operam, principalmente, em sua liberdade e em seu patrimônio. Interessa à sociedade, também, pois que não podemos olvidar das conseqüências para a sociedade advindas de uma não condenação e a certeza da impunidade. Assim, para a correta decisão do juiz, faz-se necessário uma reconstrução dos fatos o mais próxima do ocorrido, o que será possibilitado pelo contraditório das provas e contraprovas trazidas nos autos por ambas as partes. 2. Ônus da prova: considerações conceituais A prova no processo penal tem como finalidade a reconstrução dos fatos que guardam vínculo com o fato criminoso, influindo no convencimento do juiz. Mas, a quem incumbe o ônus de provar? O art. 156 do Código de Processo Penal (modificado pela Lei n. 11.690/08 de 09 de junho de 2008) estabelece que: “Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.” Assim, do caput do artigo tem-se que o ônus da prova incumbe a quem alega. A nova redação do art. 156 (modificado pela Lei n. 11.690/08 de 09 de junho de 2008) não alterou a regra sobre ônus da prova, ao contrário, manteve “a regra de que o ônus de se provar o alegado compete a quem fizer a alegação. Trata-se de regra em perfeita sintonia com os princípios gerais de direito, como a boa-fé, a obrigação de dizer a verdade, o esforço para buscar a verdade real, entre outros” (SILVA, 2008, p. 64). Todavia, o entendimento de que o ônus de provar o alegado compete a quem fizer a alegação não é unânime na doutrina.  Para que se possa responder a esta e outras perguntas que surgirão no decorrer do presente trabalho será necessário, primeiro, entender o conceito de ônus da prova. 3. Conceito de ônus da prova O termo ônus vem do latim onus ou oneris e quer dizer encargo, fardo, carga ou peso; mas a doutrina diverge quanto ao conceito de ônus da prova. Segundo Fernando Capez (2006, p. 308) ônus da prova é “o encargo que têm os litigantes de provar, pelos meios admissíveis, a verdade dos fatos” e ensina que “a prova não constitui uma obrigação processual e sim um ônus, ou seja, a posição jurídica cujo exercício conduz seu titular a uma condição mais favorável”, cabendo provar que tem o interesse em afirmar. Para definir ônus da prova Afrânio Silva Jardim (1987, p. 154) aduz que o ônus probandi “é a faculdade ou encargo que tem a parte de demonstrar no processo a real ocorrência de um fato que alegou em seu interesse, o qual se apresenta como relevante para o julgamento da pretensão deduzida pelo autor da ação penal”. Segundo Cintra (2003, p. 351) , “ônus da prova consiste na necessidade de provar, em que se encontra cada uma das partes, para possivelmente vencer a causa”.  Superando a idéia de ônus da prova como encargo das partes, Gomes Filho (1997, 83-88), à luz do princípio do contraditório, trata da relação entre as partes e a prova como direito à prova e não como ônus, senão vejamos: “Tradicionalmente, a relação entre as partes e a prova tem sido tratada pela doutrina processual em termos de ônus, o que corresponde a uma ótica que se pode afirmar negativa da questão, pois ao litigante que tinha o encargo de provar e não o fez são atribuídos os riscos da falta de provas no julgamento da causa. Essa colocação, que, segundo Verde, é própria do formalismo positivista, traz consigo a idéia de que o processo constitui mero instrumento de pacificação de conflitos, sem se importar com uma correta reconstrução dos fatos; assim, revela-se absolutamente insatisfatória e inadequada à moderna concepção de processo justo, especialmente no terreno penal, cujo modelo cognitivo constitui garantia do acusado e da própria jurisdição.” Sob uma dimensão positiva, Gomes Filho (1997, 83-84) reconhece às partes um direito subjetivo de “empregar todas as provas de que dispõe; com o fim de demonstrar a verdade dos fatos que fundamentam sua pretensão; nessa visão, ressalte-se o papel de colaboração dos interessados na reconstrução mais exata dos fatos sobre os quais irá versar a decisão judicial”. Do exposto, vê-se que ônus da prova é conceituado ora como um direito subjetivo (faculdade), ora como um dever (encargo). Todavia, os termos direito e dever possuem conceitos diferentes. 4. Distinções entre ônus, dever, obrigação e faculdade Passa-se a diferenciar os seguintes vocábulos: ônus, dever, obrigação e faculdade. Para tanto, recorreremos à Teoria Geral do Direito. Segundo Goldschimidit (apud GOMES FILHO, 1997, p. 175), “os deveres são imperativos impostos pelo interesse de um terceiro ou da comunidade, enquanto os ônus são um imperativo do próprio interesse”. O dever pressupõe a existência de um sujeito ativo a quem interessa o cumprimento do dever pelo sujeito passivo da relação jurídica, sendo descumprido um dever pelo sujeito passivo, gerará uma sanção com natureza de coação moral ou de intimidação. Já o ônus está situado no campo da liberdade não havendo ilicitude no descumprimento de um ônus. (HENRIQUE, 2003, p. 176) Perante o ônus não há qualquer posição contraposta como ocorre com o dever. As obrigações são imperativos do interesse do credor, o qual pode exigir do devedor o cumprimento da obrigação sob pena de lhe ser imposta uma sanção para o cumprimento da prestação não cumprida, sujeitando o devedor à execução forçada. (HENRIQUE, 2003, p. 176) Quanto às conseqüências do descumprimento de uma obrigação, de um dever e de um ônus, “o inadimplemento de uma obrigação ou de um dever gera uma situação de ilicitude e traz como conseqüência a possibilidade de uma sanção. Já o descumprimento de um ônus configura um ato lícito e não é sancionado.” (HENRIQUE, 2003, p. 177) Por fim, o termo faculdade corresponde ao termo direito subjetivo, que segundo REALE: “direito subjetivo é a possibilidade de exigir-se, de maneira garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém como próprio” (REALE, 2002, p. 260). Assim, o sujeito ativo tem a faculdade (possibilidade) de exigir de um sujeito passivo, segundo as normas do direito objetivo, um direito que lhe é garantido. Esta faculdade pode ou não ser exercida pelo titular do direito subjetivo. “Ao direito subjetivo corresponde uma obrigação.” (GOMES FILHO, 1997, p. 176)
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-91/onus-da-prova-no-direito-processual-penal-brasileiro-consideracoes-conceituais/
A produção de prova pelo acusado na fase pré-processual: Uma garantia para realização de um processo constitucional
O presente trabalho demonstrará como o acusado tem seus direitos e garantias fundamentais mitigados no processo penal brasileiro, especificamente no que diz respeito à produção de provas, do exercício do contraditório e da ampla defesa na fase de inquérito policial.
Direito Processual Penal
1 INTRODUÇÃO: O inquérito policial deve ser adequado ao modelo de processo de um Estado Democrático de Direito, principalmente no que tange ao exercício do contraditório, da ampla defesa e a produção de provas nessa fase pré-processual. O modelo constitucional de processo é aquele que proporciona aos que serão afetados pelo provimento jurisdicional o pleno exercício dos direitos e garantias fundamentais. Exercício este que tem proporcionado diversas modificações quanto o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, quebrando o paradigma tradicional do processo penal, aproximando-o do modelo constitucional. Verifica-se que os julgados ainda demonstram uma estrutura procedimental antiquada, influenciada pela instrumentalidade, onde o juiz tem o papel de aplicar a lei. Contudo não podemos deixar de constatar que as fundamentações dos julgados do Supremo Tribunal Federal pretendem garantir a efetividade dos princípios constitucionais do processo, coadunando, inclusive, a proposta de procedimento realizado em contraditório. Este é o entendimento do processo constitucional, onde aos envolvidos é permitido o exercício do contraditório, da ampla defesa e produção de provas durante todo processo penal, inclusive em sua fase pré-processual. Para desenvolver o presente trabalho, será demonstrado o inquérito policial em sua estrutura dogmática tradicional, fazendo uma reconstrução do processo penal constitucional, observadas as garantias e direitos fundamentais. Será examinando, ainda, a possibilidade da participação do acusado na fase pré-processual prevista no direito processual penal italiano como forma de proporcionar uma releitura e adequação ao inquérito policial brasileiro.   Por fim, constata-se não apenas que o inquérito policial deve ser pautado dos direitos e garantias fundamentais, como justifica que é a forma de realizar plenamente um procedimento constitucionalizado, onde o acusado poderá participar, durante todo procedimento penal, na formação do provimento jurisdicional. 2 O INQUÉRITO POLICIAL A dogmática tradicional ensina que o direito é a necessidade de punir àqueles que cometem ações contrárias as normas jurídicas decorrem desde os primórdios da existência da sociedade. Assim, para se evitar formas primitivas de punição, como a “lei de talião” na base do “olho por olho, dente por dente”, surge a necessidade de o Estado evocar o direito de julgar e punir. Contudo, tendo em vista essa reconstrução, antes de exercer o jus puniendi cabe ao Estado o exercício do jus persequendi. A persecução penal, como é conhecida, compreende-se em duas fases: a fase investigatória (ou pré-processual) e a fase judicial[1]. A fase investigatória, foco principal do presente estudo, é realizada através do inquérito policial, um procedimento pré-processual administrativo inquisitorial, que reunirá os elementos necessários para propositura, ou não, da ação penal. O inquérito policial é o instrumento através do qual a autoridade policial realiza o conjunto de diligências para a apuração de uma infração penal e sua autoria para que o titular da ação penal possa provocar a prestação jurisdicional para o caso concreto. Em que pese o entendimento existente de que o processo penal se constitui de dois momentos distintos, este deve ser considerado de forma uno e indivisível, pautado de uma interpretação conforme o modelo constitucional do processo, na medida em que do inquérito policial é que se decorre a ação penal. Até mesmo José Frederico Marques perfilha deste entendimento: “A persecutio criminis apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal. Esta consiste no pedido de julgamento da pretensão punitiva, enquanto a primeira é atividade preparatória da ação penal, de caráter preliminar e informativo: inquisitio nihil est quam informatio delicti”. (MARQUES, 2003, p. 138) Sem adentrar as discussões acerca do caráter sigiloso, bem como da inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de acesso aos autos do inquérito policial, cujo entendimento vem sendo pacificado no Supremo Tribunal Federal, esse procedimento administrativo-investigatório deveria ser dotado do exercício dos direitos e garantias fundamentais constitucionais, dentre eles o da ampla defesa e do contraditório, de modo a possibilitar a realização do devido processo legal. O Supremo Tribunal Federal tem formado posicionamento de que: “O cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação a pena privativa de liberdade ou na mensuração desta: a circunstância é bastante para admitir-se o habeas corpus a fim de respeitar as prerrogativas da defesa e, indiretamente, obviar prejuízo que, do cerceamento delas, possa advir indevidamente à liberdade de locomoção do paciente”. (BRASIL, STF, 2004) Neste sentido, explicita o professor Édison Luiz Baldan: “Falar, portanto, em investigação remete à questão dos direitos e garantias constitucionais do cidadão, que não pode ser tratado sob o prisma errôneo da prevalência do interesse coletivo sobre o individual, somente admissível nos domínios do direito civil ou administrativo”. (BALDAN, 2007, p. 258) É com base nesta vertente que o exercício da ampla defesa e do contraditório não deveria ficar adstrita ao acusado durante a fase judicial, quando da ação penal; devendo ser estendido ao imputado quando do inquérito policial, principalmente no que tange a produção de provas em seu favor, para realização plena da garantia do devido processo legal, por todo procedimento penal. 3 A REALIZAÇÃO DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO NO INQUÉRITO POLICIAL Os meios de prova são elementos submetidos ao juízo, observados os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, destinado à formação do provimento jurisdicional. Sua constituição é validada desde que não formalizados ilegalmente ou quando colhidos na fase inquisitorial sem as garantias e direitos constitucionais. As provas coletadas durante a fase investigativa somente serão assim consideradas quando jurisdicionalizadas, ainda assim não terão respaldo constitucional face a não participação do acusado na sua produção. A regra seria que os elementos informativos constantes no inquérito policial não são aptos a servirem de fundamentos para a formação do provimento jurisdicional, visto que na fase pré-processual o investigado não tem oportunidade para apresentar sua defesa, indicando ou produzindo elementos de prova ou, ainda, contrariando as existentes. A Constituição da República de 1988 proporcionou uma releitura acerca da realização da ampla defesa e do contraditório pelo acusado na fase do inquérito policial, não possibilitando tais garantias apenas na ação penal. A natureza inquisitorial do Código de Processo Penal demonstra que a fase pré-processual, embora administrativa, é tão determinante para construção do provimento final, quanto é para a instauração e elucidação da ação penal. Não apenas os grandes estudiosos e doutrinadores como até Júlio Fabbrini Mirabete perfilham deste entendimento: “O inquérito policial tem valor informativo para a instauração da competente ação penal. Entretanto, nele se realizam certas provas periciais, que, embora sem a participação do indiciado, contém em sim maior dose de veracidade, visto que nelas preponderam fatores de ordem técnica que, além de mais difíceis de serem deturpados, oferecem campos para uma apreciação objetiva e segura de suas conclusões. Nessas circunstâncias têm elas favor idêntico aos das provas colhidas em juízo. O conteúdo do Inquérito, tendo por finalidade fornecer ao Ministério Público os elementos necessários para a propositura da ação penal, não poderá deixar de influir no espírito do juiz na formação de seu livre convencimento para o julgamento da causa, mesmo porque integra os autos do processo, podendo o juiz apoiar-se em elementos coligidos na fase extrajudicial”. (MIRABETE, 1991, p. 77) Levando-se em conta o princípio do “livre convencimento motivado”[2] do atual sistema processual, os elementos e circunstâncias coletados pela autoridade policial durante o inquérito, sempre podem ser utilizados para subsidiar a fundamentação da decisão. Lado outro, considerando a persecução penal de maneira una e indivisível, as informações contidas no procedimento extrajudicial estariam afrontando diretamente o processo constitucional na medida em que mitiga a garantia da ampla defesa e do contraditório, uma vez que não proporciona a participação do acusado na produção de prova, contribuindo para os atos investigatórios. Consoante aduz o professor José Frederico Marques, “o inquérito, como instrumento da denúncia, nunca é nulo, não estando sujeito, assim, às sanções que o Código prevê para os atos processuais” (MARQUES, 2003, p. 159). É a demonstração da importâncias dos elementos constantes no inquérito para realização do procedimento penal. Neste mesmo sentido é o entendimento de Rogério Tucci: “A contraditoriedade da investigação criminal consiste num direito fundamental do imputado, direito esse que, por ser um elemento decisivo do processo penal, não pode ser transformado, em nenhuma hipótese, em mero requisito formal”. (TUCCI, 2004, p. 359) É certo, portanto, que o inquérito policial, como instrumento de coleta de informações, recolhe dados sobre os fatos e suas circunstâncias, na busca de elementos de prova que podem influenciar no “livre convencimento” do magistrado quanto à decisão a ser proferida. Assim, conforme demonstrado, as circunstâncias indicadas no procedimento administrativo constituem elementos válidos para a formação do provimento final, sem que tenha garantido a simétrica paridade das partes envolvidas, o que é uma afronta a teoria do processo constitucional. 4 A PARTICIPAÇÃO DO ACUSADO NO INQUÉRITO POLICIAL NO DIREITO PROCESSUAL ITALIANO Analisando os sistemas processuais no direito comprado, constatamos que o Código de Processo Penal Italiano possibilita ao acusado, através do advogado, a realização de prova na fase extrajudicial, “conduzindo as investigações para localizar e identificar elementos de prova”[3], através de entrevistas, pessoal e informal, de potenciais testemunhas; coleta de declarações escrita de pessoas, com a cominação de crime de falso testemunho; requerer laudos periciais, ou produzi-los através de assistentes técnicos; vistoriar coisas ou inspecionar lugares públicos ou privados; solicitar documentos em poder da Administração Pública, dentre outros. Esta prerrogativa é um demonstrativo do exercício ao direito do acusado em participar de todos os atos do processo penal, inclusive das investigações, já realizados em ordenamentos jurídicos de outros países. Sobre estes poderes de investigação constantes nos dispositivos legais do processo penal italiano, o estudioso Édison Baldan indaga: “A vantagem perceptível dessa atividade é que permite à defesa preparar-se adequadamente e sustentar a própria tese, seja porque contribui a garantir o direito à prova em qualquer estado e grau do procedimento, seja, enfim, porque volta-se a realizar cabalmente o princípio da paridade que, como dito, é a base do devido processo legal”. (BALDAN, 2007, p. 271-272) De fato, o modelo italiano se aproxima, em tese, do processo constitucionalizado brasileiro sob a perspectiva desenvolvida por Aroldo Plínio Gonçalves, através da releitura do conceito de processo e procedimento de Elio Fazzalari: “O contraditório não é apenas a participação dos sujeitos no processo. Sujeitos do processo são o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público, quando a lei exige, e as partes (autor, réu e interveniente). O contraditório é a garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles que são os interessados, ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento e a medida jurisdicional que ele vier a impor”. (GONÇALVES, 2001, p. 120) O ordenamento jurídico pátrio, também, proporciona uma interpretação satisfativa acerca da possibilidade do acusado participar da investigação, não só produzindo provas, como também exercendo a ampla defesa e o contraditório. Conjugando o art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição da Republica, e art. 14 do Código Processual Penal, respaldam a fundamentação legal para garantir àqueles investigados no inquérito policial, o pleno exercício dos direitos fundamentais constitucionais, participando ativamente na produção de provas durante o inquérito policial. É nesse sentido que sustenta o relator do acórdão, Ministro Gilmar Mendes, no pedido de Habeas Corpus nº 92.599, julgado pelo Supremo Tribunal Federal : “No âmbito dos inquéritos policiais e originários, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem caminhado no sentido de garantir, a um só tempo, a incolumidade do direito constitucional de defesa do investigado ou indiciado e a regular apuração de fatos e documentos que sejam, motivadamente, imprescindíveis para o desenvolvimento das ações persecutórias do Estado (HC 90.232/AM, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª T., DJ 2.3.2007; HC 82.354/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, HC/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª T., DJ 24.9.2004). Nesse particular, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem assegurado a amplitude do direito de defesa em sede de inquéritos policiais e originários, em especial no que concerne ao exercício do contraditório e ao acesso de dados e documentos já produzidos no âmbito das investigações criminais”. (BRASIL, STF, 2008) Acompanhado pelos Ministros Joaquim Barbosa e Eros Grau, o relator conclui o voto: “Assim, verifica-se que tais julgados respaldam a tendência interpretativa de garantir aos investigados e indiciados a máxima efetividade constitucional no que concerne à proteção dos direitos fundamentais da ampla defesa (CF, art. 5º, LIV e LV). Na espécie, a defesa não reivindica a produção de prova extemporânea ou providência que implique tumulto processual, mas apenas a juntada de elementos que entende pertinentes à elucidação dos fatos e ao convencimento do Ministério Público. Destarte, nos termos da jurisprudência colacionada, entendo não haver razão jurídica plausível para que a Corte Especial do STJ indefira pedido de juntada do laudo pericial já produzido pela defesa do ora paciente.” (BRASIL, STF, 2008) Observa-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal reconhece não só a possibilidade da produção de provas no inquérito policial, como demonstra ser elemento determinante para “elucidação dos fatos e ao convencimento do Ministério Público” (BRASIL, STF, 2008). Trata-se não somente de uma garantia ao acusado, mas uma segurança ao julgador que poderá analisar um procedimento totalmente pautado nas garantias e direitos fundamentais constitucionais. 5 DEVIDO PROCESSO LEGAL E O DEVIDO PROCESSO PENAL A constitucionalização do processo tem importância voltada para garantia do exercício dos direitos fundamentais. Nessa vertente, é de grande importância a teoria desenvolvida pelos estudiosos italianos Andolina e Vignera (1990) que apresentaram a atividade jurisdicional através de um modelo constitucional de processo, assegurando uma participação democrática das partes afetadas pelo provimento jurisdicional. O direito processual brasileiro contemporâneo não tem interpretação distinta. A Constituição da República de 1988 demonstra a aplicabilidade destes posicionamentos, principalmente no que tange aos direitos e garantias fundamentais, os quais já são observados durante o procedimento judicial. Os princípios do contraditório e da ampla defesa devem ser compreendidos como garantia de participação, em simétrica paridade, daqueles que serão afetados pelo provimento final. Assim é o ensinamento de Aroldo Plínio Gonlçaves: “O contraditório não é o “dizer” e o “contradizer” sobre matéria controvertida, não é a discussão que se trava no processo sobre a relação de direito material, não é a polêmica que se desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo do ato final. Essa será a sua matéria, o seu conteúdo possível. O contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei. É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica paridade de participação no processo.” (GONÇALVES, 2001, p. 127). A base do devido processo legal está assegurado no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Republicana, assim, é uma garantia fundamental de qualquer cidadão e diferentemente não deve ser o processo penal, que deve abranger as mesmas garantias dos outros procedimentos. O processo penal não pode ser compreendido sob o enfoque exclusivo das garantias previstas no Código de Processo Penal, mas também em face das regras constitucionais vigentes, como as garantias da igualdade, do contraditório, da publicidade e o direito à prova. Retomo, por oportuno, que referir ao devido processo abrange-se toda persecução criminal, estando nela incluída o inquérito policial, que embora seja um procedimento administrativo, não estaria isento da realização do contraditório e da ampla defesa. É importante compreender que a realização da prova é uma garantia, que não deve se constituir em ônus para o acusado, uma vez que estes elementos trazidos pelas partes no inquérito policial também construirão o provimento jurisdicional. 6 CONCLUSÃO Conforme se depreende do presente trabalho, é possível a adequação do inquérito policial a um modelo constitucional de processo, com o objetivo de garantir os direitos fundamentais daqueles que serão afetados pelo provimento jurisdicional. Os benefícios atingidos com a possibilidade da produção de provas pelo acusado durante a fase investigatória, bem como a garantia do exercício do contraditório e da ampla defesa durante todo o procedimento penal são patentes. Demonstrado que o ordenamento jurídico pátrio possibilita ao acusado a produção de provas que servirão tanto para evitar uma desnecessária Ação Penal, como também, servirá de elemento para construção da decisão final. Sob a ótica de um Estado Democrático de Direito, esta seria a interpretação constitucional adequada do processo. Tanto é verdade que o Supremo Tribunal Federal vem direcionando seus julgados de acordo com os direitos e garantias constitucionais fundamentais, proporcionando aos acusados os mesmos direitos existentes aos acusadores. Tal posicionamento não visa, apenas, desconstituir o modelo tradicional do inquérito policial e procedimentos investigatórios, como possibilita a adequação destes ao processo constitucionalizado, proporcionando ao acusado a garantia do exercício do contraditório, da ampla defesa, inclusive, proporcionando a produção de provas durante a fase pré-processual. O provimento jurisdicional não se baseia exclusivamente nas provas colhidas durante a fase judicial, por tal razão é importante a realização do contraditório e da ampla defesa também durante o inquérito policial. Desta forma, o que se pretende não é conceder ao acusado poderes de investigação semelhantes aos da autoridade policial, tampouco proporcionar meios de tumultuar o processo, mas sim possibilitar a participação do acusado na produção das provas durante todo processo penal, como forma de garantir o exercício dos direitos fundamentais e, consequentemente, de um processo constitucional.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-90/a-producao-de-prova-pelo-acusado-na-fase-pre-processual-uma-garantia-para-realizacao-de-um-processo-constitucional/
O habeas corpus processual: instrumento para combater a coação ilegal
Este artigo se propõe a abordar o instituto jurídico do habeas corpus como instrumento hábil a tutelar o direito a liberdade de locomoção do indivíduo. O Código de Processo Penal dispõe da possibilidade de impetrar habeas corpus em caso de coação ilegal, quando não houver justa causa para o inquérito policial ou ação penal. Assim, a doutrina e a jurisprudência possibilitam discussão acerca do writ processual para o trancamento do procedimento para afastar o abuso de poder ou ilegalidade da coação. O constrangimento acarretado pela existência de procedimento criminal judicial, ou extrajudicial, é patente, e a falta de justa causa se apresenta, sobretudo, na acusação livre de fundamento mínimo que a sustente. Neste norte, a autoridade competente não pode desvincular-se de examinar elementos mínimos de prova que fundamentam a acusação, sob pena de pactuar com o constrangimento ilegal por ele exercido. Portanto, o habeas corpus processual é o medida contra procedimento manifestamente injusto, desprovido de justa causa, da mesma forma que o habeas corpus constitucional é o remédio contra as coações ilegais à liberdade corporal e contra os constrangimentos ao direito de locomoção decorrentes de abuso de poder ou ilegalidade. Aqui, analisaremos as conseqüências jurídicas deste constrangimento ilegal
Direito Processual Penal
1 – INTRODUÇÃO: A partir do advento da Constituição Federal de 1988, o fortalecimento do Estado Democrático se mostrou evidente e com isso reforçaram-se os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Dentre esses direitos fundamentais, se encontra o direito à liberdade, ou seja, o de ir e vir, que são inerentes ao ser humano.Para resguardar os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, a Carta Magna disponibilizou ao cidadão diversos remédios constitucionais, tais como o Mandado de Segurança, Mandado de Injunção, Habeas Corpus, Habeas Data e a Ação Popular. O habeas corpus, previsto no artigo 5º, inciso LXVIII, é o recurso que visa garantir o efetivo exercício da liberdade de locomoção do cidadão brasileiro. Essa proteção à liberdade individual, através do habeas corpus, foi uma das maiores conquistas do Direito, resultando na restrição do poder do Estado frente ao indivíduo. A propósito, a evolução do relacionamento indivíduo-Estado, houve necessidade de normas que garantissem os direitos fundamentais do ser humano contra o forte poder estatal intervencionista. Para tanto, tornou-se necessário que os países inserissem em suas Constituições regras de cunho garantista, que impões ao Estado e à própria sociedade o respeito aos direitos individuais, tendo o Brasil seguindo este viés a fim de garantir os direitos individuais do cidadão. O Habeas Corpus, denominado pela doutrina de writ, possui tanta importância,  que o Código de Processo Penal também o disciplina, especificando, inclusive, suas hipóteses de cabimento no art. 648 e seguintes. São nestes dispositivos que se verificam as possibilidades de impetrar habeas corpus quando for adotada alguma coação ilegal, mesmo que iminente, a liberdade do indivíduo. Uma das possibilidades de coação ilegal à liberdade individual ocorre quando não há justa causa para a existência de um inquérito policial ou de uma ação penal. Nesse norte, iniciou-se uma discussão doutrinária acerca do conceito de justa causa para o processo penal, bem como da possibilidade de utilização do writ para evitar esse tipo de coação ilegal. Sabe-se que o habeas corpus é um instrumento popular, que protege qualquer do povo contra o constrangimento à liberdade física sem justa causa, capaz, inclusive, de trancar o procedimento que não respeite os pressupostos e requisitos mínimos para sua legalidade, impondo àquele investigado, ou acusado, uma coação visivelmente ilegal. Assim, há de se demonstrar que a ausência de justa causa é determinante para justificar a possibilidade de impetrar habeas corpus processual com propósito de trancar o inquérito policial ou ação penal e, assim, cessar o constrangimento ilegal efetivo ou sua ameaça. 2 – CONCEITO DE HABEAS CORPUS: A expressão habeas corpus tem sua origem no latim e indica a essência do instituto, que, em seu sentido literal significa “tome o corpo” ou “exiba o corpo” ou “apresente a pessoa”. Isto é, tome a pessoa presa e a apresente ao juiz, para que seja procedido o seu julgamento. (MIRABETE, 2002. p. 709). Ferreira (1988, p.06) nos informa: “Ter corpo, ou tomar o corpo, é uma metáfora, que significa a liberdade de ir e vir, o poder de locomoção, o uso dessa liberdade de locomoção livremente, salvo restrições legais a todos impostas indistintamente” Posteriormente a expressão passou a ser entendida como a “ordem de libertação”, uma vez que tal instituto jurídico é destinado a tutelar a liberdade física do indivíduo, a liberdade de ir, ficar e vir. (MIRABETE, 2002. p. 709). 3 – A EVOLUÇÃO DO INSTITUTO DO HABEAS CORPUS: O habeas corpus teve origem no direito romano, onde todo cidadão podia reclamar a exibição do homem livre detido ilegalmente por meio de uma ação privilegiada, conhecida por interdictum de libero homine exhibendo. Parte da doutrina, porém, aponta sua origem no Capítulo XXIX da Magna Carta, outorgada pelo Rei João Sem Terra em junho de 1215. Nesta, o art. 48 previa que: “Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdade, senão em virtude de julgamento por seus pares, de acordo com as leis do país”. Está previsto no direito brasileiro desde 1821, mas, de forma expressa apenas com a promulgação do Código de Processo Criminal em 1832, cujo art. 340 dispunha: “Todo cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade tem direito de pedir uma ordem de habeas corpus em seu favor”. Travava-se do chamado Habeas Corpus liberatório. No decorrer do ano de 1871 o instituto foi estendido às hipóteses em que o sujeito se encontrava apenas ameaçado na sua liberdade de ir e vir. Ou seja, surgia então no Brasil, o habeas corpus preventivo, não conhecido nem mesmo na Europa. Tourinho (2004) nos informa que a lei 2.033 de 20 de setembro de 1871 concedeu o caráter preventivo ao instituto, estendendo-o também para os estrangeiros. Mas, foi somente em 1891 que “a Constituição Republicana elevou, pela primeira vez, o Habeas Corpus, ao status de uma garantia constitucional, estabelecendo no parágrafo segundo de seu artigo 72, a extensão do habeas corpus como amparo dos direitos pessoais e não só à liberdade física”. (FERREIRA, 1988. p. 31) Segundo Tourinho (2004), tal artigo, exatamente por não falar em liberdade de locomoção, era passível de interpretação no sentido de ser cabível o remédio sempre que a liberdade física fosse condição necessária para que o paciente pudesse exercer algum direito. Em 1926, ano em que ocorreu uma reforma constitucional, foi dada nova redação ao artigo 72 da Carta Magna, que passou a ter o seguinte texto: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofre violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal na sua liberdade de locomoção”. Com tal modificação, os demais direitos subjetivos, que antes podiam ser salvaguardados por meio do referido instituto, não puderam mais ser objeto de tal remédio. A Constituição de 1934, por sua vez, suprimiu a expressão “locomoção”. À mesma época, surgiu o Mandado de Segurança, que visava amparar outros direitos. Posteriormente, a Carta de 1946 restringiu o direito à proteção da liberdade ambulatória, e a de 1967, em seu artigo 150, parágrafo 20, manteve a mesma redação. Atualmente, o instituto do habeas corpus está presente em quase todas as legislações do mundo, e encontra-se expresso na Carta Magna de 1988, em seu art. 5º, LXVIII, nos termos seguintes: “Art. 5º. […] LXVIII – conceder-se-á “habeas-corpus” sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Trata-se de um remédio constitucional disponível ao cidadão para proteger o direito a liberdade de locomoção atingido, ou ameaçado, por algum ato ilegal ou abusivo de autoridade competente. Sua acessibilidade é universal, visto que qualquer pessoa pode impetrá-lo, em favor próprio ou de outrem, com ou sem a interveniência de um advogado e, ainda, pelo Ministério Público ou pelo órgão jurisdicional, que pode concedê-lo ex officio. A abrangência do writ[1] decorre de uma notável evolução histórica visando uma melhor proteção à liberdade contra violência ou coação sofrida ou iminente. Importa dizer que o moderno Direito Penal e Processual Penal apregoam a intervenção Estatal mínima, ficando a restrição a liberdade, por ser medida extrema a hora e a dignidade do indivíduo, deve ser adotada como ultima ratio. 4 – A NATUREZA JURÍDICA DO HABEAS CORPUS: Como já dito, o Habeas Corpus está contemplado na Constituição Federal no capítulo destinado aos direitos e garantias fundamentais prevendo que o indivíduo tem o direito constitucional à liberdade e o habeas corpus um dos meios de se garantir esse direito, daí a razão dele estar inserido no referido capítulo da Lei Maior Portanto, o habeas corpus é uma garantia constitucional que se obtém por meio de processo e é destinada a tutelar, de maneira eficaz e imediata, a liberdade de locomoção. É medida que tutela o direito de permanecer, de ir e vir, de não ser preso (a não ser no caso de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, consoante determina o artigo 5º, inciso LXI da Constituição Federal); o direito de não ser preso por dívida, salvo nos casos do depositário infiel e do alimentante inadimplente (como previsto no inciso LXVII do mesmo artigo); o direito de não ser extraditado nas hipóteses previstas pela Carta Magna; o direito de freqüentar todo e qualquer lugar, ressalvadas as restrições impostas quando da concessão do sursis ou suspensão condicional do processo; o direito de viajar, ressalvadas as restrições impostas pelos artigos 328 367 do Código de Processo Penal. Diante do exposto, pode-se afirmar que o Habeas Corpus tem natureza jurídica de ação popular penal constitucional, que pode ser ajuizado ou impetrado por qualquer um do povo, a fim de provocar o Judiciário para solucionar um conflito entre a pessoa que tem sua liberdade de locomoção ameaçada ou violada e o agente ou órgão constrangedor dessa liberdade de locomoção. A situação configura um ilícito penal, daí o caráter penal em sua natureza. 5 – CARACTERÍSTICAS DO PROCEDIMENTO DO HABEAS CORPUS: O HC pode ser impetrado quando alguém sofrer alguma violência ou coação a sua liberdade de locomoção ou, simplesmente, se estiver ameaçado de sofrê-la. Desta forma, dois tipos de writ são cabíveis para o impetrante, o habeas corpus repressivo ou o preventivo. O habeas corpus repressivo visa por fim a violência ou coação já praticada. Já o preventivo, havendo ameaça iminente ao direito tutelado visa impedir a consumação de um constrangimento ilegal. O procedimento, em razão de sua matéria, deve ser rápido e eficiente, tendo preferência sobre os demais. Para tanto, dispensa formalidades rígidas com finalidade de corrigir a ilegalidade apontada, sendo a competência originária da autoridade judiciária imediatamente superior àquela que determinou a coação. O beneficiado, aquele que estiver sofrendo, ou ameaçado de sofrer, qualquer violência ou coação a liberdade de locomoção, seja por ilegalidade ou abuso de poder pela ordem de habeas corpus é denominado paciente e não necessariamente é o impetrante. O impetrante pode ser o próprio paciente, ou qualquer pessoa capaz, conhecida ou não deste, não sendo necessário sequer representação por instrumento de procuração. Já o impetrado é aquele que, por ilegalidade ou abuso de poder, esteja violentando ou coagindo, até mesmo ameaçando, o direito de liberdade de alguma pessoa (paciente).  Apesar de estar o instituto encartado no Código de Processo Civil como recurso, e, muito embora possa desempenhar tal função, o habeas corpus é na realidade uma ação e como qualquer procedimento do direito processual, o habeas corpus também possui pressupostos a serem cumpridos, quais sejam: a) Legitimidade ad causam – No caso do habeas corpus, dizemos que a legitimidade é extraordinária, uma vez que o texto expresso de lei autoriza alguém que não seja o sujeito da relação jurídica de direito material a demandar. b) Interesse de agir – O Interesse de agir surge diante da resistência oferecida contra a pretensão de outrem, in casu, ao direito de liberdade de ir e vir do indivíduo. E nesse sentido o estudioso Greco Filho afirma que: “o interesse processual decorre de uma relação de necessidade e de adequação (utilidade) porque é inútil a provocação da tutela jurisdicional se ela, em tese, não for apta a produzir a correção da violação do direito argüido no pedido inicial”. (GRECO FILHO, 1997. p. 107) c) Possibilidade jurídica do pedido – Neste a tutela jurisdicional requerida deve estar incluída entre aqueles que a autoridade judiciária pode admitir, não sendo expressamente proibido ou ilícito. Quanto à legitimidade passiva, o texto da lei que prevê o habeas corpus não se refere de forma expressa à “autoridade”, que representaria o Estado. Já no inciso seguinte, ao cuidar do mandado de segurança, estabelece que este seja concedido para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou pelo abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público. Portanto, é pacífico que o instituto habeas corpus pode ser impetrado contra ato de particular, caso contrário, teria expressamente vedado tal possibilidade. Além disso, a Constituição Federal prevê como fator de violência ou coação não apenas o abuso de poder, mas também a ilegalidade, podendo esta ser praticada por qualquer um. Quanto ao que se refere às autoridades públicas, normalmente pertencem à Polícia ou ao Judiciário, embora não esteja afastada a hipótese de constrangimento por parte de outros funcionários. Uma vez efetuada prisão ou instaurado inquérito policial por meio de portaria do Delegado de Polícia, será este o apontado como autoridade coatora no habeas corpus. Entretanto, se o inquérito policial foi instaurado por requisição do Juiz de Direito, será ele apontado como a autoridade coatora. O mesmo se aplica quando o Juiz de Direito defere requerimento do Ministério Público com a mesma finalidade, ou quando determina a realização de diligências por ele requerida. O Juiz de Direito também tornar-se-á autoridade coatora quando tem a possibilidade de fazer cessar o constrangimento ilegal com a concessão ex officio do habeas corpus e não o faz. Já o Promotor de Justiça pode ser autoridade coatora quando requisita a instauração de inquérito policial, determinando o indiciamento ou outras diligências constritivas ou, ainda, expedindo requisições ou notificações para o comparecimento. Outro aspecto importante no que se refere ao procedimento do HC é que não há prazo para sua interposição, portanto, não há prescrição, sendo cabível, inclusive, contra decisão transitada em julgado. A sentença que denegue a ordem de habeas corpus não faz coisa julgada, podendo o pedido pode ser renovado, desde que com novos fundamentos. Quanto à competência, a impetração do habeas corpus deve ser apresentada perante o órgão judicial superior àquela de quem parte a coação, conforme determina o parágrafo primeiro do artigo 650 do Código de Processo Penal: “A competência do juiz cessará sempre que a violência ou a coação provier de autoridade judiciária de igual ou superior jurisdição”. No mesmo sentido é a súmula 606 do Superior Tribunal de Justiça: “Não cabe habeas corpus originário para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou do Plenário, proferida em habeas corpus ou no respectivo recurso.” Desse modo, se a coação parte do Delegado de Polícia, a competência para apreciar o habeas corpus será do juiz criminal. Findo o inquérito e remetidos os seus autos ao Juízo, passa o juiz a ser a autoridade coatora, sendo o órgão de segundo grau o competente para apreciar a sua ilegalidade É importante frisar que, dado sua abrangência, o habeas corpus, por ser uma ação, não substitui o recurso adequado para determinada situação, já que suas características não são alteradas, ou seja, não há fungibilidade. Deve-se tê-lo, apenas, como recurso heróico para situações extremas, mas atentando-se, sempre, para o prazo de oposição dos recursos específicos, sob pena de preclusão e perda do direito. 6 – A JUSTA CAUSA PARA PRISÃO, INQUÉRITO POLICIAL E AÇÃO PENAL: A Constituição da República pátria consagrou o direito de locomoção do cidadão brasileiro, impondo ressalvas em detrimento de situações onde este direito poderia ocasionar um prejuízo maior ao Estado, como no caso da prisão, deportação, expulsão, internação em hospital de custódia, dentre outras hipóteses. A prisão é uma das formas de impedir que o indivíduo exerça direito de locomoção, seja durante um procedimento penal ou decorrente de sentença transitada em julgado e no presente trataremos exclusivamente da prisão processual que resulta de flagrante delito ou determinação judicial. Sua natureza cautelar exige a configuração do periculum in mora e do fumus boni iuris com intuito de assegurar e proteger os bens jurídicos envolvidos na relação processual se houver perigo à aplicação da lei penal, à ordem pública ou necessidade para instrução criminal, nos termos do art. 312 do CPP. Observe-se que, nestas hipóteses, a justa causa para imposição da prisão apenas está demonstrada em situação de extrema necessidade, dada a gravidade da medida, caso contrário estará impedindo o exercício do direito de ir e vir do indivíduo ilegalmente. O Código de Processo Penal exige como condição para o recolhimento à prisão a autuação do agente em flagrante delito, hipótese em que é demonstrada a justa causa para que seja imposta a prisão; caso contrário estará impedindo o exercício do direito de locomoção do indivíduo, o que será considerado ilegal. A privação de liberdade por tempo superior ao permitido, quando inexiste causa que a determinou, quando ordenado por autoridade incompetente ou quando não admitidos fianças nos casos que a lei autoriza, a prisão torna-se ilegal, justificando a impetração de habeas corpus constitucional para garantir sua liberdade. O inquérito policial também depende de justa causa para sua existência. Por ser um procedimento administrativo de natureza inquisitória, possui escopo de investigar a existência do fato criminoso e sua autoria, colhendo as provas tendo em vista as circunstâncias fáticas. Não se trata de pré-requisito para assegurar a ação penal, tanto que alguns procedimentos independem da existência do inquérito policial, bem como pode ser substituído por outros meios de informação, desde que suficientes para sustentar a acusação. É instaurado ex officio, por portaria da autoridade policial, pela lavratura do auto de prisão em flagrante, mediante representação da vítima ou requisição do juiz ou Ministério Público e, sendo um procedimento administrativo extrajudicial, não se aplicam os princípios constitucionais do processo, como o contraditório e a ampla defesa, por exemplo. Nos crimes de ação penal pública incondicionada ou havendo requisição do juiz ou Ministério Público, a autoridade policial deve iniciar as investigações qualquer que tenha sido o meio pelo qual a notitia criminis tenha chegado a seu conhecimento. Em se tratando de ação penal pública condicionada ou privada, somente se instaurará o inquérito policial com a representação ou a requerimento da vítima, ou seu representante legal. As investigações durante a fase inquisitória objetiva dar elementos concretos acerca da autoria e materialidade para que o Querelante, ou Ministério Público, possam intentar ação penal com justa causa, sob pena de praticar coação ilegal ao acusado. Findo o procedimento, a autoridade policial elaborará um relatório final sendo os autos remetidos ao conhecimento do Querelante ou Ministério Público para oferecimento da denúncia ou queixa. A denúncia, ou queixa-crime deve atender às condições da ação, com a qualificação do denunciado, ou elementos suficientes sobre sua identidade, a descrição do fato praticado e sua co-relação ao tipo penal imputado, na forma do art. 41 do Estatuto Processual Penal. A ausência de justa causa para o inquérito policial ou para ação penal é causa que prejudica o curso procedimental, configurando uma coação ilegal ao submeter o investigado, ou acusado, a um constrangimento pela existência de um procedimento judicial ou extrajudicial. Neste sentido escreveu Vicente Sabino Júnior: “Não se deve esquecer que a justa causa não se aprecia in concreto, mas in abstrato, por que ela só existe quando se atribua ao paciente procedimento que não constitua crime. Se embora em tese, o fato, que lhe é imputado, caracteriza uma infração penal, não há falta de justa causa, mesmo sendo injusta a imputação”. (SABINO JUNIOR, 1964, pág.341) Havendo o recebimento da denúncia ou da queixa-crime inepta, a coação ilegal estará configurada, podendo-se, portanto, impetrar habeas corpus processual para trancar a ação penal face a ausência de justa causa, com base no art. 648, I do digesto Código de Processo Penal[2]. Por tal razão que, no processo penal, faz parte do interesse de agir a exigência de justa causa com fundamento probatório razoável para sustentar a acusação, salvo contrario será inepta por ausência de condições de ação. Afrânio Jardim, em Direito Processual Penal, pontua que a “justa causa é suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado” (JARDIM, 2001, p. 95). Sustenta o autor que só o ajuizamento da ação penal é suficiente para atingir o estado de dignidade do acusado, de modo a provocar graves repercussões em seu patrimônio moral, partilhado socialmente com a comunidade. Por isso, a peça acusatória deveria vir acompanhada de suporte mínimo de prova, sem os quais a acusação careceria de admissibilidade. No mesmo sentido, o estudioso Guilherme Nucci considera que a justa causa esta relacionada com o interesse de agir, sustentando que a justa causa, em verdade, espelha uma síntese das condições da ação. Inexistindo uma delas, não há justa causa para a ação penal. Assim, considerando a justa causa como elemento do interesse de agir é possível seu trancamento pela falta de justa causa, através de habeas corpus processual. 7 – HABEAS CORPUS POR FALTA DE JUSTA CAUSA: Embora a Constituição da República tenha disposto acerca do habeas corpus como forma de proteção à liberdade de locomoção, o Código de Processo Penal, nos arts. 647 e 648 apresentam um rol com hipóteses do seu cabimento quando verificada coação ilegal. “Art. 647 – Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar. Art. 648 – A coação considerar-se-á ilegal: I – quando não houver justa causa; II – quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei; III – quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo; IV – quando houver cessado o motivo que autorizou a coação; V – quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza; VI – quando o processo for manifestamente nulo; VII – quando extinta a punibilidade.” De acordo com o inciso I do art. 648 supra mencionado, a falta de justa causa, seja para a prisão, inquérito policial ou ação penal, constitui constrangimento ilegal contra a pessoa. Nas lições de Magalhães Noronha (1986, p. 414), “justa causa é o fato cuja ocorrência torna lícita a coação”, fazendo entender que a coação será considerada ilegal quando exercida sem um motivo lícito, sendo o habeas corpus é o recurso cabível para confrontar a ilicitude da coação, não pela probabilidade de constatar a autoria e materialidade do delito, mas por, de forma inequívoca, sequer existir esta possibilidade. A justa causa, como observa Sérgio Demoro Hamilton[3], fundado em Frederico Marques, “funciona como norma genérica ou de encerramento, porquanto toda coação antijurídica que não se enquadre nos demais itens do artigo 648, será subsumível no preceito amplo em que fala em justa causa”. A revogação da prisão preventiva por obra de “habeas corpus” pode prestar a este colorido constitutivo, produzindo o trancamento da ação penal, porventura em curso contra o paciente, desde que o provimento cautelar combatido ressinta da total ausência de seus fundamentos. Vários juristas, também citados por Espínola Filho (200), diziam que a justa causa, não teria definição, em forma absoluta, pelo que afirmam ficar ao critério do Juiz apreciar a injustiça, ou justiça, da razão determinante da coação, afim de considerar legal, ou não, o constrangimento, pode informar-se que falta a justa causa, quando o constrangimento, a violência, não tem um motivo legal.  De acordo com o Professor Galdino Siqueira (1997, p. 251): “justa causa é o motivo legal, e, assim, a prisão é arbitrária si o seu motivo não encontra apoio na lei, como a falta de criminalidade do facto, a falta de prova, não identidade da pessoa[…]”.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-90/o-habeas-corpus-processual-instrumento-para-combater-a-coacao-ilegal/
Ponderação na aplicação das penas alternativas como paradigma emergente do sistema prisional brasileiro
Ao aplicarmos a sistematização da ciência criminal ao caso concreto temos que nos ater à máxima de que o sistema prisional brasileiro não comporta há décadas sua população carcerária, sendo necessário introduzir outras formas de cumprimento de penas que não onerem o Estado e que sejam eficazes na ressocialização e reeducação do apenado.
Direito Processual Penal
1 Introdução Historicamente vimos que a interpretação de um fato descrito como crime, sofreu mudanças até chegar aos nossos dias, pois, sempre aplicou-se a pena como ela está estampada no texto legal, pouco se explorando e buscando interpretações outras senão as tidas pelos juristas, doutrinadores e estudiosos do direito. A evolução do indivíduo na sociedade e as diversas formas de convívio ao longo dos tempos gerou inúmeras situações que não podem e nem devem serem desconsideradas, senão analisadas de forma concreta, pois, o que vimos foi o aumento acentuado da criminalidade, o que não podemos descartar a hipótese da necessidade de se empregar quanto à pessoa do criminoso, métodos de ressocialização, buscando contornar, quando não resolver, a inclinação criminosa da qual está tomado, pois há a perspectiva de que o mesmo venha a retornar a convívio social, sendo que a não aplicação de qualquer medida neste sentido a sociedade irá se deparar com um indívíduo cada vez mais problemático dada a progressão em sua periculosidade dentro do cárcere. A presença e criação cada vez mais acentuada de leis no âmbito penal não descaracteriza o aumento da criminalidade, ao contrário, deixa a população a mercê de um conjunto de leis que desconhecem a sua essência e redação, muitas vezes obscuras e contraditórias, criadas pelos nossos Legisladores como resposta a onda de ataques e criminalidade, como se fosse resolver o problema criminal atual. Dotti (1988, p 56), quando da análise das reformas penais brasileiras, dispõe que: “A longa hibernação da reforma integral do Código de 40 não impediu a proliferação de normas incriminadoras oriundas de legislação extravagante, com notáveis repercussões na estrutura lógica do sistema de maneira a atormentar ainda mais o jurista em sua missão de exegese e elaboração da Parte Especial. Entre as anomalias do fenômeno, deve-se pôr em destaque a má formação do direito, consistente, muitas vezes, em textos elaborados e sancionados exclusivamente pelo Poder Executivo. Em outras situações, a intervenção do Poder Legislativo serviu apenas como um referendo da vontade dos governantes com abstração real da consciência pública que deveria informar todas as leis criminais”. Com a reforma do Código Penal de 1984, com a Lei 7.209, criou-se as penas restritivas de direito como uma válvula de escape e um avanço nas modalidades de penas, sempre no intuito de implementação no ordenamento jurídico penal de novas formas de ressocialização e reeducação, nos crimes em que a pena máxima nãom excedesse a um ano, no entanto, devido ao seu rápido ingresso, a inovação não colheu os frutos esperados, o que definitivamente fora superado em 1995 com a Lei 9.099, dando a oportunidade das partes se comporem, a possibilidade da transação penal entre o indivíduo e o representante do Ministério Público, bem como a suspensão do processo. Certamente que o legislador quando da elaboração da Lei em comento, qual seja a Lei 9.099/95, percebeu a necessidade de tratar a matéria calcada não só em toda a fundamentação criada nos princípios que norteam o direito penal e processual penal, e o direito em geral, da aplicabilidade das sanções e penalidades tida nas regras, mas também tratar a matéria aos auspícios da ponderação tanto no texto legal como na aplicabilidade do texto legal e toda sua aistematização ao caso concreto dada a análise de cada vez mais buscar nas novas formas e modalidades de penas a adequação social e gradativa tanto do homem como da sociedade. E por fim disciplinando a matéria a Lei 9.714/98 veio para ampliar as hipóteses e perspectivas de substituição das penas privativas de liberdade, dispondo sobre situações não atingidas pela Lei 9.099/95, que gradativamente foram sendo intimamente relacionadas, o que deu guarida e ganhou as penas alternativas grande impulso para tentativa de mudança no panorama penal em nosso ordenamento jurídico. 2 Princípios e Regras Humberto Àvila em sua obra Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos (2005), pretende manter a distinção entre os princípios e as regras, mas os estrutura sob fundamentos diversos das doutrinas já existentes. Para ele não há separação entre interpretação e ponderação, para regras e princípios respectivamente, pois, é possível também a ponderação das regras, ou seja, para aplicação da regra fundada em princípios é necessário a ponderação de outros fatores além da verificação da ocorrência dos fatos tipificados. É proposto por Àvila ainda um método de explicação das espécies normativas, inserindo a ponderação no processo de aplicação, incluindo critérios materiais de Justiça mediante o uso concreto dos postulados normativos, razoabilidade e proporcionalidade e que a aplicação da ponderação no processo de aplicação das espécies normativas ao caso concreto, conforme o autor depende de conexões axiológicas que não estão prontas antes do processo de interpretação. Os princípios possuem várias conceituações dispostas nos mais diversos entendimentos dos autores, seja como caráter de fundamento para a construção da norma, não determinando consequências normativas, ao contrário das regras, segundo Alexy (JUDICE, 2011); seja estabelecendo um estado de coisas para cuja realização é necessária a adoção de determinados comportamentos. Já as regras estebelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada, tendo consequências normativas de seu não cumprimento. Ávila (2005) elenca vários autores que definem as espécies normativas com o objetivo de descrever os fundamentos mais importantes sobre o tema e analisar os critérios de distinção adotados, de forma objetiva e crítica. Segundo o autor Josef Esser define que princípios são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado. A diferença entre os princípios e as regras seria uma distinção qualitativa e o critério distintivo dos princípios em relação às regras seria, portanto, a função de fundamento normativo para a tomada de decisão. Karl Larenz define os princípios como normas de  grande relevância para o ordenamento jurídico, na medida em que estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento. Para Larenz os princípios seriam pensamentos diretivos de uma regulação jurídica existente ou possível, mas que ainda não são regras suscetíveis de aplicação na medida que lhes falta o caráter formal de preposições jurídicas, isto é, a conexão entre uma hipótese de incidência e uma consequência jurídica (ÁVILA, 2005). Duas características afastariam os princípios das regras segundo Canaris: O conteúdo axiológico: os princípios, ao contrário das regras, possuiriam um conteúdo axiológico explícito e careceriam, por isso, de regras para sua concretização; Há o modo de interação com outras normas: os princípios, ao contrário das regras, receberiam seu conteúdo de sentido somente por meio de um processo dialético de complementação e limitação. Para Dworkin (ÁVILA, 2005) as regras são aplicadas no modo tudo ou nada (all-or-nothing), no sentido de que, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra válida e a consequência normativa deve ser aceita, ou ela não é considerada válida. No caso de colisão entre regras, uma delas deve ser considerada inválida. Os princípios, ao contrário, não determinam absolutamente a decisão, mas somente contém fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios. Daí a afirmação de que os princípios ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso (dimension of weight), demonstrável na hipótese de colisão entre os princípios, caso em que o princípio com peso relativo maior se sobrepõe ao outro sem que este perca sua validade. Para Alexy os princípios jurídicos consistem apenas em uma espécie de normas jurídicas, por meio da qual são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas. No caso de colisão entre princípios a solução não se resolve com a determinação imediata da prevalência de um princípio sobre o outro, mas é estabelecida em função da ponderação entre os princípios colidentes, em função da qual um deles, em determinadas circunstâncias concretas, recebe a prevalência. Os princípios, portanto, possuem apenas uma dimensão de peso e não determinam as consequências normativas, de forma direta, ao contrário das regras. Segundo Alexy a distinção entre princípios e regras não pode ser baseada no modo tudo ou nada de aplicação proposto por Dworkin, mas deve se resumir, sobretudo, a dois fatores: Diferença quanto a colisão: na medida em que os princípios colidentes apenas tem sua realização normativa limitada reciprocamente, ao contrário das regras, cuja colisão é solucionada com a declaração de invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceção que exclua a antinomia; Diferença quanto à obrigação que instituem: já que as regras instituem obrigações absolutas, não superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios instituem obrigações prima facie, na medida em que podem ser superadas ou derrogadas em função dos outros princípios colidentes (JUDICE, 2011). O Direito Penal Pátrio estabelece na dogmática jurídica consubstanciada no direito positivo vigente e com aplicação no Código Penal Brasileiro as obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada por aquele que incidir naquela hipótese de ocorrência tida na regra. Ao tratarmos das penas alternativas em especial da prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, iremos nos reportar ao Código Penal Brasileiro em seu artigo 46 com redação determinada pela Lei nº 9.714/98, ao qual prevê o tipo legal desta espécie de pena restritiva de direitos. A regra do artigo 46 do Código Penal é aplicável às condenações superiores a 06 meses de privação de liberdade, atendidos os requisitos de substituição à pena privativa de liberdade disposto no artigo 44 do mesmo Instituto Penal. 3 Princípios da razoabilidade e proporcionalidade Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade está sendo aplicado à tona em nosso ordenamento jurídico em todos os julgados e pareceres, tendo na doutrina o fundamento para a caracterização da legalidade de aplicação da lei ao caso concreto, fazendo com que as regras sejam calcadas no bom senso em sua aplicação, fundada nos princípios que norteiam e traduzem a verdadeira e exata aplicação do texto legal. Para a devida fundamentação do princípio da razoabilidade, há que se evidenciar o disposto no artigo 5º, Inciso LIV da Constituição Federal, que reza que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo‑se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:  ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Certo que este inciso o legislador está preservando o devido processo legal para não afrontar com a arbitrariedade tida na aplicação do direito, rogando pela razoabilidade tanto nas decisões como na aplicação da lei ao caso concreto com o devido processo penal, dando a oportunidade do indivíduo valer-se da tutela jusrisdicional na busca de ver seu direito reconhecido e devidamente julgado pela autoridade competente. Há que se considerar que o princípio da razoabilidade não tem previsão legal na Constituição Federal de 1988, no entanto, conforme acima disposto ele encontra-se implícito em nosso ordenamento jurídico em alguns dispositivos, como o próprio inciso LIV que trata do devido processo legal, bem como no inciso XXXIX, que reza que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Àvila (1999) dispõe que o princípio da proporcionalidade vem ganhando guarida no contexto constitucional, no que refere às mais diversas decisões, além de estar presente, impera como a força que está impulsionando a eficácia e aplicação da lei, nos exatos limites do bom senso limitador da arbitrariedade. Historicamente o princípio da proporcionalidade, verificando-se a partir do surgimento do Estado de Direito burguês na Europa, tem ligação com a evolução dos direitos e garantias individuais da pessoa humana. Barros (1996, p. 34), dispondo sobre a origem do princípio da proporcionalidade, leciona que: “Sua origem remonta aos séculos XII e XVIII, quando na Inglaterra surgiram as teorias jusnaturalistas propugnando ter o homem direitos imanentes a sua natureza e anteriores ao aparecimento do Estado, e, por conseguinte, conclamando ter  o soberano o dever de respeitá-los. Pode-se afirmar que é durante a passagem do Estado Absolutista – em que o governante tem poderes ilimitados – para o Estado de Direito, que pela primeira vez emprega-se o princípio da proporcionalidade, visando a limitar o poder de atuação do monarca face aos súditos”. Dentre vários julgados de nossos Tribunais sobre a matéria Àvila cita alguns do STF que decidiu que não se pode por pretensão de terceiro, constranger o pai presumido ao fornecimento de sangue para a pesquisa de DNA, já que a luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, se impõe evitar a afronta à dignidade pessoal que, nas circunstâncias, a sua participação na perícia substantivaria; ao julgar se o fato de a isenção de imposto da competência da União ser parcial implicaria o afastamento das regras pertinentes constantes da constituição anterior, decidiu que conflita com o Texto Maior, com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade nele consagrados, entender-se pelo afastamento da extensão do benefício ao tributo estadual pelo fato de a isenção não ser total; da decisão que declarou inconstitucional a criação de taxa judiciária, de percentual fixo, por considerar que, em alguns casos, seria tão alta que impossibilitaria o exercício de um direito fundamental – obtenção de prestação jurisdicional, além de não ser razoavelmente equivalente ao custo real do serviço. Dentro destes julgados acima dispostos por Àvila (1999) o mesmo tira duas conclusões. Em primeiro lugar demonstra que a exigência de proporcionalidade vem sendo aceita como um dever jurídico-positivo, o que, por sí só, revela a importância de sua explicação e descrição. Em segunda lugar revela que a utilização do dever de proporcionalidade nem sempre possui o mesmo significado, não apenas porque ele é tratado como sinônimo da exigência de razoabilidade, com a qual – como será demonstrado –  não se identifica, mas por que ele ora significa a exigência de racionalidade na decisão judicial, ora a limitação à violação de um direito fundamental, ora a limitação da pena à circunstância agravante ou necessidade de observância das prescrições legais, ora proibição de excesso da lei relativamente ao seu fim e ora é sinônimo de equivalência entre custo do serviço e a relativa taxa.  A sua aplicação como será demosntrado, é muitas vezes correta. Mas mesmo nesses casos, a fundamentação do dito princípio da proporcionalidade não apresenta razões intersubjetivamente controláveis, na medida em que não estabelece de delimitação da realçaõ meio-fim – absolutamente essencial à aplicação da proporcionalidade – , bem como deixa obscuro o seu fundamento de validade. Enfim, a fundamentação das decisões em vez de ser clara e congruente, termina sendo ambígua. No âmbito da Constituição Federal de 1988, o princípio da proporcionalidade é parte integrante juntamente com os demais princípios que integram e fundamentam as regras constitucionais e infra constitucionais, devendo direcionar o magistrado na interpretação e o legislador na criação de normas constitucionais, papel este intransferível e incisivo em “reduzir as desigualdades sociais e regionais”, tendo como um dos principais objetivos do Estado brasileiro, com fulcro no artigo 3o., III, da Constituição Federal de 1988, reza que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. No tocante aos direitos e garantias individuais, e em sede no direito penal o princípio da proporcionalidade guarda, respectivamente, no artigo 5º, incisos V e XLVI caput, o direito de resposta proporcional ao agravo, bem como a garantia da individualização das penas proporcionais ao delito cometido. Já com relação à organização do Estado, âmbito administrativo e erário público, a proporcionalidade encontra-se presente respectivamente nos artigos 36, § 3º, artigo 37, IX e XXI – artigo 40, III, c e d, e artigo 71, VIII, dispondo no caso da organização do Estado nos requisitos necessários na intervenção, no âmbito adminsitrativo prevendo a contratação temporária de funcionários, sempre obedecendo ao critério da necessidade e quanto ao erário público em caso de irregularidade nas contas, aplicando multa proporcional ao dano causado. Ainda quando da atuação do Ministério Público; do Sistema Tributário e da Ordem Econômica, temos a previsão legal respectiva nos artigos 129, inciso II, artigo 150, IV e caput do artigo 170, que tratam respectivamente na atuação do Ministério Público na tomada de medidas necessárias e proporcionais e destinadas a garantir o respeito dos direitos constitucionais pelos Poderes Públicos e serviços de relevância pública; no sistema Tributário proibindo a tributação com efeito de confisco (artigo 150, IV), pois, a carga tributária não pode ser onerosa a ponto de ocasionar ao particular sua perda e na Ordem Econômica nos termos “valorização” e “justiça” imbutida a noção de proporcionalidade. 4 Ponderação na aplicação das penas alternativas – prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas A aplicação da ponderação à prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, além dos princípios e das regras, a fim de que os postulados normativos, a razoabilidade e a proporcionalidade dê ênfase ao processo de interpretação do tipo penal a ser devidamente aplicado, é disposto quando da substituição da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos no artigo 44, Inciso III, do Código Penal, conforme acima disposto, reza que as penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando aplicada pena privativa de liberdade inferior a um ano ou se o crime for culposo, o réu não for reincidente, e a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. Analisados os elementos objetivos e os subjetivos presentes no inciso III em consonância com o artigo 59 que trata das circunstâncias judiciais, a ponderação será incisiva ao ser analisada. Na aplicação da pena restritiva a ser aplicada pelo Juiz, que em sede da prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é disposta no artigo 46, parágrafo 3º do Código Penal dispõe que a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a seis meses de privação da liberdade. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado. A prestação de serviço à comunidade dar‑se‑á em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais. As tarefas a que se refere o § 1o serão atribuídas conforme as aptidões do condenado, devendo ser cumpridas à razão de uma hora de tarefa por dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho. Assim, os postulados situam-se num plano distinto daquele das normas, mas não são nem regras nem princípios, são metanormas, pois estruturam a aplicação das normas e sua violação consistente na não interpretação de acordo com sua estruturação. Àvila (2005, p.81) refere que: “[…] os postulados, de um lado, não impõem a promoção de um fim, mas em vez disso, estruturam a aplicação de dever de promover um fim; de outro, não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem comportamentos”. A sistematização e aplicação em nosso ordenamento jurídico dos princípios e das regras têm hoje na doutrina e na jurisprudência a ampliação do campo do entendimento e discussão que merece ser analisado e interpretado para melhor aplicação da lei ao caso concreto. Conforme disposto por Humberto Àvila (2005, p. 15): “É até mesmo plausível afirmar que a doutrina constitucional vive hoje, a euforia do que se convencionou chamar de Estado Principiológico.” Dado o fato de que a pena restritiva de direitos consistsnte em pretação de serviços à comunidade é a que mais se adequa às reais finalidades da substituição, tendo em vista que, afasta o condenado da prisão e exige dele um esforço a favor da entidade que atua em benefício do interesse público, tornando-o partícipe e colaborador de seus programas e objetivos, a ponderação é incisiva quando da aplicação das hipóteses de penas restritivas de direito, devendo o julgador uma vez analisados os requisitos objetivos e subjetivos do agente, tem em suas modalidades a possibilidade de aplicar a pena que mais convier ao caso concreto. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas aplicada em substituição à pena privativa de liberdade, gera no indivíduo a consciência de cumprimento de sua pena em um estabelecimento público ou privado com fins assistenciais ou congêneres, tendo neste cumprimento o sentimento de reflexão quando do ato praticado e devido ao fato de ser o crime, as circusntâncias objetivas e subjetivas favoráveis, não sendo, por conseguinte, prejudiciais a ordem pública, adequar o julgador com ponderação quando da aplicação da pena, como uma forma alternativa de tentativa de mudança no paradigma dominante tida há tempos na penalização através da prisão, que aos poucos está encontrando nas penas alternativas, situações diversas do cárcere, não deixando se levar pelo retrocesso da pena de prisão, gerando na sociedade a certeza de um sistema falido, que abriga indivíduos que certamente não serão ressocializados e reinseridos ao convívio social. A falta da ponderação na aplicação da lei ao caso concreto retiraria do processo a sua função primordial, qual seja, de sempre ser um caminho a percorrer antes da aplicação da sentença, para transformá-lo num instrumento autônomo de aflição. 5 Princípios Constitucionais São aqueles de suma importância para a garantia da aplicação do direito, assegurando eficácia jurídica em todos os âmbitos de atuação legal, garantindo a defesa da sociedade e com vistas à segurança do Direito Penal Pátrio. Dentre os vários princípios constitucionais imprescindíveis à aplicação e fundamento do direito trataremos dos princípios da legalidade, do devido processo legal e do estado de inocência, a fim de embasar a área de atuação do :Direito Penal à práxis jurídica, remetendo a atuação da dogmática jurídica do Instituto devidamente fundamentado à luz jusfilosófica. Princípio da Legalidade – disposto no Artigo 5º, Inciso II, da Constituição Federal, dispõe que: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. O princípio da legalidade não é restrito apenas ao Direito Penal, mas sim um caráter de todo o Direito, possuindo apenas “no campo penal – em face dos valores fundamentais da pessoa humana postos em disputa pela sanção criminal – o ápice de sua projeção doutrinária, histórica e o cume da relevância dos seus efeitos concretos” (LOPES, 1994. p. 21). Está enquadrado o Princípio da Legalidade Penal no rol de direitos e garantias fundamentais, que, juntamente com outros princípios, expressos e implícitos nesse artigo, formam o conjunto de Princípios Fundamentais de Direito Penal de um Estado Social e Democrático de Direito, pois “têm a função de orientar o legislador ordinário para a adoção de um sistema de controle penal voltado para os direitos humanos, embasado em um Direito Penal da culpabilidade, um Direito Penal mínimo e garantista” (BITENCOURT, 2002. p. 09). Princípio do Devido Processo Legal – O princípio do devido processo legal está expressamente consagrado na Constituição Federal, em seu artigo 5º, Inciso LIV, segundo o qual: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Sua origem remonta am Carta Magna Inglesa, de 1215, em que se estabelecia a garantia de que a aplicação de sanção só poderia ser efetuada de acordo com a lei da terra (by the law of the land). A expressão foi alterada em 1355, quando o rei Eduardo III foi obrigado pelo parlamento a aceitar um estatuto que se referia ao devido processo legal (dues process of law). Tal garantia passou para colônias americanas e, posteriormente, foi incorporada pelo sistema constitucional federal dos Estados Unidos da América em 1971 (V emenda) e em 1987 (XIV emenda). O fim originariamente visado pelo princípio era o da proteção individual, por meio de uma limitação posta ao poder, mas hoje se entende que é uma cláusula aberta, indeterminada, mas não vazia de conteúdo, dela defluindo vários princípios que a jurisprudência, atendendo a sua origem, evolução e finalidade, vai reconhecendo e aplicando aos casos concretos. Como bem observa Bitencourt (2002, p. 59): “Toda lei que não observar determinados critérios de elaboração legislativa, infringindo garantias fundamentais do indivíduo, será considerada inconstitucional por infringência deste princípio superior. Como se percebe, a sua enunciação no texto constitucional não é inútil; pelo contrário, ela tem permitido o florescer de toda uma construção doutrinária e jurisprudencial que tem procurado agasalhar o réu contra toda e qualquer sorte de medidas que o inferiorize ou impeça de fazer valer as suas autênticas razões”. Princípio do Estado de Inocência – O princípio do estado de inocência está previsto no artigo 5º, Inciso LVII, da Constituição Federal, dispondo que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Como conseqüência direta do princípio do devido processo legal, instalou-se na doutrina e nas legislações o denominado princípio da “presunção de inocência”. De acordo com o artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarado culpada, preceito reiterado no artigo 26 da Declaração Americana de Direitos e Deveres, de 2 de maio de 1948, e no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU. De tempos para cá, entretanto, passou-se a questionar tal princípio que, levado às últimas conseqüências, não permitiria qualquer medida coativa contra o acusado, nem mesmo a prisão provisória ou o próprio processo. O que se entende hoje, nos entendimentos de Eugênio Florian (1998, p.335) é que: “existe apenas uma tendência à presunção de inocência”, ou em outras palavras, um estado de inocência, um estado jurídico no qual o acusado é inocente até que seja declarado culpado por uma sentença transitada em julgado. 6 Considerações finais Toda a discussão sobre os princípios e regras leva a vantajosa conclusão de que com a evolução histórica do direito a necessidade de se procurar novos métodos de interpretação, aplicação, fundamentação e eficácia de nossas leis é inconteste, pois, a sociedade clama que justiça seja feita, mas esta justiça é diferente daquela tida no direito romano, em termos práticos, mas exatamente a mesma em sede de termos teóricos no que se refere a eficácia do ordenamento jurídico e do conceito de lei e penalização do ato descrito como crime. A ponderação como instrumento hábil a preencher a lacuna das interpretações e adequações na sistematização legal tida na doutrina penal e processual penal, chegou a tempo de trazer a tona uma série de discussões sobre a real necessidade deste instituto, que corporifica toda a essência atual da modernidade nas decisões e fundamentações sejam por parte dos juristas e aplicadores do direito, como tratando da matéria de maneira clara e com persuasão nos manuais dos doutrinadores e estudiosos do direito. O direito em geral só tem a ganhar com a exploração dos institutos que visam técnicas de valoração e eficácia dos princípios e regras, consolidadas na ponderação e em especial o direito penal e processual penal aqui tratado, terá nova visão da interpretação dos crimes e penas ao caso concreto em que a figura da ponderação quando da fundamentação dos princípios e da aplicação das regras, seja incisiva na construção do direito humanitário por parte do julgador quando da análise do caso concreto, guardando relação sempre com a efetiva e incisiva busca da tão almejada justiça nas decisões e em especial na reinserção social do indivíduo e sua reeducação e recondução à sociedade, sendo-lhe dadas as mesmas oportunidades, buscando realizar seus anseios e aspirações em afronta às presentes e desmerecedoras desigualdades sociais e humanas tidas em nosso ordenamento jurídico penal.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-90/ponderacao-na-aplicacao-das-penas-alternativas-como-paradigma-emergente-do-sistema-prisional-brasileiro/
A produção de prova pelo acusado na fase pré-processual: Uma garantia para realização de um processo constitucional
O presente trabalho demonstrará como o acusado tem seus direitos e garantias fundamentais mitigados no processo penal brasileiro, especificamente no que diz respeito à produção de provas, do exercício do contraditório e da ampla defesa na fase de inquérito policial.
Direito Processual Penal
1 INTRODUÇÃO: O inquérito policial deve ser adequado ao modelo de processo de um Estado Democrático de Direito, principalmente no que tange ao exercício do contraditório, da ampla defesa e a produção de provas nessa fase pré-processual. O modelo constitucional de processo é aquele que proporciona aos que serão afetados pelo provimento jurisdicional o pleno exercício dos direitos e garantias fundamentais. Exercício este que tem proporcionado diversas modificações quanto o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, quebrando o paradigma tradicional do processo penal, aproximando-o do modelo constitucional. Verifica-se que os julgados ainda demonstram uma estrutura procedimental antiquada, influenciada pela instrumentalidade, onde o juiz tem o papel de aplicar a lei. Contudo não podemos deixar de constatar que as fundamentações dos julgados do Supremo Tribunal Federal pretendem garantir a efetividade dos princípios constitucionais do processo, coadunando, inclusive, a proposta de procedimento realizado em contraditório. Este é o entendimento do processo constitucional, onde aos envolvidos é permitido o exercício do contraditório, da ampla defesa e produção de provas durante todo processo penal, inclusive em sua fase pré-processual. Para desenvolver o presente trabalho, será demonstrado o inquérito policial em sua estrutura dogmática tradicional, fazendo uma reconstrução do processo penal constitucional, observadas as garantias e direitos fundamentais. Será examinando, ainda, a possibilidade da participação do acusado na fase pré-processual prevista no direito processual penal italiano como forma de proporcionar uma releitura e adequação ao inquérito policial brasileiro.   Por fim, constata-se não apenas que o inquérito policial deve ser pautado dos direitos e garantias fundamentais, como justifica que é a forma de realizar plenamente um procedimento constitucionalizado, onde o acusado poderá participar, durante todo procedimento penal, na formação do provimento jurisdicional. 2 O INQUÉRITO POLICIAL A dogmática tradicional ensina que o direito é a necessidade de punir àqueles que cometem ações contrárias as normas jurídicas decorrem desde os primórdios da existência da sociedade. Assim, para se evitar formas primitivas de punição, como a “lei de talião” na base do “olho por olho, dente por dente”, surge a necessidade de o Estado evocar o direito de julgar e punir. Contudo, tendo em vista essa reconstrução, antes de exercer o jus puniendi cabe ao Estado o exercício do jus persequendi. A persecução penal, como é conhecida, compreende-se em duas fases: a fase investigatória (ou pré-processual) e a fase judicial[1]. A fase investigatória, foco principal do presente estudo, é realizada através do inquérito policial, um procedimento pré-processual administrativo inquisitorial, que reunirá os elementos necessários para propositura, ou não, da ação penal. O inquérito policial é o instrumento através do qual a autoridade policial realiza o conjunto de diligências para a apuração de uma infração penal e sua autoria para que o titular da ação penal possa provocar a prestação jurisdicional para o caso concreto. Em que pese o entendimento existente de que o processo penal se constitui de dois momentos distintos, este deve ser considerado de forma uno e indivisível, pautado de uma interpretação conforme o modelo constitucional do processo, na medida em que do inquérito policial é que se decorre a ação penal. Até mesmo José Frederico Marques perfilha deste entendimento: “A persecutio criminis apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal. Esta consiste no pedido de julgamento da pretensão punitiva, enquanto a primeira é atividade preparatória da ação penal, de caráter preliminar e informativo: inquisitio nihil est quam informatio delicti”. (MARQUES, 2003, p. 138) Sem adentrar as discussões acerca do caráter sigiloso, bem como da inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de acesso aos autos do inquérito policial, cujo entendimento vem sendo pacificado no Supremo Tribunal Federal, esse procedimento administrativo-investigatório deveria ser dotado do exercício dos direitos e garantias fundamentais constitucionais, dentre eles o da ampla defesa e do contraditório, de modo a possibilitar a realização do devido processo legal. O Supremo Tribunal Federal tem formado posicionamento de que: “O cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação a pena privativa de liberdade ou na mensuração desta: a circunstância é bastante para admitir-se o habeas corpus a fim de respeitar as prerrogativas da defesa e, indiretamente, obviar prejuízo que, do cerceamento delas, possa advir indevidamente à liberdade de locomoção do paciente”. (BRASIL, STF, 2004) Neste sentido, explicita o professor Édison Luiz Baldan: “Falar, portanto, em investigação remete à questão dos direitos e garantias constitucionais do cidadão, que não pode ser tratado sob o prisma errôneo da prevalência do interesse coletivo sobre o individual, somente admissível nos domínios do direito civil ou administrativo”. (BALDAN, 2007, p. 258) É com base nesta vertente que o exercício da ampla defesa e do contraditório não deveria ficar adstrita ao acusado durante a fase judicial, quando da ação penal; devendo ser estendido ao imputado quando do inquérito policial, principalmente no que tange a produção de provas em seu favor, para realização plena da garantia do devido processo legal, por todo procedimento penal. 3 A REALIZAÇÃO DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO NO INQUÉRITO POLICIAL Os meios de prova são elementos submetidos ao juízo, observados os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, destinado à formação do provimento jurisdicional. Sua constituição é validada desde que não formalizados ilegalmente ou quando colhidos na fase inquisitorial sem as garantias e direitos constitucionais. As provas coletadas durante a fase investigativa somente serão assim consideradas quando jurisdicionalizadas, ainda assim não terão respaldo constitucional face a não participação do acusado na sua produção. A regra seria que os elementos informativos constantes no inquérito policial não são aptos a servirem de fundamentos para a formação do provimento jurisdicional, visto que na fase pré-processual o investigado não tem oportunidade para apresentar sua defesa, indicando ou produzindo elementos de prova ou, ainda, contrariando as existentes. A Constituição da República de 1988 proporcionou uma releitura acerca da realização da ampla defesa e do contraditório pelo acusado na fase do inquérito policial, não possibilitando tais garantias apenas na ação penal. A natureza inquisitorial do Código de Processo Penal demonstra que a fase pré-processual, embora administrativa, é tão determinante para construção do provimento final, quanto é para a instauração e elucidação da ação penal. Não apenas os grandes estudiosos e doutrinadores como até Júlio Fabbrini Mirabete perfilham deste entendimento: “O inquérito policial tem valor informativo para a instauração da competente ação penal. Entretanto, nele se realizam certas provas periciais, que, embora sem a participação do indiciado, contém em sim maior dose de veracidade, visto que nelas preponderam fatores de ordem técnica que, além de mais difíceis de serem deturpados, oferecem campos para uma apreciação objetiva e segura de suas conclusões. Nessas circunstâncias têm elas favor idêntico aos das provas colhidas em juízo. O conteúdo do Inquérito, tendo por finalidade fornecer ao Ministério Público os elementos necessários para a propositura da ação penal, não poderá deixar de influir no espírito do juiz na formação de seu livre convencimento para o julgamento da causa, mesmo porque integra os autos do processo, podendo o juiz apoiar-se em elementos coligidos na fase extrajudicial”. (MIRABETE, 1991, p. 77) Levando-se em conta o princípio do “livre convencimento motivado”[2] do atual sistema processual, os elementos e circunstâncias coletados pela autoridade policial durante o inquérito, sempre podem ser utilizados para subsidiar a fundamentação da decisão. Lado outro, considerando a persecução penal de maneira una e indivisível, as informações contidas no procedimento extrajudicial estariam afrontando diretamente o processo constitucional na medida em que mitiga a garantia da ampla defesa e do contraditório, uma vez que não proporciona a participação do acusado na produção de prova, contribuindo para os atos investigatórios. Consoante aduz o professor José Frederico Marques, “o inquérito, como instrumento da denúncia, nunca é nulo, não estando sujeito, assim, às sanções que o Código prevê para os atos processuais” (MARQUES, 2003, p. 159). É a demonstração da importâncias dos elementos constantes no inquérito para realização do procedimento penal. Neste mesmo sentido é o entendimento de Rogério Tucci: “A contraditoriedade da investigação criminal consiste num direito fundamental do imputado, direito esse que, por ser um elemento decisivo do processo penal, não pode ser transformado, em nenhuma hipótese, em mero requisito formal”. (TUCCI, 2004, p. 359) É certo, portanto, que o inquérito policial, como instrumento de coleta de informações, recolhe dados sobre os fatos e suas circunstâncias, na busca de elementos de prova que podem influenciar no “livre convencimento” do magistrado quanto à decisão a ser proferida. Assim, conforme demonstrado, as circunstâncias indicadas no procedimento administrativo constituem elementos válidos para a formação do provimento final, sem que tenha garantido a simétrica paridade das partes envolvidas, o que é uma afronta a teoria do processo constitucional. 4 A PARTICIPAÇÃO DO ACUSADO NO INQUÉRITO POLICIAL NO DIREITO PROCESSUAL ITALIANO Analisando os sistemas processuais no direito comprado, constatamos que o Código de Processo Penal Italiano possibilita ao acusado, através do advogado, a realização de prova na fase extrajudicial, “conduzindo as investigações para localizar e identificar elementos de prova”[3], através de entrevistas, pessoal e informal, de potenciais testemunhas; coleta de declarações escrita de pessoas, com a cominação de crime de falso testemunho; requerer laudos periciais, ou produzi-los através de assistentes técnicos; vistoriar coisas ou inspecionar lugares públicos ou privados; solicitar documentos em poder da Administração Pública, dentre outros. Esta prerrogativa é um demonstrativo do exercício ao direito do acusado em participar de todos os atos do processo penal, inclusive das investigações, já realizados em ordenamentos jurídicos de outros países. Sobre estes poderes de investigação constantes nos dispositivos legais do processo penal italiano, o estudioso Édison Baldan indaga: “A vantagem perceptível dessa atividade é que permite à defesa preparar-se adequadamente e sustentar a própria tese, seja porque contribui a garantir o direito à prova em qualquer estado e grau do procedimento, seja, enfim, porque volta-se a realizar cabalmente o princípio da paridade que, como dito, é a base do devido processo legal”. (BALDAN, 2007, p. 271-272) De fato, o modelo italiano se aproxima, em tese, do processo constitucionalizado brasileiro sob a perspectiva desenvolvida por Aroldo Plínio Gonçalves, através da releitura do conceito de processo e procedimento de Elio Fazzalari: “O contraditório não é apenas a participação dos sujeitos no processo. Sujeitos do processo são o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público, quando a lei exige, e as partes (autor, réu e interveniente). O contraditório é a garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles que são os interessados, ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento e a medida jurisdicional que ele vier a impor”. (GONÇALVES, 2001, p. 120) O ordenamento jurídico pátrio, também, proporciona uma interpretação satisfativa acerca da possibilidade do acusado participar da investigação, não só produzindo provas, como também exercendo a ampla defesa e o contraditório. Conjugando o art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição da Republica, e art. 14 do Código Processual Penal, respaldam a fundamentação legal para garantir àqueles investigados no inquérito policial, o pleno exercício dos direitos fundamentais constitucionais, participando ativamente na produção de provas durante o inquérito policial. É nesse sentido que sustenta o relator do acórdão, Ministro Gilmar Mendes, no pedido de Habeas Corpus nº 92.599, julgado pelo Supremo Tribunal Federal : “No âmbito dos inquéritos policiais e originários, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem caminhado no sentido de garantir, a um só tempo, a incolumidade do direito constitucional de defesa do investigado ou indiciado e a regular apuração de fatos e documentos que sejam, motivadamente, imprescindíveis para o desenvolvimento das ações persecutórias do Estado (HC 90.232/AM, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª T., DJ 2.3.2007; HC 82.354/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, HC/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª T., DJ 24.9.2004). Nesse particular, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem assegurado a amplitude do direito de defesa em sede de inquéritos policiais e originários, em especial no que concerne ao exercício do contraditório e ao acesso de dados e documentos já produzidos no âmbito das investigações criminais”. (BRASIL, STF, 2008) Acompanhado pelos Ministros Joaquim Barbosa e Eros Grau, o relator conclui o voto: “Assim, verifica-se que tais julgados respaldam a tendência interpretativa de garantir aos investigados e indiciados a máxima efetividade constitucional no que concerne à proteção dos direitos fundamentais da ampla defesa (CF, art. 5º, LIV e LV). Na espécie, a defesa não reivindica a produção de prova extemporânea ou providência que implique tumulto processual, mas apenas a juntada de elementos que entende pertinentes à elucidação dos fatos e ao convencimento do Ministério Público. Destarte, nos termos da jurisprudência colacionada, entendo não haver razão jurídica plausível para que a Corte Especial do STJ indefira pedido de juntada do laudo pericial já produzido pela defesa do ora paciente.” (BRASIL, STF, 2008) Observa-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal reconhece não só a possibilidade da produção de provas no inquérito policial, como demonstra ser elemento determinante para “elucidação dos fatos e ao convencimento do Ministério Público” (BRASIL, STF, 2008). Trata-se não somente de uma garantia ao acusado, mas uma segurança ao julgador que poderá analisar um procedimento totalmente pautado nas garantias e direitos fundamentais constitucionais. 5 DEVIDO PROCESSO LEGAL E O DEVIDO PROCESSO PENAL A constitucionalização do processo tem importância voltada para garantia do exercício dos direitos fundamentais. Nessa vertente, é de grande importância a teoria desenvolvida pelos estudiosos italianos Andolina e Vignera (1990) que apresentaram a atividade jurisdicional através de um modelo constitucional de processo, assegurando uma participação democrática das partes afetadas pelo provimento jurisdicional. O direito processual brasileiro contemporâneo não tem interpretação distinta. A Constituição da República de 1988 demonstra a aplicabilidade destes posicionamentos, principalmente no que tange aos direitos e garantias fundamentais, os quais já são observados durante o procedimento judicial. Os princípios do contraditório e da ampla defesa devem ser compreendidos como garantia de participação, em simétrica paridade, daqueles que serão afetados pelo provimento final. Assim é o ensinamento de Aroldo Plínio Gonlçaves: “O contraditório não é o “dizer” e o “contradizer” sobre matéria controvertida, não é a discussão que se trava no processo sobre a relação de direito material, não é a polêmica que se desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo do ato final. Essa será a sua matéria, o seu conteúdo possível. O contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei. É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica paridade de participação no processo.” (GONÇALVES, 2001, p. 127). A base do devido processo legal está assegurado no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Republicana, assim, é uma garantia fundamental de qualquer cidadão e diferentemente não deve ser o processo penal, que deve abranger as mesmas garantias dos outros procedimentos. O processo penal não pode ser compreendido sob o enfoque exclusivo das garantias previstas no Código de Processo Penal, mas também em face das regras constitucionais vigentes, como as garantias da igualdade, do contraditório, da publicidade e o direito à prova. Retomo, por oportuno, que referir ao devido processo abrange-se toda persecução criminal, estando nela incluída o inquérito policial, que embora seja um procedimento administrativo, não estaria isento da realização do contraditório e da ampla defesa. É importante compreender que a realização da prova é uma garantia, que não deve se constituir em ônus para o acusado, uma vez que estes elementos trazidos pelas partes no inquérito policial também construirão o provimento jurisdicional. 6 CONCLUSÃO Conforme se depreende do presente trabalho, é possível a adequação do inquérito policial a um modelo constitucional de processo, com o objetivo de garantir os direitos fundamentais daqueles que serão afetados pelo provimento jurisdicional. Os benefícios atingidos com a possibilidade da produção de provas pelo acusado durante a fase investigatória, bem como a garantia do exercício do contraditório e da ampla defesa durante todo o procedimento penal são patentes. Demonstrado que o ordenamento jurídico pátrio possibilita ao acusado a produção de provas que servirão tanto para evitar uma desnecessária Ação Penal, como também, servirá de elemento para construção da decisão final. Sob a ótica de um Estado Democrático de Direito, esta seria a interpretação constitucional adequada do processo. Tanto é verdade que o Supremo Tribunal Federal vem direcionando seus julgados de acordo com os direitos e garantias constitucionais fundamentais, proporcionando aos acusados os mesmos direitos existentes aos acusadores. Tal posicionamento não visa, apenas, desconstituir o modelo tradicional do inquérito policial e procedimentos investigatórios, como possibilita a adequação destes ao processo constitucionalizado, proporcionando ao acusado a garantia do exercício do contraditório, da ampla defesa, inclusive, proporcionando a produção de provas durante a fase pré-processual. O provimento jurisdicional não se baseia exclusivamente nas provas colhidas durante a fase judicial, por tal razão é importante a realização do contraditório e da ampla defesa também durante o inquérito policial. Desta forma, o que se pretende não é conceder ao acusado poderes de investigação semelhantes aos da autoridade policial, tampouco proporcionar meios de tumultuar o processo, mas sim possibilitar a participação do acusado na produção das provas durante todo processo penal, como forma de garantir o exercício dos direitos fundamentais e, consequentemente, de um processo constitucional.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-90/a-producao-de-prova-pelo-acusado-na-fase-pre-processual-uma-garantia-para-realizacao-de-um-processo-constitucional/
O habeas corpus processual: instrumento para combater a coação ilegal
Este artigo se propõe a abordar o instituto jurídico do habeas corpus como instrumento hábil a tutelar o direito a liberdade de locomoção do indivíduo. O Código de Processo Penal dispõe da possibilidade de impetrar habeas corpus em caso de coação ilegal, quando não houver justa causa para o inquérito policial ou ação penal. Assim, a doutrina e a jurisprudência possibilitam discussão acerca do writ processual para o trancamento do procedimento para afastar o abuso de poder ou ilegalidade da coação. O constrangimento acarretado pela existência de procedimento criminal judicial, ou extrajudicial, é patente, e a falta de justa causa se apresenta, sobretudo, na acusação livre de fundamento mínimo que a sustente. Neste norte, a autoridade competente não pode desvincular-se de examinar elementos mínimos de prova que fundamentam a acusação, sob pena de pactuar com o constrangimento ilegal por ele exercido. Portanto, o habeas corpus processual é o medida contra procedimento manifestamente injusto, desprovido de justa causa, da mesma forma que o habeas corpus constitucional é o remédio contra as coações ilegais à liberdade corporal e contra os constrangimentos ao direito de locomoção decorrentes de abuso de poder ou ilegalidade. Aqui, analisaremos as conseqüências jurídicas deste constrangimento ilegal
Direito Processual Penal
1 – INTRODUÇÃO: A partir do advento da Constituição Federal de 1988, o fortalecimento do Estado Democrático se mostrou evidente e com isso reforçaram-se os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Dentre esses direitos fundamentais, se encontra o direito à liberdade, ou seja, o de ir e vir, que são inerentes ao ser humano.Para resguardar os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, a Carta Magna disponibilizou ao cidadão diversos remédios constitucionais, tais como o Mandado de Segurança, Mandado de Injunção, Habeas Corpus, Habeas Data e a Ação Popular. O habeas corpus, previsto no artigo 5º, inciso LXVIII, é o recurso que visa garantir o efetivo exercício da liberdade de locomoção do cidadão brasileiro. Essa proteção à liberdade individual, através do habeas corpus, foi uma das maiores conquistas do Direito, resultando na restrição do poder do Estado frente ao indivíduo. A propósito, a evolução do relacionamento indivíduo-Estado, houve necessidade de normas que garantissem os direitos fundamentais do ser humano contra o forte poder estatal intervencionista. Para tanto, tornou-se necessário que os países inserissem em suas Constituições regras de cunho garantista, que impões ao Estado e à própria sociedade o respeito aos direitos individuais, tendo o Brasil seguindo este viés a fim de garantir os direitos individuais do cidadão. O Habeas Corpus, denominado pela doutrina de writ, possui tanta importância,  que o Código de Processo Penal também o disciplina, especificando, inclusive, suas hipóteses de cabimento no art. 648 e seguintes. São nestes dispositivos que se verificam as possibilidades de impetrar habeas corpus quando for adotada alguma coação ilegal, mesmo que iminente, a liberdade do indivíduo. Uma das possibilidades de coação ilegal à liberdade individual ocorre quando não há justa causa para a existência de um inquérito policial ou de uma ação penal. Nesse norte, iniciou-se uma discussão doutrinária acerca do conceito de justa causa para o processo penal, bem como da possibilidade de utilização do writ para evitar esse tipo de coação ilegal. Sabe-se que o habeas corpus é um instrumento popular, que protege qualquer do povo contra o constrangimento à liberdade física sem justa causa, capaz, inclusive, de trancar o procedimento que não respeite os pressupostos e requisitos mínimos para sua legalidade, impondo àquele investigado, ou acusado, uma coação visivelmente ilegal. Assim, há de se demonstrar que a ausência de justa causa é determinante para justificar a possibilidade de impetrar habeas corpus processual com propósito de trancar o inquérito policial ou ação penal e, assim, cessar o constrangimento ilegal efetivo ou sua ameaça. 2 – CONCEITO DE HABEAS CORPUS: A expressão habeas corpus tem sua origem no latim e indica a essência do instituto, que, em seu sentido literal significa “tome o corpo” ou “exiba o corpo” ou “apresente a pessoa”. Isto é, tome a pessoa presa e a apresente ao juiz, para que seja procedido o seu julgamento. (MIRABETE, 2002. p. 709). Ferreira (1988, p.06) nos informa: “Ter corpo, ou tomar o corpo, é uma metáfora, que significa a liberdade de ir e vir, o poder de locomoção, o uso dessa liberdade de locomoção livremente, salvo restrições legais a todos impostas indistintamente” Posteriormente a expressão passou a ser entendida como a “ordem de libertação”, uma vez que tal instituto jurídico é destinado a tutelar a liberdade física do indivíduo, a liberdade de ir, ficar e vir. (MIRABETE, 2002. p. 709). 3 – A EVOLUÇÃO DO INSTITUTO DO HABEAS CORPUS: O habeas corpus teve origem no direito romano, onde todo cidadão podia reclamar a exibição do homem livre detido ilegalmente por meio de uma ação privilegiada, conhecida por interdictum de libero homine exhibendo. Parte da doutrina, porém, aponta sua origem no Capítulo XXIX da Magna Carta, outorgada pelo Rei João Sem Terra em junho de 1215. Nesta, o art. 48 previa que: “Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdade, senão em virtude de julgamento por seus pares, de acordo com as leis do país”. Está previsto no direito brasileiro desde 1821, mas, de forma expressa apenas com a promulgação do Código de Processo Criminal em 1832, cujo art. 340 dispunha: “Todo cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade tem direito de pedir uma ordem de habeas corpus em seu favor”. Travava-se do chamado Habeas Corpus liberatório. No decorrer do ano de 1871 o instituto foi estendido às hipóteses em que o sujeito se encontrava apenas ameaçado na sua liberdade de ir e vir. Ou seja, surgia então no Brasil, o habeas corpus preventivo, não conhecido nem mesmo na Europa. Tourinho (2004) nos informa que a lei 2.033 de 20 de setembro de 1871 concedeu o caráter preventivo ao instituto, estendendo-o também para os estrangeiros. Mas, foi somente em 1891 que “a Constituição Republicana elevou, pela primeira vez, o Habeas Corpus, ao status de uma garantia constitucional, estabelecendo no parágrafo segundo de seu artigo 72, a extensão do habeas corpus como amparo dos direitos pessoais e não só à liberdade física”. (FERREIRA, 1988. p. 31) Segundo Tourinho (2004), tal artigo, exatamente por não falar em liberdade de locomoção, era passível de interpretação no sentido de ser cabível o remédio sempre que a liberdade física fosse condição necessária para que o paciente pudesse exercer algum direito. Em 1926, ano em que ocorreu uma reforma constitucional, foi dada nova redação ao artigo 72 da Carta Magna, que passou a ter o seguinte texto: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofre violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal na sua liberdade de locomoção”. Com tal modificação, os demais direitos subjetivos, que antes podiam ser salvaguardados por meio do referido instituto, não puderam mais ser objeto de tal remédio. A Constituição de 1934, por sua vez, suprimiu a expressão “locomoção”. À mesma época, surgiu o Mandado de Segurança, que visava amparar outros direitos. Posteriormente, a Carta de 1946 restringiu o direito à proteção da liberdade ambulatória, e a de 1967, em seu artigo 150, parágrafo 20, manteve a mesma redação. Atualmente, o instituto do habeas corpus está presente em quase todas as legislações do mundo, e encontra-se expresso na Carta Magna de 1988, em seu art. 5º, LXVIII, nos termos seguintes: “Art. 5º. […] LXVIII – conceder-se-á “habeas-corpus” sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Trata-se de um remédio constitucional disponível ao cidadão para proteger o direito a liberdade de locomoção atingido, ou ameaçado, por algum ato ilegal ou abusivo de autoridade competente. Sua acessibilidade é universal, visto que qualquer pessoa pode impetrá-lo, em favor próprio ou de outrem, com ou sem a interveniência de um advogado e, ainda, pelo Ministério Público ou pelo órgão jurisdicional, que pode concedê-lo ex officio. A abrangência do writ[1] decorre de uma notável evolução histórica visando uma melhor proteção à liberdade contra violência ou coação sofrida ou iminente. Importa dizer que o moderno Direito Penal e Processual Penal apregoam a intervenção Estatal mínima, ficando a restrição a liberdade, por ser medida extrema a hora e a dignidade do indivíduo, deve ser adotada como ultima ratio. 4 – A NATUREZA JURÍDICA DO HABEAS CORPUS: Como já dito, o Habeas Corpus está contemplado na Constituição Federal no capítulo destinado aos direitos e garantias fundamentais prevendo que o indivíduo tem o direito constitucional à liberdade e o habeas corpus um dos meios de se garantir esse direito, daí a razão dele estar inserido no referido capítulo da Lei Maior Portanto, o habeas corpus é uma garantia constitucional que se obtém por meio de processo e é destinada a tutelar, de maneira eficaz e imediata, a liberdade de locomoção. É medida que tutela o direito de permanecer, de ir e vir, de não ser preso (a não ser no caso de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, consoante determina o artigo 5º, inciso LXI da Constituição Federal); o direito de não ser preso por dívida, salvo nos casos do depositário infiel e do alimentante inadimplente (como previsto no inciso LXVII do mesmo artigo); o direito de não ser extraditado nas hipóteses previstas pela Carta Magna; o direito de freqüentar todo e qualquer lugar, ressalvadas as restrições impostas quando da concessão do sursis ou suspensão condicional do processo; o direito de viajar, ressalvadas as restrições impostas pelos artigos 328 367 do Código de Processo Penal. Diante do exposto, pode-se afirmar que o Habeas Corpus tem natureza jurídica de ação popular penal constitucional, que pode ser ajuizado ou impetrado por qualquer um do povo, a fim de provocar o Judiciário para solucionar um conflito entre a pessoa que tem sua liberdade de locomoção ameaçada ou violada e o agente ou órgão constrangedor dessa liberdade de locomoção. A situação configura um ilícito penal, daí o caráter penal em sua natureza. 5 – CARACTERÍSTICAS DO PROCEDIMENTO DO HABEAS CORPUS: O HC pode ser impetrado quando alguém sofrer alguma violência ou coação a sua liberdade de locomoção ou, simplesmente, se estiver ameaçado de sofrê-la. Desta forma, dois tipos de writ são cabíveis para o impetrante, o habeas corpus repressivo ou o preventivo. O habeas corpus repressivo visa por fim a violência ou coação já praticada. Já o preventivo, havendo ameaça iminente ao direito tutelado visa impedir a consumação de um constrangimento ilegal. O procedimento, em razão de sua matéria, deve ser rápido e eficiente, tendo preferência sobre os demais. Para tanto, dispensa formalidades rígidas com finalidade de corrigir a ilegalidade apontada, sendo a competência originária da autoridade judiciária imediatamente superior àquela que determinou a coação. O beneficiado, aquele que estiver sofrendo, ou ameaçado de sofrer, qualquer violência ou coação a liberdade de locomoção, seja por ilegalidade ou abuso de poder pela ordem de habeas corpus é denominado paciente e não necessariamente é o impetrante. O impetrante pode ser o próprio paciente, ou qualquer pessoa capaz, conhecida ou não deste, não sendo necessário sequer representação por instrumento de procuração. Já o impetrado é aquele que, por ilegalidade ou abuso de poder, esteja violentando ou coagindo, até mesmo ameaçando, o direito de liberdade de alguma pessoa (paciente).  Apesar de estar o instituto encartado no Código de Processo Civil como recurso, e, muito embora possa desempenhar tal função, o habeas corpus é na realidade uma ação e como qualquer procedimento do direito processual, o habeas corpus também possui pressupostos a serem cumpridos, quais sejam: a) Legitimidade ad causam – No caso do habeas corpus, dizemos que a legitimidade é extraordinária, uma vez que o texto expresso de lei autoriza alguém que não seja o sujeito da relação jurídica de direito material a demandar. b) Interesse de agir – O Interesse de agir surge diante da resistência oferecida contra a pretensão de outrem, in casu, ao direito de liberdade de ir e vir do indivíduo. E nesse sentido o estudioso Greco Filho afirma que: “o interesse processual decorre de uma relação de necessidade e de adequação (utilidade) porque é inútil a provocação da tutela jurisdicional se ela, em tese, não for apta a produzir a correção da violação do direito argüido no pedido inicial”. (GRECO FILHO, 1997. p. 107) c) Possibilidade jurídica do pedido – Neste a tutela jurisdicional requerida deve estar incluída entre aqueles que a autoridade judiciária pode admitir, não sendo expressamente proibido ou ilícito. Quanto à legitimidade passiva, o texto da lei que prevê o habeas corpus não se refere de forma expressa à “autoridade”, que representaria o Estado. Já no inciso seguinte, ao cuidar do mandado de segurança, estabelece que este seja concedido para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou pelo abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público. Portanto, é pacífico que o instituto habeas corpus pode ser impetrado contra ato de particular, caso contrário, teria expressamente vedado tal possibilidade. Além disso, a Constituição Federal prevê como fator de violência ou coação não apenas o abuso de poder, mas também a ilegalidade, podendo esta ser praticada por qualquer um. Quanto ao que se refere às autoridades públicas, normalmente pertencem à Polícia ou ao Judiciário, embora não esteja afastada a hipótese de constrangimento por parte de outros funcionários. Uma vez efetuada prisão ou instaurado inquérito policial por meio de portaria do Delegado de Polícia, será este o apontado como autoridade coatora no habeas corpus. Entretanto, se o inquérito policial foi instaurado por requisição do Juiz de Direito, será ele apontado como a autoridade coatora. O mesmo se aplica quando o Juiz de Direito defere requerimento do Ministério Público com a mesma finalidade, ou quando determina a realização de diligências por ele requerida. O Juiz de Direito também tornar-se-á autoridade coatora quando tem a possibilidade de fazer cessar o constrangimento ilegal com a concessão ex officio do habeas corpus e não o faz. Já o Promotor de Justiça pode ser autoridade coatora quando requisita a instauração de inquérito policial, determinando o indiciamento ou outras diligências constritivas ou, ainda, expedindo requisições ou notificações para o comparecimento. Outro aspecto importante no que se refere ao procedimento do HC é que não há prazo para sua interposição, portanto, não há prescrição, sendo cabível, inclusive, contra decisão transitada em julgado. A sentença que denegue a ordem de habeas corpus não faz coisa julgada, podendo o pedido pode ser renovado, desde que com novos fundamentos. Quanto à competência, a impetração do habeas corpus deve ser apresentada perante o órgão judicial superior àquela de quem parte a coação, conforme determina o parágrafo primeiro do artigo 650 do Código de Processo Penal: “A competência do juiz cessará sempre que a violência ou a coação provier de autoridade judiciária de igual ou superior jurisdição”. No mesmo sentido é a súmula 606 do Superior Tribunal de Justiça: “Não cabe habeas corpus originário para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou do Plenário, proferida em habeas corpus ou no respectivo recurso.” Desse modo, se a coação parte do Delegado de Polícia, a competência para apreciar o habeas corpus será do juiz criminal. Findo o inquérito e remetidos os seus autos ao Juízo, passa o juiz a ser a autoridade coatora, sendo o órgão de segundo grau o competente para apreciar a sua ilegalidade É importante frisar que, dado sua abrangência, o habeas corpus, por ser uma ação, não substitui o recurso adequado para determinada situação, já que suas características não são alteradas, ou seja, não há fungibilidade. Deve-se tê-lo, apenas, como recurso heróico para situações extremas, mas atentando-se, sempre, para o prazo de oposição dos recursos específicos, sob pena de preclusão e perda do direito. 6 – A JUSTA CAUSA PARA PRISÃO, INQUÉRITO POLICIAL E AÇÃO PENAL: A Constituição da República pátria consagrou o direito de locomoção do cidadão brasileiro, impondo ressalvas em detrimento de situações onde este direito poderia ocasionar um prejuízo maior ao Estado, como no caso da prisão, deportação, expulsão, internação em hospital de custódia, dentre outras hipóteses. A prisão é uma das formas de impedir que o indivíduo exerça direito de locomoção, seja durante um procedimento penal ou decorrente de sentença transitada em julgado e no presente trataremos exclusivamente da prisão processual que resulta de flagrante delito ou determinação judicial. Sua natureza cautelar exige a configuração do periculum in mora e do fumus boni iuris com intuito de assegurar e proteger os bens jurídicos envolvidos na relação processual se houver perigo à aplicação da lei penal, à ordem pública ou necessidade para instrução criminal, nos termos do art. 312 do CPP. Observe-se que, nestas hipóteses, a justa causa para imposição da prisão apenas está demonstrada em situação de extrema necessidade, dada a gravidade da medida, caso contrário estará impedindo o exercício do direito de ir e vir do indivíduo ilegalmente. O Código de Processo Penal exige como condição para o recolhimento à prisão a autuação do agente em flagrante delito, hipótese em que é demonstrada a justa causa para que seja imposta a prisão; caso contrário estará impedindo o exercício do direito de locomoção do indivíduo, o que será considerado ilegal. A privação de liberdade por tempo superior ao permitido, quando inexiste causa que a determinou, quando ordenado por autoridade incompetente ou quando não admitidos fianças nos casos que a lei autoriza, a prisão torna-se ilegal, justificando a impetração de habeas corpus constitucional para garantir sua liberdade. O inquérito policial também depende de justa causa para sua existência. Por ser um procedimento administrativo de natureza inquisitória, possui escopo de investigar a existência do fato criminoso e sua autoria, colhendo as provas tendo em vista as circunstâncias fáticas. Não se trata de pré-requisito para assegurar a ação penal, tanto que alguns procedimentos independem da existência do inquérito policial, bem como pode ser substituído por outros meios de informação, desde que suficientes para sustentar a acusação. É instaurado ex officio, por portaria da autoridade policial, pela lavratura do auto de prisão em flagrante, mediante representação da vítima ou requisição do juiz ou Ministério Público e, sendo um procedimento administrativo extrajudicial, não se aplicam os princípios constitucionais do processo, como o contraditório e a ampla defesa, por exemplo. Nos crimes de ação penal pública incondicionada ou havendo requisição do juiz ou Ministério Público, a autoridade policial deve iniciar as investigações qualquer que tenha sido o meio pelo qual a notitia criminis tenha chegado a seu conhecimento. Em se tratando de ação penal pública condicionada ou privada, somente se instaurará o inquérito policial com a representação ou a requerimento da vítima, ou seu representante legal. As investigações durante a fase inquisitória objetiva dar elementos concretos acerca da autoria e materialidade para que o Querelante, ou Ministério Público, possam intentar ação penal com justa causa, sob pena de praticar coação ilegal ao acusado. Findo o procedimento, a autoridade policial elaborará um relatório final sendo os autos remetidos ao conhecimento do Querelante ou Ministério Público para oferecimento da denúncia ou queixa. A denúncia, ou queixa-crime deve atender às condições da ação, com a qualificação do denunciado, ou elementos suficientes sobre sua identidade, a descrição do fato praticado e sua co-relação ao tipo penal imputado, na forma do art. 41 do Estatuto Processual Penal. A ausência de justa causa para o inquérito policial ou para ação penal é causa que prejudica o curso procedimental, configurando uma coação ilegal ao submeter o investigado, ou acusado, a um constrangimento pela existência de um procedimento judicial ou extrajudicial. Neste sentido escreveu Vicente Sabino Júnior: “Não se deve esquecer que a justa causa não se aprecia in concreto, mas in abstrato, por que ela só existe quando se atribua ao paciente procedimento que não constitua crime. Se embora em tese, o fato, que lhe é imputado, caracteriza uma infração penal, não há falta de justa causa, mesmo sendo injusta a imputação”. (SABINO JUNIOR, 1964, pág.341) Havendo o recebimento da denúncia ou da queixa-crime inepta, a coação ilegal estará configurada, podendo-se, portanto, impetrar habeas corpus processual para trancar a ação penal face a ausência de justa causa, com base no art. 648, I do digesto Código de Processo Penal[2]. Por tal razão que, no processo penal, faz parte do interesse de agir a exigência de justa causa com fundamento probatório razoável para sustentar a acusação, salvo contrario será inepta por ausência de condições de ação. Afrânio Jardim, em Direito Processual Penal, pontua que a “justa causa é suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado” (JARDIM, 2001, p. 95). Sustenta o autor que só o ajuizamento da ação penal é suficiente para atingir o estado de dignidade do acusado, de modo a provocar graves repercussões em seu patrimônio moral, partilhado socialmente com a comunidade. Por isso, a peça acusatória deveria vir acompanhada de suporte mínimo de prova, sem os quais a acusação careceria de admissibilidade. No mesmo sentido, o estudioso Guilherme Nucci considera que a justa causa esta relacionada com o interesse de agir, sustentando que a justa causa, em verdade, espelha uma síntese das condições da ação. Inexistindo uma delas, não há justa causa para a ação penal. Assim, considerando a justa causa como elemento do interesse de agir é possível seu trancamento pela falta de justa causa, através de habeas corpus processual. 7 – HABEAS CORPUS POR FALTA DE JUSTA CAUSA: Embora a Constituição da República tenha disposto acerca do habeas corpus como forma de proteção à liberdade de locomoção, o Código de Processo Penal, nos arts. 647 e 648 apresentam um rol com hipóteses do seu cabimento quando verificada coação ilegal. “Art. 647 – Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar. Art. 648 – A coação considerar-se-á ilegal: I – quando não houver justa causa; II – quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei; III – quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo; IV – quando houver cessado o motivo que autorizou a coação; V – quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza; VI – quando o processo for manifestamente nulo; VII – quando extinta a punibilidade.” De acordo com o inciso I do art. 648 supra mencionado, a falta de justa causa, seja para a prisão, inquérito policial ou ação penal, constitui constrangimento ilegal contra a pessoa. Nas lições de Magalhães Noronha (1986, p. 414), “justa causa é o fato cuja ocorrência torna lícita a coação”, fazendo entender que a coação será considerada ilegal quando exercida sem um motivo lícito, sendo o habeas corpus é o recurso cabível para confrontar a ilicitude da coação, não pela probabilidade de constatar a autoria e materialidade do delito, mas por, de forma inequívoca, sequer existir esta possibilidade. A justa causa, como observa Sérgio Demoro Hamilton[3], fundado em Frederico Marques, “funciona como norma genérica ou de encerramento, porquanto toda coação antijurídica que não se enquadre nos demais itens do artigo 648, será subsumível no preceito amplo em que fala em justa causa”. A revogação da prisão preventiva por obra de “habeas corpus” pode prestar a este colorido constitutivo, produzindo o trancamento da ação penal, porventura em curso contra o paciente, desde que o provimento cautelar combatido ressinta da total ausência de seus fundamentos. Vários juristas, também citados por Espínola Filho (200), diziam que a justa causa, não teria definição, em forma absoluta, pelo que afirmam ficar ao critério do Juiz apreciar a injustiça, ou justiça, da razão determinante da coação, afim de considerar legal, ou não, o constrangimento, pode informar-se que falta a justa causa, quando o constrangimento, a violência, não tem um motivo legal.  De acordo com o Professor Galdino Siqueira (1997, p. 251): “justa causa é o motivo legal, e, assim, a prisão é arbitrária si o seu motivo não encontra apoio na lei, como a falta de criminalidade do facto, a falta de prova, não identidade da pessoa[…]”.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-90/o-habeas-corpus-processual-instrumento-para-combater-a-coacao-ilegal/
Ponderação na aplicação das penas alternativas como paradigma emergente do sistema prisional brasileiro
Ao aplicarmos a sistematização da ciência criminal ao caso concreto temos que nos ater à máxima de que o sistema prisional brasileiro não comporta há décadas sua população carcerária, sendo necessário introduzir outras formas de cumprimento de penas que não onerem o Estado e que sejam eficazes na ressocialização e reeducação do apenado.
Direito Processual Penal
1 Introdução Historicamente vimos que a interpretação de um fato descrito como crime, sofreu mudanças até chegar aos nossos dias, pois, sempre aplicou-se a pena como ela está estampada no texto legal, pouco se explorando e buscando interpretações outras senão as tidas pelos juristas, doutrinadores e estudiosos do direito. A evolução do indivíduo na sociedade e as diversas formas de convívio ao longo dos tempos gerou inúmeras situações que não podem e nem devem serem desconsideradas, senão analisadas de forma concreta, pois, o que vimos foi o aumento acentuado da criminalidade, o que não podemos descartar a hipótese da necessidade de se empregar quanto à pessoa do criminoso, métodos de ressocialização, buscando contornar, quando não resolver, a inclinação criminosa da qual está tomado, pois há a perspectiva de que o mesmo venha a retornar a convívio social, sendo que a não aplicação de qualquer medida neste sentido a sociedade irá se deparar com um indívíduo cada vez mais problemático dada a progressão em sua periculosidade dentro do cárcere. A presença e criação cada vez mais acentuada de leis no âmbito penal não descaracteriza o aumento da criminalidade, ao contrário, deixa a população a mercê de um conjunto de leis que desconhecem a sua essência e redação, muitas vezes obscuras e contraditórias, criadas pelos nossos Legisladores como resposta a onda de ataques e criminalidade, como se fosse resolver o problema criminal atual. Dotti (1988, p 56), quando da análise das reformas penais brasileiras, dispõe que: “A longa hibernação da reforma integral do Código de 40 não impediu a proliferação de normas incriminadoras oriundas de legislação extravagante, com notáveis repercussões na estrutura lógica do sistema de maneira a atormentar ainda mais o jurista em sua missão de exegese e elaboração da Parte Especial. Entre as anomalias do fenômeno, deve-se pôr em destaque a má formação do direito, consistente, muitas vezes, em textos elaborados e sancionados exclusivamente pelo Poder Executivo. Em outras situações, a intervenção do Poder Legislativo serviu apenas como um referendo da vontade dos governantes com abstração real da consciência pública que deveria informar todas as leis criminais”. Com a reforma do Código Penal de 1984, com a Lei 7.209, criou-se as penas restritivas de direito como uma válvula de escape e um avanço nas modalidades de penas, sempre no intuito de implementação no ordenamento jurídico penal de novas formas de ressocialização e reeducação, nos crimes em que a pena máxima nãom excedesse a um ano, no entanto, devido ao seu rápido ingresso, a inovação não colheu os frutos esperados, o que definitivamente fora superado em 1995 com a Lei 9.099, dando a oportunidade das partes se comporem, a possibilidade da transação penal entre o indivíduo e o representante do Ministério Público, bem como a suspensão do processo. Certamente que o legislador quando da elaboração da Lei em comento, qual seja a Lei 9.099/95, percebeu a necessidade de tratar a matéria calcada não só em toda a fundamentação criada nos princípios que norteam o direito penal e processual penal, e o direito em geral, da aplicabilidade das sanções e penalidades tida nas regras, mas também tratar a matéria aos auspícios da ponderação tanto no texto legal como na aplicabilidade do texto legal e toda sua aistematização ao caso concreto dada a análise de cada vez mais buscar nas novas formas e modalidades de penas a adequação social e gradativa tanto do homem como da sociedade. E por fim disciplinando a matéria a Lei 9.714/98 veio para ampliar as hipóteses e perspectivas de substituição das penas privativas de liberdade, dispondo sobre situações não atingidas pela Lei 9.099/95, que gradativamente foram sendo intimamente relacionadas, o que deu guarida e ganhou as penas alternativas grande impulso para tentativa de mudança no panorama penal em nosso ordenamento jurídico. 2 Princípios e Regras Humberto Àvila em sua obra Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos (2005), pretende manter a distinção entre os princípios e as regras, mas os estrutura sob fundamentos diversos das doutrinas já existentes. Para ele não há separação entre interpretação e ponderação, para regras e princípios respectivamente, pois, é possível também a ponderação das regras, ou seja, para aplicação da regra fundada em princípios é necessário a ponderação de outros fatores além da verificação da ocorrência dos fatos tipificados. É proposto por Àvila ainda um método de explicação das espécies normativas, inserindo a ponderação no processo de aplicação, incluindo critérios materiais de Justiça mediante o uso concreto dos postulados normativos, razoabilidade e proporcionalidade e que a aplicação da ponderação no processo de aplicação das espécies normativas ao caso concreto, conforme o autor depende de conexões axiológicas que não estão prontas antes do processo de interpretação. Os princípios possuem várias conceituações dispostas nos mais diversos entendimentos dos autores, seja como caráter de fundamento para a construção da norma, não determinando consequências normativas, ao contrário das regras, segundo Alexy (JUDICE, 2011); seja estabelecendo um estado de coisas para cuja realização é necessária a adoção de determinados comportamentos. Já as regras estebelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada, tendo consequências normativas de seu não cumprimento. Ávila (2005) elenca vários autores que definem as espécies normativas com o objetivo de descrever os fundamentos mais importantes sobre o tema e analisar os critérios de distinção adotados, de forma objetiva e crítica. Segundo o autor Josef Esser define que princípios são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado. A diferença entre os princípios e as regras seria uma distinção qualitativa e o critério distintivo dos princípios em relação às regras seria, portanto, a função de fundamento normativo para a tomada de decisão. Karl Larenz define os princípios como normas de  grande relevância para o ordenamento jurídico, na medida em que estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento. Para Larenz os princípios seriam pensamentos diretivos de uma regulação jurídica existente ou possível, mas que ainda não são regras suscetíveis de aplicação na medida que lhes falta o caráter formal de preposições jurídicas, isto é, a conexão entre uma hipótese de incidência e uma consequência jurídica (ÁVILA, 2005). Duas características afastariam os princípios das regras segundo Canaris: O conteúdo axiológico: os princípios, ao contrário das regras, possuiriam um conteúdo axiológico explícito e careceriam, por isso, de regras para sua concretização; Há o modo de interação com outras normas: os princípios, ao contrário das regras, receberiam seu conteúdo de sentido somente por meio de um processo dialético de complementação e limitação. Para Dworkin (ÁVILA, 2005) as regras são aplicadas no modo tudo ou nada (all-or-nothing), no sentido de que, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra válida e a consequência normativa deve ser aceita, ou ela não é considerada válida. No caso de colisão entre regras, uma delas deve ser considerada inválida. Os princípios, ao contrário, não determinam absolutamente a decisão, mas somente contém fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios. Daí a afirmação de que os princípios ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso (dimension of weight), demonstrável na hipótese de colisão entre os princípios, caso em que o princípio com peso relativo maior se sobrepõe ao outro sem que este perca sua validade. Para Alexy os princípios jurídicos consistem apenas em uma espécie de normas jurídicas, por meio da qual são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas. No caso de colisão entre princípios a solução não se resolve com a determinação imediata da prevalência de um princípio sobre o outro, mas é estabelecida em função da ponderação entre os princípios colidentes, em função da qual um deles, em determinadas circunstâncias concretas, recebe a prevalência. Os princípios, portanto, possuem apenas uma dimensão de peso e não determinam as consequências normativas, de forma direta, ao contrário das regras. Segundo Alexy a distinção entre princípios e regras não pode ser baseada no modo tudo ou nada de aplicação proposto por Dworkin, mas deve se resumir, sobretudo, a dois fatores: Diferença quanto a colisão: na medida em que os princípios colidentes apenas tem sua realização normativa limitada reciprocamente, ao contrário das regras, cuja colisão é solucionada com a declaração de invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceção que exclua a antinomia; Diferença quanto à obrigação que instituem: já que as regras instituem obrigações absolutas, não superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios instituem obrigações prima facie, na medida em que podem ser superadas ou derrogadas em função dos outros princípios colidentes (JUDICE, 2011). O Direito Penal Pátrio estabelece na dogmática jurídica consubstanciada no direito positivo vigente e com aplicação no Código Penal Brasileiro as obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada por aquele que incidir naquela hipótese de ocorrência tida na regra. Ao tratarmos das penas alternativas em especial da prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, iremos nos reportar ao Código Penal Brasileiro em seu artigo 46 com redação determinada pela Lei nº 9.714/98, ao qual prevê o tipo legal desta espécie de pena restritiva de direitos. A regra do artigo 46 do Código Penal é aplicável às condenações superiores a 06 meses de privação de liberdade, atendidos os requisitos de substituição à pena privativa de liberdade disposto no artigo 44 do mesmo Instituto Penal. 3 Princípios da razoabilidade e proporcionalidade Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade está sendo aplicado à tona em nosso ordenamento jurídico em todos os julgados e pareceres, tendo na doutrina o fundamento para a caracterização da legalidade de aplicação da lei ao caso concreto, fazendo com que as regras sejam calcadas no bom senso em sua aplicação, fundada nos princípios que norteiam e traduzem a verdadeira e exata aplicação do texto legal. Para a devida fundamentação do princípio da razoabilidade, há que se evidenciar o disposto no artigo 5º, Inciso LIV da Constituição Federal, que reza que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo‑se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:  ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Certo que este inciso o legislador está preservando o devido processo legal para não afrontar com a arbitrariedade tida na aplicação do direito, rogando pela razoabilidade tanto nas decisões como na aplicação da lei ao caso concreto com o devido processo penal, dando a oportunidade do indivíduo valer-se da tutela jusrisdicional na busca de ver seu direito reconhecido e devidamente julgado pela autoridade competente. Há que se considerar que o princípio da razoabilidade não tem previsão legal na Constituição Federal de 1988, no entanto, conforme acima disposto ele encontra-se implícito em nosso ordenamento jurídico em alguns dispositivos, como o próprio inciso LIV que trata do devido processo legal, bem como no inciso XXXIX, que reza que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Àvila (1999) dispõe que o princípio da proporcionalidade vem ganhando guarida no contexto constitucional, no que refere às mais diversas decisões, além de estar presente, impera como a força que está impulsionando a eficácia e aplicação da lei, nos exatos limites do bom senso limitador da arbitrariedade. Historicamente o princípio da proporcionalidade, verificando-se a partir do surgimento do Estado de Direito burguês na Europa, tem ligação com a evolução dos direitos e garantias individuais da pessoa humana. Barros (1996, p. 34), dispondo sobre a origem do princípio da proporcionalidade, leciona que: “Sua origem remonta aos séculos XII e XVIII, quando na Inglaterra surgiram as teorias jusnaturalistas propugnando ter o homem direitos imanentes a sua natureza e anteriores ao aparecimento do Estado, e, por conseguinte, conclamando ter  o soberano o dever de respeitá-los. Pode-se afirmar que é durante a passagem do Estado Absolutista – em que o governante tem poderes ilimitados – para o Estado de Direito, que pela primeira vez emprega-se o princípio da proporcionalidade, visando a limitar o poder de atuação do monarca face aos súditos”. Dentre vários julgados de nossos Tribunais sobre a matéria Àvila cita alguns do STF que decidiu que não se pode por pretensão de terceiro, constranger o pai presumido ao fornecimento de sangue para a pesquisa de DNA, já que a luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, se impõe evitar a afronta à dignidade pessoal que, nas circunstâncias, a sua participação na perícia substantivaria; ao julgar se o fato de a isenção de imposto da competência da União ser parcial implicaria o afastamento das regras pertinentes constantes da constituição anterior, decidiu que conflita com o Texto Maior, com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade nele consagrados, entender-se pelo afastamento da extensão do benefício ao tributo estadual pelo fato de a isenção não ser total; da decisão que declarou inconstitucional a criação de taxa judiciária, de percentual fixo, por considerar que, em alguns casos, seria tão alta que impossibilitaria o exercício de um direito fundamental – obtenção de prestação jurisdicional, além de não ser razoavelmente equivalente ao custo real do serviço. Dentro destes julgados acima dispostos por Àvila (1999) o mesmo tira duas conclusões. Em primeiro lugar demonstra que a exigência de proporcionalidade vem sendo aceita como um dever jurídico-positivo, o que, por sí só, revela a importância de sua explicação e descrição. Em segunda lugar revela que a utilização do dever de proporcionalidade nem sempre possui o mesmo significado, não apenas porque ele é tratado como sinônimo da exigência de razoabilidade, com a qual – como será demonstrado –  não se identifica, mas por que ele ora significa a exigência de racionalidade na decisão judicial, ora a limitação à violação de um direito fundamental, ora a limitação da pena à circunstância agravante ou necessidade de observância das prescrições legais, ora proibição de excesso da lei relativamente ao seu fim e ora é sinônimo de equivalência entre custo do serviço e a relativa taxa.  A sua aplicação como será demosntrado, é muitas vezes correta. Mas mesmo nesses casos, a fundamentação do dito princípio da proporcionalidade não apresenta razões intersubjetivamente controláveis, na medida em que não estabelece de delimitação da realçaõ meio-fim – absolutamente essencial à aplicação da proporcionalidade – , bem como deixa obscuro o seu fundamento de validade. Enfim, a fundamentação das decisões em vez de ser clara e congruente, termina sendo ambígua. No âmbito da Constituição Federal de 1988, o princípio da proporcionalidade é parte integrante juntamente com os demais princípios que integram e fundamentam as regras constitucionais e infra constitucionais, devendo direcionar o magistrado na interpretação e o legislador na criação de normas constitucionais, papel este intransferível e incisivo em “reduzir as desigualdades sociais e regionais”, tendo como um dos principais objetivos do Estado brasileiro, com fulcro no artigo 3o., III, da Constituição Federal de 1988, reza que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. No tocante aos direitos e garantias individuais, e em sede no direito penal o princípio da proporcionalidade guarda, respectivamente, no artigo 5º, incisos V e XLVI caput, o direito de resposta proporcional ao agravo, bem como a garantia da individualização das penas proporcionais ao delito cometido. Já com relação à organização do Estado, âmbito administrativo e erário público, a proporcionalidade encontra-se presente respectivamente nos artigos 36, § 3º, artigo 37, IX e XXI – artigo 40, III, c e d, e artigo 71, VIII, dispondo no caso da organização do Estado nos requisitos necessários na intervenção, no âmbito adminsitrativo prevendo a contratação temporária de funcionários, sempre obedecendo ao critério da necessidade e quanto ao erário público em caso de irregularidade nas contas, aplicando multa proporcional ao dano causado. Ainda quando da atuação do Ministério Público; do Sistema Tributário e da Ordem Econômica, temos a previsão legal respectiva nos artigos 129, inciso II, artigo 150, IV e caput do artigo 170, que tratam respectivamente na atuação do Ministério Público na tomada de medidas necessárias e proporcionais e destinadas a garantir o respeito dos direitos constitucionais pelos Poderes Públicos e serviços de relevância pública; no sistema Tributário proibindo a tributação com efeito de confisco (artigo 150, IV), pois, a carga tributária não pode ser onerosa a ponto de ocasionar ao particular sua perda e na Ordem Econômica nos termos “valorização” e “justiça” imbutida a noção de proporcionalidade. 4 Ponderação na aplicação das penas alternativas – prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas A aplicação da ponderação à prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, além dos princípios e das regras, a fim de que os postulados normativos, a razoabilidade e a proporcionalidade dê ênfase ao processo de interpretação do tipo penal a ser devidamente aplicado, é disposto quando da substituição da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos no artigo 44, Inciso III, do Código Penal, conforme acima disposto, reza que as penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando aplicada pena privativa de liberdade inferior a um ano ou se o crime for culposo, o réu não for reincidente, e a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. Analisados os elementos objetivos e os subjetivos presentes no inciso III em consonância com o artigo 59 que trata das circunstâncias judiciais, a ponderação será incisiva ao ser analisada. Na aplicação da pena restritiva a ser aplicada pelo Juiz, que em sede da prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é disposta no artigo 46, parágrafo 3º do Código Penal dispõe que a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a seis meses de privação da liberdade. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado. A prestação de serviço à comunidade dar‑se‑á em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais. As tarefas a que se refere o § 1o serão atribuídas conforme as aptidões do condenado, devendo ser cumpridas à razão de uma hora de tarefa por dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho. Assim, os postulados situam-se num plano distinto daquele das normas, mas não são nem regras nem princípios, são metanormas, pois estruturam a aplicação das normas e sua violação consistente na não interpretação de acordo com sua estruturação. Àvila (2005, p.81) refere que: “[…] os postulados, de um lado, não impõem a promoção de um fim, mas em vez disso, estruturam a aplicação de dever de promover um fim; de outro, não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem comportamentos”. A sistematização e aplicação em nosso ordenamento jurídico dos princípios e das regras têm hoje na doutrina e na jurisprudência a ampliação do campo do entendimento e discussão que merece ser analisado e interpretado para melhor aplicação da lei ao caso concreto. Conforme disposto por Humberto Àvila (2005, p. 15): “É até mesmo plausível afirmar que a doutrina constitucional vive hoje, a euforia do que se convencionou chamar de Estado Principiológico.” Dado o fato de que a pena restritiva de direitos consistsnte em pretação de serviços à comunidade é a que mais se adequa às reais finalidades da substituição, tendo em vista que, afasta o condenado da prisão e exige dele um esforço a favor da entidade que atua em benefício do interesse público, tornando-o partícipe e colaborador de seus programas e objetivos, a ponderação é incisiva quando da aplicação das hipóteses de penas restritivas de direito, devendo o julgador uma vez analisados os requisitos objetivos e subjetivos do agente, tem em suas modalidades a possibilidade de aplicar a pena que mais convier ao caso concreto. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas aplicada em substituição à pena privativa de liberdade, gera no indivíduo a consciência de cumprimento de sua pena em um estabelecimento público ou privado com fins assistenciais ou congêneres, tendo neste cumprimento o sentimento de reflexão quando do ato praticado e devido ao fato de ser o crime, as circusntâncias objetivas e subjetivas favoráveis, não sendo, por conseguinte, prejudiciais a ordem pública, adequar o julgador com ponderação quando da aplicação da pena, como uma forma alternativa de tentativa de mudança no paradigma dominante tida há tempos na penalização através da prisão, que aos poucos está encontrando nas penas alternativas, situações diversas do cárcere, não deixando se levar pelo retrocesso da pena de prisão, gerando na sociedade a certeza de um sistema falido, que abriga indivíduos que certamente não serão ressocializados e reinseridos ao convívio social. A falta da ponderação na aplicação da lei ao caso concreto retiraria do processo a sua função primordial, qual seja, de sempre ser um caminho a percorrer antes da aplicação da sentença, para transformá-lo num instrumento autônomo de aflição. 5 Princípios Constitucionais São aqueles de suma importância para a garantia da aplicação do direito, assegurando eficácia jurídica em todos os âmbitos de atuação legal, garantindo a defesa da sociedade e com vistas à segurança do Direito Penal Pátrio. Dentre os vários princípios constitucionais imprescindíveis à aplicação e fundamento do direito trataremos dos princípios da legalidade, do devido processo legal e do estado de inocência, a fim de embasar a área de atuação do :Direito Penal à práxis jurídica, remetendo a atuação da dogmática jurídica do Instituto devidamente fundamentado à luz jusfilosófica. Princípio da Legalidade – disposto no Artigo 5º, Inciso II, da Constituição Federal, dispõe que: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. O princípio da legalidade não é restrito apenas ao Direito Penal, mas sim um caráter de todo o Direito, possuindo apenas “no campo penal – em face dos valores fundamentais da pessoa humana postos em disputa pela sanção criminal – o ápice de sua projeção doutrinária, histórica e o cume da relevância dos seus efeitos concretos” (LOPES, 1994. p. 21). Está enquadrado o Princípio da Legalidade Penal no rol de direitos e garantias fundamentais, que, juntamente com outros princípios, expressos e implícitos nesse artigo, formam o conjunto de Princípios Fundamentais de Direito Penal de um Estado Social e Democrático de Direito, pois “têm a função de orientar o legislador ordinário para a adoção de um sistema de controle penal voltado para os direitos humanos, embasado em um Direito Penal da culpabilidade, um Direito Penal mínimo e garantista” (BITENCOURT, 2002. p. 09). Princípio do Devido Processo Legal – O princípio do devido processo legal está expressamente consagrado na Constituição Federal, em seu artigo 5º, Inciso LIV, segundo o qual: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Sua origem remonta am Carta Magna Inglesa, de 1215, em que se estabelecia a garantia de que a aplicação de sanção só poderia ser efetuada de acordo com a lei da terra (by the law of the land). A expressão foi alterada em 1355, quando o rei Eduardo III foi obrigado pelo parlamento a aceitar um estatuto que se referia ao devido processo legal (dues process of law). Tal garantia passou para colônias americanas e, posteriormente, foi incorporada pelo sistema constitucional federal dos Estados Unidos da América em 1971 (V emenda) e em 1987 (XIV emenda). O fim originariamente visado pelo princípio era o da proteção individual, por meio de uma limitação posta ao poder, mas hoje se entende que é uma cláusula aberta, indeterminada, mas não vazia de conteúdo, dela defluindo vários princípios que a jurisprudência, atendendo a sua origem, evolução e finalidade, vai reconhecendo e aplicando aos casos concretos. Como bem observa Bitencourt (2002, p. 59): “Toda lei que não observar determinados critérios de elaboração legislativa, infringindo garantias fundamentais do indivíduo, será considerada inconstitucional por infringência deste princípio superior. Como se percebe, a sua enunciação no texto constitucional não é inútil; pelo contrário, ela tem permitido o florescer de toda uma construção doutrinária e jurisprudencial que tem procurado agasalhar o réu contra toda e qualquer sorte de medidas que o inferiorize ou impeça de fazer valer as suas autênticas razões”. Princípio do Estado de Inocência – O princípio do estado de inocência está previsto no artigo 5º, Inciso LVII, da Constituição Federal, dispondo que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Como conseqüência direta do princípio do devido processo legal, instalou-se na doutrina e nas legislações o denominado princípio da “presunção de inocência”. De acordo com o artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarado culpada, preceito reiterado no artigo 26 da Declaração Americana de Direitos e Deveres, de 2 de maio de 1948, e no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU. De tempos para cá, entretanto, passou-se a questionar tal princípio que, levado às últimas conseqüências, não permitiria qualquer medida coativa contra o acusado, nem mesmo a prisão provisória ou o próprio processo. O que se entende hoje, nos entendimentos de Eugênio Florian (1998, p.335) é que: “existe apenas uma tendência à presunção de inocência”, ou em outras palavras, um estado de inocência, um estado jurídico no qual o acusado é inocente até que seja declarado culpado por uma sentença transitada em julgado. 6 Considerações finais Toda a discussão sobre os princípios e regras leva a vantajosa conclusão de que com a evolução histórica do direito a necessidade de se procurar novos métodos de interpretação, aplicação, fundamentação e eficácia de nossas leis é inconteste, pois, a sociedade clama que justiça seja feita, mas esta justiça é diferente daquela tida no direito romano, em termos práticos, mas exatamente a mesma em sede de termos teóricos no que se refere a eficácia do ordenamento jurídico e do conceito de lei e penalização do ato descrito como crime. A ponderação como instrumento hábil a preencher a lacuna das interpretações e adequações na sistematização legal tida na doutrina penal e processual penal, chegou a tempo de trazer a tona uma série de discussões sobre a real necessidade deste instituto, que corporifica toda a essência atual da modernidade nas decisões e fundamentações sejam por parte dos juristas e aplicadores do direito, como tratando da matéria de maneira clara e com persuasão nos manuais dos doutrinadores e estudiosos do direito. O direito em geral só tem a ganhar com a exploração dos institutos que visam técnicas de valoração e eficácia dos princípios e regras, consolidadas na ponderação e em especial o direito penal e processual penal aqui tratado, terá nova visão da interpretação dos crimes e penas ao caso concreto em que a figura da ponderação quando da fundamentação dos princípios e da aplicação das regras, seja incisiva na construção do direito humanitário por parte do julgador quando da análise do caso concreto, guardando relação sempre com a efetiva e incisiva busca da tão almejada justiça nas decisões e em especial na reinserção social do indivíduo e sua reeducação e recondução à sociedade, sendo-lhe dadas as mesmas oportunidades, buscando realizar seus anseios e aspirações em afronta às presentes e desmerecedoras desigualdades sociais e humanas tidas em nosso ordenamento jurídico penal.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-90/ponderacao-na-aplicacao-das-penas-alternativas-como-paradigma-emergente-do-sistema-prisional-brasileiro/
Conceitos fundamentais para o estudo das prisões enquanto elemento padrão do direito penal e processual penal
O presente trabalho tem como objetivo discutir as prisões enquanto elemento punitivo principal, do atual Ordenamento Jurídico. As prisões substituíram a punição baseada na restituição de danos diretamente no corpo dos indivíduos, o que é derivado da matriz liberal. Como o corpo ascendeu à condição principal de trabalho, a flagelação deste, impediria o uso do corpo no mercado de trabalho, excluindo as liberdades e garantias fundamentais.
Direito Processual Penal
1. Introdução O presente artigo busca discutir as prisões. Para tanto, o tema de pesquisa é apresentado de modo mais geral, no primeiro item. Dessa forma, são apresentados conceitos relevantes acerca das prisões, em um primeiro momento. São discutidas as dimensões de cunho socio-filosófico, enquanto elementos de apoio da tese da ascensão das prisões, que suportam o seu uso jurídico. Em um segundo momento, discute-se a prisão de cunho penal. O foco são as espécies de prisões atualmente admitidas, bem como as alterações dos últimos anos, por conta da reforma do processo penal. Tudo isso se encaixa, de forma a possibilitar uma discussão ampla sobre o tema, não delimitada exclusivamente por elementos jurídicos, vez que estes não são suficientes para suportar a amplitude da discussão teórica. Essa discussão busca apresentar o maior número de elementos jurídicos, que se somam aos argumentos e noções sociológicas e históricas, permitindo um tratamento do tema que privilegia a sua explicação. Isso é feito com vistas a apresentar elementos relevantes, que não têm sido privilegiados pelos pesquisadores da área. 2. Notas Históricas e Sociais Acerca das Prisões No presente item, as prisões são discutidas de modo mais geral. Analisa-se seu sentido e seu uso atual. Tomam-se por base alguns elementos históricos e sociológicos. Eles são necessários para que se possa entender as origens e “fases” da utilização das prisões enquanto elementos punitivos. Ao mesmo tempo, auxiliam na explicação do seu uso como pena-padrão no atual estágio de desenvolvimento humano, em uma sociedade capitalista. Tais definições permitem refletir acerca do estágio atual destas, bem como as implicações de alguns pensamentos acerca de sua função. Nota-se, no entanto, que a maioria dos autores jurídicos que se propõem a escrever sobre esse tema, não realiza uma discussão ampla. Por outro lado, os sociólogos e psicólogos não discutem as prisões por meio de conceitos jurídicos. Em todos os casos, o tema é tratado sem a necessária interação, minorando o espaço real de aproximação com o tema. Iniciando com uma definição bem básica, tem-se, segundo posição enciclopédica, que  “Prisão, s. f. o ato de prender alguém, de o privar da liberdade; apreensão, captura de uma pessoa […]”[1]. Outra definição, expressa que “Prisão. Do latim “prehension, onis = ação de segurar, agarrar com a mão, do verbo “pre(ae)hendere. É a privação da liberdade, em recinto confinado, resultante da aplicação de uma pena.”[2] Tais definições, embora não sejam jurídicas, expressam a ideia de que a prisão representa o cerceamento à liberdade. Embora inteligentes, elas não expõem que a prisão ascende enquanto elemento de uma ideia de formação social tipicamente liberal. Isso é notável, uma vez que para Montesquieu “A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder.”[3] Portanto, a imposição de um óbice a esta é, na realidade, um óbice ao conceito de liberdade e, nesses termos, é elemento fundamental para a vida em sociedade. Observando-se as palavras de Michel Foucault, quando analisa o papel das prisões, pode-se notar que elas possuem um sentido que equaliza seus efeitos, uma vez que “Como não seria a prisão a pena por excelência numa sociedade em que a liberdade é um bem que pertence a todos da mesma maneira e ao qual cada um está ligado por um sentimento universal e constante. Sua perda tem, portanto, o mesmo preço para todos;”[4] Conforme concebido por tal autor, a prisão afasta o dilema das classes, comuns nas interpretações marxistas de sociedade. Além disso, a liberdade é um elemento tão relevante, que todo indivíduo a possui, independentemente de qualquer outra condição. Assim sendo, para Foucault, ela é uma condição comum, que deve ser a única determinante das punições dos indivíduos que cometem infrações e geram danos a outrem. Apenas após as revoluções liberais as prisões passaram a ser vistas como elemento padrão de sanção. Isso é o que se observa das palavras de Roberto Lyra, para quem “A princípio, a prisão destinava-se a animais. Não se distinguia, porém, entre irracionais e racionais “inferiores”. Prendiam-se homens pelos pés, pelas mãos, pelo pescoço etc., conforme o medo ou a cólera. Homens e animais foram amarrados, acorrentados, calcetados, grilhetados, manietados etc. Das nascentes zoológicas é que vem o uso de “prender”, da canga às algemas. O número crescente de presos foi pretexto para murá-los e ainda emparedá-los, engradá-los, aferrolhá-los, sem prejuízo dos guardas e soldados armados como para a guerra. Cavernas, naturais ou não, subterrâneos, túmulos, fossas, torres, tudo servia para prender. Prendia-se para não deixar fugir ou para obrigar a trabalhar.”[5] Apesar das menções do Gênesis bíblico às prisões, os primeiros “depósitos de presos” surgiram apenas no séc. XVII a. C.. Eles serviam para a custódia dos escravos que pertenciam aos homens livres egípcios. Porém, apenas no séc. VI a C. é que as prisões passaram a ser utilizadas ostensivamente. Isso ocorria quando “[…] os lavradores eram requisitados para construir as obras públicas e cultivar as terras do faraó, proprietário de toda a terra do Egito e toda a riqueza, repousava no trabalho dos lavradores. Quem não conseguisse pagar os impostos ao faraó, em troca de construção de obras de irrigação e armazenamento de cereais, se tornava escravo. Assim como no Egito, a Grécia, a Pérsia, a Babilônia, o ato de encarcerar, tinha como finalidade conter, manter sob custódia e tortura os que cometiam faltas, ou praticavam o que para a antiga civilização, fosse considerado delito ou crime.”[6] As prisões não surgiram naturalmente, nas sociedades. Inicialmente, os conflitos sociais eram resolvidos, conforme Antônio Cintra, Ada Grinover, Candido Dinamarco[7], por meio da autotutela, da autocomposição e da arbitragem. Isso demonstra que “[…] a antiguidade desconheceu totalmente a privação de liberdade estritamente considerada como sanção penal. Embora seja inegável que o encarceramento de delinqüentes existiu desde tempos imemoráveis.”[8] Inicialmente, a prisão era só um ambiente de transição ou espera do destino final. A pena possuía caráter físico e era infligida diretamente no corpo do condenado, conforme indica Elizabeth Misciasci[9]. A partir do momento no qual o Estado ascendeu, uma nova lógica surgiu. Dessa forma, as suas punições, considerando-se as suas origens liberais, pararam de envolver a punição corporal e a perda de membros ou a morte. “[…] isso ocorre uma vez que a satisfação momentânea e imediata, produzida no âmbito da vingança privada é suprimida. Impende referir que essa supressão ocorre em três momentos temporais: passado (no qual os fatos são desligados da prestação jurisdicional), presente (no qual a vingança privada é suprimida) e futuro (no qual o violador pode ser perdoado). De todo modo, em qualquer dos âmbitos temporais que se analise, a intervenção estatal, através do processo, revela a introdução de uma nova lógica na operacionalização da solução dos conflitos.”[10] Tal visão, porém, só se tornou possível pela revisão do conceito de restituição do direito violado. Se no modelo pré-estatal, a satisfação do dano só seria atingida pela punição corporal, com o Estado surgiram novos valores. A vendetta, originada da Lex Tallionis, foi substituída pela lógica liberal da prisão, como informam Aguiar e Duarte[11]. Interessante é notar que, enquanto a flagelação e a amputação deixavam efeitos permanentes, a pena de prisão reflete uma medida temporária. Há restituição, uma vez que “Retirando tempo do condenado, a prisão parece traduzir concretamente a idéia de que a infração lesou, mais além da vítima, a sociedade inteira. Obviedade economico­moral de uma penalidade que contabiliza os castigos em dias, em meses, em anos e estabelece equivalências quantitativas delitos­duracão.”[12] Uma vez que o dimensionamento das penas é feito por intermédio da lei, esta possui um sentido dúplice: ela delimita um comportamento esperado do cidadão, ao mesmo tempo em que reforça o poder do Estado. Para que este possa manter seu controle sobre a população, “[…] necessita de um direito cujo funcionamento seja previsível de forma semelhante ao de uma máquina”[13], o que só é possível por força de um direito positivado. Para Cesare Beccaria, a produção de lei não é racional, como se poderia pensar. Desse modo, “Percorramos a história e constataremos que as leis, que deveriam constituir convenções estabelecidas livremente entre homens livres, quase sempre não foram mais do que instrumento das paixões da minoria, ou fruto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana, que tenha sabido orientar todas as ações da sociedade com esta finalidade única: todo o bem-estar possível para a maioria.”[14] Considerando-se essa perspectiva, o Estado se apresenta como instrumento que possibilita a dominação. É por força dele que uma classe prevalece sobre a outra, tomando-se por base a doutrina marxista. Lênin, levando em consideração tal percepção, reflete que “A idéia fundamental do papel do marxismo sobre o papel histórico e a significação do Estado. O Estado é o produto e a manifestação do fato que as contradições de classes são inconciliáveis. O Estado surgiu aí no momento e na medida em que, objetivamente, as contradições de classes não podiam ser conciliadas. E inversamente: a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis.”[15] O Estado funcionaria, conforme essa concepção, como um mecanismo classista de contenção das posições e anseios. A ação estatal serviria como uma condição de possibilidade para o controle, considerando-se a estrutura de normas contidas no Ordenamento Jurídico. E elas suportariam um processo continuado de limitação de liberdades, idealização e valorização dos conceitos de propriedade e exploração, que são entendidos como negativos. Além disso, deve-se ter em conta também o papel desempenhado pela Igreja. Ela foi determinante para a adoção do conceito de prisão como elemento de constrição e punição. As prisões teriam surgido nos mosteiros da Idade Média e concretizariam uma “[…] punição imposta aos monges ou clérigos faltosos, fazendo com que se recolhessem às suas celas para se dedicarem, em silêncio, à meditação e se arrependerem da falta cometida, reconciliando-se com Deus.”[16] Segundo essa concepção o objetivo principal das prisões era o reconhecimento dos comportamentos negativos, com vistas ao arrependimento. Para Georg Rusche e Otto Kirchheimer, “[…] penitência e perdão representavam a readmissão na comunidade, que era tanto uma morada espiritual quanto um lugar de trabalho”[17]. Isso demonstra que se objetivava com o encarceramento a reintegração em um momento futuro. Antes dessa função, porém, a prisão “[…] foi firmemente utilizada com cunho meramente processual, ou seja, era onde os acusados aguardavam por outra qualidade de punição, que não o cárcere, que viria com a condenação.”[18], sendo esta um local de “depósito” temporário de corpos. Para Montesquieu, as prisões representam a afirmação de uma lógica de cunho econômico, portanto, elas seriam um instrumento racional. Na sua concepção, elas estariam entre as boas práticas do passado, sendo que “Os germanos, nossos antepassados, apenas admitiam castigos pecuniários. Esses homens belicosos e livres consideravam que seu sangue apenas podia ser vertido em combate.”[19] Ao mesmo tempo, sustenta que a riqueza de alguns poderia gerar uma punição inadequada, o que afetaria o sentimento de contrição. Uma sociedade evoluída, na concepção daquele autor, optaria por uma punição de cunho moral, em lugar de uma punição física. Analisando-se a história da França, pode-se perceber que essa concepção não foi observada quando da vigência do “Sistema dos Três Estados”. Segundo a lógica desse sistema, bastante criticado por Sieyès[20], “[…] certos castigos eram descartados para certos estados (clero e nobreza) e substituídos por outros, ou eram aplicados com modificações para membros dos estados superiores”[21]. Isso fazia com que o cidadão, que pertencia ao Terceiro Estado, percebesse que, embora houvesse punições mais brandas, a única punição admitida ao “Terceiro Estado”, pela sua condição, seria o castigo corporal. Um tratamento similar, no caso americano, é demonstrado por Loïc Wacquant, segundo o qual, “[…] a prisão é portanto um domínio no qual os negros gozam de fato de uma promoção diferencial”[22], dada a sua condição étnica e social. Isso demonstra, com razão, que o sistema prisional “[…] tornou­se, portanto, progressivamente restrito a uma minoria da população”[23], o que apenas reproduz as regras de um sistema de desigualdades. Não é surpreendente que esse sistema, como sustenta Wacquant, estigmatize e reinsira no seu corpus os mesmos indivíduos. Acerca da estigmatização, pode-se referir que “A estigmatização daqueles que têm maus antecedentes morais pode, nitidamente, funcionar como um meio de controle social formal; a estigmatização de membros de certos grupos raciais, religiosos ou étnicos tem funcionado, aparentemente, como um meio de afastar essas minorias.”[24] Por meio dessa lógica, impede-se a reintegração social, cumprida a pena, uma vez que o estigma de ter passado pela prisão permanece. E, muitas vezes, ele se torna o próprio impedimento para a reintegração. Mesmo que a punição tenha passado a ser baseada no encarceramento, inicialmente “[…] não havia qualquer tipo de preocupação com os presos, aos quais não se destinavam cuidados básicos com saúde e alimentação – que eram providenciados pelos familiares ou por religiosos”[25]. O Estado não fornecida condições para a efetivação dos direitos mais básicos do indivíduo. Nesse sentido, elas funcionavam como meros depósitos, que não primam pelo reconhecimento dos direitos mínimos do encarcerado. Inegável é que os “castigos” impostos aos clérigos no medievo foram fundamentais para a “[…] instituição da pena celular, visto que, a igreja não aplicava penas de tortura ou de morte, ainda buscava por meio deste tipo de punição o arrependimento e a salvação pelo isolamento.”[26] Essa forma de contenção de corpos foi tão determinante que substituiu o uso de celas gerais, que foram utilizadas, até mesmo na Revolução Francesa. Esse novo modelo, “[…] inspirou a construção da primeira prisão destinada ao recolhimento de criminosos, a House of Correction, construída em Londres entre 1550 e 1552, difundindo-se de modo marcante no Século XVIII. Porém, a privação da liberdade, como pena, no Direito leigo, iniciou-se na Holanda, a partir do século XVI, quando em 1595 foi construído Rasphuis de Amsterdã.”[27] Como dito, inicialmente, a “[…] prisão era uma espécie de ante­sala de suplícios”[28], porém, passou a ser utilizada pelo Estado liberal. E, dada as influências europeias, tornou-se a punição padrão admitida pelo Estado brasileiro. No âmbito do presente artigo, tal discussão se amplia, com o discussão acerca das prisões de cunho penal. 3. A Prisão Penal Surge Apenas Com Uma Sentença? No presente item contemplam-se as prisões penais admitidas no Ordenamento Jurídico. Busca-se observar a prisão-pena e a prisão processual e suas divisões. De plano, importante é especificar que o Direito Penal seleciona “[…] os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los com infrações penais, cominando-lhes, em conseqüência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais, necessárias à sua correta e justa aplicação.”[29] Acerca de tais definições, a Constituição informa, referindo-se às prisões, que “LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;”[30]. Trata-se de uma prerrogativa importante, uma vez que a prisão limita uma garantia fundamental à liberdade, o que pressupõe a correção de um veredicto que determine a sua perda. Outra proteção constitucional é que “XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;”[31]. Sendo todos os julgamentos realizados de modo imparcial, nos termos da lei. Essa é uma questão relevante, pois “XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;”[32] e “LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”[33]. Tais previsões suportam e informam o texto do Código Penal, quando este dispõe que “Anterioridade da Lei Art. 1º. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. Lei penal no tempo Art. 2º. Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”[34] Essa reprodução busca oferecer ao cidadão que é processado uma série de garantias e liberdades invioláveis. Esses artigos representam a “[…] função garantidora do primado da liberdade porque, a partir do momento em que somente se pune alguém pela prática de crime previamente definido em lei, os membros da coletividade passam a ficar protegidos contra qualquer invasão arbitrária do Estado em seu direito de liberdade.”[35] Consoante informa Celso Delmanto, é clarividente que é na lei que se encontram as definições[36]. Apenas a lei determina o comportamento considerado criminoso, estipulando o quantum de pena, caso ocorra um crime. Se a lei esvaziar a pena de um comportamento antes tipificado, tal regra retroagirá, refletindo a ideia de que “XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;”[37]. Considerando-se essas definições, deve-se partir para a questão das prisões. As mais relevantes são a Prisão-Pena e a Prisão Processual. Pensando sobre a primeira, Marcellus Polastri Lima expõe que ela “[…] resulta da condenação transitada em julgado, conforme previsto no Código Penal e na Lei das Execuções Penais […]”[38]. Ela surge a partir de uma condenação criminal definitiva. Idêntica posição é expressa por Capez, para quem “[…] trata-se da privação da liberdade determinada com a finalidade de executar decisão judicial, após o devido processo legal, na qual se determinou o cumprimento de pena privativa de liberdade. Não tem finalidade acautelatória, nem natureza processual. Trata-se de medida penal destinada à satisfação da pretensão executória do Estado”.[39] Tratando-se da Prisão Processual, Julian Lopez Masle observa que é um conjunto de “[…] medidas restritivas ou privativas de liberdade pessoal que pode o juiz adotar contra o imputado no processo penal, com o objetivo de assegurar a realização dos fins penais do procedimento”[40]. É uma prisão “[…] imposta com finalidade cautelar, destinada a assegurar o bom desempenho da investigação criminal, do processo penal ou da execução da pena, ou ainda para impedir que, solto, o sujeito continue praticando delitos.”[41] Além destes, há também a Prisão em Flagrante, definida nos termos do art. 301, do Código de Processo Penal: “Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.”[42] O vocábulo “flagrante” vem do latim flagare, que significa queimar. Flagrante é tudo aquilo que está ocorrendo no exato momento em que se lhe descobre. Ela possui “[…] natureza cautelar e processual, consistente na prisão, independente de ordem escrita do juiz competente, de quem é surpreendido cometendo, ou logo após ter cometido, um crime ou contravenção.”[43] Uma definição nesses termos é suportada pelo texto do art. 302, CPP: “Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem: I – está cometendo a infração penal; II – acaba de cometê-la; III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração”.[44] Conforme o que disciplina José Barcelos Souza, nos casos de flagrante, “[…] a desnecessidade de ordem escrita é para capturar, para dar voz de prisão; para conduzir o infrator penal, encontrado em flagrante delito, à presença da autoridade competente para a lavratura de auto de prisão.”[45] E isso pode ser feito pelo cidadão, facultativamente, ou pela polícia, obrigatoriamente. De todo modo, essa prisão possui caráter excepcional, nos termos do § 2º do art. 282, com redação estabelecida pela Lei 11.403/2011, segundo o qual, “§ 2o As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. Por sua vez, “Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.”[46] Ela garante a eficácia de um provimento futuro, como expressa Capez[47], garantindo a manutenção da Ordem Social. No que se refere à prisão preventiva decretada na pronúncia, a antiga “Prisão por Pronúncia”, regulada nos termos do art. 408, caput e parágrafo 1º, do CPP: “Art. 408. Se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento. § 1o Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo legal em cuja sanção julgar incurso o réu, recomendá-lo-á na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para sua captura.”[48] Houve alteração significativa, promovida pela Lei 11.689/2008. Seu novo teor é expresso no art. 413, caput e § 3o, CPP: “Art. 413. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. […] § 3o O juiz decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação ou substituição da prisão ou medida restritiva de liberdade anteriormente decretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas previstas no Título IX do Livro I deste Código.”[49] Como informa Lima, “[…] sua natureza é de prisão preventiva, só que decretada no momento da pronúncia […]”[50]. De toda sorte, trata-se de uma prisão que modifica a situação do réu, mandando ser recolhido, ou alterando seu caráter. Persistiu durante muito tempo uma celeuma jurídica acerca do conteúdo do art. 594, segundo o qual, “Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se á prisão, ou prestar fiança, salvo se condenado por crime de que se livre solto.”[51] Tratava-se de uma prisão […] coerente com o sistema do Código, uma vez que o então art. 393, I determinava ser efeito da condenação ser o réu preso ou se dar a conservação do mesmo na prisão, sendo que o art. 597 dizia que a apelação não suspenderia esse efeito.” Além disso, ela era suportada pela Súmula 9 do STJ, segundo a qual “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência.”[52] No entanto, tal artigo foi revogado. Há que se notar, no entanto, que a ideia envolvida nessa prisão não foi abandonada, considerando-se os termos do parágrafo único do art. 387. Segundo este, “Parágrafo único. O juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta”[53]. O que, no fim das contas, demonstra a manutenção da celeuma. Deve-se mencionar ainda a Prisão Temporária, estabelecida na Lei 7.960/1989. Conforme o art. 1º dessa lei, “Art. 1°. Caberá prisão temporária: I – quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; II – quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; III – quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2°); b) seqüestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ 1° e 2°); c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°); d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1° e 2°); e) extorsão mediante seqüestro (art. 159, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°); f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único); i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1°); j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285); l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal; m) genocídio (arts. 1°, 2° e 3° da Lei n. 2.889, de 1° de outubro de 1956), em qualquer de sua formas típicas; n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n. 6.368, de 21 de outubro de 1976); o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n. 7.492, de 16 de junho de 1986).”[54] O art. 2º da mesma lei expressa o prazo dessa prisão: “Art 2°. A prisão temporária será decretada pelo Juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, e terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.[55] Além disso, “§ 5° – A prisão somente poderá ser executada depois da expedição de mandado judicial.”[56]. Não sendo respeitada tal garantia, essa prisão encerraria mera arbitrariedade da instrução policial, transformando-se em “prisão para averiguação”, o que não é admitido pela lei. 4. Considerações Finais Segundo a discussão temática realizada, fica evidente que a punição se baseava, inicialmente, na punição corporal. Seu quantum era estabelecido de modo autônomo pelos próprios envolvidos. Quando o Estado passou a dominar o processamento de indivíduos, ascendeu a ideia da prisão. Porém, ela não era considerada como elemento punitivo. Tratava-se de mero instrumento para a consolidação da pena a ser estabelecida. A ascensão da doutrina liberal alterou o papel das prisões. Nesse sentido, ela se consolidou como uma forma de punir sem flagelar, uma vez que essa rotina impediria o uso do corpo para o trabalho. Além disso, a mutilação poderia estigmatizar o indivíduo, impedindo a sua reintegração na sociedade. No que se refere ao âmbito penal, deve-se reconhecer que há duas distintas previsões acerca da prisão. Há aquelas prisões que se referem a uma Pena. Ela consolida o esforço punitivo do Estado e resultam da prolação de uma Sentença Condenatória Transitada em Julgado. Há também as prisões cautelares, que representam uma medida assecuratória da Ordem na Sociedade, assegurando o cumprimento da pena, bem como a Instrução Policial. Resta claro que, com a evolução da sociedade e de seus meios de repressão de comportamentos negativos, as prisões se tornaram uma opção. As prisões são, atualmente, elementos jurídicos decisivos para a punição de comportamentos considerados criminosos e que impedem a continuidade do regular desenvolvimento das relações sociais.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-90/conceitos-fundamentais-para-o-estudo-das-prisoes-enquanto-elemento-padrao-do-direito-penal-e-processual-penal/
Em busca de um conceito funcionalista de ordem pública no processo penal brasileiro
O presente artigo é resultado da pesquisa que se iniciou com a definição conceito de ordem pública no processo penal brasileiro, tal como proposto pela doutrina tradicional. Após análise crítica de tais definições, propôs-se um conceito de ordem pública fundamentado marco teórico referente ao funcionalismo sistêmico, da teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann, levando-se em consideração a ponderação dos princípios envolvidos. [1]
Direito Processual Penal
Introdução O termo ordem pública, previsto no art. 312 do decreto-lei 3689/41, como objeto de garantia através da decretação de prisão preventiva, nas hipóteses do artigo subseqüente do referido diploma legal, encontra certa oscilação de sua definição no meio acadêmico, mormente a contemporânea necessidade de respeito ao ordenamento constitucional, por parte da legislação inferior a este. Nesse particular, cabe destacar o princípio do respeito ao estado de inocência do perseguido, que perdura até transito em julgado de sentença condenatória, nos temos do art. 5, inciso LVII, da Constituição da República e art. 8 do Decreto nº 678, que promulga a Convenção Americana de Direitos Humanos, que agora, em tese, goza de status constitucional, conforme art. 5, §2º, da Carta Maior. No presente trabalho, percorreremos a obra atual de autores processualistas, no sentido de buscar um conceito crítico de ordem pública, que atenda aos preceitos constitucionais, e que possibilite a lícita decretação de prisão preventiva, objetivo principal da perquirição de tal conceito. Após, analisamos de forma crítica possibilidades de sua aplicação prática e em seguida, buscamos defini-lo conforme alguns estudos da sociologia contemporânea. Definição do conceito de ordem pública Inicialmente, cumpre destacar que a lei processual penal brasileira não apresenta qualquer significado para o termo. Por outro lado, na literatura constatamos que diversos autores formularam conceitos para a expressão em comento. Assim, encontramos, v.g., em TOURINHO FILHO (1999), o conceito de ordem pública como a paz, a tranqüilidade no meio social, conceito este também adotado por TÁVORA (2009). Ambos autores não explicam de forma suficiente tal conceito, se limitando a dizer em quais casos, por exemplo, estaria tal ordem periclitada, como nos casos em que o agente estiver cometendo novas infrações penais, sem que se consiga surpreendê-lo em flagrante delito, estiver fazendo apologia ou incitando ao crime, ou se reunindo em quadrilha ou bando. (TOURINHO FILHO, 1999). TÁVORA (2009) observa a necessidade de fixação de tal conceito a partir da periculosidade do agente, no risco de que, ele solto, continue delinqüindo, o que não pode ser simplesmente deduzido de sua folha de antecedentes criminais. Na mesma esteira prossegue MIRABETE (2000), que relaciona ordem pública às providências de segurança necessárias para evitar que o delinqüente pratique novos crimes, por ser acentuadamente propenso às práticas delituosas, ou porque, em liberdade, encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida, além de acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão. No dicionário de Silva (2002) “Ordem Pública entende-se a situação e o estado de legalidade normal, em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protestos” Os cientistas políticos BOBBIO, MANTTEUCCI e PASQUINO (1998:851), por exemplo, asseveram que a definição de ordem pública é utilizada: “como sinônimo de convivência ordenada, segura, pacífica e equilibrada, isto é, normal e conveniente aos princípios gerais de ordem desejados pelas opções de base que disciplinam a dinâmica de um ordenamento. Nessa hipótese, ordem pública constitui objeto de regulamentação pública para fins de tutela preventiva, contextual e sucessiva ou repressiva (…). Com a variação da inspiração ideológica e dos princípios orientadores (democráticos ou autocráticos, por exemplo), cada ordenamento dará uma disciplina própria (ampla ou restrita) das hipóteses de intervenção normativa e de administração direta tendentes a salvaguardar a ordem pública.” Desta forma, analisando a obra dos autores citados, parece que, há um certo acordo, no qual é corrente o entendimento da noção de ordem pública como paz social, vulnerada pelo risco ponderável da repetição da ação delituosa objeto de apuração via processo judicial, associada a possível clamor público operado pela prática de crime relativamente grave. Crítica aos usos e abusos do conceito de ordem pública A garantia da ordem pública tem sido utilizada no Brasil para justificar a prisão dos mais diversificados casos, existindo correntes jurisprudenciais que a vinculam, por exemplo, ao perigo de reiteração criminosa, à gravidade do crime cometido, à credibilidade do Poder Judiciário, à repercussão social (clamor público) provocado pelo delito, e até mesmo à necessidade de salvaguardar a integridade física do réu, dentre tantas outras hipóteses. Assim, poderíamos pensar que os doutrinadores e o Poder Judiciário, longe de estabelecerem um critério seguro para o referido conceito, fizessem exatamente o contrário, abrigando naquele conceito as mais variadas situações, de forma abusiva, em virtude de uma suposta lassidão de sua previsão legal. Por exemplo, há severas críticas à necessidade de garantia da ordem pública como quando identificado perigo de reiteração criminosa, mesmo quando de forma efetiva se visualiza tal risco, conforme será demonstrado. LOPES JR. (2006:214) critica com veemência essa corrente de pensamento. Ironiza dizendo que se trata de exercício de “vidência por parte dos julgadores, que até onde temos conhecimento ainda não possuem um periculosômentro (diria ZAFFARONI) à disposição”. DUCLERC (2008:354) aduz que, no caso, há a instituição de uma “perigosa presunção de culpa”, por parte dos juízes, “não autorizada pela Constituição Federal”. Ou seja, na visão deste último autor, o princípio constitucional da presunção de inocência estaria, em situações como a presente, sendo corrompido pelos julgadores, instituindo-se verdadeira presunção de culpa em relação ao acusado. Por outro lado, há também severas críticas à constitucionalidade da interpretação da garantia da ordem pública como sendo a necessidade de atuação estatal quando a pratica de um delito gera clamor público, manifestado em determinada repercussão social negativa de proporções maiores que a reação causada por crimes da mesma ou até de outra natureza. Assim, DUCLERC (2008:355) critica a decretação da preventiva com base no argumento relativo à repercussão social provocada pelo delito, nos seguintes termos: “os que se apresentam como portadores do dito clamor público, são, quase sempre, órgãos de imprensa pouco escrupulosos, que descobriram o filão da notícia sangrenta, interessados apenas em aumentar os pontos de audiência e auferir lucros à custa da desgraça de acusados e vítima”. Assim, o autor não vislumbra, a partir ddo clamor público, qualquer critério válido determinante para reconhecer a repercussão social de um crime.        OLIVEIRA (2004) informa que a expressão garantia da ordem pública pode prestar-se a justificar um perigo­so controle da vida social, no ponto em se arrima na noção de ordem, e pública, sem qualquer referência ao que seja efe­tivamente a desordem, indicando que há ainda entendimentos no sentido de se aferir o risco à ordem pública a partir da gravidade do crime praticado, a reclamar uma providência imediata por parte das autorida­des, até mesmo para evitar o mencionado sentimento de intranqüilidade coletiva que pode ocorrer em tais situações. Porém, o referido autor assevera: “Mas o argumento, quase incontornável, contrário a se­melhante modalidade de prisão é no sentido de que estaria violado o princípio da inocência, já que, quer se pretenda fun­damentar a preventiva para garantia da ordem pública em ra­zão do risco de novas infrações penais, quer se sustente a sua justificação em razão da intranqüilidade causada pelo crime (aqui, acrescido de sua gravidade), de uma maneira ou de ou­tra, estar-se-ia partindo de uma antecipação de culpabilidade. Como se vê, a questão é bastante complexa.” (OLIVEIRA, 2004:521) Dessa forma, em tese, poderíamos identificar inconstitucionalidade na decretação da prisão preventiva para a garantia da ordem pública: (1) quando identificamos risco de repetição delituosa, porque tal identificação é faticamente impossível, (2) quando sua necessidade nasce do clamor social exacerbado causado pelo crime e (3) quando for decretada levando-se em consideração unicamente a gravidade em abstrato do delito praticado pelo agente. Assim indaga-se: é possível estabelecer um uso constitucional de tal conceito, que respeite o estado de inocência e ainda assim proteja a sociedade? Solução do problema: A virtude da ponderação De acordo com ÁVILA (2005:37), Dworkin preceitua que em caso de colisão entre regras, deve-se escolher somente uma delas a ser aplicada em determinada situação fática que ensejou o referido conflito, excluindo-se as demais, o que não ocorre no caso em análise. Já em relação aos princípios, estes comportam a aplicação simultânea de mais  de um deles em situações concretas em que colidem, dando-se apenas maior relevância a um deles em relação ao outro. Tal procedimento de decisão se chama ponderação e somente é possível porque os princípios podem ser sopesados, são flexíveis, não são mandamentos herméticos, tais como as regras. A aplicação de quaisquer princípios deve, no caso concreto, se fazer através da ponderação com outros princípios, que representam outros valores, também referentes ao caso. Segundo OLIVEIRA (2004), sempre excepcionalmen­te, o princípio do estado de inocência haverá de ser flexibi­lizado, quando em risco valores constitucionais igualmente relevantes. Quando for identificado que determinado agente expõe efetivamente a risco determinados valores presentes na Constituição, consubstanciados em bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal, tais como a vida, a integridade física e a incolumidade pública, faz-se necessária a decretação de tal modalidade de prisão provisória. Nesses termos, OLIVEIRA ensina que: “Não estamos nos referindo à segurança pública como mera abstração, ou como valor a ser sopesado sem critérios empíricos, mas à sua necessária concretização, diante de hipóteses excepcionalíssimas.” (2004:521) Cabe ressaltar que aqui não ocorrerá o que Aury Lopes Jr., em manifesto exagero de linguagem que lhe é peculiar, denominou de “vidência por parte dos julgadores”, mas sim, numa análise atual, concreta, do risco que a liberdade do agente representa para a sociedade, e não do dano social que causaria se voltasse a delinqüir. Não se trata de tentar prever o futuro, mas sim de, no presente, definir o quanto de perigo a liberdade de um indivíduo representa para a sociedade. Dano e perigo são conceitos distintos e que requerem meios distintos de valoração, que pode ser lícita e constitucional. Na valoração do risco, processo eminentemente sociológico, no caso em questão, faz-se necessário um juízo de probabilidade, e não de certeza, em determinado momento, conforme será demonstrado. Na contemporaneidade, os riscos deixam de ser apenas mais dados periféricos em qualquer análise socialmente relevante e passam a ser o centro das atenções (BOTTINI, 2007:35), pois se converteram em uma das principais forças de mobilização política substituindo, muitas vezes, por exemplo, as referências às tensões oriundas das desigualdades de classes, raça ou gênero (BECK, 2002:7). O sociólogo alemão Ulrich Beck assim o conceitua: “Riesgo es el enfoque moderno de previsión y control de las consecuencias futuras de la acción humana, las diversas consecuencias no deseadas de la modernización radicalizada. Es un intento (institucionalizado) de colonizar el futuro, un mapa cognitivo. Toda sociedad, por supuesto, ha experimentado peligros. Pero el régimen de riesgo es una función de un orden nuevo: no es nacional, sino global”. (BECK, 2002:5) Quanto maior o grau de complexidade da sociedade, maior a possibilidade de defraudação de expectativas normativas institucionalizadas (ou violação de bens jurídicos), e mais difícil é a resposta eficiente do sistema social a tais frustrações. Observa Luhmann que , “desde un punto de vista secular, el cálculo del riesgo trata de un programa de minimización del arrepentimiento” (LUHMANN, 1996:133), arrependimento este relacionado à falta de precaução tomada no procedimento de gerência de riscos e de danos futuros. Partindo do pressuposto de que os riscos são inerentes ao funcionamento do sistema social, e que o elevado grau de materialização desses riscos, em relação à violação de expectativas normativas, essenciais à convivência em sociedade, pode comprometer o funcionamento do sistema social, a temática relacionada à seleção, pelo sistema social, dos riscos toleráveis se torna também central. Acerca da questão, Luhmann demonstra que: “La pregunta relevante a este respecto se ocupa de saber quién o qué decide si (y en qué horizontes objetivos y temporales) un riesgo en tanto tal ha de ser considerado o no. A las ya conocidas discusiones sobre el cálculo, percepción, valoración, y aceptación del riesgo, se suma ahora la problemática sobre la selección de riesgos, problemática que no trata sobre la causalidad, sino sobre la posibilidad de que los factores sociales puedan dirigir el citado proceso de selección”. (LUHMANN, 1996:126) Nesse contexto, observamos que o sistema social capta nos processos comunicativos da sociedade informações acerca dos riscos que esta tem como toleráveis ou não, institucionalizando tais informações como expectativas da criação de normas. Assim, podemos perceber que, para o sistema social, há riscos aceitáveis, geralmente relacionados à baixa lesividade das condutas que os representam, tais como os riscos inerentes ao tráfego aéreo e terrestre, ou até mesmo os riscos de uma guerra, quando estiver voltada à necessidade de manutenção de certa comunidade. Podemos perceber também que, por outro lado, há riscos inaceitáveis, que são aqueles cujas condutas que representam atacam a vigência das mais basilares expectativas normativas, tais como os relativos ao controle de armamento nuclear. Nessa ordem de idéias, vislumbramos também serem inaceitáveis os riscos referentes à liberdade daqueles que não apresentam predisposição individual à adequação ao modelo social no qual estão inseridos, referente ao respeito às expectativas normativas institucionalizadas (ou respeito aos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal), observado quando vislumbrado com certo grau de determinação, que tais indivíduos estão propensos à prática de novos crimes. A esse respeito, informa Luhmann: “Esta tradición racionalista basa la comprensión del problema en que los daños se deben evitar en lo posible. Esto limita de forma considerable posibilidades de acción, por ello hay que admitir y “arriesgar” acciones, que pueden desencadenar, según el cálculo de probabilidad, daños evitables. Todavía hoy los riesgos se indagan a través de la magnitud y de las probabilidades del daño. Con otras palabras, se trata de una extensión controlada de la esfera de la acción racional”. (LUHMANN, 1996:135) Assim, podemos definir um esquema de observação da realidade no qual se pode, em princípio, calcular todas as decisões sob o ponto de vista da probabilidade de ocorrência do dano consistente no risco ao funcionamento do sistema social (ou risco de lesão a bens jurídico-penais), objetivando evitar os referidos danos. Consoante tal modelo, podemos também diferenciar os riscos toleráveis, condizentes com determinado sistema social e coerentemente justificáveis, dos riscos intoleráveis, que representam maior custo do que benefício ao funcionamento do sistema social e à vida em sociedade. OLIVEIRA (2004) ilustra com precisão um caso que há efetivo risco apresentado por um agente, inaceitável à sociedade e suficientemente apto a justificar a segregação provisória, porque sua liberdade representa maior risco de violação de direitos fundamentais (ou de turbação no funcionamento do sistema social), que sua prisão representaria à violação do princípio do respeito ao estado de inocência: “Com efeito, haverá, como já houve, situações em que a gravidade do crime praticado, revelada não só pela pena abs­tratamente cominada ao tipo, mas também pelos meios de execução, quando presentes a barbárie e o desprezo pelo va­lor ou bem jurídico atingido, esteja a reclamar uma providên­cia imediata do poder público, sob pena de se pôr em risco até mesmo a legitimidade do exercício da jurisdição penal. Mui­tas vezes, ou melhor, na maioria destes crimes, o seu autor assume a autoria do crime, e nem sempre em situação que se possa identificar, de pronto, o risco de tortura na obtenção da confissão. É claro que em tema tão complexo e explosivo todo cuidado é realmente pouco. Mas não é por isso que a autori­dade judicial deve recusar, peremptoriamente, qualquer pos­sibilidade de decretação de prisão para garantia de ordem pública. Fosse assim, mesmo após confessar a prática de vá­rios homicídios, apontando, inclusive, onde estariam enter­rados os corpos, não se poderia impor a prisão de um agora nacionalmente conhecido motoboy, à época residente na cidade de São Paulo, com endereço certo e no exercício de atividade lícita.” (OLIVEIRA, 2004:522) Sabemos que no marco do Estado Democrático de Direito não existem normas, princípios, valores ou direitos absolutos, o que permite a convergência excepcional de dois princípios em seu âmbito (respeito ao estado de inocência e proteção da ordem pública e dos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal Constitucional), proporcionalmente adequada a um tipo determinado de situação, a um tipo especial de necessidade de regulação social. Não acreditamos ser compatível com tal marco as doutrinas que se apóiam no argumento da existência de direitos e princípios absolutos, que não comportam flexibilização ou ponderação alguma, como se fossem dogmas, em franco descompasso com as necessidades sociais no ambiente no qual estão inseridas, com o princípio da razoabilidade e com a hermenêutica contemporânea. Na obra de Luis Roberto Barroso, encontramos: “A ponderação de valores, interesses, bens ou normas consiste em uma técnica de decisão jurídica utilizável nos casos difíceis, que envolvem a aplicação de princípios (ou, excepcionalmente, de regras) que se encontram em linha de colisão, apontando soluções diversas e contraditórias para a questão. O raciocínio ponderativo, que ainda busca parâmetros de objetividade, inclui a seleção de normas e de fatos relevantes, com a atribuição de pesos aos diversos elementos em disputa, em um mecanismo de concessões recíprocas que procura preservar, na maior intensidade possível, os valores contrapostos”. (BARROSO, 2006:376) Assim, podemos concluir, após um exame de ponderação de e razoabilidade entre estado de inocência e segurança publica, ambos valores de matiz constitucional, que há ordem pública, consubstanciada na paz social, na qual os direitos fundamentais da sociedade são resguardados, quando o ocorre o correto funcionamento do sistema social, e ela é colocada em risco, e a prisão pre­ventiva para sua garantia deve ocorrer, na hipótese de prática de crimes relativamente graves, quer quanto à pena, quer quanto aos meios de execução utilizados, quando seja possível constatar uma situação de certa potencial intranqüi­lidade coletiva no seio da comunidade em relação ao crime perpetrado ou em relação à liberdade do agente. Nessa análise, a existência de outros inqu­éritos policiais e de ações penais propostas contra o réu, ou indiciado, pela prática de outros delitos poderá, junto com os demais elementos concretos, tais como o modus operandi, autorizar um juízo de necessidade da cautela provisória.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-90/em-busca-de-um-conceito-funcionalista-de-ordem-publica-no-processo-penal-brasileiro/
A extradição e o princípio de não-devolução (non-refoulement) no direito internacional dos refugiados
Resumo:O presente artigo tem como objetivo realizar um estudo do princípio de não devolução (non-refoulement) previsto no Direito Internacional dos Refugiados e uma das consequências trazidas por ele que é a impossibilidade de extradição dos refugiados. O trabalho apresentará a discussão acerca do aparente conflito em que os Estados se encontram diante uma solicitação de extradição de uma pessoa reconhecida como refugiada ou de um solicitante de refúgio para concluir que a proteção da pessoa humana deve prevalecer sobre tratados de extradição.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo realizar um estudo do princípio internacional de não devolução (non-refoulement) previsto na Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e no respectivo Protocolo de 1967, ratificados pelo Brasil, que determina a impossibilidade de extradição do refugiado como meio para impedir que essas pessoas sejam devolvidas para países onde suas vidas ou liberdade estejam sendo ameaçadas. Por um lado, o instituto da extradição apresenta-se como um instrumento de cooperação internacional que visa impedir a impunidade assegurando que criminosos fugitivos prestem contas perante a justiça. Os Estados obrigam-se, através de acordos bilaterais ou multilaterais de extradição ou de instrumentos internacionais ou regionais, a extraditar, isto é, a entregar um indivíduo a um outro Estado que tenha jurisdição criminal para processá-lo, julgá-lo ou aplicar-lhe uma sanção penal. Por outro lado, o Direito Internacional dos Refugiados, com fundamento no seu princípio de não devolução, tem como escopo garantir proteção à pessoa humana impedindo que elas sejam perseguidas e sofram outros tipos de violações aos seus direitos humanos. Este princípio é considerado parte do direito consuetudinário internacional e, sendo assim, vincula todos os Estados, incluindo aqueles que ainda não sejam parte da Convenção de 1951 ou do Protocolo de 1967.  O presente artigo analisará em conjunto os conceitos de extradição e refúgio e as obrigações internacionais assumidas pelos Estados em tratados de extradição, na Convenção de 1951 e em outros instrumentos internacionais de proteção da pessoa humana, para verificar como os Estados deverão se posicionar diante de casos de pedidos de extradição de pessoas reconhecidas como refugiadas ou de solicitantes de refúgio: cumprir as obrigações assumidas em tratados de extradição ou cumprir as obrigações estabelecidas no Direito Internacional dos Refugiados e no Direito Internacional dos Direitos Humanos? O trabalho desenvolvido será baseado em um estudo dogmático do tema, através do método dedutivo, observando e interpretando as normas de direito interno (Constituição Federal de 1988 e Lei 9.474/97), bem como a legislação internacional através da interpretação da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e do respectivo Protocolo de 1967. Será desenvolvida também uma metodologia teórica/filosófica partindo do estudo bibliográfico de doutrinas buscando apreender e desenvolver o que os teóricos do direito dizem a respeito do tema em questão. E, por fim, o trabalho realizará uma análise sociológica, pragmática/realista do tema ao realizar uma discussão acerca do caso Cesare Battisti. O estudo do caso concreto tem como objetivo aprofundar mais a temática e verificar como o Brasil vem se posicionando nessas questões. Nos dois primeiros capítulos será analisado o conceito de extradição, a sua evolução histórica, os princípios aplicáveis a este instituto e os requisitos necessários para a sua concessão. O terceiro capítulo apresentará o conceito de refúgio e a sua importância como instrumento de proteção da pessoa humana. O quarto e o quinto capítulo apresentarão a discussão acerca do conflito em que os Estados se encontram diante uma solicitação de extradição de uma pessoa reconhecida como refugiada e a forma como os Estados devem se posicionar nestas situações. Por fim, o sexto capítulo ambientará a discussão no cenário nacional e apresentará a lei nacional de proteção ao refúgio e as garantias conferidas pelo Brasil aos refugiados e solicitantes de refúgio no tocante à proteção contra a sua devolução. O sétimo capítulo aprofundará o estudo sobre a extradição e o princípio de não devolução aplicado no Brasil através da apresentação do caso concreto ‘Cesare Battisti’ e da análise das implicações jurídicas surgidas no decorrer do processo de extradição do italiano. 2. A EXTRADIÇÃO: DEFINIÇÃO, EVOLUÇÃO HISTÓRICA, PRINCÍPIOS E CLASSIFICAÇÃO O estudo da extradição está situado no campo do Direito Penal relacionado com o Direito Internacional Público – esta relação denomina-se Direito Penal Internacional. O Direito Penal Internacional tem como objetivo regulamentar no âmbito interno os problemas penais ocorridos na esfera internacional[1]. O instituto da extradição pode ser definido como o ato pelo qual um Estado entrega um indivíduo a outro Estado para julgá-lo e puni-lo, por crime pelo qual está sendo processado ou já foi condenado[2]. Nesse sentido é a definição dada pelo professor Alberto Jorge Correia de Barros Lima[3]: “Extradição é um instrumento jurídico, através do qual, um Estado (requerido) soberanamente entrega à justiça criminal de outro Estado (requerente) uma pessoa, porquanto este último tem jurisdição para processá-lo e julgá-lo (extradição processual) ou aplicar-lhe uma sanção penal (extradição executiva).” A extradição não se caracteriza como uma pena, mas como uma medida de cooperação internacional na repressão ao crime, que visa à boa administração da justiça penal[4]. O instituto da extradição já existia na prática internacional da Antiguidade Oriental em Israel e no Egito[5]. Naquela época, todavia, a extradição apresentava características diferentes das atuais: era prevista a extradição do criminoso político e não do criminoso comum e a extradição era considerada um fenômeno esporádico que geralmente encontrava aplicação nos pós-guerras[6]. O desenvolvimento da extradição ocorre a partir das ideias de respeito à soberania dos Estados estrangeiros e com a abolição do direito de caça que permitia a um Estado prender um criminoso dentro do território estrangeiro[7]. A extradição foi praticada no mundo grego em relação aos criminosos que tivessem cometido delitos graves[8] e também entre os romanos que, apesar de não respeitarem a soberania dos Estados estrangeiros, praticavam a extradição através do Tribunal dos “recuperatores”, órgão que tinha como função decidir sobre a entrega ou não de um indivíduo[9].  Os povos germânicos, por outro lado, não aplicaram a extradição uma vez que, diante do poder universal do Império, a extradição desapareceu, pois estes povos não conheciam fronteiras para a perseguição dos criminosos; o Estado perseguia os criminosos até encontrá-los, ainda que para isso fosse necessário ir além dos seus limites enquanto Estado[10]. Durante a Idade Moderna a extradição reaparece, mas não apresenta ainda as suas características definitivas. Com o surgimento do absolutismo os tratados de extradição dessa época apresentavam dois objetivos: a defesa dos regimes e a entrega de criminosos militares como forma de evitar as deserções, abandonos de posto e insubordinações[11].  É somente no século XIX, quando da realização do Tratado de Paz de Amiens firmado entre França, Espanha e Inglaterra, em 1802, que o termo extradição é propriamente consagrado e o instituto da extradição passa a se constituir com as suas características definitivas[12]. No referido tratado não há mais menção dos criminosos políticos como passíveis de serem extraditados; este entendimento é posteriormente consagrado de forma definitiva na Lei belga de extradição de 1833[13]. A concessão da extradição nos moldes atuais baseia-se na busca pela justiça, entendimento de que nenhum criminoso deverá ficar impune, e no princípio da solidariedade que deve reger as relações entre os Estados no plano internacional, principalmente no tocante ao dever de cooperação na repressão à criminalidade[14]. Outros princípios que regem a extradição visam dar maior proteção ao extraditando: o princípio da especialidade que tem como objetivo impedir que o extraditando seja detido ou processado por fato anterior diverso daquele pelo qual a extradição foi concedida[15], ou que lhe seja aplicada pena outra, diversa (mais grave) do que a estabelecida quando da concessão da extradição; e o princípio da identidade o qual define que não se dará a extradição quando no Estado requerido não se considerar crime os fatos que fundamentam o pedido de extradição[16].   O dever de extradição, levando em consideração o conceito de soberania, surge apenas através de tratados e convenções firmados entre os Estados[17], porém é possível que na falta de um tratado ou convenção um Estado conceda a extradição por meio de uma declaração de reciprocidade, através da qual o Estado requerente irá se comprometer a garantir a reciprocidade quando solicitado em um caso semelhante[18]. A extradição pode ser classificada em extradição ativa em relação ao Estado que a reclama ou extradição passiva em relação ao Estado que a concede; e em extradição voluntária quando há anuência do extraditando ou extradição imposta quando há oposição do extraditando[19]. A extradição pode também ser classificada como instrutória, quando o pedido de extradição é formulado com o objetivo de submeter o individuo a processo criminal; ou executória, quando o pedido de extradição é formulado a fim de obrigar o indivíduo a cumprir a pena a que foi condenado[20]. Outro conceito importante é o de reextradição. A reextradição ocorre quando o Estado que obteve a extradição (requerente) torna-se requerido por um terceiro Estado, que solicita a entrega da pessoa extraditada[21]. A reextradição, todavia, só poderá ser concedida caso o primeiro Estado que concedeu a extradição confira autorização[22]. Importante ainda destacar que a extradição não se confunde com os institutos de deportação e expulsão. A deportação consiste na saída compulsória do estrangeiro quando este entra ou permanece irregularmente no território brasileiro (artigo 58, Lei 6.815/80). A deportação, diferente da extradição, não decorre da prática de ato ilícito criminal, mas do não cumprimento dos requisitos para entrar ou permanecer no território, quando o estrangeiro não se retirar voluntariamente no prazo determinado[23]. A competência para o procedimento é da Superintendência da Polícia Federal . Já a expulsão é considerada um modo coativo de retirar o estrangeiro do território nacional por delito, infração ou atos que o tornem inconveniente[24]. É passível de expulsão o estrangeiro que possui o visto em vigor, mas pratica crime contra a segurança nacional, ou contra a ordem política, ou social, a tranqüilidade ou a moralidade pública e a economia popular, ou torna-se nocivo aos interesses nacionais, bem como inconveniente[25]. A expulsão é medida administrativa da competência do Presidente da República. 3. REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DE EXTRADIÇÃO A questão da extradição no Brasil está disciplinada na Constituição, artigo 102, I, “g”, que confere ao Supremo Tribunal Federal competência para processá-la e julgá-la; no Estatuto do Estrangeiro, Lei n. 6.815/1980, em seu título IX; no Regimento Interno do Supremo Tribunal e no Decreto-Lei n. 394 de 28 de abril de 1938 que regulamenta a extradição ativa.  A viabilidade da concessão da extradição poderá ser verificada a partir da análise de requisitos negativos, os quais determinam os casos em que não será concedida extradição.  Nesse sentido, o art. 77 do Estatuto do Estrangeiro determina que: “Art. 77 – Não se concederá a extradição quando: I. Se tratar de brasileiro, salvo se a aquisição dessa nacionalidade verificar-se após o fato que motivar o pedido; II. O fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente; III. O Brasil for competente, segundo suas leis, para julgar o crime imputado ao extraditando; IV. A lei brasileira impuser ao crime a pena de prisão igual ou inferior a 1 (um) ano; V. O extraditando estiver a responder a processo ou já houver sido condenado ou absolvido no Brasil pelo mesmo fato em que se fundar o pedido; VI. Estiver extinta a punibilidade pela prescrição segundo a lei brasileira ou a do Estado requerente; VII. O fato constituir crime político; e VIII. O extraditando houver de responder, no Estado requerente, perante Tribunal ou Juízo de exceção”. A impossibilidade de extradição de nacional (art. 77, I) está também prevista na Constituição Federal, no seu artigo 5º, LI que determina que “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”. Tal proteção dá-se principalmente devido ao fato de que o Estado tem a obrigação de proteger os seus nacionais[26]. Os brasileiros naturalizados também recebem esta proteção, salvo nos casos em que os motivos que ensejam a extradição são crimes cometidos antes da naturalização ou o comprovado envolvimento no tráfico ilegal de drogas (neste último caso independe se o crime foi praticado antes ou após a naturalização, sempre caberá a extradição). Outras razões são apresentadas para fundamentar a impossibilidade de extradição de nacionais como, por exemplo, o direito do nacional de habitar no seu próprio Estado; a dificuldade de defesa em tribunais estrangeiros e a falta de imparcialidade da justiça estrangeira[27]. A não extradição do nacional não pode, todavia, servir para deixar impunes pessoas que praticam crimes, devendo os seus Estados de origem comprometer-se a julgá-los em seus territórios[28].   O inciso II do artigo 77 trata do já mencionado princípio da identidade ou princípio da dupla tipificação que determina que, para que a extradição seja concedida, o fato que motiva o pedido deve ser considerado crime tanto pela legislação do Estado requerente, quanto pela legislação do Estado requerido. Ademais, para a concessão da extradição o crime praticado deve ser considerado um crime grave, pois não se concederá extradição para delitos de pouca gravidade e contravenções penais[29] (77, IV); também não será concedida a extradição se o crime estiver prescrito segundo a lei de qualquer dos países envolvidos (77, VI) e o Estado requerente deverá demonstrar competência sobre o caso e que irá julgá-lo pelo juiz natural e não por tribunais constituídos ex post fctum (77, VIII). Concorrendo a jurisdição brasileira e a estrangeira para processar e julgar o criminoso, a jurisdição nacional afastará a alienígena. Sendo assim, não se concederá a extradição, pois ninguém deverá ser julgado e punido duas vezes pelo mesmo fato (princípio do ne bis in idem) (77, III). Da mesma forma, com fundamento no princípio do ne bis in idem, o Brasil não concede a extradição daquele que aqui esteja sendo processado ou que já tenha sido condenado ou absolvido pelo mesmo fato em que se fundamentou o pedido de extradição (77, V). A garantia de não extradição pela prática de crime político (77, VII) tem previsão constitucional. O artigo 5, LIII da Constituição de 1988, de forma mais abrangente, determina que não será concedida a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião. Ressaltando a proteção de estrangeiros que cometeram em seus países crimes políticos, sendo a eles garantindo o direito a não extradição, assinala o professor Alberto Jorge:[30] “A lógica da extradição é a ajuda mútua entre os Estados no combate aos crimes havidos como reprováveis em qualquer parte, enquanto o raciocínio para o asilo reside, ao revés, na proteção de determinadas pessoas (v.g. dissidentes políticos) acusadas de cometimento de ilícitos cuja natureza é estritamente política-ideológica.”  O delito de opinião é aquele que, através da palavra escrita ou falada, representa abuso na liberdade de manifestação do pensamento[31]. O crime político caracteriza-se pelo objetivo de atingir a segurança interna ou externa do Estado; tais crimes não ensejam a extradição dos seus agentes levando em conta dois critérios: o critério objetivo analisa se o crime foi praticado contra a ordem política estatal e o critério subjetivo observa a finalidade do delito, ou seja, se foi praticado com uma finalidade política[32]. Todavia, quando na verdade há prática de atos terroristas como atentados contra a vida de um chefe de Estado ou Governo estrangeiro ou contra membros de sua família, crimes de guerra, crimes contra a paz e a segurança da humanidade, o Supremo poderá deixar de considerá-los como crimes políticos e, assim, os autores de tais crimes ficarão sujeitos à extradição[33]. Para os casos em que o crime constitui, simultaneamente, infração comum e política, o § 1° do artigo 77 do Estatuto do Estrangeiro adotou o critério da preponderância que determina que a extradição será concedida quando o fato constituir principalmente delito comum, ou quando o crime comum, conexo ao delito político, constituir o fato principal[34]. O artigo 78 do Estatuto do Estrangeiro prevê ainda outras condições para a concessão da extradição: o cometimento de crime sujeito à jurisdição do Estado estrangeiro (inciso I) e a existência de sentença condenatória definitiva ou ordem de prisão emitida pela autoridade competente estrangeira (inciso II). Verificada a possibilidade de extradição (ausência dos requisitos negativos do artigo 77 supracitado), o art. 91 do Estatuto do Estrangeiro determina ainda que não será efetuada a entrega do extraditando sem que o Estado requerente assuma os seguintes compromissos: de não ser o extraditando preso nem processado por fatos anteriores ao pedido (princípio da especialidade); de computar o tempo de prisão que, no Brasil, foi imposta por força da extradição; de comutar em pena privativa de liberdade, a pena corporal ou de morte[35]; de não ser o extraditando entregue, sem consentimento do Brasil, a outro Estado que o reclame e de não considerar qualquer motivo político para agravar a pena. O procedimento de extradição passiva no Brasil pode ser dividido em três fases: a primeira fase é administrativa, sob a responsabilidade do Poder Executivo; a segunda é judiciária, na qual o Suprem Tribunal Federal examinará a legalidade, a procedência e regularidade do pedido, não adentrando no mérito da questão, nos termos do art. 102, inciso I, alínea g da Constituição Federal[36] e do art. 207 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal[37]; e a terceira fase é novamente administrativa, na qual o governo procede à entrega do extraditando ao país requerente ou comunica a sua negativa. Negada a solicitação de extradição pelo STF, o extraditando será posto em liberdade e o Poder Executivo comunicará o resultado ao Estado requerente. Neste caso, fica o Presidente da República impedido de extraditar, ainda que entenda a medida conveniente, sob pena de desrespeitar o comando constitucional que atribui ao Supremo a competência para julgar o pedido de extradição. Com o deferimento da extradição pelo Supremo, a doutrina divide-se entre os que entendem que a existência de um tratado biliteral de extradição obriga o Estado brasileiro a entregar o extraditando não podendo o Presidente da República decidir de maneira diversa, tendo em vista o compromisso assumido; e os que entendem que cabe ao Poder Executivo decidir sobre a extradição ou não de um indivíduo podendo recusar, de acordo com o seu juízo de conveniência e oportunidade, mesmo quando o STF tenha declarado a legalidade e procedência do pedido. 4. O INSTITUTO JURÍDICO DO REFÚGIO[38] Desde o início do século XX a questão dos refugiados tornou-se uma preocupação da comunidade internacional, porém a efetiva proteção dos refugiados surge apenas com a Sociedade das Nações. Durante a Primeira Guerra Mundial surgem os primeiros problemas de movimentos massivos e a necessidade de a comunidade internacional definir a condição jurídica dos refugiados e realizar atividades de socorro, bem como organizar assentamentos e a questão da repatriação; mas, foi durante a Segunda Guerra Mundial que o problema dos refugiados tomou grandes proporções com o descolamento de milhões de pessoas por várias partes do mundo[39]. Em 1951, com a função de garantir proteção internacional aos refugiados, é criado, no âmbito do Secretariado da Organização das Nações Unidas (ONU), o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR): instituição apolítica, humanitária e social. Foi construído ainda na ONU o Fundo de Emergência das Nações Unidas para os refugiados e instituído o ano do refugiado (de junho de 1959 a junho de 1960) com o intuito de chamar atenção da opinião pública mundial para essa questão[40].   Diante dos efeitos devastadores gerados no mundo, decorrentes da Segunda Guerra Mundial, a ONU elaborou uma Convenção para regular a situação jurídica dos refugiados. A Convenção foi aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 28 de julho de 1951 e sua vigência teve início em 21 de abril de 1954. A Convenção, todavia, estava limitada no tempo, pois só era aplicada para os refugiados que tinham essa condição decorrente dos acontecimentos ocorridos antes de 1 de janeiro de 1951, ou seja, para tratar das situações decorrentes do pós Segunda Guerra Mundial. A Convenção apresentava ainda uma reserva geográfica, pois concedia aos signatários a faculdade de aplicá-la apenas às situações dos refugiados no continente Europeu[41].  Com o passar do tempo e diante do aparecimento de novas situações de refugiados no mundo, surgiu a necessidade de ampliar as disposições da Convenção de 1951.  O Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 ampliou o conceito de refugiados no tocante ao limite temporal e geográfico: permitiu que os dispositivos da Convenção pudessem ser aplicados aos refugiados sem considerar a data limite de 1 janeiro de 1951 e para os casos de refugiados em todo o mundo e não mais apenas no continente europeu[42]. O refugiado é definido no artigo 1A (2) da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiado de 1951 como a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país em que residia como resultado daqueles eventos, não pode ou, em razão daqueles temores, não quer regressar ao mesmo. A Convenção de 1951 apresenta ainda cláusulas de exclusão e cessação da condição de refugiado. As cláusulas de exclusão do refúgio, uma vez verificadas qualquer um delas, obstará a concessão do status de refugiado; neste sentido é o artigo 1º, D, E, F da referida Convenção[43]: 1D – Esta Convenção não será aplicável as pessoas que  atualmente se beneficiam de uma proteção ou assistência da parte de um  organismo  ou instituição das Nações Unidas que não o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados); 1E  – Esta Convenção não será aplicável a uma pessoa considerada pelas autoridades competentes do país no qual esta pessoa instalou sua residência como tendo os direitos e obrigações inerentes a nacionalidade de tal país; 1F – As disposições desta Convenção não serão aplicáveis às pessoas a respeito das quais  houver razões sérias para pensar que: a) Elas cometeram um crime contra a paz, crime de guerra ou crime contra a humanidade, no sentido dos instrumentos internacionais elaborados para prever tais crimes. b) Elas cometeram um crime grave de direito comum fora do país de refúgio antes de serem nele admitidas como refugiados. c) Elas se tornaram culpadas de atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas.” Já nas cláusulas de cessação são enunciadas as situações em que a condição de refugiado previamente conferida não é mais necessária pelo fato de que a pessoa passou novamente a contar com a proteção de seu Estado de origem e/ou residência habitual. As cláusulas de cessação baseiam-se no princípio de que a proteção internacional não deve ser mantida quando deixe de ser necessária ou não mais se justifique[44]. Tais cláusulas estão previstas no artigo 1º, C  da Convenção de 1951: “(C) Esta Convenção cessará, nos casos abaixo, de ser aplicável a qualquer pessoa compreendida nos termos da seção A, acima: 1. Se ela voltou a valer-se da proteção do país de que é nacional;   2. Se havendo perdido a nacionalidade, ela a recuperou voluntariamente; 3. Se adquiriu nova nacionalidade e goza da proteção do país cuja nacionalidade adquiriu; 4. Se se estabeleceu de novo, voluntariamente, no país que abandonou ou fora do qual permaneceu por medo de ser perseguida; 5. Se, por terem deixado de existir as circunstâncias em conseqüência das quais foi reconhecida como refugiada, ela não pode mais continuar a recusar valer-se da proteção do país de que é nacional; 6. Tratando-se de pessoa que não tem nacionalidade, se, por terem deixado de existir as circunstâncias em conseqüência das quais foi reconhecida como refugiada, ela está em condições de voltar ao país no qual tinha a sua residência habitual.” Ao verificar que a pessoa preenche os requisitos necessários para ser reconhecida como refugiada e a inexistência de cláusulas de exclusão do refúgio, o Estado de acolhida obriga-se a proteger os direitos, a garantir um refúgio seguro e a tratar com dignidade a pessoa do refugiado. Dentre os direitos garantidos à pessoa do refugiado faz-se necessário destacar o direito fundamental de não ser devolvido ao país em que sua vida ou liberdade esteja sendo ameaçada. Tal direito constitui um princípio geral do direito internacional de proteção dos refugiados e dos direitos humanos, princípio do non-refoulement (não devolução) devendo, portanto, ser reconhecido como um princípio do jus cogens (norma imperativa de direito internacional geral[45]. 5. A EXTRADIÇÃO E O PRINCÍPIO DE NÃO-DEVOLUÇÃO (NON-REFOULEMENT) NO DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS O Direito Internacional dos Refugiados visa garantir aos refugiados, que são pessoas que se encontram em situação bastante vulnerável, proteção internacional da sua segurança, vida e liberdade. Um dos princípios mais importantes que fundamentam a proteção internacional dos refugiados é o princípio da não devolução (non-refoulement[46]); tal princípio encontra-se previsto no artigo 33 (1) da Convenção de 1951: “1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçados em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas. (grifos)” O principio do non-refoulement no Direito Internacional dos Refugiados surge, diante da insegurança humanitária que ameaça a vida dos refugiados, como um instrumento que garante proteção contra a devolução dessas pessoas para o país onde sofrem a perseguição que originou a sua condição de refugiado ou a qualquer outro país onde sua vida ou liberdade estejam sendo ameaçadas. O principio do non-refoulement é indispensável à ideia de proteção internacional dos refugiados; tal princípio é considerado a pedra angular do regime internacional de proteção dos refugiados[47], ou seja, a ausência deste princípio torna o objetivo de proteção internacional dos refugiados ineficiente. Nesse sentido José Francisco Sieber Luz Filho[48]: “Trata-se de princípio inerente à proteção internacional do refugiado, compreendido pela doutrina como o pilar de sua aplicabilidade. Na ausência do princípio a proteção internacional resta vazia e ineficiente (…) A eficácia do princípio do non-refoulement é conditio sine qua non para a efetiva proteção internacional, esta última função primordial do direito internacional dos refugiados.” O princípio da não devolução é fundamental e não é possível ser derrogado. O princípio também é considerado parte do direito consuetudinário internacional e, sendo assim, vincula todos os Estados, incluindo aqueles que ainda não sejam parte da Convenção de 1951 ou do Protocolo de 1967[49]. No contexto do Direito Internacional dos Refugiados o termo non-refoulement representa o gênero que abrange todas as espécies de institutos jurídicos que visam à saída compulsória do estrangeiro do território nacional (deportação, expulsão e extradição), mas, para fins do presente artigo, apenas será aprofundada a questão da extradição.  Diante de uma solicitação de extradição de uma pessoa reconhecida como refugiada ou de um solicitante de refúgio, é provável que o Estado requerido encontre-se em um conflito de deveres: de um lado a obrigação de extradição que pode estar prevista em um acordo bilateral ou multilateral de extradição ou em instrumentos internacionais ou regionais que determinam a obrigação de extraditar ou processar; por outro lado, o Estado requerido deve cumprir as obrigações estabelecidas no Direito Internacional dos Refugiados e no Direito Internacional dos Direitos Humanos de não extradição de um refugiado ou solicitante de refúgio. Levando em consideração a natureza das obrigações previstas pelo Direito Internacional dos Refugiados e Direitos Humanos (proteção da pessoa humana) e a posição de prevalência hierárquica dessas obrigações na ordem jurídica internacional (artigo 103 c/c artigos 55 (c) e 56 da Carta das Nações Unidas[50]), é evidente que a proibição de entrega de um refugiado prevalece sobre qualquer obrigação de extradição independente da existência de disposições específicas para o seu efeito no tratado que estabelece uma obrigação de extraditar[51]. O instituto da extradição é um instituto de cooperação judiciária entre Estados, por outro lado, o instituto de refúgio é um instituto de proteção à vida humana; não havendo, portanto, grau de comparação para equiparar os dois institutos. Trata-se da aplicação do princípio da norma mais favorável, ou seja, em se tratando da afirmação da dignidade humana, prevalecerá a norma que melhor proteja o ser humano. 5.1 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DE NÃO DEVOLUÇÃO DOS REFUGIADOS A proteção conferida pelo artigo 33 (1) da Convenção de 1951 aplica-se a qualquer pessoa que seja considerada refugiada nos termos da referida Convenção. Sendo assim, qualquer pessoa que preencha os requisitos da definição de refugiado previstos no artigo 1A (2) da Convenção de 1951 e desde que não se encontre dentro do âmbito de nenhuma das cláusulas de exclusão (artigo 1º, D, E, F da Convenção de 1951), receberá a proteção contra a extradição.    Importante destacar que o princípio da não devolução aplica-se não somente ao refugiado já devidamente reconhecido, mas também ao solicitante de refúgio enquanto pendente a análise da solicitação, inclusive durante a etapa de apelação[52]. A proteção dada pelo princípio do non-refoulement está garantida desde o momento da solicitação do refúgio, durante o momento da decisão do órgão competente ao reconhecimento da referida condição e apenas cessa na hipótese de a decisão pelo reconhecimento do status de refugiado ser inferida ou quando tal condição já adquirida cesse por qualquer outra causa legalmente prevista. A determinação do status de refugiado tem natureza declaratória, isto quer dizer que a pessoa não se torna um refugiado por causa do reconhecimento, mas é reconhecido porque é um refugiado.  Sendo assim, ainda que o indivíduo não tenha sido formalmente reconhecido como refugiado (por exemplo, no caso dos que estão com as suas solicitações pendentes de análise ou ainda nas situações em que o interessado encontra-se em um Estado que não seja parte da Convenção de 1951 ou do Protocolo de 1967; ou um Estado que não estabeleceu um procedimento formal para a determinação do estatuto de refugiado; ou o Estado permite que o refugiado lá resida, mas não fornece a documentação formal do seu reconhecimento como refugiado; ou ainda o próprio indivíduo pode não ter feito um pedido formal para ser reconhecido como refugiado) ele estará protegida pelo princípio de não devolução[53]. O princípio de não-devolução tem aplicação não apenas com relação ao país de origem de um refugiado, mas também em qualquer outro país onde o refugiado tem um temor fundado de perseguição relacionado com um ou mais dos motivos estipulados no artigo 1A (2) da Convenção de 1951, ou quando existe a probabilidade de que a pessoa possa ser enviada a um país onde corra risco de perseguição vinculado a algum dos motivos da Convenção[54]. Nesse sentido, quando existe um requerimento de extradição de um refugiado ou solicitante de refúgio feito por um país diferente do seu país de origem, o Estado requerido deverá assegurar que a extradição não irá colocar o refugiado ou o solicitante em nenhum risco de perseguição, tortura ou sofrimento irreparável naquele país e que o refugiado/solicitante não ficará exposto a uma posterior expulsão para o seu país de origem ou para um terceiro país em que exista tal risco[55]. Ademais, importante ressaltar que a condição de refugiado determinada por um Estado tem efeito extraterritorial, pelo menos com relação a outros Estados Parte da Convenção de 1951: no caso da existência de um pedido de extradição de um refugiado, assim reconhecido por outro país diferente do Estado requerido, a extradição deverá ser negada em virtude do princípio da não devolução. A condição de refugiado determinada por um Estado Parte apenas poderá ser questionada por outro Estado Parte em casos excepcionais, quando restar evidente que a pessoa não reúne os requisitos necessário estabelecidos pela Convenção de 1951[56]. 5.2 EXCEÇÕES AO PRINCÍPIO DE NÃO-DEVOLUÇÃO O Direito Internacional dos Refugiados permite, todavia, exceções ao princípio de não-devolução. Estas exceções ocorrem unicamente nas circunstâncias previstas pelo artigo 33 (2) da Convenção de 1951: “Art. 33 (2): O benefício da presente disposição não poderá ser, todavia, invocado por um refugiado que por motivos sérios seja considerado um perigo para a segurança do país no qual ele se encontre ou que, tendo sido condenado definitivamente por crime ou delito particularmente grave, constitui ameaça para a comunidade do referido país. (grifos).” A decisão de não aplicação do princípio de não devolução do refugiado deverá ser tomada com muito cuidado pelo Estado de refúgio, mediante procedimento que contemple as salvaguardas adequadas, sob pena de atentar contra um direito fundamental da pessoa humana previsto em tratados internacionais e colocar essas pessoas em situação de risco[57]. Dentre as salvaguardas procedimentais que devem ser observadas, o ACNUR prevê, como mínimo, as elencadas no artigo 32 (2) e (3) da Convenção de 1951 que dizem respeito à expulsão dos refugiados: o direito a ser escutado, o direito ao recurso de apelação, bem como o direito que se permita um prazo razoável para programar sua admissão legal em outro país. “A expulsão do refugiado só é admitida em hipótese de “segurança nacional ou ordem pública”, sendo-lhe facultado o direito de se defender e tempo suficiente para encontrar outro país que queira abrigá-lo, proibida terminantemente a expulsão ou a devolução para um país em que sua vida ou liberdade possam estar ameaçadas por causa de sua raça, religião, nacionalidade, vinculação a determinado grupo social ou opinião política”[58]. Para que seja aplicada a exceção de “segurança do país”, o refugiado deve constituir um perigo atual ou futuro para o país de acolhida. O perigo deve ser muito grave e constituir uma ameaça para a segurança nacional[59]. Com relação à exceção da “ameaça para a comunidade”, o refugiado implicado deve não somente ter sido condenado por um crime muito grave, mas também se faz indispensável verificar que, em vista do crime e da condenação, o refugiado representa um perigo muito grave no presente e no futuro para a comunidade do país de refúgio. Não basta, portanto, o fato de ter sido condenado por um delito de particular gravidade, pois nem sempre a prática deste tipo de delito significa que a pessoa reúne também o requisito de “ameaça para a comunidade” [60]. Como representa uma exceção da proteção de não-devolução prevista na Convenção de 1951, deve ser aplicada de forma restritiva devendo observar a existência de um nexo racional entre a extradição do refugiado e a eliminação do perigo que representa a sua presença para a segurança nacional ou para a comunidade do país de refúgio e deve ser utilizada como o último recurso possível ao qual se deve recorrer[61]. A nota de orientação sobre extradição e proteção internacional de refugiados elaborada pelo ACNUR esclarece que “o perigo para o país anfitrião deve ter mais peso que o risco de dano que possa sofrer a pessoa requerida como resultado de sua devolução[62].” As exceções ao princípio de não devolução (artigo 33 (2) da Convenção de 1951) não afetam, todavia, as obrigações de não devolução asseguradas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, o qual não permite exceções. Nesses termos, não é possível extraditar uma pessoa caso a extradição represente um risco real de dano irreparável para o indivíduo como, por exemplo, a exposição do refugiado ao risco de ser vítima de tortura[63] e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes ou vítima de outras violações graves de direitos humanos[64]. A proibição estabelecida pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos extende-se a todas as pessoas que se encontram dentro do território de um Estado ou que estejam sujeitas a sua jurisdição incluindo, assim, os refugiados e os solicitantes de refúgio. Sendo assim, não será possível extraditar um refugiado, ainda que esta decisão esteja fundamentada nos motivos elencados no artigo 33 (2) da Convenção de 1951, caso esta devolução represente um sério risco de violação de direitos humanos. 5.3 O PROCEDIMENTO DE CONCESSÃO DE REFÚGIO E O PROCEDIMENTO DE EXTRADIÇÃO A extradição e a determinação da condição de refugiado são dois processos diferentes: possuem objetivos diferentes e apresentam critérios legais distintos. Quando o pedido de extradição é apresentado enquanto ainda está pendente a análise da solicitação de refúgio ou quando a solicitação de refúgio se dá após o requerimento de extradição, alguns critérios devem ser observados para garantir a proteção do indivíduo. Nesses casos, deve-se resolver primeiro a condição de refugiado para que o Estado requerido possa decidir se é possível ou não extraditar a pessoa requerida legalmente, uma vez que o fato de a pessoa requerida se qualificar ou não para a condição de refugiado tem importante repercussão no âmbito das obrigações do Estado requerido com relação a decisão acerca do pedido de extradição[65]. As autoridades de refúgio que examinam uma solicitação de um indivíduo que também é objeto de um pedido de extradição devem valorar com cautela as informações prestadas pelo Estado requerente, bem como as prestadas pelo indivíduo solicitante de refúgio para, de um lado, verificar a possibilidade de as autoridades do país requerente estar pedindo a extradição como meio de perseguição e, por outro lado, valorar também se objetivo do solicitante de refúgio não é meramente impedir a extradição e, consequentemente, fugir de um julgamento ou do cumprimento da pena[66]. É preciso também garantir que a existência de um pedido de extradição não exclua o indivíduo do acesso ao procedimento de refúgio, nem que o mesmo seja objeto de restrições quanto às salvaguardas procedimentais fundamentais durante o processo de refúgio[67]. Ainda que se conclua que o solicitante preenche os requisitos para ser incluído na definição de refugiado, é possível que o pedido de extradição ou as informações relacionadas com esse pedido leve à exclusão do seu reconhecimento como refugiado com base no artigo 1F da Convenção de 1951 (quando houver indícios de que a pessoa em questão possa haver cometido um crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime grave de direito comum ou atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas)[68]. As cláusulas de exclusão previstas na Convenção de 1951 asseguram que os culpados pela prática de crimes graves não se utilizem do instituto do refúgio como meio para fugir da responsabilização pelos delitos praticados. Excluída a possibilidade de ser reconhecido como refugiado, caberá a análise acerca da possibilidade de extradição do indivíduo. Nos casos em que o pedido de extradição é apresentado quando a pessoa já foi reconhecida como refugiada pelo Estado requerido, não é mais possível, como regra, deferir o pedido de extradição em respeito ao princípio de não devolução. A extradição de uma pessoa reconhecida como refugiada apenas será cabível quando, com base nos documentos e provas apresentados no pedido de extradição, se verificar que o indivíduo não poderia ter sido reconhecido como refugiado, pois no momento em que se tomou a decisão de reconhecimento ele não reunia os critérios de elegibilidade – porque restou comprovado que ele não tinha um fundado temor de perseguição ou porque havia praticado algum dos delitos previstos como cláusula de exclusão do refúgio (art. 1F da Convenção de 1951) -; ou quando o pedido de extradição estiver fundamentado na prática de crimes previstos nas cláusulas de exclusão do refúgio cometidos pelo refugiado após a concessão do status de refugiado[69]. Nestas situações será necessário dar início a um procedimento formal que pode resultar na decisão de cancelamento ou revogação a condição de refugiado[70], respectivamente. Apenas após a decisão de cancelamento ou revogação da condição de refugiado é que poderá ser analisada e deferida a extradição. Enquanto pendente a decisão o refugiado continuará recebendo a proteção contra a sua devolução. 6. A EXTRADIÇÃO E O PRINCÍPIO DE NÃO-DEVOLUÇÃO (NON-REFOULEMENT) NO DIREITO INTERNO A legislação nacional de muitos Estados traz a previsão de negação de extradição quando a pessoa requerida é um refugiado ou quando possa existir o risco de que a pessoa seja objeto de violações graves de direitos humanos depois de ser entregue. Estas disposições podem ser encontradas nas leis nacionais de extradição, no direito penal (processual), no direito constitucional ou na legislação relativa ao refúgio[71]. Ainda que não haja na legislação nacional proibição expressa da extradição de refugiados e solicitantes de refúgio, a obrigação de não extraditar é vinculante para o Estado requerido de acordo com o Direito Internacional dos Refugiados e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, sob pena de responsabilização[72]. O artigo 1º, III da Constituição brasileira apresenta o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos que rege a República Federativa do Brasil e o artigo 4º, II da CF determina que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. O reconhecimento da dignidade humana como valor que fundamenta o sistema de direitos fundamentais provoca um verdadeiro deslocamento do direito do plano do Estado para o plano do indivíduo e implica no surgimento de um núcleo indestrutível de prerrogativas que o Estado não pode deixar de reconhecer. Diante do valor fundamental da dignidade da pessoa humana e do princípio da prevalência dos direitos humanos, o Brasil tem ratificado diversos tratados internacionais que visam garantir proteção à pessoa humana contra violações aos seus direitos fundamentais. Neste diapasão o Brasil ratificou a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 sobre o Estatuto dos Refugiados e também adotou uma lei específica para tratar da questão do refúgio que foi elaborada pelos representantes do governo brasileiro juntamente com representantes do ACNUR: Lei 9.474/97[73]. Seguindo as diretrizes apontadas pelas Nações Unidas para garantir uma proteção ampla aos refugiados, bem como visando consagrar no âmbito interno o princípio do non-refoulement (não devolução) previsto na Convenção de 1951, a lei brasileira assegura a proteção dos refugiados impedindo a aplicação das medidas compulsórias de deportação (artigo 7º, parágrafo 1º), expulsão (artigo 36º e 37º ) e extradição (artigo 33º a 35º). O artigo 33 da Lei nacional 9.474/97 determina que “o reconhecimento da condição jurídica de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio. A lei nacional também confere proteção aos solicitantes de refúgio ao determinar em seu artigo 34 que “a solicitação suspenderá, até decisão definitiva, qualquer processo de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial, baseado nos fatos que fundamentaram a concessão do refúgio.” O Brasil tem se esforçado para fornecer instrumentos aptos a assegurar a mais ampla proteção aos refugiados e por tal preocupação a legislação brasileira que trata da proteção dos refugiados foi considerada pelo ACNUR como paradigma de uma legislação uniforme na América do Sul[74]. 6.1 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DE NÃO-DEVOLUÇÃO NO DIREITO INTERNO: ANÁLISE DO CASO CESARE BATTISTI[75] O Brasil é um país que tem tradição na concessão de abrigo e proteção a pessoas perseguidas por motivos políticos, raciais e sociais. O presente tópico tem como objetivo apresentar, de forma sucinta, o recente caso de pedido de extradição de um refugiado ocorrido no Brasil – caso Cesare Battisti – para analisar a forma como o país se posiciona sobre esta questão. Na esfera nacional o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) é o órgão de deliberação, no âmbito do Ministério da Justiça, encarregado de tomar decisões em matéria de refúgio. É competência do CONARE, como primeira instância, analisar o pedido e declarar o reconhecimento da condição de refugiado e decidir também acerca da cessação e da perda dessa condição[76]. Nos casos de negativa do CONARE é cabível ainda recurso ao Ministro da Justiça no prazo de 15 dias; da decisão do Ministro não caberá mais recurso[77]. O italiano Cesare Battisti[78] foi um ativista de extrema esquerda ligado ao grupo armado Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) que atuou na Itália durante o período que se convencionou chamar de anos de chumbo. A Corte italiana condenou Cesare Battisti à prisão perpétua pela prática de quatro homicídios praticados entre 1978 e 1979. No caso do italiano Cesare Battisti, o Ministro da Justiça, em sede de recurso, concedeu o status de refugiado a Battisti por entender caracterizado o fundado temor de perseguição por motivação política, mas o STF, ao analisar o pedido de extradição feito pela Itália e as pressões políticas feitas por este país ao Brasil, entendeu que seria da sua competência reexaminar o ato do Ministro da Justiça, tendo em vista que este ato do Ministro seria um ato vinculado aos requisitos da Lei 9.474/97 e caberia, portanto, o controle de legalidade do ato administrativo pelo Poder Judiciário.  O STF ao reexaminar o ato do Ministro da Justiça entendeu que os crimes cometidos por Battisti eram crimes comuns e não crimes políticos e que, por isso, o ato de concessão de refúgio deveria ser anulado por não ter observado a existência de uma cláusula de exclusão prevista em lei, qual seja, a prática de crime hediondo (acusação da prática de quatro homicídios dolosos tendo sido, pelo menos um deles, cometido com premeditação e com o intuito de vingança). Battisti foi condenado pela prática de crimes comuns relacionados à participação do italiano em ação militar do grupo Proletários Armados pelo Comunismo – PAC. Para solucionar esses casos de prática de crime que constitui, simultaneamente, a prática de infração comum e política, o Estatuto do Estrangeiro, adotou o critério da preponderância, ou seja, será concedida a extradição quando o fato for, principalmente, delito comum ou quando o fato principal for delito comum e este for conexo com o delito político (art. 77, inciso VII, parágrafo I da Lei 6.815/80). Para o Supremo a condenação de Battisti pela Corte de Milão pela prática de quatro homicídios deixou clara a preponderância da prática de crimes comuns e esta condenação pela justiça italiana é suficiente, pois não cabe ao Estado requerido a análise acerca do mérito da decisão proferida no Estado requerente[79]. Diante da existência de uma cláusula de exclusão do refúgio, o Supremo anulou o ato do Ministro da Justiça que concedeu refúgio a Battisti e, posteriormente, deferiu a extradição de Battisti com a condição de que o italiano não seja enviado à prisão perpétua, já que essa pena não está prevista na legislação brasileira. A pena deverá ser de no máximo 30 anos e deverá ser computado o tempo de prisão que, no Brasil, foi imposta a Battisti por força da extradição. O caso Battisti foi o primeiro caso em que o Supremo anulou um ato de refúgio concedido pelo governo brasileiro. Até então o STF não analisava o processo de extradição de pessoas já reconhecidas como refugiadas; o Supremo indeferia a extradição, desde logo, com base no artigo 33 da lei 9.474/97. No caso Battisti foi discutida ainda a possibilidade de os crimes cometidos pelo italiano já estarem prescritos (nesse sentido votou o Ministro Marco Aurélio). Conforme analisado no tópico 3 do presente estudo, o artigo 77, VI do Estatuto do Estrangeiro determina que não se concederá a extradição caso esteja extinta a punibilidade pela prescrição segundo a lei brasileira ou a do Estado requerente. A prescrição da pretensão executória só pode ocorrer depois de transitar em julgado a sentença condenatória, regulando-se pela pena concretizada (art. 110 Código Penal brasileiro – CPB). No caso Battisti foi aplicada ao italiano a pena de prisão perpétua. Entretanto, embora a lei italiana determine que a prescrição não extingue os crimes para os quais a lei prevê pena de prisão perpétua, no Brasil não existe tal modalidade de pena; o artigo 110 do CPB determina que a pena máxima possível no Brasil é de 30 anos. O CPB prevê ainda que, para os crimes com penas superiores a 12 anos de reclusão (é o caso da prática de crimes de homicídio), a prescrição acontece em 20 anos, nos termos do artigo 109, I do CPB. Pelo exposto, deve-se considerar como lapso de tempo para ocorrer a prescrição dos crimes cometidos pelo italiano Cesare Battisti o prazo de 20 anos. O prazo da pretensão executória começa a correr do dia em que transitar em julgado a sentença condenatória para a acusação, conforme artigo 112 do CPB. Após a primeira condenação (13 de dezembro de 1988), apenas a defesa de Battisti apelou da decisão em instâncias superiores da Justiça italiana, que mantiveram a condenação. A defesa de Battisti entendeu que como não houve alteração da sentença, nem recurso por parte do Ministério Público italiano, o prazo prescricional passaria a contar da data em que a primeira sentença da Corte de Assise de Milão transitou em julgado – dezembro de 1988. Desta forma, passados os vinte anos exigidos, teria prescrito, em dezembro de 2008, o prazo para a execução das penas. O entendimento da defesa está correto, pois o fluxo do prazo prescricional só é interrompido pelo acórdão quando este, modificando a sentença absolutória, condena o réu[80], o que não ocorreu no caso em análise. Todavia, o STF não acatou a tese da prescrição. Outra discussão importante travada no caso Cesare Battisti foi sobre a vinculação ou não do Presidente da República à decisão do STF favorável à extradição. Por cinco votos a quatro, os ministros entenderam que a decisão do Judiciário de mandar extraditar não obriga necessariamente o Poder Executivo a fazê-lo, pois, conforme artigo 84, inciso VII da Constituição Federal, compete ao Poder Executivo conduzir as relações internacionais do país; as decisões tomadas nesse âmbito são soberanas do Estado brasileiro. No caso Battisti o então Presidente da República Luis Inácio Lula da Silva politicamente entendeu que, apesar da decisão do STF favorável à extradição, não caberia a extradição de Battisti para a Itália, pois Battisti seria um militante político e não um criminoso comum e, sendo assim, a proteção constitucional conferida contra a extradição por delitos políticos prevalece sobre o tratado de extradição firmado entre Brasil e Itália. Embora a decisão de concessão de refúgio apresente caráter político-administrativo e ainda o fato de o poder ou dever de outorga ser atribuição reservada à competência da própria União por representar o país nas relações internacionais, tais fatos não retiram a possibilidade de controle jurisdicional de legalidade dos atos jurídico-administrativos (judicial review). O Supremo, ao realizar o controle jurisdicional sobre eventual observância dos requisitos de legalidade verificou a existência de condição legal excludente da concessão de refúgio, qual seja, a prática de crimes comuns o que caracterizou a ilegalidade da decisão administrativa. O Supremo não deferiu a extradição de um refugiado. Conforme o procedimento recomendado pelo ACNUR, o STF tomou em primeiro lugar a decisão de cancelar o ato de concessão de refúgio, pois com base nos documentos e provas apresentados no pedido de extradição verificou que Battisti não poderia ter sido reconhecido como refugiado porque praticou delitos previstos como cláusula de exclusão do refúgio (art. 1F da Convenção de 1951). Após a decisão de cancelamento da concessão do refúgio o Supremo passou a analisar o pedido de extradição feito pela Itália e, como Battisti não tinha mais a proteção prevista pelo princípio de não devolução, o STF deferiu a extradição. 7. CONCLUSÃO O estudo da extradição e do direito ao refúgio se interpenetram quando existe um pedido de extradição de uma pessoa reconhecida como refugiada ou de um solicitante de refúgio. Nestes casos é provável que o Estado requerido se encontre em um conflito de deveres: de um lado a obrigação de extradição que pode estar prevista em um acordo bilateral ou multilateral de extradição ou em instrumentos internacionais ou regionais que determinam a obrigação de extraditar ou processar; e, por outro lado, o Estado requerido deve cumprir as obrigações estabelecidas no Direito Internacional dos Refugiados e no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Nos casos de pedido de extradição de um refugiado ou de um solicitante de refúgio, os Estados assumem a obrigação de assegurar o respeito total ao princípio de não devolução (non-refoulement) previsto pelo Direito Internacional dos Refugiados que impede a devolução dessas pessoas para qualquer o país onde sua vida ou liberdade estejam sendo ameaçadas. A extradição é um instituto de cooperação internacional que visa impedir a impunidade assegurando que criminosos fugitivos prestem contas perante a justiça. O instituto de refúgio, por outro lado, é um instituto de proteção da vida humana; não havendo, portanto, como equiparar os dois institutos. A proibição de entrega de um refugiado prevalece sobre a obrigação de extradição. O Direito Internacional dos Refugiados não tem como objetivo beneficiar as pessoas que pretendem se utilizar do refúgio com o propósito de fugir da responsabilidade pela prática de delitos graves; seu objetivo é garantir que as pessoas que realmente necessitam e merecem da proteção internacional possam ter acesso e se beneficiar dela. Para tanto o Direito Internacional dos Refugiados prevê cláusulas de exclusão do refúgio que determinam que as pessoas que praticam crimes graves como, por exemplo, crime contra a paz, crime de guerra ou crime contra a humanidade, não são merecedoras da proteção conferida aos refugiados podendo, dessa maneira, serem extraditadas para responder pelos crimes cometidos. Para evitar, de um lado, ferir o princípio da não devolução e entregar um refugiado para um país no qual ele corre o risco de ser perseguido e sofrer outros prejuízos irreparáveis e, por lado, visando evitar que pessoas se utilizem do instituto do refúgio de má fé, faz-se necessário que as autoridades de refúgio realizem uma valoração rigorosa acerca do preenchimento dos requisitos necessário para a concessão do status de refugiado através de uma análise cuidadosa de todos os fatores relevantes, assegurando o respeito aos requisitos procedimentais de justiça e devido processo legal. Essas regras devem ser estritamente observadas pelos Estados, pois a extradição de um refugiado ou o uso indevido da proteção do refúgio representa um descumprimento das regras previstas na Convenção de 1951 podendo gerar conseqüências negativas no plano internacional e debilitar internacionalmente a instituição do refúgio, seja pelo descrédito daqueles que buscam o refúgio ou pela utilização do refúgio como escudo para os criminosos. A legislação brasileira é bastante avançada no tocante à proteção dos refugiados apresentando dispositivos claros que vedam expressamente a extradição de um refugiado ou solicitante de refúgio para países onde corram o risco de perseguição.  A jurisprudência brasileira vem se ambientando e se adequando às normas internacionais e à legislação nacional de proteção ao refugiado e firmando sua posição no sentido de proteção dessas pessoas contra a extradição, deixando claro também que o instituto do refúgio não pode ser utilizado para impedir a responsabilização pela prática de delitos graves, sob pena de descrédito desse instrumento tão importante para a proteção da pessoa humana.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-88/a-extradicao-e-o-principio-de-nao-devolucao-non-refoulement-no-direito-internacional-dos-refugiados/
Sistema de prova no Direito brasileiro e a obrigatoriedade do exame do de corpo de delito
Trata-se de trabalho que busca discutir a persistência da tarifação da prova no sistema de justiça criminal brasileiro, consubstanciada na obrigatoriedade do exame de corpo de delito. Num sistema de livre convicção motivada, como é o brasileiro, que garante a admissibilidade de todos os meios de provas lícitos no processo penal, como forma de assegurar um devido processo penal, a obrigatoriedade do exame de corpo de delito revela um fetichismo injustificado, sustentado no discurso técnico-científico que prestigia tão fortemente a verdade oficial, desobrigando, por vezes, ao Estado-acusador de produzir outras provas.
Direito Processual Penal
1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo descrever e explicar o sistema de prova adotado no Brasil e a obrigatoriedade do exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, em contraponto à previsão constitucional de admissibilidade de utilização de todos os meios de prova lícitas no processo penal brasileiro. Quando falamos de processo penal num Estado democrático de direito, devemos ter vista não qualquer processo, mas aquele fundado em preceitos de garantistas de racionalidade e justiça. Um processo justo depende não apenas da observância firme da lei, mas também de um conjunto direitos e garantias que assegurem um equilíbrio entre o poder do Estado de investigar, processar e julgar o delito e do acusado de defender de forma adequada e amplamente contra a imputação que lhe feita. No tocante a instrução processual, realizada durante a investigação criminal de forma antecipada, cautelar e não repetível — na linguagem adotado pelo Código de Processo Penal – CPP, e no processo judicial, um processo justo pressupõe a participação ativa das partes e das instituições públicas imparciais (Polícia Judiciária e juiz) na formação do conjunto probatório. Contudo, a busca da verdade processual atingível, dita equivocadamente real, não é ilimitada. A Constituição e as leis impõem limites à atividade probatória, seja vedando o uso de elementos de prova[1] obtidos ilicitamente (p.ex.: confissão mediante tortura), seja impondo determinados tipos ou meios probatórios específicos (exame de corpo de delito). A regra, todavia, deve ser a liberdade probatória que consiste na compreensão de que no processo tudo pode ser provado, por qualquer meio de prova legítimo. As s principais razões para ampla admissibilidade dos meios prova no processo penal estão fundadas, sobretudo: a) no fato de não haver prova perfeita; e b) na necessária observância do contraditório no processo; c) no princípio da livre convicção motivada. Em primeiro lugar, em princípio, toda prova é apta a formar a convicção do juiz sobre o fato a ser provado, seja em benefício da acusação ou da defesa. Com isso, tanto as partes como o juiz tem a sua disposição o poder de buscar (por meio de diligências diretas ou por solicitação/requisição) as provas que entenderem necessárias e suficientes à demonstração fática e jurídica da verdade processual. Em segundo lugar, reconhece-se que nenhuma prova é, por si mesmo, superior a outra. Diante disso, repudia-se qualquer sistema que preveja a hierarquização ou tipologias de provas, possibilitando-se, assim, uma maior liberdade na busca dos meios mais eficazes e menos custosos para a comprovação do fato. Em terceiro, não basta que a prova seja licita para formação do convencimento do juiz. Não se pode falar em processo justo sem o necessário jogo dialético de provas e contraprovas objetivando confirmar ou refutar os fatos aduzidos pelas partes. Dito de outro modo, a partes devem participar ativamente da produção da prova. Assim, ao se tarifar determinada prova há um claro prejuízo à dialética processual e à obtenção da verdade. Nesses termos, a idéia aqui é situar a funcionalidade da prova pericial, dita técnica[2], para persecução penal, mormente no que diz respeito ao exame de corpo de delito. Desse modo, iremos discutir a indevida obrigatoriedade na lei processual brasileira do exame de corpo de delito — seja na presença ou na ausência dele — para prova das infrações penais que deixam vestígios. Quais seriam, portanto, as implicações da tarifação do exame de corpo de delito para preservação de um devido processo penal? 2 O SISTEMA DE PROVA BRASILEIRO: A OBRIGATORIEDADE DO EXAME DE CORPO DE DELITO Consoante se depreende da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal brasileiro (Decreto-Lei nº 3.689, de 3/10/1941), a lei processual em vigor optou predominantemente pelo sistema de avaliação de provas consistente na persuasão racional, da livre convicção motivada ou do livre convencimento motivado[3], aparentemente repudiando o sistema das provas legais, da certeza legal ou tarifadas que estabelece, de regra, uma hierarquia entre as provas, estipulando valor superior de uma sobre outra[4]. Observa-se, porém, que a despeito da opção manifestada pelo legislador processual pelo sistema da livre convicção motiva[5], ainda perduram resquícios do sistema da prova tarifada em nosso direito, conforme se extrai do art. 158 e 184 do CPP[6], que exige, por um lado, o exame de corpo de delito para formação da materialidade do crime que deixar vestígios, não podendo este ser substituído pela confissão[7]; e, por outro, prescreve que o exame de corpo de delito não pode ser recusado pela autoridade policial ou judicial quando requerido pelas partes. Mas, antes de falar sobre o exame de corpo de delito e a sua insustentável obrigatoriedade, é importante distinguir o que vem a ser corpo de delito e exame de corpo de delito. 2. 1 CORPO DE DELITO Embora todos reconheçam que para se condenar alguém faz necessária a prova do corpo de delito, divergem sobre sua natureza e extensão. Alguns entendem por corpo de delito o fato objetivo, a ação típica punível tanto permanente quanto transitória, prescindindo de seu autor (um incêndio, um homicídio, uma injúria). Outros que se trata do efeito material do delito, ou seja, a mesma ação típica só que restrita ao seu efeito material permanente (o incendiado; uma morte). Ou, ainda, há aqueles que consideram tão-somente os vestígios materiais permanentes resultantes de uma ação material (a faca; a arma; o corpo) (ELLERO, 1994) [8]. Para a primeira posição haveria corpo de delito em todo delito. Já para a segunda somente nos de fato permanente. E, por último, para os que firmam a terceira posição somente nos de fato permanente que deixam vestígios. Adotamos a posição de que por corpo delito entendem-se os elementos (vestígios) sensíveis do fato criminoso que podem ser natureza material ou imaterial (moral). Um sensível, corpóreo que deixa marcas ou sinais físicos ou químicos gravados, permanente (facti permanentis) ou temporariamente (facti transeuntis)[9] sobre a matéria dos seres (p.ex.: lesões corporais). O outro, intangível, incorpóreo que se perde logo após a consumação do delito, por não serem apropriáveis e nem passíveis de registro pelos sentidos humanos (p.ex.: injúria verbal)[10] (NUCCI, 2005; ALMEIDA JUNIOR, 1959). Desse modo, “tudo o quanto se pode ver, ouvir, tocar, sentir em geral, atribuível ao delito, antes, na durante ou depois sua execução, é o seu corpo, o corpo de delito” (MENDES DE ALMEIDA, 1973, p.35).[11] A partir da idéia de que todo elemento perceptível aos sentidos decorrente da ação (conduta) forma o corpo de delito, é possível enfocar seus elementos desde três esferas distintas: a) o corpus criminis; b) corpus instrumentorum; c) corpus probatorium. O corpus criminis é toda coisa ou pessoa sobre a qual incide a ação delitiva executada por uma pessoa ou grupo de pessoas determinadas, isto é, os elementos materiais do delito. Por exemplo: No furto, a coisa alheia móvel; no homicídio, o corpo da vítima; na falsificação e estelionato, os documentos falsos; no seqüestro a pessoa seqüestrada etc. O corpus instrumentorum são os meios ou instrumentos utilizados pelo indiciado ou imputado para praticar o fato delituoso. Por exemplo: A arma de fogo para ocasionar a morte do ofendido ou lesões corporais; o veículo para transportar o material entorpecente; a ferramenta para arrombar a porta da casa e subtrair os bens móveis. O corpus probatorium são aqueles indícios materiais (rastros, vestígios, impressões) que deixados pelo investigado no lugar do crime auxiliam na formação da convicção sobre o fato, ou em outras palavras, são vestígios que possibilitam a reconstrução histórica do fato praticado. Por exemplo: as lesões na vítima de agressão, as fechaduras quebradas nos furtos, as manchas de sangue nos homicídios, os materiais queimados em um incêndio (NUCCI, 2005). Desse modo, pode-se dizer que o corpo de delito tem dupla natureza probatória: a) material; e b) probatória em sentido estrito. Sob a perspectiva material, são as evidências físico-materiais que nos permitem conduzir ao descobrimento de um determinado fato punível, esclarecendo a forma do modus operandi que resultou na consumação, bem como a identificação do autor ou dos autores (ARBUROLA, 2009). Sob o ponto de vista probatório, é todo fato conhecido e devidamente comprovado, por meio do qual podemos inferir através de uma operação lógica o conhecimento de outro fato desconhecido (ARBUROLA, 2009). Em resumo, o corpo de delito pode ser identificado como a materialidade do delito, em caso de existência de vestígios materiais, ou sua materialização, caso estes vestígios sejam incorpóreos ou transitórios. É a existência do crime do qual não se pode duvidar de que ele foi de fato praticado ou a prova objetiva do delito. Ressalta-se que todo crime tem um corpo de delito, isto é, prova de sua existência, já que se exige sempre materialidade (materialização) demonstrada para se atribuir pena a alguém, embora nem todas demandem um corpo de delito constituído por vestígios materiais, conforme ressaltado (NUCCI, 2005). 2.2 A FORMAÇÃO DO CORPO DE DELITO A formação do corpo de delito seria a observação e a recomposição dos vestígios ou elementos percebidos pelos sentidos que, dispostos e conjuntos, constituem o fato criminoso e o dano causado (ALMEIDA JUNIOR, 1959). A questão da formação do corpo de delito está diretamente à gestão da prova, consistente na reconstituição do evento criminoso em todas as suas fases, tanto quanto possível, e em todos seus elementos sensíveis, quer relativos à causa eficiente principal ou instrumental, quer relativos à causa material, ou ainda, na recomposição desses elementos, quer relativos aos meios, quer relativos ao fim (ALMEIDA JUNIOR, 1959)[12]. A busca e formação do corpo de delito no direito brasileiro sempre foi tarefa da polícia judiciária[13]. Depreende-se do Código de Processo Penal – CPP que é tarefa da autoridade policial[14], no bojo da instrução preliminar ou provisória consubstanciada no inquérito policial, provar plenamente o corpo de delito e lograr, ao menos por indícios veementes, a autoria e a culpa (MENDES DE ALMEIDA, 1973). Todavia, a participação da autoridade policial na formação do corpo de delito demanda que se faça uma distinção, no que diz respeito à formação do corpo de delito ou materialidade constitutiva do corpo de delito, entre prova material e a prova pessoal. Com suporte em Malatesta (2005), podemos entender por prova material (real) aquela em que a materialidade constitutiva do corpo de delito está diretamente sujeita à percepção do juiz, ou seja, a verificação propriamente judiciária. Ao contrário, quando esta materialidade não é percebida direta pelo juiz, mas por intermédio de outras pessoas, ela é pessoal (tal qual o testemunho pericial ou testemunho não-qualificado). Contudo, o próprio autor italiano adverte da existência da chamada prova material imprópria — ou prova material por ficção jurídica. Esta que, embora não sujeita à direta percepção do juiz, é constatada (percebida) por testemunhas oficialmente competentes ou uma autoridade delegada, tal como um juiz de instrução (idem, 2005). O sistema processual brasileiro, ao tempo em que repudiou a proposta de um juiz de instrução, conferiu autoridade de polícia judiciária a tarefa de realizar essa constatação quase-judicial (art. 6º, I do CPP). Por conta disso, o comparecimento ao local do crime não é mais facultada à autoridade, mas uma incumbência da qual esta não pode se furtar, já que a esta foi emprestada competência particular para constatação do corpo de delito. Ademais, cercou-lhe de formas protetoras da verdade, ao prever não somente o acompanhamento de peritos, como em algumas situações de testemunhas (ex: apreensão; busca e apreensão)[15]. Na formação do corpo de delito, assim, a prova material, no sentido que lhe empresta Malatesta (2005), aqui entendida como constatação da materialidade constitutivo do corpo de delito, no direito brasileiro, não corresponde por si só ao exame de corpo de delito realizado por peritos oficiais ou não-oficiais, mas a eventual constatação judicial ou quase-judicial do corpo de delito. É que, sem embargo não haja um “juiz de instrução” no direito brasileiro na fase da investigação criminal, compete à autoridade policial e, excepcionalmente ao juiz, desprezadas as partes, proceder à instrução provisória referente ao processo-crime[16]. Em outras palavras, atribuiu-se à autoridade de polícia judiciária o papel de proceder a verificação oficial do fato, com apoio da perícia[17]. Sendo assim, somente com o desaparecimento ou inexistência dos vestígios ou da existência de melhor prova, é que se deve dispensar a constatação oficial do delito na formação do corpo de delito. De outro modo, os demais meios de prova da materialidade delitiva só irão prevalecer sobre a verificação oficial do corpo de delito na sua impossibilidade em razão da inexistência de vestígios ou quando demonstrarem maior aptidão para melhor demonstrar a materialidade delitiva[18]. 2.3 DA OBRIGATORIEDADE DO EXAME DE CORPO DE DELITO NO DIREITO BRASILEIRO A obrigatoriedade do corpo de delito como meio probatório decorre do mandamento contido no art. 158 do CPP que tornou indispensável esse exame nas infrações que deixam vestígios, não podendo este ser suprido sequer pela confissão do acusado. Tal indispensabilidade se trata, como se percebe, de uma reminiscência inaceitável do superado sistema da certeza moral do legislador que se afastou, sem sombra de dúvida, do sistema da livre convicção motivada (HAMILTON, 1996). Frederico Marques (2000, p. 438) condena a equivocada previsão contida no CPP, ao afirmar que: “Na verdade, fora do sistema da prova legal, só um Código como o nosso, em que não há a menor sistematização científica, pode manter a exigibilidade do auto de corpo de delito sob pena de considerar-se nulo o processo. Que isso ocorresse ao tempo da legislação do Império, ainda se compreende. Mas que ainda se consagre tal baboseira num estatuto legal promulgado em 1941, eis o que se não pode explicar de maneira razoável.” O problema da importância indevida dada ao exame de corpo de delito, vinculando o sistema probatório a um meio específico de prova (prova tarifada), como o exame pericial[19], está justamente na incompreensão quanto à formação do corpo delito que não se caracteriza, pela natureza dos meios probatórios empregados, mas na natureza de seu fim que é coligir e reunir, direta ou indiretamente, todos os dados sensíveis do fato delituoso a ser apurar, reconstituindo a materialidade do ilícito (MENDES ALMEIDA, 1973). Sob esse enfoque, toda atividade investigativa dirigida ao fim de esclarecer o fato delituoso representa a formação do corpo de delito. Como já visto anteriormente, o direito brasileiro consagrou quanto à atividade probatória os parâmetros de exigência de uso de prova lícita (art. 5º, LVI da CRFB), da livre convicção motivada do juiz (art. 155 do CPP e art. 93, IX da CRFB), da presunção de inocência e do contraditório e da ampla defesa como corolários de um devido processo legal. Desse modo, afronta a Constituição regra infraconstitucional que impõe prova tarifada ao processo penal, limitando a postura contraditória e defensiva do acusado que, presumivelmente inocente, tem o direito de influir sobre a formação do convencimento do juiz na avaliação das provas. O sistema da prova legal parte do pressuposto de que alguns dados probatórios permitem deduzir incontestavelmente a conclusão fática, graças à sua conjugação com premissas legalmente presumidas como verdadeiras que, de modo geral, conectam o tipo de fato experimentado como prova e o tipo considerado provado[20]. Em outros termos, tem como suficiente determinada prova a partir de sua conjugação com a norma, atestando, assim, a culpabilidade ou a inocência, e por sua vez, excluindo a investigação e a livre apreciação do juiz (FERRAJOLI, 2002)[21]. Assim, ao tarifar o exame de corpo de delito[22] como único meio de prova[23][24], nos casos em que infração penal deixa vestígios, a lei processual impede a realização de um processo penal justo, na medida em cerceia tanto da acusação quanto da defesa de desenvolverem a atividade probatória[25]. A obrigatoriedade do exame de corpo de delito revela um fetichismo injustificado, sustentado no discurso técnico-científico que prestigia tão fortemente a verdade oficial, desobrigando, por vezes, ao Estado-acusador de produzir outras provas. Por outro lado, verifica-se que conferir maior valor ao exame de corpo de delito, mesmo que apoiado no discurso científico, nada mais é do que substituir a prova pericial à confissão como rainha das provas, próprio de sistemas de natureza inquisitorial, que por vezes se apóiam em um único meio de prova como fonte legítima de revelação da verdade (real). Nesse passo, como aceitar a situação contraditória em que embora haja vestígio (elemento material de um crime), a perícia não seja conclusiva? Cita-se, como exemplo, o exame grafoscópico sobre documento supostamente falsificado. No caso, o suporte material sobre o qual se realizou o delito de falso existe e é submetido a exame de corpo de delito, contudo a perícia não consegue determinar que os escritos contidos no papel partiram do punho do suspeito. Imaginemos, todavia, que o suspeito confesse que falsificou o documento e que testemunhas confirmem sua versão sobre o fato. Nesse caso, pode-se dizer que não há corpo de delito? Se entendermos que não, devemos admitir que o corpo de delito e exame de corpo de delito são coisas indistintas, ou seja, que os vestígios materiais do crime somente se tornam corpo de delito (materialidade do crime) quando submetidos a exame técnico. O que, convenhamos, é um absurdo, sobretudo quando fracionamos a compreensão do que vem a ser corpo de delito[26] (vide item 2.1 supra). Ressalta-se que jurisprudência já consagrou, com base nos postulados da verdade real, do livre convencimento do magistrado e da inexistência de hierarquia legal em matéria probatória, a legitimidade da utilização da prova testemunhal, da prova documental e, até mesmo, da confissão do próprio réu, como elementos hábeis ao válido suprimento da ausência do exame pericial de corpo de delito (MIRABETE, 2000). A demonstração do corpo de delito, que não se confunde com o exame de corpo de delito (perícia), pela atividade probatória da polícia judiciária, do juiz ou das partes, não pode se sujeitar às amarras legais que condicionam a validade do processo a meio exclusivo de prova que, como já assinalado, é incapaz de demonstrar sua infalibilidade, sobretudo, quando estamos diante de um esdrúxulo exame de corpo de delito indireto (art. 158 do CPP). 2.3.1 DO EXAME DE CORPO DE DELITO INDIRETO Ora, qual a justificativa de se exigir, a todo custo, um exame de corpo de delito indireto, ou seja, aquele praticado por profissionais sobre outros meios de prova (testemunhos ou documentos)? É que se não há possibilidade física ou jurídica de se realizar o exame de corpo de delito diretamente, em verdade, há de se concluir que os vestígios não estão disponíveis, isto é, que não há vestígios a serem analisados pela perícia. E, como tal, deve-se adotar a solução conciliadora do art. 167 do CPP (Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta)[27], ou ainda, admitir-se qualquer outro meio de prova disponível e legítimo. Se deixarmos de lado exemplos mais comuns, veremos que maior ainda é a dificuldade de se exigir o exame de corpo delito em modalidades delituosas, como por exemplo, os crimes tributários ou financeiros. É que, em relação aos crimes tributários, entende-se, com base na lei, que a atividade constituição definitiva do tributo — como atividade privativa da administração fazendária — é condição necessária a existência de algumas hipóteses de crime fiscal. Portanto, o procedimento administrativo, elaborado não por peritos oficiais, mas pelo órgão fiscal, constitui o corpo de delito do crime tributário. De igual forma, no tocante aos crimes de financeiros, a comprovação da conduta de operação de câmbio não autorizada com o fim de evadir divisas para o exterior, documentada pelo Banco Central do Brasil, por meio de processo administrativo, também constitui o corpo de delito do crime contra o sistema financeiro nacional[28]. Há várias situações, como as relatadas, em que se tem admitido equivalente ao exame de corpo de delito a análise e documentação do fato pelo órgão competente, tais como: Agência de Vigilância Sanitária – ANVISA (falsificação de medicamentos); Instituto Brasileiro de Meio Ambiente – IBAMA (crime ambiental); Banco Central do Brasil – BACEN (crimes financeiros); Receita Federal do Brasil – RFB (crimes tributários). Trata-se, como se viu anteriormente, de melhor meio de prova que, nesse caso, autoriza a dispensa do exame de corpo de delito. Em outras palavras, deve-se dispensar o exame naquelas situações em que o fato possa ser demonstrado por outro meio de prova, devendo nessa hipótese o exame pericial ser considerado inútil ou supérfluo. Desse modo, verifica-se imprópria qualquer predileção pelo exame de corpo de delito, sobretudo realizado indiretamente. Volta-se a perguntar, há razão de se submeter um documento, com por exemplo, um procedimento administrativo do Banco Central a exame de peritos, igualmente funcionários públicos cujos atos são dotados de presunção de legitimidade? A resposta é simples: nenhuma. Assim, a compreensão que deve ser dada à idéia de que formação do corpo de delito indireto é outra, qual seja, a de que a prova do fato pode se dar por todos os meios legítimos de prova, diversos ao exame realizado por perito oficial, seja por prova testemunhal, documental ou outro meio capaz de adequadamente provar a existência do crime ou circunstância essencial que importe na formação do delito[29].[30] 2.3.2 DA AUSÊNCIA DO CORPO DE DELITO Se considerarmos a dispensabilidade do exame de corpo de delito, quando presentes os vestígios materiais do crime, mais obsoleto pode ser tido tal exame quando desaparecerem os elementos constitutivos da materialidade do delito. A prática demonstra que dificilmente alguém é condenado pelo crime de homicídio sem que constate materialmente a existência de uma vítima. A razão para isso está no temor dos falsos juízos e no medo de que a suposta vítima apareça viva tempos depois. Ocorre que isso não se justifica na medida em que não é racional conferir força probatória diversa à prova testemunhal ou ao testemunho pericial, simplesmente em razão da qualidade ou natureza — transitória ou permanente — dos vestígios do crime (ELLERO, 1994). Como é possível atribuir parcialmente o caráter de certificação a uma prova conforme se trate de vestígios materiais transitórios ou permanentes ou incorpóreos. Assim, como admitir que o testemunho prove uma injúria ou um adultério e não faz o mesmo com uma lesão. Diante disso, sabiamente o legislador[31], quando da inexistência do corpo de delito direto, permitiu que o exame de corpo de delito pudesse ser suprido por outros elementos de caráter probatório existentes nos autos da persecutio criminis, notadamente os de natureza testemunhal ou documental. Assim, nos crimes contra a liberdade sexual, por exemplo, desde que cometidos mediante grave ameaça ou com violência presumida, não se exige, obrigatoriamente, o exame de corpo de delito direto, porque tais infrações penais, quando praticadas nessas circunstâncias (com violência moral ou com violência ficta), nem sempre deixam vestígios materiais. Outra situação em que ausente o corpo de delito é aquela em que a pessoa se utiliza de documento falso para enganar a terceiro, obtendo com isso vantagem econômica, o que configura, em tese, crime de estelionato. A ausência do documento — elemento material do crime — meio empregado para ludibriar a vítima, não pode ser utilizado como argumento para afastar a tipicidade da conduta, podendo esta ser provada por outros meios probatórios, dispensando a consideração quanto ao falso documental. Ressalta-se, ainda, que a lei processual previu em caso de lesões corporais aparentemente graves, que possam resultar em incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias (art. 129, § 1º, I do Código Penal[32]), a necessidade de realização de exame complementar (art. 168 do CPP). Contudo, no § 3º do mesmo artigo dispôs que a falta de exame complementar poderá ser suprida pela prova testemunhal[33]. Em outras palavras, relativizou a necessidade de exame pericial nesses casos, em razão da possibilidade dos vestígios terem desaparecido. Trata-se, portanto, de previsão que legal que dispensa o exame de corpo de delito nas situações em que estes, mesmo que outrora tenham existido, deixaram de existir. O perecimento dos vestígios não pode ensejar impunidade quanto ao delito, devendo-se, admitir, com as devidas cautelas, qualquer meio de prova capaz (apto) a demonstrar a materialidade delitiva e quem seja seu autor. O exame de corpo delito, portanto, somente pode ser exigido de forma indispensável quando a sua falta deixa a prova incompleta ou não se possa realizar de outro modo. Por fim, nada impede que se favoreça o exame pericial até onde seja possível sua obtenção. Todavia, deve-se ter em vista que o exame de corpo de delito deve ser algo útil à instrução probatória e não necessária. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS O mito da verdade real, de cunho nitidamente autoritário, esmoreceu diante dos postulados garantistas do Estado de direito. As limitações decorrentes do devido processo legal e das garantias dele decorrentes (inadmissibilidade da prova ilícita, ampla defesa, contraditório, direito ao silencio, a não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo entre outros) demonstram que a verdade processual é somente e tão-somente aquela possível, atingível nos estreitos limites da legalidade. De outra sorte, a consagração da admissibilidade de qualquer meio de prova não significa meramente, em sentido inverso, a vedação ao uso de prova ilícita. O sentido da norma constitucional, que consubstancia um sistema de livre apreciação motivada e de liberdade probatória, também proíbe a prova tarifada ou o fetichismo probatório, a despeito da esdrúxula previsão contida no Código de Processo Penal brasileiro em relação ao exame de corpo de delito. A razão para tal absurdo, quiçá, consista na confusão entre o que vem a ser corpo de delito e o exame de corpo de delito que, no bojo deste trabalho, deixamos claro se tratarem de coisas distintas. De tal maneira, sob esse enfoque o sistema de prova tarifada pertinente ao exame de corpo delito é incompatível com a liberdade probatória condicionada aos limites da estrita legalidade (prova lícita) e da existência da melhor prova idônea ao esclarecimento dos fatos. Assim, se constar dos autos o corpo de delito, seu elemento sensível, dispensável é o testemunho pericial se outros meios de prova corroboram de forma mais adequada a existência do crime e quem seja o seu autor. Somente dessa forma estará assegurado que eventual falha na coleta de vestígios não importe no fracasso na justiça criminal, na medida em que não se permite a elevação a patamar absoluto de determinado meio de prova em detrimento de outros igualmente idôneos a demonstrar a veracidade dos fatos afirmados. Conclui-se, assim, que a confissão ou qualquer outra prova, trabalhadas em um contexto de pluralidade provas licitamente admitidas, de igual hierarquia, podem servir para formação da convicção do juiz sobre a procedência ou não da hipótese acusatória, desde que este motive adequadamente as razões de seu convencimento. Assim, não há que se entender válida a norma do art. 158 do CPP põe relevo à prova pericial, sob pena de se converter, em última análise, o perito em julgador, uma vez que ele daria a palavra final sobre o evento. Por derradeiro, queremos deixar claro que o exame pericial (testemunho pericial) é muito importante e, no mais das vezes, é sempre a melhor prova para demonstrar o fato, sobretudo quando a constatação demanda conhecimento especializado. Contudo, reafirmamos que somente pode haver devido processo penal num Estado de direito que assegure um sistema de liberdade probatória, dentro dos limites da lei.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-88/sistema-de-prova-no-direito-brasileiro-e-a-obrigatoriedade-do-exame-do-de-corpo-de-delito/
Da necessidade de ampliação do contingente de defensor público no Estado da Bahia como forma de efetivação da ampla defesa criminal voltada a pessoas de baixa renda
A Defesa no processo penal é direito indisponível, não é exclusividade do acusado, cabendo ao Estado zelar pelo seu exercício. Para que a defesa seja de fato ampla, é essencial que seja efetiva e tenha eficácia, de modo que não se deve encará-la apenas como mera formalidade. Por defesa efetiva deve-se entender e exigir a efetiva atuação do defensor em prol dos interesses do acusado, o que poderá ser aferido sempre diante de cada caso concreto, sopesando-se as provas carreadas aos autos pela acusação e a possibilidade real de sua confrontação pela defesa. O ato praticado deve ser de fato efetivo e, em assim não sendo este deverá ser considerado nulo ou no mínimo anulável, tendo em vista o prejuízo que a parte, em regra sem conhecimento jurídico algum, poderá sofrer no curso do processo, em virtude da imperfeição ou defeito daquele. Neste sentido torna-se essencial o aumento do contingente de Defensor Público visando assegurar o direito constitucional da ampla defesa aos acusados em processos crimes, hoje, em sua esmagadora maioria, são os menos desafortunados. Esta situação se dá em razão das defesas apresentadas por advogados dativos que, em regra, são defesas deficitárias, não atendendo aos princípios basilares da ampla defesa.  O presente trabalho visa demonstrar que os réus assistidos por advogados dativos, quando estes não tem compromisso com o processo, restam indefesos, por ausência de defesa técnica deficiente, o que exige do Estado uma atenção especial, no sentido de aumentar o número de Defensor Público, haja vista ser a Defensoria Pública uma instituição essencial, criada com o propósito principal de levar assistência jurídica de qualidade àqueles que não podem custear uma defesa particular. Este trabalho foi orientado pela Professora Especialista Jeane Meira Braga.
Direito Processual Penal
Sumário: 1 introdução. 2 da defesa. 3 da defesa apresentada por advogado nomeado. 3.1 da nulidade do ato: defesa não efetiva 4 da defensoria pública. 4.1 da defesa apresentada por defensor público. 4.2 da necessidade do aumento do contingente de defensor público 5 considerações finais. Referências.1 INTRODUÇÃO Questão ainda pouco vista na doutrina e na jurisprudência baiana é a nulidade decorrente de uma falta de defesa realmente efetiva, levando-se em consideração o eminente número de advogados nomeados por Juízes de Direito, sem qualquer remuneração pelos serviços prestados, com a finalidade de patrocinar a defesa técnica de indivíduos, em especial na área penal, desprovidos financeiramente. Em regra, as defesas patrocinadas por advogado dativo apresentam-se de modo genérico, apenas para atender uma formalidade legal, o que implica numa não efetivação da ampla defesa criminal. Objetivando sanar referida deficiência, necessário se faz o aumento do contingente de Defensores Públicos, que são concursados e remunerados pelo Estado, a fim de que sejam atendidos todos os municípios do Estado da Bahia. Destaca-se, portanto, a relevância social de que trata o tema, visto que todos estão sujeitos a cometer crimes e consequentemente necessitarem de uma defesa técnica. Soma-se a isto o fato de nossa Carta Maior, em seu artigo 5º, inciso LXXVIII, impor ao Estado o dever de prestar assistência jurídica gratuita e integral àqueles que não podem arcar com despesas advocatícias, de modo que, não havendo prestação jurisdicional pelo Estado, a lei permite a nomeação de Advogado. Assim, a presença do Defensor, sujeito que realiza os atos em que consiste a defesa, é imprescindível. Ou seja, pouco importa que o acusado esteja ausente, deverá a defesa ser fundamentada, como bem expressa a imperativa determinação do artigo 261 e parágrafo único do CPP[1], de modo a cumprir a garantia constitucional. Assim também manifestou o Supremo Tribunal Federal (STF) ao editar Súmula 523[2] cujo conteúdo é compreendido com clareza, não havendo margem para interpretações diversas daquela que corresponde a simples análise gramatical do texto (“No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta”). Não resta dúvidas que prejuízo há para o réu quando da apresentação de defesa imperfeita ou defeituosa, esta é a regra. 2 DA DEFESA O Ministério Público, através do seu representante, objetiva apresentar uma acusação com bastante robustez e, não muito raro, invoca o famigerado princípio do in dúbio pro societate, ou seja, insere um indivíduo no banco dos réus com base na dúvida, frise-se, em pleno estado Democrático de Direito e, sequer observa que o processo, por si só, constitui um mal em si mesmo. Soma-se a isto o fato daquele órgão ministerial ser visto como acusador e agir como tal, deixando de lado um preceito fundamental que seria a imparcialidade. Neste sentido assevera Eugênio Pacelli de Oliveira: “Ao contrário de certos posicionamentos que ainda se encontram na prática jurídica, o Ministério Público não é órgão de acusação, mas órgão legitimado para a acusação, nas ações penais públicas. A distinção é significativa: não é por ser o titular da ação penal pública, nem por estar a ele obrigado, que o parquet deve necessariamente oferecer a denúncia, nem, estando esta já oferecida, pugnar pela condenação do réu, em quaisquer circunstâncias”. (2009, p. 400) Além do mais, com relação à atividade do defensor, assevera Guilherme de Souza Nucci: “O defensor não deve agir com a mesma imparcialidade exigida do representante do Ministério Público, pois está vinculado ao interesse do acusado, que não é órgão público e tem legítimo interesse em manter o seu direito indisponível à liberdade. Deve pleitear, invariavelmente, em seu benefício, embora possa até pedir a condenação, quando outra alternativa viável e técnica não lhe resta (em caso de réu confesso, por exemplo), mas visando à atenuação de sua pena ou algum benefício legal para o cumprimento da sanção penal (como penas alternativas ou sursis). Isso não significa que deve requerer ou agir contra a lei, burlando normas e agindo sem ética, durante o processo penal. Seus desvios, na atuação defensiva, podem tornar-se infrações penais ou funcionais”. (2007, p. 511) Este é também mais um motivo para que a defesa em favor do acusado seja realizada de forma efetiva, e que a tese apresentada se ponha em igualdade de condições, para fins de argumentação e de prova, com a tese acusatória, levando em consideração o preparo dos Promotores no cumprimento do seu mister, enquanto os defensores nomeados não se empenham para fazer a defesa do denunciado no mesmo nível. Neste sentido, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça ressalta que o acusado é indefeso quando a atuação de seu patrono é apenas pró-forma: “PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. NULIDADE. RÉU INDEFESO. I – No âmbito do processo penal há a necessidade de que se ga­ranta ao réu o pleno exercício do seu direito de defesa, que deve ser efetivo, real, e não apenas pró forma. II – Resta caracterizada a falta de defesa do réu, e não apenas a sua deficiência, se o defensor, não obstante tenha apresentado defesa prévia e alegações finais, o fez apenas formalmente, assumindo postura praticamente contrária aos interesses do réu, não só ao deixar de sustentar a posição apresentada pelo próprio acusado no interrogatório, no sentido da desclassificação para o delito do art. 16 da Lei 6.368/76, mas também ao postular a condenação, ainda que a pena mínima, por delito mais grave do que o admi­tido. Tudo isto, sem ao menos interpor apelação ao sobrevir condenação a pena superior ao mínimo legal. III – A concreta e objetiva inércia ou indiferença da defesa é de ser equiparada, conforme dicção da melhor doutrina, à sua inexistência (Precedentes). Write concedido. (STJ, 5.ª Turma, Recurso em Habeas corpus n.º 16.620/MG, Rel. Min. Felix Fischer, j. 25/11/2001, p. DJ 12/11/2001)”. Assim sendo, é fundamental que haja uma contra-acusação com detalhes imprescindíveis à demonstrar os verdadeiros fatos em benefício do acusado, inclusive, para evitar, acusações temerárias e infundadas. Segundo os ensinamentos de Antônio Scarance Fernandes: “A defesa é o direito que tem o indivíduo de reagir à ação contra si proposta, a fim de perseguir decisão favorável e, assim, pre­servar direitos substanciais questionados no processo. No pro­cesso penal, o titular do direito de defesa pretende evitar a condenação e imposição da pena. Como a pena pode restringir a sua liberdade, bem fundamental, a defesa é necessária, indecli­nável. Assim, embora o acusado não deseje se defender, impõe-se que alguém o faça, e, para garantia de paridade de armas e equilíbrio no interior do processo, é mister que esse alguém seja pessoa habilitada, técnica. Nem se admite simples defesa formal, mera resposta aos termos da proposta acusatória, exigindo-se defesa substancial, efetiva reação à acusação. “(2002, p. 25) Note-se, portanto, que sem uma defesa realmente efetiva, pouco provável haver uma justa aplicação da pena, pois os fatos relevantes para o magistrado são aqueles encontrados nos autos processuais, de onde buscará a fundamentação para julgar por sentença. Ademais, é neste momento que o acusado poderá arguir tudo quanto possa para se defender, apresentando provas, indicando testemunhas etc, fundamentando sua tese e tudo isso através de profissional habilitado. Neste sentido, informa Eugênio Pacelli de Oliveira: “A defesa escrita constitui, então, a primeira intervenção da chamada defesa técnica, isto é, aquela produzida por profissional do Direito. Por isso, é nessa ocasião que se dará início ao processo realizando em contraditório, com a abertura para o exercício da ampla defesa”. (2009, p. 557) A defesa é de tamanha importância que a nossa Carta Magna proclama no artigo 5º, LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. No inciso LV do citado artigo tem-se que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” Além da importância dada à defesa técnica, esta também é indisponível, tendo em vista que, ainda contra a vontade do acusado, ou mesmo na sua ausência, aquela deverá ser exercida. Desta maneira, se o acusado não constituir defensor, o juiz deverá, por imposição legal, nomear-lhe um ressalvando-lhe a possibilidade de, a qualquer instante, constituir outro da sua inteira confiança. Assim sendo, esta garantia deverá ser de fato ampla, de maneira que o réu tenha possibilidade de apresentar seus meios de prova e, inclusive, participar efetivamente da peça a ser apresentada, fazendo valer seus direitos e interesses. Nesse sentido, preleciona Fernando da Costa Tourinho Filho: “Defesa, em sentido amplo, é toda atividade das partes no sentido de fazer valer, no Processo Penal, seus direitos e interesses, não só quanto à atuação da pretensão punitiva, como também para impedi-la, conforme sua posição processual. Em sentido estrito, defesa é aquela atividade das partes acusadas de oposição à atuação da pretensão punitiva. Daí se segue que Defensor é o sujeito que realiza os atos em que consiste a defesa”. (2008, p. 497) Ainda, para Eugênio Pacelli de Oliveira: “A ampla defesa manifesta-se via defesa técnica, autodefesa, defesa efetiva, bem como pela utilização de todos os meios de prova, incluindo aqueles obtidos ilicitamente. […] “a defesa técnica, quando realizada por defensor publicou ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada”. A providência é salutar, no que se refere à exigência de uma atuação mais efetiva por parte daqueles que, seja por dever de ofício (em carreira organizada), como o defensor público, seja por dever decorrente de nomeação do juiz, o defensor dativo, respondem pela defesa técnica do acusado.”(2009, p. 413) Por tudo, é de salutar importância que, para qualquer que seja a acusação, dê-se oportunidade para o acusado se defender. Neste sentido é que Fernando da Costa Tourinho Filho informa: “A acusação e defesa forma, destarte, um par incindível, a defesa representa o reverso da pretensão; o que se defende não pretende um direito para si, mas, tão somente, a inexistência de um direito para o adversário. Não pode haver, pois, Processo Penal sem acusação e sem defesa, salvante aqueles processos de tipo inquisitório, quando o imputado era entregue à autoridade não como um sujeito de direito, mas como objeto de investigação e de tortura, ao poder casi sin limites Del insturctor.” (2008, p. 499) Roger Moko Yabiku (2007, p. 1), expõe em seu texto ‘A defesa técnica como elemento da liberdade substantiva.  Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal’, o seguinte: “As atividades persecutória e judiciária do Estado, em nome do contraditório e da ampla defesa, devem contemplar que o acusado tenha condições de se defender daquilo que lhe é imputado. Há necessidade, portanto, de alguém que lhe promova a defesa técnica.[…] Em momento algum, a defesa técnica deve ser encarada como mera formalidade. A legislação pátria dispõe que a defesa técnica deve ser efetiva, contudo, verifica-se uma visão formalista do fenômeno processual. A abordagem meramente jurídica, por vezes, constitui mais injustiças que aplicação de justiça propriamente dizendo, já que não raro os defensores técnicos desempenham uma performance mais formal que realmente efetiva. […] A defesa técnica deve realmente ser eficiente, pois, muitas vezes, se está defendendo quem não tem o mínimo de condições educacionais e culturais de entender todo o processo e se defender no mundo jurídico. Essas pessoas conhecem o mundo do ser (sein), não o do dever ser (sollen). E o que seria normal no “mundo do ser” não é necessariamente o que deve ser feito no “mundo do dever ser”. A defesa é, pois, essencial, visto que se o Estado busca realizar a justiça de modo que ele não estará certo de tê-la feito se não proporcionar ao indivíduo a mais ampla defesa, defesa esta atrelada à realidade fática concomitantemente com a pretensão do acusado. Vejamos o que diz o artigo 396-A, do Código de Processo Penal. “Art. 396-A Na resposta, o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário.” (grifo nosso). É nítida a intenção do legislador em propiciar ao acusado participar diretamente da elaboração da sua defesa, expondo fatos e circunstâncias que lhe favoreça. Isto somente ocorrerá se ele, acusado, mantiver contato com seu defensor, ou no mínimo, se este último, ao realizar o ato de defesa, fazê-lo com responsabilidade e boa fé. Caso contrário, não haverá uma defesa efetiva e, consequentemente, será o ato passível de nulidade. 3 DA DEFESA APRESENTADA POR ADVOGADO NOMEADO Para Júlio Fabrini Mirabete, o defensor técnico, o advogado, é alguém que suprirá eventual deficiência em termos de capacitação jurídica do acusado: “O defensor, procurador ou representante da parte, é o advogado, sujeito especial no processo porque sua atuação é obrigatória. Por faltar capacidade para o exercício do jus postulandi (capacidade postulatória) à parte (acusado), é necessário suprir tal deficiência com a outorga de procuração ao advogado que, além de representar o cliente no processo, atua para que a tutela jurisdicional seja prestada com acerto e justiça.” (2003, p. 336-337, grifo nosso) Fernando Capez assevera que: “Contrário ao que ocorre no processo civil, no qual o contraditório se designa pelo binômio “ciência necessária, participação possível”, no processo penal, em razão da natureza pública e em geral indisponível dos interesses materiais colocados à base do processo, o contraditório há que ser real e efetivo. Fala-se, portanto, em ciência e participação igualmente necessárias.” (2007, p. 181) Todavia, em regra, as defesas apresentadas por advogados nomeados por Juízes de Direito no Estado da Bahia são carentes de fundamentação, são ineficientes, visto que se apresentam de forma genérica, sem que, no mínimo, o acusado tenha participado da sua construção, acarretando-lhe prejuízo eminente. Neste sentido, é esclarecedora a afirmação de Eugênio Pacelli de Oliveira: “Na prática, porém, muitas vezes a efetividade da defesa depende de atuação do réu, já que é ele quem detém as informações necessárias à preparação da defesa. […] como a resposta escrita antecede à fase de absolvição sumária, na qual se examinam questões de mérito, deve a defesa técnica apreciar em maiores detalhes a acusação, particularmente sobre a questão de direito”. (2009, p. 413-414) Situação mais delicada ainda é quando da pluralidade de acusados e existência de conflitos entre os fatos narrados por aqueles, quando deverá o juiz nomear um defensor para cada um, objetivando evitar, nesta hipótese de colidência das teses de defesa, a ocorrência de prejuízo de um ou mais acusados, o que ensejaria, conforme doutrina, nulidade absoluta, por ser considerado ausência de defesa. É comum, entretanto, a nomeação de um único advogado para a defesa dos vários réus do processo, o que se dá pela dificuldade em encontrar profissionais dispostos a aceitar o múnus. Ademais, havendo prejuízo, não estariam os acusados propensos a argui-lo e, dificilmente a defesa, aqueles por desconhecerem os procedimentos do processo penal, este por não possuir interesse em prestar uma assistência judiciária efetiva, agindo de modo desidioso. A ineficiência da defesa técnica constitui um desequilíbrio processual de tal maneira que o sujeito não tem como efetivar o exercício do seu direito de defesa e, consequentemente, evidencia-se o prejuízo processual. Em outras palavras, a existência de defesa que não busca, legal e honestamente, melhorar a condição processual do acusado, não deve ser considerada. A afirmação de Tourinho Filho (2008, p. 503, apud, MANZINI) neste sentido é pertinente: “A função do Defensor, na irrepreensível lição de Manzini, é apresentar ao Órgão Jurisdicional competente tudo quanto, legitimamente, possa melhorar a condição processual do imputado e que possa honestamente contribuir para dirimir ou diminuir sua imputabilidade ou sua responsabilidade.” (cf. Istituzioni, cit., v. 2, p. 557) Sabe-se que é dever do Estado fazer valer o direito fundamental de toda pessoa de ter acesso à justiça, sempre que possuir algum interesse jurídico a ser protegido, garantindo, especialmente aos necessitados, uma assistência judiciária gratuita. Ademais, esta assistência deverá ser realizada por profissional habilitado, no caso, um advogado ou um Defensor Público. Caso contrário, haverá uma violação do mandamento constitucional que assegura plena defesa ao acusado, ferindo princípios, com o da paridade de armas, imprescindível à concreta atuação do contraditório, visando à contraposição à acusação formulada pelo Ministério Público. Ademais, se a liberdade é direito indisponível e se cabe ao Estado zelar pelo exercício da defesa, é evidente que a nomeação de advogado nos autos, em respeito ao princípio da ampla defesa, não pode ser meramente formal. É essencial que o Poder Judiciário exija qualidade da defesa, que não pode ser pró-forma, consoante dito anteriormente. É dever do Estado garantir a assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes, de modo que a prestação deficiente da defesa por profissionais de direito implica em uma não prestação ou prestação precária da assistência jurídica, o que, na prática, se revela com as nomeações dos advogados dativos. Noutra vertente, os trabalhos realizados por Advogados, quando nomeados por Juízes de Direito na inexistência de Defensor Público, devem ser remunerados pelo Estado. É o que dispõe a Lei Federal n. 8.096 de 1994 (Estatuto da Ordem de Advogados do Brasil), em seu artigo 22, § 1º, in verbis: “Art. 22. […] § 1º O advogado, quando indicado para patrocinar causa de juridicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado.” Advogados nomeados e não remunerados traduz no que podemos dizer “trabalhar de graça” e, esta situação é fato público e notório no nosso Estado, o que não deveria ocorrer, mas sim o contraposto, conforme julgado no TJMG que adiante se vê: “EMENTA: AÇÃO DE COBRANÇA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. DEFENSOR DATIVO. PAGAMENTO.     O Estado não pode se abster de pagar o valor dos honorários advocatícios judicialmente arbitrado para o defensor dativo, em decorrência dos serviços profissionais prestados a litigante carente, uma vez que a ordem jurídico-constitucional rechaça o enriquecimento ilícito do ente público em detrimento do particular. Rejeita-se a preliminar e nega-se provimento às apelações. APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0024.06.993227-5/001 – COMARCA DE BELO HORIZONTE – APELANTE(S): ESTADO MINAS GERAIS – APTE(S) ADESIV: LEOCÁDIO ASSIS RODRIGUES – APELADO(A)(S): ESTADO MINAS GERAIS, LEOCÁDIO ASSIS RODRIGUES – RELATOR: EXMO. SR. DES. ALMEIDA MELO “ Ressalte-se, portanto, que os ditos advogados são profissionais liberais que prestam um múnus público, um “favor” à sociedade, porém, não são remunerados pelo Estado baiano, ou seja, nada recebem por isso, e mais, sequer são reconhecidos pelos serviços prestados, haja vista que o Estado mantém-se se inerte, como se isto fosse obrigação daqueles profissionais, o que não é. Apesar da existência de normas gerais para a contratação de honorários de advogado, bem assim, a respectiva Tabela de Honorários, criada pela Resolução CP n. 17/03, não há qualquer observância pelo Estado. São vários os afazeres de um Advogado e, por serem profissionais liberais, precisam trabalhar cotidianamente com a finalidade de obter recursos financeiros para arcar com as suas despesas existentes. Outrossim, na maioria das Comarcas do Estado baiano, especialmente aquelas em que não há Defensor Público, o advogado acaba sendo nomeado para atuar em vários processos, numa e noutra comarca, de modo que em aceitando todas estas nomeações ou mesmo algumas delas, tornaria dispendioso manter-se em sua profissão, visto que nada receberia em termos financeiros. O Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu artigo 34, inciso XII, prevê infração disciplinar ao Advogado que: “recusar-se a prestar, sem justo motivo, assistência jurídica, quando nomeado em virtude de impossibilidade da Defensoria Pública”. Semelhante disposição é a do artigo 264 do Código de Processo Penal: “Salvo motivo relevante, os advogados e solicitadores serão obrigados, sob pena de multa de cem a quinhentos mil-réis, a prestar seu patrocínio aos acusados, quando nomeados pelo Juiz.” Ainda, o artigo 265 do mesmo diploma legal estabelece que o defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso, a critério do juiz. O que acontece na prática são advogados utilizando-se de prerrogativas próprias de algumas autoridades (ex. Magistrado, Ministério Público), alegam foro íntimo, sem uma mínima justificativa, abandonando processos ao meio, ou mesmo no início, uns até sem manifestar acerca da aceitação ou não da nomeação. Portanto, não se vê punições para os advogados que não cumprem com suas responsabilidades, quando da nomeação em processos criminais e, em caso existindo, não restam dúvidas que aquele profissional, de algum modo traria prejuízo ao acusado, primeiro pela inexistência de punição e em segundo por nada receber para patrocinar a defesa daquele. Desta forma, é comum que os processos tenham o seu curso prejudicado em razão da desídia do defensor dativo, pois sequer manifesta-se quanto ao múnus, apesar de ser intimado por diversas vezes, ser advertido quanto a situação, inclusive com ofícios expedidos pelo Juiz da Comarca encaminhados ao Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Porém, há uma ineficiência na fiscalização e na forma como é tratado o assunto pela OAB. Soma-se a isto o fato de o indivíduo, acusado, não possuir ferramentas para inibir esta tão cruel prática do defensor nomeado, pois, mesmo constituindo infração disciplinar, não se sabe a quem recorrer, não há um órgão de conhecimento público e de fácil acesso àqueles desprovidos financeiramente, diga-se, a maior parte da população que respondem a processos criminais, são estes, os mais necessitados. Na verdade, não deveria existir defensor dativo, considerando que a prestação administrativa da assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados, é função do Estado possuindo os contornos de um poder-dever, tal como, enfaticamente, o confirma a Constituição no art. 5º, inc. LXXIV. Desse modo, é necessária a participação ampla e efetiva da Defensoria Pública, pois é órgão remunerado pelo Estado, e, em assim sendo, suas funções são exercidas com zelo e as cautelas devidas, sob pena de, não agindo assim, sofrerem procedimentos administrativos e outros que couberem. Ainda, facilmente a comunidade possui acesso às instâncias superiores da Defensoria Pública, através da ouvidoria, utilizando para tanto diversos recursos, tais como endereços eletrônicos, telefones etc. 3.1 DA NULIDADE DO ATO: DEFESA NÃO EFETIVA Como dito anteriormente, para que se considere uma defesa ampla, necessário que esta seja de fato efetiva, não causando prejuízo ao acusado. Por defesa efetiva deve-se entender e exigir a efetiva atuação do defensor em prol dos interesses do acusado, o que poderá ser aferido sempre diante de cada caso concreto, sopesando-se as provas carreadas aos autos pela acusação e a possibilidade real de sua confrontação pela defesa. Na prática, porém, são vistas defesas deficientes que, na maioria das vezes, afasta do acusado seu direito de ampla defesa e, consequentemente, acarreta um enorme prejuízo. Nas palavras de Nelson Nery Júnior, o contraditório deve ser “efetivo, real, substancial”. E, por isso, afirma o autor que:  “[…] se houver defesa desidiosa, incorreta, insuficiente tecnicamente, por parte do advogado do réu no processo penal, o feito deve ser anulado e nomeado outro defensor, tudo em nome do princípio do contraditório, conjugado ao da ampla defesa, ambos garantidos pela Constituição”.(1999, p. 130) Também o Ministro Carlos Ayres Brito, quando Relator do Habeas corpus n.º 82672/RJ, assim ponderou: “PROCESSO PENAL – DEFESA. Verificando que o réu esteve indefeso, impõe-se a anulação do processo.Existem situações em que a deficiência da defesa promovida pelo advogado demonstra de tal maneira sua desídia, falta de zelo, de iniciativa, de diligência, que o prejuízo, além de patente, se revela insuperável por influenciar direta e indubitavelmente o resultado da causa, acarretando, com isso, prejuízo ao réu. Nesses casos, é possível equiparar a referida deficiência à total ausência de defesa, a implicar a nulidade dos atos afetados por esse defeito e inclusive a nulidade do próprio feito.” (STF, 1ª Turma, Habeas Corpus n. 82672-RJ, Relator Min. Carlos Britto, j. 14.10.2003, p. DJ 01.12.2006) Com igual entendimento já manifestou o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, consoante se vê: “Processual penal. Habeas Corpus. Defensor Leigo. Nulidade (súmula 523/STF). Conquanto tenha o defensor leigo apresentado, formalmente, defesa prévia e alegações finais, tais peças, de forma alguma, trouxeram conteúdo apto a contradizer os termos da acusação ou a fornecer subsídios ao julgador para uma possível absolvição. Caso que caracteriza total falta de defesa, o que, nos termos da Súmula 523 do colendo Supremo Tribunal Federal, se constitui em nulidade absoluta. Recurso provido”. (STJ, 5.ª Turma, Recurso em Habeas corpus n.º 11254/AM, Rel. Min. Felix Fischer, j. 17/5/2001, p. DJ 13/8/2001. p. 179). Ainda, o Ministro Jorge Scartezzini, do Superior Tribunal de Justiça, assim manifestou: “Processual penal. Habeas corpus. Tribunal do júri. Homicídio qualificado. Ausência de defesa. Configuração. Revogação da constrição do réu. Impossibilidade. Todo e qualquer réu, não importa a imputação, tem direito a efetiva defesa no processo penal (arts. 261 do CPP e 5º, inciso LV da Carta Magna). O desempenho meramente formal do defensor, em postura praticamente contemplativa, caracteriza a insanável ausência de defesa (Precedentes do Pretório Excelso). Inaceitável, portanto, que, no Plenário do Júri, o defensor do réu apenas requeira sua absolvição, sem, contudo, utilizar-se de argumentação mínima e necessária para sustentar seu ponto de vista, restringindo-se a mero comentário de 05 minutos. De outro lado, entretanto, a manutenção do réu sob cárcere é necessária, porquanto durante a instrução empreendeu fuga, embaraçando o bom andamento processual. Ordem concedida apenas para anular o julgamento do Júri, para que outro seja realizado com a devida observância à ampla defesa, mantendo-se, entretanto, a constrição do acusado.” (STJ, 5.ª Turma, Habeas corpus n.º 21938/RJ, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 10/12/2002, p. DJ 17/3/2003. p. 246). Pelo mais, o Supremo Tribunal Federal (STF), editou a Súmula 523, segundo a qual: “No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prejuízo para o réu”. Consagra-se então o pas de nullité sans grief, oriundo da doutrina francesa, segundo o qual, para reconhecimento e a declaração de nulidade de ato processual, este, pela sua imperfeição, causará prejuízos aos interesses das partes e/ou ao regular exercício da jurisdição. Diante do exposto, a defesa não deve e não pode ser apresentada de forma genérica para garantia de uma formalidade, ou seja, não basta apenas praticar o ato processual, é necessário que de tal ato surtam os efeitos jurídicos adequados. O ato praticado deve ser de fato efetivo, em assim não sendo este deverá ser considerado nulo ou no mínimo anulável, tendo em vista o prejuízo que a parte, em regra sem conhecimento jurídico algum, poderá sofrer no curso do processo, em virtude da imperfeição ou defeito daquele. É o denominado princípio do prejuízo, segundo Paulo Rangel, que significar dizer: “não há que se declarar a nulidade de um ato, se, de sua imperfeição, ou defeito, enfim, de sua tipicidade, não resultar prejuízo à acusação ou à defesa” (2010, p. 884) Por certo, não obstante a lei dispuser que um ato processual deva ser praticado de uma forma, não admitindo obscuridade, contradição, se não for e não houver prejuízo para as partes, não há que se declarar nulo o processo a partir da prática deste ato. Os princípios da celeridade e da economia processual impedem que o processo seja retificado ou renovado ou diante de um ato imperfeito que não trouxe prejuízo para as partes. Assim, a formalidade na prática do ato objetiva um determinado fim e, se este não é alcançado, causando prejuízo às partes, há que se falar em nulidade. Extrai-se que da matéria relativa a nulidades deve ser observada pelo prisma do prejuízo, porquanto, “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”, consoante o artigo 563, do CPP. Ademais, a doutrina majoritária sustenta que o princípio do prejuízo somente será analisado nas nulidades relativas, visto que, nas absolutas, o legislador não exige a demonstração do prejuízo. Neste sentido, Ada Pellegrini Grinover (apud RANGEL, 2010, p. 885) diz: “As nulidades absolutas não exigem demonstração do prejuízo, porque nelas o mesmo é evidente. Alguns preferem afirmar que nesses casos haveria uma presunção de prejuízo estabelecida pelo legislador, mas isso não parece correto, pois as presunções levam normalmente à inversão do ônus da prova, o que não ocorre nessas situações, em que a ocorrência do dano não oferece dúvida.” Fernando da Costa Tourinho Filho, na mesma linha de raciocínio de Ada Pellegrini, diferenciando apenas quando se fala em presunção, diz: “Se, a despeito de imperfeito, o ato atingiu o seu fim, sem acarretar-lhes prejuízo, não há cuidar-se de nulidade. A não ser que se trate de nulidade absoluta, cujo prejuízo é presumido. O prejuízo, aqui, evidentemente, é o júris et de jure…inadmitindo prova em contrário. “(2009, p. 118) Eugênio Pacelli de Oliveira assim expõe: “Configuram, portanto, vício passível de nulidades absolutas as violações aos princípios fundamentais do processo penal, tais como o do juiz natural, o do contraditório e da ampla defesa, o da imparcialidade do juiz, a exigência da motivação das sentenças judiciais etc., implicando todos eles a nulidade absoluta do processo”. (OLIVEIRA, 2009, p. 697, grifo nosso) Necessário que haja uma visão garantista do processo penal, pois a concepção meramente formal poderá acarretar em injustiças de difícil reparo, tendo em vista que, frequentemente, são vistos nos processos penais de primeira instância do Estado da Bahia, inúmeras defesas sem qualquer fundamento, apresentadas por advogados nomeados e não remunerados, que sequer tiveram contato com o processo, que dirá com o acusado. 4 DA DEFENSORIA PÚBLICA Tida como uma notável instituição da República, a Defensoria Pública surgiu com a Lei Complementar n.º 80, datada de 12 de janeiro de 1994. Algumas reflexões podem ser feitas, especialmente em face do que determina a própria Constituição Federal, que de um lado assegura aos necessitados o direito à orientação jurídica e à defesa em todos os graus de jurisdição, e de outro, impõe ao poder público a obrigação de promover a organização e o aparelhamento da Defensoria Pública quer no plano da União, quer no âmbito do Distrito Federal e dos Estados Membros. A defensoria Pública, neste contexto, qualifica-se como um valiosíssimo instrumento de concretização de direitos e liberdades, de que também são titulares as pessoas carentes e necessitadas. Como é sabido, a Defensoria Pública é um Órgão criado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, para defender o cidadão carente. Ou seja, o acesso à justiça de todos os cidadãos é incumbência do Estado, e direito de todos indistintamente. O Estado tem o dever de promover o acesso de todos à justiça. Para assegurar tal direito criou-se a Defensoria Pública. A Defensoria é órgão autônomo, cuja regulamentação se deu com a criação, em 07 de outubro de 2009 pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva da Lei 132/09, alterando dispositivos da Lei Complementar supra mencionada, que organiza, amplia e moderniza seu trabalho, aumentando suas atribuições no âmbito da União e dos Estados. O Art. 134 da Constituição Federal define “A Defensoria Pública como sendo uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV. Assim, o Defensor Público existe para todas as pessoas que têm necessidade de conhecer seus direitos, lutar por eles e de se defender. Os objetivos da Defensoria Pública são pautados na prestação de serviço de advocacia pública gratuita aos necessitados, mas em verdade repercute na sociedade como um todo. Implica em várias áreas, não só no direito de o cidadão acessar a justiça, mas também, por exemplo, o pequeno comerciante que se vê envolvido em litígio de natureza comercial de falência, pode se beneficiar nos trabalhos oferecidos pela Defensoria para resguardar seu comércio, evitando, assim, decisão que lhe desfavoreça senão acompanhado de profissional. 4.1 DA DEFESA APRESENTADA POR DEFENSOR PÚBLICO Reconhecidamente, a Defensoria é instituição que realiza um trabalho social, de suma relevância no mundo da justiça social. E mais, além de proporcionar o acesso à justiça, busca, sobretudo, alcançar decisões justas aos demandados. Ao fazer concurso público e ingressar na carreira, o Defensor Público é o profissional responsável por oferecer assessoria jurídica em processos judiciais, extrajudiciais ou em outras ocasiões necessárias ao cidadão que não pode pagar um advogado particular. Dessa forma, o Defensor Público, como frisamos, é remunerado pelo Estado, ou seja, não é ele advogado dativo que nada recebe ao exercer o múnus público, nem tampouco deve ser comparado a advogado que prestam serviços temporários ao Estado. Ou seja, somente podem exercer a atividade de Defensor Público aquele que prestou concurso para este cargo. Neste sentido já firmou entendimento o Supremo Tribunal Federal, consoante decisão que adiante se vê: “CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 8.742, DE 30 DE NOVEMBRO  DE 2005, DO ESTADO DO RIO GRANDE NORTE, QUE “DISPÕE SOBRE A CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE ADVOGADOS PARA O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO DE DEFENSOR PÚBLICO, NO ÂMBITO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO”. 1. A Defensoria Pública se revela como instrumento de democratização do acesso às instâncias judiciárias, de modo a efetivar o valor constitucional da universalização da justiça (inciso XXXV do art. 5º da CF/88). 2. Por desempenhar, com exclusividade, um mister estatal genuíno e essencial à jurisdição, a Defensoria Pública não convive com a possibilidade de que seus agentes sejam recrutados em caráter precário. Urge estruturá-la em cargos de provimento efetivo e, mais que isso, cargos de carreira.  3. A estruturação da Defensoria Pública em cargos de carreira, providos mediante concurso público de provas e títulos, opera como garantia da independência técnica da instituição, a se refletir na boa qualidade da assistência a que fazem jus os estratos mais economicamente débeis da coletividade.4. Ação direta julgada procedente.” ADI 3700 – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.   O Defensor Público não promove aos necessitados apenas o acesso ao Poder Judiciário, ou seja, a possibilidade de participar de um processo. O acesso à Justiça, que significa despertar em todo cidadão a consciência de que ele tem direitos e obrigações que podem se tornar uma realidade em sua vida. O acesso a Justiça é considerado um direito humano e um caminho para a redução da pobreza por meio da promoção da equidade econômica e social. Onde não há amplo acesso a uma Justiça efetiva e de qualidade, a democracia está em risco e o desenvolvimento não é possível. Como já dito, o Defensor Público é servidor e tem por obrigação promover a assistência jurídica integral e gratuita custeada ou fornecida pelo Estado, de modo que a não realização desta incumbência poderá gerar desligamento do órgão através de processo administrativo. Soma-se a isto o fato de a Defensoria Pública ter órgão fiscalizador interno, no caso, a Corregedoria Geral, que zela pela observância do regime disciplinar daquela, ou seja, a Corregedoria Geral é a instância que acompanha, fiscaliza e orienta a regularidade dos serviços, bem como apura eventuais infrações administrativas e disciplinares dos membros e servidores da instituição. Lei tem que ser efetivamente cumprida e por isso a Defensoria Pública deve crescer aproximando-se cada vez mais da população. Com este objetivo foi criada a ouvidoria, porta voz legítima dos atendidos pela Defensoria, cujo objetivo é acompanhar a gestão, promover a transparência e qualidade dos serviços prestados. E para ampliar a facilidade em manter a população em contato com a Defensoria Pública da Bahia, tem-se ainda o serviço de telefonia 129. Desta forma, tem-se garantido o direito do cidadão em denunciar qualquer prática inefetiva ou ineficaz do defensor quando da sua atuação na ação penal. Neste diapasão, a defesa apresentada em juízo criminal pelo Defensor Público não deve vir de forma genérica, apenas para cumprir formalidade legal, pois em assim sendo poderá a parte, que se sentir prejudicada, buscar solução rápida junto ao órgão fiscalizador, ou seja, à Corregedoria Geral. Soma-se a isto o fato de o Defensor Público, por exercer função pública, propenso às penalidades legais no caso de desídia, ter o dever para com o acusado. Isto é, os serviços prestados pela Defensoria Pública devem ser oferecidos em obediência ao princípio administrativo da eficiência de seus atos. Quer dizer, todo ato exercido pelo Poder Público (é o caso da Defensoria Pública), deve ser pautado na necessidade de produção de resultados positivos. Segundo este princípio, a Administração Pública não está autoriza a agir, sem proporcionar resultados positivos à população em geral. Portanto também aplicável à atuação da Defensoria Pública no Processo Penal.  Assim, entende-se que, em regra, a referida defesa é merecedora de elevado grau de credibilidade em relação àquelas propiciadas por advogados nomeados, que como já dissemos, nenhum compromisso há para com a prestação de serviços jurídicos, ora gratuito e sem fiscalização, nem mesmo assim com o acusado, que na sua grande maioria são pessoas pobres e completamente ignorantes ao se tratar de conhecimentos jurídicos. Com louvor é vista a Defensoria Pública, posto que, ao lado de outros órgãos, como o Ministério Público, exercem o poder para promoção da justiça social. É importante ressaltarmos, contudo, que a Defensoria Pública, para uma atuação eficiente, necessita de uma participação ativa do poder público, principalmente no que se refere a questões de infra-estruturas e salariais, de modo que, somente com um número maior de defensores, com salários dignos, proporcional aos serviços prestado, é que haverá eficiência e efetividade junto às demandas jurisdicionais. Isto quer dizer ainda que um número reduzido de defensores para uma demanda cada vez maior de ações penais tende a tornar ineficazes os serviços prestados pelo Estado, no que tange a assistência judiciária gratuita aos necessitados e ainda que, sem remuneração adequada, os serviços jurídicos para pobres tendem a ser pobres. Sabe-se ainda que o Brasil é um país de dimensões continentais e se encontra abarrotado de problemas sociais e emergenciais, no que concerne às necessidade sociais da população. Quanto maior o número de problemas sociais ainda não solucionados, menos será a eficácia dos serviços prestados pelo Estado. O Brasil enfrenta inúmeros problemas, em diversas searas, mas, os mais acentuados, estão no âmbito social, no qual a maioria das pessoas sofrem com a falta de estrutura do Estado, no que concerne aos serviços públicos essenciais, que estão elencados na Constituição Federal, como moradia, educação, saúde, etc. A demanda exaustiva, sem dúvida é um fator determinante para a não prestação jurisdicional efetiva. 4.2 DA NECESSIDADE DO AUMENTO DO CONTINGENTE DE DEFENSOR PÚBLICO NO ESTADO DA BAHIA Nos tópicos anteriores foram expostos os fatos relevantes que dimensiona o trabalho efetuado pela Defensoria Pública quando da defesa do acusado necessitado, na busca de uma pena justa, compatível com o delito praticado. De forma adversa, fora demonstrada a carência das defesas apresentadas por advogado dativo que, em regra, não condizem com as realidades fáticas, eis que desmotivados e sem fiscalização. Tendo como base tais relatos e ainda os fatos demonstrados acima no que concerne a apresentação de uma defesa eficaz e efetiva em favor do acusado, é que medidas de urgência devem ser tomadas objetivando a garantia constitucional da ampla defesa. Para que o acusado, pobre no sentido legal, tenha oportunidade de vê o seu direito assegurado, é justo que haja um trabalho consistente por parte daquele que irá propor sua defesa e, em sendo assim, justo também seria se sua defesa fosse propiciada por Defensor Público, sujeito de real compromisso com a função pública. Hoje, no Estado da Bahia, a Defensoria Pública atua em 34 (trinta e quatro) cidades[3], ou seja, aproximadamente 8% (oito por cento) de todas as existentes no Estado que são em número de 417 (quatrocentos e dezessete)[4]. Para uma maior precisão, existem 199 (cento e noventa e nove) Defensores Públicos, dos quais, 68 (sessenta e oito) estão na capital e os demais no interior.[5]  Os números de Defensores que atuam na esfera criminal são insignificantes diante da demanda existente no Estado baiano, de modo que se torna humanamente impossível o atendimento a todos os presos, levando-se em consideração a população carcerária que vem aumentando exageradamente.Conforme o Ministério da Justiça[6], tomando como referência o mês 06/10, há 16.907 presos, são 115,51 para cada 100.000 habitantes. Nesta esteira, é de fundamental importância o aumento no número de Defensores Públicos no Estado baiano, que obrigatoriamente devem prestar seus serviços à comunidade em geral, não somente as pessoas necessitadas carecem de uma Defensoria Pública forte e atuante, já que ela é um instrumento de pacificação da sociedade e de promoção dos direitos humanos. Direitos humanos não escolhe classe social. Não há dúvidas quanto à obrigatoriedade da presença da Defensoria Pública nas Comarcas do Estado da Bahia, através de seus representantes, sendo inafastável o dever do Estado em cumprir esse desiderato, elevando o número de Defensores Públicos. Nestas circunstâncias, terá o acusado seu pleno direito de defesa exercido por meio da Defensoria Pública que, por certo, trará uma maior segurança e efetividade na defesa técnica apresentada. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Do exposto, extrai-se que os Defensores Públicos, por terem a incumbência, determinada por lei, de patrocinarem a defesa dos menos afortunados, além de haver uma fiscalização mais ativa quanto ao descumprimento de qualquer de suas funções, buscam, por certo, proceder a uma defesa realmente efetiva no bojo do processo penal. Soma-se a isto o fato daqueles profissionais serem remunerados pelo Estado e terem em vista a relevância dos seus trabalhos no mundo da justiça social. Em contrapartida, no Estado da Bahia, não se vê advogados dativos sendo remunerados pelos múnus que ora patrocinam, ao contrário, nada recebem, apesar da existência da tabela de honorários. Ademais, tais advogados, objetivando fazer valer sua profissão, ou seja, com a pretensão precípua de auferir renda, atuam em vários processos, diversas comarcas e ainda, em áreas distintas, o que dificulta a prestação jurisdicional gratuita. Toda e qualquer pessoa é uma parte muito importante da sociedade em que vive. Em segundo, não apenas as 34 (trinta e quatro) cidades baianas carecem de defensores, mais todas devem ser atendidas por aquele profissional que diga-se, diuturnamente, desempenham sua função, como vocação, abnegação e responsabilidade, nutrindo a esperança da valorização da carreira, instrumentalização da Instituição e dignidade dos assistidos. A vista desta explanação, o meio mais coerente para amenizar este problema social, que é uma defesa mal formulada e ineficaz, seria o aumento do contingente de Defensores Públicos, que, por certo, trariam maior segurança jurídica aos acusados, ressalte-se, a maioria pobre no sentido legal.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-88/da-necessidade-de-ampliacao-do-contingente-de-defensor-publico-no-estado-da-bahia-como-forma-de-efetivacao-da-ampla-defesa-criminal-voltada-a-pessoas-de-baixa-renda/
O crime de lesões corporais leves na Lei Maria da Penha
No estudo desenvolvido optamos por abordar a problemática da continuidade da ação penal, independentemente da vontade da vítima, nos casos em que envolvam lesões corporais leves no âmbito familiar. A escolha do tema se deve ao fato da violência doméstica ser uma realidade inserida no Estado e existir independentemente da classe social ou condição financeira dos seus agentes. Esse tema é bastante polêmico, ainda não existindo uma posição pacificada dentro de nossos Tribunais Superiores.
Direito Processual Penal
1. Introdução O presente artigo terá por escopo analisar a natureza jurídica da ação penal a ser utilizada nos casos em que envolvam lesões corporais leves, quando praticadas no âmbito familiar, considerando a aplicação da Lei 11.340/06, popularmente conhecida como “Maria da Penha”. Para o desenvolvimento dos estudos utilizou-se a pesquisa bibliográfica, jurisprudencial e a pesquisa de campo realizada junto a Operadores do Direito. Este artigo fará, inicialmente, uma breve análise acerca da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95). Após trataremos do crime de lesões corporais leves, dando-se enfoque na polêmica ocasionada por esse delito na Lei Maria da Penha, onde abordaremos a discussão travada entre os artigos 16 da Lei Maria da Penha, que prevê a retratação da vítima, e, consequentemente, entende que se aplica a ação penal pública condicionada aos casos de lesões corporais leves, e o artigo 41, da mesma Lei, que afasta a Lei dos Juizados Especiais, entendendo que deva ser aplicada a ação penal pública incondicionada. 2. Breve Análise da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95) Atendendo disposição constitucional (artigo 98, inciso I, da Contituição Federal) e com o intuito de desafogar a Justiça Criminal de crimes de menor gravidade, foram criados através da Lei 9.099, em 26 de setembro de 1995, os Juizados Especiais Criminais, orientados pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. Assim explica Julio Fabbrini Mirabete: “Passou-se, assim, a exigir um processo penal de melhor qualidade, com instrumentos mais adequados à tutela de todos os direitos, assegurando-se a utilidade das decisões judiciais, bem como a implantação de um processo criminal com mecanismos rápidos, simples e econômicos, de modo a suplantar a morosidade no julgamento de ilícitos menores, desafogando a Justiça Criminal, para aperfeiçoar a aplicação da lei penal aos autores dos mais graves atentados aos valores sociais vigentes”. (MIRABETE, 2002, p. 24). O doutrinador Fernando da Costa Tourinho Filho justifica a criação dos Juizados Especiais: “Os procedimentos morosos, com seus extensos arcos procedimentais, já não se justificam para a solução de infrações penais de frágil potencialidade ofensiva”. (TOURINHO FILHO, 2008, p. 14). Por sua vez, Ada Pellegrini Grinover descreve como deve ser o procedimento utilizado pelos Juizados Especiais: “Deve ser impregnado da simplicidade e da informalidade, que é a marca principal do juizado. É assim que a audiência preliminar deverá acontecer: com os interessados, o Ministério Público e o Juiz, reunidos, expondo as suas posições, a fim de que, se for o caso, evite-se a instauração do processo e possa a vítima ser reparada”. (GRINOVER, 2005, p. 84). Outrossim, há de ser salientada a importância da aplicação da Lei dos Juizados Especiais para o falido sistema penal brasileiro, medida em que a referida Lei propõe a aplicação de penas alternativas ou substitutivas (transação penal, restritiva de direito, multa). Nesse sentido ensina Carmem Hein de Campos: “[…] a aplicação de penas consideradas alternativas ou substitutivas, para uma série de delitos, significa uma vitória do movimento criminológico moderno que, há muito, vem demonstrando a falência da pena de prisão em todo o mundo, e em especial nos países latino-americanos. Em uma perspectiva positiva, espera-se que o discurso minimalista possa ganhar cada vez mais adeptos e mudar o quadro de dor e de violações aos direitos humanos provocados pelo sistema penal brasileiro”. (CAMPOS, 2003, p. web). No entanto, para melhor compreensão da Lei dos juizados Especiais, se faz necessário compreendermos o que vem a ser um crime de menor potencial ofensivo, o qual analisaremos a seguir. 2.1. O Delito de Menor Potencial Ofensivo Conforme previa inicialmente o artigo 61 da Lei dos juizados Especiais, se depreende que o legislador, inicialmente, delimitou o conceito de menor potencial ofensivo baseando-se no critério da pena cominada, como podemos analisar pela antiga transcrição do referido artigo: “[…] as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial”. Com o surgimento da Lei 10.259/01, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, o conceito de crime de menor potencial ofensivo passou a sofrer alterações, conforme previa o parágrafo único, do artigo 2º, da referida Lei: “consideram-se as infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”. Mais tarde, surgiu a Lei 11.313/06, que deu nova redação ao artigo 61 da Lei 9.099/95, o qual restou redigido da seguinte forma: ”Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”. Comentando a referida alteração, leciona Fernando da Costa Tourinho Filho: “[…] com a promulgação da Lei 11.313/2006, que deu nova redação ao art. 61 da Lei sob comentário, passando a considerar infrações de menor potencial ofensivo não só as contravenções como também os crimes cuja pena máxima não ultrapasse dois anos”. (TOURINHO FILHO, 2008. p. 74). Desta forma, podemos concluir que o delito de menor potencial ofensivo são todas as contravenções penais e os crimes em que sua pena máxima não seja superior a dois anos, cumulada ou não com multa. 2.2. Comentários Acerca do Artigo 88 da Lei dos Juizados Especiais Conforme transcrição do artigo 88, da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais, se depreende que, nos casos de lesões corporais leves, a Lei passou a exigir a representação da vítima para o prosseguimento da ação penal, ou seja, a ação passou a ser pública condicionada à representação. Eis a transcrição do referido artigo: “Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”. Sobre o tema leciona Cézar Roberto Bitencourt: “Os crimes de lesões corporais leves e de lesões corporais culposas continuam sendo de ação penal pública, mas, para movimentar o aparelho repressivo estatal, dependerão da satisfação de uma condição por parte do ofendido, qual seja, a representação. Em outros termos, a ação penal, nesses crimes, passa a ser pública condicionada (art. 88)”. (BITENCOURT, 1997, p. 97). Continuando, o doutrinador referido acima entende que foi benéfico para o Judiciário a alteração trazida pela Lei 9.099/95 no que se refere à natureza jurídica da ação penal a ser utilizada nos casos de lesões corporais leves, uma vez que, em grande número, as partes envolvidas se reconciliam. “Na maioria das vezes, o dano produzido pelo delito de lesões corporais leves beira os limites da insignificância, não justificando todo dispêndio na movimentação da pesada máquina burocrática do Poder judiciário. Mas constrangidas pelo princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, milhares de ações penais abarrotam os escaninhos dos Foros brasileiros, praticamente sem sentido, onde, muitas vezes, as partes envolvidas já realizaram sua composição pessoal”. (BITENCOURT, 1997, p. 98 a 99). Assim, com a possibilidade da vítima ter a opção de não representar criminalmente contra o autor do fato, entendemos que a Lei dos Juizados Especiais representou um grande avanço para o país, pois não só as partes foram beneficiadas, uma vez que passaram a não precisar acompanhar uma instrução criminal onde, em muitas vezes, o fato já está resolvido entre autor do fato e vítima, como também o Judiciário se viu agradecido, por ver seus cartórios criminais desafogados de ações de pequeno porte. 3. O Crime de Lesões Corporais Leves O delito de lesões corporais leves ocorre quando existe ofensa à integridade corporal ou a saúde de outrem, como estabelece o artigo 129, “caput”, do Código Penal brasileiro: “Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”. Considerando que não existe qualquer ressalva no Código Penal em relação ao referido delito, tal crime se processava mediante ação pública incondicionada até a criação da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais. Ocorre que, a Lei 9.099/95, alterou a natureza da ação penal prevista nesse crime para ação penal pública condicionada à representação da vítima. Em outras palavras, a referida lei passou a descrever o delito de lesões corporais leves como crime de menor potencial ofensivo. Nesse sentido aponta Maria Berenice Dias: “A Lei dos Juizados Especiais, ao introduzir mecanismos despenalizadores, elegeu como de pequeno potencial ofensivo, entre outros, os crimes de lesão corporal leve e de lesão culposa, transformando-os em delitos de ação pública condicionada. Ou seja, o desencadeamento da ação penal passou a depender da representação do ofendido”. (DIAS, 2007, p. 116). Após a vigência da Lei 9.099/95, o nosso sistema processual penal teve sua posição bem definida acerca da aplicação da ação penal aos fatos descritos no artigo 129, “caput”, do Código Penal, inclusive quando estes ocorridos no seio familiar, aplicando-se a ação pública condicionada à representação da vítima. No entanto, com a criação da Lei Maria da Penha, surgida em 2006, se iniciou um debate acalorado sobre a natureza jurídica da ação penal a ser utilizada nos casos envolvendo lesões corporais leves praticadas no âmbito familiar. Isso se deu devido à controvérsia existente entre os artigos 16 e 41 da Lei Maria da Penha, como analisaremos a seguir. 3.1. A Polêmica Sobre o Crime de Lesões Corporais Leves na Lei Maria da Penha Diz o artigo 16 da Lei Maria da Penha: “Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”. Até aqui, nada muito distinto ocorreu em relação à Lei 9.099/95 no que se refere ao poder de retratação da vítima, sendo respeitado, dessa forma, o desejo da ofendida pelo trancamento ou não da ação penal, aplicando-se, assim, a ação pública condicionada à representação. Além do mais, a interpretação do artigo 16 da Lei Maria da Penha vai ao encontro do estabelecido no artigo 88 da Lei 9.099/95, que diz: “Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”. No entanto, a polêmica na lei Maria da Penha se deu com a elaboração de seu artigo 41, que diz o seguinte: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995”. Assim, surgiu a dúvida: devemos seguir o artigo 16 da Lei Maria da Penha, aceitando a retratação da vítima perante o Juiz, quando ela não desejar o prosseguimento da ação penal e, dessa forma, compactuar com a Lei 9.099/95, entendendo que deva ser aplicada a ação pública condicionada à representação da vítima, ou, devemos seguir o artigo 41 da Lei Maria da Penha, que afasta a Lei 9.099/95 e entende que devemos aplicar a ação penal pública incondicionada nos casos de lesões corporais leves, ou seja, como era feito anteriormente à criação da Lei 9.099/95. Diante dessa discussão criaram-se duas correntes doutrinárias divergentes no que diz com a natureza da ação penal a ser aplicada nos casos de lesões corporais leves, quando praticadas no âmbito doméstico: uma que defende a adoção da ação pública condicionada e outra que defende a aplicação da ação pública incondicionada, como veremos adiante. 3.1.1. Artigo 16 da Lei Maria da Penha e o Desencadeamento da Ação Penal Pública Condicionada A Lei Maria da Penha, através de seu artigo 16, admitiu a renúncia à representação da vítima, em audiência, perante o Juiz, conforme podemos observar pela transcrição do referido artigo: “Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.” Inicialmente, cabe destacar que o termo utilizado no artigo 16 da Lei Maria da Penha: “renúncia à representação”, trouxe inúmeras críticas por parte da doutrina, a qual entendeu que o termo correto a ser utilizado seria “retratação da representação”. Nesse sentido entende Marcelo Lessa Bastos: “Onde se lê, no art. 16, “renúncia”, leia-se “retratação” (BASTOS, 2006, p. 08). Na mesma linha aponta Carla Campos Amico: “Fala a Lei em renúncia à representação quando, na realidade, deveria constar retratação à representação, uma vez que renúncia somente poderia ocorrer antes do exercício do direito de representação”. (AMICO, 2007, p. 19). A celeuma causada pela utilização do termo “renúncia” ou “retratação” se deve ao fato da vítima, nos casos de violência doméstica, representar criminalmente contra o autor do fato já na Delegacia de Polícia, ou seja, no momento da lavratura do boletim de ocorrência, conforme estabelece o inciso I, do artigo 12, da Lei Maria da Penha: “Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal: I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada”. Então, considerando que “renúncia” significa não exercer o direito de representar, ou, como melhor explica Luis Flávio Gomes e Alice Bianchini: “Trata-se de ato unilateral que ocorre antes do oferecimento da representação” (GOMES; BIANCHINI, 2006, p. web), não há que se falar em “renúncia”, mas sim “retratação”, que é a desistência de uma representação já efetuada, na Delegacia de Polícia. Assim, optamos neste artigo pela utilização de “retratação à representação” em vez do termo utilizado pela Lei: “renúncia à representação”. Superado isso, passamos a analisar a retratação à representação e sua conseqüente influência na natureza jurídica da ação penal nos casos envolvendo lesões corporais leves, quando praticados no âmbito familiar. O artigo 16 da Lei Maria da Penha vem causando grande polêmica entre a doutrina devido ao fato de tal artigo compactuar com a Lei dos Juizados Especiais, Lei 9.099/95, que permite a retratação da representação da vítima e, ao mesmo tempo, divergir do artigo 41 da própria Lei Maria da Penha, o qual simplesmente afasta a Lei dos Juizados Especiais da Lei Maria da Penha. No entanto, o que podemos observar pela simples leitura do artigo 16 da Lei Maria da Penha é que existe a possibilidade da vítima retratar sua representação criminal contra o agressor, como observamos a seguir pela transcrição do referido artigo: “(…) será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade (…)”. Desta forma, considerando que a Lei Maria da Penha confere à vítima poder para retratar sua representação manifestada contra o autor do fato na Delegacia de Polícia, entendemos que o feito deva ser arquivado e, consequentemente, estaremos diante de caso de ação pública condicionada à representação da ofendida. Nessa esteira ensina Maria Berenice Dias: “Não foi outra a intenção do legislador. A Lei Maria da Penha faz referência à representação e admite a renúncia à representação. Tanto persiste a necessidade de a vítima representar contra o agressor que sua manifestação de vontade é tomada a termo quando do registro da ocorrência. A autoridade policial, ao proceder o registro da ocorrência, ouve a ofendida, lavra o boletim de ocorrência e toma a representação a termo (art. 12, I). Ou seja, a ação depende mesmo de representação. De outro lado, é admitida, antes do recebimento da denúncia, a “renúncia à representação”, que só pode ser manifestada perante o juiz em audiência e com a participação do Ministério Público. Não teria sentido o art. 16 da Lei Maria da Penha falar em renúncia à representação, se a ação penal fosse pública incondicionada”. (DIAS, 2007, p. 120). Continuando, Maria Berenice Dias justifica o seu posicionamento favorável à ação pública condicionada: “[…] não há como pretender que se prossiga uma ação penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal […] não pode a lei abandonar a vítima e perseguir o agressor, o que, certamente, não contribuirá em nada para apaziguar os vínculos familiares que precisam continuar harmônicos […]”. (DIAS, 2007, p. 124). Nesse sentido também se posiciona Damásio de Jesus: “É contraditório afirmar, em face do art. 41 da Lei Maria da Penha, que a ação penal é incondicionada, e, ao mesmo tempo, defender, perante o art. 16, que não se pode interpretar a expressão renúncia no sentido de desistência da representação. Adotada a tese de ação pública incondicionada, como falar em renúncia ou retratação da representação?” (JESUS, 2006, p. 88). Por sua vez, Pedro Rui da Fontoura Porto, se referindo diretamente ao delito de lesões corporais leves, ensina: “Parece mais lógico reconhecer que o legislador não quis, com a redação do art. 41, tornar o delito de lesões corporais leves novamente um crime de ação penal pública incondicionada.  Essa conclusão melhor se harmoniza com a nova lei, tanto conciliando seus próprios dispositivos que parecem privilegiar a representação da vítima, como conectando as novas regras com todo o sistema jurídico penal preexistente”. (PORTO, p. web). Damásio de Jesus aduz que o desencadeamento da ação pública incondicionada nos casos de lesões corporais, quando praticadas no ambiente familiar, viria a ferir o Direito Penal de Intervenção Mínima. “Não pretendeu a lei transformar em pública incondicionada a ação penal por crime de lesão corporal cometido contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, o que contraria a tendência brasileira de admissão de um Direito Penal de Intervenção Mínima”. (JESUS, 2006, p. 88). E, por fim, também aderindo a corrente doutrinária que defende a ação pública condicionada à representação da ofendida, se posiciona de Carla Campos Amico: “A Lei Maria da Penha veio propiciar à vítima a discricionariedade de avaliar a necessidade da intervenção do Estado em sua relação doméstica e familiar. Portanto, a ação penal para os crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa praticados contra a mulher em situação de violência doméstica e familiar permanece condicionada à representação, não sendo alcançada pelo art. 41 da Lei 11.340/2006”. (AMICO, 2007, p. 19). Também adota esse entendimento o Juiz Titular da 1ª Vara Criminal da Comarca de Guaíba/RS, Dr. Ricardo Zem, como podemos observar pela transcrição de parte da entrevista realizada com o Magistrado, quando perguntado a ele sobre o seu posicionamento acerca da aplicação de ação pública condicionada ou ação pública incondicionada: “Com todo o respeito de quem entende que a ação é pública incondicionada, eu vou me reportar ao artigo 16 da Lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha, como é conhecida. Diz que: “nas ações públicas condicionadas à representação da ofendida”. Então, já o artigo 16 já diz que existe ações públicas condicionadas, dependendo do fato que é imputado. E mais adiante: “de que trata esta Lei, só será admitida renúncia à representação”. Ora, se a Lei é expressa em dizer que necessita de representação e que também é possível a renúncia à representação, não cabe o operador do direito julgar contra a Lei, esquecendo-se que esta matéria, de representação, é matéria de ordem eminentemente penal, de direito material, prevista no Código Penal, inclusive como causa de extinção da punibilidade. A Lei Maria da Penha não pode ser vista fora do ordenamento jurídico. Nenhum tipo de interpretação é possível em prejuízo do réu. Acho que essa discussão, pedindo desculpa a quem entende o contrário, essa discussão está totalmente desassociada não só da Lei, mas do ordenamento jurídico penal como um todo.” Acompanhando o entendimento do referido Magistrado, também se manifesta o Promotor de Justiça, Titular da 1ª Promotoria de Justiça Criminal da cidade de Guaíba/RS, Dr. Alexandre Aranalde Salim: “A razão para se destinar à vítima a oportunidade e a conveniência para a instauração da ação penal, em certos crimes, nem sempre está relacionada com a menor gravidade do ilícito praticado. Por vezes, isso se dá para proteger a intimidade da vítima em casos nos quais a publicidade do fato delituoso pode gerar danos morais, sociais e psicológicos, tal qual ocorre nos crimes contra a liberdade sexual. Penso que esse entendimento deva ser acolhido, também, em sede de Lei Maria da Penha. A decisão é da vítima. Havendo coação ou qualquer tipo de ameaça ou constrangimento por parte do agressor, o Estado não só pode como deve tomar, de ofício, providências. Esse, aliás, o entendimento da 3ª Seção do STJ, tomado em fevereiro de 2010” (v. REsp 1097042). Prosseguindo, quando perguntado ao referido Membro Ministerial se ele aplica a ação pública incondicionada aos crimes de lesões corporais, quando praticadas no ambiente familiar, ele foi claro ao dizer que aplica somente nos casos de lesões corporais graves, e não nos casos de lesões corporais leves. “Depende do crime. A resposta é sim caso restem na vítima lesões corporais de natureza grave. A resposta é não caso se trate de ameaça ou lesão corporal de natureza leve”. Por sua vez, a Defensora Pública do Estado do Rio Grande do Sul, lotada nas Comarcas de Guaíba/RS e Eldorado do Sul/RS, Dra. Melina Paiva Coronel, se estendeu no mesmo sentido, sendo favorável à aplicação da ação pública condicionada à representação da ofendida nos casos de lesões corporais leves praticadas no âmbito familiar: “Como é uma Lei que se refere ao âmbito familiar, não tem cabimento se ter uma condenação porque ele agrediu verbalmente ou, às vezes, até fisicamente, mas a vítima perdoou e quer ficar com ele porque ele é bom marido e aí o Juiz vai fazer uma sentença e vai condenar alguém que a vítima já perdoou. Então é complicado. Teria que ter uma cultura das mulheres não admitirem isso. Eu acho que se a maior interessada, que é a vítima, continua morando com ele e a relação se mantém apesar do fato, não teria porque prosseguir com a ação penal”. Vale lembrar que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também vem firmando maciçamente a sua posição nesse sentido, conforme podemos observar pela decisão do “Habeas Corpus” n.º 70038265146, proferido pela 1ª Câmara Criminal: “EMENTA:  HÁBEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. LESÃO CORPORAL LEVE. ARTIGO 129, § 9º, DO CÓDIGO PENAL. REPRESENTAÇÃO CRIMINAL. RENÚNCIA FEITA PELA VÍTIMA PERANTE O JUIZ. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. Conforme dispõe o art. 16 da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), “nas ações penais públicas condicionadas à representação de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”. Na hipótese, antes do recebimento da denúncia, a vítima, em audiência, na presença da juíza a quo, renunciou expressamente à representação. Assim, ao receber a denúncia e determinar o prosseguimento do feito, a Magistrada comete flagrante constrangimento ilegal. Inviável a adoção da tese de que o art. 41 da Lei Maria da Penha tornou a ação penal pública incondicionada no delito de lesão corporal leve, pois o dispositivo que tornou a lesão leve de ação penal pública condicionada à representação está nesta lei (art. 88). Isso porque a efetiva intenção do legislador, ao colocar tal restrição, foi exclusivamente a de afastar a transação penal e a suspensão condicional do processo das infrações penais envolvendo violência doméstica, bem como imprimir a elas rito mais formal do que o sumaríssimo. Em momento algum houve o propósito, por parte do legislador pátrio, de retirar da esfera de disponibilidade da mulher lesionada levemente o direito de impulsionar ou não o início da ação penal. Tanto que o art. 16 da Lei Maria da Penha confere à possibilidade de renúncia à representação, desde que feita antes do recebimento da denúncia. Interpretação diversa praticamente tornaria inócua, na prática, a aplicação do art. 16 da Lei 11.340/06, pois é sabido que os casos de violência doméstica se resumem basicamente ao crime de lesão corporal leve praticado contra a mulher. Desse modo, diante do flagrante constrangimento ilegal, deve ser trancada a ação penal movida contra o paciente. Concedida a ordem” (Habeas Corpus Nº 70038265146, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, Julgado em 15 de setembro de 2010). Nesse referido julgamento, o e. Desembargador Relator, Dr. Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, entendeu que não cabe ao Estado cometer excessos, intervindo e decidindo de forma absoluta no seio familiar para resolver questões em que a própria vítima já retratou sua representação criminal contra o agressor, perante o Juiz. “Embora o Estado deva resguardar os interesses da mulher lesionada levemente na relação doméstica, não há que se cometer excessos, tomando para si o poder de intervir de forma absoluta na família. Para exemplificar, veja-se que até na hipótese de delitos sexuais a mulher casada tem a possibilidade de decidir sobre a propositura ou não da ação penal, sendo que relativamente à lesão leve essa faculdade de ver processado ou não o marido estaria sendo dela retirada caso a ação penal fosse tida como pública incondicionada. Desse modo, entendo que, diante da manifestação expressa da vítima em renunciar ao direito de representação, o que fez na presença da juíza, impõe-se o trancamento da ação penal, sob pena de flagrante constrangimento ilegal.” (Habeas Corpus Nº 70038265146, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, Julgado em 15 de setembro de 2010). Também, o Superior Tribunal de Justiça, que, num primeiro momento se posicionou favoravelmente a aplicação da ação pública incondicionada, como veremos no próximo subitem deste artigo, modificou seu entendimento e, atualmente, compactua com a corrente que entende que ação deva ser pública condicionada à representação da vítima, como podemos observar a seguir, pela transcrição da decisão do Recurso Especial n.º 1.051.314, proferida pela 3ª Seção, que é composta pelas 5ª e 6ª Turmas: “EMENTA: PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. LESÃO CORPORAL LEVE. LEI MARIA DA PENHA. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA OFENDIDA. APLICAÇÃO DA LEI 9.099/95. RESTRIÇÃO. INSTITUTOS DESPENALIZADORES. ESPONTANEIDADE DO ATO. VERIFICAÇÃO. ANÁLISE DO CASO CONCRETO. I – A intenção do legislador ao afastar a aplicação da Lei 9.099/95, por intermédio do art. 41 da Lei Maria Penha, restringiu-se, tão somente, à aplicação de seus institutos específicos, despenalizadores – acordo civil, transação penal e suspensão condicional do processo. II – A ação penal, no crime de lesão corporal leve, ainda que praticado contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, continua sujeita à representação da ofendida, que poderá se retratar nos termos e condições estabelecidos no art. 16 da Lei 11.340/06. III – O art. 16 da Lei 11.340/06 autoriza ao magistrado aferir, diante do caso concreto, acerca da real espontaneidade do ato de retratação da vítima, sendo que, em se constatando razões outras a motivar o desinteresse da ofendida no prosseguimento da ação penal, poderá desconsiderar sua manifestação de vontade, e, por conseguinte, determinar o prosseguimento da ação penal, desde que, demonstrado, nos autos, que agiu privada de sua liberdade de escolha, por ingerência ou coação do agressor.” (Recurso Especial n.º 1.051.314, proferida pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, publicada em 24 de fevereiro de 2010). Por fim, apenas para argumentar, destaca-se que, toda essa discussão sobre a natureza jurídica da ação penal a ser aplicada nos delitos de lesões corporais leves, quando praticadas no âmbito familiar, estaria resolvida caso o Projeto de Lei nº 4.559/2004, que deu origem à Lei Maria da Penha, tivesse sido aprovado na íntegra. Dizia o referido Projeto de Lei, em seu artigo 30: “Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a ação penal será pública condicionada à representação”. No entanto o referido projeto de Lei teve alteração no Senado, onde foi excluído o dispositivo que observava taxativamente o procedimento “ação pública condicionada à representação”. 3.1.2. Artigo 41 da Lei Maria da Penha e o Desencadeamento da Ação Pública Incondicionada O artigo 41 da Lei Maria da Penha afasta a incidência da Lei dos Juizados Especiais, como se pode observar pela leitura do referido dispositivo: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”. Desta forma, parte da doutrina entende que não se pode falar em delito de menor potencial ofensivo na Lei Maria da Penha, e, consequentemente, ficariam afastados institutos despenalizadores criados pela Lei 9.099/95 (transação, renúncia à representação, suspensão do processo) e, ainda, o delito de lesões corporais leves passaria a desencadear ação pública incondicionada. Nesse sentido explica Maria Berenice Dias: “Assim, a tendência de boa parte da doutrina é reconhecer que, em sede de violência doméstica, não cabe falar em delito de menor potencial ofensivo. A lesão corporal desencadearia ação penal pública incondicionada, não havendo espaço para acordo, renúncia à representação, transação, composição de danos ou suspensão do processo”. (DIAS, 2007, p. 71). O principal argumento da corrente que entende que a ação a ser aplicada nos delitos de lesões corporais leves, quando praticadas no ambiente familiar, deva ser pública incondicionada, parte do argumento de que só há a possibilidade da vítima retratar à sua representação (artigo 16 da Lei Maria da Penha) nos delitos em que o Código Penal prevê a retratação, como por exemplo, o crime de ameaça (artigo 147 do Código Penal). Esse é o entendimento da Promotora de Justiça da Comarca de Guaíba/RS, Titular da 2ª Promotoria de Justiça Criminal, Dra. Andréa de Almeida Machado, como se observa quando perguntado a ela sobre a possibilidade da aplicação da ação pública condicionada à representação aos casos de violência doméstica. “É possível para aqueles crimes que permitem a retratação. Por exemplo: ameaça, descrito no artigo 147 do Código Penal. Mas não para o crime de lesões corporais leves”. Ainda, a referida Promotora de Justiça defende que a ação penal, nos casos de lesões corporais leves, envolvendo violência doméstica, deva ser pública incondicionada, justificando a sua opinião devido ao fato da Lei Maria da Penha ter surgido para solucionar um problema de cunho público e social: “No momento em que o fato da violência doméstica envolve toda a sociedade, a ação é pública. Se o casal quiser ser amigo depois, tudo bem. Mas aquele fato praticado é público. O custo com a violência doméstica é responsável por 14,2% do PIB brasileiro. A mulher não vai trabalhar no outro dia porque fica com o rosto todo inchado, utiliza o SUS, tratamento psicológico, provocando um custo muito maior do que se imagina. Esse percentual, que é dado do Banco Mundial, é muito maior do que todo o orçamento do Estado do Rio Grande do Sul. No meu entendimento, sabendo do propósito da Lei, me parece impossível que a Lei seja pública condicionada à representação, além de ser contra a própria a Lei, porque na Lei está dizendo que a Lei é pública incondicionada. No entanto, nós vemos construções doutrinárias e jurisprudencial absurdas, dizendo que a ação deve ser pública condicionada à representação, porque entendem que esses crimes de violência doméstica não são tão importantes. A Lei Maria da Penha é clara em afastar a Lei 9.099/95. Com a Lei Maria da Penha o crime de lesões corporais leves, por exemplo, deixa de ser considerado de menor potencial ofensivo e passa a ser crime de natureza grave”. Adotando o mesmo posicionamento, se manifesta Belmiro Pedro Welter: “[…] o legislador optou, corretamente, em transformar o crime de lesão corporal leve em ação pública incondicionada, não permitindo a representação e a conseqüente possibilidade de renúncia (artigos 41 e 16 da Lei Maria da Penha)”. (WELTER, 2007, p. 07). Da mesma forma, Ana Paula Schewelm Gonçalves e Fausto de Lima, entendem que, tendo a Lei Maria da Penha, a partir de seu artigo 41, afastado a incidência da Lei dos Juizados Especiais, Lei 9099/95, consequentemente o delito de lesões corporais leves passou a desencadear ação pública incondicionada: “A nova Lei 11.340/2006, ao determinar expressamente que não se aplica à Lei 9.099/1995 para a violência doméstica contra a mulher (art. 41), efetivamente afasta toda a Lei anterior. No entanto, apesar da Lei 11.340/2006, em seu artigo 16, determinar que nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida, só será admitida a renúncia perante o Juiz, tal situação não se aplica aos crimes de lesão corporal leve praticados no âmbito doméstico, somente aos crimes em que o Código Penal expressamente determine que a ação seja condicionada à representação”. (GONÇALVES; LIMA, 2006, p. web). No mesmo sentido se posiciona Eduardo Luiz Santos Cabette: “Parece Irretorquível que a partir da vigência da Lei 11.340/2006 retornou a ação penal a ser pública incondicionada, mesmo nos casos de lesões corporais, desde que perpetradas no âmbito de violência doméstica e familiar contra a mulher. Isso porque não é no Código Penal que se vai encontrar o dispositivo que determina a ação penal pública condicionada para as lesões leves em geral, e sim no artigo 88 da Lei 9.099/1995. O raciocínio é simples: se a Lei 9.099/1995 não se aplica aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, inexistindo qualquer ressalva, conclui-se que não se aplica por inteiro, inclusive o seu artigo 88, de forma que no silêncio do Código Penal, reintegra-se a regência do artigo 100 do CP, que impõe a ação penal pública incondicionada”. (CABETTE, 2006, p. web). Comentando sobre o delito de lesões corporais leves, Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini também se posicionam a favor da ação pública incondicionada, se praticadas no âmbito familiar: “Nesses crimes, portanto, cometidos pelo marido contra a mulher, não se pode mais falar em representação, isto é, a ação penal transformou-se em pública incondicionada”. (GOMES; BIANCHINI, 2006, p. web). Também compactua desse entendimento Guilherme de Souza Nucci: “[…] Quanto à hipótese de violência doméstica, temos defendido ser caso de ação pública incondicionada, afinal, a referência do art. 88 desta Lei menciona apenas a lesão leve, que se encontra prevista no caput do art. 129 do Código Penal, bem como a lesão culposa, prevista no art. 129, § 6º. Não se incluem outras formas de lesões qualificadas (§§ 1º, 2º, 3º e, atualmente, 9º)”. (NUCCI, 2007, p. 706). Outrossim, a 2º Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já decidiu nesse sentido, conforme decisão do Recurso em Sentido Estrito n.º 70029386554: “EMENTA:  RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL. ANÁLISE DA INSURGENCIA MINISTERIAL. ARTIGO 129, §9º, DO CÓDIGO PENAL. LEI 11.340/06 (LEI MARIA DA PENHA). REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. QUESTIONAMENTO QUANTO À IMPRESCINDIBILIDADE OU NÃO. Na espécie, entende-se que os crimes cometidos sob a égide da Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha – são de ação penal pública incondicionada. Portanto, tem-se que não há dúvidas de que os crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher são de ação penal pública incondicionada, isto é, independem de representação, não estando sujeitos, pois, à discricionariedade da vítima. O art. 41 da Lei 11340/2006 afasta a incidência do rito previsto na Lei 9099/95 aos crimes praticados com violência familiar contra a mulher, portanto a competência é a da Justiça Comum. RECURSO MINISTERIAL PROVIDO”. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70029386554, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jaime Piterman, Julgado em 11 de fevereiro de 2010) E, da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça, que atualmente vem defendendo a ação pública condicionada à representação da vítima, como vimos no subitem anterior, já decidiu pela aplicação da ação pública incondicionada, como podemos observar a seguir pela transcrição da decisão do “Hábeas Corpus” n.º 96.992 – DF (2007/0301158-9), proferida pela 6ª Tuma: “PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL SIMPLES OU CULPOSA PRATICADA CONTRA MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO. PROTEÇÃO DA FAMÍLIA. PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI 9.099/1995. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. ORDEM DENEGADA. 1. A família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado; a assistência à família será feita na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Inteligência do artigo 226 da Constituição da República). 2. As famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, os filhos daí advindos dificilmente terão condições de conviver sadiamente em sociedade, daí a preocupação do Estado em proteger especialmente essa instituição, criando mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato. 3. Somente o procedimento da Lei 9.099/1995 exige representação da vítima no crime de lesão corporal leve e culposa para a propositura da ação penal. 4. Não se aplica aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a Lei 9.099/1995. (Artigo 41 da Lei 11.340/2006). 5. A lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico é qualificada por força do artigo 129, § 9º do Código Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse Estatuto Legal, sendo a ação penal pública incondicionada. 6. A nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima. 7. Ordem denegada”. (“Hábeas Corpus” n.º 96.992, 6ª Tuma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 12 de agosto de 2008). Desta forma, como observamos, o principal argumento dos defensores do desencadeamento da ação pública incondicionada é que a retratação da vítima prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha somente deva ser aplicada aos delitos em que já exista prévia disposição legal – de renúncia à representação – no Código Penal. Assim, como não existe essa prévia disposição em relação ao crime de lesões corporais leves no Código Penal, entendem que se deva operar a ação pública incondicionada. 4. Considerações Finais Ao concluirmos este trabalho, percebemos que a polêmica sobre o crime de lesões corporais leves na violência doméstica é grande, o que pode ser percebido até mesmo pela divergência de posicionamento entre os dois Promotores de Justiça Criminais que atuam na mesma cidade e lidam diariamente com a Lei Maria da Penha. No entanto, entendemos que deva ser desencadeada a ação penal pública condicionada à representação da vítima nos casos de lesões corporais leves, quando praticadas no ambiente familiar, uma vez que a Lei Maria da Penha prevê expressamente em seu artigo 16 a possibilidade de retratação da representação criminal contra o autor do fato, em audiência. Desta forma, existindo previsão legal de retratação da representação e, não desejando a vítima representar criminalmente contra o autor do fato, não cabe ao Estado interferir na decisão da vítima. Pelo contrário, deve sim incentivar a preservação da família e respeitar a decisão da ofendida. Por outro lado, entendemos que não foi intenção do legislador, ao propor o artigo 41 da Lei Maria da Penha, prever o desencadeamento da ação penal incondicionada ao crime de lesão corporal leve. Acreditamos que a intenção do legislador foi apenas de coibir o uso de institutos despenalizadores como a suspensão condicional do processo e a transação penal junto à Lei Maria da Penha.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-88/o-crime-de-lesoes-corporais-leves-na-lei-maria-da-penha/
Impossibilidade de manutenção da prisão tão só pelo flagrante
O presente artigo analisa de forma breve o instituto da prisão em flagrante e se haveria um fundamento para se manter presa uma pessoa por ter supostamente praticado um delito. A mera homologação do flagrante coaduna com os princípios de nossa Constituição?! Este artigo foi orientado pelo Dr. Stelio Machado.
Direito Processual Penal
I) INTRODUÇÃO Aqueles que atuam na área criminal se deparam todos os dias com uma situação que atenta contra os princípios da nossa Constituição, qual seja, a mera homologação do flagrante a fim de manter o acusado preso, sem qualquer fundamentação cautelar. Deste modo, é imperioso que o aplicador da lei conheça os significados válidos, efetivamente compatíveis com as normas constitucionais e com os direitos fundamentais por ela estabelecidos. II) DA MISSÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE É fato notório que não existe qualquer prisão cautelar obrigatória em nosso ordenamento pátrio, pois isto atentaria contra vários princípios que resguardam aqueles acusados da prática de crimes. A privação da liberdade deve ser sempre a exceção. Portanto, há de se buscar o real sentido da prisão em flagrante, isto é, qual é sua função constitucional. Nesta linha, Pacceli[1] explica a que se destina tal prisão: “se a prova testemunhal pode contribuir para construção da verdade judicial, não dúvida de que o momento em que a representação do sujeito ( testemunha) em relação ao objeto ( fato da realidade) pode apresentar maior coincidência é exatamente aquela do flagrante delito (…) A prisão em flagrante, portanto, cumpre importantíssima missão, cuidando da diminuição dos efeitos da ação criminosa, quando não do seu completo afastamento (dos efeitos), bem como da coleta imediata da prova, para o cabal esclarecimento dos fatos.” Com efeito, denota-se que tal modalidade de prisão tem duas funções primordiais, quais sejam: a de interceptar o fato criminoso, impedindo sua consumação ou mesmo o seu exaurimento; e, também, de possibilitar a colheita imediata das provas. Imprescindível, ainda, ser feita uma leitura atenta do que determina o art. 310 e seu parágrafo único do CPP, ou seja, a prisão somente será mantida quando presente algum dos requisitos do art. 312 do CPP. Portanto, deve haver uma decisão fundamentada acerca do periculum libertatis do acusado. Portanto, novamente, nas lições de Pacelli[2]: “preso em flagrante,e cumpridas as funções inerentes a essa modalidade de prisão, a regra é o retorno do preso à sua liberdade. A restituição da liberdade é inegavelmente um direito dele, direito de quem não pode ser considerado culpado, senão após o trânsito em julgado de sentença condenatória, como assegurado na Constituição (art. 5°, LVII).” III) DA PRISÃO EM FLAGRANTE COMO MEDIDA PRÉ-CAUTELAR Ao analisar o instituto é primordial conhecer a posição da doutrina que compreende o modelo garantista, no âmbito penal e processual penal, que a Constituição prevê. Deste modo, há de se conceber a prisão em flagrante com uma medida pré-cautelar da prisão preventiva. Neste sentido, Aury[3] se apoiando da doutrina de Banacloche Palao afirma: “ o flagrante- ou la detencion imputativa– não é uma medida cautelar pessoal, mas sim pré-cautelar, no sentido de que não se dirige a garantir o resultado final do processo, mas apenas destina-se a colocar o detido à disposição do juiz para que adote ou não uma verdadeira medida cautelar.” Continua o eminente autor[4], agora fazendo referência a Cordero: “ Ainda que utilize uma denominação diferente, na essência, a posição de CORDERO é igual a nossa. Para o autor, a prisão em flagrante é uma ‘subcautela’, na medida em que serve de prelúdio ( prelúdio subcautelar) para eventuais medidas coativas pessoais, garantindo sua execução. (…) A prisão em flagrante é uma medida pré-cautelar, de natureza pessoal, cuja precariedade vem marcada pela possibilidade de ser adotada por particulares ou autoridade policial, e que somente está justificada pela brevidade de sua duração e o imperioso dever de análise judicial em até 24h, onde cumprirá ao juiz analisar sua legalidade e decidir sobre a manutenção da prisão ( agora como preventiva) ou não.” Não deve ser ignorada, também, a legislação estrangeira a qual cuida de como a justiça deve agir quando ocorre uma prisão em flagrante.  “Na Espanha, o detido em flagrante deverá ser apresentado ao juiz no prazo máximo de 24h (art. 496 da LEcrim), momento em que será convertida em prision provisional ou será concedida a liberdade provisória. A lei processual alemã- StPO § 128- determina que o detido deverá ser conduzido ao juiz do Amtsgericht em cuja jurisdição tenha ocorrido a detenção, de imediato ou quando muito no dia seguinte a detenção. Já o Códice de Procedura Penal italiano, art. 386.3, determina que a polícia deverá colocar o detido à disposição do Ministério Público o mais rápido possível ou no máximo em 24h, entregando junto o correspondente atestado policial. Por fim, em Portugal, o art. 254, ‘a’, do CPP determina que no prazo máximo de 48h deverá ser efetivada a apresentação ao juiz, que decidirá sobre a prisão cautelar aplicável, após interrogar o detido  dar-lhe oportunidade de defesa (art.28.1 da Constituição).”[5] Importante, também, reconhecer que já há julgados que conhecem da impossibilidade de manutenção da prisão tão só pelo flagrante como o HC n° 70016357089, 7ª Câmara Criminal do TJRS, Relator Dês. Nereu Giacomolli: HABEAS CORPUS. POSSE E DISPARO DE ARMA DE FOGO. FLAGRANTE. MEDIDA PRÉ-CAUTELAR. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. 1. O paciente foi preso em flagrante por posse de arma de fogo e por ter efetuado disparo em via pública. O auto de prisão em flagrante foi homologado, não havendo notícia de decreto de prisão preventiva. 2.O flagrante justifica-se para impedir a continuidade da prática criminosa. Contudo, não basta por si só. Trata-se de uma medida pré-cautelar devido a sua precariedade ( único caso previsto constitucionalmente em que a prisão pode ser realizada por particular ou autoridade policial sem mandado judicial), devendo ser submetida ao crivo do julgador que a homologará ou não. Não está dirigida a garantir o resultado final do processo ou a presença do sujeito passivo. Destarte, é preciso que o magistrado, após requerimento formulado pela acusação, nos termos do art. 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal, não sendo possível a conversão automática do flagrante em prisão preventiva. 3. Além disso, o auto de prisão em flagrante não foi devidamente fundamentado, estando em desacordo com art. 93, in. IX, da Constituição Federal. 4. Delito praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa. Paciente com condições pessoais favoráveis à manutenção da liberdade concedida liminarmente. LIMINAR CONFIRMADA. ORDEM CONCEDIDA. IV) CONCLUSÃO Faz-se necessário acabar com a cultura da homologação da prisão em flagrante e continuidade da prisão.  Um Estado que se pretende democrático de direito, que propugna pelos princípios da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal, da presunção de inocência, da fundamentação das decisões judiciais, dentre tanto outros não pode ser conivente com meras homologações! Cumpridas as funções da prisão em flagrante, deixam de persistir os fundamentos para a prisão, ficando sua manutenção dependente da existência dos pressupostos para a decretação da prisão preventiva. Pode-se comparar a simples homologação com “a lógica do maquinista que não sabe como funciona o trem e se restringe a apertar o botão, não se preocupando em entender como nada mais funciona, isto porque enquanto o botão estiver funcionando, tudo bem”.[6]
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-87/impossibilidade-de-manutencao-da-prisao-tao-so-pelo-flagrante/
A delação premiada e sua (in)conformidade com a Constituição Federal
Pretende o presente trabalho expor o atual panorama da delação premiada no nosso ordenamento jurídico, bem como analisar a possível violação dos princípios constitucionais, com seu uso excessivo na persecução penal, em nome da segurança pública.
Direito Processual Penal
1- Conceito e natureza do instituto Delação Premiada é um instituto previsto na legislação brasileira que serve para incentivar eventual participante de ação delituosa a denunciar todo o esquema criminoso e a identificar os demais envolvidos, sendo proporcionado, em recompensa, ao delator uma série de benefícios que interferem diretamente em sua sanção penal. A delação premiada faz parte de uma nova política de combate à criminalidade, fazendo com que se crie o estímulo ao arrependimento daqueles que já se envolveram na prática de algum crime ou espécies de crimes. Surgida principalmente para combater a criminalidade organizada, a delação passa a ter uma maior relevância e abrangência com a utilização para outras modalidades delitivas. Em termos gerais, exige-se do delator a efetiva e decisiva influência na instrução processual, permitindo a colheita das provas que servirão para futura repressão penal, devendo o mesmo indicar de forma ampla a materialidade do crime, com as nuances próprias da espécie delitiva que se está apreciando, ou seja, que o envolvido possa informar/esclarecer todas as peculiaridades, forma de atuação, localização do produto do crime, da vítima, identificar os outros integrantes da ação ilícita, fornecendo local onde possam ser encontrados, a fim de que as autoridades possam desarticular o esquema e punir os envolvidos. 2 – Alcance e panorama normativo da delação premiada Pois bem, mais ou menos delineada a idéia do instituto, a questão que se coloca aqui é saber se a delação deve se estender a todos os crimes existentes em nosso sistema penal. Antes disso, contudo, indispensável traçar o atual panorama da delação premiada no nosso ordenamento jurídico. Esse benefício é previsto nos seguintes dispositivos legais: art. 159, § 4º, do Código Penal, art. 7º da Lei n° 8.072/90 – Crimes Hediondos e equiparados, art. 6º, da Lei 9.034/95 – Organizações Criminosas, art. 24, § 2º da Lei 7.492/86 – Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, art. 16, da Lei 8.137/90 – Crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, art. 1º, § 5º, da Lei 9.613/98 – Lavagem de dinheiro, arts. 13 e 14 da Lei 9.807/99 – Proteção a Testemunhas, 8.884/94 – Infrações contra a Ordem econômica e art. 41 da Lei 11.343/06 – Drogas e Afins. A maioria das leis mencionadas prevêem o benefício da delação apenas para os crimes nelas contidos. Entretanto, a lei 9.807/99, regulamenta o instituto de forma genérica, sem especificar para quais crimes é aplicável, apenas fazendo referência a certos requisitos previstos em seu art. 13 e 14. Da leitura desses dispositivos, surge a dúvida acerca do alcance da norma penal, a partir do correto preenchimento dos requisitos para usufruto do benefício, ou melhor, questiona-se se é necessário a cumulatividade ou alternatividade dos requisitos. A se exigir todos os requisitos ao mesmo tempo, conclui-se que o único delito que ensejaria a obtenção do benefício seria o de extorsão mediante sequestro que, aliás, já tem previsão própria em dispositivo específico (art. 159, § 4º, do Código Penal), o que não parece razoável entender que a lei de proteção a testemunhas pretenda apenas regulamentar um único delito contido no Código Penal, sem que o faça de forma expressa. Inadequada, portanto, a interpretação que haveria uma cumulatividade dos requisitos de forma implícita. Assim, por colocar de maneira geral e indiscriminada um benefício que tem grandes repercussões na liberdade do indivíduo, é correto, ante a atual disposição normativa relacionada à matéria, o entendimento de que a delação premiada não apenas deve se estender, mas que, efetivamente, é aplicável a todos os tipos penais, mesmo os que não tem previsão legal específica, pela clara interpretação do contido no art. 13 e 14 da lei 9.807/99. 3 – Delação premiada e a Constituição Federal Pois bem, esclarecida a atual situação do instituto no nosso ordenamento, restando como premissa a possibilidade de sua ampla utilização para quaisquer crimes, pergunta-se agora, em uma outra perspectiva, se de fato a delação premiada está em conformidade com a atual Constituição Federal tendo como norte os princípios fundamentais nela contidos. Isto porque, em primeiro lugar, inquestionável que a delação constitui, de uma forma ou de outra, traição de pares, o que seria um ato antiético, mesmo que se trate dos mais vis criminosos. O incentivo de prática imoral para colheita probatória não poderia jamais ser prática oficial de Estado, que deve, ao contrário, redobrar esforços para combater a criminalidade e não a todo o tempo negociar com qualquer pessoa que esteja disposta a se “salvar” da sanção penal firmando com a Justiça um verdadeiro “pacto sombrio”. Afinal, “o Estado, visando privilegiar um direito penal mínimo e garantista, preservando as garantias individuais postas na Constituição Federal, não pode incentivar, premiar condutas que ofendam a ética, ainda que ao final a sociedade se beneficie dessa violação. Em outras palavras, num Estado que proclame pelos ideais da democracia, os fins jamais poderão justificar os meios, mas justamente são estes que emprestam legitimidade àqueles.”[1] De acordo com Rômulo de Andrade Moreira, “(…) é tremendamente perigoso que o Direito Positivo de um país permita, e mais que isso incentive os indivíduos que nele vivem à prática da traição como meio de se obter um prêmio ou um favor jurídico. (…) Se considerarmos que a norma jurídica de um Estado de Direito é o último reduto de seu povo, (…) é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada em flagrante incitamento à transgressões de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo.” Continua, ainda, afirmando que “a traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos.”[2] Citando Rui Barbosa, por fim, comenta que não se deve combater um exagero com um absurdo. Com todo o afã do Poder Público de combate à criminalidade e a proliferação do incentivo dessa prática de premiar o delator para retirar o máximo de informação dos outros envolvidos, esquece-se que o seu depoimento nada mais é que um interrogatório onde não há qualquer compromisso de dizer a verdade e que possui valor probatório relativíssimo. Incabível transformar co-réu em testemunha e conceder maior valor a sua palavra em detrimento daquele que foi prejudicado, como acontece constantemente no dia-a-dia forense. Tarifar de forma diferente depoimentos daqueles que estão em igual situação processual, parece ferir princípios elementares do nosso sistema jurídico. Além disso, a utilização da delação de co-réu para fundamentar a prisão e condenação dos outros réus viola o princípio do contraditório, já que “com o advento da nova ordem constitucional, o comportamento processual do acusado não é mais (nem menos) que exercício da autodefesa; daí, conclusão segunda, não está sujeito ao contraditório. (…) o réu tem o direito de não produzir prova contra si mesmo e, portanto, pode calar ou mentir, o que leva ao esvaziamento de um possível debate entre o corréu delatado e o delator.”[3] O favorecimento do réu delator pode ainda representar grave violação da dignidade humana com a indevida extorsão da verdade e afetar a integridade e legitimidade do processo penal, já que pode gerar uma situação de grave injustiça com a indicação equivocada de inocente em busca do prometido perdão ou redução da pena, o que é de se levar em consideração tendo em vista que a chamada de co-réu é uma das principais causas de erro judiciário. 4 – Conclusão Por tudo isso, deveria ser a delação premiada extirpada do nosso sistema jurídico por representar grave ofensa à Constituição Federal.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-87/a-delacao-premiada-e-sua-in-conformidade-com-a-constituicao-federal/
Medidas cautelares e citação editalícia no processo penal
O presente texto versa sobre a suspensão do processo decorrente do não comparecimento do réu citado por edital, tratando, particularmente, das medidas cautelares autorizadas pelo artigo 366 do Código de Processo Penal. Procura-se enfocar a excepcionalidade de tais medidas, à luz do princípio da ampla defesa, bem como a necessária observância de seus requisitos legais.
Direito Processual Penal
1. Introdução Até o advento da Lei n° 9.271/96, que deu nova redação ao art. 366 do Código de Processo Penal – CPP, os processos em que o réu citado, mesmo que por edital, deixasse de comparecer sem motivo justificado prosseguiriam seu curso normal à revelia do acusado. Reconhecendo que um julgamento nessas condições era incompatível com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, a mencionada legislação, em boa hora, vedou tal possibilidade. Para tanto, determinou que, nos casos de citação editalícia, a qual não passa de mera ficção jurídica em que o réu não toma conhecimento real da acusação que lhe é feita, se o réu não comparecer nem constituir advogado (o que ocorre na imensa maioria dos casos) o processo e o prazo prescricional serão suspensos, facultando-se ao juiz a possibilidade de decretar sua prisão preventiva ou a produção antecipada das provas, se for o caso. Em que pese o avanço da inovação legislativa, o (lamentavelmente costumeiro) uso desmedido e automático das providências cautelares nela previstas representa grave violação às garantias que se pretendeu tutelar. 2. A necessária observância do princípio do contraditório. Como sabido, em face da supremacia das normas constitucionais, uma norma deve ser aplicada tão somente na medida em que compatível com a Constituição, bem como deve ser interpretada de acordo com seus preceitos. Nesse sentido, uma adequada leitura do art. 366 do Código de Processo Penal deve ser feita de acordo com o art. 5°, LV da Constituição, que dispõe, in verbis: “Aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” A inovação legislativa veio ao encontro do dispositivo constitucional, posto que o regime anterior, ao permitir o julgamento sem que o acusado tomasse real conhecimento da acusação, violava à garantia de um efetivo contraditório.[1] Nesse sentido, válida é a lição de Ada Pellegrini Grinover[2], que afirma: “O tratamento dado pela Lei n° 9.271/96 à revelia, determinando a suspensão do processo — com a correlata suspensão do curso do prazo prescricional — para o acusado que, citado por edital, não compareça e não constitua advogado, tem, antes de tudo, fundamento constitucional. Com efeito, as garantias do contraditório e da ampla defesa, sob o aspecto dinâmico (correspondendo à igualdade de armas), indicam a necessidade de sua observância efetiva e concreta, não se satisfazendo com um enfoque meramente formal. O contraditório, em seu primeiro momento, deve corresponder à informação, pela qual se fará possível o exercício da defesa, e essa necessidade de informação fica praticamente infirmada pela ficção de uma citação editalícia. A leitura sensível e atenta do texto constitucional já indicava a incompatibilidade entre uma condenação à revelia, sem a efetiva observância do devido processo legal, e as garantias constitucionais.” Contudo, se de um lado a norma determinou a suspensão do processo, de outro possibilitou a realização de medidas cautelares mesmo sem a ciência do acusado. Ora, se a continuidade do processo em face de alguém fictamente citado violaria a ampla defesa e o contraditório, a possibilidade de decretação de sua prisão preventiva e a antecipação de provas sem o seu conhecimento, permitidas pela norma, também não violariam o preceito constitucional? Em tese não. Tais providências possuem natureza cautelar e destinam-se a garantir a efetividade de possível provimento futuro, o qual restaria inviabilizado em caso de desaparecimento de provas ou fuga de acusado. Entretanto, tal previsão não pode ser confundida com a autorização de tais medidas excepcionais sem o preenchimento de seus requisitos legais, muito menos sem respeitar o direito a ampla defesa e ao princípio da proporcionalidade. A esse respeito, leciona Antônio Magalhães Gomes Filho[3]: “Mas, como já se disse, somente em circunstâncias muito especiais é possível adiantar providências processuais: em primeiro lugar, é exigível pelo menos a razoável probabilidade do futuro reconhecimento do direito posto como fundamento da cautela (fumus boni iuris); além disso, também deve estar demonstrado o perigo da insatisfação daquele direito, em face da demora na prestação judicial definitiva (periculum in mora).” Infelizmente, não é o que se tem visto na prática cotidiana, em que os juízes tem tornado o que deveria ser excepcional como medida automática. 3. Antecipação de provas. Quanto a produção antecipada de provas, o art. 366 facultou ao magistrado a produção das provas consideradas urgentes, o que é bem diferente de determinação automática de produção de provas como é comum se vislumbrar na prática forense. A evidenciar a excepcionalidade da medida aduz o mesmo Antônio Magalhães Gomes Filho[4]: “Essa antecipação na colheita da prova não deverá ser, certamente, uma rotina nos casos em que houve a suspensão do processo diante da ausência do réu citado por edital, mas providência resultante da avaliação do risco concreto de impossibilidade na obtenção futura das informações necessárias ao êxito da persecução. Caso contrário, de nada valeriam as diposições da nova lei, seja no tocante à economia processual, seja relativamente à garantia de uma defesa efetiva”. Outrossim, além do disposto no art. 366, a Lei n° 11.690/08, deu nova redação ao art. 156 do Código de Processo Penal e erigiu, em seu inciso I, como requisitos da antecipação de provas a urgência e relevância, bem como a observância da necessidade, adequação e proporcionalidade, explicitando o princípio do devido processo legal substantivo. Estabelecida a excepcionalidade da medida, há que se refutar a tese segundo a qual o mero lapso temporal e a falibilidade in abstracto da memória humana seriam motivos suficientes para a antecipação da prova testemunhal. A esse respeito o art. 225 da legislação processual penal já dá adequado tratamento ao tema ao possibilitar sua antecipação se a testemunha “houver de ausentar-se ou, por enfermidade ou por velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista”, o que é diferente do simples decurso do tempo. A despeito de inúmeras decisões em sentido contrário nas instâncias inferiores, o Supremo Tribunal Federal possui entendimento pacífico a respeito, consoante se verifica dos seguintes julgados de suas duas turmas: “EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. 1. A decisão que determina a produção antecipada da prova testemunhal deve atender aos pressupostos legais exigidos pela norma processual vigente (“Art. 255. Se qualquer testemunha houver de ausentar-se, ou, por enfermidade ou por velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe antecipadamente o depoimento”). 2. Firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que “[s]e o acusado, citado por edital, não comparece nem constitui advogado, pode o juiz, suspenso o processo, determinar produção antecipada de prova testemunhal, apenas quando esta seja urgente nos termos do art. 225 do Código de Processo Penal”. Precedentes. 3. Ordem concedida.”[5] “AÇÃO PENAL. Processo suspenso. Prova. Colheita antecipada ad perpetuam memoriam. Inquirição de testemunhas. Inadmissibilidade. Revelia. Réu revel citado por edital. Não comparecimento por si nem por advogado constituído. Prova não urgente por natureza. Deferimento em grau de recurso. Ofensa ao princípio do contraditório (art. 5º, LV, da CF). Ordem concedida. Inteligência dos arts. 92, 93 e 366 cc. 225, todos do CPP. Se o acusado, citado por edital, não comparece nem constitui advogado, pode o juiz, suspenso o processo, determinar colheita antecipada de elemento de prova testemunhal, apenas quando esta seja urgente nos termos do art. 225 do Código de Processo Penal”.[6] Também no âmbito do Superior Tribunal de Justiça a matéria já se encontra pacificada, inclusive com a publicação do enunciado n° 455 de sua súmula segundo o qual: “A decisão que determina a produção antecipada de provas com base no artigo 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo.” 3. Prisão preventiva do revel. Com relação à autorização para se decretar a prisão preventiva, mais grave ainda é a sua aplicação automática, como se fosse decorrência lógica e necessária da citação editalícia, presumindo, provavelmente, uma hipotética fuga. Vige em nosso ordenamento jurídico o princípio da presunção de inocência, o qual, se não veda a prisão preventiva, impõe que seja encarada como medida excepcional, restrita aos casos previstos em lei e em decisão suficientemente fundamentada. O ordenamento jurídico brasileiro não admite a prisão ex lege e o art. 366 do CPP, ao estabelecer a possibilidade de decretação de preventiva dos acusados citados por edital, não criou uma nova hipótese de prisão preventiva, ao revés, vinculou sua decretação às possibilidades elencadas no art. 312 do CPP. Nesse sentido, leciona Aury Lopes Jr.[7]: “(…) mas isso não significa uma ampliação das hipóteses autorizadoras da prisão preventiva. Mais, não existe prisão cautelar obrigatória e tampouco qualquer tipo de presunção de fuga que conduza, automaticamente, à legitimidade de uma medida cautelar pessoal. Quando o artigo diz ‘se for o caso’, está remetendo para os casos do art. 312, não ampliando ou facilitando a adoção da (excepcionalíssima) prisão preventiva. Em suma: a inatividade processual ficta não autoriza, por si só, a decretação da prisão preventiva. Há que se demonstrar e fundamentar, com argumentos cognoscitivos robustos e suporte probatório real, a necessidade da prisão preventiva, em igualdade de condições com os demais casos do art. 312 do CPP.” Outra não é a posição dos tribunais superiores, consoante se verifica da leitura dos seguintes julgados: “Habeas corpus. 2. Homicídio qualificado. Réu citado por edital. Revelia. 3. Prisão preventiva. Insubsistência dos requisitos autorizadores da segregação cautelar. A prisão preventiva, pela excepcionalidade que a caracteriza, pressupõe decisão judicial devidamente fundamentada, amparada em elementos concretos que justifiquem a sua necessidade, não bastando apenas aludir-se a qualquer das previsões do art. 312 do Código de Processo Penal. 4. Constrangimento ilegal caracterizado. 5. Ordem concedida”.[8] “PRISÃO PREVENTIVA – REVELIA – AUSÊNCIA DE CREDENCIAMENTO DE ADVOGADO. Conforme disposto no artigo 366 do Código de Processo Penal, verificada a revelia e a ausência de credenciamento de advogado, impõe-se a suspensão do processo e da prescrição, somente cabendo implementar a prisão preventiva se a situação enquadrar-se no artigo 312 do Código de Processo Penal, não a respaldando o simples fato de o acusado não haver sido encontrado”[9] “PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. PRISÃO PREVENTIVA. (1) GARANTIA DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL. REVELIA. FUNDAMENTO INAPROPRIADO. (2) GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. REFERÊNCIA GENÉRICA. PERICULUM LIBERTATIS. AUSÊNCIA. ILEGALIDADE. RECONHECIMENTO. (3) PEDIDO DE EXTENSÃO. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE. INDEFERIMENTO. 1. O perigo para aplicação para lei penal e a conveniência da instrução criminal não defluem do simples fato de se encontrar o réu em lugar incerto e não sabido. Não há confundir evasão com não-localização. 2. A prisão processual é medida odiosa e excepcional, marcada pelo signo de sua imprescindibilidade. O indispensável periculum libertatis deve ser apurado quando da decretação da medida constritiva, sendo ilegal a referência genérica à garantia da ordem pública. 3. Não tendo sido demonstrada a similitude de situações, cuja ocorrência de distancia ainda mais diante da ausência de anterior impetração perante a Corte a quo, é de se indeferir pedido de extensão, nos moldes do art. 580 do Código de Processo Penal. 4. Ordem concedida, acolhido o parecer ministerial, para revogar a prisão preventiva do paciente, decretada nos autos da Ação Penal n. 40/2003, em trâmite perante a 4ª Vara Criminal da Comarca de Campinas/SP, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo.[10] 5. Conclusão. A luta por um processo penal democrático e adequado constitucionalmente é uma batalha cotidiana a ser travada no plano teórico e no âmbito dos tribunais. A suspensão do processo no caso de citação editalícia é uma vitória da ordem constitucional sobre uma arraigada cultura autoritária que pretende impor a sanção penal em detrimento dos direitos individuais. Entretanto, como que a tentar burlar o avanço legislativo, esse mesmo ranço autoritário ainda se manifesta na praxis forense ao antecipar provas e decretar prisões preventivas sem o devido respeito aos requisitos legais e constitucionais. Reafirmar a excepcionalidade de tais medidas, tanto no plano doutrinário quanto no dia-a-dia do foro, é medida que se impõe aos operadores jurídicos comprometidos com os princípios constitucionais que norteiam o processo penal.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-87/medidas-cautelares-e-citacao-editalicia-no-processo-penal/
Peculiaridades do Novo Código de Processo Penal
de tempos em tempos, a ciência humana empreende saltos. Vê-se, então, com clareza, o que em ocasiões anteriores não se vislumbrava de forma alguma. A gênese de tais mudanças bruscas advém dos mais variados motivos. Um dentre eles, pode-se citar, é a possível impropriedade de determinado mecanismo o qual não mais serve aos desígnios para os quais fora um dia concebido. Desta feita, a necessidade premente de melhores meios acabam, geralmente, eclodindo em uma variação de característica robusta, porquanto imprescindível. Foi exatamente assim que exsurgiu o projeto do novo Código de Processo Penal, prestes a nascer em nosso meio jurídico, consoante a redação final do Projeto de Lei do Senado nº 156, de 2009. Dessarte, o presente e sucinto escrito tende a tecer algumas pequenas observações, em um número fechado adrede pensado de exatos seis tópicos, sobre alguns daqueles polêmicos pontos os quais estão prestes a modificar o nosso sistemático mundo processual penal brasileiro.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO O Senador Renato Casagrande viu o seu relatório acerca do projeto de reforma do Código de Processo Penal ser aprovado em sessão extraordinária no Senado Federal, após votação simbólica daquela Casa. Tramitando, agora, sem novas alterações na Câmara dos Deputados, caminhará serenamente para a sanção presidencial. Após décadas de expectativa por uma legislação consoante as tendências e aspirações modernas do nosso direito adjetivo penal, o sonho, então, concretizar-se-á finalmente; mas isso não sem críticas, muito menos sem decepções, porquanto, ao lado dos naturais avanços que as novéis legislações nos trazem, os códigos, principalmente, conjunto vasto de artigos interligados que são, sempre exsurgem com detalhes os quais eram, obviamente, oportunos e ideais ao tempo do nascedouro das discussões acadêmicas em torno da novação, mas que, passado algum tempo, diante da célere mutação do sistema jurídico como um todo e do amadurecimento das idéias jurídicas de nossos doutos, já não mais abarcam a plenitude dos anseios da sociedade hodierna. Bem assim, faremos uma pequeníssima análise de alguns pontos modificativos vindouros do nosso novo ordenamento processual penal, separando-os em capítulos distintos, sucintos e objetivos, tencionando-se, com isso, uma rápida e produtiva leitura aos estudiosos do tema. 1. JUIZ DAS GARANTIAS Eis aquele ponto inovador que talvez seja o mais polêmico na reforma porvir. Esse personagem que avoca curiosidade atuará somente na fase de investigação do inquérito policial. Sua finalidade precípua será a de controlar a legalidade da ação da Polícia Judiciária e a de garantir os direitos do investigado[1]. Vale ressaltar que hoje, obviamente, já existe o controle judicial pleno das ações policiais. O que se pretende estabelecer com a implementação de uma nova sistemática é a vedação de que o ou os magistrados que atuariam em referida fase investigatória promovessem, eles mesmos, decisões durante o processo penal vindouro ou, como muito mais razão, a própria sentença na ocasião em que estivesse ultimado o trâmite da persecução penal[2]. Interessante é que a lógica preponderante de hoje exige justamente o contrário, forçando, pela prevenção, que o juiz o qual tomou conhecimento da investigação fique aderido ao processo até o seu final julgamento de primeira instância. A crítica que se tece é a de que isso poderá vir a enfraquecer o Judiciário, vulgarizando-se a figura do Juiz de Direito, em decorrência da grande gama de novos juízes que teriam de advir ao sistema, por meio de concurso, para a concretização de tal anseio. Deste modo, em comarcas que comportam hoje apenas um juiz, o que gira em torno de sessenta por cento das comarcas do País, elas, logicamente, teriam de, a partir do advento do novo CPP, absorver, no mínimo, dois magistrados. Dita pretensão, em princípio, parece destituída de senso e razão. 2. INQUÉRITO POLICIAL O caderno administrativo de cunho informativo deverá, agora, ser, imediatamente à sua instauração, comunicado ao Ministério Público. A finalidade primordial de referido comando seria o acompanhamento mais íntimo do parquet relativo às investigações policiais, bem como a promoção de uma maior integração entre as duas instituições[3]. Não obstante, em verdade, o controle do labor policial já existe hoje por meio das inspeções regulares que o Ministério Público realizada nas delegacias de polícia, e a integração entre os referidos órgãos sempre pôde advir desse contato já ocorrente. A comunicação instantânea da abertura de inquérito policial, ao que parece, só promoverá maior burocracia. Ademais, com o sistema cada vez mais crescente de informatização da investigação criminal, onde se vê, em um futuro próximo, a extinção do inquérito policial impresso, poderá o Ministério Público, naturalmente, por meio de mecanismos informáticos, promover controle em tempo real do que está sendo elaborado pela Polícia Judiciária. 3. SISTEMA ACUSATÓRIO A busca da verdade real fica mitigada, ao menos no que tange à liberdade de iniciativa por parte do juiz. Fica proibida a substituição do Ministério Público na função de acusar e de levantar provas que corroborem aqueles fatos articulados na denúncia. O juiz ficará de mãos amarradas, em prol da sua necessária imparcialidade, esperando que um possível juízo condenatório advenha exclusivamente do que o Ministério Público vier a lhe comprovar. Por outro lado, a reforma reforça a liberdade, para não dizer função ordinária, que o Ministério Público sempre teve de investigar, o que outrora foi motivo de intensa e extensa discussão na mídia, nos tribunais e entre instituições. Além disso, dentro de um sistema acusatório, quinhão de um regime democrático e de direito, fica terminantemente proibido o escárnio público dos acusados em geral, vedando-se a exposição das suas pessoas aos meios de comunicação. Nada, pois, mais justo e correto onde, diariamente, percebem-se verdadeiros circos de mau gosto armados em programas de rádio e TV, oportunidade em que o nome e a imagem das pessoas investigadas são destruídos para todo sempre. Lembre-se, ainda, que o cerne da questão não se atém ao fato de haver, ou não, culpa em sentido amplo por parte do indigitado autor, uma vez que, para isso, em sendo ela comprovada, o sistema legal comporta, para cada caso, penas autorizadas pelo sistema constitucional em vigor. Dentre elas, obviamente, frise-se, não se encontra o escárnio público, mormente o de aplicação sumária.   4. AÇÃO PENAL PRIVADA Fica extirpada a ação penal privada no sistema processual penal pátrio. Nestes casos, a ação penal passa a ser pública condicionada à representação do ofendido e pode ser extinta caso haja a retratação da vítima até o oferecimento da denúncia. Todavia, permanece a figura da ação penal privada subsidiária da pública[4]. Nada mais justo, pois é o Estado quem deve caminhar no sentido de punir o indivíduo com previsão de pena privativa de liberdade. Não faz sentido algum deixar a persecução penal, relativa a certos tipos penais, ao encargo do particular. Ou há um crime e nesse caso o seu autor fica sujeito à pena privativa de liberdade cuja persecutio criminis compete ao Estado, ou se extirpa referida figura do direito substantivo de cunho penal. Sempre pareceu desarrazoado exigir do particular o encargo de fazer as vezes do Ministério Público.   Ainda há, por outro lado, o que é uma tendência mundial, a previsão de acordo entre vítima e autor nas infrações de menor gravidade. Aliás, isso já havia sido inaugurado em nosso ordenamento jurídico, não obstante de forma tímida, pela Lei que criou os Juizados Especiais Criminais na última década do século pretérito[5]. 5. ZELO ESPECIAL ÀS VÍTIMAS Há ainda outras previsões de aumento na carga burocrática do Estado e que merecem atenção, sendo que poderão elas virem a ser prejudiciais, caso não sejam levadas a efeito medidas concomitantes que possibilitem o cumprimento da Lei sem se onerar o Estado com diligências formais e excessivas, estas em prejuízo das atividades realmente essenciais, típicas e inadiáveis.  Assim, o projeto prevê a comunicação, a ser exarada pelas autoridades, a respeito da prisão ou da soltura do suposto autor do crime, bem como a respeito da conclusão do inquérito policial, do oferecimento da denúncia, do arquivamento da investigação e ainda a respeito da condenação ou absolvição do acusado. Obviamente, isso deverá ser, em breve, efetivado por meio de comunicações eletrônicas, como também por meio da possibilidade de que o sujeito passivo da ilicitude venha a consultar os trâmite processuais por meio da rede mundial de computadores, com a disponibilização à sua pessoa de senha pessoal. Pensar-se em perfectibilizar os novéis comandos processuais por meio de comunicações impressas constituir-se-ia um disparate insustentável. Além de tudo isso, a vítima também poderá, de acordo com o projeto, obter cópias e peças do inquérito e do processo penal, desde que não estejam sob sigilo. Cristalinamente, aqui, percebe-se, com maior ênfase, a necessidade de informatização de diligências tais, olvidando-se em definitivo a figura dos autos impressos. Por fim, a vítima poderá manifestar suas opiniões. Sobre esse ponto, vê-se que a intenção do legislador foi a de valorizar e confortar a vítima, porquanto, juridicamente falando, a “opinião” separada de fundamentação lógica não comporta qualquer espécie de valoração, sobretudo na esfera processual penal. 6. FIANÇA O novo codex adjetivo penal aumenta os valores da fiança. Assim, na hipótese, p. ex., de infrações penais cujo limite máximo de pena privativa de liberdade fixada seja igual ou superior a oito anos, o valor será de um a duzentos salários mínimos. Mas o que deve mesmo chamar a atenção do leitor é a expressão “salários mínimos”. Eis, aqui, o que mais há de importante ao aplicador em potencial da fiança ao caso concreto. Com efeito, a expressão atual do Código de Processo Penal menciona “salários mínimos de referência”, o que sempre causou certa espécie aos aplicadores da fiança (delegados de polícia e juízes). Não obstante a solução do impasse já fosse tema de estudos, decisões e pareceres onde se entendia que a expressão “salários mínimos de referência” deveria ser entendida como “salários mínimos”, a supressão do complemento nominal “de referência” elide, agora, qualquer suspeita quanto à livre utilização do salário mínimo nacional como unidade de aferição do valor da fiança[6]. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se viu francamente neste modesto redigido, há indubitáveis transformações no novo codex adjetivo penal porvir as quais se mostram eivadas de mecanismos inaugurais os quais impõem aos operadores da Lei radicais rupturas com o velho estilo de ver e agir. Se, por um lado, há modificações óbvias as quais se configuram em ínfimos detalhes os quais comportam, tão-somente, o condão de atualização do velho diploma, outros vêm para expulsar paradigmas como um tsunami que arrasa pilares até então soberanos e intransponíveis. Diante disso, a par de dispositivos que, juntamente com novidades úteis e necessárias, trouxeram ainda outras de ordem voluptuária e, em verdade, contraproducentes, é de se esperar que o Poder Judiciário, presentemente, com sua austeridade congênita e com o auxílio edificante da doutrina, consiga converter referidos e pequenos detalhes imperfeitos em pacífica e proveitosa jurisprudência.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-86/peculiaridades-do-novo-codigo-de-processo-penal/
Origem, história, principiologia e competência do tribunal do júri
O Tribunal do Júri tal como se conhece atualmente, surgiu na Inglaterra, em época do Concílio de Latrão. No Brasil, seu surgimento, foi em 1822 com a Lei de 18 de Junho. Na atual Carta Magna, a instituição do Júri Popular está elencada no artigo 5º, XXXVIII, como Garantia Individual, tendo assegurados como Princípios básicos: a plenitude do direito de defesa, o sigilo nas votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. O Tribunal do Júri é um órgão de 1º grau, da Justiça Comum, Estadual ou Federal, composto de um juiz de direito, que é seu Presidente, e de vinte e um jurados, sorteados dentre os cidadãos de notória idoneidade, alistados anualmente pelo Juiz-Presidente. No Tribunal do Júri os jurados irão julgar com base nos quesitos, que correspondem ao conjunto de perguntas destinadas à coleta da decisão sobre os fatos classificados pela decisão de pronúncia e articulados pelo libelo, e s obre as teses postuladas pela defesa técnica.
Direito Processual Penal
1. Origem Há uma grande imprecisão doutrinária sobre a origem do Tribunal do Júri. A controvérsia é tamanha que Carlos MAXIMILLIANO, após muita pesquisa, chegou a afirmar que “as origens do instituto, são tão vagas e indefinidas, que se perdem na noite dos tempos”. O grande dissenso nos posicionamentos deve-se a uma conjuntura de fatores: 1º) falta de acervos históricos seguros e específicos; 2º) o fato de o instituto estar ligado às raízes do direito e quase sempre acompanhar quaisquer aglomerações humanas, desde e principalmente as mais antigas, esparsas e menos estudadas, dificultando o estudo e a pesquisa; 3º) e de maior relevância, o fato de não se conseguir destacar um traço mínimo essencial à identificação de sua existência, para se poder afirmar a sua presença em determinado momento da história. Geralmente os mais liberais indicam a origem do Júri na época mosaica, alguns o sugerem na época clássica de Grécia e Roma, enquanto os mais conceitualistas preferem afirmar o seu berço na Inglaterra, em época do Concílio de Latrão. Os adeptos da idéia mosaica dizem que surgiu entre os judeus do Egito que, sob a orientação de Moisés, relataram a história das “idades antigas” através do grande livro, o Pentateuco. Apesar das peculiaridades do sistema político-religioso local, em que o ordenamento jurídico subordinava os magistrados ao sacerdote, as leis de Moisés foram as primeiras que interessaram aos cidadãos nos julgamentos dos tribunais. Lá, para quem assim defende, estariam os fundamentos e a origem do Tribunal do Júri, em muito pelo culto à oralidade exposta nos dispositivos, apesar do forte misticismo religioso. O julgamento se dava pelos pares, no Conselho dos Anciãos, e em nome de Deus. O Conselho tinha suas regras definidas. Segundo relatam, funcionava a sombra de árvores, e a pena a se fixar não tinha limites. O julgamento hebraico exigia ampla publicidade dos debates, relativa liberdade do acusado para defender-se, garantia contra o perigo de falsas testemunhas e necessidade de duas testemunhas, no mínimo, para a condenação. Outra característica importante era a proibição de que o acusado que se encontrasse detido até definitivo julgamento sofresse interrogatório oculto e, além disso, só eram aceitas recusas motivadas. Os tribunais eram subdivididos em três, em ordem hierárquica crescente, o ordinário, o pequeno Conselho dos Anciãos e o grande Conselho d’Israel. O Tribunal ordinário era formado por três membros, sendo que cada parte designava um deles e estes escolhiam o terceiro. Das decisões por eles proferidas cabia recurso para o pequeno Conselho dos Anciãos, e destas outras para o grande Conselho d’Israel. Outra corrente de estudiosos, mais céticos, prefere apontar nos áureos tempos de Roma o surgimento do Júri, com os seus judices jurati. Também na Grécia antiga existia a instituição dos diskatas, isso sem mencionar os centeni comites que eram assim denominados entre os germânicos. Abordemos as mais importantes. Na Grécia, o sistema de órgãos julgadores era dividido basicamente em dois importantes conselhos, a Heliéia (julgava fatos de menor repercussão) e o Areópago(responsável pelos homicídios premeditados). Entretanto, em que se pese a autoridade das palavras que se sucederam, a maior parte da doutrina não exita em afirmar que a verdadeira origem do Tribunal do Júri, tal qual o concebemos hoje, se deu na Inglaterra, quando o Concílio de Latrão, em 1215, aboliu as ordálias ou Juízos de Deus, com julgamento nitidamente teocrático, instalando o conselho de jurados. Ordálias correspondiam ao Juízo ou julgamento de Deus, ou seja, crença de que Deus não deixaria de socorrer o inocente. Após uma análise minuciosa da história do surgimento e formação do Júri, concluímos que ele não nasceu na Inglaterra, mas, o que realmente aconteceu foi que o Júri adotado no Brasil, é de origem inglesa. Em decorrência da própria aliança que Portugal sempre teve com a Inglaterra, em especial, depois da guerra travada por Napoleão na Europa, onde a família real veio para o Brasil e, com ela todos os costumes e seguimentos europeus que tinham. 2. História 2.1. Mundial Demonstrada a discussão sobre a ORIGEM do Tribunal do Júri, passamos ao ofício de discorrer sobre sua EVOLUÇÃO HISTÓRICA. Partiremos aqui, do último ponto abordado no item precedente, sobre a origem do Tribunal do Júri: seu surgimento na Inglaterra, em época do Concílio de Latrão. Arraigado na cultura inglesa, após o seu surgimento trazido a lume pelo Concílio de Latrão, quando da Carta Magna, o Tribunal do Júri começou a ganhar espaço em outros ordenamentos jurídicos europeus. Diversos países daquele continente importaram suas linhas essenciais, o que era demonstrativo de seu prestígio. Após a Revolução Francesa de 1789, em muito pela conjuntura política momentânea, a França importou para o seu ordenamento jurídico o Tribunal do Júri. É sabido que naquele momento histórico as mais tradicionais famílias detentoras ou influentes no poder nacional não gozavam de prestígio junto a grande massa popular – plebe -, devido à histórica exploração a que os submeteram. Os magistrados, todos oriundos dessas castas familiares, não gozavam da confiança do povo. Assim, era necessário montar um poder judiciário no qual o ofício jurisdicional pudesse ser exercido pelo novo estamento social que chegava ao poder. O Júri, dado a sua estrutura, era a melhor opção. Da França o instituto se espalhou por quase toda a Europa, exceto Holanda e Dinamarca. 2.2. No Brasil  No Brasil, o Tribunal do Júri teve um histórico mais favorável, apesar de em determinados períodos passar certas crises institucionais. Foi disciplinado em nosso ordenamento jurídico pela primeira vez pela Lei de 18 de junho de 1822, a qual limitou sua competência ao julgamento dos crimes de imprensa, sendo que o mesmo era formado por Juízes de Fato, num total de vinte e quatro cidadãos bons, honrados, patriotas e inteligentes, os quais deveriam ser nomeados pelo Corregedor e Ouvidores do crime, e a requerimento do Procurador da Coroa e Fazenda, que atuava como o Promotor e o Fiscal dos delitos. “Os réus podiam recusar dezesseis dos vinte e quatro nomeados, e só podiam apelar para a clemência real, pois só ao Príncipe cabia a alteração da sentença proferida pelo Júri”. Com a Constituição Imperial de 1824, passou a integrar o Poder Judiciário como um de seus órgãos, tendo sua competência ampliada para julgar causas cíveis e criminais. Em 1832 foi disciplinado pelo Código de processo Criminal, o qual conferiu-lhe ampla competência, só restringida em 1842, com a entrada em vigor da lei n. 261. Após várias discussões, quando da promulgação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, foi aprovada a emenda que dava ao art. 72, § 31, o texto “é mantida a instituição do Júri”. O Júri foi, portanto, mantido, e com sua soberania.   Importante inovação adveio da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, com a retirada do antigo texto referente ao Júri das declarações de direitos e garantias individuais, passando para a parte destinada ao Poder Judiciário, no art. 72, dizendo: “É mantida a instituição do Júri, com a organização e as atribuições que lhe der a lei”. Pouco mais adiante, “com a Constituição de 1937, que não se referia ao Júri, houve opiniões controvertidas no sentido de extingui-la face ao silêncio da Carta. Contudo, logo foi promulgada a primeira lei nacional de processo penal do Brasil republicano, o Decreto-lei n 167, em cinco de janeiro de 1938, instituindo e regulando a instituição”. A Constituição democrática de 1946 restabeleceu a soberania do Júri, prevendo-o entre os direitos e garantias constitucionais. A Constituição do Brasil de 1967, em seu art. 150, § 18, manteve o Júri no capítulo dos direitos e garantias individuais, dispondo: “São mantidas a instituição e a soberania do Júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida”. Da mesma forma, a Emenda Constitucional de 1969, manteve o Júri, todavia, omitiu referência a sua soberania. O art. 153, § 18, previa: “é mantida a instituição do Júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida”.  Por fim, a Lei nº 5.941, de 22 de novembro de 1973, alterou em alguns pontos o Código de Processo Penal, estabelecendo a possibilidade de o réu pronunciado, se primário e de bons antecedentes, continuar em liberdade, o que foi disposto no art. 408, § 2º, além da redução do tempo para os debates para duas horas e meia hora, para a réplica e a tréplica, consecutivamente. Na atual Carta Magna, é reconhecida a instituição do Júri estando disciplinada no artigo 5º, XXXVIII. 3. Princípios básicos do Tribunal do Júri O Tribunal do Júri no Brasil, após todo o percurso histórico, passou a ter, com a Carta Magna de 1988, quatro princípios constitucionais basilares: a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para os crimes dolosos contra a vida (art. 5°, inciso XXXVIII, da CF). A plenitude de defesa, atribuída à instituição do Júri, traz aparente redundância do direito constitucional à ampla defesa (art. 5°, LV, da CF). Todavia, são dois preceitos diferentes impostos pelo legislador constituinte. Aramis Nassif esclarece que a plenitude de defesa no Tribunal do Júri foi estabelecida “para determinar que o acusado da prática de crime doloso contra a vida tenha ‘efetiva’ e ‘plena’ defesa. A simples outorga de oportunidade defensiva não realiza o preceito, como ocorre com a norma concorrente”. Escrevendo sobre a matéria, ensina Guilherme de Souza Nucci: “Um tribunal que decide sem fundamentar seus veredictos precisa proporcionar ao réu uma defesa acima da média e foi isso que o constituinte quis deixar bem claro, consignando que é qualidade inerente ao júri a plenitude de defesa. Durante a instrução criminal, procedimento inicial para apreciar a admissibilidade da acusação, vige a ‘ampla defesa’. No plenário, certamente que está presente a ampla defesa, mas com um toque a mais: precisa ser, além de ampla, ‘plena’.”  Nessa perspectiva, amparado pela plenitude de defesa, poderá o defensor usar de “todos” os argumentos lícitos para convencer os jurados, uma vez que estes decidem por íntima convicção, ou seja, julgam somente perante a consciência de cada um, sem fundamentarem e de forma secreta. Obedecendo dito princípio constitucional, exemplificadamente, deve o Magistrado, por ocasião da elaboração do questionário, quesitar todas as teses defensivas, mesmo que sejam eventualmente contraditórias [18]. No mesmo sentido, deve o Juiz-Presidente observar atentamente o trabalho desenvolvido pela defesa, pois, sendo este deficiente, deverá dissolver o Conselho de Sentença, em atendimento ao art. 497, inciso V, do CPP, em harmonia com o princípio da plenitude de defesa. Ademais, deve-se ressaltar que, segundo ensina Pontes de Miranda, “na plenitude de defesa, inclui-se o fato de serem os jurados tirados de todas as classes sociais e não apenas de uma ou de algumas”. O sigilo nas votações visa resguardar a liberdade de convicção e opinião dos jurados, para uma justa e livre decisão, sem constrangimentos decorrentes da publicidade da votação. Trata-se de uma mínima exceção à regra geral da publicidade, disposta no artigo 93, IX, da CF, para prestigiar a imparcialidade e idoneidade do julgamento. A forma sigilosa ou secreta da votação decorre da necessidade de resguardar-se a independência dos Jurados no ato crucial do julgamento. Nesse sentido, é a exímia lição de Aramis Nassif: “Assegura a Constituição o sigilo das votações para preservar, com certeza, os jurados de qualquer tipo de influência ou, depois do julgamento, de eventuais represálias pela sua opção ao responder o questionário. Por isso mesmo a jurisprudência repeliu a idéia de eliminação da sala secreta, assim entendida necessária por alguns juízes com base na norma da Carta que impõe a publicidade dos atos decisórios” (art. 93, IX, da CF). Mas, em relação a este princípio há posicionamentos doutrinários contrários, segundo os quais o princípio da publicidade (art. 5°, inciso LX, da CF) somente pode ser restringido em duas hipóteses: defesa da intimidade e exigência do interesse social ou público, sendo que ambas são incompatíveis, genericamente, com o julgamento pelo Júri. Analisando tais posicionamentos, conclui-se que seus adeptos são favoráveis à extinção das salas secretas. A soberania dos veredictos está, hoje, entre as cláusulas pétreas da Constituição de 1988. “Entende-se que a decisão dos jurados, feita pela votação dos quesitos pertinentes, é suprema, não podendo ser modificada pelos magistrados togados”. A estes, cabe apenas a anulação, por vício processual, ou, apenas por uma vez, determinar novo julgamento, no caso de decisão manifestamente contrária à prova dos autos. Trata-se de princípio relativo, pois no caso de apelação das decisões do Júri pelo mérito (art.593, III, D) o Tribunal pode anular o julgamento e determinar a realização de um novo, se entender que a decisão dos jurados afrontou manifestamente a prova dos autos.  No ensinamento de Guilherme de Souza Nucci, “soberania quer dizer que o júri, quando for o caso, assim apontado por decisão judiciária de órgão togado, terá a última palavra sobre um crime doloso contra a vida”. Julio Fabbrini Mirabete destaca que: “A soberania dos veredictos é instituída como uma das garantias individuais, em benefício do réu, não podendo ser atingida enquanto preceito para garantir a sua liberdade. Não pode, dessa forma, ser invocada contra ele. Assim, se o tribunal popular falha contra o acusado, nada impede que este possa recorrer ao pedido revisional, também instituído em seu favor, para suprir as deficiências daquele julgamento. Aliás, também vale recordar que a Carta Magna consagra o princípio constitucional da amplitude de defesa, com os recursos a ela inerentes (art. 5°, LV), e que entre estes está a revisão criminal, o que vem de amparo dessa pretensão.” E ainda, o Supremo Tribunal Federal, declarou que a garantia constitucional da soberania do veredicto do Júri não exclui a recorribilidade de suas decisões. Tal soberania está assegurada com o retorno dos autos ao Tribunal do Júri para novo julgamento. Finalizando os princípios constitucionais do Júri, encontramos a sua competência para os crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados. Tais crimes estão previstos no início da Parte Especial do Código Penal: homicídio simples, privilegiado ou qualificado (art. 121 §§ 1° e 2°); induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122); infanticídio (art. 123); e aborto (arts. 124, 125, 126 e 127). Cabe esclarecer, de antemão, que crimes dolosos contra a vida não são todos aqueles em que ocorra o evento MORTE. “Para ser assim denominado, deve estar presente na ação do agente o animus necandi, ou seja, a atividade criminosa deste deve se desenvolver com o objetivo de eliminar a vida”. 4. Competência O Tribunal do Júri é um órgão de 1ª instância, ou de 1º grau, da Justiça Comum, Estadual ou Federal, cuja competência é para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida: a) homicídio – artigo 121; b) instigação ou auxílio ao suicídio – artigo 122; c) infanticídio – artigo 123; d) aborto – artigos 124 a 127. Importante destacar que o Latrocínio (artigo 157, § 3º, segunda parte, CP) e o Seqüestro com morte (artigo 150, §3º, CP) são da competência do juiz singular e não do Tribunal do Júri. Consoante entendimento do doutrinador Nelson Elias de Andrade, o legislador trilhou caminho seguro ao subtrair da apreciação do Tribunal do Júri tais crimes, pois, embora exista substancialmente crime doloso e tenha havido homicídio, não se pode dar o mesmo tratamento, motivado tão-somente pela pesquisa prévia da intenção do agente, que nesse caso não tinha ou não teve a intenção de matar, mas, tão-somente de roubar, furtar, subtrair, seqüestrar, com fins e para fins econômicos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-86/origem-historia-principiologia-e-competencia-do-tribunal-do-juri/
A excepcionalidade da medida restritiva de liberdade sob a ótica judicial e social
Excepcionalidade da medida cautelar restritiva de liberdade sob a ótica jurídica e social. Prisão cautelar e sua previsão nas cartas políticas. Princípios que iluminam a prisão na CRFB/88. Prisão cautelar no ordenamento infraconstitucional. Tratados internacionais sobre direitos humanos e Constituição. Finalidade e fundamento jurídico da pena. Historicidade da prisão cautelar. Fundamentação legal na decretação da prisão e o juiz bruxo-inquisidor. Espetáculo público da punição e o estigma ao encarcerado. Presos cautelares e a LEP. Escolha da cadeia no momento de acomodação do preso. Conseqüências na família no cumprimento de uma medida cautelar. O Estado no momento de cumprimento da medida.[1]
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO Este projeto tem por escopo discutir a excepcionalidade da medida cautelar restritiva de liberdade sob a ótica social e jurídica. Basta o acontecimento de um crime grave, ainda em investigação, logo, sem qualquer contraditório e ampla defesa, para que a sociedade, quando lhe é apresentado um suspeito, tenha o desejo de vê-lo atrás das grades. Já sob a ótica judicial, observam-se cada vez mais magistrados decretando prisões sem a devida fundamentação legal, obrigando, assim, os tribunais a cassarem tal decreto, causando, aos conhecedores empíricos, insatisfação com o sistema jurisdicional. Sem olvidar outras medidas cautelares restritivas de liberdade existentes no ordenamento, neste artigo devem-se anotar tão somente as medidas processuais penais que restrinjam a liberdade, seja do investigado ou mesmo do acusado, ou seja, medida executada antes de uma sentença penal condenatória transitada em julgada. Neste pensamento, não se tem o propósito de esgotar as hipóteses de prisões cautelares previstas no ordenamento jurídico, mas tão somente observar a fundamentação utilizada para decretação dessas medidas que são ou deveriam ser excepcionais. A Constituição da República Federativa do Brasil, conhecida como constituição cidadã, permitiu a chamada prisão cautelar em seu artigo 5, LXI. Entretanto, também previu, neste mesmo artigo, princípios que são basilares para um Estado democrático de direito, dentre os quais o do devido processo legal -LIV-, contraditório e ampla defesa –LV-, da presunção de inocência antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória –LVII.  Na legislação infraconstitucional pode-se ver a regulamentação da medida cautelar restritiva de liberdade. Assim, é possível anotar que no Título IX, capítulo II do decreto-lei nº 3.931 de 11 de Dezembro de 1941, tem-se a prisão em flagrante de delito; no mesmo título, capítulo III do mesmo decreto-lei pode-se encontrar a prisão provisória e na lei nº 7.960 de 21 de Dezembro de 1989 encontram-se as hipóteses da prisão temporária.  Ainda é possível citar a modalidade de flagrante postergado, previsto nas leis 9.034/95 e lei 11.343/06, lei de crime organizado e  lei de drogas, respectivamente. Neste pensamento, as prisões cautelares, introduzidas pelo direito eclesiástico como forma de penitência, pretere historicamente a prisão pena. No Direito romano, a custódia dos processados se fazia pelo acorrentamento ou pela segregação, podendo esta ocorrer em estabelecimentos do Estado ou em casas particulares, garantindo, de certa maneira, a futura aplicação da pena.  No Brasil, a prisão preventiva surgiu, legalmente, em 1822, com a proclamação da Independência. A Constituição Imperial de 1824, em seu art. 179 § 8°, admitiu a custódia preventiva, nos casos declarados em lei, mediante ordem escrita do juiz. O Código de Processo Criminal do Império, de 1832, previu também a prisão sem culpa formada para os crimes inafiançáveis, por ordem escrita da autoridade legítima, até que o Código de Processo Penal de 03 de outubro de 1941, inspirando-se no Código de Processo Penal italiano de 1930, veio sistematizar, com rigor dogmático, a prisão preventiva no processo penal brasileiro. Em relação ao tema, tem-se como hipótese, sob o ponto de vista jurídico, que juízes devem, ao estarem diante de um pedido de medida cautelar, avaliar, tão somente, seu critério técnico-jurídico, deixando de lado os apelos sociais de uma sociedade com conhecimentos empíricos acerca da realidade carcerária de nosso País. Igualmente, quando estamos diante de uma medida cautelar restritiva de liberdade, deve-se ter em mente um viés social, posto que estas medidas são decretadas sem respeito ao princípio do contraditório e ampla defesa, causando um estigma para o paciente. Nossos presos e seus familiares não recebem qualquer assistência por parte do Estado durante a execução da medida, tendo muitas vezes sua imagem divulgada pela imprensa, o que ocasiona uma publicidade desmedida e oportunista.  Esta pesquisa tem o escopo de demonstrar que muitas medidas cautelares restritivas de liberdade são decretadas sem a necessidade prevista na lei, onde juízes, sucumbindo aos apelos sociais, deixam de aplicar a tecnicalidade da lei. Como dito alhures, o cumprimento de uma medida restritiva de liberdade tem um viés social, pois o paciente fica marcado perante a sociedade, acarretando, após o cumprimento da medida, problemas como o desemprego, o descrédito no ordenamento jurídico e o aumento da criminalidade. Considerando uma pesquisa realizada acerca da excepcionalidade da medida cautelar restritiva de liberdade, tem-se como objetivos analisar as possibilidades que o ordenamento jurídico permite a aplicação de tais medidas. Deve-se, ainda, verificar que várias dessas decisões não têm a devida fundamentação legal para a decretação da prisão. Igualmente, deve-se apontar que o Estado não presta assistência social e psicológica às pessoas que estão sofrendo tais medidas cautelares nem aos seus familiares, gerando uma grande dificuldade ao preso, após o cumprimento de tais medidas, em voltar ao mercado de trabalho, ainda que não tenham sido considerados culpados na ação penal. 2. Prisão Cautelar: Embasamento Constitucional e princípios Lucipotentes No Brasil, a prisão preventiva surgiu, legalmente, em 1822, com a proclamação da Independência o que foi seguido pela carta imperial de 1824, por força do disposto no artigo 179 §8º, sendo permitida nos casos previstos em lei desde que houvesse ordem judicial. Seguindo esta posição o código de processo criminal de 1932 também permitia tal medida nos delitos inafiançáveis, pelo que foi seguido pelo atual código de processo penal de 03 de outubro de 1941. A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de Outubro de 1988 – CRFB/88- trouxe em seu texto dispositivo que autoriza a prisão cautelar, conforme artigo 5, LXI, assim como já vinha previsto em constituições anteriores. Também, além de princípios esculpidos na carta política, outros estão dispostos em tratados internacionais, como, por exemplo, o pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 5º, itens 1 ao 6. Deve-se ressaltar que se adota, neste trabalho, o entendimento que tratados internacionais, relativos a direito fundamental, deve lhe ser dado status de norma constitucional, por força do artigo 5 §2º da CRFB/88[2], sem olvidar posicionamento em contrário[3]. A Carta política permitiu a prisão cautelar, mas trouxe em seu texto princípios que iluminam o direito penal. Assim, tem se, no inciso LV, a obrigatoriedade de respeitar o contraditório e ampla defesa; no inciso LVII encontra-se a presunção de inocência, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Igualmente, o artigo 5º do pacto supracitado prevê o direito à integridade pessoal, obrigando o Estado, ao restringir a liberdade de alguém, a respeitar sua dignidade inerente ao ser humano. Ao devido processo legal tem-se uma dupla proteção ao indivíduo, onde, no âmbito material, deve-se ter proteção ao seu direito de liberdade e de propriedade, ao passo que no âmbito formal se assegura a paridade total de condições com o Estado-Persecutor e plenitude de defesa. A ampla defesa permite ao réu trazer ao processo todos os elementos que conduzam a verdade dos fatos e até mesmo calar-se diante de uma acusação. Outra garantia deste princípio é a exigência de defesa técnica no processo, não bastando a presença formal de um defensor, sem que a ela corresponda a existência efetiva de defesa substancial. A doutrina sustenta que este princípio não deve ser assegurado na fase de inquérito policial, tendo em vista que neste fala-se em indiciado, sendo um mero procedimento administrativo que busca colher indícios sobre fato infringente da norma e sua autoria[4]. O princípio da presunção de inocência é sem dúvida o mais discutido, seja no âmbito criminal ou mesmo em outros ramos do direito, sendo um dos princípios basilares do Estado de Direito como garantia processual, visando à tutela de liberdades públicas. Deve-se observar quatro funções básicas a saber: a limitação à atividade legislativa, critério condicionador das interpretações das normas vigentes, critério de tratamento extraprocessual em todos os seus aspectos e a obrigatoriedade de o ônus da prova da prática de um fato delituoso ser sempre do acusador. Esta foi uma norma inovadora em nossa carta política, pois em outras constituições ela era uma interpretação do contraditório e da ampla defesa. Nosso pretório excelso deixou assentado que mesmo diante desta garantia de não culpabilidade não foi afetado e nem suprimido a decretabilidade das diversas modalidades de prisão cautelar que estão previstas em nosso ordenamento.[5] A carta de Outubro prevê como um princípio fundamental o respeito à dignidade da pessoa humana, por força do seu artigo 1º, III o que nos mostra que o Estado deve em todos os seus atos respeitar a dignidade de todos. Este princípio apresenta uma dupla acepção, onde um direito pessoal protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos é um verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes.[6] Como dito, entende-se que tratado internacional relativo a direitos humanos deve receber status de norma constitucional, pelo que se deve observar o disposto no pacto de São José da Costa Rica que foi incorporado no direito interno pelo decreto 678/1992. Assim, no seu artigo 5º, item 2, está prevista a possibilidade de prisão cautelar, mas o Estado deve tratar a pessoa que sofre tal medida com respeito a sua dignidade que é inerente ao ser humano. Ressalta ainda, que tais presos devem ser separados de pessoas já condenadas e que as penas privativas de liberdade devem ter finalidade essencial à reforma e readaptação social de seus condenados. 3. A PRISÃO CAUTELAR NO ORDENAMENTO INFRACONSTITUCIONAL Na idade média, onde predominava o sistema inquisitivo a prisão durante o processo era regra, pois se acreditava que todo acusado dificultava a investigação da verdade[7], mas no sistema acusatório a prisão cautelar deve sempre ser considerada exceção, eis que a característica deste sistema é a liberdade pessoal. A prisão cautelar, conforme citado por Cesare Beccaria”constitui uma maneira de deter o cidadão até que ele seja considerado culpado, como tal processo é angustioso e cruel, deve, na medida do possível, amenizar-lhe o rigor e a duração”[8]. Do sistema original do código de processo penal de 1941 até a contemporaneidade, houve mudanças importantes, o que nos deixa esperançoso por novas mudanças eis que o regramento ainda encontra-se frágil. Assim, tem-se, com previsão no código de processo penal, a prisão em flagrante de delito e preventiva bem como, com previsão em lei ordinária, a prisão temporária. A doutrina costuma apontar que para haver a realização ou a manutenção da prisão cautelar devem-se satisfazer alguns requisitos. Anota-se assim, de forma majoritária, o fumus commissi delicti, como sendo a probabilidade da ocorrência de um delito, mas, melhor posição é a de que basta pensar em possibilidade do direito de punir, eis que o problema é apenas terminológico[9]. Outro requisito apontado é o periculum libertatis, como sendo o perigo que decorre da liberdade do acusado. Da mesma maneira, deve-se destacar o mais importante requisito para que seja válido o decreto de prisão que é a fundamentação legal, por força do disposto no artigo 93 IX da CRFB/88. Neste ponto, deve-se ressaltar que não basta a repetição dos termos legais, o que vem acontecendo em grande escala, tendo a autoridade competente que fazer a indicação dos fatos e do direito que conduzem à decisão[10]. Deve-se ter por isto como característica da prisão cautelar o fato de ela ser jurisdicional, eis que somente por ordem judicial pode ser decretada. Assim, adota-se a corrente doutrinária que sustenta o fato de a prisão em flagrante ser uma prisão pré-cautelar, tornando-se cautelar e jurisdicional somente quando examinada pelo juiz competente[11]. Outra característica é a acessoriedade, pois sempre está associada à segurança do resultado de um processo principal. Também temos a preventividade, eis que busca prevenir o dano de difícil reparação enquanto o processo principal não chega ao fim. Temos conjuntamente a instrumentalidade hipotética, onde nos mostra que a medida não é um fim em si mesma. Dentre as características pode-se apontar como as mais importantes sua provisoriedade, eis que somente persistindo o motivo de sua decretação ela pode ser mantida e a excepcionalidade, pois é a última razão do sistema, reservada aos fatos mais graves e não se puder de outro modo atingir o fim do processo principal.  3.1. PRISÃO EM FLAGRANTE DE DELITO Esta modalidade de prisão está disposta no livro I, título IX, capítulo II, nos artigos 301 ao 310, do decreto-lei 3.689, de 03/10/1941. Cabe ressaltar que qualquer do povo poderá, estando diante de uma hipótese de flagrância, prender o agente que comete o delito. Entretanto, em se tratando de autoridade policial ou seus agentes a prisão deve ser efetuada, sob pena de responsabilização criminal e administrativa, por força do artigo 301. Nos incisos dispostos no artigo 302 do código de processo penal temos as modalidades de prisão em flagrante. Assim, nos incisos I e II temos o flagrante próprio, onde o indivíduo, no inciso I, é surpreendido cometendo o delito e, no inciso II, acaba de cometer a infração. Ainda neste artigo, pode-se observar o inciso III que prevê a hipótese de quase flagrante, pois basta imaginar que foi o autor do delito. Tem-se no inciso IV ao denominado flagrante presumido, fato onde o agente é encontrado com objetos, logo depois, que façam presumir ser ele o agente criminoso. Além desses casos previstos no código de processo penal, a doutrina aponta outras modalidades, em razão da presença, em cada uma delas, de elementos ou circunstâncias não contempladas naquelas[12]. Temos o flagrante provocado ou esperado, onde terceiro provoca a situação, fazendo a pessoa acreditar que pode cometer o delito, mas estando sob vigilância este jamais se consumaria. Esta espécie flagrancial não é admitida, sendo tal assunto sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, através do verbete sumular número 145. Outra hipótese aventada pela doutrina é o flagrante esperado, onde a autoridade policial sabe que o delito ocorrerá, mas sem dele ter qualquer influência, ficando somente no aguardo de sua execução. Neste ponto, sem olvidar entendimento contrário[13], adota-se posicionamento onde somente será válido este flagrante se houver alguma chance de o crime ser consumado, pois, senão, estaremos diante de um crime impossível[14]. Nesta ressonância, também a doutrina aponta o flagrante diferido, nas hipóteses descritas nas leis 9.034/1995, no seu artigo 2º, e na lei 11.343/2003, no seu artigo 53, I. Assim, estando a autoridade policial ou seus agentes, diante de uma situação flagrancial qualquer, é possível a não intervenção imediata, pois podem deixar de efetuar a prisão, sendo esta uma exceção à determinação prevista no artigo 301 do código de processo penal, conforme supracitado. Porém, somente com autorização judicial  é que tal exceção é permitida. 3.2 – PRISÃO PREVENTIVA Esta modalidade de prisão cautelar também vem disposta no ordenamento infraconstitucional no decreto-lei 3.689, de 03/10/1941, em seu livro I, título IX, capítulo II, nos artigos 311 ao 316. Revela sua cautelaridade na tutela da persecução penal, objetivando impedir que eventuais condutas praticadas pelo alegado autor e/ou por terceiros possam colocar em risco a efetividade do processo[15]. A doutrina diverge quanto ao momento em que este tipo de medida pode ser aplicada. Assim, uma posição majoritária sustenta, fazendo uma interpretação literal do artigo 311 do CPP, ser possível a aplicação da medida em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal até após a sentença condenatória[16]. Outra corrente, fazendo uma interpretação sistemática defende de maneira mais técnica, somente ser possível a decretação da prisão preventiva quando da instrução criminal, pois tendo como requisito a prova da existência do crime bem como indícios de autoria e materialidade, o que também é exigido para a proposição de denúncia, não seria possível em fase de procedimento administrativo[17]. Assim, tem-se como pressuposto o indício de autoria e materialidade o que se poderia chamar de fumus delicti por parte da doutrina. Reputam-se como fundamentos a garantia da ordem pública, econômica, instrução processual e aplicação da lei penal. Quanto à ordem pública e econômica pode-se sustentar sua inconstitucionalidade, pois vai de encontro ao princípio da presunção de inocência. Vale lembrar, como sustenta André Nicolitt que “a expressão ordem pública tem suas raízes no surgimento do nazismo, tendo sido utilizada para justificar grandes atrocidades”[18]. O artigo 313 do CPP nos mostra as circunstâncias ou condições de admissibilidade em que será admitida a medida cautelar em tela. Assim, mesmo um código inspirado num regime fascista, esta modalidade de prisão teve sua excepcionalidade regulada. Cabe ressaltar que uma vez sucumbindo os motivos que determinaram a decretação desta prisão, ela deve ser revogada, significando que o réu tem sua liberdade integralmente restituída, sem a imposição de qualquer restrição de direito.     A doutrina tradicional que sustenta a possibilidade de a prisão preventiva ser decretada na fase de procedimento administrativo ou mesmo na fase judicial ressalta ainda que não é possível que o juiz de ofício expeça o decreto prisional, tendo em vista que a Carta política adotou o sistema acusatório, onde  o juiz fica sem poderes investigatórios. Esta mesma corrente sustenta que, no curso da ação penal seria possível que o magistrado decretasse de oficio a prisão, eis que ele deve exercer a proteção efetiva do processo, utilizando-se, ainda, de uma interpretação literal do artigo 311 do CPP[19]. Abalizada doutrina indica ser possível, tão somente, a decretação da prisão em tela no curso da ação penal. Isso porque, fazendo uma interpretação conforme a constituição, o dispositivo que permitiria que o juiz decretasse a prisão de oficio não teria sido recepcionado pela carta de Outubro de 1988. Assim, tendo em vista o modelo acusatório que foi adotado, o juiz deve manter uma postura de inércia e eqüidistância no processo penal, sem as quais não é possível sua imparcialidade e a efetiva tutela das garantias fundamentais[20]. 3.3- PRISÃO TEMPORÁRIA Também com previsão infraconstitucional, esta prisão cautelar tem presciência legal na lei 7.690/1989. Conforme explicita André Nicolitt “este modelo de prisão veio substituir a famigerada prisão por averiguação, diferenciando-se desta, basicamente, pela exigência de ordem judicial, o que era dispensado, já que a prisão por averiguação era realizada pela polícia”[21]. Um primeiro ponto que se deve ter atenção na presente lei é que o artigo 1º somente permite a decretação da medida na fase investigatória, o que, diante do modelo acusatório adotado pela carta republicana de 1988, invibializa sua decretação de ofício pelo magistrado. Corroborando com esta exegese o artigo 2º do mesmo diploma legal prevê que o Ministério Público poderá requerer a medida e a autoridade policial representar por ela, o que de certa forma é incontroverso na doutrina e na jurisprudência. Ainda no artigo 1º da lei, pode-se observar no inciso II dois requisitos, sendo o fato de o indiciado não apresentar residência fixa ou não fornecer elementos necessários para sua identificação. Com relação a esta segunda parte do dispositivo, é possível apontar sua inconstitucionalidade, tendo em vista que, diante do exercício do direito ao silêncio, não pode o paciente ser punido, pois deve o Estado, com perspicácia e tecnologia, pesquisar, diante de vários modelos de identificação, sua qualificação.  Dispõe o  inciso III deste mesmo artigo 1º que a medida somente deve ser decretada se houver fundadas razões de autoria e participação do indiciado nos crimes elencados. Vale dizer que esta relação de crimes é taxativa o que impede a decretação de prisão temporária fora desses tipos penais. Vale ressaltar, como dito algures, a posição doutrinaria que sustenta a possibilidade de decretação de prisão preventiva durante a fase de investigação. Neste sentido, esta doutrina anota que fora dos casos previstos no inciso III da lei em comento, caberia a decretação de prisão preventiva[22]. A exegese feita pela doutrina neste artigo 1º salienta que os incisos I e II representam o chamado periculum in mora e que o inciso III representa o fumus boni iuris. Assim, é possível dizer que, para decretação da medida, devem estar dispostos os incisos I ou II sempre combinado com o inciso III[23]. Outra parte da doutrina defende que as previsões feitas pelo inciso II já estão agasalhadas pelo inciso I, tendo ocorrido uma redundância por parte do legislador. Assim, bastaria a incidência dos incisos I e III para que seja legitimada a decretação da medida[24]. Outrossim, parte da doutrina sustenta a inconstitucionalidade[25] da prisão temporária, como assevera Aramis Nassif “a prisão temporária, doentia criação do legislador ordinário, é a mais violenta inconstitucionalidade praticada dentro do direito positivo brasileiro”[26].  Como primeiro fundamento da inconstitucionalidade da prisão temporária pode-se citar que sua criação se deu por medida provisória, o que fere formalmente a carta política do Estado, uma vez que a matéria não poderia ser objeto de delegação do legislativo. Além disso não haveria urgência e relevância para a edição de uma medida provisória, o que atualmente é vedado pelo artigo 62, §1º, I, b da Constituição Federal. Destarte, o artigo 2º da lei fixa prazo de cinco dias, prorrogáveis por igual período, para cumprimento da medida. Este dispositivo deve ser interpretado com observância do disposto no artigo 2º §4º da lei 8.702/1990, pois esta lei prevê prazo de trinta dias, prorrogáveis por mais trinta, para o cumprimento de prisão temporária nos casos de crimes hediondos. Este prazo absurdamente longo fere os princípios da presunção de inocência, da proporcionalidade e da duração razoável do processo além do princípio da humanidade e dignidade humana. Conforme anota André Nicolitt “o regramento da prisão temporária, mormente em se tratando de crimes hediondos, é incompatível com os valores do Estado democrático de direito, além de se tratar de prática de que dá arbítrio do Estado-policial”[27]. 4. O PAPEL DO ESTADO COMO CUMPRIDOR NAS MEDIDAS CAUTELARES RESTRITIVAS DE LIBERDADE A doutrina já aponta um problema substancial no direito punitivo, relativo ao seu fundamento jurídico e à finalidade da pena[28]. Nesta problemática é possível citar três teorias: A teoria absoluta, também denominada de teoria da retribuição, sustenta que a pena deve ter característica de retribuição, ou seja, não tem outro propósito que não de recompensar o mal com outro mal, logo a pena não tem finalidade ela é o fim em si mesma. A teoria relativa, também denominada de prevenção ou finalista, desenvolveu-se em oposição à primeira teoria, concebendo a pena como um meio para a obtenção de ulteriores objetivos, subdividindo-se em prevenção geral, que se dirige aos membros da comunidade para não delinqüirem e em prevenção especial, dirigida ao condenado, de maneira que, afastando-o do meio livre, não torne a delinqüir e possa ser corrigido. A teoria mista faz uma combinação entre as duas supracitadas, pois sustenta um caráter retributivo agregando ainda a função de reeducação e inocuização do criminoso[29]. Esta dupla finalidade foi adotada pelo artigo 59 do Código de Penal. Diante do exposto, qual seria a finalidade da prisão cautelar? Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo suplicado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva[30]. O desaparecimento dos suplícios é, pois, o espetáculo que se elimina, mas é também o domínio sobre o corpo que se extingue. Em 1787, dizia Rush, citado por Foucault “Só posso esperar que não esteia longe o tempo em que as forcas, o pelourinho, o patíbulo, o chicote, a roda, serão considerados, na história dos suplícios, como marcas da barbárie dos séculos e dos países e como as provas da fraca influência e da religião sobre o espírito humano”[31]. A prisão, enquanto prisão judiciária foi adotada em fins do século XVIII, tendo como base o que já era aplicado, desde o século XVI, pelo direito eclesiástico. A prisão cautelar, considerada tão antiga quanto a origem da humanidade, possuía finalidade de manter os acusados no distrito da culpa para, posteriormente, processá-los e aplicar-lhes punições quase sempre desumanas. Neste diapasão, cita-se o professor Cezar Roberto Bitencourt “Até fins do século XVIII a prisão serviu somente aos objetivos de contenção e guarda de réus, para preservá-los fisicamente até o momento de serem julgados ou executados”[32]. Destarte, este tipo de prisão instrumental é, conforme esclarece Basileu Garcia “Outrora, o aprisionamento só era usado para evitar a fuga dos réus. Não passava, pois, de medida processual, equivalente à atual prisão preventiva”[33].    Nesta linha de pensamento, deve-se ressaltar a importância da restrição da liberdade como medida cautelar, prevista inclusive no artigo 7º, item 2 da convenção dos direitos humanos, denominado de pacto de São José da Costa Rica, incorporado em nosso ordenamento jurídico, como norma constitucional, conforme posicionamento que se adotou, pelo decreto nº 678 de 09/11/1992. Entretanto, mais importante é compatibilizar esta medida com os princípios que iluminam e asseguram a dignidade da pessoa humana. Assim, pode-se observar no artigo 5º, item 1º do decreto 678/1992 que a toda pessoa é devido o respeito a sua integridade física, psíquica e moral. Ainda neste mesmo artigo, deve-se observar o item 2, onde é devido à pessoa privada de sua liberdade o respeito à dignidade inerente ao ser humano. Também previsto no item 4 pode-se observar que o preso provisório deve ficar separado dos demais condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, devendo ser submetido a tratamento adequado à sua condição de pessoa não condenada. Fazendo-se uma exegese deste dispositivo deve-se ressaltar a legalidade da prisão cautelar, mas tal medida deve ser excepcional, onde o juiz deve ser específico no momento de decretar a medida, usando de tecnicalidade e literalidade dos motivos, deixando de lado os jargões legais. Essas motivações legais, quando utilizadas pelo magistrado, parece, como anota André Nicolitt “palavras mágicas, o que se aplicava muito em bruxarias na idade média”. E prossegue ainda, “Quando o juiz apela para estas fórmulas legais cria uma figura essencialmente incompatível, que é o bruxo-inquisidor, pois evoca palavras mágicas como um bruxo e conduz o processo como um inquisidor”[34]. Como exemplo do que foi dito, pode-se mostrar a decisão proferida no processo 2009.001.021370-0, no dia 04/02/2009, onde decretando a prisão, o juízo da 17ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, fundamentou dizendo: “DECRETO A PRISÃO PREVENTIVA do acusado J. A. F. B, pela presença dos requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal. EXPEÇA-SE MANDADO DE PRISÃO”. Vale ressaltar que esta decisão somente foi sucumbida pelo egrégio Tribunal de Justiça do Estado do rio de Janeiro, nos autos do processo nº: 0047203-07.2010.8.19.0000, no dia 17/09/2010. Assim, é possível constatar que paciente foi preso cautelarmente, sem qualquer especificidade de motivos no momento da decisão do M.M juízo, tendo que levar a questão ao egrégio tribunal a fim de ver respeitado os direitos constantes da carta política do Estado. Neste exemplo,  a questão foi resolvida pelo Tribunal de Justiça, mas, em outras oportunidades a questão é levada aos tribunais superiores o que acarreta num descrédito do poder judiciário junto à sociedade que possui apenas conhecimentos empíricos a cerca do tema.   Noutra hipótese, ainda mais emblemática, que foi notícia dos jornais e telejornais durante algumas semanas, o juiz da 6ª Vara Federal de São Paulo decretou a prisão preventiva de um réu com a seguinte fundamentação: “neste momento, decreto sua constrição cautelar diante da aferição da presença dos requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, com fundamento nos artigos 311 e 312, ambos do código de processo penal”, continua a dizer “por conveniência da instrução criminal, para assegurar eventual aplicação da lei penal e também para garantias das ordens pública e econômica…”. Esta questão foi submetida ao plenário do Supremo Tribunal Federal, através do HC: 95.009-4 Relator Min. Eros Grau, que assim foi resolvida: “… Fundamentação inidônea da prisão preventiva. Conveniência da instrução criminal para viabilizar a instauração da ação penal”. Percorre ainda, “Garantia da aplicação da lei penal fundada na situação econômica do paciente. Preservação da ordem econômica. Quebra da igualdade. Ausência de fundamentação concreta  da prisão preventiva. Prisão cautelar como antecipação de pena…”. Por vezes, crimes graves, aberrantes, são cometidos e logo chegam ao conhecimento da sociedade através da mídia. Esses delitos causam verdadeira repulsa, repúdio, ódio da sociedade em face de seu autor. Outrossim, o Estado deve atuar de forma justa e pacificadora, deixando de lado o sentimento de vingança. Assim, esclarece Afrânio Silva Jardim “É natural que os ofendidos sintam ódio e reajam com violência a determinados crimes, o que pode ocorrer mesmo com certos grupos sociais”. Prossegue ainda, “Entretanto, ao Estado, personificado pelo órgão jurisdicional, tal não se lhe permite. O Estado de direito deve atuar racionalmente, de forma justa e pacificadora”.  Continua a dizer, “O sistema penal não pode ser utilizado como instrumento de vingança e ser utilizado por uma determinada classe para a sua autodefesa” [35]. Desta forma, sempre que se for decretar uma medida restritiva de liberdade como providência cautelar deve-se atentar aos motivos de forma clara e conclusiva, a fim de evitar que pessoas, que ao final do processo sejam inocentadas, tenham cumprido uma medida restritiva de liberdade. Neste sentido, Afrânio Silva Jardim esclarece que “Certo que tal entendimento levará à impunidade de alguns criminosos. Mas certo também é que, para punir estes alguns criminosos, não se deve criar uma generalizada insegurança aos cidadãos de uma sociedade que se deseja democrática”. Continua ainda,”a impunidade já existe por vários outros fatores e pode ser o ônus que se tem que tolerar para viver em um país onde a liberdade das pessoas é um bem da mais alta relevância” [36]. 4.1 – O ESTIGMA CAUSADO AO ENCARCERADO Desde o inicio do século XIX a punição como espetáculo público vai-se extinguindo. Não mais existia o cerimonial da pena, onde se pode citar a confissão pública, abolida na França desde 1830,  o pelourinho, abolido em 1789 na Inglaterra. O suplício de exposição do condenado foi extinto na França em 1848, o que já causava bastante repúdio da sociedade desde 1831. Desta forma pode-se afirmar que a sociedade não mais tolerava o grande espetáculo público de seus condenados. Conforme anota Michel Foucault “a execução pública é vista então como uma fornalha em que se acende a violência. A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal”[37]. Outrossim, a sociedade contemporânea, deixando de lado os ensinamentos e as experiências obtidas no século XIX, trata seus presos como troféus, transformando uma investigação ou cumprimento de uma simples medida cautelar restritiva de liberdade num verdadeiro espetáculo público. Quando há o cumprimento dessas medidas, os órgãos aos quais a constituição federal prevê atribuição fazem questão de tornar pública a imagem do suspeito para que toda a sociedade o veja, talvez com o intuito de desviar o homem do crime com o espetáculo. Bem verdade que esta orientação já era criticada por Foucault no século XIX, pois a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro[38]. Nesta linha de pensamento, deve-se ressaltar que os pacientes cumpridores das medidas cautelares têm sua liberdade cassada, muitas vezes, sem contraditório ou ampla defesa o que deveria ser mais um motivo para que sua imagem fosse preservada. O cumprimento de uma medida restritiva de liberdade acarreta grande impacto na vida das pessoas evolvidas. Diz-se pessoas porque não só o cumpridor da medida sofre os efeitos dela mais também os parentes e amigos mais próximos. Sabe-se da dificuldade do Estado em prover a educação básica das pessoas menos abastadas. Desta forma, o indivíduo que já não teve uma educação por parte do Estado, o que lhe impossibilita, muitas vezes, de permanecer por longo tempo no mercado de trabalho, quando comete um ilícito ou às vezes é suspeito de cometer um crime se vê atrás das grades. Uma diferença tem-se de estabelecer, pois se sabe que o condenado com sentença condenatória transitada em julgado deve cumpri-la em estabelecimento distinto dos presos provisórios, conforme dispõe artigo 84 da lei 7.210/1984. Bem verdade que esta regra tem origem no pacto de São José da Costa Rica em seu artigo 5º, item 4, conforme supracitado. Este condenado deve cumprir sua pena sob a égide da carta política do Estado, lei de execuções penais, lei nº 7.210/1984 – LEP e tratados internacionais em respeito aos direitos humanos. O preso provisório deve cumprir sua medida em cadeia pública, que será construída próximo ao centro urbano, a fim de resguardar o interesse da administração da justiça criminal e a sua permanência em local próximo ao meio familiar e social, como dispõe o artigo 102 da LEP.  Interessante ressaltar que esta própria lei determina como deveriam ser construídas essas cadeias. Assim, pode-se dizer, por força do artigo 88 e seu parágrafo único da LEP, que o preso cautelar deve ser alojado em cela individual que contenha dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Os requisitos básicos para cada unidade celular também são ensinados pelo legislador que previu salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação, condicionamento térmico adequado à existência humana e uma área mínima de 6,00m². Neste ponto merece registro as palavras do professor Guilherme de Souza Nucci onde “pode soar falacioso ou, infelizmente, até jocoso para aquele que vive em barracos menores que isso, ainda  que honestamente. No entanto, deve-se manter o princípio de que um erro não justifica o outro. Percorre ainda,”deve o Estado investir na área social tanto quanto o fará na área de segurança pública, respeitadas as condições legais”[39].   Neste diapasão, o decreto 6.049/2007 regulamenta o serviço penitenciário federal, destinado a execução de medidas restritivas de liberdade dos presos, provisórios ou condenados, cuja inclusão se justifique no interesse público ou do próprio preso e de presos sujeitos ao regime disciplinar diferenciado. No artigo 6º deste regulamento é previsto que os presos, sejam os apenados ou os provisórios, fiquem em unidades celulares individuais, em locais distintos, entre outras previsões. Mesmo diante das regulares denúncias de superlotação desses estabelecimentos a doutrina não faz muita alusão ao tema. Pode-se citar André Nicolitt “É de notar que nossa realidade é muito diferente da prevista na LEP. O que vimos, não raro, é a superlotação dos estabelecimentos sem nenhum respeito à lei e à constituição”. Prossegue ainda “Assim, cumpre ao estado, através de seus órgãos, notadamente ao Ministério Público na promoção da justiça, aproximar o ser do dever ser” [40]. Quando há a necessidade de um acondicionamento dos presos o Estado o faz ao arrepio da lei, pois, ao menos no Rio de Janeiro, preocupa se em separar seus presos por facção criminosa. Não se sabe se esta escolha seria uma maneira de alocação do preso ou se seria uma forma indireta de o Estado reconhecer a existência destas organizações. O que importa é que isto é feito. Destarte, a família também sofre as conseqüências desta medida de forma que quase sempre os presos são de famílias menos abastadas o que dificulta o simples fato de uma visita. O Estado não se preocupa que as mães têm de conseguir, muitas vezes, dinheiro emprestado para poder pagar duas ou três passagens de ônibus para conseguir ver seus filhos. Isso pelo simples fato de esse mesmo Estado que exerceu seu direito de restringir a liberdade de maneira cautelar não respeitar o que a lei determina, ou seja, a permanência do preso em local próximo ao seio familiar.       Diante do exposto, fica-se com um dilema. O Estado não fornece educação básica de qualidade, não fornece saúde, não gera empregos para todos, não fornece saneamento básico entre outros direitos fundamentais. Este mesmo Estado exerce seu direito de restringir a liberdade de forma cautelar sem, contudo, respeitar as exigências legais. No ato de cumprimento desta medida cautelar divulga a imagem do paciente sem qualquer cuidado com as conseqüências.  Assim, como pode viver uma pessoa que já não tem dinheiro, educação, saúde, emprego, que teve sua imagem supliciada, mas que saiu da masmorra que é a cadeia pública e foi inocentada ou mesmo condenada a cumprir uma medida restritiva de direitos?  4.2 – O PAPEL DO ESTADO NO MOMENTO DE CUMPRIMENTO DA MEDIDA É sabido que a CRFB/88 permite a cassação da liberdade de forma cautelar, conforme dispõe o inciso LXI, do artigo 5º. Ainda neste mesmo artigo, mas com previsão no inciso LXII a carta política dispõe que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente comunicados ao juiz competente e à família do preso ou pessoa por ele indicada.  De forma regulamentar o Código de Processo Penal reza em seu artigo 306, §1º, no caso de prisão em flagrante de delito, que a comunicação da prisão deve ser feita em 24 horas ao juiz competente sob pena de ilegalidade da prisão. Destarte, o preso em flagrante de delito deve ter sua prisão submetida à apreciação judicial a fim de ver sua legalidade satisfeita. Tratando-se de prisão temporária ou provisória, no ato de cumprimento da ordem judicial o executor deve entregar ao preso um dos exemplares desta ordem com declaração do dia, hora e lugar da diligência que culminou com a prisão, por força do artigo 286 do CPP. Satisfeitos esses requisitos legais o preso é encaminhado para a cadeia pública onde fica acautelado. A depender da natureza da prisão tem-se situações distintas. No caso de prisão temporária, a lei 7.960/1989 reza que vencido o prazo determinado pelo juiz, independentemente de expedição de alvará de soltura, o preso deve ser colocado em liberdade, sob pena de cometer a autoridade que descumprir este mandamento o crime de abuso de autoridade, por força do disposto no artigo 4º alínea i da lei 4.898/65. No caso de prisão em flagrante de delito a autoridade policial além do fato de comunicar ao juiz competente em 24 horas, deve encerrar a investigação que culminou com esta prisão, em dez dias, por força do disposto no artigo 10 do CPP. Não se pode olvidar de outros prazos como o previsto no artigo 66 da lei 5.010/1966 que trata da justiça federal onde o prazo é de 15 dias podendo ser prorrogado por mais 15 dias e o disposto no artigo 51 da lei 11.343/2006 onde o prazo é de 30 dias. Neste ponto cabe ressaltar que Beccaria já se preocupava com o tempo em que um indivíduo ficaria preso antes de ser julgado, dizendo: ”Um cidadão preso deve ficar na prisão apenas o tempo necessário para a instrução do processo; e os mais antigos detidos tem o direito de ser julgados em primeiro lugar”[41].  Ultrapassadas estas questões processuais, preocupa-se com o momento em que se cumpre a medida. Sabe-se que grande maioria de nossos presos é atendido pela Defensoria Pública, instituição essencial com missão de assegurar a assistência judiciária, tendo suas raízes nos direitos fundamentais dos cidadãos, mormente os princípios da dignidade da pessoa humana e do acesso à justiça, sendo prevista em cláusula imodificável da carta política do Estado. Entretanto, mesmo com essa imparidade e uma notável atuação desta instituição há casos em que o preso somente tem contato com seu defensor no dia de sua audiência, significando que somente terá uma orientação jurídica neste momento. O Estado não possui órgão que auxilie o preso e sua família no momento em que a medida está sendo cumprida. Assim, o Estado restringe a liberdade sem qualquer contraditório, não fornece assistência psicológica ou social a uma pessoa que já estava abandonada e o coloca em um local impróprio para os animais, desrespeitando, assim, todos os direitos inscritos na carta constitucional.  A lei de execuções penais preocupa-se com seus egressos e com os cumpridores das penas no regime aberto, pois se vê a figura do patronato e do conselho da comunidade. Aquele, por força do disposto no artigo 79 da LEP incumbe orientar os condenados à pena restritiva de direitos, fiscalizar o cumprimento das penas de prestação de serviço à comunidade e de limitação de final de semana e colaborar na fiscalização. Este órgão multidisciplinar, tem como incumbência, entre outras, visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes, conforme dispõe o artigo 81, I da LEP. Não bastasse o abandono do preso no momento de cumprimento da medida o Estado também não se preocupa com seu bem estar quando a medida termina. Desta forma, mesmo o preso sendo inocentado ao final do processo, nenhuma assistência lhe é fornecida pelo Estado. Discute-se, simplesmente, se seria possível ou não uma responsabilização civil por parte do Estado. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Desde as últimas décadas discuti-se uma forma de se esvaziar o sistema carcerário, onde somente em extrema necessidade deve o condenado cumprir pena restritiva de liberdade. Embora esta discussão tenha por fundamentos o elevado custo do preso para a sociedade e sua não ressocialização este tema tem muita importância para o preso provisório. Diante do exposto fica claro que o ordenamento jurídico sempre previu a medida cautelar restritiva de liberdade. Esta previsão tem suma importância para o processo sendo, muitas vezes necessárias. O que se deve ter é o cuidado de somente executar as medidas que sejam necessárias, devendo, assim, o magistrado assentar esses motivos no decreto prisional como forma de legitimar a medida, permitindo um maior controle pelo judiciário e um melhor entendimento para a sociedade. Quando da comunicação de uma prisão em flagrante de delito o juiz não deve, tão somente, realizar um controle de legalidade, mas sim deve deixar registrado o motivo que mantém o paciente preso. Defende-se assim que a prisão cautelar pode acontecer quando da prática de crime em que seja prevista uma pena restritiva de liberdade. Assim, durante a fase de inquérito é possível a prisão temporária nos casos previstos na lei de forma taxativa. Também na fase de instrução criminal é possível o cumprimento de prisão provisória, devendo em ambas as hipóteses o magistrado motivar o ato que levou o paciente à prisão. Em relação aos órgãos cumpridores das medidas cautelares restritivas de liberdade deve-se proibir a exposição do paciente. Sabe-se que a imprensa tem um papel de extrema importância para a democracia, dando voz aos que não tem e que vivem oprimidos. Desta forma, esta mesma imprensa não pode publicar sua fotografia, suplicando sua moral pelo simples fato do cumprimento de uma medida cautelar. O Estado deve sim exercer seu direito de restringir a liberdade cautelarmente, mas deve, também ,sempre respeitar a dignidade da pessoa humana. Neste sentido, deve preservar a imagem do paciente impedindo que a sociedade faça um julgamento baseado no conhecimento empírico sem qualquer prova. Ainda em respeito a esta dignidade humana, na motivação da prisão deve constar os motivos que autorizam ou mantém a medida. O preso deve receber por parte do Estado assistência social e jurídica, ficando informado o porquê está cumprindo a medida e a melhor forma de superar esta fase sem muitas seqüelas. Nesta tonalidade, a família deve fazer parte desta orientação eis que sua presença tem suma importância para o paciente. O local onde ficará acautelado o preso deve ser escolhido não dependendo de sua facção criminosa, mas sim sempre próximo ao local onde reside sua família ou, não sendo possível, que o Estado fornece meios para que a visita aconteça. Essas singelas previsões não devem ser entendidas como utopias sociais, mas sim um mínimo necessário para que o Estado exerça seu direito de restringir a liberdade de alguém de maneira cautelar sem que desrespeite a dignidade da pessoa humana.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-85/a-excepcionalidade-da-medida-restritiva-de-liberdade-sob-a-otica-judicial-e-social/
Superou-se O Processo de Franz Kafka? Uma análise do sistema inquisitivo
Expõe fragmentos da obra literária O Processo de Franz Kafka e estabelece comparações com o atual sistema inquisitivo objetivando perceber as semelhanças entre a obra ficcional e a realidade. A análise ficcional possibilita um distanciamento capaz de melhor se examinar nossa própria realidade. Discorre sobre a incompatibilidade do sistema inquisitivo com o Estado Democrático de Direito e o devido processo legal substantivo. Conclui pela ampliação de defesa na fase inquisitiva para a ótima concretização do princípio constitucional do devido processo legal.[1]
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO Como efetiva participação de um Estado Democrático que valoriza a pluralidade de concepções este artigo busca aproximar a genialidade literária do escritor Franz Kafka a alguns eventos atuais visando à melhor compreensão do ambiente que circunda o sistema inquisitivo presente no conjunto processual penal brasileiro. Embora não objetive traçar um estudo literário espera-se que a arte revele as complexidades deste sistema considerado apropriado para fins de investigação criminal. Tal quais as felizes palavras de Paul Klee: “A Arte não imita o visível; ela torna visível o não visível”. (FERRAZ; MALUFE, 2010:20)[2] Distante de conduzir a uma interpretação real, verdadeira, única à obra preferida do escritor tcheco há espaço para dizer que ali declara sua censura ao sistema processual penal do início do século XX (O Processo foi escrito entre 1914 e 1915), cuja base permanece contemporaneamente razão pela qual o sistema inquisitivo – na fase do inquérito policial – apresenta patologias semelhantes às presentes na obra literária kafkiana. A indignação das personagens ficcionais coincide absurdamente com vozes atuais as quais se poderiam imaginar inseridas no cenário de um livro de ficção.[3] Traz-se neste artigo excertos da obra de Franz Kafka objetivando a constatação de que os traços surrealistas e deformados do universo kafkiano são também a realidade do nosso sistema processual penal contemporâneo. 1 ESTADO CONSTITUCIONAL Desenhando o perfil do nosso Estado Constitucional Flavia Piovesan pincela, “desde o seu preâmbulo, a Carta de 1988 projeta a instituição de um Estado democrático ‘destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos […]” (PIOVESAN, 2009: 320) Continua a autora esclarecendo que os dispositivos iniciais da Constituição da República demonstram “a preocupação em assegurar a dignidade e o bem-estar da pessoa humana como um imperativo de justiça social. (PIOVESAN, 2009) Com assombrosa semelhança parece ser o ambiente exordial da obra literária de Franz Kafka que narra um Estado Constitucional pacífico em cuja defesa o personagem reclama obediência: K. vivia em um Estado Constitucional no qual reinava a paz, no qual todas as leis estavam em vigor, de modo que quem eram aqueles que se atreviam a invadir a sua casa? (p. 42)[4] Descrevendo este momento do personagem Josef K., escreveu Luiz Costa Lima: “eis um homem comum que crê no que todos cremos e perseguido por uma fatalidade que não podemos entender senão como motivada pelo intricado da existência.” (LIMA, ?). Aquele fragmento desvela a fragilidade do positivismo no qual prepondera o isolamento entre norma e realidade. (HESSE, 1991:13). Embora superada as concepções das escolas positivistas, conforme alerta Konrad Hesse, seus efeitos “ainda não foram superados”. (1991:13 e 14). Exemplo disto é que “fatalidades” também ocorrem no nosso Estado Constitucional. A expressão fatalidade denota inevitabilidade e será fatalmente provável a violação a direitos individuais fundamentais se se mantiver um Estado Democrático de Direito ficcional. (LIMA, ?). Recente precedente de julgado no Supremo Tribunal Federal revela que a previsão de direitos constitucionais não tem sido suficiente para limitar a ação estatal e garantir o exercício do dever-poder dentro dos traçados legais. Este julgado embora favorável ao investigado demorou longos dez anos para ser decidido na mais alta corte jurisdicional brasileira (precisou chegar lá!). Coincidentemente a violação ocorreu em um quarto de hotel – Josef K. vivia na pensão da senhora Grubach – parte da Ementa do julgado traz que: “[…] busca e apreensão de materiais e equipamentos realizada, sem mandado judicial, em quarto de hotel ainda ocupado – impossibilidade – […]” (grifo nosso). (RHC/90376) Em ritmo quase musical Sánchez Agesta delineia que as normas constitucionais “constituem uma ordem em que repousam a harmonia e a vida do grupo, porque estabelece equilíbrio entre seus elementos” [5] (apud SILVA, 2003:34), contudo não se deve arrefecer na busca dos instrumentos que efetivarão esta ordem harmônica porque “não basta ter uma nova Constituição. É fundamental saber com que olhos ela é lida”. (SUANNES, 2004:286). 1.1 Desequilíbrio entre População e Governo no sistema inquisitivo Retomando as palavras de Sánchez Agesta a harmonia de um Estado constitucional depende do equilíbrio entre os elementos que constituem o próprio Estado. Entretanto, a característica da fase inquisitorial é justamente o desequilíbrio entre dever-poder do Estado e os direitos fundamentais da população (SUANNES, 2004:150). Focalizando a partir de agora o sistema inquisitivo presente no conjunto processual penal não se desconsidera que a manutenção do desequilíbrio inicial pode não ser superado na segunda fase da persecução penal. Franz Kafka critica os obstáculos à defesa quando ocorre um convencimento antecipado de culpa nos apontamentos da justiça àquela época: a acusação mais insignificante não fica anulada sem mais nem menos, senão que a justiça, uma vez que formulou a acusação, está firmemente convencida da culpabilidade do acusado e que dificilmente se pode alterar tal convicção. (p. 178) Notem-se as coincidências contemporâneas. Em sua origem, conforme expõe Adauto Suannes, o inquérito policial recebeu severas críticas, motivo pelo qual o Ministro da Justiça, à época, com o escopo de se certificar das razões pela recusa à permanência deste procedimento nomeou uma comissão para estudá-lo a qual concluiu que, “os inquéritos [são] verdadeiras devassas policiais, sem forma regular de juízo, nem garantias suficientes para o direito das partes, ou para a causa da justiça, nem trouxeram as vantagens que dele parecia esperar a reforma de 1871, que, imprudentemente, os admitiu, nem sanaram os inconvenientes que antes embaraçavam o descobrimento da verdade na formação do sumário. O que fizeram foi facilitar o abuso de autoridade e dificultar ainda mais a defesa do indiciado”. (SUANNES, 2004:178). (grifo nosso) Apesar do decurso de um razoável tempo desde então – são quatro gerações[6] até aqui – o inquérito policial persiste. Explicando a ambiência que cerca este procedimento investigatório o professor José Geraldo da Silva escreve: “Embora deva respeitar a integridade física e moral do indiciado, este é apenas objeto de investigação e não sujeito de direitos.” (grifo nosso) (2002:23). E ensina ainda que no inquérito policial “não haverá defesa” (2002:23) – sem defesa dificilmente se poderá alterar a convicção da justiça. Contudo, este mesmo autor não despreza o valor (entenda-se poder) do inquérito policial ao concluir que as provas obtidas na instrução criminal as quais podem culminar na condenação são “quase as mesmas produzidas no transcurso do inquérito policial”. (2002:83). Corroborando este fato que não deixa de causar preocupação Adauto Suannes com franqueza afirma não ser raro condenações “com base em elementos colhidos no inquérito policial, cuja ratificação em Juízo é, na maior parte das vezes, meramente rotineira.” (2004:141)[7] Não por outra razão Romeu de Almeida Salles Júnior classifica o procedimento inquisitivo “como integrante de um conjunto probatório” (apud SILVA, 2002:82). Comumente ocorrem indiciamentos na primeira folha de inauguração ex officio do procedimento investigatório – conhecida como Portaria[8]. Em escorreita análise não se ignora que o apontamento a priori do suspeito gera antecipadamente um convencimento de culpa, pois já produz efeitos: o indiciamento.[9][10] É impreterível que se ressalte o risco para a solidificação do Estado Democrático de Direito a permanência deste sistema tal qual vivenciamos hoje considerando que este desequilíbrio inicial apesar de encontrar razões para sua existência[11][12] deixa um vácuo – verdadeiro buraco negro[13] – facilitador de arbitrariedades, conforme este relato, “de acordo com policiais da delegacia, o delegado decide-se (sic) ou não a abrir o inquérito policial que levará à condenação do sujeito ilícito ou à investigação quanto à origem da droga. A decisão do delegado baseia-se em vários aspectos, desde a posição do indivíduo na pirâmide social até a disposição ou não de dar continuidade a um processo de investigação. O delegado, ao conversar com o detido, decide se ele será incluso no art. 16 (consumo) ou no art. 12 (tráfico) do Código Penal Brasileiro (na verdade trata-se da antiga lei 6.368∕76). Geralmente, conforme os policiais, essa decisão baseia-se, fundamentalmente, na posição socioeconômica do indivíduo.” (OLIVEIRA, 2008:238) Certamente a discricionariedade outorgada às autoridades policiais não deve se elastecer ao nível de violar os valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Neste diapasão escreveu Francesco Carnelutti: “se as regras não são justas, também os resultados […] do processo correm risco de não serem justos”. (2010:11) 1.2 Neoconstitucionalismo Conforme mencionado a simples transposição de direitos e garantias em uma folha de papel[14] não assegura a vivência prática, a confiança de que a assecuração do valor maior da democracia [15] – a liberdade – é o caminho mais seguro a percorrer. É necessário – muito além da positivação – que haja “vontade de Constituição”. (HESSE, 1991:19). Explicando como tornar a Constituição uma realidade prática, vigente, Konrad Hesse traz que “a situação por ela regulada [deve] pretender ser concretizada na realidade” (1991:15), para tanto, “há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas.” (1991:15) (grifo nosso) Indubitavelmente, a evolução dos valores democráticos permite afirmar que as investigações criminais não são um espaço para arbitrariedades no qual se pactua com o retrocesso à época em que os fins justificam os meios, muito menos ainda estabelecer um processocentrismo no qual todas as potências estatais convergem-se ao aproveitamento do procedimento. Esta é uma ideia que certamente encontra sua base de apoio no movimento law and order nascido no direito norte-americano e defendido por alguns como sistema eficiente de combate à criminalidade o qual porém, não é adotado no Brasil. Por outro lado, Francesco Carrara com luminosidade revela o estádio do sistema democrático brasileiro quando afirma, “que a sociedade também tem direto interesse na defesa do acusado, por necessitar não de uma pena que recaia sobre qualquer cabeça, mas de uma punição do verdadeiro culpado. Assim, a defesa não é apenas de ordem pública secundária, mas também de ordem pública primária.” (CARRARA apud SUANNES, 2004: 211). É exatamente o que se pretende no degrau do pós-positivismo, ou seja, “ir além da legalidade estrita” (BARROSO, ?); para isto o professor Luís Roberto Barroso ensina que “a interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria da justiça” (BARROSO, ?). No plano das investigações criminais a justiça substancial deverá refletir a preocupação máxima em atingir o verdadeiro autor de um fato verdadeiramente delituoso assim como a colheita de provas válidas constitucionalmente evitando a falácia de que as garantias individuais impedem e dificultam a aplicação da justiça. Não se deve coadunar com discursos que aliviam as consciências daqueles incumbidos de proteger os bens jurídicos mais relevantes da sociedade – pelo princípio da subsidiariedade do direito penal – tal qual se ouviu na posse do desembargador Ítalo Galli, “alguém que condena outrem com base na meramente presumida responsabilidade do condenado deve […] ser considerado irresponsável pelo mal indevido que conscientemente venha a causar, pois tal mal sempre deverá ser considerado devido, ainda que não se saiba a que título.” (SUANNES, 2004:108 e 109) (grifo nosso)    Arrisca-se afirmar que no processo penal ‘errar não é humano’, mas é uma conclusão plausível quando se considera que, “a respeito do padrão de violência policial, no que tange ao perfil das vítimas de violação, percebe-se que, se no período do regime militar ditatorial as vítimas em geral eram integrantes da classe média (estudantes, professores universitários, advogados, economistas), no período da democratização as vítimas de violência policial são pessoas pobres, sem qualquer liderança destacada (incluindo pedreiros, ajudantes de máquina, mecânicos). […] pessoas com maior grau de vulnerabilidade, o que permite que as violações sejam acobertadas pela máscara da ‘indivisibilidade social’. Observa-se que a democratização no Brasil foi incapaz de romper com as práticas autoritárias do regime militar.” (PIOVESAN, 2009:335) (grifo nosso)   Há razão em se afirmar que a República Federativa do Brasil encaminha-se ao encontro da ‘efetiva vigência do regime democrático’ cuja vivência repercutirá em uma nova forma de fazer o processo penal. (O’DONNELL apud PIOVESAN, 2009:43). A sustentação deste novo regime não é outra senão a Constituição da República de 1988 a qual risca o traço sistêmico necessário à convivência social pacífica e justa. 2 DEVIDO PROCESSO LEGAL Tendo em vista que não se discorda quanto à existência de uma ordem superior irradiada pela Constituição da República é importante buscar suas evocações quanto ao assunto abordado neste artigo – em especial a cláusula do devido processo legal. Esclarecendo a ideia de ordem Norberto Bobbio escreveu que: “um ordenamento jurídico constitui um sistema [quando] as normas que o compõem estão num relacionamento de coerência entre si, e [estabelece em que] condições é possível essa relação”. (BOBBIO apud TAVARES, 2008:102) O sistema da persecução criminal é tão realisticamente exposto por Franz Kafka que não se ousará interromper sua didática com outras interferências: ninguém pode defender-se contra esta justiça; é preciso confessar tudo […] apenas depois ser-lhe-á dada a possibilidade de escapar-se, apenas depois. (p. 140) Ironicamente o literato faz resplandecer o funcionamento do nosso contemporâneo processo penal – dividido em duas fases – em um primeiro momento sem direitos e sem defesa; depois de denunciado (com todas as externalidades negativas que provoca) serão abertas as portas da defesa ampla. Não se despreza que o processo penal não surgiu com o fim de estabelecer garantias aos acusados, mas como uma forma de o Estado restringir a liberdade dos indivíduos. Historicamente Adauto Suannes retoma a origem do processo penal e a semelhança com a inspiração kafkiana impressiona; no princípio do processo penal “jurar e não conseguir provar a inocência simplesmente piorava a situação”. (SUANNES, 2004:147). O personagem Joseph K. foi alertado quanto ao seu comportamento perante às investigações processuais: “não se alvoroce tanto com protestos de inocência porque isso causa má impressão”. (p. 49) Atualmente deve-se provocar um pouco de alvoroço na interpretação da cláusula do devido processo legal objetivando compreender claramente seu conceito e evitar que a “zona cinza” ofusque os limites torneantes desse elevado princípio constitucional processual. Pede-se vênia para trasladar as palavras de Gilles Deleuze que primorosamente explicou que mal-entendidos ocorrem na “zona cinza [que todos os conceitos comportam] e de indiscernibilidade, na qual os lutadores se confundem em um instante sobre o solo, e o olho cansado do pensador toma um pelo outro […] o fascista por um criador de existência e de liberdade’.” (PELBART, 2010:14) Conforme já avençado no texto o nosso Estado é o Democrático de Direito, portanto, o devido processo legal deve ser entendido como cláusula de garantia da liberdade individual em face do poder estatal. Manifestando a mudança das bases em que se assenta atualmente o devido processo legal que compõe o rol dos direitos fundamentais Adauto Suannes escreveu que “o due processo of law […] tem como supedâneo certos princípios que dizem, acima de tudo, com a dignidade da pessoa humana, e não com a segurança do Estado”. (2004:279) Reforçando este entendimento David J. Bodenhamer assevera que, “no direito penal de uma sociedade livre, a preocupação por um devido processo legal é crucial. Sem isso, a liberdade individual torna-se especialmente vulnerável pelo poder estatal arbitrário.” (apud SUANNES, 2004:236) A Constituição da República assegurou expressamente como instrumento democrático a necessidade do devido processo legal para privar alguém de sua liberdade ou de seus bens. Uma nova conceituação desta cláusula aborda a sua concepção substancial[16] pela qual se acoplam outros direitos e princípios que viabilizem a ótima aplicação do devido processo legal; assim a ampla defesa e o contraditório seriam exemplos de concretização da garantia constitucional, mas não seriam os únicos. Explicando a mudança de visão que sofreu a cláusula do devido processo legal processualistas escreveram que, “passou-se em épocas mais recentes, ao enfoque das garantias do “devido processo legal” como sendo qualidade do próprio processo, objetivamente considerado, e fator legitimante do exercício da função jurisdicional […] são, antes de mais nada, características de um processo justo e legal, conduzido à observância ao devido processo, não só em benefício das partes, mas como garantia do correto exercício da função jurisdicional. Isso representa um direito de todo o corpo social, interessa ao próprio processo para além das expectativas das partes e é condição inafastável para uma resposta jurisdicional imparcial, legal e justa.” (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2010:22) Assim, a garantia ampla do devido processo legal inscrito no rol dos direitos e garantias fundamentais – no inciso LIV do artigo 5º da Constituição da República – é uma cláusula aberta que deverá, a cada novo avanço da democracia, recepcionar valores ínsitos a este regime os quais repercutirão em um novo processo penal. Neste ritmo escreveu o advogado criminalista Robson Augusto Celli ser necessário, “uma releitura do inquérito policial, a partir de uma visão garantista, se faz necessário, pois converge com os postulados de um moderno processo penal em um estado de direito, que evoluiu das mais rudimentares formas e que deve acompanhar o progresso dos novos pensamentos, constitucionalmente postos desde 1988.” (CELLI, 2009) Sem dúvida, Francesco Carnelutti concordou com Franz Kafka que no passado escreveu: Nosso sistema de justiça não é muito conhecido pela população. (p. 102). Chama a atenção o teórico italiano da necessidade de “ser fornecido ao cidadão [conhecimento genérico de direito] para que possa conduzir-se na vida” (CARNELUTTI, 2006:11); lamentavelmente, ele mesmo reconheceu que há sérios defeitos quanto à educação jurídica à população. (2006:12) O exercício da liberdade pressupõe a informação, motivo pelo qual muito mais se deverá conhecer o processo penal tendo em vista que os “atos do Processo Penal [deve ser entendido] como um ato importantíssimo e de extrema prioridade social”. (CARNELUTTI, 2010:56) É notório que o direito não é estático, é um evoluir. Reconhecia Ihering que “o direito não é uma pura teoria, mas uma força viva”. (1999:1) As deformidades do atual procedimento investigativo são manifestas, motivo pelo qual se afirma que as atuais garantias do contraditório e da ampla defesa não têm sido suficientes a concretizar a ótima aplicação do princípio do devido processo legal porquanto é preciso evoluir. 2.1 Contraditório e Ampla Defesa Reconhecendo que o processo penal é (deve ser) um instrumento de justiça que revela em seu proceder a qualidade do regime democrático adentra-se ao exame de enunciados que obscurecem o avanço da liberdade por possuírem conteúdo de arbitrariedade exacerbada.    Tal exame não se restringe a imputar defeitos na legislação e no modo de pensar dos homens. Afirma-se que há defeito, pois tal qual o respirar enche de vida o corpo humano Flávia Piovesan energiza a vida da democracia quando, definitivamente, afirma: “não há mais como cogitar da liberdade divorciada da justiça social”. (apud SUANNES, 2004:85) Não é novidade a urgência de se inaugurar um novo modelo de processo penal através da reforma do código processual, entretanto, ideias que não se compatibilizam com o novo regime democrático ainda se embrenham principalmente nas instituições policiais que – neste específico ponto – têm impedido o avançar da democracia. É o que se conclui das afirmações do doutor Petrônio Calmon Filho, um dos integrantes da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal o qual escreveu: “o Presidente da República, atendendo ao lobby das lideranças policiais resolveu reter um dos projetos de lei elaborados pela Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, presidida pela Professora Ada Pellegrini Grinover“, exatamente o que tratava da “investigação criminal, que elimina do CPP os ranços da ditadura do ‘estado novo’, quando foi editado o código.” […] não levarão adiante o projeto que trata da investigação criminal, permitindo, assim, que continuem em vigor as regras atuais que estabelecem um inquérito burocrático, sem participação efetiva da vítima e com poderes absolutos para a polícia.” […] O projeto sobre a investigação criminal fica engavetado. Seu encaminhamento somente será possível se houver pressão de outros setores da sociedade. Do contrário prevalecerá o lobby único que surgiu até o momento, operado por setores reacionários, que pretendem a continuidade do sistema de investigação criminal hoje reinante em nosso pais, como se fosse muito eficiente.” (MOREIRA, ?) Como se afirmou este artigo não se restringe a apenas criticar os procedimentos arbitrários do processo penal – destacadamente em sua fase inquisitiva – mas bradar pela defesa do regime que se escolheu como o mais apropriado a realizar a finalidade primordial do homem: a felicidade. Sem justiça não há felicidade. O historiador Zechariah Chafee Junior concluiu que “a liberdade diante dos caprichos oficiais é essencial a todos os outros direitos humanos”. (apud SUANNES, 2004:118) Atualmente não há qualquer possibilidade de se exigir o cumprimento de uma diligência na fase inquisitiva (policial) para a defesa do investigado. É possível supor que semelhantemente ao personagem kafkiano o investigado ouvirá: Quão difícil se torna para você colocar-se em sua verdadeira situação! Não parece senão que todos os seus propósitos resumem-se em irritar-nos inutilmente. (p. 43)  Por outro lado, o órgão acusador tem poderes de requisição [17] e a qualquer tempo ordena ao órgão investigador (instituições policiais) a realização de diligências voltadas à colheita de provas que incriminem o investigado, por isto há razão em Francesco Carnelutti quando afirmou que a não intervenção do defensor na fase preparatória representa uma “desigualdade […] grave e perigosa”. (2010:82) Com as atuais regras o investigado debate-se inutilmente desejando provar sua inocência. Kafka destacou esta dificuldade e comparou o personagem – que tentava inutilmente provar que não cometera crime algum – às moscas que se arrancam as patinhas em seus esforços para desprender-se do grude. (p. 253) 2.2 Ampla Defesa em sentido estrito Retomando o que se afirmou algumas regras processuais simbolizam o excesso de discricionariedade nas investigações criminais as quais, a nosso entender, não se compatibilizam com o Estado Democrático que se pretende ver realizado. Concorda-se com Francesco Carnelutti o qual escreveu que “o desrespeito ao acusado, senão o mais grave, pelo menos, é o mais evidente dos sintomas da [civilização] em crise.” (2010:69) A forma mais prática, contemporaneamente, de instruir a população sobre o processo penal dá-se através dos técnicos do processo, com destaque aos defensores que são os consultores dos investigados, portanto, se não há intervenção dos advogados já na fase investigativa o processo não será justo. Exemplo atual de regra arbitrária é a de não permitir que o investigado requeira diligências que tenham por escopo a prova de sua inocência. Abrindo bem os olhos para ver e os ouvidos para escutar as normas jurídicas (CARNELUTTI, 2010:61), não se sustenta a alegação de que a intervenção do advogado na fase inicial impediria os órgãos estatais de cumprir sua missão de colheita de provas da materialidade e autoria; ora, os investigados abastados são acompanhados por defensores na fase investigativa, nem por isto o procedimento investigativo está fadado ao fracasso. Portanto, a concretização do princípio da igualdade impõe ao Estado prestar assistência jurídica desde a fase investigativa àqueles que não dispõem de recursos. Claramente é o que dispõe a norma garantidora do artigo 5º, inciso LXIII: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. Trazendo explicação sobre este dispositivo os processualistas ensinam que ao preso (inclui o autuado em flagrante) “mesmo fora e antes do interrogatório, são asseguradas as mencionadas garantias”. (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2010:75) Sobre o mesmo tópico continuaram: “a infringência à norma constitucional com conteúdo de garantia acarreta, como sanção, a nulidade absoluta”. (2010:73) A Constituição da República não deixa dúvidas acerca da obrigação de o Estado prestar “orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados” [18] através da Defensoria Pública. Bastaria um mínimo de procedimento (um passo atrás do outro) para que tanto os órgãos investigativos quanto a defesa realizassem suas funções de forma eficiente; primeiro colher-se-ia todos os indícios de autoria e materialidade, somente depois, por despacho fundamentado avançaria o passo para o indiciamento e interrogatório policial – no qual a presença do advogado dificultaria o abuso de poder: indiciamentos sem justa causa, meios ilegais de colheita de provas, depoimentos transportados ao termo de forma (propositadamente) dúbia e até mesmo diversa da que foi relatada. Apenas estes possíveis exemplos demonstram a fragilidade do atual sistema inquisitivo. Uma prática abusiva terá consequências gravíssimas na segunda fase da persecução penal, pois certamente ocasionará, no mínimo, a denúncia pelo presentante do Ministério Público (os atos administrativos gozam de presunção de veracidade) e as autoridades investigativas sabem disso. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelas razões até aqui expostas não há dúvida de que o processo penal precisa evoluir ao passo do regime democrático. Ihering explicando como se dá o progresso do direito escreveu que é necessário um “rejuvenescimento ou renovação […], na substituição das regras de direito existentes por outras regras novas, progresso do direito.” (1999:4) Uma demonstração desta evolução foi a aprovação do Enunciado de Súmula Vinculante 14 que apagou um passado de absoluto sigilo cuja crítica não passou despercebida por Kafka que escreveu: os expedientes da justiça e, especialmente, o escrito da acusação, eram inacessíveis para o acusado e seu defensor […] a lei não admitia nenhuma defesa. (p. 147) Este modo novo de fazer o procedimento está mais consentâneo com o regime democrático em que “a liberdade vale mais que a vida como o sabe quem por ela rejeita a vida”. (CARNELUTTI, 2010:12) De acordo com todo o exposto é possível pensar-se numa ampla defesa em sentido estrito a qual se daria na primeira fase da persecução penal com garantias que se equilibram com o poder investigatório do Estado, tais como: indiciamento fundamentado pela autoridade policial; presença de advogado (privado ou público) no interrogatório e na prisão em flagrante; possibilidade de a defesa requerer investigações. Acredita-se que para a realização ótima da ampla defesa são imprescindíveis outros instrumentos que equilibrem o prato da discricionariedade investigativa.As colocações exemplificativas feitas neste além de garantistas não abalam o princípio da celeridade processual podendo ter aplicação imediata como garante o artigo 5º, § 1º da Constituição da República. [19]    Ao contrapor às normas jurídicas excertos da obra literária de Franz Kafka este artigo teve como objetivo compreender-se mais claramente a atual realidade assim como escreveu o professor Arnaldo Moraes Godoy “a Literatura traduz o que a sociedade pensa sobre o Direito. A literatura de ficção fornece subsídios para compreensão da Justiça e de seus operadores.” (GODOY, ?) Certamente ao se realizar um processo mais justo a atual sociedade irá punir melhor (FOUCAULT, 2009:79) e quem sabe iluminará melhor o caminho que se percorre para alcançar a justiça – tão estimada quanto escassa nesta sociedade desigual. Quem está no escuro pode crer que enxerga porque “a compreensão correta de algo e a apreciação falsa não são coisas que se excluem inteiramente.” (p. 244)
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-85/superou-se-o-processo-de-franz-kafka-uma-analise-do-sistema-inquisitivo/
A imprescindibilidade dos elementos probatórios no processo penal
O presente artigo trata da grande importância dos elementos probatórios para a efetivação do processo penal. Para tanto, abordar-se-á sobre a finalidade da prova, princípios aplicáveis à matéria, ônus probatório, métodos de valoração da prova, bem como as principais inovações trazidas a lume pela Lei n. 11.690/08, corpo normativo que se ocupou, em grande parte, da temática da prova penal.  Destarte, analisa-se como tais instrumentos possibilitam a resolução das lides penais e legitimam os postulados processuais.[1]
Direito Processual Penal
1- INTRODUÇÃO Dentre os ramos do direito que buscam dar operabilidade às regras materiais insculpidas na legislação pátria, destacam-se pela sua maior aplicação o Direito Processual Civil e o Direito Processual Penal. No primeiro, busca-se resolver todas lides civis que não sejam abarcadas por lei processual específica, e, mesmo nos casos em que há norma própria o diploma processual civil atuará subsidiariamente, visando suprir possíveis lacunas ou omissões legais. Por seu turno, o Direito Processual Penal materializa as lides de natureza penal, também sendo aplicado subsidiariamente a outras legislações, como, por exemplo, ao Código Eleitoral, no que toca ao procedimento nos casos de crimes eleitorais. Entretanto, há uma característica marcante que estabelece diferença substancial entre estes ramos do direito: enquanto no Processo Civil a verdade formal, ou seja, a verdade “simplesmente” comprovada nos autos basta para possibilitar a resolução das lides, no Processo Penal busca-se, ao menos teoricamente, não somente as ocorrências consignadas no processo, mas sim a verdade real, ou seja, tenta-se aproximar o quão possível dos fatos como estes realmente ocorreram. 2- DA FINALIDADE DA PROVA O juiz ao exercer seu ofício nas lides penais tem nas provas seu principal instrumento para formação de convicção. Assim, buscam elas possibilitar que o julgador ao se defrontar com o caso concreto possa formar um juízo de convencimento acerca dos fatos constantes nos autos, garantindo-se, portanto, maior segurança ao ser prolatada decisão em determinada lide. Desta forma, não é equivocado afirmar que as provas, entendidas como os instrumentos que possibilitam apurar a ocorrência de determinados fatos, serão os meios pelo quais o julgador se lançará na busca da verdade real. Nesta ótica, constituem-se como objeto de prova, conforme pontua Manzini apud Tourinho (2009), “[…] todos os fatos, principais ou secundários, que reclamem uma apreciação judicial e exijam uma comprovação”. (p. 523) 3- PRINCÍPIOS APLICÁVEIS À MATÉRIA Tem-se por princípio, como bem definiu Silva (1982) apud Lima (2007): “Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhe o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência… exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe refere a tônica e lhe dá sentido humano”.(p.17) Aliados aos demais que compõe a seara processual penal, os princípios específicos do campo probatório são aqueles que nortearão e servirão como pano de fundo à implementação da norma e sua interpretação. São eles: a) Princípio da Auto-Responsabilidade das Partes: reza que cada parte, enquanto detentora do ônus probatório deverá suportar as consequências de sua inércia, erros ou negligência durante a produção de provas. b) Princípio da Comunhão da Prova: em matéria processual penal é cediço que cabe às partes o ônus probatório. Realizada a produção de prova, esta não deve ser entendida como de uso exclusivo daquele que a levou aos autos, pois, depois de produzida, existirá sua comunhão. c) Princípio da Audiência Contraditória: deflui deste principio a premissa de que a prova válida deve ser produzida sob o crivo do contraditório, não sendo permitido assim que se haja com “surpresa” na produção probatória. d) Princípio da Oralidade: o procedimento para colheita de determinadas provas devem observar a oralidade, dada a especificidade do instrumento probatório. Assim, prova testemunhal deve ser colhida oralmente, não se substituindo por meras declarações escritas que não possuem o mesmo valor. e) Princípio da Concentração: em homenagem à celeridade processual, deve o juiz, enquanto ente que preside a instrução, buscar a concentração das provas em única audiência. f) Princípio da Publicidade: tendo em vista que a atividade judicial, salvo as exceções previstas, deve ser pública, a produção de provas também deve o ser. Reafirme-se que o segredo de justiça se constitui como excepcionalidade, devendo militar norma expressa para sua validade. g) Princípio do Livre Convencimento Motivado: aponta tal princípio que, ao decidir a causa posta à sua apreciação, o juiz não está vinculado a valores fixados em lei, devendo para tanto motivar sua decisão por meio de valoração probatória. 4- ÔNUS DA PROVA Merece destaque ao tratar-se de matéria probatória a questão da distribuição do ônus da prova e suas implicações. Ônus da prova nada mais é que o encargo do qual se incumbe a parte para demonstrar ao Estado-Juiz de que determinado fato suscitado nos autos verdadeiramente ocorreu, ou, como pontua Filho (2009), tal ônus é “Um imperativo que a lei estabelece em função do próprio interesse daquele a quem é imposto.” (p.534). Tal ideia é abarcada pelo Código de Processo Penal em seu art. 156, que determina ser de quem levanta a alegação o encargo de prová-la. Entretanto, antes de entender-se como ônus, deve a prova ser encarada como direito, pois, para que o processo se desenvolva em plena observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa deve se garantir às partes o exercício a tal direito em todas suas fases, desde a obtenção até a valoração probatória, razão pela qual a doutrina hodierna propala a existência do “direito fundamental à prova”, o qual garantirá a instrumentalização de um processo justo e balizado à luz das premissas constitucionais. Nesta perspectiva, o próprio Código de Processo Penal põe à disposição das partes instrumentos recursais diversos para reforma de eventuais decisões que, além de outras circunstâncias, contrariem os instrumentos probatórios consignados nos autos, como pontua, por exemplo, o art. 593, III, d, CPP, in verbis: “Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: […] III – das decisões do Tribunal do Júri, quando: […] d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.” Deste modo, torna-se imperioso que as partes possam produzir, indicar, carrear, enfim, trazer aos autos todo e qualquer instrumento de prova permitido em direito, visando, além de dar veracidade a fatos, comprovar e dar segurança ao juiz ao decidir a lide. Inegável é que no desenrolar do processo o enfoque central será a busca da verdade real. Entretanto, apesar do julgador lançar-se para o alcance da “verdade verdadeira”, talvez seja um sofisma acreditar que tal procura permita ao Estado-Juiz utilizar-se de quaisquer meios, ferindo assim os postulados constitucionais. Destarte, a verdade real será perseguida no processo e lá terá de ser consubstanciada sob a égide de seus postulados e, principalmente, em observância às garantias constitucionais fundamentais, pois, “o que não está nos autos não está no mundo”. Nesta ótica, a lei 11.690/08 trouxe interessantes inovações quanto à persecução e obtenção de instrumentos probatórios. Em especial, o art. 156 de nosso diploma processual penal recebeu importante acréscimo, permitindo ao juiz que mesmo antes do início de eventual ação penal ordene de ofício a produção antecipada de provas. Tal questão merece análise cuidadosa, pois, caso o intérprete da norma se equivoque, poder-se-ia configurar um desequilíbrio entre as “forças do processo”, passando o juiz de um ente imparcial a uma literal “parte”. Nesse sentido, é a lição de Oliveira (2004). Buscando evitar eventuais irregularidades, a própria norma supracitada elenca em sua redação dois requisitos para que seja possível a produção antecipada de provas: relevância (fumus boni iuris) e urgência (periculum in mora). O primeiro se mostra pela importância de determinada prova para resolução de eventual causa, enquanto a urgência se materializa no risco de perecimento da prova com o transcorrer do tempo. Mendonça (2008) acrescenta a tais requisitos a proporcionalidade, que se perfaz nos aspectos da necessidade (utilização da medida menos gravosa), adequação (o meio deve ser apto a alcançar o fim desejado) e da proporcionalidade em sentido estrito (os fatores positivos devem superar os negativos na adoção de determinada medida), garantindo assim a imparcialidade do juiz durante a produção probatória. Logo, posto que o julgador seja o principal interessado na formação do conjunto probatório de determinada causa, não pode este, sob o argumento de propiciar o alcance da verdade real, garantindo eventualmente a formação segura de sua convicção, ignorar os princípios que norteiam a lógica constitucional e processual vigente. 5- VALORAÇÃO DA PROVA Importante momento no desenrolar da lide é a fase de instrução processual. Instruir é provar, comprovar, laurear com a verdade. Assim, a fase instrutória regulada nos arts. 394 e seguintes do CPP se destina a  recolher os instrumentos probatórios que possibilitarão ao Estado-Juiz decidir a lide. Voltado, pois, à aplicação do direito ao caso concreto, promoverá o julgador a valoração dos instrumentos probatórios. Tal apreciação, durante a história da humanidade, se regeu por diversos sistemas até alcançarmos o atualmente adotado pelo ordenamento jurídico vigente. Num primeiro momento haviam os ordálios, em que se submetia os acusados a determinadas provas, como, por exemplo, passar os pés descalços sob um ferro em brasa para aferir sua responsabilidade, acreditando-se haver interferência divina  no resultado alcançado. Assim, o juiz atuava como mero expectador da vontade divina. Abolido tal sistema pelo III Concílio de Latrão, teria aí surgido novo sistema valorativo, qual seja, o da íntima convicção ou da prova livre. Neste, o julgador não se obriga a determinar as razões que o levaram a valorar determinada prova, decidindo conforme sua convicção íntima, sem qualquer necessidade de fundamentação. Apesar de sua superação, cabe ressaltar que tal sistema subsiste em nosso direito nos julgamentos do Tribunal do Júri, pois aos jurados é livre decidir conforme suas próprias convicções. Ultrapassado o sistema da íntima convicção, aparece o das provas legais. Aqui o julgador vê-se estritamente vinculado às provas constantes nos autos, estando submetido, ainda, a determinadas escalas de valores estabelecidas pela lei, em que, em determinado caso, uma prova assumiria maior importância face às outras. É nesta fase, por exemplo, que se forma a ideia de que a confissão do acusado teria maior relevância que as demais provas. Opondo-se ao sistema das provas legais, nasce o sistema da livre convicção ou persuasão racional. Prima este pela valoração não vinculada da prova, em que o Juiz poderá decidir com inteira liberdade, desde que fundamente. Tal sistema é expressamente adotado em nosso ordenamento, conforme dispõe a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal: “Nunca é demais, porém, advertir que livre convencimento não quer dizer puro capricho de opinião ou mero arbítrio na apreciação das provas. O juiz está livre de preconceitos legais na aferição das provas, mas não pode abstrair-se ou alhear-se ao seu conteúdo. Não estará ele dispensado de motivar a sentença. E precisamente nisto reside a suficiente garantia do direito das partes e do interesse público”. Por conseguinte, resta por evidente que a adoção do sistema da persuasão racional em nosso direito configura-se como garantia social, e em especial das partes, da realização de uma satisfatória prestação jurisdicional, pois, apesar de possuir livre iniciativa para valorar sua convicção conforme os diversos instrumentos probatórios dos autos, caso, ainda assim, aja o juiz em inobservância à determinada questão, a anterior motivação realizada à época da prolação de eventual sentença garante às partes a possibilidade de se questionar pelas vias recursais a matéria sob a qual incidiu a decisão. Criou-se, pois, implicitamente, uma necessidade de maior atenção por parte do julgador que poderá ter suas decisões reformadas em oportuno recurso, devendo assim exercer seu ofício com maior zelo. 6- NULIDADES NA SEARA PROBATÓRIA As nulidades processuais, enquanto claras sanções impostas pelo Estado-Juiz à parte que inobservou determinada regra legal na pratica de ato processual, gerando eventual prejuízo à parte adversa, são questões de inegável relevância ao abordar-se o campo probatório, visto que, eventual reconhecimento daquelas certamente pode vir a atingir diretamente o conjunto probatório dos autos. Nesta ótica, o julgador ao ser provocado ou verificar de ofício a possível existência de nulidades nos autos deve observar determinadas regras que compõe a matéria para que se verifique a real necessidade de reconhecer tal ato. Nesta ordem de ideias, conforme lição da doutrina, caso se trate de nulidade absoluta (questão de ordem pública) deve o juiz reconhecê-la de ofício a qualquer tempo ou por arguição das partes, possuindo o pronunciamento jurisdicional efeitos retroativos. Sendo relativa (matéria de interesse das partes), deve o prejudicado levantá-la em tempo hábil, sob pena de preclusão, exigindo para seu reconhecimento a prova de efetivo prejuízo. Destarte, buscou o legislador ao tratar da matéria em discussão restringi-la a casos em que notório prejuízo requeira seu reconhecimento, buscando assim dar agilidade ao processo e impedir arguições protelatórias e desnecessárias das partes. Nesta perspectiva, verifica-se que as nulidades, além de poder afetar diretamente os instrumentos probatórios, de maneira indireta poderão se tornar, por exemplo, um instrumento que reforce (podendo, na verdade até mesmo superá-las, dada sua importância) eventuais razões recursais da parte que esteja suportando seus efeitos. Assim, caso haja nulidade absoluta não reconhecida pelo juiz, em oportuno recurso tal questão poderá, em preliminares, dar força às razões de inconformismo do recorrente. Ora, visto o peso das referidas, caso ocorra seu reconhecimento pelo juízo ad quem sequer adentrar-se-á no mérito, constituindo, assim, o fundamento basilar de provimento do recurso interposto. Destarte, além de sua aplicabilidade nos demais campos processuais, possuem as nulidades, no que tange à matéria de prova, clara importância, pois visam garantir às partes a observância do devido procedimento estabelecido em lei, em homenagem a princípios como o devido processo legal, o que acaba por assegurar aos litigantes que todo o rito possa efetuar-se de maneira correta, desde a colheita das provas até a sua valoração. 7- PRINCIPAIS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI 11.690/08 Recente reforma de nosso Código de Processo Penal modificou diversas questões ali dispostas. Uma delas, a dita Teoria Geral da Prova, recebeu importantes inovações pela lei 11.690/08. Dentre estas, passamos à discussão das principais mudanças. Primeiramente, interessante tratamento recebeu o art. 155 do CPP, que em sua nova redação proíbe ao julgador que fundamente sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares não renováveis e as antecipadas. Tal posicionamento, qual seja, a impossibilidade de fundamentação apenas em elementos do inquérito policial, já era difundido pela jurisprudência e pela doutrina. Isto não tira a importância da referida reforma legal, pois agora a própria lei proíbe tal conduta, em homenagem aos princípios do contraditório e da ampla defesa, além dos específicos à seara probatória já delineados anteriormente. Outra inovação legislativa de destaque se encontra no art. 157 do CPP, que, recebendo integral reforma, determina como inadmissíveis as provas ilícitas, assim como as obtidas em violação à disposição constitucional ou legal. Também abordou-se a questão da proibição das provas ilícitas por derivação na nova redação legal. Mas uma vez, cuidou a reforma em positivar questão já amplamente tratada pela jurisprudência e pela doutrina, principalmente na teoria da Fruits of the posoinous tree, trazida do direito norte-americano, que, em linhas gerais, proíbe a utilização de prova que derive de outra ilícita. Noutro ponto, referindo-se ao ofendido, a nova redação do art. 201 do CPP trouxe significativas inovações. Agora, além de tratar das perguntas a serem feitas à vítima, trata em capítulo voltado exclusivamente a ela sobre a comunicação acerca da entrada e saída do acusado da prisão. Aponta ainda o §4° que antes e durante a realização de eventual audiência deve ser reservado espaço separado ao ofendido. Outros parágrafos tratam do atendimento que pode ser dispensando ao ofendido e de medidas que visam garantir sua segurança. Assim, notadamente visou o legislador pátrio conferir maior segurança e amparo às vítimas, antes timidamente (e com pouca especificidade) tratadas em pontos esparsos da norma. Percebe-se, pois, nas referidas partes em que se promoveu restruturação legislativa, uma movimentação tendente a propiciar maior efetividade às normas processuais penais em diversos aspectos, garantindo maior celeridade ao procedimento, voltando a atenção às problemáticas das vítimas do crime, propiciando uma melhor análise e administração dos instrumentos probatórios dentre outras medidas. 8- CONSIDERAÇÕES FINAIS São as provas no processo penal os instrumentos que permitem o desenrolar do rito judicial. Tal procedimento, que visa aplicar o direito aos casos concretos levados ao judiciário, se lastreia por uma gama de princípios que buscam legitimar e dar efetividade ao processo. Ademais, visam dar segurança e lisura a todo procedimento, que, dada a importância dos bens que tutela, pode modificar consideravelmente a realidade social. Assim, e à luz de todo o já exposto, antes mesmo de notadas como ônus são as provas um direito subjetivo das partes, direito que não pode ser suprimido sob pena de ver-se desenvolver um processo duvidoso, retrógrado. Tal direito garante a elas que, em conjunto com os demais institutos processuais, consiga-se alcançar a finalidade última da norma, qual seja, efetivar a aplicação das regras materiais infringidas na sociedade, aproximando-se assim da máxima processual de “alcance da verdade real”.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-84/a-imprescindibilidade-dos-elementos-probatorios-no-processo-penal/
Da (im)possibilidade de ratificação da voz de prisão em flagrante nas hipóteses de furto privilegiado a partir de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico
No presente artigo os autores tecem considerações a respeito da impossibilidade de o delegado de polícia ratificar a voz de prisão em flagrante nas hipóteses de furto privilegiado, também conhecido como furto mínimo (art. 155, § 2º, CP). O objetivo deste estudo é interpretar o sistema jurídico penal partindo de um enfoque eminentemente constitucional, pois somente assim o princípio da dignidade da pessoa humana será efetivamente observado.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO O artigo 155 do Código Penal apresenta a seguinte redação: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (…) §2.º Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa”. A primeira observação a ser feita é que, embora tecnicamente a figura descrita no § 2º não seja de furto privilegiado, essa terminologia foi amplamente difundida na doutrina e na jurisprudência e, por isso, será mantida no presente estudo. Como se sabe, não obstante o legislador tenha utilizado, na redação do § 2º, a palavra “pode”, na realidade estamos diante de um “poder-dever” por parte do magistrado, uma vez que tal norma consagra um direito subjetivo do acusado. Para corroborar o alegado é conveniente transcrever a seguinte lição de Fernando Capez a respeito do assunto: “presentes os dois requisitos acima, o juiz está obrigado a conceder o privilégio legal. Em que pese a lei conter o verbo poder, denotando uma faculdade concedida ao juiz, é majoritário o entendimento de que se trata de um direito subjetivo do réu” (2009; p.416). Assim, para receber o mencionado privilégio é imprescindível o preenchimento concomitante dos dois requisitos previstos na lei, quais sejam, primariedade do agente e pequeno valor da coisa subtraída. A primariedade do agente, de acordo com Guilherme de Souza Nucci, “é um conceito negativo, ou seja, significa não ser reincidente” (2009; p.697). Já em relação ao pequeno valor da coisa subtraída, apesar da divergência a respeito do tema, defendemos a mesma opinião de Nucci, que prefere “o entendimento que privilegia, nesse caso, a interpretação literal, ou seja, deve-se ponderar unicamente o valor da coisa, pouco interessando se, para a vítima, o prejuízo foi irrelevante. Afinal, quando o legislador quer considerar o montante do prejuízo deixa isso bem claro, como o fez no caso do estelionato (art. 171, § 1º, CP)” (2009; p.698). Partindo dessa premissa percebe-se que ambos os requisitos podem ser aferidos ainda em sede administrativa (na Delegacia de Polícia). A primariedade do agente pode ser constatada através da análise da folha de antecedentes criminais do conduzido (documento que o delegado tem total acesso). Já a constatação a respeito do pequeno valor da coisa pode, perfeitamente, ser feita pelos próprios policiais, investigadores, escrivães, etc., desde que prestem o compromisso de “bem e fielmente desempenhar o encargo”, nos termos do § 2º do art. 159 do CPP. Tecidos esses breves comentários passa-se a analisar, especificamente, o art. 155, § 2º do CP, partindo-se de uma interpretação sistemática, a fim de assegurar a prevalência da dignidade da pessoa humana. 2. DESENVOLVIMENTO Nesse instante é imprescindível reforçar a noção de que, quando uma pessoa é condenada por furto privilegiado, o juiz, ao fixar a pena, deve seguir um, dentre três caminhos possíveis, quais sejam, substituição da reclusão pela detenção, redução da pena de um a dois terços ou aplicação somente da pena de multa. No presente estudo defendemos o posicionamento no sentido de ser possível antecipar a análise dessas três situações, ou seja, de se permitir ao delegado de polícia, na hipótese de furto mínimo, encarar a situação sob a mesma perspectiva que o magistrado a encararia, no momento de fixar a pena no caso concreto.  Explica-se: a primeira conseqüência jurídica descrita no § 2º do art. 155 do CP é a substituição da pena de reclusão pela de detenção. Desse modo, apesar de o crime de furto ser punido, a princípio, com pena de reclusão, uma coisa é certa: mais cedo ou mais tarde o juiz poderá substituir a reclusão pela detenção. Nesse momento é importante trazer à baila o art. 322 do CPP, cuja redação estabelece que “a autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração punida com detenção (…)”. A análise conjunta dos dois dispositivos nos leva a defender a tese de que o delegado de polícia, ao verificar, no caso concreto, que se trata de furto privilegiado (réu primário e pequeno valor da coisa subtraída), não só pode como deve fazer uma interpretação sistemática [1] do ordenamento jurídico e, conseqüentemente, deve tratar a hipótese como se o crime fosse, desde o princípio, apenado com detenção, tornando possível a concessão de fiança, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário. A segunda conseqüência jurídica descrita no § 2º do art. 155 do CP é a diminuição da pena de um a dois terços. Esse talvez seja o ponto mais delicado da tese ora defendida, uma vez que somente o juiz, no momento da aplicação da pena (art. 59 do CP), poderia determinar a quantidade da referida redução. Isso porque, para receber esse benefício, basta ao acusado ser tecnicamente primário, ou seja, mesmo que ele ostente maus antecedentes e até condenações anteriores (desde que passado o período depurador previsto no art. 64, inciso I, do CP), etc., ainda assim poderá ter sua pena reduzida de acordo com o prudente arbítrio do juiz que, no momento de fixar a pena final, obviamente levará em consideração essas circunstâncias. Porém, nas hipóteses de conduzidos com “ficha limpa”, isto é, sem passagens pela polícia, etc., a regra da interpretação sistemática defendida no presente estudo ainda prevalece, haja vista que, nesses casos, é bastante provável que o juiz acabe fixando a pena mínima (um ano) e a reduza ao máximo (dois terços), resultando uma pena final de 4 (quatro) meses de reclusão. Dessa forma, é possível encarar a conduta do agente (furto privilegiado) como se fosse uma infração de menor potencial ofensivo, nos termos do artigo 61 da Lei nº 9.099/95. Sendo assim, conforme estabelece o artigo 69, parágrafo único da referida lei “ao autor do fato que, após a lavratura do termo [circunstanciado], for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança”. Assim, se o conduzido assumir, perante a autoridade policial, o compromisso de comparecer a todos os atos processuais defendemos a tese de que o delegado de polícia não deve ratificar a voz de prisão em flagrante. Já a terceira conseqüência jurídica estampada no § 2º do art. 155, do CP é a aplicação pura e simples da pena de multa. Também nessa hipótese, ao se interpretar sistematicamente o ordenamento jurídico, pode-se concluir que não existe necessidade de o conduzido ser recolhido à prisão, uma vez que ele se “livraria solto”, independentemente de fiança, nos termos do art. 321, inciso I, do CPP. Explica-se: nesse momento é importante lembrar que o juiz, nos casos de furto privilegiado, pode seguir apenas um, dentre três caminhos possíveis. Assim, se o magistrado decide aplicar somente a pena de multa, é como se a referida infração penal “deixasse de ter” a pena privativa de liberdade cominada permitindo, dessa forma, que o conduzido se livre solto. O mesmo raciocínio deve ser desenvolvido pela autoridade policial, o que afastaria a possibilidade de ratificação da voz de prisão em flagrante. Por fim, como forma de dar maior sustentação teórica ao posicionamento ora defendido é pertinente trazer à baila o art. 304, § 1º do CPP, cuja redação é a seguinte: “Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança (…).” (grifo nosso) Como se pôde constatar no decorrer deste artigo, a impossibilidade de a autoridade policial ratificar a voz de prisão em flagrante nos casos de furto privilegiado, a partir de uma interpretação sistemática (operação que se dá apenas no plano das idéias, ou seja, na mente do delegado de polícia) ocorre pelos seguintes motivos: a) ao substituir a pena de reclusão pela de detenção, torna-se possível a concessão de fiança pelo próprio delegado; b) ao diminuir a pena de um a dois terços, o crime “passa a ser considerado” de menor potencial ofensivo e, conseqüentemente, não se pode exigir fiança e nem se impor prisão em flagrante; e c) ao aplicar somente a pena de multa, o conduzido passa a se “livrar solto”. Por todos esses motivos entendemos que o delegado de polícia, nos casos de furto mínimo, não deve ratificar a voz de prisão. 3. CONCLUSÃO De antemão sabemos que o presente artigo será alvo de severas críticas por parte dos positivistas mais ferrenhos. Entretanto, nosso objetivo é apenas fomentar a discussão acerca do assunto a partir de uma abordagem constitucional. É imprescindível ressaltar que a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, inciso III, da CF/88, envolve o “respeito devido pelo Estado ao ser humano, individualmente considerado, não podendo ser sacrificado em nome do interesse coletivo” (NUCCI; 2009; p.78). Por isso, o anseio de uma população ávida por “Justiça”, muitas vezes influenciada por falsos discursos moralistas levados a cabo por políticos demagogos não pode preponderar em um Estado Democrático de Direito. Novamente é importante lembrar que o raciocínio desenvolvido no presente estudo diz respeito apenas e tão somente às hipóteses de furto mínimo, ou seja, aquele em que o autor do crime além de ser primário tenha subtraído uma coisa de pequeno valor. Para encerrar o presente estudo, uma questão envolvendo aspectos sociológicos deve ser levantada: será que a ratificação da voz de prisão em flagrante, nos casos de furto privilegiado (situação que ocorre diariamente em todos os cantos do país, uma vez que a interpretação literal da legislação processual penal determina que isso seja feito) é, realmente, a melhor solução? Respondemos a essa indagação de forma negativa, haja vista que são indizíveis as conseqüências nefastas que podem ser desencadeadas à própria sociedade, ao se permitir que uma pessoa, pelo simples fato de ter cometido um furto mínimo, fique enclausurada por até 10 (dez) dias [2] (sem falar nos abusos que ocorrem em vários locais) em companhia de criminosos verdadeiramente perigosos…
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-84/da-im-possibilidade-de-ratificacao-da-voz-de-prisao-em-flagrante-nas-hipoteses-de-furto-privilegiado-a-partir-de-uma-interpretacao-sistematica-do-ordenamento-juridico/
Inquérito policial sob a óptica do delegado de polícia
Este trabalho estuda e analisa o inquérito policial sob a ótica do delegado de polícia. A presente matéria, de maneira despretensiosa, procura adequar o instituto do inquérito policial à nova ordem jurídico-constitucional. Este trabalho, divergindo da doutrina tradicional, considera o inquérito policial como instrumento de promoção de justiça criminal, na medida em que este procedimento, durante a materialização da investigação criminal, concilia as garantias individuais da pessoa investigada com o direito à segurança da população.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO O presente trabalho procura, de maneira despretensiosa, adequar o conjunto de normas e princípios que fundamentam o inquérito policial ao ordenamento jurídico vigente, sob a ótica do delegado de polícia, com o objetivo de uniformizar os atos de polícia judiciária, que formalizarão a investigação criminal, padronizando a atuação e integrando a Polícia Civil brasileira. A Constituição Federal de 1988, além de ampliar os direitos e garantias individuais, estabeleceu um novo modelo de atuação estatal. As Constituições anteriores estabeleciam apenas limites à atividade do Estado, protegendo os direitos e garantias individuais. São os direitos de defesa das pessoas com relação às violações praticadas pelos representantes do Estado, chamados “direitos negativos” ou “liberdades públicas”. Com a evolução e humanização da sociedade, o Estado assumiu um novo papel no que se refere à proteção da dignidade humana. O Estado deixou a posição de mero coadjuvante, assumindo a condição de protagonista da promoção e defesa dos direitos e garantias individuais. São os denominados direitos positivos, pois reclamam não a abstenção, mas a presença do Estado em ações voltadas à proteção destes direitos. Por outro lado, a atividade de investigação criminal, principal atribuição da Polícia Judiciária, pela sua natureza invasiva, viola, muitas vezes, direitos individuais das pessoas investigadas. Em decorrência da característica invasiva, os princípios consagrados pela chamada “Constituição Cidadã”, notadamente, aqueles que tutelam a dignidade humana, incidem sobre as atividades de Polícia Judiciária. Entre estes dogmas constitucionais se destacam os seguintes princípios: – Inviolabilidade da intimidade, da vida privada, honra e imagem das pessoas: “Art. 5º. (…) X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;” – Inafastabilidade do controle do Poder Judiciário: “Art. 5º. (…) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;” – Proíbe os chamados “juizados de exceção”: “Art. 5º. (…) XXXVII – não haverá juízo ou tribuna de exceção;” – Garantia do “sistema de persecução criminal acusatório”: “Art. 5º. (…) LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; Art. 144. (…) § 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvadas a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” – Devido processo legal: “Art. 5º. (…) LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”. – Contraditório e ampla defesa: “Art. 5º. (…) LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”. – Presunção de inocência: “Art. 5º. (…) LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;” Neste contexto, a essência da Polícia Civil, o perfil do delegado de polícia, as características da investigação criminal e a natureza do inquérito policial precisaram se adequar aos princípios estabelecidos pela nova ordem constitucional. De um lado, a Polícia Civil, apesar de vinculada ao Poder Executivo, assumiu o papel de órgão auxiliar da justiça criminal. De outro, o delegado de polícia se transformou em um operador do direito, que domina a ciência da investigação criminal, com a responsabilidade de conciliar a segurança pública e a proteção da dignidade humana, no exercício da relevante atribuição de repressão criminal. Por sua vez, a investigação criminal, realizada pela Polícia Judiciária, se tornou uma garantia do cidadão contra imputações levianas e açodadas em juízo, sem comprometer a sua finalidade precípua de elucidar as circunstâncias e a autoria dos delitos. 2. CONCEITO A doutrina clássica considera o inquérito policial como um procedimento dispensável, de natureza inquisitiva, meramente preparatório da ação penal. Os defensores dessa corrente entendem que o inquérito policial é apenas um conjunto de diligências investigatórias realizadas pela Polícia Judiciária, visando à apuração do crime e sua respectiva autoria. Entretanto, diante da necessidade de compatibilizar a atuação da Polícia Judiciária com o ordenamento jurídico vigente, principalmente, no que se refere aos direitos individuais da pessoa investigada, o inquérito policial se revestiu de novo aspecto. O inquérito policial se transformou em um instrumento de promoção de justiça criminal, por intermédio da busca da verdade real das circunstâncias e da autoria dos delitos, realizado pela Polícia Civil, tendo como destinatário o Poder Judiciário. O procedimento que materializa as investigações criminais é considerado instrumento de promoção de justiça criminal, na medida em que concilia a defesa dos direitos e garantias individuais da pessoa investigada com a atividade de repressão criminal. De outra parte, a elucidação do crime, por intermédio da busca da verdade real, revela o caráter imparcial da investigação realizada pela Polícia Judiciária. Efetivamente, a Polícia Judiciária, por não ser parte, não se envolve e nem se apaixona pela causa investigada. É importante consignar que o delegado de polícia não está vinculado à acusação ou à defesa, pois, agindo como um magistrado, tem apenas compromisso com a verdade dos fatos. Efetivamente, a Polícia Civil, não obstante esteja atrelada à estrutura do Poder Executivo, exerce a atribuição de auxiliar da justiça criminal. Neste sentido, vale lembrar que o ordenamento normativo brasileiro adotou o chamado “sistema de persecução criminal acusatório”. Tal sistema se caracteriza por ter, de forma bem distinta, as figuras do profissional que: – Investiga (delegado de polícia auxiliar do Poder Judiciário); – Defende (Advogado); – Acusa (integrante do Ministério Público); e – Julga (magistrado) o crime. O citado sistema oferece condições para o delegado de polícia trabalhar sem a preocupação de produzir provas para absolver (defesa) ou condenar (acusação) o investigado. Finalmente, em harmonia com as diretrizes da corrente doutrinária adotada neste trabalho, o destinatário do inquérito policial é o Poder Judiciário, uma vez que as diligências investigatórias, realizadas para elucidar o crime, não têm como finalidade o oferecimento de denúncia pelo representante do Ministério Publico ou a apresentação de defesa pelo advogado do investigado. Como restou demonstrado, a investigação criminal visa à busca da verdade real do fato criminoso. Ademais, o inquérito policial se destina ao Judiciário, porque é o Poder incumbido de verificar a legalidade dos atos de polícia repressiva. Ressalte-se que tal assertiva está em consonância com o princípio da inafastabilidade do controle do Poder Judiciário, previsto no Inciso XXXV, art. 5º, da CF. Art. 5º. (…) XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; 3. NECESSIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL Em razão da importância da questão da dispensabilidade do inquérito policial, o referido tema será tratado em um tópico específico neste trabalho. Atualmente, a doutrina tradicional entende que o inquérito policial, apesar de ser uma peça importante, não é imprescindível. Os defensores dessa corrente alegam que o inquérito policial não é uma etapa obrigatória da persecução penal, pois poderá ser dispensado sempre que o integrante do Ministério Público ou o ofendido tiver elementos suficientes para promover a ação penal. Os doutrinadores baseiam tal entendimento no fato de o art. 12, do Código de Processo Penal, utilizar a expressão “sempre que”, que significa uma condição. “Art. 12. O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra”. (grifei) Da mesma forma, porque o art. 27, do CPP, que trata da delatio criminis postulatória, estabelece que qualquer um do povo poderá fornecer, por escrito, informações sobre o fato e a autoria, indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção. Essa circunstância significa, no entender de alguns estudiosos, que quando tais informações forem suficientes não é necessário o inquérito policial: “Art. 27. Qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção.” (grifei) No mesmo sentido, o § 5º, do art. 39, do CPP, estabelece que o integrante do Parquet dispensará o inquérito se forem apresentados elementos suficientes para a propositura da ação: “Art. 39. O direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente ou por procurador com poderes especiais, mediante declaração, escrita ou oral, feita ao juiz, ao órgão do Ministério Público, ou à autoridade policial. § 5º. O órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de 15 (quinze) dias.” (grifei) Finalmente, para os adeptos da aludida tese, o § 1º do art. 46, descreve mais uma hipótese de dispensabilidade do inquérito policial: “Art. 46. O prazo para oferecimento da denúncia, estando o réu preso, será de 5 (cinco) dias, contado da data em que o órgão do Ministério Público receber os autos do inquérito policial, e de 15 (quinze) dias, se o réu estiver solto ou afiançado. No último caso, se houver devolução do inquérito à autoridade policial (art. 16), contar-se-á o prazo da data em que o órgão do Ministério Público receber novamente os autos. § 1º. Quando o Ministério Público dispensar o inquérito policial, o prazo para o oferecimento da denúncia contar-se-á da data em que tiver recebido as peças de informações ou a representação”. (grifei) Coerente com as diretrizes anteriormente estabelecidas, principalmente, no que se refere ao entendimento doutrinário que a investigação criminal, realizada pela Polícia Judiciária, se transformou em um instrumento de defesa dos direitos e garantias individuais, adota-se nesta obra a posição jurídica de que o inquérito policial é necessário De fato, o inquérito policial, nos dias de hoje, é uma ferramenta de efetivação dos direitos estabelecidos pelo devido processo legal. Na verdade, o inquérito policial concretiza os direitos do due process of law, em primeiro lugar, porque impede que a ação penal seja desencadeada, de forma açodada e desnecessária, comprometendo indevidamente a credibilidade das pessoas. Com efeito, depois da promulgação da chamada “Constituição cidadã”, não se admite nenhuma acusação desprovida de elementos de convicção. Neste sentido, a Professora Ada Pellegrini Grinover[1] leciona que: “o processo criminal como sendo um dos maiores dramas para a pessoa humana; por isso é que se exige um mínimo de fumo do bom direito para sua instauração”. Na mesma linha de raciocínio, observa-se na exposição de motivos do próprio Código de Processo Penal razões suficientes para considerar imprescindível o inquérito policial: “… há em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo à propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas. Não raro, é preciso voltar atrás, refazer tudo, para que a investigação se oriente no rumo certo, até então despercebido. Por que, então, abolir-se o inquérito preliminar ou instrução provisória, expondo-se a justiça criminal aos azares do detetivismo, às marchas e contramarchas de uma instrução imediata e única? Pode ser mais expedito o sistema de unidade de instrução, mas o nosso sistema tradicional, com o inquérito preparatório, assegura uma justiça menos aleatória, mais prudente e serena.” (grifei) Os direitos e garantias individuais, notadamente, os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas são violados quando o integrante do Ministério Público, com suposto fundamento no art. 27 e § 5º, do art. 39, do Código de Processo Penal, dispensa o inquérito policial e oferece a denúncia com base apenas nas informações sobre o fato e autoria, muitas vezes infundadas, contidas em representação formulada por pessoa do povo. Em virtude dos danos que a instauração precipitada da ação penal acarretam, tais informações, de acordo com a nova ordem constitucional, precisam ser confirmadas pela Polícia Judiciária, antes de serem utilizadas pelo órgão da acusação. Tal assertiva conduz à conclusão que os arts. 12; 27; o § 5º, do art. 39; o § 1º, do art. 46, todos do Código de Processo Penal, que consideram o inquérito policial um procedimento dispensável, não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988. Como se sabe, o fenômeno da recepção assegura a preservação do ordenamento jurídico anterior e inferior à nova Constituição, desde que, com ela, se mostre materialmente compatível. Com efeito, a doutrina ensina que, quanto às leis infraconstitucionais que foram editadas sob fundamento de validade de Constituição anterior, não haverá necessidade de votação de novas leis, tendo em vista que, se uma determinada lei editada antes for compatível com a nova Constituição, será recepcionada por esta, possuindo, então, um novo fundamento de validade. Por outro lado, caso as leis infraconstitucionais não sejam compatíveis com a nova Constituição, perderão a validade. Assim, um dispositivo que não for recepcionado será considerado inválido. Os aludidos preceitos não foram recepcionados pela nova Carta Política, consequentemente perderam a sua validade. Em suma, os dispositivos do Código de Processo Penal, que consideram dispensável o inquérito policial, apesar de não terem sido revogados por uma lei posterior, não têm validade, porque não estão em harmonia com a nova Carta Política. Nesta linha de raciocínio, Luiz Flávio Borges D’Urso[2] entende que o inquérito policial é indispensável: “Fico a meditar sobre a origem do inquérito policial, sua utilidade e conveniência e invariavelmente concluo por sua indispensabilidade como supedâneo a enfeixar as provas que são produzidas durante esta importante fase, que é preliminar ao processo criminal, aliás, talvez a fase que justifique o próprio processo.” (grifei) Mais adiante, o conceituado advogado arremata: “Assim, nos poucos casos em que o inquérito policial foi dispensado, observamos um descrédito na polícia e na Justiça, aumentando a sensação de impunidade, tão alardeada no país. (grifei) Ora, dessa forma, advogar a eliminação do procedimento administrativo policial, penso ser um desserviço à nação, pois por meio do Inquérito é que se dá o suporte às provas produzidas e mais, por ele se revela uma cerimônia pré-processual, que tenho como indispensável à credibilidade da Justiça,… Afastada a ideia da eliminação do inquérito policial, reforcemos os mecanismos de investigação no bojo desse procedimento, melhorando-o e aperfeiçoando-o, com o fito de prestigiar a própria Justiça.” 4. FUNDAMENTO DE VALIDADE O inquérito policial é fruto da evolução do sumário de culpa, documento elaborado pelos juízes de paz à época da promulgação do Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871, que regulamentou a Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871. Atualmente, os arts. 4º a 23, do CPP, são as principais normas que fundamentam e disciplinam o inquérito policial. De outra parte, é importante enfatizar que o inquérito policial tem previsão constitucional. Efetivamente, o inciso VIII, do art. 129, da CF, menciona expressamente o inquérito policial. “Art. 129. (…) VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais.” (grifei) Pelo fato de ter previsão constitucional e ser considerado uma garantia do devido processo legal, defende-se neste trabalho a tese da impossibilidade de aprovação de projeto de lei com proposta de extinção do inquérito policial, até mesmo por intermédio de proposta de emenda à Constituição – PEC, porque essa iniciativa restringe direitos individuais, situação que viola cláusula pétrea prevista no inciso IV, do § 4º, do art. 60, da Constituição Federal: “Art. 60. (…) § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais.” (grifei) A investigação criminal, realizada por intermédio de inquérito policial, como foi afirmado, constitui uma das garantias do devido processo legal, instituto relacionado expressamente como direito fundamental no inciso LIV, do art. 5º, da Magna Carta. Destaque-se que a referida matéria foi disciplinada no art. 5º, da Magna Carta, que se refere aos direitos e garantias individuais, justamente porque o poder constituinte originário teve a intenção de impedir que o tema fosse objeto de restrição, limitação ou mesmo alteração. Tal circunstância impede a aprovação de norma que venha a suprimir ou limitar o conjunto de direito e garantias individuais que compõe o devido processo legal, em virtude das chamadas vedações materiais. Neste sentido, a lição ministrada por Alexandre de Moraes:[3] “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais. Tais matérias formam o núcleo intangível da Constituição Federal, denominado tradicionalmente por ‘cláusulas pétreas’.” (grifei) Corroborando tal entendimento, o Professor José Afonso da Silva[4] ensina: “É claro que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: fica abolida a Federação ou a forma federativa de Estado’, ‘fica abolido o voto direto…’, ‘passa a vigorar a concentração de Poderes’, ou ainda ‘fica extinta a liberdade religiosa, ou de comunicação…, ou o habeas corpus, o mandado de segurança…’. A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou do voto direto, ou indiretamente restringir a liberdade religiosa, ou de comunicação ou outro direito e garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, ‘tenda’ (emendas tendentes, diz o texto) para a sua abolição.” Isto significa que, em tese, somente novo poder constituinte originário teria a legitimidade para suprimir a investigação criminal, por intermédio do inquérito policial, do sistema normativo brasileiro. 5. NATUREZA JURÍDICA A doutrina tradicional atribui ao inquérito policial a natureza jurídica de procedimento persecutório, pois, segundo os adeptos dessa corrente, o conjunto de diligências investigatórias busca a satisfação do jus puniendi. De acordo com tal entendimento, a persecução criminal é a atividade estatal que inicia com a instauração do inquérito policial, conhecido, também, como informatio delicti, e tem como principal finalidade a punição do autor do delito. Contudo, o mencionado entendimento não está em consonância com a corrente doutrinária esposada nesta obra, que defende opinião no sentido de que o inquérito, em vez de perseguir a punição do autor do delito, procura revelar a verdade real dos fatos, como forma de promover a justiça criminal. Efetivamente, o inquérito policial tem um aspecto mais amplo, não se restringe a satisfação do jus puniendi. O delegado de polícia, na busca da verdade real verifica, também, a tipicidade do fato, a existência de causas excludentes de antijuridicidade e culpabilidade do autor do delito. Na realidade, o órgão responsável pela persecução criminal é o Ministério Público, que encarregado da acusação, procura a condenação do suposto autor do crime. Portanto, a natureza jurídica do inquérito policial é de um procedimento necessário, de caráter administrativo e natureza relativamente inquisitiva, realizado pela Polícia Judiciária e presidido por delegado de polícia de carreira. 6. FINALIDADE Os doutrinadores clássicos, com fundamento na interpretação equivocada dos arts. 4º e 12, do CPP, sem levar em conta a nova ordem jurídico-constitucional, afirmam que a finalidade do inquérito policia é a apuração da existência de infração penal e a respectiva autoria, para fornecer ao representante do Ministério Público elementos mínimos para a propositura da ação penal: “Art. 4º. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. Art. 12. O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra.” Em consonância com a corrente doutrinária adotada nesta obra, a principal finalidade do inquérito policial é elucidar as circunstâncias e a autoria do delito, em busca da verdade real, para promover a justiça criminal. A promoção de justiça criminal, no contexto do trabalho realizado pela Polícia Civil, consiste na conciliação dos direitos e garantias individuais da pessoa investigada com o direito à segurança pública da população. Em expressões menos técnicas, significa que o inquérito policial não é realizado com o único propósito de colher elementos de convicção, para o Ministério Público formular a denúncia e desencadear a ação penal. De forma didática, a finalidade do inquérito policial divide-se em: – finalidade principal: elucidação das circunstâncias e autoria do delito para a aplicação da lei penal e a proteção dos direitos fundamentais da pessoa investigada; e – finalidade secundária: produzir subsídios para a propositura da ação penal pelo representante do Ministério Público ou pelo ofendido, bem como para embasar a defesa do suposto autor do crime. 7. PROCESSO OU PROCEDIMENTO O inquérito policial é um procedimento, porque enfeixa um conjunto de diligências investigatórias voltadas à elucidação das infrações penais, sem observar um rito formal e determinado. Em outras palavras, é uma sequência de atos de Polícia Judiciária destinados ao esclarecimento das circunstâncias e da autoria do delito. É importante salientar que o inquérito policial não pode ser considerado um processo, uma vez que sua essência não se ajusta à acepção jurídica dessa expressão, principalmente, porque o delegado de polícia, durante a formalização dos elementos de convicção, não observa integralmente os princípios do contraditório, da ampla defesa e demais formalidades dos atos processuais. Isto significa que a inobservância dos princípios do contraditório e da ampla defesa e a ausência de rito formal e determinado, no momento da materialização da investigação, impedem que se atribua ao inquérito policial a condição de instrução criminal. 8. JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA Vele lembrar que o caput, do art. 4º, do CPP, usava, de forma inadequada, o termo “jurisdição”. A Lei nº 9.043, de 9 de maio de 1995, substituiu o termo “jurisdição” pela expressão “circunscrição”, entendida como os limites territoriais dentro dos quais a polícia realiza suas funções atribuições. O termo jurisdição designa a atividade por meio da qual o Estado, em substituição às partes, declara a preexistente vontade da lei ao caso concreto: “Art. 4º. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. (grifei) Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.” É oportuno esclarecer, também, que o parágrafo único, do citado artigo, dispõe que: “a competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”. É importante consignar que a autoridade policial não tem competência, mas sim atribuições. O termo competência, empregado no parágrafo único, do art. 4º, do CPP, deve ser entendido como poder conferido a alguém para conhecer determinados assuntos, não se confundindo com competência jurisdicional, que é a medida concreta do poder jurisdicional. De outra parte, a atribuição para presidir o inquérito policial é conferida aos delegados de polícia pelos §§ 1º e 4º, do art. 144, da CF, e fixada conforme as normas de organização policial dos Estados. A atribuição é fixada aos delegados de polícia obedecendo aos seguintes critérios: – Critério de divisão territorial: unidades de base territorial pelo lugar da consumação da infração (ratione loci). Exemplo: Distrito Policial da área; – Critério de divisão em razão da matéria: unidades especializadas pela natureza do delito (ratione materiae). DHPP, DEIC, DENARC; e – Critério de divisão em razão da pessoa: unidades especializadas pela condição da vítima (ratione personae). DDM. Havendo indícios de que a infração penal foi praticada por policial ou tendo a sua participação, a autoridade policial que tomar conhecimento do fato deverá comunicar imediatamente a ocorrência à respectiva corregedoria-geral de polícia, para as providências cabíveis na esfera penal e disciplinar. A autoridade policial, em regra, não poderá praticar qualquer ato fora dos limites de sua circunscrição, sendo necessário: – se o delito ocorrer em outro país: carta rogatória; – se o delito ocorrer em outra comarca: carta precatória; e – se o delito ocorrer no DF ou em circunscrição diferente, mas dentro da mesma comarca, não precisa de nenhuma carta, nos termos do art. 22, do CPP: “Art. 22. No Distrito Federal e nas comarcas em que houver mais de uma circunscrição policial, a autoridade com exercício em uma delas poderá, nos inquéritos a que esteja procedendo, ordenar diligências em circunscrição de outra, independentemente de precatórias ou requisições, e bem assim providenciará, até que compareça a autoridade competente, sobre qualquer fato que ocorra em sua presença, noutra circunscrição.” 9. VALOR PROBATÓRIO NA BUSCA DA VERDADE REAL Os elementos de convicção produzidos no inquérito policial têm valor probatório relativo, pois não são colhidos sob a integral proteção dos princípios do contraditório e da ampla defesa. Quando se afirma que os elementos de convicção produzidos no inquérito policial têm valor probatório relativo pretende-se dizer que a validade desse material depende da compatibilidade com as provas colhidas na fase judicial. Em razão do sistema do livre convencimento motivado, adotado no ordenamento normativo vigente, as informações produzidas na fase inquisitiva deverão ser confrontadas com as provas colhidas na etapa do contraditório, verificando se existe entre elas consonância. Neste sentido, recentemente, a Lei nº 11.690, de 09 de junho de 2008, alterou a redação do art. 155, do Código de Processo Penal, estabelecendo que o juiz não poderá fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação criminal, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas: “Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.” (grifei) É relevante registrar que a utilização do advérbio “exclusivamente” no caput do art. 155, do CPP, é uma demonstração inequívoca que o juiz poderá se valer, também, dos elementos de informações produzidos no inquérito policial para fundamentar sua decisão. Em expressões menos técnicas, significa que a alteração legislativa em tela valorizou o inquérito policial, possibilitando que o material colhido durante a fase inquisitiva seja levado em consideração pelo magistrado na formação de sua convicção. Por outro lado, o novo texto do caput do art. 155, do CPP, atribui valor às provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, coligidas no inquérito, concedendo às partes o direito ao contraditório, na fase judicial. As provas cautelares são aquelas que precisam ser produzidas porque podem perecer, ser alteradas ou destruídas em razão do tempo. Exemplo: busca e apreensão, interceptação telefônica. Entende-se por prova não repetível aquela que não pode mais ser reproduzida em juízo, em virtude do desaparecimento da fonte probatória. Exemplos: desaparecimento de vestígios do crime, falecimento de testemunha, etc. Pelos motivos expostos, esses elementos de convicção sofrem antecipação do momento de sua realização. 10. PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS As principais características do inquérito policial são: 10.1. Procedimento escrito – consoante se infere do art. 9.º do CPP: “Art. 9º. Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade.” (grifei) Entretanto, com a evolução dos meios de comunicação e a instalação do denominado processo virtual, atualmente, a Polícia Federal e a Polícia Civil de alguns Estados realizam o chamado “inquérito policial eletrônico”. O inquérito policial eletrônico consiste na digitalização de todas as informações e dados da investigação criminal pela Polícia Judiciária e o envio online deste material ao Poder Judiciário, para avaliação do magistrado e representante do Ministério Público. A adoção desse novo método de trabalho proporciona uma atividade de Polícia Judiciária mais célere, eficiente, segura e econômica, substituindo o tradicional inquérito materializado em meio físico por apuração digitalizada. O inquérito policial virtual cria condições para o juiz acompanhar online a produção das informações e verificar a legalidade da investigação criminal. Acrescente-se, ainda, que o art. 30, do Projeto de Lei nº 156/2009 (reforma do Código de Processo Penal), que tramita no Senado Federal, modernizando o inquérito policial, flexibiliza as formas de materialização desse procedimento: “Art. 30. No inquérito, as diligências serão realizadas de forma objetiva e no menor prazo possível, sendo que as informações e depoimentos poderão ser tomados em qualquer local, cabendo à autoridade policial resumi-los nos autos com fidedignidade, se colhidos de modo informal. § 1º. O registro do interrogatório do investigado, das declarações da vítima e dos depoimentos das testemunhas poderá ser feito por escrito ou mediante gravação de áudio ou filmagem, com o fim de obter maior fidelidade das informações prestadas. (grifei) § 2º. Se o registro se der por gravação de áudio ou filmagem, o investigado ou o Ministério Público poderão solicitar a sua transcrição.” 10.2. Procedimento sigiloso – conforme se observa do art. 20, do CPP: “Art. 20. A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. (grifei) O art. 20, do CPP, aponta os motivos do caráter sigiloso do inquérito policial: – Necessário para preservar os direitos da pessoa investigada; – Imprescindível para a elucidação do fato criminoso; e – Preciso para atender aos interesses da sociedade. Efetivamente, o sigilo assegurado no inquérito visa garantir o direito à intimidade, vida privada, honra e a imagem, consagrado no inciso X, do art. 5º, da CF. Da mesma forma, o sigilo está em consonância com o princípio da presunção da inocência, previsto no inciso LVII, do art. 5º, da CF. O sigilo, também, é imprescindível para a realização das diligências destinadas à elucidação das circunstâncias e da autoria do crime. Finalmente, serve para atender aos interesses da sociedade, diante da repercussão que o delito causa ao meio social. A doutrina tem debatido sobre a extensão desta medida restritiva. Principalmente, se o sigilo do inquérito policial alcança o advogado da pessoa investigada? O Supremo Tribunal Federal decidiu que o sigilo do inquérito policial não atinge aos advogados, tendo em vista o direito e a garantia individual à ampla defesa do investigado. O STF entende que o defensor sempre poderá ter acesso a todas as informações que estiverem inseridas nos autos, inclusive às provas sigilosas. Neste sentido, o STF editou a súmula vinculante nº 14, que dispõe sobre o acesso do advogado às informações contidas no inquérito policial. Súmula vinculante nº 14 “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.” Vale lembrar que os incisos XIII a XV, e o § 1º, do art. 7º, da Lei 8.906/1994, Estatuto da OAB, garantem este direito ao advogado da pessoa investigada. Trata-se de uma prerrogativa profissional do advogado. Entretanto, a doutrina, com base no interesse público e na natureza semi-inquisitiva do inquérito policial, entende que o advogado, não pode acompanhar a realização da investigação criminal, que não exija a presença do defensor. 10.3. Procedimento relativamente inquisitivo A doutrina tradicional sempre ensinou que o inquérito policial é um procedimento totalmente inquisitivo, diante da inexistência de acusação formal e contraditório nesta etapa. Entretanto, em sintonia com a corrente doutrinária adotada neste trabalho, que considera o inquérito policial como instrumento de promoção de justiça criminal, defende-se posição no sentido de que o inquérito é um procedimento relativamente inquisitivo, diante da necessidade de proporcionar ao investigado o chamado “contraditório mitigado” De fato, o inciso LIV, do art. 5º, da Magna Carta, determina que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Indiscutivelmente, quando a pessoa passa da condição de suspeita para investigada ou indiciada (na fase inquisitiva) ou de acusada (na etapa do contraditório) sofre um prejuízo imensurável no seu patrimônio moral. Sem dúvida, o patrimônio moral compõe o acervo de bens da pessoa. Logo, antes de sofrer tal prejuízo com a alteração do status de suspeita para investigada ou indiciada, a pessoa tem o direito constitucional de postular a realização de diligências no sentido de refutar as acusações que incidem contra ela, por intermédio do “contraditório mitigado” no inquérito policial. Isto significa que é preciso dotar o inquérito policial do “contraditório mitigado”, sem retirar a natureza inquisitiva deste instituto, proporcionando à defesa, em igualdade de condições com a acusação, a oportunidade de participar da fase que antecede o indiciamento da pessoa suspeita da prática do crime, procurando demonstrar a inocência do investigado. Da mesma forma, é possível o exercício do “contraditório mitigado” no inquérito policial por ocasião da produção de provas cautelares, que não serão refeitas no processo crime. Confirmando a tendência de proporcionar ao investigado a oportunidade de participar da produção dos elementos de convicção no inquérito policial, o art. 27, do Projeto de Lei nº 156/2009 (reforma do Código de Processo Penal), que tramita no Senado Federal, adequando o instituto à nova ordem jurídica constitucional, estabelece: “Art. 27. A vítima, ou seu representante legal, e o investigado poderão requerer à autoridade policial a realização de qualquer diligência, que será efetuada, quando reconhecida a sua necessidade. (grifei) § 1º. Se indeferido o requerimento de que trata o caput deste artigo, o interessado poderá representar à autoridade policial superior ou ao Ministério Público.” Corroborando a tese aqui adotada, saliente-se que a ausência de acusação formal no inquérito policial não impede que os direitos do investigado sejam respeitados, entre eles, se destacam: o direito ao silêncio, o de não se auto-incriminar, o de ser tratado com dignidade e respeito, o de refutar as acusações que lhe são imputadas, por intermédio do “contraditório mitigado”, etc. Em decorrência da natureza relativamente inquisitiva do inquérito policial não pode ser arguida suspeição da autoridade policial, consoante se infere do art. 107, do CPP. “Art. 107. Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal.” Ainda sobre a natureza relativamente inquisitiva do inquérito, o art. 14, do CPP, estabelece que a autoridade policial pode indeferir qualquer pedido de diligência. “Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.” Contudo, o art. 184, do CPP, determina que a diligência de exame de corpo de delito não pode ser indeferida pela autoridade policial. “Art. 184. Salvo o caso de exame de corpo de delito, o juiz ou a autoridade policial negará a perícia requerida pelas partes, quando não for necessária ao esclarecimento da verdade.” Finalmente, em virtude da natureza relativamente inquisitiva do inquérito policial, a presença de advogado não é obrigatória durante a materialização dos elementos de convicção da investigação criminal, mas reveste de credibilidade os atos de Polícia Judiciária. 10.4. Oficiosidade – de acordo com o inciso I, do art. 5º, do CPP: “Art. 5º. Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: I – de ofício; (…)”.(grifei) Tal característica encontra seu fundamento de validade no princípio da obrigatoriedade ou legalidade. O princípio da obrigatoriedade ou legalidade dispõe que, na hipótese de crime de ação penal pública incondicionada, o delegado de polícia é obrigado (tem o dever de) a instaurar o inquérito policial ex officio, independente de qualquer tipo de provocação. 10.5. Oficialidade e Autoritariedade – conforme se verifica dos §§ 1º e 4º, do art. 144, da CF: “Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: § 1º. A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II – prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III – exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. (…) § 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” O caráter de oficialidade e autoritariedade do inquérito policial significa que este procedimento é realizado por órgão público oficial, a Polícia Judiciária, e presidido por uma autoridade pública, o delegado de polícia de carreira, de natureza jurídica. Por analogia aos direitos individuais, consagrados nos incisos XXXVII e LIII, do art. 5º, da CF, que proíbem o chamado “juizados de exceção”, a pessoa, antes de cometer o crime, tem o direito de saber: – Qual o procedimento utilizado para formalizar a investigação criminal (inquérito policial); – Qual o órgão responsável para realizar este procedimento (Polícia Judiciária); e – Qual o servidor responsável pela apuração e formalização das circunstâncias e autoria do delito (delegado de polícia). De outra parte, apesar de a investigação particular não ser proibida no Brasil, para que tal material tenha validade deverá ser apresentado à Polícia Judiciária, visando à confirmação dos dados e informações obtidos de forma lícita. 10.6. Indisponibilidade – consoante se infere do art. 17, do art. CPP: “Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito.” Isto significa que, uma vez instaurado o inquérito policial, o delegado de polícia não pode determinar o seu arquivamento.” O art. 28, do CPP, confere ao juiz a atribuição para arquivar o inquérito policial. “Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.” 11. PROVIDÊNCIAS PRELIMINARES O art. 6º, do CPP, estabelece um verdadeiro roteiro dos atos que devem anteceder a instauração do inquérito policial. “Art. 6º. Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: I – dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; II – apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; III – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; IV – ouvir o ofendido; V – ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por 2 (duas) testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura; VI – proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações; VII – determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias; VIII – ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes; IX – averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter.” 12. INÍCIO DO INQUÉRITO POLICIAL Este tópico é dedicado ao estudo das formas pelas quais o inquérito policial se inicia. Para integral compreensão das formas pelas quais o inquérito policial se inicia, antes, é necessário realizar breve introdução a respeito da notitia criminis e da ação penal, temas relacionados à questão principal. 12.1. Notícia Criminis A notitia criminis é a forma pela qual a autoridade policial toma conhecimento de um fato delituoso. A ciência da notícia de um crime, dependendo das circunstâncias, pode ocorrer de maneira espontânea ou provocada. Didaticamente a notitia criminis é dividida em três espécies: – Notitia Criminis de cognição direta, imediata, espontânea; – Notitia Criminis de cognição indireta, mediata; e – Notitia Criminis de cognição coercitiva. Notitia Criminis de cognição direta, imediata, espontânea: Ocorre quando o delegado de polícia toma conhecimento direto do ilícito penal por meio do exercício de suas atribuições. Dentre outras hipóteses, se destacam o conhecimento por intermédio do policiamento repressivo realizado pela Polícia Judiciária, com a localização do corpo de delito; de matéria publicada pelos órgãos de comunicação; e da denominada denúncia anônima. Por oportuno, saliente-se que a denúncia anônima ou apócrifa é chamada também como notitia criminis inqualificada. Notitia Criminis de cognição indireta, mediata: Acontece quando o delegado de polícia fica sabendo do crime por intermédio de comunicação oficial ou formal. Por sua vez a notitia criminis de cognição indireta e mediata se subdivide em: – Notitia criminis de cognição provocada ou qualificada, quando a autoridade policial toma conhecimento do fato por requisição do juiz ou do representante do Ministério Público; e – Delatio criminis, quando a comunicação é feita por intermédio do requerimento formulado pela vítima ou por qualquer um do povo, contendo a narração do fato com todas as circunstâncias, a individualização do suspeito e a indicação das provas. Saliente-se que quando a delatio criminis for subscrita pelo requerente recebe o nome jurídico de notitia criminis qualificada. A delatio criminis pode ser: – Simples: quando apenas comunica o fato; e – Postulatória: quando, além de comunicar o fato, postula a adoção de medidas. Notitia Criminis de cognição coercitiva: Ocorre com a prisão em flagrante, hipótese em que o delegado de polícia toma conhecimento do crime no momento da prisão ou apresentação do autor do crime. 12.1. Ação Penal A ação penal é o instrumento pelo qual o Estado verifica a veracidade da imputação formulada pelo representante do Ministério Público, que recai sobre o acusado da prática de ato tipificado como crime, com a consequente imposição de pena. O art. 100, do Código Penal, classifica a ação penal em: – Ação penal pública; ou – Ação penal de iniciativa privada. A ação penal pública tem como titular exclusivo o representante do Ministério Público, isto é, somente o membro do Parquet tem legitimidade ativa para propor tal ação. Por sua vez a ação penal pública subdivide-se em: – Ação penal pública incondicionada; e – Ação penal pública condicionada. A ação penal é pública incondicionada quando o membro do Ministério Público não depende de qualquer condição de procedibilidade para agir. A ação penal é pública condicionada quando o representante do Ministério Público depende de certas condições de procedibilidade para ingressar em juízo. As condições exigidas por lei podem ser a: – Representação do ofendido; ou – Requisição do Ministro da Justiça. A representação do ofendido é a manifestação da vítima ou de seu representante legal, autorizando o delegado de polícia a investigar o crime e o membro do Ministério Público a ingressar com a ação penal respectiva. A requisição do Ministro da Justiça é o ato político e discricionário pelo qual o Ministro da Justiça autoriza o representante do Ministério Público a propor a ação penal pública nas hipóteses legais. 12.2. Inícios do Inquérito nos crimes de Ação Pública Incondicionada Consoante se infere dos incisos I e II e dos §§ 1º e 2º, do art. 5º, do CPP, o inquérito policial nos crimes de ação pública incondicionada se iniciam das seguintes formas: – de ofício (iniciativa da própria autoridade policial) por auto de prisão em flagrante, portaria e despacho do delegado de polícia; – por requisição do juiz ou representante do Ministério Público; e – pela delatio criminis (requerimento da vítima ou de qualquer outra pessoa). “Art. 5º. Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: I – de ofício; II – mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo. § 1º. O requerimento a que se refere o nº II conterá sempre que possível: a) a narração do fato, com todas as circunstâncias; b) a individualização do indiciado ou seus sinais característicos e as razões de convicção ou de presunção de ser ele o autor da infração, ou os motivos de impossibilidade de o fazer; c) a nomeação das testemunhas, com indicação de sua profissão e residência. § 2º. Do despacho que indeferir o requerimento de abertura de inquérito caberá recurso para o chefe de Polícia.” 12.2.1.   Início de ofício, mediante auto de prisão em flagrante, portaria ou por despacho do delegado de polícia Tendo em vista o princípio da obrigatoriedade e da oficialidade, previsto no inciso I, do art. 5º, do CPP, o inquérito policial deve ser instaurado a partir do momento em que a autoridade policial tomou conhecimento do fato criminoso. A portaria da autoridade policial deverá descrever, na medida do possível, as circunstâncias e os dados conhecidos do crime e de seu autor. Além disso, a peça inicial do inquérito policial deverá enquadrar a conduta do agente ao tipo penal. Tais informações são os parâmetros da investigação criminal, que pretende responder as seguintes indagações: – Qual o crime? – Quando ocorreu? – Onde ocorreu? – Como foi praticado? – Por quê? – Quem é a vítima? – Quem é o autor do Crime? 12.2.2.   Início por requisição do Juiz ou do representante do Ministério Público Conforme determina os arts. 5º e 40, do CPP e inciso VIII, do art. 129, da CF. “Código de Processo Penal Art. 5º. (…) II – mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo. Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia. Constituição Federal Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (…) VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;” O inquérito policial, nestes casos, somente se inicia com o despacho da autoridade, declarando a sua instauração. Isto significa que a requisição do juiz ou do representante do Ministério Público não tem o poder de desencadear o inquérito, que depende da decisão do dirigente da Polícia Judiciária. É importante esclarecer que a doutrina tradicional, de forma equivocada, sempre ensinou que autoridade policial não pode se recusar a instaurar o inquérito, pois a requisição tem natureza de determinação, de ordem, muito embora inexista subordinação hierárquica. Com o devido respeito, esse entendimento jurídico está superado, uma vez que o delegado de polícia não pode ser transformado em um ser autômato, que obedece cegamente a ordem do juiz ou promotor de justiça, sem questionar e analisar o teor da determinação. Com fundamento nesta nova orientação doutrinária, a autoridade policial, em casos excepcionais, poderá deixar de instaurar inquérito policial, requisitado pelo magistrado ou membro do Parquet, dentre outras hipóteses, quando o fato noticiado não constituir crime. Ressalte-se, entretanto, que o desconhecimento das circunstâncias do crime e da sua autoria não pode ser alegado pela autoridade policial, para deixar de atender a requisição de instauração do inquérito. De outra parte, o delegado de polícia deverá adotar as providências necessárias para evitar que o representante do Ministério Público, ao requisitar a instauração de inquérito policial, assuma indiretamente a presidência do feito, determinando as diligências e estabelecendo regras como a autoridade policial deve apurar o delito. 12.2.3.   Início pela delatio criminis, quando a comunicação de um crime é feita pela vítima ou qualquer um do povo Na hipótese de a autoridade policial indeferir o pedido de instauração de inquérito formulado pela vítima ou por qualquer outra pessoa, caberá recurso ao Chefe de Polícia, nos termos do § 2º, do art. 5º, do CPP. “Art. 5º. (…) § 2º. Do despacho que indeferir o requerimento de abertura de inquérito caberá recurso para o chefe de Polícia.” A doutrina entende que tal recurso poderá ser encaminhado ao superior imediato, Delegado de Polícia que detém a chefia da Polícia Judiciária (no Estado de São Paulo o cargo é denominado Delegado Geral de Polícia e nos outros Estados da Federação o cargo é chamado de Chefe de Polícia) ou ao superior hierárquico mediato, Secretário responsável pela Pasta da Segurança Pública. A delatio criminis é mera faculdade atribuída a qualquer um do povo no sentido de auxiliar a atividade repressiva exercida pela Polícia Judiciária. Entretanto, há algumas pessoas que, em razão do seu cargo ou da sua função, estão obrigadas a notificar no desempenho de suas atividades. Entre estes casos, se destacam: – Incisos I e II, do art. 66, da Lei das Contravenções Penais. “Omissão de comunicação de crime Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente: I – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de representação; Il – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal: Pena – multa.” – Art. 45, da Lei nº 6.538/1978 (Lei que dispõe sobre os serviços postais) “Art. 45. A autoridade administrativa, a partir da data em que tiver ciência da prática de crime relacionado com o serviço postal ou com o serviço de telegrama, é obrigada a representar, no prazo de 10 (dez) dias, ao Ministério Público Federal contra o autor ou autores do ilícito penal, sob pena de responsabilidade.” 12.3. Início do Inquérito nos crimes de ação pública condicionada O inquérito policial nos crimes de ação pública condicionada se inicia: – por representação do ofendido ou de seu representante legal. A representação é simples manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal. A doutrina não exige que tal documento se revista de maiores formalidades, basta que o ofendido autorize expressamente a Polícia Judiciária instaurar inquérito policial, para apuração do delito. – por requisição do Ministro da Justiça. Tal documento deve ser encaminhado ao chefe do Ministério Público, que requisitará diligências à Polícia Judiciária, no sentido de elucidar as circunstâncias e a autoria do delito. O inquérito policial nos crimes de ação pública condicionada à representação também pode começar mediante auto de prisão em flagrante. Neste caso, a vítima deverá ratificar o flagrante até a entrega da nota de culpa, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. 12.4. Início do Inquérito nos crimes de ação privada O inquérito policial nos crimes de ação privada se inicia com a apresentação do requerimento do ofendido, de seu representante legal ou sucessores, conforme estabelecem o § 5º, do art. 5º e os arts. 30 e 31, do CPP. “Art. 5º. (…) § 5º. Nos crimes de ação privada, a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la. Art. 30. Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá intentar a ação privada. Art. 31. No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.” Vale lembrar que o art. 35, do CPP, que estabelecia que a mulher casada não podia exercer o direito de queixa sem consentimento da marido, salvo quando estivesse dele separada ou quando a queixa fosse contra ele, foi revogado pela Lei nº 9.520/1997, uma vez que o mencionado dispositivo contrariava o § 5º, do art. 226, da Constituição Federal. O § 5º, do art. 226, da Carta Magna, dispõe que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. De outra parte, o inquérito policial nos crimes de ação privada, após o relatório final, será encaminhado ao juízo competente ou será entregue ao requerente, nos termos do art. 19, do CPP. “Art. 19. Nos crimes em que não couber ação pública, os autos do inquérito serão remetidos ao juízo competente, onde aguardarão a iniciativa do ofendido ou de seu representante legal, ou serão entregues ao requerente, se o pedir, mediante traslado.” O inquérito policial nos crimes de ação privada também pode começar por intermédio de prisão em flagrante, nesta hipótese o ofendido deverá ratificar o flagrante até a entrega da nota de culpa, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. Em suma, as peças inaugurais sobre as quais a autoridade policial determina a instauração de inquérito policial são: – Portaria; – Requisição Judicial ou Ministerial; – Representação da vítima de crime de ação pública condicionada; – Requerimento da vítima de crime de ação privada; – Auto de Prisão em Flagrante; – Auto de Resistência; e – Auto de Apresentação espontânea. 13. RITO O inquérito policial não possui rito preestabelecido, tendo em vista a sua natureza relativamente inquisitiva. Efetivamente, como foi afirmado, o inquérito é um procedimento, porque enfeixa um conjunto de diligências investigatórias voltadas à elucidação das infrações penais, sem observar um rito formal e determinado. Em outras palavras, significa que não há necessidade de seguir uma ordem rígida na realização das diligências. Para que se tenha um parâmetro na elaboração do inquérito policial, divide-se didaticamente o procedimento em três etapas: – Início – instauração; Na portaria o delegado deve determinar todas as diligências que vislumbrar necessárias, requisitando as perícias imprescindíveis à comprovação das circunstâncias e autoria do delito. – Instrução – materialização das investigações criminais; Tendo em vista a natureza do inquérito policial, de instrumento de promoção de justiça criminal, o interrogatório, na medida do possível, deverá ser realizado ao final desse procedimento, com o objetivo de proporcionar ao investigado a oportunidade de refutar as suspeitas que recaem sobre sua pessoa, exercendo, desta forma, o chamado “contraditório mitigado”. – Conclusão – análise das provas, tipificação da conduta e representação pela decretação da prisão cautelar. 14. INCOMUNICABILIDADE O art. 21, do CPP, prevê a possibilidade da decretação da incomunicabilidade do indiciado, durante a realização do inquérito policial. “Art. 21. A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir. Parágrafo único. A incomunicabilidade, que não excederá de 3 (três) dias, será decretada por despacho fundamentado do juiz, a requerimento da autoridade policial, ou do órgão do Ministério Público, respeitado, em qualquer hipótese, o disposto no art. 89, III, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 4.215, de 27 de abril de 1963).” O mencionado dispositivo elenca duas condições para a efetivação dessa medida: quando o interesse da sociedade ou conveniência da investigação o exigir. A finalidade dessa providência é impedir que a comunicação do preso com terceiros venha a prejudicar o desenvolvimento da investigação. É relevante destacar que somente o juiz pode decretar a incomunicabilidade do indiciado, mediante despacho fundamentado, demonstrando o preenchimento das condições estabelecidas pela lei. A norma, também, estabelece o prazo improrrogável de 3 (três) dias de duração desta medida coercitiva. O juiz depende para decretar a incomunicabilidade, da representação da autoridade policial ou do requerimento do representante do Ministério Público. Saliente-se que tal medida não alcança o advogado, nos termos do parágrafo único, do art. 21, do CPP, que menciona expressamente o inciso III, do art. 89 (atual art. 7º, III), do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Vale lembrar que parte da doutrina entende que a incomunicabilidade do indiciado não foi recepcionada pela nova ordem constitucional. Os doutrinadores que defende essa corrente aduzem que o art. 21, do CPP, foi revogado pelo inciso IV, do art. 136, da CF, que proíbe a incomunicabilidade durante o estado de defesa. Os estudiosos neste assunto argumentam que se a Constituição Federal proíbe o mais, também proíbe o menos. Em sentido contrário, outra corrente doutrinária entende que a proibição está relacionada com crimes políticos ocorridos durante o estado de defesa. Atualmente, predomina o entendimento de que o art. 21, do CPP, é inconstitucional. 15. PRAZOS PARA ENCERRAMENTO O art. 10, do CPP, estabelece os prazos de encerramento do inquérito policial. “Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 (dez) dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 (trina) dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela”. O procedimento investigatório deve ser encerrado no prazo de 30 (trinta) dias a partir da data da instauração, se o indiciado estiver solto. Na hipótese de não ser possível concluir o procedimento no prazo de 30 (trinta) dias, notadamente, nos casos mais complexos ou em que há necessidade de realização de provas periciais, o delegado de polícia deverá solicitar a dilação de prazo, fundamentando o pedido com as razões que o impediram de encerrar o feito no tempo legal. De acordo com o art. 16, do CPP, o inquérito poderá ser devolvido à Polícia Judiciária quando o Ministério Público entender que falta uma diligência imprescindível para a denúncia. “Art. 16. O Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia.” Vale lembrar que, se o juiz discordar dessa devolução, cabe Correição Parcial contra referida decisão. De outro lado, o procedimento investigatório deve ser encerrado no prazo de 10 (dez) dias, se o indiciado estiver preso. Neste caso, o prazo de 10 dias será contado da data da efetivação da prisão. É importante registrar que, na hipótese de o indiciado estar preso, não será possível a dilação do prazo de encerramento do inquérito. Nesta hipótese, não pode haver dilação de prazo, pois se presume que, se a pessoa está presa, os elementos de convicção foram suficientemente produzidos. A conclusão do inquérito fora do prazo estabelecido acarreta o relaxamento da prisão do indiciado e responsabilidade no âmbito criminal e administrativo ao policial civil desidioso. O delegado de polícia deverá dedicar especial atenção no que se refere à contagem do prazo de conclusão do inquérito, nos casos em que o indiciado estiver preso. Apesar de se tratar de prazo de Direito Processual (conta-se a partir do primeiro dia útil seguinte), como se relaciona à restrição da liberdade, o prazo de 10 (dez) dias deve ser contado de acordo com o Direito Penal (conta-se o dia do começo e exclui se o do final). É importante consignar que a legislação especial estabelece outros prazos para a conclusão do inquérito policial: – Se o inquérito estiver tramitando perante a Justiça Federal, o prazo será de 15 (quinze) dias, prorrogável por mais 15 (quinze) se o indiciado estiver preso, conforme estabelece o art. 66, da Lei nº 5.010/1966 – Lei Orgânica da Justiça Federal. “Art. 66. O prazo para conclusão do inquérito policial será de quinze dias, quando o indiciado estiver preso, podendo ser prorrogado por mais quinze dias, a pedido, devidamente fundamentado, da autoridade policial e deferido pelo Juiz a que competir o conhecimento do processo”. (grifei) Parágrafo único. Ao requerer a prorrogação do prazo para conclusão do inquérito, a autoridade policial deverá apresentar o preso ao Juiz. – Nos crimes contra a economia popular, o prazo é de 10 (dez) dias, estando o indiciado preso ou não, nos termos do § 1º, do art. 10, da Lei nº 1.521/1951. “Art. 10. Terá forma sumária, nos termos do capítulo V, título II, livro II, do Código de Processo Penal, o processo das contravenções e dos crimes contra a economia popular, não submetidos ao julgamento pelo Júri. § 1º. Os atos policiais (inquérito ou processo iniciado por portaria) deverão terminar no prazo de dez dias”. (grifei) – Nos crimes previstos na nova Lei de Tóxicos, o prazo para conclusão do inquérito será de 30 (trinta) dias, se o indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, se estiver solto, podendo o referido lapso temporal ser duplicado, de acordo com o art. 51, da Lei nº 11.343/2006. “Art. 51. O inquérito policial será concluído no prazo de 30 (trinta) dias, se o indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, quando solto. Parágrafo único. Os prazos a que se refere este artigo podem ser duplicados pelo juiz, ouvido o Ministério Público, mediante pedido justificado da autoridade de polícia judiciária.” 16. CONCLUSÃO O relatório final é a conclusão do inquérito. Nesse relatório deve haver uma classificação jurídica do crime, bem como a análise dos elementos de convicção produzidos no inquérito policial. Isto não que dizer que, necessariamente, se deva concluir pela apuração da autoria e materialidade de um crime. Melhor explicando, diante do apurado, com fundamento no princípio da verdade real, o delegado de polícia, entre outras hipóteses, poderá concluir pela: – Inexistência do fato; – Inocência do investigado; e – Existência de uma causa excludente de antijuridicidade e culpabilidade. O relatório poderá ser: – Terminativo: quando conclusivo; – Requisitório: quando, além de conclusivo, a autoridade policial representa pela decretação da prisão preventiva ou provisória; e – Complementar: atende diligências requisitadas pelo representante do Ministério Público. É importante salientar que o relatório final não deve ser apenas um resumo do apurado ou uma espécie de índice remissivo do que se encontra juntado aos autos. O relatório deve demonstrar o domínio que o delegado de polícia tem na ciência da investigação criminal e na área do direito, circunstância que justifica a inserção da atividade exercida pelas autoridades policiais no rol das carreiras jurídicas. 17. ARQUIVAMENTO Tendo em vista o princípio consagrado no inciso XXXV, do art. 5º, da CF, que estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, o inquérito policial concluído será encaminhado obrigatoriamente ao Poder Judiciário. Como ficou consignado anteriormente, o principal objetivo do inquérito é a busca da verdade real e não o oferecimento da denúncia pelo representante do Parquet. Portanto, não tem fundamento o encaminhamento e arquivamento do inquérito policial pelo Ministério Público. Desta forma, o arquivamento do inquérito só pode ser determinado pelo juiz mediante pedido fundamentado do representante do Ministério Público. Na hipótese de o juiz discordar do pedido de arquivamento, remeterá os autos ao Procurador-Geral de Justiça, conforme determina o art. 28, do CPP. Neste caso, o Procurador-Geral de Justiça poderá: – Designar outro Promotor de Justiça para oferecer a denúncia (princípio da independência funcional). O Promotor de Justiça designado não pode recusar-se, pois quem está denunciando é o Procurador-Geral; e aquele estará apenas executando (trata-se de delegação); – Devolver os autos para diligências complementares; e – Insistir no arquivamento. Nesse caso, o Poder Judiciário não poderá discordar do arquivamento. “Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender”. Em caso de competência originária, o pedido de arquivamento formulado pelo Procurador-Geral vincula o juiz, ou seja, não cabe nenhum tipo de recurso dessa decisão. Saliente-se que uma vez arquivado o inquérito policial, não poderá ser promovida a ação privada subsidiária da pública. Em regra, não existe recurso contra decisão que determinou o arquivamento do inquérito policial. Entretanto, o ordenamento jurídico vigente contempla hipótese em que há recurso contra decisão de arquivamento: Nos crimes contra a economia popular, caberá recurso de ofício, de acordo com o art. 7º, da Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951. “Art. 7º Os juízes recorrerão de ofício sempre que absolverem os acusados em processo por crime contra a economia popular ou contra a saúde pública, ou quando determinarem o arquivamento dos autos do respectivo inquérito policial”. (grifei) Se o tribunal der provimento a esse recurso, o inquérito policial será remetido ao Procurador-Geral de Justiça. É oportuno sublinhar que o inquérito policial arquivado só poderá ser reaberto com novas provas, conforme determina o art. 18, do CPP. “Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.” No mesmo sentido a Súmula nº 524 do STF. “Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.” Finalmente, registre-se que não existe arquivamento em ação privada, pois o pedido de arquivamento feito pela vítima significa renúncia do direito de queixa, situação relacionada como causa de extinção da punibilidade, no inciso V, do art. 107, do Código Penal. “Art. 107. Extingue-se a punibilidade: (…) V – pela renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada.” 18. INQUÉRITOS EXTRAPOLICIAIS Em regra, os inquéritos policiais são realizados pela Polícia Judiciária e presididos por delegado de polícia de carreira, por força do que dispõe o § 4º, do art. 144, da CF. Entretanto, o parágrafo único, do art. 4º, do CPP, estabelece a possibilidade de o inquérito policial ser realizado por outras autoridades administrativas, desde que esta atribuição esteja expressamente prevista em lei. “Art. 4º. (…) Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”. Portanto, existem raríssimos casos em que o procedimento investigatório criminal não é realizado pela Polícia Judiciária: – Comissões Parlamentares de Inquérito, consoante estabelece o § 3º, do art. 58, da CF. “Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. (…) § 3º. As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”. (grifei) – Crime cometido nas dependências da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, nos termos da Súmula nº 397, do STF.  “O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito” (grifei) – Inquérito policial militar, consoante se infere do § 4º, do art. 144, da CF. “Art. 144. (…) § 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” (grifei) – Crime cometido por juiz. Se o crime cometido pelo juiz for inafiançável ele pode ser preso. A autoridade policial lavra o Auto de Prisão em Flagrante e imediatamente o encaminha ao Tribunal de Justiça, inclusive o preso. O inquérito policial instaurado contra juiz é presidido por um desembargador sorteado no Tribunal de Justiça. – Crime cometido por representante do Ministério Público. Se o crime cometido pelo membro do Ministério Público for inafiançável ele pode ser preso. A autoridade policial lavra o Auto de Prisão em Flagrante e imediatamente o encaminha ao Procurador-Geral de Justiça, inclusive o preso. O inquérito policial instaurado contra representante do Ministério Público é presidido pelo Procurador-Geral de Justiça ou um promotor de justiça por ele designado. Finalmente, registre-se que a atribuição de presidir inquérito destinado à apuração de crime falimentar, que era dos magistrados, passou para os delegados de polícia, por força do que dispõe o art. 187, da Lei nº 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. “Art. 187. Intimado da sentença que decreta a falência ou concede a recuperação judicial, o Ministério Público, verificando a ocorrência de qualquer crime previsto nesta Lei, promoverá imediatamente a competente ação penal ou, se entender necessário, requisitará a abertura de inquérito policial.” (grifei)
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-84/inquerito-policial-sob-a-optica-do-delegado-de-policia/
Provas e o exercício do contraditório na construção qualitativa do inquérito policial
O presente artigo tem por objetivo o estudo da aplicabilidade do princípio constitucional do contraditório no âmbito do inquérito policial, bem como a compreensão acerca de sua natureza jurídica. Para tanto, faz-se necessário tecer alguns apontamentos sobre a teoria geral das provas e a qualidade que estas devem ser produzidas durante a fase investigatória do processo penal uma vez que as mesmas servirão como a base sólida para o desenvolvimento justo e efetivo da futura ação penal, buscando-se assim, a justiça na decisão bem como a segurança jurídica.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO Os conflitos entre os indivíduos remontam de muito tempo atrás, desde que o mundo é mundo existem pessoas se desentendendo, não cumprindo com suas obrigações, matando, morrendo, enfim, necessitando de um poder imparcial que, acima delas, pudesse resolver e julgar tais controvérsias sem pender para nenhum dos lados. O que nem sempre foi assim, visto que interesses pessoais acabavam falando mais alto e esse julgamento ficava comprometido. Porém, um tema que estava sempre presente era o da prova, instituto que foi sofrendo inúmeras modificações, acompanhando a evolução dos direitos humanos e até da tecnologia, mas sempre sendo crucial para o desenlace de um litígio.  Assim, no presente artigo, no primeiro capítulo irá se analisar o instituto da prova e o direito à ela como um direito constitucionalmente garantido para que ocorra uma efetiva prestação jurisdicional. Já no segundo capítulo será analisado o conteúdo da prova, a sua validade, a tormentosa questão das provas obtidas por meios ilícitos e as espécies de provas. No terceiro capítulo, por fim, será feita uma análise da prova como instrumento no inquérito policial e a grande discussão acerca da aplicação do contraditório e da ampla defesa no âmbito dessa peça investigativa. 2.  O DIREITO À PROVA COMO UM DIREITO CONSTITUCIONAL Permeia toda a Carta Magna inúmeros princípios que norteiam a atuação dos três poderes, quais sejam, o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, instituída tal separação há tempos por Montesquieu. Tais princípios, sem pretender entrar na discussão ampla sobre o tema, não pretendem ser absolutos no que tange à sua aplicação, necessitando-se de um juízo de ponderação quando da sua utilização em casos concretos, principalmente quando tais princípios confrontarem-se diretamente. Ainda assim, podem ser considerados a base de um ordenamento jurídico, firmando entendimentos basilares que nos auxiliam quando da interpretação dos textos legais. O primeiro deles é o princípio do acesso à justiça. Esse princípio tem como destinatário principal o legislador, mas atinge a todos os jurisdicionados (cidadãos) indistintamente. Infere-se desse princípio que ninguém pode mais ser impedido de ir a juízo deduzir sua pretensão perante o Poder Judiciário. Vale destacar que o princípio em questão encontra respaldo na Constituição Federal, em seu art. 5º, XXXV, que diz: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”; em seu inciso LIV aduz: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”; por fim, no art. 5º, LV aduz: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. O princípio do acesso à justiça tem como essência preservar a garantia do cidadão de ter a tutela jurisdicional adequada, de ter uma prestação imediata do juiz à sua necessidade emergente, seja ele pessoa física, jurídica ou ente despersonalizado. O que é protegido pelo princípio do acesso à justiça não é somente a prerrogativa do cidadão ingressar em juízo, entrar com uma ação, como se diz no jargão popular, esse princípio vai além, ele visa resguarda todo o caminho percorrido pelo processo de forma que ele se desenvolva respeitando os preceitos constitucionais, principalmente.   Um princípio decorrente do princípio do acesso à justiça é o da inafastabilidade da jurisdição, ou seja, o julgador não pode se eximir de sentenciar alegando obscuridade ou lacuna na lei (art. 126 do Código de Processo Civil) devendo, quando isso ocorrer, utilizar-se dos princípios gerais de direito, dos costumes, da analogia, da equidade, elencados no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e defendidos pela doutrina. Assim, a decisão do magistrado será obtida por meio de sua livre convicção, seu livre convencimento, que pede a Constituição que seja motivado, sob pena de nulidade (art. 93, IX, CF). Preenchidas as condições da ação e os pressupostos processuais, deve o juiz, obrigatoriamente, pronunciar-se sobre o mérito da pretensão do autor, concedendo ou negando a tutela jurisdicional a ele solicitada. Também encontra estreita conexão com o princípio da inafastabilidade da jurisdição, o princípio da imparcialidade do juiz, que é uma garantia de justiça para as partes, tendo elas o direito de exigir a presença de um juiz imparcial[1]. O princípio do acesso à justiça foi trazido à baila exatamente por que ele engloba o procedimento probatório, de modo a elucidar questões como a licitude e as garantias de que devem ser revestidas a produção de uma prova no processo. Tais garantias servem, em última análise, para assegurar a justiça das decisões, justiça essa que só é alcançada por um juízo imparcial, como fora anteriormente dito. O procedimento probatório, por representar o momento central do processo, não pode sofrer nenhum vício que possa prejudicar uma das partes e a busca pela verdade no processo, pois caso isso ocorra, todo o processo estará comprometido, sendo passível de nulidade. Daí afirma-se a necessidade de observância desses princípios durante o procedimento probatório para que este seja o mais transparente possível. Em conclusão, pode-se afirmar que a garantia do acesso à justiça, consagrado no plano constitucional, é a garantia ao próprio direito de ação e o direito de defesa, tendo como conteúdo o direito ao processo, com as garantias do devido processo legal. [2] O princípio do contraditório é um princípio constitucional que deve ser aplicado em todos os tipos de processo: civil, penal, administrativo, e não só no processo penal como previa a Constituição anterior à Constituição Federal de 1988. O contraditório é inerente às partes litigantes (autor, réu, denunciado e chamado ao processo), pois todo aquele que tem alguma pretensão material no litígio pode invocar o contraditório na sua defesa e de sua tese, concretizando assim o exercício pleno de defesa, uma consequência da igualdade dinâmica, cabendo ao Estado no plano jurídico suprir possíveis desigualdades para buscar a justiça em suas decisões. O princípio acima colacionado deve ser compreendido em dois sentidos. O primeiro é a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes; já o segundo sentido é a prerrogativa que as partes possuem de reagirem processualmente aos atos que lhes forem desfavoráveis, exteriorizando suas manifestações frente ao que foi argumentado pela parte contrária, concretizando a dialeticidade processual, ou seja, perante a afirmação de uma realidade pelo autor (tese), a sua negação/afirmação é feita pelo réu (antítese) e dessa negação/afirmação é construída a sentença (síntese), considerando estarem autor e réu em situações subjetivas análogas. O direito à prova, nítida manifestação do contraditório no processo, significa que as partes têm o direito de realizar a prova de suas alegações, bem como de fazer a contraprova do que tiver sido alegado pela outra parte. O destinatário da prova é o juiz de modo que o mesmo não pode indeferir a realização de determinada prova sob o fundamento de que já se encontra convencido da existência do fato ou da própria questão incidental ou de mérito posta em causa. Todavia, cabe frisar que o juiz tem a prerrogativa de determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou que sejam protelatórias. Tudo isso com base na busca do ideário da verdade real, sempre que possível [3]. Deve-se observar, em consonância com as peculiaridades do processo sobre o qual esteja sendo aplicado, o princípio do contraditório, alcançando diferente incidência no penal e no civil. Dessa forma, uma ofensa ao princípio do contraditório caracterizaria cerceamento de defesa, causa de anulação do processo ou do procedimento e o seu desrespeito poderiam gerar decisões inesperadas, baseadas em premissas infundadas que não foram apresentadas para possível contraprova. O referido instituto não admite a existência, para os litigantes e seus advogados, de procedimento ou processo secreto, sejam no âmbito administrativo ou judicial (art. 5º, LV, CF). O que se admite, entretanto, é o procedimento ou processo sigiloso, o que garante o bom desenrolar das investigações, proibindo-se que terceiros estranhos ao processo, ou mesmo a imprensa, tomem conhecimento do que está acontecendo, podendo vir a prejudicar o resultado final e a interferir no procedimento probatório. O segredo de justiça é medida excepcional que visa resguardar o interesse social ou a intimidade da parte. A ocorrência de tal princípio no processo civil se manifesta em todos os três tipos clássicos de processo (conhecimento, execução e cautelar) e independe também do meio pelo qual o processo se desenvolve, seja de jurisdição contenciosa ou voluntária. Entretanto, cumpre salientar, que parte da doutrina entende que não existe contraditório no processo de execução, o que é equivocado, pois o mesmo existe mas de forma diferida, dado o notório desequilíbrio entre devedor e credor. Nessa toada, parece notório que o equivoco na afirmativa de ausência de contraditório na execução se posta em não se atentar para o fato de que o que certamente inexiste é a discussão relativa ao mérito do crédito do exequente, pois que não será objeto de perquirição, por parte do magistrado, a existência ou não acerca do crédito cobrado, pois que tal investigação com posterior debate já ocorrera, quer no processo de conhecimento anterior, originado em sentença (título executivo judicial), ou, ainda, ocorrerá em sede de embargos à execução (ação própria, geradora de processo de conhecimento) ou mesmo a impugnação no cumprimento de sentença, esse, procedimento incidente ao processo de conhecimento[4]. Em análise a citação processual, esta é ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que em face dele foi ajuizada pretensão, de modo a ensejar sua manifestação no processo diante do pedido do autor. É ato pelo qual implementa o contraditório no processo civil, que se iniciou com o ajuizamento da ação pelo autor. Diversas são as atitudes que o réu pode tomar quando citado, de modo que o mesmo pode concordar com o pedido do autor ou então deduzir respostas. Somente a possibilidade que se dá ao réu de se manifestar no processo atende ao postulado do contraditório, não sendo necessário que de fato deduza resposta ou outra manifestação positiva diante do pedido do autor. Ponto relevante da matéria é o que se refere à situação do contraditório quando se é deferida liminar inaudita altera pars, como no caso da antecipação da tutela de mérito. O contraditório continua existindo porém, como no processo de execução, ele será diferido. O contraditório concedido em medida liminar inaudita altera pars existe, só que o mesmo será postergado para um momento posterior ao procedimento. Aliás, a própria provisoriedade dessas medidas indica a possibilidade de sua modificação posterior, por interferência da manifestação da parte contrária. Como decorrência do princípio da paridade das partes, o contraditório significa dar as mesmas oportunidades para as partes e os mesmos instrumentos processuais para que possam fazer valer os seus direitos e pretensões, ajuizando ação, deduzindo resposta, requerendo e realizando provas, etc. Essa igualdade de armas (par conditio), não significa, entretanto, paridade absoluta, mas sim tratar as partes com igualdade quando as mesmas estiverem em igualdade de situações processuais. Passando a análise do princípio da ampla defesa, ele permite às partes a adequada dedução de alegações que sustentem sua pretensão (autor) ou defesa (réu) no processo judicial e no processo administrativo, com a consequente possibilidade de fazer a prova dessas mesmas alegações e interpor os recursos cabíveis contra as decisões judiciais e administrativas. Feitas as alegações, os titulares da garantia da ampla defesa têm o direito à prova dessas mesmas alegações. O direito à prova, pois, está intimamente conectado com a ampla defesa e dela é indissociável. No que tange a ampla defesa, essa se procederá de duas formas: por meio da defesa técnica e da autodefesa. A defesa técnica é aquela produzida por profissional habilitado, o advogado, que possui o jus postulandi, salvo exceções e casos em que o advogado é dispensável, como na Justiça do Trabalho. A autodefesa é o direito garantido ao réu de fazer-se presente com as próprias desculpas e com as próprias exceções toda vez que se acusa ou se aja contra ele em determinado procedimento. Tanto a defesa técnica quanto a autodefesa são vertentes diversas e complementares da mesma garantia, qual seja, a do contraditório e da ampla defesa. A plenitude e a efetividade do contraditório indicam a necessidade de se utilizarem de todos os meios idôneos cabíveis e necessários para evitar que a disparidade de posições no processo possa incidir sobre seu êxito, condicionando-se a uma distribuição desigual de forças. Tanto por parte de quem age quanto por parte de quem se defende em juízo, devem ser asseguradas as mesmas possibilidades de obter a tutela de suas razões, buscando assim a concretização de um processo justo e pautado no interesse público. Os princípios do contraditório e da ampla defesa asseguram ao réu ampla oportunidade de defesa (art. 5º, LV, CF), contrapondo-se à tese exposta pelo autor (tese/ antítese). Ambos os princípios respeitam dois elementos integrativos e que o constituem: a informação (citação, intimação, notificação) e a reação (com a devida exceção quanto à revelia nos casos de direitos disponíveis) [5]. O juiz deverá, no momento do julgamento, apreciar e valorar todas as provas que lhe foram apresentadas, pois caso não o faça, ele estará infringindo o princípio do contraditório. A cláusula do devido processo legal, em princípio, não visava questionar a substância ou o conteúdo dos atos do Poder Público, mas sim assegurar o direito a um processo regular e justo sem pensar num primeiro momento em dar garantia ao cidadão a ampla defesa e ao contraditório. Esse pensamento passa a mudar a partir de 1980, quando se incorporou a cláusula do due process of Law, que se resumia na busca constante pela proteção substantiva dos direitos e liberdades civis assegurados no Bill of rights, que nada mais é do que a promoção da proteção dos direitos fundamentais contra ações invioláveis e arbitrárias do Estado. No ordenamento jurídico pátrio, esse princípio somente ganhou forma expressa a partir da Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso LIV.   Preceitos fundamentais como o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal, o juiz natural, dentre outros, são direitos subjetivos das partes, que sempre deverão ser observados para que se possa atingir o fim colimado do processo que é a justiça nas decisões. As garantias constitucionais devem ser sempre postas acima da lei ordinária para que o exercício da jurisdição seja efetivo. Assim, toda vez que se violar um princípio ou norma constitucional processual que desempenhe função de garantia, a consequência será a ineficácia do ato praticado em violação à Lei Maior. Nesse diapasão, surge a temática das provas obtidas por meios ilícitos que são aquelas que infringem normas de natureza material e as provas ilegítimas, que são aquelas produzidas contrariamente a normas de índole processual, ainda que estas estejam inseridas na Constituição (contra constitutionem), como por exemplo as provas produzidas sem observância ao princípio do contraditório, acima descrito. Tais provas são inadmissíveis, passíveis de gerar nulidade absoluta e serão como se elas não existissem no processo, ocasionando o seu desentranhamento dos autos, visto que o julgador não poderá utilizá-las para formar o seu convencimento. No que diz respeito à produção das provas, entende-se que ela só é válida se feita na presença concomitante de partes e do juiz, de forma que a prova que é produzida sem a presença do juiz será tida como inválida, assim como a que for produzida sem a presença de uma ou ambas as partes, isto porque as partes não terão como se defender do que foi dito ou provado, e sendo assim, as provas produzidas nessas circunstâncias não poderão fazer parte da formação do convencimento privado do julgador, pois se assim fizer, poderá prejudicar a parte ausente. Dessa afirmação deriva-se outro princípio, o do juiz natural, presente no art. 5º, LIII da CF/88, o qual deve ser entendido sob os seguintes aspectos: ninguém poderá ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; entre os juízes pré-constituídos surge a regra do que é considerado competente para aquela demanda; e só a Constituição Federal pode instituir o juízo e fixar a sua competência. Este princípio deve sempre ser compreendido junto com outros princípios fundamentais como o direito à ampla defesa e ao contraditório de modo que estes são espécies daquele, pois como se sabe, a CF/88 assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, o contraditório e a ampla defesa. Para um país que se considera democrático e que ao longo de sua história revelou certa fragilidade histórico-política, é de suma importância que se respeite os chamados princípios constitucionais nos processos judiciais ou administrativos, pois não há democracia nem Estado de Direito se não há respeito à Constituição. Observando-se o devido respeito que deve ser dado à Constituição e dando uma devida prestação jurisdicional ao cidadão, sem postergação, o devido processo legal terá conseguido atingir seu objetivo dentro de um país que preza ser reconhecido como um país democrático. 3. A QUALIDADE DA PROVA COMO COROLÁRIO DE UM DIREITO Quanto aos princípios da prova são três: o da auto-responsabilidade das partes, onde estas assumem as consequências de sua inatividade, negligência, erro ou atos intencionais; o da audiência contraditória, ou seja, toda prova admite contraprova (princípio do contraditório); e o princípio da aquisição ou comunhão, onde a prova não pertence a parte que a produziu e sim à justiça. A prova, uma vez juntada no processo, pertence ao mesmo e não mais às partes, como assevera o princípio da comunhão da prova. Primeiramente, cumpre salientar, que o direito à prova hoje, deve ser visto como um direito fundamental já que ela irá influir na decisão do magistrado que foi formatada a partir de um contraditório. Partindo agora para um estudo mais efetivo e específico do tema delimitado, passa-se neste tópico a tratar do conceito de prova, de como ela deve ser constituída, a que objetivo ela se propõe, a quem incumbe o ônus de sua comprovação, das suas distintas classificações e, por fim, das suas subclassificações, se assim se pode chamar, as provas diretas e indiretas.Podem ser encontrados na doutrina um sem número de conceituações referentes ao instituto da prova, não sem razão, já que ela é considerada “a alma do processo”. Além de servir para formar o convencimento do julgador, o destinatário mor desse instrumento, de forma a justificar a sua decisão perante a sociedade, a prova tem o intuito de convencer todos os partícipes daquela lide de que o que ela corrobora é o correto, o verdadeiro. Segundo preleciona Júlio Fabbrini Mirabete[6], “A prova é o meio que as partes se utilizam para tentar fazer nascer na cabeça do juiz a convicção sobre a veracidade do que está sendo alegado, uma vez que não existe hierarquia entre provas, o livre convencimento motivado do juiz que irá prevalecer.” Trata-se de uma materialização necessária para que se vislumbre e se constate a veracidade do que se está alegando perante as partes integrantes do litígio, principalmente perante o magistrado, que irá confirmar ou não a verossimilhança da prova com o que possivelmente ocorreu, formará desse modo, um juízo positivo ou negativo acerca da existência dos fatos para, ao final, formar seu livre convencimento motivado nela, até como uma forma de embasamento palpável, visto que a sociedade atual é exigente no que se refere à reconstrução dos fatos da vida para o processo. Ou seja, a prova para ter validade, terá que ser produzida perante o juiz e a parte contrária, excetuando-se os casos de produção antecipada de provas que tem natureza cautelar e que o contraditório é diferido. Dessa forma, a prova nada mais é do que uma arma, à qual o Estado irá apreciar, possibilitando que se concretizem nela os fatos ocorridos na vivência real, dando esse direito a ambas as partes, para que de forma isonômica possa garantir a efetiva tutela do direito lesionado e a busca pela verdade real, fim maior, do processo. Como se verá adiante, os meios de prova não são absolutos, uma vez que encontram seus limites na inadmissibilidade das chamadas provas ilícitas ou ilegítimas. Esse instrumento que materializa, ou melhor, transporta os fatos ocorridos na vida para dentro do processo, é utilizada em qualquer ramo, mas, principalmente, no âmbito penal e civil. Quanto ao tema, alguns doutrinadores afirmam que existe uma teoria geral para a formulação das provas, em ambas as searas, outros já afirmam que no âmbito penal as provas devem ser produzidas com muito mais qualidade, visto que em um processo penal estariam em jogo garantias individuais muito mais sensíveis, como a liberdade. Todavia, de acordo com entendimento dominante hodiernamente, não existem diferenças entre as provas produzidas no processo civil e as provas produzidas no processo penal. No que tange aos possíveis sentidos da prova, predomina na doutrina a sua divisão em: prova como meio, prova como atividade e prova como resultado. A atividade se resumiria como sendo o conteúdo essencial da prova, ou seja, são os motivos ou razões extraídas dos meios sobre a existência ou inexistência dos fatos. Já na acepção como meio, a prova seria a manifestação formal do fato e, por fim, na acepção de resultado, a prova seria nada mais que o convencimento do juiz, ou seja, o poder que ele tem de influir nesse convencimento. A prova passa a ser a fixação do fato controverso submetido a percepções obtidas e deduções extraídas de acordo com o ordenamento jurídico, cabendo assim, às partes e ao juiz de ofício, trazer os fatos ao processo, segundo forma prescrita em lei, podendo-se assim, chegar a uma definição de prova que seria a soma dos fatos produtores da convicção apurados no processo. As regras jurídicas se modificam, mas nem por isso elas devem deixar de dar a prova judiciária a mesma segurança às demais ciências empíricas para assegurar desse modo, que o livre convencimento se desenvolva com racionalidade, livre do arbítrio. Busca-se o acertamento dos fatos probandos. Esse sistema aberto de livre convencimento faz com que o juiz necessite buscar em outras áreas do saber instrumentos para que ele possa entender e valorar as provas apresentadas. Mas a prova não se resume apenas ao seu conceito funcional aqui apresentado no sentido de formar o convencimento do juiz, ela também sofre muitas influências externas, como da imprensa, por exemplo. No momento da apresentação das provas, o juiz deve dar às partes a oportunidade de contraditá-las, decorrência lógica do princípio do contraditório abordado no capítulo antecedente. Muitas das vezes, a busca pela verdade ocorrerá de forma indireta, por meio das chamadas provas indiretas, como testemunhas, documentos e perícia, uma vez que os fatos investigados no processo aconteceram no passado, não sendo possível reconstituí-los. Passa-se agora a análise do que seria o objeto da prova, que segundo Leonardo Greco[7] , “O objeto da prova seria o apontamento dos fatos relevantes e controversos, em que o primeiro se resumiria como sendo aquele em que a parte poderia extrair consequências jurídicas favoráveis a sua pretensão enquanto que os controversos são aqueles que modificam ou impedem aquela pretensão para o réu”. O objeto da prova confunde-se muito com o seu objetivo. Assim sendo, objeto da prova nada mais é do que a demonstração do fato alegado ao magistrado responsável pela causa, para que ele possa solucionar o litígio. Existem também os fatos que carregam em si uma presunção de veracidade, dada a eles pelo ordenamento jurídico, no entanto, devem eles estar em consonância com os demais fatos apurados e provas produzidas, para que assim o juiz possa verificar a compatibilidade entre eles e proferir sua decisão. Um conceito geral de prova seria o processo mental pelo qual se estabelecem as conclusões que decorrem de determinadas premissas. A produção antecipada de provas tem como finalidade fazer com que a parte não corra o risco de perder uma prova que mais adiante lhe poderia ser imprescindível, tudo isso com base na celeridade e efetividade da tutela jurisdicional que é buscada hoje em dia com o processo. Em regra, as provas são produzidas no processo, durante a chamada fase de instrução, entretanto, nada impede que elas sejam realizadas perante outras autoridades, como por exemplo, a inquirição de testemunhas através de carta precatória. Passando agora a análise do ônus da prova, previsto no art. 333 do CPC, pode-se defini-lo como a faculdade ou encargo que tem a parte de demonstrar no processo a real ocorrência de um fato que alegou em seu interesse, ou seja, o ônus da prova, em regra, cabe à parte que alegou os fatos (o autor).  Entretanto essa regra não é absoluta, pois o juiz poderá, no curso da ação, determinar de ofício diligências para dirimir dúvidas sobre pontos relevantes. Isso tudo o juiz faz para buscar a verdade real dos fatos. Finalmente, passa-se a análise mais profunda da prova direta e indireta. No caso da prova direta, a prova versa diretamente, como o nome sugere, sobre a hipótese, e o grau de confirmação da hipótese coincide com o grau de aceitabilidade da prova, que é determinado mediante uma série de pressupostos e inferências realizadas pelo sujeito que se aproveita da prova, sobre a base na qual se estabelece o grau de credibilidade racional da proposição que constitui o elemento prova. Por outro lado, quando o elemento de prova é diretamente percebido, em condições normais, pelo sujeito que o utiliza, podem entrar no jogo inferências muito simples, como as que se referem à fidelidade das percepções e a capacidade de analisar os dados empíricos. Tal valoração pode ser muito mais complexa quando for necessário estabelecer a credibilidade ou a autenticidade do elemento de prova. De acordo com Michele Taruffo [8] , “Si hay duda, el problema se resuelve tomando em consideración todas las circunstancias relevantes y extraindo a partir de ellas inferências que permitan establecer hasta qué punto se puede considerar que el documento representa la verdade de los hechos.” Por outro lado, diferentemente do que ocorre com a prova direta, a prova indireta existe quando há uma única prova a respeito da hipótese sobre o fato, ou seja, há uma prova que demonstra a existência de um fato diferente daquele afirmado pela hipótese. Entretanto, a partir da descrição desse outro fato, que é chamado de secundário, é possível extrair inferências que afetam a fundamentação da hipótese em questão. Desse modo, de forma detalhada, examinou-se neste item de estudo, além do conceito de prova, as suas classificações, objetos e formas de constituição, que irão auxiliar no entendimento ao longo do trabalho. Dando prosseguimento ao tema das provas, passa-se agora a análise da prova no que tange a sua validade, que pode ser investigada tanto na sua constituição, na sua propositura ou na sua origem. A validade da prova pode ser auferida pela presença do contraditório e pela presença concomitante do juiz e partes no momento de produção da prova, o que denota eficácia àquela instrução. A prova é produzida para gerar efeitos em um processo, mas é transportada documentalmente para outro processo. A partir do momento que é reconhecida a validade desse documento como meio de prova, devido à existência de uma sentença transitada em julgado, tal prova é admitida pelo sistema jurídico pátrio, desde que respeitado o princípio do contraditório assim como em todos os outros casos. Muitos doutrinadores afirmam que o empréstimo da prova produzida em outro processo é contrário ao princípio da imediação, já que a prova deve ser produzida pelo juiz da causa, devido também ao princípio da identidade física do juiz previsto no art. 131 do CPC que aduz: “o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegado pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”.      Nesse sentido, a utilização da prova emprestada retiraria a validade e a eficácia desse meio de prova.  Tal princípio já é mitigado muitas vezes quando da produção da prova testemunhal por carta precatória, por exemplo, onde o juiz que colhe o depoimento não é o juiz da causa, e mesmo assim tal meio de prova permanece eficaz. Mesmo com a existência dessa corrente doutrinária, não se pode negar a eficácia da prova emprestada que, obviamente respeitando certas regras, é válida como meio de prova no ordenamento jurídico brasileiro. Deve-se ter em mente que o papel que uma prova possa desempenhar em um processo, no que se refere aos fatos e às pretensões dos litigantes, pode não ser necessariamente o mesmo papel, com a mesma importância e com o mesmo fim que terá no processo destinatário. Desse modo, o juiz do processo destinatário não fica adstrito à valoração dada àquela prova no processo de origem, ficando adstrito somente à eficácia da coisa julgada civil ou penal, podendo interpretar a prova emprestada e deduzir dela suas observações com a liberdade que lhe caberia se a prova fosse originária do processo em tela. O instituto da prova emprestada pressupõe alguns requisitos constitucionais. O primeiro deles é a prova emprestada ter sido produzida em processo formado entre as mesmas partes. Um segundo requisito, apontado pela autora Ada Pellegrini[9] em discordância com o que foi dito acima, “é o de que o contraditório no processo originário tenha sido instituído perante o mesmo juiz, que também seja o juiz da segunda causa”. Tal corrente não é adotada neste trabalho por se tratar de requisito que na grande maioria das vezes não pode ser observado, devido aos inúmeros ramos jurídicos e seus juízes especializados. Independentemente de posições distintas, no campo da legalidade da prova, são pressupostos essenciais: a observância dos princípios que regem a prova e a observância dos princípios que regem a prova documental, no processo em que a prova foi transportada. Pôde-se perceber ao longo do estudo acerca das provas, que elas podem se manifestar e se materializar em inúmeras espécies, chamadas de meios de provas, quais sejam: perícia, interrogatório, confissão, testemunha, reconhecimentos, acareações, documentos, indícios, dentre outros. Na correta definição de Júlio Fabbrini Mirabete[10] meios de prova são “as coisas ou ações utilizadas para pesquisar ou demonstrar a verdade: depoimentos, perícias, reconhecimentos etc.”.   A qualidade na produção de uma prova tem como consequência uma efetiva busca de uma tutela jurídica justa, e isso só é possível a partir do momento em que os princípios e garantias constitucionais são assegurados e respeitados. A partir do momento em que a parte é impedida de produzir a prova, ela passa a ser privada do meio de acesso à ordem jurídica justa, fim processual, inviabilizando o objetivo constitucional. O processo justo compreende de um lado, a adequação e a efetividade dos instrumentos processuais disponíveis e, de outro, a adequada tutela possível de ser alcançada no final do processo. O direito à prova deve ser entendido como elemento constitutivo das garantias constitucionais da ação e da defesa, podendo a parte atuar em ambas as esferas utilizando-se da prova para corroborar as suas afirmações com relações aos fatos que se quer provar, senão as garantias de ação e de defesa careceriam de conteúdo substancial, teriam alcance restritivo e limitado. O direito de ação é o direito de provocar o Estado, mexer com a inércia da jurisdição, acionando o Poder Judiciário para que ele faça a apreciação da lide em questão de forma imparcial. Trata-se de direito constitucional assegurado a todas as pessoas, como descrito no art. 5º, XXXV, CF, de modo que, a ação mais a jurisdição origina o processo justo, também compreendido dentro do conceito de garantia constitucional da ação. No entanto, o direito de ação não se resume a essa provocação da estática estatal, de forma que compreende também o direito à prova, conferindo às partes a possibilidade de utilização de todos os meios probatórios em direito admitidos, desde que, relevantes, úteis e pertinentes para a comprovação dos fatos alegados. E, caso houvesse um cerceamento desse direito, haveria uma impossibilidade de agir, de demonstrar as situações fáticas em que se baseiam a sua demanda. Consequência do direito de ação surge o direito de defesa em contraposição, para legitimar a atuação jurisdicional, sendo ambos baseados no princípio do contraditório e iguais em seus direitos, uma vez que ambos buscam ver comprovados na sentença os fatos que alegam. Nesse sentido, conforme os ensinamentos de Eduardo Cambi[11], “O direito de defesa consiste na possibilidade efetiva de reagir em juízo, com todos os meios processuais predispostos pelo ordenamento jurídico, para que o demandado possa fazer valer as suas próprias razões.” Dessa maneira, as mesmas garantias constitucionais do direito de ação estendem-se ao direito de defesa ao longo de todo o processo, gerando a chamada “paridade de armas”, prevalecendo a igualdade, a isonomia. Na mesma toada, a utilização do princípio do contraditório na valoração das provas está intimamente relacionada ao princípio da dialeticidade do processo, ou seja, para todo movimento realizado por uma das partes deve-se abrir uma oportunidade para que a outra parte responda a esse movimento com outro movimento, a fim de minimizar-lhe os efeitos. O direito à prova, nesse contexto, assegura, como já dito, a efetivação das garantias constitucionais, assim como do contraditório e garante a qualidade do provimento jurisdicional apresentado, não sendo apenas uma decorrência das garantias constitucionais da ação e defesa, mas sim, após a ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, também é uma regra de direito positivo, integrando o rol dos direitos fundamentais. Segundo preleciona o art. 322 do CPC, o rol de provas lá estabelecido não é taxativo, de maneira a admitir as provas atípicas. Assim, todo meio de prova que não seja ilícito é permitido, desde que seja legítimo, pertinente, relevante e possibilite à outra parte confrontá-lo, exercendo o seu direito de contraditá-la, o que valida e dá eficácia ao processo. Por mais amplitude que o direito à prova possa ter, assim como os outros direitos, ele não é absoluto, podendo sofrer interferências e restrições de outros direitos, restritivamente, é claro, devendo o juiz, novamente, atuar com base no princípio da proporcionalidade, caso a caso, motivadamente, sempre. Assim, a violação do direito à prova gerará um vício de nulidade da decisão do juiz, ou seja, toda vez que for proferida sentença sem produção de provas, ela está fadada à nulidade, até que ela seja declarada.   Quanto à prova como instrumento da verdade, conclui Leonardo Greco[12] que, “a prova vai cumprir aquela função social apontada por Devis Echandia: dar segurança às relações sociais e comerciais, prevenir e evitar litígios e delitos, servir de garantia dos direitos subjetivos e dos diversos status jurídicos”. Tal função social deve ser cumprida tanto no processo penal quanto no civil, independentemente das suas peculiaridades. Um dos temas mais intrigantes e controversos no que diz respeito às provas é auferir quando a prova é ilícita, não sendo, portanto “aproveitada” no processo, por mais que dela se infira nitidamente os fatos que desejam ser provados. São exemplos de provas ilícitas as efetivadas através de invasão de domicílio, violação de correspondência, tortura, escuta clandestina, etc. Assevera a Constituição Brasileira, em seu art.5º, LVI, a ineficácia, no processo administrativo ou judicial, da prova obtida por meios ilícitos, já a jurisprudência caminha no sentido da teoria intermediária, aplicando o princípio da proporcionalidade para cada caso concreto. No inquérito policial, por se tratar de peça informativa da denúncia ou da queixa, não está englobado na restrição com relação às provas ilícitas deste artigo, no entanto, alguns direitos devem ser assegurados. Segundo Nuvolone[13], “A prova será ilegal sempre que houver violação do ordenamento como um todo (leis e princípios gerais), quer sejam de natureza material ou meramente processual. Ao contrário, será ilícita a prova quando sua proibição for de natureza material, vale dizer, quando for obtida ilicitamente.” Existe um conceito legal de prova ilícita que pode ser encontrado no art. 157 do CPP que diz: “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”, devendo ser entregues a quem as produziu. Em outra classificação, de José Celso de Mello Filho [14], “A prova pode ser ilícita em sentido material e em sentido formal. A primeira ocorre quando a prova deriva de um ato contrário ao direito e pelo qual se consegue um dado probatório, e diz respeito ao momento de formação da prova; a segunda, quando a prova decorre de forma ilegítima pela qual ela se produz, muito embora seja ilícita em sua origem, dizendo respeito ao momento introdutório da prova, afrontando o direito processual.” Desse modo, deve-se passar a análise da teoria norte-americana denominada “fruit of the poisonous tree”, ou “Teoria dos frutos da árvore envenenada”. Segundo essa teoria, uma árvore envenenada não pode produzir bons frutos, ou seja, caso a prova seja derivada, direta ou indiretamente, da prova ilícita, se basearem, ou se originarem, ela também será ilícita, não podendo produzir efeitos, sendo inutilizáveis, mesmo que tiver sido produzida licitamente em momento ulterior, se acham contaminadas pelo vício transmitido pela ilicitude. Nesse ínterim, se o órgão da persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos elementos de informação, a partir de uma fonte autônoma de prova, que não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação causal, tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária. Essa teoria é mitigada pela incidência dos princípios da atenuação, da fonte independente e da exceção de boa-fé. O princípio da atenuação legitima a valoração das provas secundárias sempre que elas poderiam ter sido obtidas por outro meio autônomo e legal. Para o ordenamento jurídico brasileiro, bastaria que fosse possível a obtenção da prova por outro meio e estaria afastada a ilicitude. Contudo, mesmo que essas provas tenham sido obtidas por meios ilícitos e tenham sido desentranhadas do processo, o juiz, de uma forma ou de outra, já tomou conhecimento delas, tendo já comprometido a sua imparcialidade, já que não se poderá retirar de sua mente as conclusões que as provas lhe proporcionaram, até para a proteção do próprio magistrado. Por isso, mister se faz o afastamento do juiz que com elas teve contato, uma vez que a sua isenção fora maculada, segundo melhor doutrina. Todavia, o dispositivo que assim asseverava, deveria ter feito parte da reforma do CPP em 2008, mas fora vetado (artigo 157, §, 4º).   4. O INQUÉRITO POLICIAL E O CONTEÚDO DA INSTRUÇÃO EM CONTRADITÓRIO Para que se inicie um estudo acerca da prova como instrumento fundamental no inquérito policial, deve-se adentrar no estudo da evolução do instituto do “inquérito policial” e seu consequente histórico, sendo de suma relevância para conhecer e melhor entender o assunto, perceber a sua gradual evolução até o estágio em que se encontra. O “nascedouro do inquérito policial” surgiu com a Lei 2.033/1871, regulamentada pelo Decreto Regulamentar nº. 4.824 de 1871, determinando a incumbência aos delegados e subdelegados da tarefa de investigar os fatos supostamente criminosos e informar ao juízo competente para a formação de culpa do encaminhamento do material produzido aos promotores públicos[15]. Percebe-se, nesse momento, a divisão do inquérito policial em indagações anteriores e atos de documentação dessas indagações, concretizando o inquérito e estruturando-se o processo penal sob a proposta acusatória. Mudança relevante ocorreu com o advento da República, visto que a competência para legislar sobre matéria processual civil e penal também alcançou as unidades federativas, gerando uma ruptura na unidade legislativa da época. Nesse momento, o inquérito ganha o status de documento para formação da culpa por excelência, não sendo mais mero auxiliar. A unidade legislativa sobre matéria processual foi recuperada pela Constituição Federal de 1934, sendo mantidas pelas cartas magnas de 1946, 1967 e a atual vigente de 1988. Sobressai a questão de saber, segundo o autor Rovégno[16] que, “A verificação de um acontecimento, que se assemelha à descrição teórica de uma conduta tida como ilícito penal, impõe ao Estado uma atuação voltada a esclarecer as exatas circunstâncias desse fato.” Dito isto, afirma Paulo Rangel[17] que o inquérito policial tem uma função garantidora: “a investigação tem o nítido caráter de evitar a instauração de uma persecução penal infundada por parte do Ministério Público diante do fundamento do processo penal, que é a instrumentalidade e o garantismo penal”. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, deixa claro que tanto a garantia da ampla defesa quanto a do contraditório estão direcionadas para a mesma realidade jurídica.  Os incisos LIV e LV do referido artigo bem ilustram essa situação. Em conjunto com esse dispositivo, o art. 144 da CF delimita e descreve a polícia judiciária que atuará no desenvolvimento do inquérito policial, que, dentre outras características, é presidido pelo delegado de polícia. O primeiro inciso retro mencionado aduz que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Por devido processo legal entende-se a mola mestra de todos os outros direitos, chegando a se confundir com o próprio Estado Democrático de Direito, devendo ser observado em toda a atividade estatal potencialmente apta a atingir o patrimônio jurídico do indivíduo. Após análise profunda, chega-se à conclusão de que a “privação” inserida nesse inciso se refere a toda e qualquer forma de restrição, seja ela total ou parcial, definitiva ou temporária, hipóteses em que se enquadra o inquérito policial. Se a aplicação do direito ao devido processo legal não sofre restrição, seus direitos derivados, como o contraditório e a ampla defesa tampouco. Não pode mais se conceber a existência de um Estado Democrático de Direito, no qual exista ainda alguma seara (inquérito policial) que padece da cobertura do manto constitucional com todas as suas garantias inerentes. Uma interpretação desses incisos da Constituição de forma extensiva não é uma hipótese irreal, inconcebível dentro do ordenamento jurídico pátrio. Pelo contrário: configura-se na melhor solução ao dilema enfrentado. Trata o presente estudo à cerca do Inquérito Policial, seu conceito por alguns doutrinadores, suas características  e a  importância para a persecução penal. Desta feita, dispõe o artigo 4º do Código de Processo Penal: “Art. 4º. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”. Uma vez iniciada as investigações do inquérito policial (art. 5º CPP), seja através de portaria administrativa do Delegado de Polícia, agindo de ofício ou através de requisição do membro do Ministério Público, chegará determinado momento que o Delegado de Polícia terá que enviar estes autos ao titular da ação penal. O Inquérito Policial, segundo Eugênio Pacelli de Oliveira[18] , “Como regra é a iniciativa da ação penal a cargo do Estado, também a fase pré-processual penal e nos crimes comuns. É atribuída a órgãos estatais, competindo às autoridades administrativas, excepcionalmente, quando expressamente autorizada por lei e no exercício de suas funções, e a Policia Judiciária, como regra, o esclarecimento das infrações penais”. O inquérito policial pode ser definido como o conjunto de atos praticados pela função executiva do Estado com o escopo de apurar a autoria e materialidade de uma infração penal. Neste sentido, ensina Fernando Capez[19], “É o conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo”. Assim, o inquérito policial tem como principal objetivo a busca de indícios de autoria e de materialidade, a fim de que seja, então, remetido ao Representante do Ministério Público para que promova ou não a denúncia. Como se observa, segundo Pacelli[20], “o inquérito não é, absolutamente indispensável à propositura da ação penal, podendo a acusação formar o seu convencimento a partir de quaisquer outros elementos probatórios”.  Denota-se, por outro lado que no inquérito policial, não há acusação nem defesa, somente levantamento de fatos para uma possível denúncia / queixa-crime posterior. Por ser o inquérito policial um documento informativo, isto é, um instrumento para que seja levada a “notitia” ao membro do Ministério Público (ou ofendido) para a propositura da ação penal cabível, e levando em consideração o valor probatório relativo desta peça inquisitiva, fica claro que estas diligências policiais investigativas servem somente para informar o titular da ação penal de que houve uma infração penal e que tal sujeito é o indiciado como autor do crime.   Neste contexto, merece destaque a posição de Rovégno[21] sobre o assunto, “É o expediente escrito, produzido pelo órgão de polícia judiciária competente, onde são reunidas e documentadas todas as diligências levadas a efeito (e todos os resultados encontrados nessas diligências) durante a tarefa de esclarecer as circunstâncias de um fato que se apresentou inicialmente com a aparência de ilícito penal passível de sancionamento, confirmando ou informando essa aparência inicial e, esclarecendo, se possível, na hipótese confirmatória, a autoria da conduta.” Define-se o sistema processual brasileiro como sistema acusatório misto, ou seja, é formado por duas fases, uma inquisitorial, que caracteriza o momento da investigação, e outra acusatória. A corroborar com esse entendimento, Guilherme de Souza Nucci[22] assim define inquérito policial: “O inquérito policial é um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e de sua autoria. Seu objetivo precípuo é a formação da convicção do representante do Ministério Público, mas também a colheita de provas urgentes, que podem desaparecer, após o cometimento do crime. Não podemos olvidar, ainda, que o inquérito serve à composição das indispensáveis provas pré-constituídas que servem de base à vítima, em determinados casos, para a propositura da ação penal privada”. Percebe-se que todas as conceituações apresentadas trazem a sua contribuição para definir o que seja o inquérito policial, instituto tão caro à busca do Estado de Direito, principalmente no que diz respeito à área penal e processual penal. As características de um instituto também são relevantes na sua identificação. Dessa forma, segundo Paulo Rangel[23], o inquérito policial é inquisitorial, formal, sistemático, unidirecional, discricionário e sigiloso. Pelo fato de todo o poder de direção do inquérito estar nas mãos da autoridade policial, que pode iniciar as investigações da forma que julgar conveniente, sem regras determinadas, diz-se que o inquérito policial é inquisitorial. A formalidade do inquérito decorre do Código de Processo Penal que exige que as peças sejam escritas e assinadas pela autoridade policial. A terceira particularidade do inquérito policial é o fato de ser sistemático, ou seja, as peças devem ser juntadas aos autos obedecendo uma sequência lógica de modo à facilitar a compreensão dos fatos lá organizados como um todo. A exigência de que a autoridade policial não faça um juízo de valor ao longo das investigações no inquérito policial deriva da sua característica de ser unidirecional, ou seja, o objetivo precípuo do inquérito é de apurar as infrações penais supostamente cometidas. O inquérito policial é também discricionário, porque a autoridade policial, ao iniciar uma investigação, não está presa a nenhum tipo de formalidade determinada anteriormente, o que não se confunde com arbitrariedade, pois a autoridade não pode atuar movida por motivos pessoais sem qualquer respaldo em lei. E por fim, o sigilo do inquérito é de suma importância, na medida em que for necessário para esclarecer os fatos ou por interesse público. De acordo com previsão do Código de Processo Penal e de entendimento doutrinário representado por Guilherme Nucci, o inquérito policial pode ser instaurado de seis distintas formas, quais sejam: de ofício, por provocação do ofendido, por delação de terceiro (delatio criminis), por requisição de autoridade competente, pela lavratura do auto de prisão em flagrante e pela notitia criminis. Primeiramente, o inquérito pode ser iniciado de ofício quando a própria autoridade policial toma conhecimento da prática da infração penal, que seja de ação penal pública incondicionada, e instaura o inquérito policial objetivando apurá-la. De modo diverso ocorre quando o ofendido informa à autoridade policial a lesão ocorrida no seu bem jurídico protestando pela sua pronta atuação. Já quando outra pessoa leva até a autoridade policial a informação de ocorrência de alguma infração penal de iniciativa do Ministério Público, é chamada de iniciativa por delação de terceiro, delatio criminis. A autoridade competente, o juiz, o promotor ou o procurador da república, também podem exigir que se inicie o inquérito policial se entenderem que existem provas suficientes para tanto, sendo assim, espécie de instauração do inquérito por requisição da autoridade competente. Quando o agente for preso por alguma das situações descritas no artigo 302 do Código de Processo Penal, ou seja, quando for preso em flagrante, o inquérito policial se iniciará pela lavratura do auto de prisão em flagrante. E por último, o inquérito policial poderá ser iniciado pela notitia criminis, que é quando a autoridade policial, por meio de sua própria investigação, toma ciência da infração penal, quando ela é levada pela vítima ou quando é requisitada pela autoridade competente. Sendo assim, assevera Nucci[24] nas ações públicas condicionadas e nas ações privadas há a obrigatoriedade de provocação do ofendido, na forma de representação ou requerimento, respectivamente. Registra-se neste momento, que a princípio, o inquérito policial tem natureza complexa, porque nele são praticados atos de distintas naturezas administrativas, judiciais e jurisdicionais. Assim, o inquérito policial tem como principal objetivo a busca de indícios de autoria e de materialidade, a fim de que seja, então, remetido ao Representante do Ministério Público para que promova ou não a denúncia. Conforme conceitua Fernando da Costa Tourinho Filho[25], “O inquérito visa à apuração da existência de infração penal e a respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos que o autorizem a promovê-la. Apurar a infração penal é colher informações a respeito do fato criminoso. (…) Apurar a autoria significa que a Autoridade Policial deve desenvolver a necessária atividade visando descobrir, conhecer a verdadeira autoria do fato infringente da norma. Porquanto, não se sabendo quem o teria cometido, não se poderá promover a ação penal.” Nesse diapasão, entende Paulo Rangel[26] que a natureza jurídica do inquérito policial “é de um procedimento de índole meramente administrativa, de caráter informativo, preparatório da ação penal.” No entendimento de Caio Sérgio Paz de Barros[27], “O inquérito policial é um procedimento jurisdicionalizado, porque está sob o controle do juiz de direito e porque as autoridades oficiam sem interesse próprio e sob a égide do juiz de direito. É procedimento porque se concretiza na sucessão de atos concatenados, sem disposição – prévia e legalmente – estabelecida, bem como não desencadeado (o procedimento) por meio da ação.” Destarte, preceitua Rovégno[28], “O inquérito policial compõe-se de um conjunto de atos, administrativos e jurisdicionais, os primeiros essenciais (alguns deles obrigatórios) e os segundos eventuais e acessórios, reunidos numa única pasta, em razão de comungarem da mesma finalidade: apurar a verdade sobre um fato aparentemente criminoso.” Tendo em vista os posicionamentos supra citados, assim sendo, o jus acucusationis não se opera nessa fase uma vez que a acusação formal só se dará quando oferecida a denuncia ou a queixa, não ocorrendo nenhuma ofensa a defesa do acusado a ausência do contraditório no inquérito, pois é uma peça meramente informativa em que não há acusação formal. Outro ponto que merece ser destacado é que o processo é a síntese (somatório) dos atos que lhe dão corpo e da relação entre eles (procedimento), juntamente com as relações jurídicas entre os seus sujeitos (relação jurídica processual), tendo, portanto, o inquérito, natureza jurídica processual, visto que possui procedimento próprio previsto no Código de Processo Penal e relação jurídica entre o Estado, representado pela figura da autoridade policial, e o indiciado[29]. A identificação correta acerca da natureza jurídica do inquérito policial servirá para delimitar a incidência ou não de certos princípios constitucionais, mais especificamente do princípio do contraditório. Neste tópico da presente pesquisa, insta salientar a importância que possui a qualidade da prova no inquérito policial, servindo como elemento fundamental para o desenvolvimento das investigações e de suporte para a consequente instauração de instrução probatória em uma possível ação penal. A investigação não pode ser maculada por nenhum vício que, futuramente, enseje uma nulidade processual e ponha a perder todo um trabalho de perquirição anterior à ação penal e durante o seu trâmite. Segundo Rangel[30] “A valoração dos elementos colhidos na fase do inquérito somente poderá ser feita se em conjunto com as provas colhidas no curso do processo judicial, pois, sendo o inquérito, meramente, um procedimento administrativo, de característica inquisitorial, tudo o que nele for apurado deve ser corroborado em juízo”.  A doutrina majoritária entende ser inadmissível a condenação do réu com base apenas nas provas derivadas da investigação na fase do inquérito policial, pois que fora colhida sem a participação do indiciado, devendo, ao ser utilizada na fase processual, ser corroborada por provas produzidas naquele momento. Já foi dito em momentos anteriores que, a prova obtida por meios ilícitos é inadmitida pelo ordenamento jurídico brasileiro, previsão constitucionalmente defendida. A exceção é se a prova ilícita/ilegítima, for utilizada para favorecer o acusado, quando produzida por ele mesmo, hipótese em que transformar-se-á em legítima defesa e excluirá a ilicitude e o crime, por consequência. Destaca o autor Mirabete[31] que, “Para que a prova seja produzida com qualidade e posteriormente não prejudique o andamento do processo penal, se for o caso, alguns princípios devem ser observados, quais sejam: o da auto-responsabilidade das partes, a audiência contraditória, o da aquisição ou comunhão, oralidade, publicidade e livre convencimento motivado.” O exame de corpo de delito e perícias em geral podem ser realizadas na fase do inquérito, o que é até mais provável dada a necessidade de se colher vestígios o mais rápido possível. A perícia pode ser determinada por autoridade policial logo que chegar até o seu conhecimento a prática da infração penal, de acordo com o artigo 6º, VII, CPP, ou até a conclusão do inquérito. Esse é um exemplo de prova de suma importância que, se realizada infringindo qualquer garantia constitucional, poderá resultar em um processo penal viciado, dada a má qualidade probatória, quanto ao seu aspecto formal. A prova pode se materializar por diversos meios e pode possuir diversas funções, sendo a principal, ainda, o convencimento do magistrado, a busca pela verdade, mas esses objetivos só ganham corpo à medida em que forem produzidos mediante observância legal, ainda que em fase “pré-processual”, no intuito de fortalecer os mecanismos de controle dos resultados que gerará no processo. Como esclarece Leonardo Greco[32], como instrumento da verdade é que a prova vai cumprir sua função social, dar segurança às relações sociais e comerciais, prevenir e evitar litígios e delitos e servir de garantia aos direitos subjetivos.  O autor assim se manifesta: “A descoberta da verdade é o adequado elemento funcional do conceito de prova, como pressuposto de realização da justiça e da tutela jurisdicional efetiva dos cidadãos. Os obstáculos à realização desse objetivo devem ser, sempre que possível, removidos e as dificuldades em alcançá-los não devem atirar-nos no ceticismo ou na falácia de soluções redutoras, como as da verdade formal, do julgamento fortemente influenciado por presunções ou por valorações probatórias aprioristicamente estabelecidas.”  É de se observar, pois, que a prova é o instrumento básico fundamental para garantia do desenvolvimento processual justo, seja ele de qualquer espécie, penal, civil, administrativa, pois o que se busca é dar respaldo suficiente ao juiz da causa para que o mesmo possa proferir a sentença de mérito sem qualquer vicio, daí conclui-se ser a prova o “coração do processo”. Independentemente das divergências doutrinárias quanto a ser o inquérito policial processo ou procedimento, não se nega a exigibilidade do contraditório na sua formação, e não só dele, mas de todas as regras norteadoras do processo penal, tais como: oficialidade, verdade real, ampla defesa, indisponibilidade, dentre outros. A Constituição Federal de 1988, no seu art. 5º, inciso LV, dispõe que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Mais a frente, também no artigo referente aos direitos e garantias individuais, o legislador constituinte assegura ao preso a assistência de advogado (art. 5º, inciso LXIII). De modo que, o indiciado não pode ser considerado objeto da investigação, mas sim sujeito de direitos constitucionalmente garantidos que prevalecem na seara do inquérito policial. Destaca-se o posicionamento de Barros[33] , “Aqueles que suscitam a hipótese de ausência do contraditório firmam a sua opinião sob o argumento de que no inquérito policial as perquirições são de natureza jurídica administrativa, “sem acusação formalizada”, de modo que a ausência do contraditório não traria danos ao imputado.” O princípio do devido processo legal, já abordado em momentos anteriores, é garantia constitucional, artigo 5º, inciso LIV da CF/88, é direito fundamental, e deve estar presente para que seja assegurada a validade do processo. Como aduz Geraldo Brindeiro[34], “o devido processo legal não visa questionar o conteúdo dos atos do Poder Público, mas sim assegurar o direito a um processo regular e justo”. Esse princípio vem sempre associado ao princípio do contraditório, e ambos são assegurados aos litigantes em processo judicial ou administrativo. Fundamentado no artigo 125, I do Código de Processo Civil, registra-se as palavras de Nery Júnior[35], “Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis. O princípio do contraditório é manifestação do Estado de Direito, da igualdade partes e do direito de ação e, consequentemente, do direito de defesa, de forma que não sendo observado esse princípio corolário do direito, se configurará cerceamento de defesa, causa de anulação do procedimento ou processo”. Segundo Caio Sérgio Paz de Barros[36] o inquérito policial é “procedimento jurisdicionalizado, investigativo, inquisitivo, e, mediante a necessária observância do contraditório (…)”. Nesse sentido, cita-se o entendimento de Paulo Rangel[37], “Desnecessário o contraditório por três razões: primeiro, por ser um procedimento administrativo; segundo, porque os atos administrativos possuem atributos que lhes são próprios; e terceiro, em não havendo acusação, mas sim mera investigação dos fatos, o indiciado não precisaria se defender, utilizar-se do contraditório, que somente teria lugar se deflagrado processo judicial.” Todavia, se o Supremo Tribunal Federal já entendeu, julgando o RE nº.201.819-8[38], que os direitos fundamentais devem ser respeitados na esfera privada, subentende-se que, com maior força, devem ser respeitados judicial e administrativamente.  Nesse sentido, o processo deve ser visto como a busca pelo justo, de maneira democrática, seja em que ambiente for, desde que se busque a solução de pretensões relativas a direitos resistidos ou não, principalmente em se tratando de direitos fundamentais[39].  Sendo assim, não se pode cogitar a ausência do contraditório na perquirição penal, sendo que, até mesmo o Supremo Tribunal Federal, tem aceitado a efetividade do referido princípio nas relações privadas onde se encontra ausente a figura do Estado, – conforme corroborado pelos julgados abaixo – que dirá no inquérito policial, onde a presença do Estado é intensa, representada nas autoridades policiais que exercem o jus puniendi em nome do Estado. Outra decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que esclarece o tema referente à existência do contraditório no inquérito policial, é a decisão proferida pelo Ministro Relator Gilmar Mendes, em sede do HC 92.599-5/BA[40], em que o STF reconhece o direito ao contraditório no inquérito policial e, mais do que isso, reconhece a existência do contraditório fora dele, em qualquer procedimento investigatório, ainda que privado, devendo-se garantir a aplicabilidade dos princípios constitucionais fundamentais, como demonstra também a decisão anteriormente citada. O Habeas Corpus em tela questiona decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça que indefere pedido de juntada de laudo pericial ao inquérito policial sob a alegação de não ser necessária tal defesa em vista de ser o mesmo mero “procedimento investigatório e inquisitorial não envolto pelo contraditório”. Todavia, ao chegar essa demanda ao STF, a Corte máxima do país entendeu por assegurar a amplitude do direito de defesa, mesmo que em sede de inquéritos policiais, respaldando a tendência interpretativa de garantir aos investigados a máxima efetividade constitucional no que concerne à proteção dos direitos fundamentais (art. 5º, incisos LIV e LV). Nesse ínterim, o STF recentemente aprovou com nove votos favoráveis, a súmula vinculante nº.14, que assim expressa: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.” A súmula vinculante, com o conteúdo proposto, qualifica-se como um eficaz instrumento de preservação de direitos fundamentais, afirmou Celso de Mello. Percebe-se nitidamente, que o objetivo intentado pela súmula foi o de tornar mais efetivo direitos e garantias individuais, mais especificamente a publicidade e, por consequência, o direito ao contraditório, uma vez que dando amplo acesso ao advogado para que conheça os elementos de prova já colacionados ao inquérito policial permite a ampla defesa e consequentemente o exercício do contraditório dos direitos do indiciado. No mesmo sentido, assevera a Lei nº.8.906 de 1994, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu artigo 7º, inciso XIV que é direito do advogado “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos”. Com a edição da Lei nº.10.792/03, foi inserido no interrogatório judicial a figura do advogado, precedente que dá respaldo para que o advogado também esteja presente quando da oitiva do indiciado pela autoridade policial, como determina o artigo 6º, inciso V do CPP, de que essa oitiva deverá seguir os moldes do interrogatório policial, medidas que implicitamente confirmam a necessidade de defesa, igualmente do indiciado no inquérito e do acusado no processo, impedindo a violação do princípio do contraditório. Guilherme de Souza Nucci[41], assim obtempera: “Conjugando-se o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, associado à presunção de inocência, bem como ao direito constitucional ao silêncio, tem-se que o interrogatório do indiciado, na fase policial, longe do contraditório e despido de ampla defesa, pois não há necessidade da presença do advogado, (grifos nossos) deve revestir-se de toda lisura a ser realizado pela autoridade policial somente se o investigado desejar colaborar. Por outro lado, não devemos olvidar que há dois preceitos constitucionais que consagram esses princípios: o preso tem direito de ter assistência de advogado, quando detido (art. 5º, LXII, CF), bem como o de ter identificado o responsável por sua prisão ou interrogatório policial (art. 5º, LXIV,CF). As cautelas impostas devem-se ao controle de legalidade da prisão e à apuração da responsabilidade criminal como determina a lei.” Muitos autores justificam a ausência de contraditório no inquérito policial por inexistir acusado na fase de investigação criminal e pelo fato do inquérito possuir natureza inquisitiva, não comportando defesa que, segundo muitos, deve dirigir-se àquele que pode decidir sobre algo, como por exemplo o juiz, e não à autoridade policial. Desse modo, a possibilidade de defesa no inquérito só o tornaria conturbado, causando sérios gravames à futura relação processual penal.  Na perspectiva de José Frederico Marques[42], “Não se deve tolerar um inquérito contraditório, sob pena de fracassarem as investigações policiais, sempre que surja um caso de difícil elucidação. Infelizmente, a demagogia forense tem procurado adulterar, a todo custo, o caráter inquisitivo da investigação, o que consegue sempre que encontra autoridades fracas e pusilânimes. Por outro lado, a ignorância e o descaso relativos aos institutos de processo penal contribuem, também, decisivamente, para tentativas dessa ordem.”  Existem ainda, segundo André Rovégno[43], os posicionamentos intermediários como o de Antonio Scarance Fernandes, que, “Não acredita que se deva respeitar o contraditório no inquérito, por ser fase investigativa, mas acena com a possibilidade de defesa, não ampla, mas limitada ao resguardo dos interesses mais relevantes do suspeito.” A confusão conceitual entre processo e procedimento não é novidade na doutrina pátria, de modo que o legislador pode muito bem ter confundido os conceitos e ter dito menos do que desejava, restringindo a aplicação dessas garantias. O Supremo Tribunal Federal, já em 1981, proferiu decisão em Habeas Corpus confirmando a incidência da garantia da ampla defesa no inquérito policial, e o Tribunal Regional Federal afirmou que o contraditório e a ampla defesa deveriam existir no inquérito policial, sendo ele uma espécie de processo administrativo.  Questão importante que concerne ressaltar neste contexto é a promulgação da Lei 11.690 de julho de 2008, onde o art. 1º.  deu nova redação ao artigo 155 do Código de Processo Penal, in verbis, “Art. 155 – O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.” Desta feita, torna-se explícita a vedação da condenação baseada em provas exclusivas do Inquérito Policial, tendo como exceção as provas cautelares, irrepetíveis e antecipadas. Merece registro as considerações de Andrey Mendonça[44], onde pontua que, “A referida alteração consubstancia-se com o princípio do contraditório, previsto no art. 5º. , LV, da CF/88. Não veda a fundamentação das sentenças, pelo magistrado, baseadas nas provas do inquérito policial, contudo, veda a fundamentação exclusiva em tais provas.” Neste contexto, o que se observa é que o fundamento de não utilização das provas repetíveis, colhidas no inquérito policial, sem a ausência de contraditório, ressalta que as provas colhidas na fase investigatória devem ser obtidas com a oportunidade de contraditório para o indiciado.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-84/provas-e-o-exercicio-do-contraditorio-na-construcao-qualitativa-do-inquerito-policial/
A absurda tese da inafiançabilidade como meio para se negar direitos
O presente texto tem como intuito esclarecer alguns pontos quanto à inafiançabilidade como fundamento para negar-se a liberdade provisória. Destarte será feita uma breve analise do instituto da Liberdade Provisória quanto aos crimes tidos como Inafiançáveis, iniciando por alguns princípios de nosso ordenamento e, ao final, tecendo uma breve crítica ao discurso vazio em que muitos caem.
Direito Processual Penal
I) INTRODUÇÃO O presente texto tem como intuito esclarecer alguns pontos quanto à inafiançabilidade como fundamento para negar-se a liberdade provisória. Destarte será feita uma breve analise do instituto da Liberdade Provisória quanto aos crimes tidos como Inafiançáveis, iniciando por alguns princípios de nosso ordenamento e, ao final, tecendo uma breve crítica ao discurso vazio em que muitos caem. II) ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA Antes de adentrar aos princípios que nos são relevantes cumpre destacar o conceito de princípios na visão de Humberto Ávila[1]: “são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado das coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.” Deve se ter em mente que os princípios constitucionais são verdadeiras garantias em nosso sistema, não podendo ser de maneira alguma afastados. Compreendido este conceito, passam-se aos princípios (os principais em minha visão, muito embora outros possam ser relevantes), quais sejam: o estado de inocência, a dignidade da pessoa humana, do devido processo legal e da motivação das decisões judiciais. O do estado de inocência (ou presunção de inocência) nos dizeres de Eugênio Pacelli de Oliveira[2]: “proíbe a antecipação dos resultados finais do processo, isto é, a prisão, quando não fundada em razões de extrema necessidade, ligadas à tutela da efetividade do processo, e/ou da própria realização da jurisdição penal.”. Já Aury Lopes Jr.[3] afirma que “ sob a perspectiva do julgador, a presunção de inocência deve(ria) ser um princípio de maior relevância, principalmente no tratamento processual que o juiz deve dar ao acusado. Isso obriga o juiz não só a manter uma posição ‘negativa’ (não o considerando culpado), mas sim a ter uma postura positiva (tratando-o efetivamente como inocente).” Tal princípio encontra guarida em nossa Constituição (art. 5º, LVII) bem como no Pacto de San José de Costa Rica ( art. 8º, 2) e na Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão ( art.9º). Importante frisar que os princípios adotados na Convenção Americana passaram a integrar o rol dos direitos fundamentais, conforme determina o art.5,§2º/CR, portanto aplicáveis imediatamente por expressa determinação do art.5º,§1/CRº O princípio da dignidade da pessoa humana para Ingo W. Sarlet[4]: é “um valor guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem jurídica (constitucional e infraconstitucional), razão pela qual para muitos se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa.”. Este se encontra numa posição superior a qualquer outro em nosso ordenamento, e está positivado no art.1º, III da Constituição da República. O devido processo legal se subdivide em outros princípios, mas deve se ter em mente principalmente, nos dizeres Aury[5] que: “o processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas ( as regras do devido processo legal).”. Encontra-se também resguardado em nossa Constituição que assim dispõe: ” art.5º, LIV- ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. O da motivação das decisões judiciais, novamente nas lições de Aury[6]: serve para o controle da racionalidade da decisão judicial (…) Mais, a fundamentação não deve estar presente apenas na ‘sentença’, mas também em todas as decisões interlocutórias tomadas no curso do procedimento, especialmente aquelas que impliquem restrições de direitos e garantias fundamentais, como os decretos de prisão preventiva, interceptação das comunicações telefônicas, busca e apreensão etc.”  Tal princípio encontra guarida no art. 94, IX da Constituição. Passada esta sucinta análise dos princípios, já fica evidente (sem mesmo entrar no tema da inafiançabilidade) que tentar de qualquer forma proibir alguém de desfrutar da liberdade provisória é uma clara violação a nossa Carta Magna, tendo em vista que infringe diversos dispositivos da mesma. Impõe-se ainda lembrar dos ensinamentos de José Gomes Canotilho quanto à máxima efetividade das normas constitucionais: “Este princípio, também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (THOMA) é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)” Para encerrarmos esta primeira parte de nosso tema, cabe ressaltar que infringir um princípio é inadmissível. III) A LIBERDADE PROVISÓRIA Inicialmente, cumpre recordar que nosso Código de Processo Penal é de 1941, e que a prisão em flagrante tinha como resultado uma antecipação de culpa, sendo, portanto, a prisão à regra. A liberdade provisória só era aceita nos crimes tidos como afiançáveis. Tal situação só mudou com o advento da Lei. nº 6416/77 que adicionou o parágrafo único ao art. 310. Este determinou que a decretação de prisão preventiva em caso de prisão em flagrante só seria mantida com base em um dos fundamentos do art. 312. Mais do que isso, impôs ( tardiamente) que a liberdade seria a regra, enquanto a privação de liberdade deve ser sempre a exceção. Percebe-se então, que os delitos inafiançáveis, desde 1977 são passíveis de concessão de liberdade provisória. Desta maneira, urge ler atentamente a Pacelli[7]: “ A constituição de 1988 chegou, então absolutamente desatualizada em tema de liberdade provisória, trazendo uma enorme perplexidade ao renovar ou ressucitar a antiga expressão da inafiançabilidade, cujo único significado era ( e ainda é, para nós) a impossibilidade de aplicação do regime de liberdade com fiança. (…) O fato de a liberdade com fiança não ser permitida para determinados crimes, daí serem inafiançáveis, não poderá significar nunca a impossibilidade da aplicação da liberdade provisória sem fiança, tal como admitida no próprio texto constitucional ( art.5º, LXVI), porque isso implicaria a interpretação da norma constitucional a partir da legislação ordinária, o que é absolutamente inadmissível e mesmo impensável.” Com acerto Pacelli quando afirma que inafiançabilidade não diz nada mais que a impossibilidade de concessão de fiança (não fosse desta forma, a Constituição faria afirmação expressa o art. 310, parágrafo único do CPP). É notório que o legislador peca ao redigir diversos artigos, cabendo portanto aos doutrinadores desvendar e divulgar o verdadeiro sentido de normas mal redigidas, analisando-as conforme os princípios gerais de direito a fim de apontar os verdadeiros rumos que devem ser seguidos. Partindo para outro prisma da inafiançabilidade, é de se notar que nossa Constituição em nenhum momento recepcionou a prisão cautelar obrigatória, muito ao contrário, garante como direito fundamental auto-aplicável à presunção de inocência. Pacelli[8] com muita sabedoria afirma: ” é bem de ver que a Constituição da República, ao assegurar o princípio da não-culpabilidade, exige que todo tratamento destinado ao inocente tenha por base ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (art.5º, LXI) (…) Seja como for, a vedação da liberdade provisória ( art.44, Lei 11343/06), agravada com a inversão da regra constitucional que impõe a exigência de fundamentação de toda restrição  de direitos( pela citada lei, o juiz teria de fundamentar a liberdade, não a prisão)  , parece-nos inegavelmente inconstitucional. Inconstitucional, porque a manutenção obrigatória da prisão ( em flagrante) dispensa fundamentação e, o que é pior, dispensa fundamentação judicial. (…) Inconstitucional, também, porque parte do pressuposto da existência do crime e de sua autoria, no que se revela incompatível com o princípio da inocência.” Ora, toda prisão antes do trânsito em julgado é cautelar, e, assim, sendo deve ser devidamente fundamentada sob pena de se tornar antecipação de pena. Remetendo-se a lição de Aury[9]:” Deve-se considerar, assim, que o juízo de necessidade da prisão cautelar  é concreto, pois implica análise de determinada situação fática, pois é de essência das prisões cautelares o caráter de medidas situacionais. O juízo de necessidade não admite uma valoração à priori, no sentido kantiano, de antes da experiência, senão que demanda uma verificação in concreto.” De todo exposto, denota-se que a tentativa de vedação de liberdade provisória é flagrantemente inconstitucional, não havendo fundamento algum para que se afirme o contrário. Nosso Supremo Tribunal já decidiu acerca de tal questão: “EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL, PROCESSUAL PENAL E CONSTITUCIONAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRISÃO PREVENTIVA. GRAVIDADE DO CRIME. FUNDAMENTO INIDÔNEO. ADITAMENTO DA DECISÃO QUE INDEFERIU A LIBERDADE PROVISÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGO 44 DA LEI N. 11.343/06. INCONSTITUCIONALIDADE: NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DESSE PRECEITO AOS ARTIGOS 1º, INCISO III, E 5º, INCISOS LIV E LVII DA CONSTITUIÇAÕ DO BRASIL. EXCEÇÃO À SÚMULA N. 691-STF. 1. A jurisprudência desta Corte está sedimentada no sentido de que a gravidade do crime não justifica, por si só, a necessidade da prisão preventiva. Precedentes. 2. Não é dado às instâncias subseqüentes aditar, retificar ou suprir decisões judiciais, mormente quando a falta ou a insuficiência de sua fundamentação for causa de nulidade. Precedentes. 3. Liberdade provisória indeferida com fundamento na vedação contida no art. 44 da Lei n. 11.343/06, sem indicação de situação fática vinculada a qualquer das hipóteses do artigo 312 do Código de Processo Penal. 4. Entendimento respaldado na inafiançabilidade do crime de tráfico de entorpecentes, estabelecida no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição do Brasil. Afronta escancarada aos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana. 5. Inexistência de antinomias na Constituição. Necessidade de adequação, a esses princípios, da norma infraconstitucional e da veiculada no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição do Brasil. A regra estabelecida na Constituição, bem assim na legislação infraconstitucional, é a liberdade. A prisão faz exceção a essa regra, de modo que, a admitir-se que o artigo 5º, inciso XLIII estabelece, além das restrições nele contidas, vedação à liberdade provisória, o conflito entre normas estaria instalado. 6. A inafiançabilidade não pode e não deve — considerados os princípios da presunção de inocência, da dignidade da pessoa humana, da ampla defesa e do devido processo legal — constituir causa impeditiva da liberdade provisória. 7. Não se nega a acentuada nocividade da conduta do traficante de entorpecentes. Nocividade aferível pelos malefícios provocados no que concerne à saúde pública, exposta a sociedade a danos concretos e a riscos iminentes. Não obstante, a regra consagrada no ordenamento jurídico brasileiro é a liberdade; a prisão, a exceção. A regra cede a ela em situações marcadas pela demonstração cabal da necessidade da segregação ante tempus. Impõe-se porém ao Juiz o dever de explicitar as razões pelas quais alguém deva ser preso ou mantido preso cautelarmente. Ordem concedida a fim de que o paciente seja posto em liberdade, se por al não estiver preso.” (HC 97346, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 25/05/2010, DJe-116 DIVULG 24-06-2010 PUBLIC 25-06-2010 EMENT VOL-02407-02 PP-00369) As leis processuais penais devem ser lidas à luz da Constituição, JAMAIS o contrário como pretendem muitos “entendidos” do processo penal que fielmente seguem o legado de Manzini. Deve-se buscar sempre a máxima eficácia dos direitos fundamentais e não a restrição deles. III) CRÍTICA AO POPULISMO PENAL Não há como imaginar outro fundamento que não seja o da paz social àqueles que pregam o cárcere como solução da violência, cumpre então quebrar tal pensamento. Apropriando-me dos dizeres de Luiz Flávio Gomes, em seu artigo “Mais excessos de populismo penal” (o qual recomendo leitura, por ser sintético e preciso): “É um grande equívoco (da população, da mídia e do legislador) imaginar que leis penais mais rigorosas ‘solucionam’ o problema da criminalidade, da violência e da segurança pública. (…) De 1940 a 2009 o legislador brasileiro (atendendo as demandas punitivistas da população e da mídia) aprovou 122 leis penais, das quais 80,3 % de caráter punitivista (tese de doutoramento de Luis Wanderley Gazoto). Já são 70 anos de política criminal equivocada. Basta! É Hora de o Brasil abrir os olhos (de acordar para a realidade)” Explica Zygmunt Bauman[10]:” O discurso da lei e da ordem conduz a que aqueles que não possuem capacidade para estar no jogo sejam detidos e neutralizados, preferencialmente com o menor custo possível. Na lógica da eficiência, vence o Estado Penitência, pois é mais barato excluir e encarcerar do que restabelecer o status de consumidor, através de políticas públicas de inserção social” Completando tal crítica, volto a Aury[11]: “ A idéia de que a repressão vai sanar o problema é totalmente ideológica e mistificadora. Sacrificam-se direitos fundamentais em nome da incompetência estatal em resolver os problemas que realmente geram violência.” Por fim, relembro que a pena de prisão é um instituto falido, o qual não previne, não reeduca e não ressocializa, trata-se na verdade de um depósito de seres humanos, excluídos da sociedade, que criam e vivem suas próprias regras dentro de um sistema esquecido pelos governantes e sociedade. Voltando ao nosso tema principal, qual não seria o risco de obrigar uma pessoa a permanecer presa, tão somente por conta de um flagrante e por ser tratar crime inafiançável? Quem conhece o sistema penitenciário, sabe que antecipar uma pena por meio de um a prisão obrigatória (em sendo uma pessoa inocente) é um caminho desumano e irracional!
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-84/a-absurda-tese-da-inafiancabilidade-como-meio-para-se-negar-direitos/
A justiça comunitária e o papel da Defensoria Pública face á desjuridicização: Reflexões sobre uma nova forma de se construir uma Justiça mais humana
O presente artigo procura demonstrar, à luz da Antropologia Jurídica, aspectos positivos sobre a importância de se desenvolver um sistema penal informal de justiça, com o escopo de solucionar conflitos imediatos em comunidades carentes, mediante projetos de implementação de Justiça Comunitária e práticas de mediação, realizadas com o apoio da Defensoria Pública, através da capacitação de líderes locais.[1]
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO: O discurso filosófico sobre a legitimidade da punição penal tem, nos últimos tempos, provocado grande interesse da comunidade científica mundial, sobretudo por apontar, constantemente, aspectos negativos inerentes da jurisdição, dentre os quais: a ineficácia da prestação jurisdicional, a morosidade de seus procedimentos, a dificuldade do acesso a justiça, o alto custo que move a “máquina judiciária”, além da marcante atuação dos agentes públicos, feita muitas vezes de maneira desumana, seletiva e distante da realidade social.  A crise do sistema penal é a crise do sistema das classes dominantes, construída com base em uma cultura jurídica elitizada, que se afasta dos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da igualdade social, do acesso a justiça, dentre outros. “Em primeiro lugar, é um fato o incremento, tanto qualitativo quanto quantitativo, da delinqüência e da reincidência: é o primeiro signo da sua ineficácia em relação aos fins formalmente previstos. Mesmo assim, gerou-se coincidência sobre o fato de que o conteúdo dos códigos penais nem se ajusta aos requerimentos do grau de desenvolvimento da sociedade nem responde às aspirações dos indivíduos. Diversas pesquisas mediram o alto nível do chamado sentimento de “insegurança cidadã” (geralmente manipulado politicamente); constatou-se que o acesso a justiça está diferencialmente distribuído; que todo seu aparato formal, seus jargões, seus ritos, converteram-se num teatro do poder, farsesco e desacreditado”. [2]  Nesse sentido, a Antropologia Jurídica, ciência que estuda novas formas de se compreender questões que determinam a necessidade da composição de conflitos, demonstra que a Justiça Comunitária, em bairros periféricos, pode atuar de maneira mais igualitária diante do fenômeno judicial, fundamentando-se nos princípios que pautam o Estado Democrático de Direito, que aproximam, com uma maior precisão, os indivíduos da relação conflitual, podendo, dessa forma, ser uma alternativa positiva à justiça estatal. Com efeito, apontamos a Justiça Comunitária, como um exemplo de justiça equânime, que se alicerça no consenso, enaltecendo questões importantes, como o empoderamento da sociedade civil, da justiça participativa e, como já anteriormente assinalado, do tratamento igualitário entre as partes envolvidas, demonstrando que o Direito pode ser efetivado com civilidade, com equidade, principalmente para solucionar os conflitos das classes menos privilegiadas. “À administração imparcial e consistente das leis e instituições, quaisquer que sejam seus princípios substanciais chamarão de justiça formal. Se pensarmos em justiça, como sempre expressando algum tipo de igualdade, então a justiça formal requererá que, em sua administração, as leis e instituições sejam aplicadas igualitariamente (isto é, sempre da mesma forma) aos que pertencem à classe por elas definidas.”[3] Dentro desse contexto, a Justiça Comunitária assinala que a crise do sistema jurídico estatal deve ser encarada e aceita como uma necessidade de mudança de paradigma e pela tomada de consciência de se buscar soluções mais adequadas a cada caso, e que, se adaptem alternativamente ao ordenamento jurídico estatal. Para tanto, uma justiça mais apropriada à realidade social, deve, antes de tudo, se preocupar, com a participação maior das minorias e suas relações sociais, visto que estas compõem mais da metade daqueles que demandam judicialmente, justamente em razão das suas diferentes carências. A Justiça Comunitária é apenas um modelo complementar de realização de justiça penal e que não pretende substituí-la, podendo, no entanto, integrá-la, se houver necessidade a alguns casos, quando houver necessidade de se aplicar a mediação e a participação dos líderes comunitários em questões que envolvam a comunidade e os indivíduos integrantes da relação conflitual. “A falta de envolvimento estatal também não implica em um retorno à barbárie de tempos passados. Vários mecanismos alternativos prescindem de violência, correspondendo bem aos interesses cotidianos, concretos e que visam ao bem geral das comunidades menos favorecidas. Além disso, a Justiça Comunitária exige grupos sociais que sejam atuantes e participativos, em resposta à passividade que permeia a maioria das sociedades onde vigora o paradigma positivista. Também não é possível olvidar do fato de que as decisões nesse tipo de justiça são mais bem aceitas, visto que decorrem de relações processuais mais humanas do que as tradicionais.”[4] 1. A CRISE DO SISTEMA PENAL E A INVERSÃO DA PIRÂMIDE REPRESSIVA: A NECESSIDADE DE SE BUSCAR NOVAS FORMAS DE COMPOSIÇÃO DE CONFLITOS NA ESFERA PENAL Da análise da atual conjuntura processual penal, podemos ter a nítida constatação de que a justiça penal formal apresenta-se cada vez menos operante. Os tribunais se encontram assoberbados de processos e o número de juízes para decidir as causas, são insuficientes diante da quantidade de litígios em confronto com o lapso temporal. Com isso, as prisões ficam superlotadas, composta por uma clientela seletiva de excluídos, conseqüência de uma ideologia dominante, no dizer de Anyiar de Castro: “num processo que se denominou de inversão da pirâmide repressiva”. [5] O discurso filosófico sobre a legitimidade de punir esbarra na idéia errônea da prisão como solução a criminalidade ou na falsa idéia de que maior número de leis pode substituir o que o Estado negou ao indivíduo, vale dizer há simplesmente uma substituição da proteção às garantias individuais pela atuação do Estado Penal. No mesmo diapasão, verifica-se que o trabalho preventivo da criminalidade, não é feito nas Delegacias ou Juizados Criminais, com o intuito de facilitar o filtro dos processos encaminhados à justiça formal. Destarte, se a idéia de composição de conflitos fosse resolvida na própria comunidade, vale dizer, antes da formação do processo na justiça formal, haveria uma demasiada diminuição da violência na periferia urbana e conseqüente diminuição de processos criminais, daí a importante função da Justiça Comunitária: ser implantada nas localidades onde a criminalidade apresenta um alto nível de incidência. “El poder punitivo no es algo que tenemos nosotros en nuestras manos, que ejercemos los jueces o los penalistas, contra todo lo que creemos. Lo único que ejercemos y que podemos ejercer es el poder jurídico. Lo único que los jueces pueden decidir es si aquellos clientes previamente seleccionados por otras agencias y que éstas les llevan y les ponen delante, van a ser objeto, o no, de un proceso de criminalización secundaria Pero a esos clientes los seleccionan otros, los llevan otros, e incluso son otros os que llevan adelante el proceso de criminalización secundaria. No son los jueces los encargados de llevarlo a cabo, sino las agencias policiales y las agencias de ejecución o agencias penitenciarias. La ley que aplicamos también la hacen otros, o sea, los políticos. Es decir, el poder que tenemos como penalistas, es el poder de influir sobre la agencia judicial y nada más, en tanto que el poder de la agencia sobre la que podemos influir (y de hecho lo hacemos) es un poder reducido, limitado a decir sí o no, en ese pequeño número de casos que ostras agencias han seleccionado previamente y les llevado para que decidan.”[6] A resposta a explosão da violência na comunidade, se manifesta através da maneira pela qual os órgãos repressores do Estado atuam, enquanto poder, ou seja, com uma política de tolerância zero, a população responde com maior violência e as instituições repetem o erro, com a maior repressão, descambando em um ciclo vicioso de poder, que não consegue deter as desigualdades manifestadas através dessas diferenças. Numa palavra: para os desfavorecidos, maior punição; para os poderosos, tolerância, formando o que se chama de Estado Penal. “ A “tolerância zero” apresenta, portanto duas fisionomias diametralmente opostas, segundo se é alvo (negro) ou o beneficiário (branco), isto é, de acordo com o lado onde se encontra essa barreira de casta que a ascensão do estado penal americano tem como efeito-ou função- restabelecer e radicalizar”.[7] A idéia de se colocar o ser humano longe dos olhos da lei, e conseqüentemente, afastando-o dos agentes políticos, se manifesta pela própria elaboração de critérios em que se verifica nitidamente, com o tratamento dispensado ao infrator, muitas vezes realizado da pior maneira possível, quando do seu etiquetamento de “inimigo da sociedade”. Além da elaboração de leis penais mais severas, há os que defendem um direito processual virtual, sem cheiro, cor, presença ou percepções de sentidos, isolando o infrator do contato “civilizado”. Numa palavra: agentes públicos se utilizam de critérios formais mais autoritários, como interrogatório através de videoconferências, monitoramento eletrônico, regime disciplinar diferenciado (RDD), procedimentos que afastam, cada vez mais, do princípio da dignidade da pessoa humana, não importando se a pessoa nunca tenha ou teve a oportunidade de ser tratada como humana. “Uma importante pesquisa sobre o autoritarismo entre juízes, dirigida por uma equipe da Universidade de Berkeley, aplicou um instrumento capaz de descobrir personalidades de inspiração fascista a partir de um escalonamento: anti-semitismo, etnocentrismo diante de minorias, conservadorismo político-econômico e fascismo”.[8] 2. A ANTROPOLOGIA JURÍDICA E O ESTUDO DE NOVOS MECANISMOS PARA SE ADMINISTRAR A JUSTIÇA A antropologia jurídica é um ramo da antropologia que estuda os mecanismos aptos para se administrar a justiça e compor conflitos, através da análise de processos e institutos, podendo, dessa forma, ser realizada através de uma análise descritiva ou prospectiva a depender do estudo de grupos específicos. O estudo dessa ciência demonstra que, costumes, práticas indígenas, círculos de consenso, democracia participativa, regras de convivência de determinados grupos, podem ser utilizados para compor conflitos e integrar a justiça, pois, mais do que leis positivada, o Direito nasce e se desenvolve das relações sociais. “A Antropologia Jurídica estuda as lógicas que comandam os processos de juridicização, próprios de cada sociedade, através da análise de discursos (orais e/ou escritos), práticas e/ou representantes. Processos de juridicização envolvem a importância que cada sociedade atribui ao direito no conjunto da regulação social, qualificando (ou desqualificando), como jurídicas, regras e comportamentos já incluídos em outros sistemas de controle social, tais como a moral e a religião. A Antropologia Jurídica é uma disciplina indispensável ao Direito, porque analisa a atuação dos operadores do direito, sobretudo aqueles que vivem no Ocidente, e que deste o início de século XXI, vem questionamento o papel do Estado (talvez o maior mito jurídico moderno).”[9]  Além das normas positivas (códigos, leis, enunciados, etc.) do Estado, existe o direito extra-estatal, formado á partir de relações de uma determinada comunidade ou classe social, como por exemplo, o direito da favela, assinalado por Boaventura Sousa Santos, ou ainda aquele gerado como regra de conduta de uma determinada organização, como v.g., o código de ética da população carcerária, das prisões, ambos resultantes de um direito vivo, dinâmico, que se desenvolve para suprir as necessidades daquele determinado público-alvo, para a satisfação de seus interesses. [10]. Para Boaventura de Sousa Santos, o acesso a justiça, de igual maneira, enfrenta três sérios problemas agregados a própria administração da justiça: a disparidade de tratamento, sobretudo pela ausência de isonomia entre as partes, gerando descrédito e desilusão para a população de baixa renda; o medo de represálias por parte dos patrões nas questões trabalhistas, que envolvem determinado grau hierárquico, a falta de iniciativa da população economicamente carente, de se recorrer aos tribunais e aos demais serviços de acesso a justiça, muitas vezes por estes estarem situados em locais distantes das suas residências, influenciam na necessidade de formação de um “outro” sistema de se fazer justiça.[11] Doutro passo, a discriminação social em relação ao acesso a justiça é complexa, pois se trata de uma questão mais do que econômica, pois também envolve diferenças sociais e culturais, daí porque o direito ao acesso a justiça propulsionou a criação de meios alternativos para dirimir conflitos, criando o que se chama de “micro justiça”, que procura atender os diversos setores sociais. 3. A JUSTIÇA COMUNITÁRIA COMO JUSTIÇA PARTICIPATIVA E O PLURALISMO JURÌDICO – ANÁLISE DA ATUAÇÃO DOS CIDADÃOS NA ATIVIDADE DE COOPERAÇÃO PARA SE ADMINISTRAR A JUSTIÇA. No Estado Democrático Brasileiro, como exercício da cidadania, os indivíduos devem participar ativamente do processo democrático da administração da justiça, mesmo fora do sistema estatal formal, como é o caso dos Balcões de Justiça e Cidadania, com a cooperação de agências estatais e não estatais, das organizações não governamentais (ONGS), organismos internacionais, que, através de parcerias, desenvolvem a mediação comunitária, instituída através dos procedimentos realizados nos centros de cidadania e associações de bairros instalados nas comunidades carentes. “Os projetos de justiça comunitária são promissores para a melhoria do acesso à justiça e segurança, bem como dos resultados da justiça, porém sem ser uma panacéia. No Brasil, o exercício do poder de atuação dos cidadãos direto por meio desses programas foi comprometido pelas tendências monopolistas de parceiros externos à comunidade. Do mesmo modo que se esforçam para serem programas comunitários para a governança local da justiça e segurança, até o presente momento, e no estado em que se encontra no Brasil, a comunidade tem desempenhado um papel, sobretudo de “consumo”.[12] Como o controle social é inerente a sociedade, nas comunidades, este poder se manifesta através de mecanismos que regularizam a administração da segurança e justiça, devendo atuar de forma lícita, como as organizações comunitárias, provedoras da cultura de paz. Noutro ângulo, este processo de controle pode se manifestar de forma ilícita, como é o caso das milícias organizadas em comunidades, que “fazem a justiça” a sua maneira, formando, nesse caso, um poder paralelo , como a influência de facções criminosas em comunidades carentes. Existem grandes desafios para aqueles que atuam na construção dessa “micro-justiça”, particularmente àqueles oriundos da discriminação conservadora de agentes estatais, que vêm na justiça comunitária a possibilidade da perda do poder estatal e do empoderamento político dos formadores de opiniões locais, o que reflete na possibilidade de capacitação de recursos para que esses organismos possam gerir-se. Outra forma para solucionar essas questões, pode advir da própria comunidade, com a capacitação de líderes comunitários, que, embora não sejam especialistas em assistência social, contribuem diretamente para a resolução pacífica dos conflitos, já que conhecem os residentes locais a fundo e interagem com os problemas destes na comunidade, apontando soluções. De acordo com um recente estudo sobre democratização e cidadania na América Latina, a falta de acesso às instituições formais do sistema judiciário, o apoio popular generalizado a medidas autoritárias de controle social, violência policial, impunidade, corrupção, justiça de favela, esquadrões da morte e justiceiros foram predominantes e abriram o caminho para a consolidação não do estado de Direito Democrático, mas do “desestado” de direito. [13] 4. O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA E SEUS NÚCLEOS DE DESJURIDICIZAÇÃO  A assistência judiciária gratuita, em comunidades, iniciou-se com a atividade de advogados iniciantes de carreira, muitos inexperientes, mais interessados em adquirir conhecimentos de prática forense do que pelo exercício da causa em si. Esse sistema de assistência jurídica teve início na Inglaterra, em 1949, e ficou conhecido como judicare. Boventura Souza Santos,  explica que no judicare, o advogado era escolhido pelo cidadão, dentro aqueles inscritos para prestar o serviço patrocinado pelo Estado. O judicare se concentrava fundamentalmente na prática judiciária, sem considerar os obstáculos sociais e culturais que os cidadãos enfrentavam em seu dia-a-dia, tampouco prestava educação jurídica aos cidadãos, trabalhadores, consumidores e outras minorias. Limitava-se a prática forense, o que se diferencia da do atual papel da Defensoria Pública, órgão facilitador da cidadania. Fundamentalmente o acesso a justiça tem enfrentado três problemas básicos: a diferença de tratamento isonômico entre as classes sociais, levando a população a um descrédito, o temor às represálias, quando a parte (empregado) ingressa em juízo em dissídios contra seus patrões, além do desconhecimento dos direitos fundamentais pela população carente. Outro ponto importante encontrado nas pesquisas sobre acesso a justiça, aponta que as características sociais, políticas, familiares e de crença, influenciam nas decisões dos magistrados. A micro justiça, possibilita a resolução de conflitos por meio de práticas alternativas, sem ingerência do Estado e tem alcançado adeptos, como em favelas, onde a associação de moradores funciona como um verdadeiro Fórum. Paralela a justiça convencional, dentro desse entendimento, podemos destacar algumas soluções encontradas pela comunidade, que deram certo, como; as mediações comunitárias, controle de justiça nos bairros (EUA), a conciliação na França, a arbitragem, mecanismos conhecidos como Alternative Dispute Resolution (ADR), todos os exemplos de métodos democráticos de justiça, desenvolvidos em alguns países de maneira positiva, como África do Sul, Canadá e Nova Zelândia “A situação do pluralismo jurídico resultou no facto de o direito tradicional não ter sido eliminado, no plano sociológico, pelo novo direito oficial, antes continuando a ser utilizado por largos sectores, senão mesmo pela maioria, da população. O segundo contexto de pluralismo jurídico de origem não colonial teve lugar quando em virtude de uma revolução social, o direito tradicional entrou em conflito com a nova legalidade, o direito revolucionário, tendo sido, por isso, proscrito, sem, no entanto, ter deixado de vigorar, em termos sociológicos, durante largo tempo. O caso mais conhecido é o das repúblicas da Ásia Central, de tradição jurídica islâmica, no seio da U.R.S.S. depois da revolução de outubro. Por último, há que considerar as situações de pluralismo jurídico nos casos em que populações autóctones, nativas ou indígenas, quando não totalmente exterminadas, foram submetidas ao direito do conquistador com a permissão, expressa ou implícita, de em certos domínios continuarem a seguir o seu direito tradicional. É o caso das populações da Índia dos países da América do Norte, América Latina e dos povos autóctones da Nova Zelândia e Austrália.”[14] O papel da atual Defensoria Pública, de promoção de cidadania, como instituição necessária a concretização do Estado Democrático de Direito, comunga com essas práticas alternativas de composição de conflito, e pode, perfeitamente, através da criação de núcleos de mediação comunitária, promover a capacitação de líderes comunitários e colaborar para a construção da justiça comunitária. 5. CONCLUSÃO Vale salientar que, a Defensoria Pública, pode e deve realizar o acesso a justiça, mesmo que esse acesso seja informal, como já salientado, daí porque é imprescindível que a Defensoria Pública, órgão de primeiro contato da população carente, dissemine a idéia da mediação como instrumento de promoção da cidadania. Além de capacitar líderes comunitários, a Defensoria Pública deve, em seus núcleos de desjuridicização, desenvolver técnicas de mediação comunitária, práticas restaurativas, orientar acerca dos direitos fundamentais do cidadão, aproximar-se da sociedade civil, proporcionar uma justiça itinerante, quando necessário, sobretudo em regiões de difícil acesso, dentre outras atividades
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-83/a-justica-comunitaria-e-o-papel-da-defensoria-publica-face-a-desjuridicizacao-reflexoes-sobre-uma-nova-forma-de-se-construir-uma-justica-mais-humana/
A prisão especial no ordenamento jurídico brasileiro a partir de uma análise dogmática e zetética
Diversos institutos jurídicos, hodiernamente, devido ao esgotamento do modelo jurídico de matriz político-ideológica liberal e matriz epistemológica positivista, vêm sofrendo redefinições necessárias. A emergência de um discurso e uma teoria crítica do Direito impõe uma análise jurídica não apenas sob o enfoque estritamente dogmático, quiçá até o contrapõe. De certo que a lei tem seu lugar, mas a sua própria eficácia social impõe uma análise também sociológica, antropológica, histórica etc. Enfim, abordar-se-á – neste trabalho que se apresenta – uma análise da Prisão Especial, sob um ângulo diversificado. Para além de uma visão positivista, dogmática, estática que apenas se importa com a pura letra da lei, corrobora-se, assim, com a zetética jurídica.
Direito Processual Penal
Introdução Muito se tem alardeado acerca do fim da prisão especial, alguns sendo favoráveis e outros radicalmente contra o instituto, sobretudo após a promulgação da Constituição da República de 1988. Antes de qualquer argumentação a favor ou contra tal forma de prisão cautelar, cumpre destacar que a escolha por um lado ou outro não implica, necessariamente, em sua simpatia ou abominação, justamente porque a argumentação que nos encaminha a qualquer posicionamento pode, muitas vezes, ser tão confusa a ponto de colocar em polos distintos posições muito aproximadas em sua essência. O importante, nisso tudo, é que ao menos se discute a pertinência desse instituto dentro da sistemática do ordenamento jurídico brasileiro. Não menos importante, ainda, é a correta compreensão jurídica do que vem a ser o instituto denominado prisão especial. Sendo assim, torna-se imperativo, antes de qualquer análise sobre o tema, entender – mesmo que de forma sumária, tendo em vista os propósitos aqui estabelecidos e as limitações desse tipo de trabalho – como tal instituto é concebido e compreendido em seus aspectos estritamente jurídicos (enquanto positivação) para, então, podermos ir além e, assim, discorrer sobre a sua teleologia, sob a égide de uma compreensão zetética. Sendo assim, o desenvolvimento crítico que se pretende estabelecer neste trabalho, apesar do enfoque dogmático inicial, escorre, também e necessariamente, para reflexões acerca da política criminal e da sociologia jurídica. 1. A prisão especial em nosso ordenamento jurídico: uma análise dogmática 1.1. A prisão especial e o Código de Processo Penal O instituto da prisão especial pode, inicialmente, ser encontrado no Código de Processo Penal, no Título IX (Da prisão e liberdade provisória), em seu Capítulo I (Disposições gerais), mais precisamente no artigo 295. Assim dispõe esse artigo: “Art. 295. Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva: I – os ministros de Estado; II – os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e os chefes de Polícia; III – os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados; IV – os cidadãos inscritos no “Livro de Mérito”; V – os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; VI – os magistrados; VII – os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República; VIII – os ministros de confissão religiosa; IX – os ministros do Tribunal de Contas; X – os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função; XI – os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos. § 1º. A prisão especial, prevista neste Código ou em outras leis, consiste exclusivamente no recolhimento em local distinto da prisão comum. § 2º. Não havendo estabelecimento específico para o preso especial, este será recolhido em cela distinta do mesmo estabelecimento. § 3º. A cela especial poderá consistir em alojamento coletivo, atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados à existência humana. § 4º. O preso especial não será transportado juntamente com o preso comum. § 5º. Os demais direitos e deveres do preso especial serão os mesmos do preso comum.”[1] Primeiramente, o que se depreende do seu teor é que a prisão especial apenas é cabível a título provisório. Ou seja, a prisão especial somente é possível no curso de inquérito policial ou durante o processo. O que significa dizer, obviamente, que será cabível, no máximo, até o momento do trânsito em julgado da sentença daquele processo que originou a prisão. Portanto, cabe apenas ao indiciado e ao réu, jamais pode ser aplicada ao condenado. Sendo assim, o primeiro elemento a ser destacado nesta espécie de prisão é o seu caráter provisório. Não obstante o que determina o CPP, há hipóteses em que o regime diferenciado perdurará no tempo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória. São os casos dos funcionários da Administração da Justiça Criminal e dos policiais civis, como se verá mais adiante. Ainda, no que concerne ao seu cabimento, discute-se sobre o alcance do dispositivo. Ou seja, quanto aos sujeitos detentores desse direito especial de prisão cautelar. As argumentações antagônicas entre si, basicamente, podem ser resumidas em duas correntes. A primeira, entende que o rol de sujeitos abrangidos pela prisão especial é taxativo e, por isso, somente por via da alteração da norma positivada (processo legislativo) pode ser aumentado ou reduzido.[2] A segunda corrente compreende o instituto da prisão especial, para além do CPP, ou seja, o rol não pode ser considerado taxativo, pois, as hipóteses de cabimento dessa espécie de prisão podem ser alargadas por meio de normas oriundas da legislação especial/extravagante, portanto, trata-se de rol exemplificativo.[3] De acordo com a transcrição do artigo em análise, torna-se despiciendo enumerar todos aqueles detentores desse direito, em se tratando do Código de Processo Penal. Vale notar, ainda, que o inciso V e os parágrafos foram acrescentados pela Lei n. 10.258/2001[4], essa é a mais recente revisão legislativa sobre a prisão especial. Contudo, é importante destacar, que o Código de Processo Penal, em seu artigo 296, dá a possibilidade, aos militares de menor posição na hierarquia (subtenente, sargento, cabo e soldado[5]), do recolhimento em estabelecimentos militares. “Art. 296. Os inferiores e praças de pré, onde for possível, serão recolhidos à prisão, em estabelecimentos militares, de acordo com os respectivos regulamentos.” 1.2. Conceito de prisão especial A conceituação do instituto da prisão especial é bastante simples, posto que a própria norma realiza essa definição. Sendo assim, a partir da leitura do § 1º. do artigo 295, podemos inicialmente concluir que a prisão especial “consiste exclusivamente no recolhimento em local distinto da prisão comum.” Contudo, para alcançarmos um conceito mais completo e fechado devemos acrescentar ao seu conteúdo as informações existentes nos seus parágrafos seguintes. Com isso, chegamos a um conceito jurídico de prisão especial. A prisão especial consiste no recolhimento, do indiciado ou réu (preso especial), em local distinto da prisão comum de preferência o estabelecimento específico para este fim, mas que em sua inexistência poderá traduzir-se em recolhimento em cela distinta do mesmo estabelecimento e que implica – em razão de seu caráter provisório e, portanto, em decorrência do princípio da presunção de inocência – na separação, do preso não condenado, também, no momento de seu transporte. Todavia, tal distinção é fechada e limita-se ao estabelecido em lei, por isso, não deve implicar em nenhum outro tipo de diferenciação quanto aos direitos e deveres do preso condenado. 1.3. O regime de prisão especial em outras leis penais Além do até agora exposto, torna-se interessante citar alguns outros dispositivos legais que também tratam da prisão especial (ou de uma forma diferenciada de prisão cautelar) e que não estão previstos no CPP. Com isso, cabe destacar[6]: 1.3.1. Lei n. 799/1949: em seu artigo 1º., estende aos oficiais da Marinha Mercante Nacional, “que já tiveram exercido efetivamente as funções de comando, a regalia concedida pelo artigo 295 do Código de Processo Penal.”[7] 1.3.2. Lei n. 2.860/1956: no artigo 1º., concede o direito à prisão especial aos “dirigentes de entidades sindicais de todos os graus e representativas de empregados, empregadores, profissionais liberais, agentes e trabalhadores autônomos”. Ainda, em seu artigo 2º., estende o benefício ao “empregado eleito para função de representação profissional ou para cargo de administração sindical.”[8] 1.3.3. Lei n. 3.313/1957: concede, em seu artigo 1º., inciso I, o direito à prisão especial aos “servidores do Departamento Federal de Segurança Pública, que exerçam atividade estritamente policial”, a ser cumprida “no quartel da corporação ou repartição em que servirem”.[9] 1.3.4. Lei n. 3.988/1961: de acordo com o artigo 1º., os “pilotos de aeronaves mercantes nacionais, que já tiverem exercido efetivamente as funções de comando”, tem o direito à prisão especial do artigo 295, do CPP.[10] 1.3.5. Lei n. 5.350/1967: em seu artigo 1º., concede aos “funcionários da Polícia Civil dos Estados e Territórios Federais, ocupantes de cargos de atividades policial” o direito ao regime de prisão provisória aqui analisado.[11] Cabe observar que, conforme o § 3º., do artigo 40 da Lei n. 4.878, os policiais civis tem o direito de cumprir pena em local isolado dos presos não abrangidos pelo regime de prisão especial. Ou seja, a prisão especial perdurará mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Entretanto, cabe destacar, aqui, que o policial particular não possui esse direito à prisão especial, seja indiciado, réu ou condenado.[12] 1.3.6. Lei Complementar n. 35/1979: no artigo 33, inciso III, concebe tal benefício como uma das prerrogativas do magistrado, além disso, dá igual direito ao juiz de paz (em caso de crime comum), conforme o artigo 112, § 2º.[13] 1.3.7. Lei n. 7.172/1983: no primeiro artigo, estende o benefício da prisão especial aos professores do ensino de 1º e 2º graus.[14] 1.3.8. Lei n. 8.625/1993: dispõe, em seu artigo 40, inciso V, como uma das prerrogativas do membro do Ministério Público, “ser custodiado ou recolhido à prisão domiciliar ou à sala especial de Estado Maior, por ordem e à disposição do Tribunal competente”.[15] 1.3.9. Lei n. 4.878/1965: dispõe de um capítulo específico sobre a prisão especial (Capítulo VI) aplicável aos funcionários policiais civis da União e do Distrito Federal, em seu artigo 40, §§ 1-4. Situação interessante a ser aqui destacada é a do § 3º., posto que segundo essa norma, o caráter especial da prisão – no que tange ao isolamento – persistirá, mesmo após o trânsito em julgado.[16] 1.3.10. Lei n. 7.210/1984: cabe, também destacar, como bem salienta Fernando Capez[17], que a Lei de Execução Penal, em seu artigo 84, § 2º., exige que o “preso que, ao tempo do fato, era funcionário da Administração da Justiça Criminal ficará em dependência separada.”[18] 1.3.11. Lei Complementar n. 75/1993: em seu artigo 18, inciso II, alínea e, prescreve como prerrogativa processual dos membros do Ministério Público da União a prisão especial e, além disso, assegura “dependência separada no estabelecimento em que tiver de ser cumprida a pena”.[19] 1.3.12. Lei n. 8.906/1994: no seu artigo 7º., inciso V, preceitua como direito dos advogados[20] “não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas e, na sua falta, em prisão domiciliar”.[21] 1.3.13. Decreto-Lei 5.452/1943: segundo o artigo 665 da Consolidação das Leis do Trabalho, pode-se deduzir que, “enquanto durar sua investidura, gozam os vogais das Juntas e seus suplentes das prerrogativas asseguradas aos jurados.”[22] 1.4. O Presidente da República e o caso dos Governadores dos Estados Outra observação interessante é a que diz respeito ao Presidente da República. De acordo com o artigo 86, § 3º., da CR/88, a autoridade máxima do Executivo Federal, nos casos de crime comum, não estará sujeito à prisão antes da sentença condenatória. Justamente por isso, a hipótese de aplicação de prisão especial nesse caso é, simplesmente, desnecessária.[23] Todavia, um caso curioso – acerca da imunidade processual supracitada – é o que diz respeito à tentativa de estender tal prerrogativa aos chefes do Executivo estadual. Vários Estados-membros (Acre, Alagoas, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins)[24], por meio de suas constituições, criaram a impossibilidade jurídica de prisão do governador até que sobrevenha sentença condenatória. Fernando da Costa Tourinho Filho tem opinião favorável sobre a validade jurídica do dispositivo nas constituições estaduais que porventura tenham positivado tal imunidade. Segundo esse autor, a fundamentação jurídica legitimadora desse entendimento encontra-se no Princípio da Simetria.[25] Todavia, a jurisprudência do STF posiciona-se pela inconstitucionalidade da norma que venha a prescrever imunidade processual nestes termos. Segundo nossa Corte Suprema, as regras constitucionais de imunidades processuais são aplicáveis unicamente ao Presidente da República e, por isso, insuscetíveis de extensão aos chefes do Executivo dos estados-Membros. Veja, exemplificativamente, algumas ementas[26]: “AÇÃO DIRETA DE INCOSNTITUCIONALIDADE. Constituição do Estado da Paraíba. Outorga de prerrogativas de caráter processual penal ao Governador do Estado. Imunidade à prisão cautelar e a qualquer processo penal por delitos estranhos à função governamental. Inadmissibilidade. Ofensa ao Princípio republicano. Usurpação de competência legislativa da União. Prerrogativas inerentes ao Presidente da República enquanto chefe do Estado (CF/88, Art. 86, §§ 3º. e 4º.). Ação Direta procedente.”[27] “AÇÃO DIRETA DE INCOSNTITUCIONALIDADE. Constituição do Estado de Alagoas. Outorga de prerrogativa de caráter processual penal ao Governador do Estado. Imunidade à prisão cautelar. Inadmissibilidade. Usurpação de competência legislativa da União. Prerrogativa inerente ao Presidente da República enquanto chefe do Estado (CF/88, Art. 86, §§ 3º.). Ação Direta procedente.”[28] 1.5. A progressão do regime e a Súmula 717 do STF Outro ponto polêmico, no que concerne à análise aqui empreendida, é a possibilidade de progressão de regime durante a prisão especial. O STF já se posicionou em relação à matéria e, com isso, editou a Súmula 717: “não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial.” Alguns autores chegam a citar essa súmula ao abordar a questão da prisão especial. Contudo, não passam da sua mera enunciação.[29] Contudo, Guilherme de Souza Nucci analisa essa possibilidade de forma crítica explicitando posição contrária ao entendimento do STF. Segundo o autor, trata-se de mais um privilégio àqueles que já possuem a “regalia legal” da prisão especial. Para Nucci, “[…] permitir a progressão de regime ao preso sujeito à prisão especial representará, no Brasil, cujo sistema processual é lento e repleto de recursos procrastinatórios, praticamente o impedimento do cumprimento da pena em regime carcerário severo.” Logo em seguida, para melhor ilustrar o seu raciocínio, exemplifica – a partir de uma situação hipotética – como a decisão do STF torna perfeitamente possível um preso provisório, que possui o direito à prisão especial, sair “da prisão especial diretamente para a liberdade”. Pois, enquanto a sentença condenatória não transita em julgado (e, por isso, “seu tempo de ‘cumprimento da pena’ encontra-se em decurso”), tem seu regime progressivamente abrandado até que – findo o processo – já está em liberdade.[30] 2. A prisão especial e o contexto social: uma análise zetética 2.1. A prisão especial para os diplomados em nível superior Muito criticado, na grande maioria das vezes, a partir de um conhecimento superficial, o regime de prisão provisória aqui comentado, acaba por cair na “boca do povo” – como que numa espécie de lugar comum do saber jurídico leigo –, sendo o exemplo clássico de como a lei pode ser injusta. Na verdade, pode-se afirmar que a maior razão para tanto é o inciso VII, do artigo 295. Pois, num país como o nosso, em que a grande maioria da população, historicamente, não tem acesso à educação gratuita e de qualidade[31], tende a perceber como um privilégio a possibilidade do direito à prisão especial quanto o critério beneficia aqueles possuidores de diploma de curso superior. E é mesmo um privilégio descabido! É, sim, um abuso do órgão legiferante estender direitos sem uma mínima justificativa plausível, como o faz neste caso do inciso VII. Fernando Tourinho é preciso em sua crítica sobre esse inciso, “Os bacharéis em Direito, engenheiros, médicos, dentistas, farmacêuticos, psicólogos e outros tantos diplomados, em decorrência de sua escolaridade, tinham e têm redobradas razões para melhor se comportar na vida em sociedade, respeitando as leis. Tinham e têm melhores condições de conhecer as normas de convivência pacífica. O legislador, contudo, ainda lhes deu certo privilégio com a prisão especial. Melhor seria fosse esta conferida aos mais desafortunados”.[32] Tal dispositivo conflita, flagrantemente, com o caput do artigo 5º. da CR/88[33] (Princípio da Igualdade). E a explicação, neste caso, é simples. A teleologia do instituto da prisão especial implica perceber a sua necessidade apenas àquelas pessoas que, em razão das atividades desempenhadas em determinadas funções, devem ter preventivamente resguardados os direitos à vida e à integridade física, moral e psíquica (dignidade), pelo risco real e direto a que estariam expostos se assim não fosse. Veja, por exemplo, o caso hipotético de um policial que, após vários anos de atividade, torna-se réu em um processo penal. Caso esse policial fosse recolhido ao cárcere, não parece sensato colocá-lo em qualquer lugar, sem um mínimo critério acerca da sua condição de servidor pública da polícia. Pois, assim procedendo, o ordenamento jurídico processual penal acabaria por tornar real e concreta a possibilidade deste policial vir, eventualmente, a ser colocado entre aqueles que ele mesmo tenha ajudado a prender. O que seria, por demais, absurdo. 2.2. O “Livro de Mérito” Um outro inciso, neste contexto, merece destaque. O inciso IV dispõe que “os cidadãos inscritos no ‘Livro de Mérito’” também possuem o direito à prisão especial. Ora, mas o que vem a ser o Livro de Mérito? Segundo o Decreto-Lei n. 1.706/1939, em seu artigo primeiro, o Livro de Mérito é “destinado a receber a inscrição dos nomes das pessoas que, por doações valiosas ou pela prestarão desinteressada de serviços relevantes, hajam notoriamente cooperado para o enriquecimento do patrimônio material ou espiritual da Nação e merecido o testemunho público do seu reconhecimento.”[34] Ora, como já anteriormente citado, o bem jurídico protegido pelo instituto da prisão especial é, pois, a vida e a integridade daqueles que se encontrem presos, em decorrência de situações específicas. Não parece que este seja o caso daqueles que foram condecorados pelo Estado por seus feitos e, sobretudo, por doações. Configura-se, assim, mais como uma espécie de privilégio do que como um direito necessário à preservação daqueles direitos supracitados. Esse é um caso gritante, assim como o anterior e o próximo, de como os grupos dominantes se apropriam escamoteiam o interesse público em prol de interesses privados. Roberto Aguiar é preciso nessa observação, segundo suas lições, “quem legisla é o grupo social que detém o poder, por deter o controle da vida econômica e conseqüentemente política de uma sociedade.”[35] 2.3. Os ministros de confissão religiosa também? Seguindo o raciocínio, aqui empreendido, parece importante destacar a imprecisão do inciso VIII, do artigo 295. Pois, segundo tal dispositivo, também possuem tal direito especial: “os ministros de confissão religiosa.” Ora, é inegável que muitos membros de instituições religiosas, em razão do trabalho desenvolvido, acabam por gerar situações de conflito na comunidade onde atuam[36]. Mas parece ilógico que cidadãos comuns ou mesmo líderes comunitários que desenvolvam os mesmos trabalhos não tenham igual direito à prisão especial. O Brasil é um Estado laico e qualquer diferenciação ancorada na qualificação religiosa da pessoa é abominável. 2.4. Prisão especial ou necessária? Diante do exposto, assevera-se que a norma que trata, específica e explicitamente, da prisão especial preocupou-se em consagrar esse direito muito mais em razão da qualidade da pessoa (status) que pelos fatos decorrentes das atividades ou funções por ela desempenhadas perante a sociedade. “[…] mais uma vez, associando-se aos casos de foro privilegiado, cria-se uma categoria diferenciada de brasileiro […].”[37] Essa lógica persiste mesmo se destacarmos da Constituição da República o inciso XLVIII, do artigo 5º. (“a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”[38]) e o caput do artigo 84 da Lei de Execuções Penais (“O preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada em julgado”)[39]. Por isso tudo, as lições de Guilherme de Souza Nucci são de grande valia: “O quadro exposto retrata um Brasil dividido por castas, em matéria de prisão cautelar: os comuns, os especiais e os super especiais. Nada disso é compatível com a igualdade de todos os brasileiros perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O cuidado com a prisão provisória deve existir, sem dúvida, porém voltado à pessoa do criminoso (o que fez, quem é e qual seu passado em matéria criminal). Separações, por cautela e para preservação da dignidade e da vida humana, somente devem ser acolhidas, quando disserem respeito a fatos e não a títulos.”[40] Nucci, ainda, faz uma observação deveras importante para a argumentação desenvolvida aqui neste trabalho. Segundo suas lições, a partir das análises sobre a legislação em matéria penal e processual penal no cotejo com o §3º., do artigo 295, do CPP, “A classe pobre da população, quando ingressa na prisão provisória, embora devesse receber o mesmo trato e zelo, não dispõe de norma expressa, determinando até mesmo os requisitos da cela, como salubridade, com fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico. Então, se postas em lugar fechado, sem luz direta, gelado ou muito quente, desde que não ultrapassado o prazo razoável de duração da prisão, aí podem ser mantidas, sem que se justifique a concessão de habeas corpus.”[41] Pode-se acrescentar, aliás, que tais observações apenas constam para os condenados, conforme o artigo 88, parágrafo único, alínea a. Tal constatação ganha ainda mais importância quando demonstramos dados acerca da realidade coercitiva estatal latino-americana. Segundo o jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, “A característica mais destacada do poder punitivo latino-americano atual em relação ao aprisionamento é que a grande maioria – aproximadamente 3/4 – dos presos está submetida a medidas de contenção porque são processados não condenados.”[42] Fernando Tourinho, também, traz dados muito importantes sobre a realidade brasileira. Segundo o autor, “[…] o número de presos provisórios é sumamente extraordinário, só no Amazonas atinge 85% da população carcerária.”[43] Com isso, pode-se perceber, evidentemente, que o Direito, mormente, no que tange à sua legislação, acaba por catalisar a ideologia dos detentores do poder político-econômico e, consequentemente, tende a manifestar-se através de leis muitas vezes discriminatórias e descontextualizadas[44]. A verdade parece residir no fato de que o Estado – em virtude da sangria diária do dinheiro público, em virtude de escândalos de corrupção, má administração, regalias imorais (por exemplo, carro com motorista, auxílio paletó, festas, viagens, funcionários “fantasmas”) – dispõe de poucas condições materiais para concretizar os mandamentos contidos na legislação (sequer existiu ou existe, no Brasil, a prisão especial). “Em rigor a prisão especial deveria ser estendida a todas as pessoas que fossem presas provisoriamente.”[45] O que resta, na impossibilidade do tratamento equânime a todos, é dar a uma parcela mais reduzida da sociedade as melhores condições possíveis que, na verdade, deveriam ser para todos. Melhor seria que não existisse, senão para aqueles que realmente estivessem em perigo real e concreto, caso não houvesse critério nenhum (policial, promotor…). Justamente por esse motivo, exige-se uma interpretação e aplicação cuidadosa das normas jurídicas, sempre à luz das normas constitucionais, sobretudo no que toca os Direitos e Garantias Fundamentais. Sendo assim, torna-se imperioso (sempre que o aplicador da lei deparar-se com as situações abarcadas pelas normas aqui citadas) pensar e concretizar o Direito, sobretudo, a partir dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da ponderação e da proporcionalidade. Pensar a eficácia social da prisão especial é tarefa complexa e implica reflexões para além da pura dogmática. Apenas a lei não dá conta da fundamentação de tal esforço. “Antes da sentença condenatória definitiva, a prisão processual é um mal.”[46] Sobretudo, evidentemente, em virtude do risco de se impor, injustamente, o cárcere ao inocente. Por último, vale destacar que tramita no Congresso Nacional projeto de lei (Projeto de Lei n. 678/2003)[47] que visa modificar o artigo 295, aqui analisado. Esse projeto tem como objetivo reduzir a lista das categorias com direito à prisão especial, bem como eliminar privilégios da prisão especial, além de outras providências. Conclusão A prisão especial é matéria processual polêmica. A análise da legislação que trata do assunto implica questões complexas, sobretudo no que tange ao princípio da igualdade de todos perante a lei. As condições da prisão especial deveriam ser buscadas por todo o sistema penitenciário nacional. Deveria ser uma realidade, por mais aproximada que fosse das condições ideais, ao alcance de todos os presos provisórios. Contudo, há que se observar que mesmo assim isso não implica em sua abolição. Em que pese todos (desde que indiciados ou réus) terem o direito de serem recolhidos em local distinto daquele reservado aos presos já julgados e, definitivamente, condenados, a prisão especial tem fundamentação jurídica consistente e necessária. Ou seja, a proteção da vida e da dignidade é inexorável àqueles que, em razão de suas atividades, acabam por clamar tratamento diferenciado. Tanto é assim que a lei estende tal direito, em alguns casos, mesmo após o trânsito em julgado. Todavia, cada caso concreto pode, eventualmente, merecer tratamento diferenciado. A lei deveria, pois, abranger também casos específicos que não se podem inferir apenas pela constatação de um título, mas de fatos concretos da realidade social complexa. Por isso, (hoje) seu rol é exemplificativo. A mera distinção derivada de títulos – que na maioria das vezes torna-se mais palpável àqueles que detêm condições materiais, existenciais e culturais concretas – essa, sim, deve ser abolida. Mas jamais a prisão especial!
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-83/a-prisao-especial-no-ordenamento-juridico-brasileiro-a-partir-de-uma-analise-dogmatica-e-zetetica/
Execução penal cárcere-temerária
Estava eu, na condição de Delegado de Polícia, dirigindo-me a um estabelecimento de execução penal tido como modelo no Estado do Rio Grande do Sul. Iria tomar a oitiva de um detento. Do lado de dentro, refeições maravilhosas, suco natural, tudo consoante responsável fiscalização da Nutricionista competente. Almocei por lá. No meio da tarde, apetitoso cheirinho de pão quente, feito na padaria interna do estabelecimento prisional, anunciava o vindouro café. Psicólogas, dentistas e nutricionistas conversavam em suas salas à espera de eventuais detentos para submissão a consultas. Uma alegre quadra de futebol aguardava a hora de se iniciar o entretenimento com a bola. Era tudo aquilo, sim, um paraíso para muitos que passavam fome e carências múltiplas do lado de fora do estabelecimento prisional. Ao sair de lá, chamou-me a atenção algo que vi na vila que ficava ao lado daquele presídio. Tratava-se de crianças de tenra idade com suas barriguinhas vultosas de verminose. Ajudavam seus honestos pais empilhando os papelões que eles haviam recolhido das lixeiras daquela Cidade. Refleti: se a sociedade não quer um sistema prisional que imponha martírio e sofrimento desumanos aos detentos, também não quer, certamente, um sistema paradisíaco como aquele. A ressocialização almejada pelo nosso Sistema Carcerário não se faz por meio de calabouços, mas tampouco por meio de spas. Assim, no status social presente, e em consonância com o atual entendimento do STF, como se verá adiante neste singelo escrito, vê-se a substituição das penas privativas de liberdade, sempre que possível, como a única estratégia sensata a ser seguida.
Direito Processual Penal
Introdução Impossível não se iniciar um breve diálogo atinente ao hodierno estágio do “Sistema Carcerário” brasileiro sem se chamar a atenção do leitor para uma premissa óbvia e elementar: ele não funciona! Não se quer dizer com isso que o “Sistema de Execução Penal” não funcione. É claro que, na medida do possível, ele ultima com êxito aceitável o seu essencial papel no meio social, ocasião em que sem ele a pena, como de resto todo o sistema penal, não faria o menor sentido em existir. O que se quer dizer, isto sim, é que o Sistema Carcerário não atinge, nem de longe, seus objetivos incrustados na Lei, salvo raras exceções onde o trancafiamento do delinquente acaba sendo a única alternativa possível, afastando-se o contumaz e incorrigível indivíduo de alta periculosidade do convívio social.     Ciente e convencido disso, aliás, o Supremo Tribunal Federal, recentemente, manifestou-se, no HC 97256, como se verá adiante, pela possibilidade de se rechaçar a pena privativa de liberdade a certos traficantes, diríamos assim, de “menor potencial ofensivo”.[1] Sabedores que somos disso, devemos compreender aqueles sábios juízes os quais costumam evitar, tanto quanto possível, o envio ao cárcere de sujeitos condenados, substituindo suas penas por medidas alternativas, mais proveitosas à sociedade e, somente assim, de caráter verdadeiramente ressocializante.  Sistema Carcerário de Efeitos Negativos O sistema carcerário brasileiro é mundialmente conhecido pelos seus efeitos negativos. Se fora criado, com o intuito de reverter a ascendência das infrações penais, culminou não a impedindo, senão a instigando ainda mais. Referido fenômeno multiplicador decorre do contato entre os apenados e suas consequentes absorções osmóticas de novas tendências criminalizantes, premidos que se encontram eles em celas as quais nos evocam os antigos calabouços medievais de outrora. A gama de reincidência dos egressos e mesmo daqueles que usufruem dos regimes aberto e semiaberto é imensa, ainda que tão-somente falando-se da que se vê dos dados estatísticos oriundos de novas condenações. Cogitar-se acerca da imensurável gama de reincidência que integra a chamada cifra negra[2], culminar-se-ia em vultosa elevação dos dados estatísticos, frente a inexistentes prisões em flagrante, indiciamentos e consequentes condenações de novas práticas delitivas ultimadas por egressos e mesmo por apenados que usufruem de regimes distintos da reclusão. Dita realidade suso sedimenta e consolida a convicção acerca dos efeitos nefastos do sistema prisional brasileiro hodierno, configurando-se ele como um verdadeiro mecanismo de proliferação da criminalidade. A prisão, efetivamente, estigmatiza eternamente o detento, pouco ou nenhum efeito surtindo campanhas publicitárias que procuram incentivar a empregabilidade de egressos. A par dessa situação caótica, ainda, e como se não bastasse, significativa parcela de autoridades com labor direto no Sistema Penal, sobrepondo a vaidade ao interesse público, mostrando-se sedentos pelo glamour, fascínio e charme proporcionado pelos holofotes midiáticos, promovem prisões temporárias e/ou preventivas de investigados as quais, de forma patente e hialina, veem-se como insustentáveis de se manter no decurso da persecutio criminis; sem se falar na pouca probabilidade de uma condenação serena ao término do processo e da cristalina desnecessidade de medidas naturalmente tão drásticas, o que, somando-se tudo isso, vê-se desmistificado e consequentemente prejudicado o requisito da absoluta imprescindibilidade do encarceramento cautelar no processo penal brasileiro, banalizando-se sobremaneira o Sistema Penal como um todo. A Simbologia da Lei de Execução Penal Repleta de dispositivos inatingíveis no mundo real, vê-se a Lei 7.210/84[3], como verdadeira “legislação simbólica”. Este novel conceito atinente à simbologia de parte do nosso ordenamento jurídico comporta aspectos positivos e outros negativos, vendo-se isso claramente in casu. Dentre os positivos, está a pacificação social que resulta da consciência coletiva de que os representantes do povo estão caminhando em direção ao rumo certo, tecendo regras e princípios que vão ao encontro da vontade popular. Efetivamente, não se poderia esperar, no seu aspecto formal, uma legislação de execução penal que não visasse à elegante ressocialização do condenado, embora isso pouco ocorra no mundo real. Dentre os aspectos negativos, de outra banda, estampa-se aquele em que, frente a ordens legais inexequíveis, ao menos no atual estágio de evolução social, o legislador acaba mostrando-se um tanto cínico ao eleitor, o que, na insistência em se elaborar, reiteradamente, legislações de cunho simbólico, culmina-se na descrença demasiada e perigosa do eleitorado relativamente às suas forças públicas constituídas. Posição do Supremo Tribunal Federal Ciente, como não poderia deixar de ser, acerca da falência do sistema prisional brasileiro, o STF, em sintonia com a mais recente e acertada tendência dos juízes de pensamento modernista, vê, onde não se via antes, modos e maneiras criativas de se evitar a imposição de pena carcerária ao réu. Em toda hipótese possível, assim, vale muito mais a substituição da pena privativa de liberdade ao despejo do condenado em calabouços impróprios à efetivação de uma mínima ressocialização, sem se falar no dispêndio e ferimento de morte que se leva a efeito ao erário em se optar pela valorização de um Sistema Carcerário obsoleto e falido. Bem assim, no recentíssimo e louvável decisum referente ao HC 97.256,[4] o STF reconheceu a novel possibilidade de substituição da pena privativa da liberdade em hipótese específica e inaugural, a despeito do que rezasse a interpretação gramatical pura do art. 44[5] da Lei 11.343/2006.[6] Considerações finais A pena, como todos sabem, comporta finalidade retributiva e preventiva. A primeira visa a devolver, de certa forma, ao infrator, o mal que ele fez à sociedade. A segunda comporta dois aspectos, um geral e outro especial. O primeiro visa ao desestímulo de potenciais infratores; o segundo dirige-se à recuperação do condenado, ressocializando-o, a fim de que não mais volte a delinquir. No que tange ao aspecto “preventivo especial”, mostrou-se a pena privativa de liberdade, até o momento, absolutamente inoperante e, em verdade, criminógena[7]. Dessa arte toda, para infrações que não demonstrem, pela sua natureza e/ou pelas condições do caso concreto, periculosidade tamanha do seu agente que venha a o incompatibilizar sobremaneira com o convívio social, indiscutível mostra-se que a pena alternativa é instrumentação viável e possível para o alcance da tão almejada ressocialização do delinquente.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-83/execucao-penal-carcere-temeraria/
A importância da perícia médico-legal para o processo penal na persecução da verdade real
A Medicina Legal, como especialização científica posta a serviço do Direito e da Justiça, percorreu longo e árduo percurso até se solidificar e ser reconhecida a sua importância. A análise de sua trajetória Histórica demonstra a sua relevância jurídica, fazendo com que o pesquisador, ainda que de fronte voltada ao passado, absorva sua valorização e sua valoração. Além do conhecimento Histórico, é importante para o estudioso das Leis que este compreenda a função das Ciências a serviço do Direito e, no caso do presente estudo, que acrescente a seu repertório o objetivo que o Direito confere aos exames médico-legais. O escopo desta pesquisa é analisar a importância da perícia como meio de prova para elucidação dos fatos correlatos à lide, e, em especial, apontar a relevância da perícia médico-legal no esclarecimento dos fatos imputados ao acusado, frisando a busca da verdade real no Processo Penal à luz da legislação brasileira vigente.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO Muito se negligencia o estudo de outras Ciências e de suas perícias quando se adentra no campo de pesquisas jurídicas. O jurista se desmemoria ante o fascinante mundo da Medicina Legal, deixando-a de lado. Tanto o é que, para muitos, a Medicina Legal trata apenas do estudo de cadáveres e de causa mortis, fato este inverídico. Esta pesquisa não se encarrega de tecer grandes comentários médico-legais, muito menos de fazer do jurista um especialista nesta Ciência. No entanto, talvez abra as portas para um conhecimento que se faz essencial para o operador do Direito. Trata-se de fazer germinar um conhecimento mínimo, através do despertar do pesquisador para a íntima relação da Medicina Legal com o Direito e sua fundamental importância. Para que este alvorecer intelectual se perfaça, é necessário que alguns conhecimentos básicos sejam demonstrados, papel que esta pesquisa procura desempenhar. É, no entanto, na análise da importância das perícias para a jurisdição estatal que reside seu escopo primordial. Para que se atinja a compreensão pretendida acerca do tema em tela, a conceituação e análise apresentadas sobre perícia serão estritamente de cunho jurídico, ou seja, sob o prisma do Direito brasileiro. A escolha do tema se justifica pela escassez de textos que abordam objetivamente a importância da perícia, seja na literatura jurídica, seja na literatura médica. Metodologicamente, o estudo em tela foi pautado em pesquisa bibliográfica, imprescindível à argumentação do assunto, que, pelos motivos expostos, tornam este ensaio enriquecedor, tanto para o universo jurídico, quanto para o conjunto literário médico-legal. DESENVOLVIMENTO 1.CONCEITO DE MEDICINA LEGAL Medicina Legal não é um ramo de especialização da Medicina, mas sim, a aplicação de conhecimentos médicos à perquirição de fatos a serem submetidos à apreciação jurídica. Genival de França Lacerda afirma que a Medicina Legal “não chega a ser uma especialidade médica, pois aplica o conhecimento dos diversos ramos da Medicina às solicitações do Direito”[1] e é uma ciência que se constitui “da soma de todas as especialidades médicas acrescidas de fragmentos de outras ciências acessórias, destacando-se entre elas a ciência do Direito”.[2] Esta posição do insigne Mestre contrasta com a de tantos outros literatos da área, que consideram a Medicina Legal uma especialidade médica. Conceituar a Medicina Legal não é tarefa simplória, nem há pacificação acerca de tal conceito. Muitas são as definições, mas todas revelam que a Medicina Legal é um campo científico que agrega conhecimentos de várias Ciências (Medicina, Física, Química, etc.) e disponibiliza esse conjunto cognitivo ao Direito e à Justiça. Dambre a define como “a expressão das relações que as ciências médicas e naturais podem ter com a Justiça e a Legislação”.[3] Leonardo Mendes Cardoso apresenta uma definição bastante satisfatória: “é a ciência médica aplicada ao Direito, tratando-se, portanto, do emprego de técnicas e procedimentos científicos médicos e afins para  elucidação de casos do interesse da Justiça nesta área”.[4] José Jozefran Berto Freire aponta a Medicina Legal classificada como uma ciência biopsicossocial.[5] É importante frisar que, para o Direito, a Medicina Legal se faz prescindível não apenas para decisões judiciais, mas também para a confecção de normas. A legislação prevê e a Medicina Legal atesta, podendo então, o Juiz, prolatar a sentença. Do exposto, deve ser apreendido que o Direito não é um ramo de conhecimento autossuficiente, buscando em outras Ciências e áreas de estudo o suporte para sua existência e para o alcance de seu propósito. 1.1 HISTÓRICO DA MEDICINA LEGAL Matéria que em poucos desperta interesse, o bojo histórico de uma Ciência deve ser analisado minuciosamente, tendo em vista alcançar a raiz de sua criação e, a partir da compreensão de seus fundamentos filosóficos, compreender a ciência em si. Não há como compreender e apreender de forma primorosa a Medicina Legal sem antes analisar o seu histórico, pois a importância de sua História representa a sua própria importância. O marco inicial da Medicina Legal não pode ser apontado com exatidão. Certamente, seu surgimento é posterior ao surgimento da Medicina. Os primeiros indícios da íntima relação entre a Medicina e o Direito remontam da Antiguidade.[6] Nestes tempos, os sacerdotes, que governavam à base da força e da evocação divina, eram concomitantemente legisladores, juízes e médicos. No entanto, necropsia e vivisseção eram proibidos, vez que os cadáveres eram considerados sagrados.[7] No Egito, cadáveres eram embalsamados e, nos casos de crimes sexuais, o suspeito era condenado se, atado ao leito numa sala do templo, apresentava ereção diante da visão de virgens dançando nuas ou trajando vestes transparentes.[8] As leis de Menés preceituavam o exame para verificação de gravidez, pois supliciar mulheres grávidas era vedado pela norma.[9] O Código de Hamurabi, a mais antiga legislação penal de que se tem notícia, trazia em seu bojo normas que evidenciavam a relação entre Direito e Medicina. No entanto, não estipulava que o Juiz deveria ouvir o médico ao prolatar suas decisões.[10] O Código de Manu proibia que crianças, idosos, ébrios, indivíduos com desenvolvimento mental incompleto e pessoas insanas fossem ouvidas nos tribunais na condição de testemunha.[11] No Império Romano, tal proibição surge com o disposto na Lei das XII Tábuas, que data de 449 a.C. Esta legislação determinava, inclusive, que o período máximo da gestação seria de dez meses, afora a postergação de julgamento por motivo de doença do julgador ou quaisquer das partes.[12] Uma classificação de lesões corporais, com a finalidade de arbitrar multa ao agressor, era elencada nas leis da antiga Pérsia.[13] O Hsi Yuan Lu, tratado chinês elaborado aproximadamente em 1240 a.C., prescrevia instruções acerca do exame post mortem, listava antídotos para venenos e apresentava informações sobre respiração artificial.[14] De acordo com o que prescreve a crença, Numa Pompílio ordenou em Roma o exame médico na morte das grávidas:[15] a Lex Regia determinava a histerectomia nos cadáveres das gestantes.[16] Há quem acredite que o termo “cesariana” proveio do nascimento de César, resultado de uma histerectomia. Entretanto, estudiosos afirmam que o termo descende de coedo, que significa “cortar”.[17] A primeira citação documental acerca de exame cadavérico em vítima de homicídio, segundo os relatos de Suetônio,[18] refere-se à tanatoscopia realizada no cadáver do ditador romano Caio Júlio César. Por haver desprezado a opinião de seus adversários, em 15 de março de 44 a.C., o ditador foi vítima de um ataque provindo de sessenta de seus senadores, liderados por seu filho adotivo Marcus Julius Brutus e por Caio Cássio.[19] O exame em tela foi realizado por Antístio, médico e amigo de Júlio César, que verificou a existência de 23 golpes de adaga, sendo apenas um deles mortal. No entanto, Antístio procedeu ao exame não como perito médico, mas como cidadão do Império Romano.[20] De acordo com relatos de Tito Lívio, filósofo e historiador romano, o cadáver de Tarquínio, que morreu assassinado, e o de Germânico, suspeito de ser vítima de envenenamento, foram examinados por um médico.[21] Faz-se relevante destacar que tais exames eram de viso, tendo em vista a ilegalidade dos exames cadavéricos na época. Na Idade Média, se deve a Justiniano o reconhecimento dos médicos como testemunhas especiais em juízo, não sendo os juízes, entretanto, obrigados a ouvi-los. Já as Capitulares de Carlos Magno prescreviam que os julgamentos deveriam ser pautados em pareceres médicos, devendo os julgadores tomar depoimentos dos médicos nos casos de lesão corporal, infanticídio, tortura, estupro, impotência, etc.[22] Apesar deste avanço em relação à valorização e reconhecimento desta área médica, as ordálias (?) configuram um retrocesso ao papel da Medicina ante a Justiça, uma vez que a prática nordo-germânica das provas inquisitoriais imputava o juízo de valor a Deus.[23] No período denominado Canônico, a Medicina Legal sofreu forte influência do cristianismo, sendo restabelecido o concurso das perícias médicas pelo Papa Inocêncio III, no ano de 1209.[24] As Decretais dos Pontífices dos Concílios (Peritorum indicio medicorum) tratam exaustivamente da sexologia, pois é nela que se fundamenta a moralidade.[25] O médico passa a ter fé pública nos assuntos concernentes à sua profissão e as perícias passam a ser obrigatórias. A anulação do casamento por impotência enseja a denominada prova do congresso, posteriormente proibida em 1677 pelo Parlamento de França e que consistia em um exame realizado “por três parteiras e posteriormente por três médicos que, separados do casal por uma cortina, em aposento contíguo, confirmavam a realização ou não da conjunção carnal, em burlesca caricatura de perícia”.[26] Jozefran Freire afirma que práticas rudimentares e poucos conhecimentos predominavam, o que demonstra “o esforço despendido por diversos autores na resolução de problemas que, embora originados no cotidiano, eram extremamente complexos, principalmente pelos parcos fundamentos científicos da época”.[27] Em 1532 foi promulgada a Constitutio Criminalis Carolina, considerada o primeiro documento ordenado de Medicina Judiciária, que discorria exaustivamente acerca de temas médico-legais e previa a obrigatoriedade da ouvida dos médicos antes da prolação das sentenças. Em decorrência de tal legislação criminalista, a Alemanha é considerada o berço da Medicina Legal. Um dos maiores avanços da norma foi permitir a realização de exame tanatoscópico em caso de morte violenta. O corpo do Papa Leão X foi necropsiado por suspeita de morte por envenenamento.[28] Hélio Gomes afirma que a Constitutio Criminalis Carolina “abrigava o embrião da Medicina Legal como disciplina distinta e individualizada”.[29] Com a obrigatoriedade das perícias, a maior circulação de informações acerca do tema enseja a publicação das primeiras obras de valor sobre Medicina Legal no Ocidente. Os primeiros tratados sobre o tema começam a emergir na segunda metade do século XVI. Fávero aponta como nascedouro da Medicina Legal o Edito della gran carta della Vicaria di Napoli, de 1525. A maioria dos autores aponta a Alemanha como berço da Medicina Legal enquanto ciência. Fávero afirma: “No século XVIII, a Medicina Legal se instituiu como disciplina científica e, daí para cá, se aprofundou em realizações, pelas três escolas rivais, que disputam a supremacia – a francesa, sintética e original, a alemã, analítica e erudita, e a italiana, reunindo às vantagens do gênio latino o amor às minudências da escola alemã.”[30] Em 1575 Ambroise Paré lança o primeiro tratado ocidental sobre Medicina Legal, intitulado Des Rapports et des Moyens d’Embaumer lês Corps Morts[31], “e a França aclama seu autor como o pai da Medicina Forense, a despeito de a obra, de inegável valor, não constituir corpo doutrinário e sistemático”.[32] Apesar do título, a obra discorre sobre gravidade de feridas, formas de asfixia, diagnóstico  de virgindade e outras questões nesta linha. Em 1598, Séverin Pineau afirma em seu livro que o hímem pode permanecer intacto após a conjunção carnal – eis a primeira alusão na literatura médica ao hímem complacente. Fortunato Fidelis, em 1602, publicou em Palermo obra mais aprofundada e detalhada, denominada De Relatoribus Libri Quator in Quibis ea Omnia quae in Forensibus ae Publicis Causis Medici Preferre Solent Plenissime Traduntur. A obra, dividida em quatro volumes, tratava respectivamente de saúde pública; ferimentos, simulação de doenças e erro médico; virgindade, impotência, gravidez e viabilidade fetal e, finalmente, sobre vida e morte, fulguração e envenenamento. Fidelis defendia a execução de necrópsias completas, diversas daquelas anteriormente mencionadas. Obra que se revelou se suma relevância foi a do romano Paulus Zacchias, que se constituiu em dez livros publicados entre os anos de 1621 e 1658. À época, os livros que versavam sobre Medicina Legal a relacionavam à saúde pública, o que não foi o caso da obra de Zacchias. Esta coletânea serviu de referência ao estudo da Medicina Legal até o início do século XIX. Foi neste século que a Medicina Legal se firmou pautada no conceito que a Justiça lhe atribuiu: o de produzir provas através da Ciência. Tal se confirma nos dizeres de Hélio Gomes: “A partir da segunda metade do século XIX, a aplicação do método científico às ciências biológicas modificou a postura dos médicos com relação às doenças. Paulatinamente, foram surgindo as especialidades clínicas e cirúrgicas. A Medicina Legal, como caudatária deste desenvolvimento, passou a ser considerada como ciência, uma forma de medicina aplicada.”[33] Em 1823 Orfila aponta a Medicina Legal como o ramo da Medicina voltado para a Justiça, ocupando-se das causas levadas aos tribunais. Toda a trajetória da Medicina Legal ao longo de sua História a transformou em elemento basilar para a jurisdição e alcance do escopo da Justiça. 1.2 HISTÓRICO DA MEDICINA LEGAL NO BRASIL O Brasil iniciou seus estudos no campo da Medicina Legal tardiamente em relação à Europa. Apesar da influência portuguesa no meio intelectual e cultural, Portugal não influenciou o país no campo da Medicina Legal, uma vez que, em tal país, àquela época, os estudos médico-legais não eram satisfatoriamente desenvolvidos. No fim da era colonial aparecem os primeiros documentos médico-legais no país, frutos de estudos influenciados pela França e, um tanto mais sutilmente, pela Itália e pela Alemanha. A primeira publicação de documento médico-legal brasileiro, da fase nacionalista da consolidação de tal ciência no país, data de 1814. Neste documento, Gonçalves Gomide, médico e senador do Império, contesta parecer exarado por dois outros médicos.[34] Agostinho José de Souza Lima assume o ensino prático da disciplina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e, sem ter conhecimento na área jurídica, interpreta a legislação brasileira à luz dos conhecimentos médico-legais da época, sendo por isso considerado pioneiro em Medicina Legal em nossa pátria. Neste período histórico, os juízes não eram obrigados a consultar médicos antes de proferir sentenças. Esta obrigação surgiu com o advento do Código Penal do Império, datado de 16 de dezembro de 1830.[35] No ano de 1832, o ramo do Processo Penal[36] é estruturado no país, trazendo à lume normas acerca dos exames de corpo de delito, instituindo oficialmente a perícia médica criminal. Muitas destas determinações primordiais ainda se encontram em vigor no texto moderno da norma procedimental penal. Neste mesmo ano, tornam-se faculdades oficiais de Medicina as da Bahia e do Rio de Janeiro, fazendo parte da grade curricular do curso, em ambas as instituições de ensino superior, a disciplina de Medicina Legal. Estudos nessa área afloraram por conta da exigência da defesa de tese para a obtenção do título de doutor em Medicina.[37] A primeira publicação versando sobre exame tanatológico no Brasil data de 21 de setembro de 1835 e relata a necropsia realizada no Regente João Bráulio Moniz (que havia morrido 22 horas antes da realização do exame), executada pelo cirurgião da família imperial, Hércules Otávio Muzzi.[38] Em 1854, o mais antigo catedrático de Medicina Legal da Faculdade Médica do Rio de Janeiro, o conselheiro José Martins da Cruz Jobim, foi imbuído, pelo Ministro da Justiça, da missão de coordenar comissão para uniformizar a prática dos exames médico-legais, organizando uma tabela prognóstica das lesões corporais.[39] No ano de 1856[40], foi regulamentada a atividade médico-legal através do Decreto nº 1.746, de 16 de abril do referido ano, “quando se criou, junto à Secretaria de Polícia da Corte, a Assessoria Médico-Legal, à qual cabia a realização dos exames de corpo de delito e quaisquer exames necessários para a averiguação dos crimes e dos fatos como tais suspeitados”.[41] A assessoria era composta por quatro médicos, dos quais dois eram membros efetivos e incumbidos de proceder aos exames periciais e os dois outros eram professores de Medicina Legal e ocupavam o cargo de consultores, se responsabilizando, eminentemente, pelos exames toxicológicos. Neste mesmo ano, para atender a demanda dos exames a se realizar, “foi criado o primeiro necrotério do Rio de Janeiro no depósito de mortos de Gamboa, usado até então para guardar cadáveres de escravos, indigentes e presidiários”.[42] Em 1877, Agostinho José de Souza Lima, em conjunto com seu assistente, Borges da Costa, é nomeado consultor da polícia e, em 1879, é autorizado a ministrar um curso prático de tanatologia forense no necrotério oficial.[43] A partir de 1891, a disciplina de Medicina Legal passa a configurar como obrigatória nos cursos de Direito do país. A inclusão foi proposta por Rui Barbosa perante a Câmara dos Deputados e, felizmente, conseguiu a aprovação. Para os estudantes de Direito, este é um marco na História do curso jurídico, tendo em vista que é de fundamental importância que o bacharel possua, ao menos, noções acerca da Ciência médico-legal. Se o papel da Medicina Legal como alicerce jurisdicional já se havia estabelecido, imprescindível se faz o estudo da disciplina em questão. A fase de desenvolvimento e consolidação dita nacionalista da Medicina Legal, teve como protagonista Raymundo Nina Rodrigues, considerado o maior professor de Medicina Legal do século XIX. O catedrático defendia a feitura de concursos públicos a fim de nomear peritos oficiais, “a fim de que se tornasse a justiça mais bem servida e imune aos erros de avaliação e interpretação comuns à atividade pericial de seu tempo”.[44] As obras de Nina Rodrigues tiveram repercussão e reconhecimento internacionais. O insigne estudioso e mestre faleceu em Paris, aos 17 de julho de 1906. Em 1900 é criado serviço de identificação antropométrica (identificação a partir das qualidades físicas particulares de um indivíduo) e a assessoria médica da polícia é transmutada em Gabinete Médico-Legal. Em antagonia a este avanço, nos cursos de Medicina Legal do país avaliações práticas da disciplina em análise deixam de ser obrigatórias. Dois anos depois, Afrânio Peixoto propõe uma reforma no Gabinete Médico-Legal, inspirado em suas observações na Alemanha, afirmando que o conjunto das “monstruosidades alcunhadas de termos de autópsias [sic], autos de corpo de delito confusos, desordenados, incoerentes, dando um triste atestado de incompetência profissional e prejudicando os interesses da justiça”[45] é característica inerente à prática médico-legal do período. Influenciado por esta afirmação, o governo federal edita o Decreto nº 4.864, de 15 de junho de 1903,[46] que discorre detalhadamente sobre as normas de procedimento das perícias médicas. Tal legislação foi considerada tão avançada para a época que Locard e Lombroso apregoavam que França e Itália deveriam se espelhar na norma brasileira. No entanto, as determinações prescritas no Decreto permaneciam em desuso e médicos não especializados eram convocados em juízo para apresentar laudos. Ante os protestos da Academia Nacional de Medicina e do Instituto dos Advogados do Brasil, o Decreto nº 6.440, de 30 de março de 1907[47] transforma o aludido Gabinete em Serviço Médico-Legal, sendo nomeado Afrânio Peixoto como seu primeiro diretor. Em 1915 a Lei Maximiliano confere legitimidade para serem procedidas aulas práticas nas Faculdades de Medicina e reconhece a validade jurídica dos laudos então elaborados.[48] Ainda no tocante à validade jurídica dos laudos periciais, em 1924 o Serviço Médico-Legal se transforma no Instituto Médico-Legal, e se subordina diretamente ao Ministério da Justiça. O referido Instituto, ao fim do governo de Washington Luís, volta a se subordinar ao chefe de polícia do Distrito Federal. A vigência do Código de Processo Penal de 1941,[49] em vigor até os dias atuais, determina que as perícias sejam procedidas apenas por peritos oficiais. Em 20 de outubro de 1967 foi fundada a Associação Brasileira de Medicina Legal, sendo hoje a Medicina Legal reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina, pela Associação Médica Brasileira e pela Comissão Nacional de Residência Médica do Ministério da Educação como especialidade médica.[50] 2. A PERÍCIA COMO MEIO DE PROVA De acordo com o discorrido, desde os primórdios da jurisdição, a Medicina Legal mantém estreito relacionamento com o Direito. Hélio Gomes afirma: “Sendo o Direito uma ciência humana, é preciso, em primeiro lugar, que o profissional do Direito tenha bom conhecimento do que é o ser humano em sua totalidade. […] Para isto, não é necessário que possua o saber de um profissional da área biomédica, mas tem que conhecer as bases daquela unidade.”[51] Conforme menção anterior, não é o Direito um campo de estudo autossuficiente, necessitando, portanto, o seu estudioso deter conhecimentos pelo menos superficiais acerca das Ciências que o influenciam e nele se refletem. Ainda, por ser a perícia meio de prova, tanto no processo penal, como no cível e trabalhista, deve o jurista ter conhecimentos mínimos acerca de tal matéria, a fim de compreender o espírito das normas e bem gerir sua aplicação. 2.1 PROVAS: CONCEITO E FINALIDADE Do latim probatio, o termo prova significa argumento, verificação, confirmação.[52] No Processo Penal, busca-se uma reconstituição dos fatos, tal como se deram anteriormente, de forma fiel, tanto quanto possível. Não basta o convencimento do julgador. Deve-se buscar a reconstrução histórica do fato imputado ao réu e considerado contrário ao ordenamento jurídico pátrio. Provar, no processo, é, então, demonstrar “a existência ou inexistência de um fato, a falsidade ou veracidade de uma afirmação”.[53] Enquanto no Processo Civil imperam as presunções, a busca por uma verdade formal, vez que as partes podem dispor de seus direitos, no Processo Penal, impera a busca pela verdade real, excepcionalmente atendo-se o Juiz à verdade formal, uma vez que os direitos contestados na lide penal são indisponíveis, buscando o Estado exercer o jus puniendi. Enquanto a verdade real é aquela fiel aos acontecimentos, a verdade formal é aquela pautada em convenções, deduções, até mesmo ficções, desde que os fatos versem sobre interesses disponíveis, sendo este interesses quase que exclusivamente os discutidos na esfera cível, ainda que não seja o Juiz um mero espectador afundado em inércia durante a produção de provas do feito.[54] Apregoa Machado acerca da verdade real: “No caso do processo penal, a verdade que se busca não é uma verdade absoluta mas apenas a verdade histórica, ou seja, aquela que guarda uma relação de correspondência entre os fatos que constituem o thema probandum e a ideia ou juízo que se faz a respeito da realidade de tais fatos (juízos verdadeiros). A busca dessa verdade no processo penal nada mais é do que a reprodução dos fatos históricos que compõem a pretensão punitiva deduzida em juízo, ou a própria res in iudicium deducta, como diziam os latinos”.[55] Objetivamente, prova é o conjunto de meios ou elementos destinados a demonstrar as alegações trazidas ao litígio; subjetivamente, prova é o convencimento do Juiz acerca da existência dos fatos narrados e comprovados no decurso da lide. Tem, portanto, a prova, a finalidade de comprovar a autoria e materialidade dos fatos discutidos na ação, para que o julgador concretize a pura justiça, fazendo valer os dizeres: narra mihi factum, dabo tibi jus.[56] 2.1.1 Princípios que regem as provas As provas são regidas pelos princípios da comunhão da prova (ou princípio da aquisição), da audiência contraditória, da liberdade das provas, da auto-responsabilidade das partes, da oralidade, da concentração, da publicidade e, por fim, princípio do livre convencimento motivado. Princípio da comunhão da prova ou da aquisição: impera a supremacia do interesse público. As provas não pertencem às partes, pertencem ao processo, uma vez que a finalidade é formar o convencimento do julgador. A prova trazida ao processo por uma das partes pode ser aproveitada pela parte contrária. Princípio da audiência contraditória: toda prova poderá sempre ser contraditada pela parte contrária. Uma prova não pode ser produzida sem o conhecimento da outra parte. Tal transgrediria o princípio do devido processo legal e da ampla defesa. Princípio da liberdade das provas: a liberdade das provas é o alicerce do princípio da verdade real, não devendo a lei impor limites à possibilidade de as partes comprovares suas teses e antíteses. Princípio da auto-responsabilidade das partes: quando da produção das provas, as partes assumem as consequências de sua inércia, erro ou atos dolosos. Princípio da oralidade: os depoimentos devem ser orais, não podendo ser substituídos por outros meios. Deste princípio decorre o princípio da concentração.[57] Princípio da concentração: busca-se concentrar toda a produção da prova na audiência.[58] Princípio da publicidade: os atos judiciais são públicos, com exceção da decretação do segredo de justiça. Assim sendo, são também públicas as provas. Princípio do livre convencimento motivado: como já mencionado, ao julgador é dada discricionariedade para apreciar as provas e formar o seu convencimento, devendo, no entanto, fundamentar suas decisões. 2.1.2 Ônus e avaliação de provas O ônus da prova (onus probandi) é encargo conferido à parte que lhe impõe o dever de comprovar a imputação, sob pena de suportar uma adversidade processual. Destarte, cabe à acusação provar os fatos que imputa ao réu, bem como a materialidade dos mesmos. Já ao réu, cabe comprovar os fatos impeditivos, os modificativos e os fatos extintivos. Neste sentido, determina o Código Processual vigente, em seu Art. 156: “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer […]”.[59] O ônus acusatório é pleno, enquanto o ônus da defesa é relativo, bastando ao réu conduzir o apreciador da lide a uma dúvida razoável, sendo esta suficiente para o seu benefício. O Juiz tem o dever de dirimir dúvidas que pairam sobre a ação penal (acerca de fatos relevantes para a solução do litígio), não sendo inerte, como mencionado, mas não recai sobre a sua figura o ônus probante. Por reinar na égide processual penal a perquirição pela verdade histórica, material, não pode haver limitação de espécie alguma às provas. Entretanto, não são objetos de comprovação: – Fatos axiomáticos: são os fatos que, de per si, são evidentes. – Fatos notórios: os fatos absolutamente notórios (de conhecimento geral ou domínio público) não necessitam de comprovação. Além destes, os fatos atuais são presumidos, mas os passados devem ser provados, uma vez que o decurso temporal faz com que a memória do povo esmaeça. Ainda, não são objeto de prova os fatos intuitivos, ou seja, aqueles decorrentes da experiência e da lógica. – Fatos sobre os quais incide presunção legal absoluta: as presunções jure et de jure, ou seja, as decorrentes da norma, são raras no Processo Penal, mas não podem ser ignoradas, pois estes fatos não admitem prova em sentido contrário. – Fatos irrelevantes: são os fatos incapazes de incidir sobre o juízo de valor do ato ilícito e antijurídico, ou seja, tais fatos não refletem na solução do processo. – Fatos impossíveis: são os fatos inviáveis, que não são passíveis de acontecer. A doutrina prega que há formas de uma prova ser apreciada. No sistema da íntima convicção, a lei concede ao julgador liberdade plena para decidir, não havendo regra prevista na norma para valoração das provas apresentadas pelas partes. É denominado de íntimo este sistema porque os critérios que formam a convicção daquele que julga não são levados em consideração. Tal sistema é o que vigora nos processos de competência do Tribunal do Júri, pois, nestes casos, os jurados livremente prolatam uma decisão, sem a necessidade de fundamentar o veredicto. No sistema da prova legal, cada prova tem seu peso valorativo definido pela lei, não possuindo o julgador discricionariedade para fazer um juízo de valoração quando da produção de cada prova. Ainda, há o sistema da livre convicção do Juiz, que não deve ser confundido com o sistema da íntima convicção. No sistema da livre convicção, o Juiz possui uma liberdade relativa para apreciar as provas trazidas ao processo e deve fundamentar todas as suas decisões. Este é o sistema adotado pelo Código de Processo Penal Brasileiro em vigor.[60] 2.1.3 Meios de prova De acordo com Fernando Capez, “meio de prova compreende tudo quanto possa servir, direta ou indiretamente, à demonstração da verdade que se busca no processo”.[61] Já Didier, Braga e Oliveira referem-se ao meio de prova como sendo, “em verdade, a técnica desenvolvida para se extrair prova de onde ela jorra (ou seja, da fonte)”.[62] Ao princípio da liberdade dos meios de prova vigoram certas limitações, tais como: observância das provas civis no que concerne ao estado das pessoas (parágrafo único do Art. 155 do Código de Processo Penal)[63]; a exigência do exame de corpo de delito, quando houverem vestígios, sendo vedado o suprimento da confissão do acusado;[64] apresentação das alegações finais orais, não podendo ser apresentadas de forma escrita, na instrução criminal do processo comum;[65] a inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito[66]. São meios de prova: perícias, busca e apreensão, interrogatório, declarações do ofendido, oitiva de testemunhas, reconhecimento de pessoas e coisas, acareação, apresentação de documentos, entre outros, inclusive os meios de provas inominados. Todas as provas devem ser analisadas no bojo do conjunto probatório, inexistindo hierarquização entre os seus meios. 2.2 A PERÍCIA COMO MEIO DE PROVA ADMITIDA PELO DIREITO Perícia é exame minucioso realizado por quem detém conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos,[67] realizado por determinação de Autoridade Policial (exceto o exame de insanidade mental) ou pela Autoridade Judiciária (que pode determinar a realização de qualquer tipo de perícia e, em caso de omissão ou falha, somente esta Autoridade pode determinar a retificação, sempre depois de ouvir as partes) e que tem por finalidade comprovar fatos de interesse da Justiça. O aludido exame pode ser realizado em pessoas ou em coisas. O termo “perícia” descende do latim peritia, e denota uma habilidade especial, tratando-se, pois, “de um juízo de valoração científico, artístico, contábil, avaliatório ou técnico, exercido por especialista”.[68] Só será objeto de perícia aquilo que é relevante para o processo, já que não se admite como objeto de prova aquilo considerado inútil para a ação. Cândido Rangel Dinamarco conceitua: “Perícia é o exame feito em pessoas ou coisas, por profissional portador de conhecimentos técnicos e com a finalidade de obter informações capazes de esclarecer dúvidas quanto a fatos. Daí chamar-se perícia, (grifo do autor) em alusão à qualificação e aptidão do sujeito a quem tais exames são confiados. Tal é uma prova real, (grifo do autor) porque incide sobre fontes passivas, as quais figuram como mero objeto de exame sem participar das atividades de extração de informes.”[69] A natureza jurídica da perícia é “meio probatório”. Apesar de não haver hierarquia entre as provas, Capez classifica a perícia como meio probatório de valor especial, representando “um plus (grifo do autor) em relação à prova e um minus (grifo do autor) em relação à sentença”.[70] Apesar dessa diferenciação em relação aos outros meios de prova, o resultado de uma perícia não vincula o Juiz ao exarar sua decisão, podendo o mesmo discordar do apontado em um exame pericial, devendo fundamentar a discordância. Pode-se afirmar que a perícia é a materialização, em documento oficial, de verificação de coisas e fatos, traduzindo-se numa constatação juridicamente reconhecida. Consiste em exame, avaliação ou vistoria. É considerada uma prova crítica. As examinações são realizadas por indivíduo denominado perito, que é considerado auxiliar da justiça. O perito pode ser oficial ou não oficial. O perito oficial é aquele que exerce funções pertinentes ao cargo público que ocupa, funções estas determinadas previamente pela legislação pátria. Já o perito não oficial é aquele que, não sendo servidor público, exerce transitoriamente esta função, na ausência de perito oficial[71], devendo possuir, em regra, diploma de curso superior e inscrição no órgão de classe e que tem por obrigação prestar compromisso perante a Autoridade requisitória. O profissional que procede à perícia não é escolhido pela Autoridade que a requisita, esta é solicitada ao Órgão que trata da espécie de perícia necessária aos esclarecimentos, excepcionando-se os casos de nomeação de perito particular. Os peritos devem apontar nos laudos apenas questões técnicas, pautadas nas normas jurídicas e científicas da área abordada, sendo vedada a formação de juízo de valor. Os laudos periciais devem ser suficientemente esclarecedores, visando dar base ao convencimento do Juiz e motivar suas decisões. 2.2.1 Perícia médico-legal A perícia médico-legal é aquela realizada aplicando-se os conhecimentos das ciências médicas ao procedimento realizado, visando apurar fato de interesse jurídico. França a define como: “[…] Um conjunto de procedimentos médicos e técnicos que tem como finalidade o esclarecimento de um fato de interesse da Justiça. Ou como um ato pelo qual a autoridade procura conhecer, por meios técnicos e científicos, a existência ou não de certos acontecimentos, capazes de interferir na decisão de uma questão judiciária ligada à vida ou à saúde do homem ou o que com ele tenha relação.”[72] Hélio Gomes conceitua a perícia médico-legal como sendo “todo procedimento médico (exames clínicos, laboratoriais, necroscopia, exumação) promovido por autoridade policial ou judiciária, praticado por profissional de Medicina visando prestar esclarecimentos à Justiça […]”.[73] Percebe-se, em conformidade com todo o exposto, que a perícia médico-legal nada mais que é um meio de prova peculiar, através do qual se aplicam conhecimentos técnicos da Medicina para dirimir questões relacionadas à vida e à saúde e que possuem relevância jurídica; são de interesse da Justiça e não poderia o julgador dirimir as questões sem o auxílio do conhecimento especializado. Ao contrário do que imaginam os de repertório cognitivo não suficientemente farto, as perícias médico-legais não se referem apenas aos exames post mortem. É verificada e atestada a existência ou não de lesões corporais, aborto, conjunção carnal, estupro, etc., inclusive é investigada a causa mortis de um indivíduo, muitas vezes independente de haver dúvidas acerca da materialidade de um delito, mas que provavelmente ensejará consequências jurídicas. 3. A IMPORTÂNCIA DA PERÍCIA MÉDICO-LEGAL PARA O PROCESSO PENAL NA PERSECUÇÃO DA VERDADE REAL Após análise da trajetória histórica da Medicina Legal e da conceituação de perícia, em sua acepção ampla, e da perícia médico-legal, é possível vislumbrar o alto grau de importância tanto da ciência Médica para o Direito, quanto da perícia, de modo geral, para este, em especial para o Processo Penal, tendo em vista que, como mencionado, busca-se a verdade real (exatidão dos acontecimentos) e discute-se na lide direitos (geralmente) indisponíveis. Em sendo a perícia meio de prova, procedimento pelo qual verifica-se a veracidade ou não de fatos alegados em juízo, não é possível conceber a ideia de jurisdição sem procedimento pericial auxiliando-a. Apesar de não vincular o Juiz, respeitando o princípio do livre convencimento do Magistrado, o exame pericial deve ser pautado nas normas técnicas, científicas e jurídicas, para que bem sirva o seu objetivo de auxiliar a Justiça e esclarecer fatos obscuros para o julgador. Ainda, não se pode ignorar o conjunto de regras éticas que norteiam cada especialidade profissional. No caso do perito, devem ser observadas as normas de sua especialidade e as normas éticas periciais (além de outras tantas). As normas técnicas, éticas e jurídicas que norteiam o trabalho do perito visam resguardar não apenas o interesse do particular, como também a administração da justiça. A perícia desempenha fundamental papel no auxílio processual não apenas penal, mas auxilia todos os ramos do Direito. A função da perícia não é postular em favor de nenhuma das partes; não é acusar, nem inocentar. O papel primordial da perícia é, de forma imparcial, verificar o fato e o que veio a lhe dar causa. Muito mais que satisfazer interesses particulares das partes, a perícia visa satisfazer os interesses da Justiça, se materializando este fato no auxílio da formação da convicção do douto julgador. Eis aí a grande valia da perícia para a Justiça. A perícia médico-legal, examinação peculiar, espécime do “gênero perícia”, além da importância atribuída ao gênero, carrega em si uma relevância ainda maior à luz do Processo Penal. O Direito Penal versa sobre os bens jurídicos mais fortemente tutelados pelo ordenamento normativo. Dentre eles, figuram a integridade física, a saúde, a vida e a liberdade. Decerto é a vida o bem jurídico mais relevante aos olhos da legislação. O jus puniendi, ao se perfazer, põe em risco bens jurídicos do acusado. É essencial que as provas sejam robustas, para que o Juiz possa, de forma concisa e sem faltas, cumprir o papel jurisdicional do Estado do qual é presentante[74]. Aqui não se trata de discutir dolo, culpa, pena, consequências sociais, morais e jurídicas do delito, mas tão somente de apontar que não pode o Estado ferir os bens que ele mesmo tutela. Floresce aí a motivação da busca da verdade real, da necessidade de ter o Juiz a plena convicção de como os fatos ocorreram em realidade. A perícia médico-legal examina fatos e fenômenos relativos aos bens jurídicos mais importantes do ser humano e possuem grande valoração, pelo seu próprio espírito, na descoberta da verdade real e, consequentemente, no julgamento mais acertado e pautado em todos os princípios jurídicos, corporificando o verdadeiro propósito da Justiça, que não é condenar nem inocentar, mas tentar sanar o abalo sofrido pelo ordenamento jurídico. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em que pese ser o Estado responsável pela tutela dos bens jurídicos dos cidadãos, em especial os bens indisponíveis, se vale aquele de uma ferramenta para exercer essa tutela, ofertando à sociedade, dessa forma, a plena sensação da persecução e concretização da Justiça, em sua acepção filosófica. O Direito, apesar de ser onipresente, não é onisciente, valendo-se de técnicas alheias à sua área de estudo e auxiliando-se de Ciências e de profissionais que, de qualquer forma, possam bem contribuir para o alcance de seu objetivo e da pacificação social. Dentre as Ciências nas quais o Direito busca amparo e auxílio, está a Medicina Legal, ramo de especialização da Medicina que cuida de verificar fatos relacionados à saúde, integridade física, mental e à vida. Não se pode imaginar persecução de verdade real sem bem analisar os fatos, de forma científica e revestida de certezas inabaláveis. Eis o papel das perícias e, no caso, da perícia médico-legal para a Justiça: trazer à lume convicções incontestáveis.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-83/a-importancia-da-pericia-medico-legal-para-o-processo-penal-na-persecucao-da-verdade-real/
Interceptação telefônica face aos direitos individuais
O presente trabalho trata da Interceptação Telefônica como um alicerce às Investigações Criminais, analisando as suas repercussões diante dos Direitos Individuais dos investigados. Assim, dando ênfase ao direito à intimidade, pois dentre os individuais é o direito atingido mais diretamente pela concessão da medida em tela. Desta forma, delinearam-se, no primeiro capítulo, os aspectos do Direito à Intimidade conceituando-o e apresentando o conflito gerado entre os direitos fundamentais e a interceptação telefônica. O segundo capítulo surge para situar a interceptação telefônica no contexto do processo penal como sendo um meio importante de prova, discorrendo-se sobre a liberdade da prova, seu ônus e limites, perpassando pelos conceitos de prova ilícita e prova ilícita por derivação até se chegar na fundamentação quanto à possibilidade de sua admissão no processo penal brasileiro. O terceiro e derradeiro capítulo empenha-se em conceituar a interceptação telefônica, analisar a Lei nº 9.296/96 que trata especificamente sobre o tema, defendendo a constitucionalidade do parágrafo único do art. 1º, da referida lei, demonstrando-se a controvérsia sobre a possibilidade de sua aplicação também no processo civil, os requisitos para a sua autorização, a legitimidade para requerer-se tal medida e, por fim, o seu uso como prova legal.[1]
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO Este trabalho versa sobre a utilização de interceptações telefônicas para o deslinde de processos judiciais. Para tanto, traz o desenvolvimento histórico do tema nas constituições brasileiras mais remotas até a atual; defende a sua aplicação no processo penal e demonstra a sua inadmissibilidade no processo cível; situa-a como um meio de prova lícita, vez que respaldada pela Lei nº 9.296/96, porém, traz um pré-questionamento quanto a sua constitucionalidade no que se refere à violação dos direitos e garantias individuais do ser humano; discute a proporcionalidade no trato dos interesses da coletividade em detrimento dos individuais etc. No primeiro capítulo, fala-se dos aspectos do Direito à Intimidade conceituando-o, apresenta-se o conflito gerado entre os direitos fundamentais e a interceptação telefônica, com ênfase no direito à intimidade. O segundo capítulo situa a interceptação telefônica no contexto do processo penal como sendo um meio importante de prova. Já o terceiro capítulo empenha-se em conceituar a interceptação telefônica, analisar a Lei nº 9.296/96 que trata especificamente sobre o tema, defendendo-se a constitucionalidade do parágrafo único do art. 1º, da referida lei, demonstrando-se a controvérsia sobre a possibilidade de sua aplicação também no processo civil, os requisitos para a sua autorização, a legitimidade para requerer-se tal medida e, por fim, o seu uso como prova legal. Em suma, com o texto que se segue, tenta-se esmiuçar todas as matérias que incidem direta e indiretamente com o tema Interceptações Telefônicas e apesar de citar esparsamente breves linhas a respeito do direito comparado, o trabalho enfoca o direito pátrio. 1. O DIREITO À INTIMIDADE 1.1 Conceito Na Constituição de 1988 os direitos individuais – dentre eles a intimidade e a privacidade, foram amplamente contemplados pelo Texto. Manuel Gonçalves Ferreira Filho, citado por Alexandre de Moraes (2001), diz que os direitos à intimidade são parte da proteção constitucional à vida privada, conforme segue: “[…] intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa, suas relações familiares e de amizade, enquanto a vida privada envolve todos os demais relacionamentos humanos, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo etc.” (FERREIRA FILHO apud MORAES, 2001, p. 73.) Logo, pode-se afirmar que a vida privada é mais ampla e abrange a intimidade, porque esta faz parte dos pensamentos do homem que ao serem exteriorizados passam para o mundo da vida privada. Aí, então, são compartilhados por um número determinado de pessoas – naturalmente escolhidas pelo sujeito de direito. Como bem ressalta o Professor Washington de Barros Monteiro (2003, p. 96), a atual Carta da República consagrou em seu texto o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à integridade física, à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, essa enumeração é exemplificativa, pois os referidos direitos são inumeráveis, dinâmicos e variáveis no tempo e espaço. O referido doutrinador assevera que tais direitos possuem as seguintes características: são irrenunciáveis, intransmissíveis, ilimitados, absolutos, imprescritíveis, vitalícios e incondicionais. Desta forma, tais direitos não podem ser objeto de transação, nem serão transmissíveis aos sucessores dos detentores, tampouco poderá a eles estabelecer limites voluntários. Se houver limitações, somente a lei poderá fixá-las. Vez que tais direitos fazem parte do Texto se aduz que somente a própria Constituição poderá dar as exceções aos referidos direitos, sendo certo que leis inferiores não poderão contrariá-la, sob pena de serem taxadas de inconstitucionais. 1.2 Evolução da Tutela Constitucional ao Direito da Intimidade Passamos, então, a analisar a evolução da proteção constitucional ao direito da intimidade, que inicialmente se manifestava – quase tão somente – na inviolabilidade do domicílio e das correspondências, vez que a tecnologia das comunicações telefônicas apenas “engatinhava” e a de dados sequer existia. Esses são direitos fundamentais garantidos desde a Constituição do Império que foi promulgada em 25 de março de 1824. Parlamentarista e fundada no modelo inglês, acrescentou o poder moderador aos três poderes clássicos. Permitia a escravidão e negava os direitos políticos às mulheres, aos criados e religiosos, além de vincular tais direitos à renda mínima anual, tal Carta expressava in verbis: “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. […] XXVII. O Segredo das Cartas é inviolavel. A Administração do Correio fica rigorosamente responsavel por qualquer infracção deste Artigo.” A Carta da República de 1891, primeira constituição republicana do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro daquele ano, representou o pensamento liberal americano e levou ao estabelecimento do presidencialismo e do federalismo. Fez a divisão dos poderes, aboliu o poder moderador e instituiu o sufrágio universal masculino, não mais condicionado ao status social e econômico, como era no Texto anterior. Permitiu o voto a descoberto, fonte de muitas das fraudes eleitorais da República Velha e não referiu às garantias sociais dos trabalhadores. Tal Texto manteve o modelo anterior, além de inaugurar no Brasil a inviolabilidade do domicílio, conforme se segue: “Art. 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 11 – A casa é o asilo inviolável do indivíduo; ninguém pode aí penetrar de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir as vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei. […] § 18 – É inviolável o sigilo da correspondência.” Já a Constituição de 1934, segunda constituição republicana do Brasil, promulgada aos 16 de julho daquele ano, foi a primeira a considerar a posição social dos trabalhadores e a instituir a justiça trabalhista. Inspirou-se nas constituições alemã e espanhola, sendo certo que assegurava a inviolabilidade do domicílio e das correspondências, conforme veremos: “Art. 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 8 – É inviolável o sigilo da correspondência.” Devido ao contexto político-social da época, a Constituição de 1937, terceira constituição republicana do Brasil, outorgada em 10 de novembro daquele ano por Getúlio Vargas, ampliou o poder e o mandato do presidente da república, restringiu a autonomia do judiciário, dissolveu os órgãos legislativos e declarou o estado de emergência. Fundada nas constituições européias que eram ditatoriais e anticomunistas, trouxe respaldo legal ao regime ditatorial brasileiro. Restringiu direitos anteriormente conferidos – um retrocesso – mas continuou a assegurar a inviolabilidade da correspondência, salvo as exceções previstas em lei. Segue o interessante preâmbulo justificativo dessa Carta e o sobredito direito assim expresso: “O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários, que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente; ATENDENDO a que, sob as instituições anteriores, não dispunha, o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo; Sem o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas instituições civis e políticas; Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o Pais: Art 122 – A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:[…] 6º) a inviolabilidade do domicílio e de correspondência, salvas as exceções expressas em lei.” Quarta constituição republicana do Brasil, a Carta da República de 1946, promulgada aos 18 de setembro, baseou-se na constituição de 1934. Num eminente caráter liberal, evidenciou as múltiplas tendências políticas representadas naquela constituinte. Admitiu o exercício pela União do monopólio de indústrias e atividades, manteve o regime federativo e o sistema presidencial. Garantiu o direito de propriedade e ampliou as conquistas trabalhistas do Estado Novo. Note-se que este texto constitucional não apresentava mais as exceções à violação da correspondência. Foi “revogada” em 1967 pela ditadura militar e apresentava os direitos em tela da seguinte maneira: “Art. 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 6º – É inviolável o sigilo da correspondência.” A quinta constituição republicana do Brasil, promulgada em 24 de janeiro de 1967, foi preparada pelo governo militar e aprovada pelo Congresso sem discussão, foi praticamente “revogada” pelo Ato Institucional nº 5, de 1968 e modificada a partir da emenda constitucional nº 1, de 1969; entretanto, as comunicações telefônicas são pela primeira vez tuteladas através de sua Emenda Constitucional nº 1. “Art. 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 9º – São invioláveis a correspondência e o sigilo das comunicações telegráficas e telefônicas.” A atual Carta Magna é a sexta constituição republicana do Brasil. Foi promulgada em 5 de outubro de 1988, sendo certo que restringiu o conceito de empresa nacional e criou novas garantias constitucionais, tal como o mandado de injunção e o habeas data. Qualificou como crimes inafiançáveis a tortura e as ações armadas contra o estado democrático e a ordem constitucional. Além disso, determinou a eleição direta do presidente da república, governadores e prefeitos, ampliou os poderes do Congresso. Note-se que sofreu revisão somente a partir de 1995. Bem fez o legislador constituinte ao abranger pelo manto protetor constitucional os direitos à vida privada, à honra e à imagem, o sigilo das correspondências, do domicílio, das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, como expostos a seguir: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; […] XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.” No que pese atualmente até termos uma relativa proteção ao direito à intimidade, com o passar do tempo, as formas de violação – e os objetivos destas – cresceram substancialmente o que leva a reavaliar-se o que seja, de fato, o mais importante. Sempre haverá o conflito entre os direitos individuais e coletivos, afinal é para solucionar esses conflitos que o direito existe, tal qual uma ferramenta de Justiça. A complexidade dessa questão é bem aumentada ao analisar-se que, mesmo com a interceptação sendo desenvolvida legalmente, a intimidade de outras pessoas que não sejam alvo da investigação será violada também. A possibilidade de a interceptação das conversações realizadas através de um terminal público (“orelhão”) é o maior exemplo da extensão dos prejuízos que podem ser causados à pessoas não envolvidas no caso. O risco de violação ilegal dos direitos de várias pessoas está sempre presente quando se utiliza esse meio de investigação, razão pela qual a escolha dos profissionais que levarão a cabo a interceptação deva ser sempre primorosa. De qualquer forma, a possibilidade de violação legal é a exceção prevista no art. 5º, inciso XII, do texto constitucional em vigor. A regra é a inviolabilidade, por isso que a doutrina utiliza amiúde o princípio da proporcionalidade, que nasceu no direito administrativo e hoje se estende ao constitucional e outros, conforme Willis Santiago Guerra Filho: “O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado quando com seu auxílio se pode promover o resultado desejado; ele é exigível quando o legislador não poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que seria em meio não prejudicial ou portador de uma limitação menos perceptível a direito fundamental.” (GUERRA FILHO apud MENDES, 1999, p. 111). Assim, o intérprete da norma deve ponderar sobre qual direito deve sobrepor ao outro. O direito da coletividade não deve prevalecer sempre em prejuízo dos direitos garantidos individualmente, pois ambos são fundamentais. É sensato asseverar que se deve analisar o caso concreto a fim de se constatar o grau do prejuízo decorrente à sociedade e ao indivíduo, na tentativa de optar por aquele que realmente seja o mais justo. 1.3 O Conflito entre Direitos Fundamentais Com base no estudo da incrivelmente lúcida aula magna proferida pelo ex-ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, na Faculdade de Direito da FMU em São Paulo/SP, no dia 13 de fevereiro de 2006, tornar-se-á clara a questão do conflito entre direitos fundamentais, como segue nos próximos parágrafos. Observa-se que o Direito é a ferramenta que tem de prover a regulação nas relações jurídicas, sendo que para seus operadores a solução de um conflito em que apenas um direito foi violado não é a mais árdua das tarefas, pois o Estado tem que apenas reconstituir a situação jurídica anterior à lesão do direito em questão. Entretanto, muitas vezes o Direito tem de resolver questões onde há conflitos entre direitos diversos e essa é a mais árdua das tarefas para os representantes jurídicos do Estado, ou nas palavras do sobredito ex-ministro: “Acontece que muitas vezes o conflito que o Direito tem que analisar está entre a prevalência de um direito sobre o outro. O princípio constitucional da livre iniciativa, por exemplo, muitas vezes pode se chocar com a defesa do consumidor, ou com a preservação do meio ambiente. E nestes casos a solução do conflito é muito mais complexa e também muito mais interessante. No âmbito do Direito Penal, disciplina pela qual me interesso particularmente, justamente por se tratar do ramo do direito que protege os interesses e bens jurídicos mais relevantes (vida, liberdade, honra, etc.) este conflito entre direitos fundamentais é constante. A própria decisão do juiz ao condenar alguém implica, muitas vezes, em se retirar do condenado o direito à liberdade. O processo penal opõe constantemente o interesse da sociedade ao interesse individual do réu e o papel do estudioso do direito deve ser justamente o de, nestes casos, encontrar a solução que possa preservar ao máximo os direitos fundamentais.  É justamente assim que se consegue, por meio do direito, produzir justiça.” (Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, 2006) Na aula magna em tela, o então ministro versou sobre o sigilo na investigação criminal, sendo que este é um dos temas onde mais conflitos ocorrem entre direitos e interesses legítimos, tal como, conflito entre o dever do Estado em investigar e o direito à ampla defesa, ou ainda, mais propriamente ao tema deste trabalho, o conflito entre o dever do Estado em investigar e o direito à intimidade, bem assim paralelamente à liberdade de imprensa. O primeiro conflito analisado pelo então ministro foi o existente entre o dever do Estado em investigar, sendo que para que isso ocorra de maneira eficiente tem de ser resguardado o sigilo na investigação, e a obrigatoriedade na observância do princípio da publicidade como garantia de outro direito fundamental que é o da ampla defesa. Nas palavras de Thomaz Bastos isso vai assim: “O sigilo durante procedimentos investigatórios é, sem dúvida, essencial para que se possa desvendar a autoria do crime e produzir provas que possibilitem uma condenação em juízo. Se o criminoso sabe quais serão todos os atos que a polícia realizará durante a investigação ele tem instrumentos para dificultar o seu sucesso. “No entanto, não há atentado maior ao direito de defesa do que não possibilitar ao investigado  conhecer exatamente quais as acusações que são feitas contra ele, ou quais as provas que se produzem, para que ele possa produzir contra-provas e contra-argumentos. É o caso de Joseph K. no clássico livro de Kafka, O Processo”. (Márcio Thomaz Bastos, Ministro da Justiça, 2006) É notório que nos períodos em cuja ordem dominante seja autoritária – às vezes ditatorial – deixando-se de lado o paradigma do Estado Democrático de Direito, a solução desse conflito tende para o resguardo do sigilo, pois essa é uma forma da ordem dominante manter o controle. De maneira inversa, em períodos mais democráticos a solução do conflito tende à publicidade. Entretanto deve-se considerar que: “Quando se torna pública uma gravação de conversa telefônica, ou o acesso à contas bancárias de alguém, ocorre, uma violação grave a direitos fundamentais desta pessoa. Aliás, este tema da interceptação telefônica, coloca toda uma outra discussão sobre sigilo em uma investigação criminal. De fato, determinadas atividades criminosas com alto grau de complexidade organizacional somente têm sua materialidade demonstrada com a gravação de conversas entre os agentes, fazendo com que a interceptação telefônica seja freqüentemente considerada como indispensável para a atividade policial e judicial. Por outro lado, não são poucos os que entendem que as escutas telefônicas representam um grave atentado aos direitos de intimidade e privacidade inerentes ao cidadão e garantidos pela Constituição Federal, devendo, portanto, ser reguladas com o maior cuidado possível. Entendo que ambos os aspectos podem e devem ser contemplados em um Estado Democrático de Direito. O direito ao segredo das comunicações, embora seja em si um direito individual, não deve ser considerado um mero sinônimo do direito à intimidade, esse sim um direito fundamental inalienável. O direito ao segredo das comunicações pode, em determinados casos, ser limitado por razões concretas de interesse público.” (Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, 2006) O então ministro expõe com brilhante clareza a questão da interceptação telefônica, dizendo que esta deve ser observada sob dois aspectos: o da definição, no caso concreto, de até que ponto o interesse público justifica a quebra do sigilo das comunicações do acusado ou suspeito; e segundo, se quebrado o sigilo, o de resguardar o direito inarredável do acusado de que as informações obtidas sejam utilizadas exclusivamente no âmbito da investigação policial ou judicial. É bem verdade que a legislação especial sobre interceptação telefônica rege que apenas as investigações sobre crimes puníveis com reclusão permitem a quebra do sigilo telefônico do acusado ou suspeito. Seria muito sensato concluir que, para além do que a lei estabelece, devemos partir da premissa que a interceptação telefônica somente deverá ser utilizada como meio de prova nos casos em que seja absolutamente essencial para as investigações, isso equivale a dizer que não basta o crime ser punível com reclusão para se justificar a quebra do sigilo telefônico – há de se demonstrar a utilidade e a indispensabilidade desse instrumento – conforme a própria lei dispõe em seu art. 2º, inciso II, a contrario sensu. O ministro não disse, mas sabe-se que a interceptação telefônica está muito banalizada hoje em dia, e deve-se admitir que isso ocorre também – e em parte – por culpa da polícia. Quanto ao segundo aspecto, ou seja, se quebrado o sigilo, o de resguardar o direito insofismável do acusado de que as informações obtidas sejam utilizadas exclusivamente no âmbito da investigação policial ou judicial, o palestrante ressalta: “[…] a proteção da Constituição às comunicações se concretiza na afirmação de seu segredo, no dever imposto à todos os poderes públicos de não revelar o seu conteúdo. Em outras palavras, a quebra do sigilo fiscal, bancário ou telefônico de um acusado não significa, de maneira alguma, que todas as informações colhidas pelas autoridades passam a ser de conhecimento público. O acusado cujo sigilo foi quebrado não perde o direito à intimidade, e as autoridades de posse das informações não deixam de ter o dever de manter o sigilo”. (Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, 2006) É claro que em se tratando de Ministro de Estado da Justiça, o referido palestrante, teve de justificar as ações do órgão sob seu controle – Polícia Federal – que realiza diuturnamente trabalhos com base na interceptação telefônica, talvez se essa mesma palestra fosse proferida quando o sobredito era ainda um notório advogado suas certezas seriam outras. De qualquer forma, o texto analisado é brilhante, pois expõe com clareza e objetividade a questão ora estudada. 1.4 Interceptação Telefônica Versus Direito à Intimidade Em matéria de direito é muito comum quando desenvolvemos um determinado tópico, partirmos de seu aspecto objetivo, ou seja, legal, tomando-se como base o que a norma determina a respeito do que pretendemos desenvolver. Assim, muitos tópicos apesar de estarem consolidados e consagrados em normas de validade inquestionável, reclamam um cuidado maior em sua tutela. Pois como asseverava o antigo parlamentar e ministro da justiça da República de Weimar, Gustav Radbruch, uma das maneiras que podemos encarar o Direito é como atitude que refere realidades jurídicas aos valores, considerando o direito como fato cultural, contudo, estas realidades evoluem numa velocidade incrível, atribuindo ao poder legiferante uma tarefa de renovação constante e ininterrupta. Um pensamento notório é que a curto e médio prazo a sociedade deve se amoldar ao direito, mas em longo prazo esse deve se adaptar àquela, sob pena de perder sua legitimidade real. Tome-se por base o direito à intimidade, como já dito, assegurado na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, inciso X, in verbis: “[…] são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Embora esteja dentre os direitos e garantias fundamentais, sendo cláusula pétrea, há muito se vem prescindindo desta garantia, mas que, ao contrário, merece tutela pronta e urgente do direito, na afirmação de Costa Jr. (COSTA JR., 1995, p. 12): “[…] a necessidade de encontrar na solidão aquela paz e aquele equilíbrio, continuamente comprometidos pelo ritmo da vida moderna”. Assim sendo, não apenas pela necessidade, mas pelo direito que a pessoa tem de isolar-se, resguardar-se, manter-se distante do alarde das multidões, alhear-se das, muitas vezes, insuportáveis solicitações diárias, dos olhares e ouvidos ávidos, “recolhendo-se ao seu castelo” (COSTA JR., 1995, p. 12 e 13). O inevitável progresso tecnológico, principalmente nas áreas sociais e econômicas, provoca nas pessoas uma terrível inquietude, que produz a corrosão e o devassamento da vida privada das pessoas. Certamente podemos afirmar que esta é incompatível com a vida moderna, porém o já citado Professor (COSTA JR., 1995, p.29) afirma que: “[…] esse desejo de subtrair as nossas experiências íntimas ao controle do mundo exterior, interiorizando-as, justifica-se pelo fato de nada mais ser que o corolário de nosso anseio por uma personalidade independente”. Desta feita, não há como restringir esse direito que é fundamental, pelo mero fato de sê-lo. Está incluso no direito à intimidade a sua salvaguarda contra possíveis agressões impedindo-se a sua divulgação banalizada. Percebemos, então, que o âmbito da intimidade pode ser atacado por dois lados, o primeiro é a própria invasão, e o segundo a divulgação das informações obtidas pela invasão, sendo que ambos consistem em agressões, não havendo razão para distinguir tais esferas privadas, pois acabam por ser dois momentos de um único direito, ou seja, o direito à intimidade. Com a análise do que foi exposto até aqui, parece não restar dúvida acerca do direito à intimidade, imanente a todo ser humano. Entretanto, devemos salientar que como todo direito fundamental este também sofre limitações, reduções, porém não a eliminação. Podemos começar a comentar aqui sobre a tão questionada lei nº 9.296 de 24 de julho de 1996 que disciplinou as interceptações telefônicas mencionada na atual Carta da República em seu o art. 5º, inciso XII. Inúmeras considerações já foram elaboradas a respeito, como as que afirmam que a redação desse mencionado dispositivo é falha por limitar-se apenas às comunicações telefônicas e alguns doutrinadores afirmam ainda que a interceptação telefônica durante a instrução judicial estaria colidindo com as garantias da igualdade, do contraditório e da ampla defesa, enfim. E ainda há o pensamento daqueles que entendem que o art. 5º, inciso LVI da Constituição Federal, que consagra o princípio de serem admitidos todos os meios de prova não obtidos por meio ilícito, relaciona-se com a intimidade. É uma discussão infindável. Já o Professor Lênio Streck (STRECK, 1997, p. 57), ao tratar da Interceptação telefônica assevera: “[…] somente se justifica a invasão da esfera dos direitos fundamentais do indivíduo para o combate dos crimes que representem ameaça aos valores constitucionais, erigidos como metas pelo Estado Democrático de Direito”. Deve-se atentar que o direito à intimidade, cláusula pétrea, é inviolável, e com a interceptação não apenas o sujeito objeto desta terá seu direito violado, como também terceiros poderão sofrer as conseqüências do ato delitivo supostamente praticado. Não seria necessário ter-se experiência no assunto para concluir, ou supor, que na interceptação telefônica pessoas que não estão sendo investigadas acabam tendo sua intimidade observada e muitos dados que são coletados acabam ficando em poder de inúmeras pessoas, tais como: os analistas, escrivão, autoridade policial, membro do Ministério Público e do Judiciário, da defesa, bem assim de demais serventuários desses órgãos. Isso constitui uma invasão da privacidade dos cidadãos que não são alvo da medida, mas que mantêm conversa com os suspeitos. Sabe-se que a lei em tela determina a inutilização de dados que não sejam interessantes ao caso, conforme dispõe: “Art. 9° A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada”. Parágrafo único. “O incidente de inutilização será assistido pelo Ministério Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu representante legal.” Entretanto, as informações relativas a cidadãos não suspeitos já foram sabidas pelas pessoas acima enumeradas e o simples fato do saber constituiria a invasão da intimidade do cidadão não suspeito ou não investigado e essa privacidade tem que ser respeitada e parece-nos que está fora do direito de intervenção estatal. Sabemos que os direitos da personalidade existem como garantia aos cidadãos de resguardo das ações do Estado, eles são essenciais, inerentes a cada pessoa, assim, certamente, essa “restrição” à intimidade das pessoas debilita a pretensão de um Direito Penal garantista. O processo penal está se antecipando cada vez mais. Ainda segundo Costa Jr. (1995), o direito à intimidade deriva do espírito do sistema, do complexo da valoração normativa do nosso direito, da consciência social, das idéias e tendências dominantes, e nosso Direito Penal não pode renunciar a certos princípios a título de modernização, notadamente, princípios erigidos constitucionalmente. O cerne da questão, nesse caso de conflito entre direitos, é se o Estado poderá invadir a seara dos direitos fundamentais para obter provas. Assim, a justificativa da invasão deve ser muito bem consubstanciada, além da celeridade na análise por parte do juiz, sob pena de perda da possibilidade de coleta da prova, devido à mora. De fato essa questão é muito controversa, devendo ser analisada caso a caso e essa análise será uma das tarefas mais árduas para quem deva decidir a concessão ou não da medida violadora. 2. A PROVA NO PROCESSO PENAL 2.1 Conceito de Prova Vários doutrinadores estabelecem o que vem a ser prova, começaremos com o eminente jurista Tourinho Filho que define prova da seguinte forma: “[…] antes de mais nada, estabelecer a existência da verdade; e as provas são os meios pelos quais se procura estabelece-la. Entende-se, também, por prova, de ordinário, os elementos produzidos pelas partes ou pelo próprio juiz, visando a estabelecer, dentro do processo, a existência de certos fatos.” (TOURINHO FILHO, 2003, p. 476) Esse autor da área penal estabelece de maneira direta e prática, a vinculação da prova com a descoberta da verdade presumidamente real. Já Ada Pellegrini (2006), doutrinadora afeta à área processual, segue dizendo que: “Toda pretensão prende-se a algum fato, ou fatos, em que se fundamenta (ex facto oritur jus). Deduzindo sua pretensão em juízo, ao autor da demanda incumbe afirmar a ocorrência do fato que lhe serve de base, qualificando-o juridicamente e dessa afirmação extraindo as conseqüências jurídicas que resultam no seu pedido de tutela jurisdicional. As afirmações de fato feitas pelo autor podem corresponder ou não à verdade. E elas ordinariamente se contrapõem as afirmações de fato feitas pelo réu em sentido oposto, as quais, por sua vez, também podem ser ou não verdadeiras. As dúvidas sobre a veracidade das afirmações de fato feitas pelo autor ou por ambas as partes no processo, a propósito de dada pretensão deduzida em juízo, constituem as questões de fato que devem ser resolvidas pelo juiz, à vista da prova dos fatos pretéritos relevantes. A prova constitui, pois, o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos controvertidos no processo. No dizer da Ordenações Filipinas, “a prova é o farol que deve guiar o juiz nas suas decisões” (Livro III, Título 63) sobre as questões de fato. Embora vários temas sobre a prova venham às vezes tratados na lei civil, trata-se de autêntica matéria processual – porque falar em prova significa pensar na formação do convencimento do juiz, no processo. Mas o novo Código Civil invadiu radicalmente essa área, com disposições de caráter nitidamente processual, o que constitui um retrocesso científico (art. 212 ss.).” (GRINOVER, 2006, p. 371) Com a exposição acima, se vê que as provas demonstram a existência dos fatos, o que leva à certeza da existência ou não do direito no caso concreto. O objetivo final da prova é demonstrar a verdade, seja ela real ou formal, em relação aos fatos que realmente necessitem ser comprovados, ou seja, ficariam de fora os fatos notórios, conforme dispõe o Código de Processo Civil pátrio em seu art. 334.  Veja que em direito temos o princípio do contraditório, assim, as partes devem estar cientes da produção de qualquer prova no processo, sob pena de nulidade em razão do cerceamento de defesa. Essa é a regra, a exceção está na produção de prova de caráter cautelar, onde a ciência da produção de determinada prova poderá inviabilizá-la, mesmo assim, depois de produzida, a prova deverá ser levada ao contraditório que é essencial no processo penal, pois a revelia não produz os efeitos existentes no cível, vez que os fatos alegados deverão ser comprovados e disponibilizados ao réu, tudo conforme Ada Pellegrine (1994): “[…] o direito à prova como aspecto de particular importância no quadro do contraditório, uma vez que a atividade probatória representa o momento central do processo: estritamente ligada à alegação e à indicação dos fatos, visa ela a possibilitar a demonstração da verdade, revestindo-se de particular relevância para o conteúdo do provimento jurisdicional.” (GRINOVER, 1994, p. 105.) Ainda, conforme pensa a sobredita doutrinadora, a presença do juiz é essencial à validação das provas no processo, pois as produzidas em procedimentos administrativos como o inquérito policial, sindicâncias etc, servem apenas como fundamento do oferecimento da denúncia por parte do parquet, que deverá provar as alegações em juízo. Temos, ainda, a configuração teórica da prova que é constituída da articulação entre as categorias do elemento de prova, meio de prova e do instrumento de prova. Caso não se verifique no momento de produção da prova a incidência dessas categorias, não se pode afirmar a configuração da mesma no sentido jurídico-processual. A categoria do elemento de prova refere-se aos dados da realidade objetiva, existentes na dimensão do espaço, concernente ao ato, fato, coisa ou pessoa; ou seja, é a parte material da prova, o seu corpo. O meio de prova é a categoria que disciplina como serão obtidos os elementos de prova, é através desta categoria que se realiza a apreensão dos dados da realidade material para sua introdução no processo. O Código de Processo Penal estipula que são meios de prova o Interrogatório no art. 185 a 196; a Acareação no art. 229 e 230; o Depoimento do Ofendido no art. 201, Depoimento das Testemunhas no art. 202 a 225; a Perícia no art. 158 a 184; o Reconhecimento de Pessoas e Coisas no art. 226, 227 e 228; e a Busca e Apreensão reguladas do art. 240 ao 250.   A interceptação telefônica é meio de prova legal citado na legislação extravagante, tal como na Lei nº 9.034/95, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, alguns meios de prova ali definidos e regulamentados, tais como: a utilização de ações controladas, que consiste em retardar-se a intervenção policial, mantendo-se acompanhamento e controle da ação praticada pelo que se supõe ser organização criminosa para concretização da medida legal, no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações (art. 2º, II); o acesso aos dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais, mediante autorização do juiz (art. 2º, III); a captação e interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, bem como seu registro e análise, mediante autorização judicial (art. 2º, IV); e a problemática utilização de agentes infiltrados (art. 2º, V). Também na Lei Complementar nº 105/01, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras, encontra-se a previsão, como meio de prova, da quebra de sigilo prevista em seu art. 1º, § 4º. E mais propriamente no art. 53 da Lei nº 11.343/06 encontra-se a previsão dos meios de prova: agentes infiltrados e ação retardada da autoridade policial. Depois da obtenção do elemento de prova por meio legalmente permitido tem-se, ainda, que fixar o mesmo nos autos de processo. Para tanto se faz necessária a utilização da categoria do instrumento de prova, que se destina a materializar de modo formal os elementos obtidos, só então servirá de base para a formação do convencimento de quem deva apreciá-la. 2.2 A Liberdade de Prova Mesmo não sendo restritivo o Código de Processo Penal Brasileiro quanto à produção de provas, estas não podem afetar a moralidade, a dignidade humana e a legalidade, pois são protegidas pelo Texto constitucional. Deve-se considerar que a liberdade de prova está afixada no Código de Processo Penal Brasileiro que reza: “Art. 6o  Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: I – dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; II – apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; III – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; VII – determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias; Art. 157.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova”. Observe-se que o artigo transcrito dispõe que a autoridade policial deverá colocar um manto de proteção estatal sobre as provas, todas aquelas que no seu entender tiverem relação com o fato. Quando se fala em liberdade de prova está implícito o princípio da livre investigação das provas, ou nas palavras da Professora Ada Pellegrini (2006): “No processo penal, é tão absoluto o princípio (cfr., v.g., o cuidado do legislador ao estabelecer a regra do art. 197 CPP, sobre a confissão), que mais correto seria falar nas exceções ao princípio, que são notavelmente escassas; já apontamos a impossibilidade de mover nova ação penal contra o réu absolvido, mesmo que outras provam apareçam depois. O Código de Processo Civil não só manteve a tendência publicista, que abandonara o rigor do princípio dispositivo, permitindo ao juiz participar da colheita das provas necessárias ao completo esclarecimento da verdade, como ainda reforçou os poderes diretivos do magistrado (arts. 125, 130, 131, 330, 342 e 440). O sistema adotado representa uma conciliação do princípio dispositivo com o da livre investigação judicial. Na justiça trabalhista, os poderes do juiz na colheita das provas também são amplos (CLT, art. 765).” (grifo nosso). (GRINOVER, 2006, p. 72) No art. 157 do Código de Processo Penal Brasileiro está implícito o princípio da persuasão racional do juiz, que assegura que este deverá formar sua convicção com toda liberdade. Esse sistema situa-se entre o da prova legal e o do julgamento secundum conscientiam, ou ainda, nas palavras da sobredita professora: “O primeiro (prova legal) significa atribuir aos elementos probatórios valor inalterável e prefixado, que o juiz aplica mecanicamente. O segundo coloca-se no pólo oposto: o juiz pode decidir com base na prova dos autos, mas também sem provas e até mesmo contra a prova. Exemplo do sistema da prova legal é dado pelo antigo processo germânico, onde a prova representava, na realidade, uma invocação a Deus. Ao juiz não competia a função de examinar o caso, mas somente a de ajudar as partes a obter a decisão divina; a convicção subjetiva do tribunal só entrava em jogo com relação à atribuição da prova. O princípio da prova legal também predominou largamente na Europa, no direito romano-canônico e no comum, com a determinação de regras aritméticas e de uma complicada doutrina envolvida num sistema de presunções, na tentativa da lógica escolástica de resolver tudo a priore. O princípio secundum conscientiam é notado, embora com certa atenuação, pelos tribunais do júri, compostos por juízes populares.  A partir do século XVI, porém, começou a delinear-se o sistema intermediário do livre convencimento do juiz, ou da persuasão racional, que se consolidou sobretudo com a Revolução Francesa.  Um decreto da assembléia constituinte de 1791 determinava aos jurados que julgassem suivant votre conscience et votre intime conviction; o código napoleônico de processo civil acolheu implicitamente o mesmo princípio. Mas é sobretudo com os estatutos processuais da Alemanha e Áustria que o juiz se libertou completamente das fórmulas numéricas. O Brasil também adota o princípio da persuasão racional: o juiz não é desvinculado da prova e dos elementos existentes nos autos (quod non est in actis non est in mundo), mas a sua apreciação não depende de critérios legais determinados a priori. O juiz só decide com base nos elementos existentes no processo, mas os avalia segundo critérios críticos e racionais (CPC, arts. 131 e 436; CPP, arts. 157 e 182).  Essa liberdade de convicção, porém, não equivale à sua formação arbitrária: o convencimento deve ser motivado (Const., art. 93, inc. IX; CPP, art. 381, inc. III; CPC, arts. 131, 165 e 458, inc. II), não podendo o juiz desprezar as regras legais porventura existentes (CPC, art. 334, inc.  IV; CPP, arts. 158 e 167) e as máximas de experiência (CPC, art. 335).  O princípio do livre convencimento do juiz prende-se diretamente ao sistema da oralidade e especificamente a um dos seus postulados, a imediação”. (GRINOVER, 2006, p. 73) Da mesma forma, como dito, também seguem as restrições, presentes no mesmo codex: “Art. 155.  No juízo penal, somente quanto ao estado das pessoas, serão observadas as restrições à prova estabelecidas na lei civil.” Percebe-se aqui que implicitamente o legislador confere uma liberdade de prova muito maior ao processo penal, limitando-as apenas ao estado das pessoas. 2.3 Ônus da prova A regra é clara, cabe o ônus da prova a quem alega, conforme o Código de Processo Penal pátrio que reza: “Art. 156.  A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”. O ônus da prova não é obrigação, é faculdade, pois a parte não é constrangida a provar o que alega, pois não há sanção se não o fizer. No processo penal vigora o princípio da busca da verdade real – o que de fato aconteceu – e com base nisso, o juiz poderá determinar diligências a fim de dirimir possíveis dúvidas sobre um ponto relevante. Essa busca deve ser sopesada, pois se a todo o momento o juiz descer de seu pedestal de terceiro desinteressado, para proceder à pesquisa e colheita do material probatório, isso comprometerá o princípio da imparcialidade, conforme ensina o professor Tourinho Filho, na obra já citada. Desta feita, primariamente como regra, caberá às partes o ônus de provar o que alegam. 2.4 Limites ao Direito de Prova É claro que existem limites ao direito de prova, pois não há direito absoluto, conforme Ada Pellegrine ensina: “É que os direitos do homem, segundo a moderna doutrina constitucional, não podem ser entendidos em sentido absoluto, em face da natural restrição resultante do princípio da convivência de liberdades, pelo que não se permite que qualquer delas seja exercida de modo danoso á ordem pública e ás liberdades alheias. […] De tal modo que não é mais exclusivamente com relação ao indivíduo, mas no enfoque de sua inserção na sociedade, que se justificam, no Estado social de direito, tanto os direitos como suas limitações”. (GRINOVER, 1994, p. 110.) Resta claro que o direito de prova tem por limites os direitos à intimidade, à vida privada e à imagem, e de forma mais ampla ainda, conforme já dito, seus limites são a moralidade, a dignidade humana e a legalidade. Percebemos que todos os limites possuem interconexão. 2.5 Prova Ilícita A atual Carta da República reza em seu art. 5º, inciso LVI, a inadmissão de prova obtida por meio ilícito. A doutrina diferencia a prova ilícita da ilegítima, sendo que a primeira fere norma material enquanto a segunda fere norma formal, de rito, entretanto ambas são da categoria das provas vedadas, o que nas palavras do doutrinador Luiz Francisco Torquato Avolio (2003), vem a ser o seguinte: “A prova ilegítima é aquela cuja colheita estaria ferindo normas de direito processual. Assim, veremos que alguns dispositivos da lei processual penal contêm regras de exclusão de determinadas provas, como, por exemplo, a proibição de depor em relação a fatos que envolvam o sigilo profissional (art. 207 do CPP brasileiro); ou a recusa de depor por parte de parentes e afins (art. 206). A sanção para o descumprimento dessas normas encontra-se na própria lei processual. Então, tudo se resolve dentro do processo, segundo os esquemas processuais que determinam as formas e as modalidades de produção da prova, com a sanção correspondente a cada transgressão, que pode ser uma sanção de nulidade.” (AVOLIO, 2003, p. 42.) Diversamente, por prova ilícita é de se entender da prova colhida com infração a normas ou princípios de direito material – sobretudo de direito constitucional, ou conforme ensina Avolio (2003): “[…] mas também de direito penal civil, administrativo, onde se encontram definidos na ordem infraconstitucional outros direitos ou cominações legais que podem se contrapor às exigências de segurança social, investigação criminal e acertamento da verdade, […]. Para a violação dessas normas é o direito material que estabelece sanções próprias. Assim, em se tratando da violação do sigilo da correspondência ou de infração à inviolabilidade do domicílio, ou ainda de uma prova obtida sob tortura, haverá sanções penais para o infrator”. (AVOLIO, 2003, p. 43.) Desse modo, segue sem controvérsia o entendimento segundo o qual as provas ilícitas são aquelas obtidas com a violação a uma norma ou princípio de direito material, ou seja, princípios que resguardam os direitos elementares do indivíduo, tais como, a intimidade e a integridade física e moral dos indivíduos. De outra banda, as ilegítimas são as inseridas no processo com desrespeito às normas ou princípios de direito processual, como por exemplo, a que determina a proibição de depor em relação a fatos que envolvam o sigilo profissional, constante no art. 207 do Código de Processo Penal Brasileiro, com a seguinte redação: “Art. 207.  São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”(grifo nosso). Nesse ponto, interessante ressaltar que a lei processual torna evidente a disponibilidade do direito à intimidade das pessoas alvo da informação. 2.6 Prova Ilícita por Derivação Uma questão complexa relacionada às provas ilícitas é a que trata da extensão dos efeitos da ilicitude daquelas sobre outras provas. Notadamente as substanciais para o deslinde do caso concreto, pois imaginemos o caso de um julgador que tomando ciência de uma situação inequívoca, tenha de decidir sem sopesar as provas ilícitas que demonstraram o acontecimento de certos fatos relevantes. O cerne da questão é se, sendo verificada a infração a uma regra do ordenamento jurídico, deve ser excluída somente a prova assim conseguida, ou, por derivação, devem também ser afastadas outras provas cuja descoberta somente foi possível através daquela primeiramente viciada. Surge, então, a discussão acerca de as provas ilícitas por derivação, provas, em si mesmas lícitas, mas a que se chegou por meio da informação obtida pela prova ilicitamente colhida. É o caso da confissão extorquida mediante tortura, em que o acusado indica onde se encontra o produto do crime, que vem a ser regularmente apreendido; ou da interceptação telefônica clandestina, pela qual se venham a conhecer circunstâncias que, licitamente colhidas, levem à elucidação total dos fatos. Nos Estados Unidos da América o fenômeno das provas ilícitas por derivação foi nominado pela Suprema Corte como a teoria dos frutos da árvore envenenada – fruits of the poisonous tree. Esta teoria foi adotada jurisprudencialmente a partir do julgamento do caso Silverstone Lumber Co. versus United States  em 1920. Entretanto, advertimos que o termo fruits of the poisonous tree só foi empregado expressamente no caso Nardone versus United States de 1939, e somente no caso Wong Sun versus United States, há referência a uma prova verbal, pois até então as regras de exclusão, no direito norte-americano baseavam-se unicamente em materiais físicos e tangíveis. Deste modo, nos Estados Unidos da América concluiu-se que apenas a vedação às provas ilícitas não seria suficiente para evitar a má-conduta policial, porque se poderia através de uma prova ilícita, obter uma formalmente lícita. A maioria da doutrina alemã defende que a utilização das provas ilicitamente derivadas poderia servir de expediente para fraudar a vedação probatória, sendo, pois pela inadmissibilidade processual das provas ilícitas por derivação. Principal expoente no estudo das provas ilícitas na doutrina brasileira, Ada Pellegrini Grinover é favorável à inadmissibilidade processual das provas ilicitamente derivadas, por entender que esta é a posição mais sensível às garantias da pessoa humana, e, consequentemente mais intransigente com os princípios e normas constitucionais relacionados com a exclusão das provas ilícitas. Na verdade, de nada adiantaria a vedação constitucional às provas ilícitas, entendida esta como direito fundamental, se houvesse o acolhimento processual das provas derivadas das ilícitas. Considerando e analisando-se a jurisprudência pátria, a despeito dos argumentos acima expostos o Superior Tribunal de Justiça em dois julgamentos rejeitou a teoria dos frutos da árvore envenenada, vejamos a ementa de um deles, no caso a do recurso de Habeas Corpus nº 7363/RJ: “Ementa: Quadrilha ou bando. Inépcia da denúncia. Prova ilícita. Prisão preventiva. Fuga. Para a caracterização do crime de quadrilha, basta exigir o propósito de associação, do agente ao grupo criado com a finalidade da prática de crimes, sendo desnecessário atribuir-lhe ações concretas. Logo, não é inepta denúncia nesses termos. Carta anônima, sequer referida na denúncia e que, quando muito, propiciou investigações por parte do organismo policial, não se pode reputar de ilícita. É certo que, isoladamente, não terá qualquer valor, mas também não se pode tê-la como prejudicial a todas as outras validamente obtidas. O princípio dos frutos da árvore envenenada foi devidamente abrandado na Suprema Corte (HC nº 74.599-7, Min. Ilmar Galvão).Prisão preventiva que se justifica em relação a uma das pacientes que empreendeu fuga do distrito da culpa, não ocorrendo o mesmo com relação a outra. Recurso parcialmente provido e, nessa extensão, concedida a ordem.” (STJ, Recurso de Habeas Corpus nº 7363/RJ, Rel. Min. Anselmo Santiago, 6ª Turma, j.07/05/98, DJU, 15/06/98. Nesse mesmo sentido: STJ, Habeas corpus nº 5062/RJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 5ª Turma, j.10/12/96, DJU, 01/06/98.) Observamos que mesmo antes da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal já vinha se posicionando contra a admissibilidade processual das provas ilícitas, nesse sentido foi o julgamento do recurso de Habeas Corpus nº 63.834- SP, no qual firmou-se entendimento que os meios de prova ilícitos não podem servir de sustentação ao inquérito ou à ação principal. O habeas corpus foi impetrado por um médico da Previdência Social intimado por um dos nossos delegados de Polícia Federal a prestar esclarecimento sobre fraudes contra o instituto, baseadas em várias fitas gravadas ilegalmente. As fitas que foram entregues no processo eram regravações das originais, incompletas, com espaços vazios, visto que as fitas originais já haviam sido destruídas. O Ministro Aldir Passarinho, afirmou que: “Deste modo, se é certo que as fitas cassetes não podem ser utilizadas, nem sobre elas pode ser obrigado a depor o paciente, os fatos certos, concretos, porventura já apurados, não devem ser desprezados, podendo, deste modo, juntamente com outros porventura existentes justificar o inquérito e, se for o caso, a ação penal.” Assim, com o advento do novo regime constitucional inaugurado após a Carta Magna de 1988, o Supremo Tribunal Federal consolidou, definitivamente, sua oposição à admissibilidade das provas ilicitamente colhidas. O repúdio às provas ilícitas fica bem evidenciado no julgamento da Ação Penal nº 307-3-DF, onde figuravam como autor o Ministério Público Federal e como réus o Ex-presidente da República, Fernando Affonso Collor de Mello, Paulo César Farias e outros, sendo que o plenário do STF entendeu que : “[…] a prova ilícita, entre nós, não se reveste da necessária idoneidade jurídica como meio de formação do convencimento do julgador, razão pela qual deve ser desprezada, ainda que em prejuízo da apuração da verdade, no prol do ideal maior de um processo justo, condizente com o respeito devido a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, valor que se sobrelevam, em muito, ao que é representado pelo interesse que tem a sociedade numa eficaz repressão aos delitos. É um pequeno preço que se paga por viver-se em Estado de Direito Democrático. A justiça penal não se realiza a qualquer preço. Existem, na busca da verdade, limitações impostas por valores mais altos que não podem ser violados, ensina Heleno Fragoso, em trecho de sua obra Jurisprudência Criminal, transcritas pela defesa. A Constituição brasileira, no art. 5º, inc. LVI, com efeito, dispõe a todas as letras, que são inadmissíveis no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. (STF, Ação Penal nº 307-3- DF, Plenário, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU, 13/10/95; in Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal 162/03-340.). No julgamento da ação supracitada, o Supremo Tribunal Federal por maioria de votos acolheu a preliminar de defesa, para declarar inadmissíveis as provas constantes no laudo de degravação de conversa telefônica e no laudo de gravação de registros contidos na memória de computador, vencidos, parcialmente, os Ministros Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence e Néri da Silveira que só julgaram inadmissíveis a prova referente aos registros contidos no microcomputador. Desta forma, a prova oriunda de gravação de escutas telefônicas realizadas por um dos interlocutores sem o consentimento do outro foi considerada ilícita, mormente quando a degravação foi realizada com inobservância do princípio do contraditório, e utilizada com violação à privacidade alheia (art. 5º, LVI e X da CF). Abordando outro aspecto das provas ilícitas, qual seja, as provas ilícitas por derivação, verifica-se que a jurisprudência da mais alta Corte Judiciária brasileira adotou a teoria dos frutos da árvore envenenada. A seguir, far-se-á um breve resumo dos principais julgados envolvendo a matéria. O primeiro julgamento se refere ao Habeas Corpus nº 69.912-0/RS (STF, HC nº 69.912-0/RS. Tribunal pleno. J.30.06.93.Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJ 26/11/93, p. 00176.), no qual foi indeferida a ordem pleiteada, por seis votos a cinco, entendendo a Corte pela incomunicabilidade da ilicitude da prova originariamente colhida às provas derivadas. No referido habeas corpus o plenário do Tribunal entendeu que a falta de lei que regulamentasse o disposto no inciso XII do art. 5º da Constituição Federal de 1988, proibia a interceptação de conversas telefônicas, logo, as provas diretamente daí advindas eram ilícitas, mas as provas obtidas a partir daquelas eram lícitas. Vale lembrar que hoje a lei que regulamenta o inciso XII daquele artigo é a Lei nº 9.296/96. Nesse julgamento funcionou como Relator, o Ministro Sepúlveda Pertence, segundo o qual, no caso se deveria aplicar a teoria dos frutos da árvore envenenada, pois vedar a admissão de gravação telefônica tida como ilícita, mas por outro lado, admitir que as informações nela colhidas possam ser aproveitadas pela autoridade que agiu ilicitamente, para chegar a outras provas que sem tais informações, não colheria, é estimular a atividade ilícita de escuta e gravação clandestina de conversas privadas. Acompanhara o voto do Relator os Ministros Francisco Resek, Ilmar Galvão, Marco Aurélio e Celso de Mello. O Ministro Carlos Velloso concordou com o voto do Relator somente no que tange a escuta telefônica como prova ilícita e divergiu na parte referente a aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada, pois entendeu que nos autos estavam outros elementos que autorizavam a afirmativa no sentido de que a condenação não se baseava exclusivamente na prova ilícita. Acompanharam o voto divergente os Ministros Paulo Brossard, Sydney Sanches, Néri da Silveira, Moreira Alves e Luiz Gallotti. Entretanto, este habeas corpus foi submetido a novo julgamento em função de o paciente ter impetrado mandado de segurança alegando o impedimento do Ministro Néri da Silveira, cujo filho teria atuado no processo na qualidade de membro do Ministério Público. No novo julgamento, manteve-se a posição do Relator e dos Ministros que o acompanharam; ausente o Ministro Moreira Alves e impedido o Ministro Néri da Silveira, a primitiva maioria tornou-se minoria, sendo que por 5×4 a Corte decidiu que a ilicitude da interceptação telefônica, contaminou, no caso as demais provas oriundas direta ou indiretamente das informações obtidas na escuta, nas quais se fundou a condenação do paciente. Eis a ementa do acórdão: “Prova ilícita: escuta telefônica mediante autorização judicial; afirmação pela maioria da exigência de lei, até agora não editada, para que nas hipóteses e na forma por ela estabelecidas, possa o juiz autorizar a interceptação telefônica de comunicação telefônica para fins de investigação criminal.; não obstante, o indeferimento inicial do habeas corpus pela soma dos votos, no total de seis, que, ou recusaram a tese da contaminação das provas decorrentes da escuta telefônica, indevidamente autorizada, ou entenderem ser impossível, na via processual do habeas corpus, verificar a existência de provas livres da cominação e suficientes a sustentar a condenação questionada; nulidade da primeira decisão, dada a participação decisiva, no julgamento de Ministro impedido (MS nº 21.750, 24.11.93); conseqüente renovação do julgamento, no qual se deferiu a ordem pela prevalência dos cincos votos vencidos no anterior, no sentido de que a ilicitude da interceptação telefônica – a falta de lei que, nos termos constitucionais, venha a discipliná-la e viabilizá-la – contaminou, no caso, as demais provas, todas oriundas, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta (fruits of the poisonous tree), nas quais se fundou a condenação do paciente.” (STF, HC nº 69.912/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, j. 16-12-93, DJU de 25/03/94, p.06012.). Mais recentemente, no julgamento do Habeas Corpus nº 73.351-4/SP, que teve como Relator o Ministro Ilmar Galvão, o Pretório Excelso novamente reafirmou a teoria dos frutos da árvore envenenada: “Ementa: Habeas corpus. Acusação vazada em flagrante de delito viabilizado exclusivamente por meio de operação de escuta telefônica, mediante autorização judicial. Prova ilícita. Ausência de legislação regulamentadora. Art. 5º, XII, da Constituição Federal. Fruits of the posonous tree. O Supremo, por maioria de votos, assentou entendimento no sentido de que sem a edição de lei definidora das hipóteses e da forma indicada no art. 5º, inciso XII, da Constituição, não pode o juiz autorizar a interceptação de comunicação telefônica para fins de investigação criminal. Assentou, ainda, que a ilicitude da interceptação telefônica – à falta de lei que, nos termos do referido dispositivo, venha a discipliná-la e viabilizá-la- contamina outros elementos probatórios eventualmente coligidos, oriundos direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta. Habeas corpus concedido.” (STF, HC nº 73.351/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, 1ª Turma, j. 09-05-96, DJU de 19/03/99, p.00009.). No mesmo sentido básico, o Habeas Corpus nº 72.588/PB ratificou a doutrina das provas ilícitas por derivação, senão veja-se: “Ementa: Frutos da árvore envenenada – Examinando novamente o problema da validade de provas cuja obtenção não teria sido possível sem o conhecimento de informações provenientes de escuta telefônica autorizada pelo juiz – prova que o STF considera ilícita, até que seja regulamentado o art. 5º, XII, da CF (“ é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas, salvo no último caso, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”)-, o Tribunal, por maioria de votos, aplicando a doutrina dos frutos da árvore envenenada, concedeu habeas corpus impetrado em favor de advogado acusado do crime de exploração de prestígio (CP, art. 357, parágrafo único), por haver solicitado a seu cliente (preso em penitenciária) determinada importância em dinheiro, a pretexto de entregá-la ao juiz da causa. Entendeu-se que o testemunho do cliente ao qual se chegara exclusivamente em razão de escuta-, confirmando a solicitação feita pelo advogado na conversa telefônica, estaria “contaminado” pela ilicitude da prova originária. Vencidos os Ministros Carlos Velloso, Octávio Gallotti, Sydney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves, que indeferiram o habeas corpus, ao fundamento de que somente a prova ilícita- no caso a escuta- deveria ser desprezada.” (STF, HC nº 72.588/PB, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 12-06-96, Informativo do STF nº 35.). É importante deixar bem claro que somente podem ser taxadas de provas ilícitas por derivação, as que mantêm um nexo de interdependência com a prova ilícita primitiva. Portanto, às provas autônomas não se aplica a teoria dos frutos da árvore envenenada, tal como restou consignado no julgamento do recurso de Habeas Corpus nº 74.807/MT: “Ementa: Recurso de habeas corpus. Crimes societários. Sonegação fiscal. Prova ilícita: violação de sigilo bancário. Coexistência de prova ilícita e autônoma. Inépcia da denúncia: ausência de caracterização.A prova ilícita, caracterizada pela violação de sigilo bancário sem autorização judicial, não sendo a única mencionada na denúncia, não compromete a validade das demais provas que, por ela não contaminadas e delas não decorrentes, integram o conjunto probatório. Cuidando-se de diligência acerca de emissão de notas frias, não se pode vedar à Receita Federal o exercício da fiscalização através do exame dos livros contábeis e fiscais da empresa que as emitiu, cabendo ao juiz natural do processo formar a sua convicção sobre se a hipótese comporta ou não conluio entre os titulares das empresas contratante e contratada, em detrimento do erário. Não estando a denúncia respaldada exclusivamente em provas obtidas por meios ilícitos, que devem ser desentranhados dos autos, não há porque declarar-se a sua inépcia porquanto remanesce prova lícita e autônoma, não contaminada pelo vício de inconstitucionalidade.”  (STF, RHC nº 74.807/MT, Rel. Min. Maurício Corrêa, 2ª Turma, j. 22-04-97, DJU de 20/06/97, p. 28.507.). Assim, permanecem validamente no processo as provas lícitas, enquanto que as ilícitas, sejam elas originárias ou derivadas, devem ser desentranhadas dos autos e declaradas inválidas ou ineficazes juridicamente. Com todo o acima exposto, pode se afirmar que as limitações à prova acabam por limitar também a liberdade instrutória do juízo, e até mesmo o próprio direito à prova, sendo que as chamadas provas proibidas ou ilegais são o gênero que aglutinam as espécies: ilegítimas que são aquelas produzidas com desrespeito às normas ou princípios processuais, e ilícitas que são aquelas obtidas com violação às normas ou princípios de direito material. Também que apesar da forte proibição à admissão processual das provas ilícitas, se as mesmas vierem a ser produzidas e valoradas, este problema não se resolve através dos estreitos caminhos indicados pelas normas processuais, pois será um caso de atipicidade constitucional, considerando que as provas obtidas ilicitamente sempre estão a ferir algum preceito constitucional que se traduz em norma de garantia. Assim impõe-se como conseqüência da atipicidade constitucional, a total ineficácia jurídica das provas ilícitas que por acaso ingressarem no processo. Se a prova ilícita tiver sido admitida no primeiro grau de jurisdição, caberá ao tribunal em grau de recurso desconsiderá-la; não ocorrendo, na hipótese, supressão de um grau de jurisdição, uma vez que a questão controvertida foi objeto de apreciação no juízo a quo. Ainda, se a sentença condenatória criminal transitada em julgado se apoiou, exclusivamente, numa prova ilícita, seus efeitos poderão ser rescindidos via revisão criminal; noutro passo se a sentença for cível, caberá a impetração de ação rescisória – medida de reversão da coisa julgada – em ambos os casos se alegará a violação do disposto no art. 5º, LVI da Constituição Federal. Em relação aos processos que se desenvolvem perante o Tribunal do Júri entende-se que se a decisão de pronúncia tiver suporte em prova ilícita, a mesma poderá ser reformada pela via recursal ou anulada mediante habeas corpus, entretanto verificando-se a preclusão e não for impetrado habeas-corpus, o juiz Presidente não pode mudar a sentença e nesse caso o veredicto dos jurados será nulo, ante a ausência de motivação que impede o conhecimento das razões de julgar. Considerando o caso de as provas ilícitas ingressarem no processo, mas não tiverem sido levadas em consideração na pronúncia, cabe o juiz Presidente mandar desentranhá-las, e caso a elas se fizer referência em plenário, contrariando o art. 475 do Código de Processo Penal, o juiz deverá dissolver o Conselho de Sentença. Já, pela doutrina norte-americana dos fruits of the poisonous tree, as provas obtidas direta ou indiretamente de provas ilícitas ficam maculadas pela ilicitude destas. Assim, a prova derivada é tão inadmissível quanto a primitiva. A maior parte da doutrina pátria é favorável à aplicação dessa teoria. Por fim, a posição do Supremo Tribunal Federal, antes da Constituição de 1988, já era no sentido de não admitir as provas ilícitas tanto nos processos civis quanto nos criminais. Na vigência da atual Constituição o Pretório Excelso reafirmou a sua posição pela inadmissibilidade processual das provas ilícitas. Em relação à teoria dos frutos da árvore envenenada, a citada Corte adotou-a integralmente. 2.7 Possibilidade de Admissão da Prova Ilícita ou Ilícita por Derivação no Processo Com a publicação do atual texto constitucional pátrio, tornou-se inadmissível no processo a aceitação das provas ilícitas e suas derivadas, pois eivadas de vício, pressupõe a nulidade processual, conforme voto do relator Ministro Ilmar Galvão do Supremo Tribunal Federal, na ação penal nº 307-3-DF: “[…] é indubitável que a prova ilícita, entre nós, não se reveste da necessária idoneidade jurídica como meio de formação do conhecimento do julgador, razão pela qual deve ser desprezada, ainda que em prejuízo da apuração da verdade, em prol do ideal maior de um processo justo, condizente com o respeito devido a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, valor que se sobreleva, em muito, ao que é representado pelo interesse que tem a sociedade numa eficaz repressão aos delitos. É um pequeno preço que se paga pro viver-se em Estado de Direito democrático. A justiça penal não se realiza a qualquer preço. Existem, na busca da verdade, limitações por valores mais altos que não podem ser violados, […]. A constituição brasileira, no art. 5º, inciso LVI, com efeito, dispõe, a todas as letras, que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.” Nesse ponto distingue-se do objetivo de utilização da prova ilícita, se para a acusação ou para a defesa, na primeira é unânime sua não aceitação, mas na segunda, onde se vê o princípio da proporcionalidade ser aplicado, a fim de acabar com o conflito existente entre o direito de liberdade e outro menor que é o da intimidade, por exemplo. Para Maria Gilmaise de Oliveira Mendes, a prova ilícita quando coletada pelo acusado com o fim de provar sua inocência ou reduzir sua culpabilidade, faz eliminar-se sua ilicitude pelas escusas legais, como a legítima defesa, que excluirá a antijuridicidade no caso concreto. (MENDES, 1999, p. 133.) 3. A LEI Nº 9.296/96 3.1 Conceito sobre a Interceptação Telefônica A doutrina costuma classificar as espécies de obtenção da prova do seguinte modo: a. interceptação telefônica é a conduta de um terceiro, estranho à conversa, que se intromete e capta a conversação dos interlocutores, sem o conhecimento de qualquer deles. b. escuta telefônica é a captação da conversa dos interlocutores, feita por um terceiro, mas com o consentimento de um deles. c. gravação telefônica é a gravação da conversa feita por um dos interlocutores. Existe ainda, uma variação destas espécies de captação da conversa, que se configura quando a conversação se dá com duas ou mais pessoas em um mesmo ambiente, trata-se da conversação ambiental, que também pode ser captada por meio da interceptação ambiental, escuta ambiental e a gravação ambiental, que possuem o mesmo conceito das citadas acima, porém a captação ocorre no mesmo ambiente onde está se passando a conversa. Para o presente trabalho as espécies que interessam são as três primeiras. Alguns doutrinadores consideram como interceptação telefônica em sentido estrito apenas o caso “a”, outros aceitam como interceptação os dois primeiros casos “a” e “b”. Mas, é unânime entre os doutrinadores que o último caso, gravação telefônica, é considerado gravação clandestina, a qual, segundo Mendes, via de regra é praticada pelo próprio interlocutor sem a presença de um terceiro, qual é considerado necessário, sempre, para a configuração do conceito de interceptação. Tais conceitos abriram, no entanto, uma discussão a respeito do artigo primeiro da Lei 9296/96, havendo controvérsia a respeito da expressão interceptação contida nesse artigo. A contenta é se tal expressão englobaria a modalidade de escuta ou apenas interceptação em sentido estrito. Dentre os autores que entendem que a Lei não abarcaria a escuta telefônica, encontram-se Vicente Greco Filho, Luiz Francisco Torquato Avolio e Antônio Scarance, afirmando estes dois últimos ser este meio de prova permitido quando houver justa causa, acreditando Avolio que apesar de merecer tratamento diverso o juiz poderá autorizá-la. No entanto, tal posicionamento não se mostra embasado por argumentos fortes, o mais certado é o posicionamento de que a Lei contempla os dois tipos de interceptação, já que o que caracteriza estes meios de prova é o fato de existir um terceiro alheio à conversa. Ainda, há que se ressaltar que a exceção à garantia constitucional do sigilo das comunicações telefônicas diz respeito à interceptação, ou seja, o fato onde existir um terceiro captando a conversa, seja com ou sem consentimento das partes, que não é especificado, logo a exceção constitucional, assim como a lei, estão a falar da interceptação gênero e não espécie. Ademais, como afirma o próprio jurista Avolio (2003), na escuta, por haver o conhecimento de uma das partes o sacrifício da garantia constitucional do direito à intimidade é menor, e se a lei excepciona tal garantia quando o sacrifício é maior (sem o conhecimento das partes) não há porque deixar de fazê-lo quando este é menor, pois o direito sacrificado em ambos os casos é o mesmo, e se a Lei vale para o sacrifício maior, logicamente engloba o menor. No entanto, o entendimento da Suprema Corte é o de que a Lei apenas abrange a interceptação estrito sensu, ou seja, a feita por um terceiro sem o conhecimento de ambos os interlocutores, necessitando de autorização judicial apenas esta, as demais, escutas e gravação telefônicas, não necessitam de autorização judicial, sendo, portanto, sua utilização lícita. Em relação à ilicitude da prova colhida em razão de gravação telefônica feita por um dos interlocutores, ou por terceiro, com a ciência e autorização destes: já decidiu o Supremo Tribunal Federal, em um acórdão lavrado pelo do Ministro Nelson Jobim no HC nº 75338-8 –RJ, que difere a gravação telefônica feita por terceiro, que intercepta conversa de duas pessoas, sem o conhecimento destas, da feita por um dos interlocutores, sem a ciência do outro, ou até mesmo por terceiro, com a conivência de um deles, sendo tão-somente a primeira inquinada de ilícita, quando não autorizada judicialmente nos moldes do que prescreve a Lei nº 9.296/96. A doutrina, no entanto, tem se posicionado no sentido de que tanto a gravação quanto as escutas telefônicas, só serão lícitas se utilizadas conforme o princípio da proporcionalidade, para a defesa do réu, ou no caso de legítima defesa do interlocutor, como no seqüestro de um ente familiar, que grava ou permite a gravação da conversa. As provas obtidas com violação da intimidade e sua utilização no processo penal, segundo Ada Pellegrini: “A gravação clandestina de telefonemas ou conversas diretas próprias, embora estranha à disciplina das interceptações telefônicas, pode caracterizar outra modalidade de violação da intimidade: qual seja, a violação de segredo.  No entanto, a doutrina não tem considerado ilícita a gravação sub-reptícia de conversa própria, quando se trate, por exemplo, de comprovar a prática de extorsão, equiparando-se, nesse caso, a situação à quem age em estado de legítima defesa, o que exclui a antijuricidade.” (GRINOVER, 1994, p. 85). 3.2 Considerações Iniciais sobre Interceptação Telefônica Devemos considerar que sempre que a captação de uma conversa telefônica ocorrer, estar-se-á violando um preceito constitucional, entretanto, se houver a devida autorização judicial, se configurará a exceção prevista no próprio Texto e regulamentada pela legislação ordinária em questão. Seguindo o raciocínio e conforme já visto, a Carta da República de 1988 acompanhando as legislações mais democráticas e modernas do mundo previu a inadmissibilidade, no âmbito processual, das provas colhidas por meios ilícitos, isto é, aquelas obtidas com inobservância a preceitos de direito material e, principalmente, com desrespeito a normas constitucionais. A exceção constitucional ao sigilo das comunicações é bastante limitada, não alcançando outras formas de correspondência e comunicações que não a telefônica e consequentemente excluindo-as da possibilidade de quebra de sigilo autorizada pela Justiça, para compor meio de prova colhida para outras espécies de processo que não penal, o que tem sido duramente criticado pela doutrina. O que não é coerente é possibilitar a interceptação de comunicações telefônicas, e não a da correspondência e de comunicações telegráficas e de dados. Não ficando clara a razão de afastar da quebra de sigilo a prova necessária ao processo não-penal, dada a natureza dos direitos materiais controvertidos no denominado “processo civil“, levando-se em conta que no direito brasileiro não se restringe à proteção somente de direitos patrimoniais. Conforme adverte Ada Pellegrini Grinover (1994), o dispositivo constitucional previsto no art. 5º, XII da CF foi promulgado com redação diversa da que foi aprovada pela Assembléia Nacional Constituinte, cuja redação original deveria ter sido: “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações de dados, telegráfica e telefônicas, salvo por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, para fins de investigação criminal ou instrução processual.” (GRINOVER, 1994) A sobredita autora diz que a Comissão de Redação, indo além de seus poderes, que deveriam ser basicamente de correções gramaticais, acrescentou ao texto as palavras “comunicações”, “no último caso” e “penal”, limitando consideravelmente o alcance da norma constitucional legitimamente aprovada em plenário. Esta, da forma como fora concebida, permitia a quebra do sigilo – observado o preceito da reserva legal – não apenas com relação às comunicações telefônicas, mas também às telegráficas e de dados, bem como quanto ao sigilo das correspondências em geral. E ia além, não limitando o objeto da prova colhida ao processo penal, abrindo a possibilidade de ser produzida e utilizada em processos não penais. A autora segue dizendo que a redação restritiva do inciso XII do art. 5º da Constituição Federal é flagrantemente inconstitucional em sua forma, por vício de competência, já que não observou o processo legislativo da Assembléia Nacional Constituinte. Outra questão que surge é a de que o vício teria ficado superado pela promulgação. Tudo indica que não: assim como a sanção não sana o defeito de iniciativa, no tocante às normas infraconstitucionais. Levando adiante o raciocínio, a promulgação da Constituição Federal de 1988, não convalidou a norma viciada pela competência e pela violação ao processo legislativo. A solução, aparentemente simples, seria restabelecer o texto original da norma. Porém, ao Judiciário caberia somente declarar a inconstitucionalidade do preceito reescrito de forma indevida pela Comissão de Redação, suprimindo as palavras acrescidas, de acordo com as modalidades previstas no ordenamento para o controle da constitucionalidade. Já no tocante a Lei 9296/96, a doutrina levantou a questão com relação ao seu parágrafo único do art. 1º, Vicente Greco (1996) sustenta que referido dispositivo teria estendido a aplicabilidade da interceptação ao fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática. Para o autor o problema estaria na interpretação do dispositivo constitucional, se consideraria que a expressão “no último caso”, constante daquele preceito, incluiria a transmissão de dados ou se aplicaria somente a comunicações telefônicas. Neste particular, parece que são duas as possibilidades de interpretação, uma onde a ressalva aberta pela expressão “no último caso” seria aplicada às comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas; e outra que se referiria somente a comunicações telefônicas. Na primeira interpretação leva em consideração que os direitos tutelados pelo sigilo constitucional no caso sob análise seriam dois: o da correspondência propriamente dita (cartas) e os dos outros sistemas de comunicação, como dados, telegráficos e telefônicos. Nesta hipótese a quebra de sigilo prevista recairia sobre a segunda modalidade de comunicação, isto é comunicação de dados, telegráfica e telefônica, de modo que se admitiria que a ressalva “último caso” se referiria a estes três instrumentos de transmissão utilizados para a comunicação. A segunda interpretação, mais restritiva, sustenta que não seriam duas, mas sim quatro as modalidades de direito de comunicação tutelados pela norma: a correspondência e os outros três já estudados. Nesta visão, a expressão “último caso” recairia somente sobre as comunicações telefônicas. Sobre esta ótica teríamos um problema de inconstitucionalidade do parágrafo único do Art. 1º da Lei, já que teria havido uma extensão indevida da possibilidade de interceptação para a transmissão de dados em sistemas de informática e telemática. Ainda, para Vicente Greco (1996), a interpretação mais acertada seria a segunda, isto é, que a referência da ressalva constitucional recairia somente sobre as comunicações telefônicas. Para o autor o parágrafo único do art. 1º da Lei 9296/96 é inconstitucional. Para ele a expressão correta para autorizar a interceptação das comunicações telegráficas e de dados, além da telefônica, seria “no segundo caso” e não “no último caso” como está assentada a ressalva ao preceito constitucional. Sustenta ainda que a regra é a garantia constitucional do sigilo e que a ressalva inclusa prevê uma exceção, e como tal deve ser interpretada restritivamente.  O Legislador Ordinário, no entanto, parece ter optado pelo primeiro modo de interpretação antes exposto, aquele que estende a possibilidade de interceptar dados de informática e telemática, além das comunicações telefônicas propriamente ditas. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal está acenando para outro posicionamento, segundo o qual a exceção constitucional ao sigilo abrangeria não apenas as comunicações telefônicas, mas também o de dados: não tanto porque o Supremo tem admitido por diversas vezes a quebra de dados bancários e dados de contas telefônicas (mas aqui se poderia argumentar com o fato de não haver “comunicação de dados”), mas porque já entendeu que o art. 5º, XII, da Constituição somente cogita de dois casos de sigilo, divididos, cada um, em duas situações: a) sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas; b) sigilo de dados e comunicações telefônicas. Nesta última, afirmou o Ministro Marco Aurélio, a inviolabilidade é relativa, sendo que sua quebra, prevista pelo art. 38 da Lei nº 4.595/65 foi recepcionada pela Constituição Federal. A ser mantido esse entendimento, tudo que se referisse a “dados” (e não somente à sua comunicação) estaria sob a égide do inc. XII do art. 5º da Carta Magna e a possibilidade de quebra do sigilo estaria prevista não só para as comunicações telefônicas, mas também quanto a comunicação de dados. A prova pode ser ilícita em três casos: na hipótese da ilicitude do próprio meio, se este não obedece à natureza do processo, que exige racionalidade e respeito à pessoa; em circunstâncias de imoralidade ou impossibilidade de sua produção; e em razão da ilicitude de sua origem. Com relação à última hipótese, a Constituição Federal aponta que não poder ser admitidas no processo as provas originadas em meios ilícitos, de forma que se a interceptação telefônica não respeitar os parâmetros legais e constitucionais, a prova com ela obtida não poderá ser utilizada, bem como as provas dela derivadas, porque se o meio de recolhimento da primeira foi eivado de ilicitude, as provas a partir dela obtidas também serão consideradas ilícitas. Questão correlata, diz respeito ao valor da prova obtida por meio da interceptação e a idoneidade técnica durante a captação. Como é questionado com relação a qualquer meio de prova, quando da valoração do conteúdo da prova, ela passará pela persuasão racional do Juiz, de consonância com as demais provas do processo, sendo inclusive levantado o perfil de quem a colheu. Com relação à idoneidade técnica da prova, relacionada à gravação, é possível cogitar a perícia para individualizar vozes, além de verificar-se a autenticidade do meio de gravação empregado e possíveis edições. Antes de tudo, a prova deve ser submetida a um juízo de legalidade, já que quando da concessão esta análise foi realizada em caráter cautelar, sem contraditório, cabendo ao Juiz da causa esta análise definitiva, aberta a oportunidade de ampla defesa ao investigado. Esta análise se faz necessária, já que deste juízo podem ser encontradas inobservâncias com relação aos requisitos legais e constitucionais que autorizaram a medida. 3.3 Análise da Lei Nº 9.296/96: A Lei nº 9.296/96 foi editada para regulamentar o inciso XII do art. 5 da CF/88, determinando que a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça, aplicando-se, ainda, à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática, cessando assim a discussão sobre a possibilidade ou não deste meio de prova e, conseqüentemente, sobre sua licitude, desde que realizado após a edição da lei, que não contém efeito retroativo. A citada lei vedou a realização de interceptação de comunicações telefônicas quando não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal ou a prova puder ser feita por outros meios disponíveis, consagrando a necessidade da presença do fumus boni iuris, pressuposto exigível para todas as medidas de caráter cautelar, afirmando Antonio Magalhães Gomes Filho (1997) que deve ser perquirida a exclusividade deste meio de prova: “Diante da forma de execução do crime, da urgência na sua apuração, ou então da excepcional gravidade da conduta investigada, a ponto de justificar-se a intromissão”. (GOMES FILHO, 1997, P. 88) Importante ressaltar, ainda, que somente será possível a autorização para a interceptação quando o fato investigado constituir infração penal punida com reclusão. Assim, a partir da edição da citada lei, fixando as hipóteses e a forma para a interceptação das comunicações telefônicas, a mesma poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento da autoridade policial (somente na investigação criminal) ou do representante do Ministério Público (tanto na investigação criminal, quando na instrução processual penal), sempre descrevendo-se com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada. Feito o pedido de interceptação de comunicação telefônica, que conterá a demonstração de que sua realização é necessária à apuração de infração de infração dos meios a serem empregados, o juiz terá o prazo máximo de 24 horas para decidir, indicando também a forma da execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de 15 dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova. Haverá autuação em autos apartados, preservando-se o sigilo das diligencias, gravações e transcrições respectivas. Como observado pelo Ministro Vicente Cernicchiaro (1996), a lei adotou o sistema de verificação prévia da legalidade condicionando a interceptação à autorização judicial, ressaltando, porém, o seguinte: “Melhor seria a lei houvesse optado, como exceção, pelo sistema da verificação posterior da legalidade. Em outras palavras, a autoridade policial e o representante do Ministério Público poderiam tomar a iniciativa; concluída a diligência encaminhariam-na ao magistrado; se não contivesse vício e fosse pertinente, seria anexada aos autos. Caso contrário, destruída, implicando eventual responsabilidade criminal. Nessa direção, o moderno Código de Processo Penal da Itália (art. 267, II). Com efeito a prova é caracterização de um fato; poderá ser passageiro. O crime não tem hora marcada. Acontece a qualquer momento, mesmo fora do expediente Judiciário. Se não for tomada medida imediata, perderá importância. Não creio que a autorização verbal (art. 4°, § 1°) possa cobrir todas as hipóteses.” (CERNICCHIARO, 1996, p. 1106) Incrível a clareza das palavras do ministro e sua inserção na realidade social. Ainda, conforme a lei, a diligência será conduzida pela autoridade policial, que poderá requisitar auxílio aos serviços e técnicos especializados às concessionárias de serviço público, sempre com prévia ciência do Ministério Público, que poderá acompanhá-la, se entender necessário. Se houver possibilidade de gravação da comunicação interceptada, será determinada sua transcrição, encaminhando-se ao juiz competente, acompanhada com o devido auto circunstanciado, que deverá conter o resumo das operações realizadas. Após o término da diligência, a prova colhida permanecerá em segredo de justiça, devendo então, caso já haja ação penal, ser possibilitado ao defensor sua análise, em respeito aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Ressalte-se que a natureza da diligência impede o conhecimento anterior do investigado e de seu defensor, pois é óbvio que se o suspeito investigado for informado, somente se fosse débil mental efetuaria algum tipo de comunicação comprometedora. De qualquer forma, se garante a observância do princípio ao contraditório, logo depois de colhida a prova, ou seja, feita a gravação e a devida fiel transcrição, quando se dá ao investigado o direito de impugnar a prova obtida e, além disso, oferecer a contraprova. Dessa forma, a produção dessa espécie de prova em juízo está em plena consonância com o princípio do contraditório e da ampla defesa, permitindo-se à defesa impugná-la amplamente. Note-se, por fim, que não haverá possibilidade de interceptação da comunicação telefônica entre o acusado e seu defensor, pois o sigilo profissional do advogado, no exercício da profissão, é garantia do próprio devido processo legal. A interceptação somente será possível se o advogado estiver envolvido na atividade criminosa, pois nesta hipótese não estará atuando como defensor, mas como participante da infração penal, o que a bem da verdade é bem comum nos dias de hoje. 3.4 Constitucionalidade do parágrafo único do artigo primeiro da Lei Nº 9296/96 O parágrafo único do artigo primeiro da Lei de interceptação, afirma que o disposto na lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informações e telemática, o que levanta controvérsia na doutrina sobre a constitucionalidade de tal parágrafo. Isso ocorre porque alguns doutrinadores como Vicente Greco Filho (1996), afirmam que o preceito constitucional contido no inciso XII do artigo quinto da Carta Maior refere-se apenas à comunicação telefônica, já que para essa corrente doutrinária a interpretação mais correta da Constituição Federal é que o inciso em comento prevê quatro situações: a correspondência, as comunicações telegráficas, as de dados e as telefônicas, assim a expressão último caso contida no inciso, que permite a interceptação, refere-se apenas à telefonia. Outra forma de interceptação é a do inciso doze do artigo quinto, feita dividindo-se em dois grupos, abrangendo, pois a expressão último caso, os casos de dados e as comunicações telefônicas. No entanto, acredita-se que a interpretação mais correta seja a utilizada por Lenio Luiz Streck (1997), confirmada por Luiz Flavio Gomes, de que a comunicação telefônica não se limita apenas a conversações telefônicas, mas incluem a transmissão, emissão, ou recepção de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza que seja feita por meio de telefonia estática ou móvel. Sem esquecer que esse é o conceito dado pelo Código Brasileiro de Telecomunicações, Lei 4.117/62. Desse modo, conforme asseverou Lenio Luiz Streck (1997), o parágrafo único do artigo da Lei de interceptações, ao estender a interceptação ao fluxo de comunicações em informática e telemática, apenas especificou que a interceptação atingirá qualquer variante de informações que utilizem a modalidade de comunicação feita por telefonia, lembrando ainda o eminente doutrinador que: “Não se discute se a expressão contida no inciso XII ‘no último caso’ se refere somente às comunicações telefônicas ou também aos “dados”. Neste ponto, tem razão Greco Filho, pois os dados – que estão estáticos, e não em trânsito pela modalidade ‘comunicações telefônicas’ – estão protegidos pelo absoluto sigilo, assim como a correspondência e as comunicações telegráficas. Como argutamente observa Scarance Fernandes, as interceptações do fluxo de comunicações em sistema de informática e telemática somente serão admitidas quando feitas por telefone […].” (STRECK, 1997, p. 47 e 48) Nos tribunais a questão já foi definida, pois o Supremo Tribunal Federal já enfrentou e deslindou a matéria, quando negou provimento cautelar na ação direta de inconstitucionalidade nº 1488, que pretendia retirar do texto da Lei 9296/96 o tão questionado parágrafo em debate. 3.5 A Interceptação Telefônica para o Processo Civil O artigo quinto, inciso doze da Magna Carta é claro ao excepcionar o sigilo da comunicação telefônica apenas para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, assim também é o artigo da Lei de interceptação, não havendo, portanto, que se cogitar do uso desse artifício no processo civil. Porém, a doutrina é controvertida quanto ao uso desse meio de prova quando emprestado do processo penal. Alguns autores como Grinover, aceitam a prova emprestada no processo civil desde que a parte contra quem ela vai ser produzida tenha participado no processo penal de que a prova emana. No entanto, a posição mais acertada é a de que tal prova não deverá ser utilizada em outro processo, já que a legislação pátria, conforme ensina Streck, não dá uso de tal prova. Vicente Greco (1996) também afirma que tal utilização viola o preceito constitucional, da seguinte forma: “Em conclusão, a prova colhida por interceptação telefônica no âmbito penal não pode ser ‘emprestada’ (ou utilizada) para qualquer outro processo vinculado a outros ramos do direito. (…) essa prova criminal deve permanecer em ‘segredo de justiça’. É inconciliável o empréstimo de prova com segredo de justiça […]”. (GRECO FILHO, 1996, p. 54) A jurisprudência pátria, entretanto, vem no sentido de aceitar a prova emprestada do processo penal para o cível e a utilização da gravação telefônica, se não vejamos: “AÇÃO PAULIANA. GRAVAÇÃO DE CONVERSA ENTRE MARIDO E MULHER. PEDIDO DE JUNTADA PELA ÚLTIMA. PROVA DE DEFRAUDAÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM. DECISÃO QUE CONSIDERA A PROVA COMO ILÍCITA. OFENSA AO DIREITO DA INTIMIDADE. DESCABIMENTO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PONDERAÇÃO DO INTERESSE DA BUSCA DA VERDADE E DA SEGURANÇA JURÍDICA QUE SACRIFICAM, NO ACASO CONCRETO, A TUTELA DA INTIMIDADE. RESTIÇÃO CONSTITUCIONAL SUPERADA PELA ORIGINALIDADE DA PROVA PARA A DESCOBERTA DA VERDADE. ASSIM, É RAZOÁVEL A UTILIZAÇÃO DE GRAVAÇÃO DE CONVERSA ENTRE MARIDO E MULHER, MESMO QUE UM DOS INTERLOCUTORES DESCONHEÇA A IMPRESSÃO SÔNICA FEITA PELO OUTRO”. (BRASIL. Tribunal de justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de instrumento nº 70005183561. Sétima Câmara Cível. Dês. José Carlos Teixeira Giorgis. Julgado em 12/03/2003.) 3.6 Requisitos para a Autorização O artigo segundo da Lei de interceptações telefônicas enumera de forma negativa, ou seja, a contrario sensu, os requisitos necessários à autorização da realização da prova objeto deste trabalho. Assim, é necessário para a autorização, conforme o inciso primeiro do artigo segundo da Lei, que haja indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal, logo é evidente que há necessidade de que exista a fumaça do bom direito, como requer medida cautelar, para que haja sua autorização. O inciso segundo, assim como artigo quarto do mesmo diploma, insere a necessidade do meio de prova, ou seja, que esse tipo de prova seja inevitável no processo. Quando afirma o inciso segundo que a prova não poderá ser feita de outro modo, quer dizer que não pode haver outros meios legais de se provar o alegado. Tal inciso, aplicado conjuntamente com artigo quarto, impõe como requisito o periculum in mora, ou seja, a não utilização desse meio de prova faz com que não haja outra forma de se provar o direito alegado ou a infração penal cometida. O inciso terceiro causa polemica na doutrina, pois a interceptação apenas nos crimes punidos com pena de reclusão. Alguns autores entendem que se utilizando o princípio da proporcionalidade, é possível aplicar a lei em alguns crimes punidos com detenção, dando prevalência ao interesse público contidos em tais tipos penais.  Leni Streck (1997), mesmo aceitando que o dispositivo legal é defeituoso, pois deixou de abarcar crimes fortemente recriminados pela sociedade, como o jogo do bicho, a ameaça por telefone, acredita que a Lei é taxativa, não podendo ser burlada sob pena de não ter a mesma validade. O posicionamento mais acertado parece ser de que a utilização da interceptação telefônica deva ocorrer apenas nos crimes com pena da reclusão, de maior potencial ofensivo, em virtude da existência da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9099/95) que admite a suspensão condicional do processo para os crimes de menor potencial ofensivo, o que abarca as contravenções penais. Ademais, se assim não fosse, deixar-se-ia de interpretar as Leis em conjunto, sistemática e teleologicamente, pois do contrário, uma Lei estaria a repudiar a outra, o que não pode ser admitido dentro de um mesmo ordenamento jurídico, considerado o princípio do hermetismo no direito. No entanto, a jurisprudência pátria, em especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, vem admitindo a interceptação em crimes como a exploração de jogos de azar, que apesar de ser uma contravenção, é um delito de interesse social e por isso, segundo a jurisprudência, deve utilizar-se nestes casos do princípio proporcionalidade. 3.7 Legitimidade para se Requerer a Medida O artigo terceiro da Lei em análise prevê a legitimidade do ministério público, da autoridade policial e do juiz para requerer a medida cautelar, no entanto, não estabeleceu a possibilidade de o querelante (titular da ação penal privada) e do réu de requererem a interceptação. Várias são as questões levantadas pela doutrina no tocante a este tema. No tocante à defesa, Lenio Luiz Streck (1997) afirma que: “Não é temerário afirmar que o dispositivo do art.3°, ao vedar à defesa o direito de requerer a realização da escuta, viola os princípios da ampla defesa e do contraditório, eis que limita o poder de a defesa “defender-se provando”. Daí, como já explicado no subitem anterior, uma interpretação conforme a Constituição aponta a possibilidade também de a defesa requerer a interceptação das comunicações telefônicas […]” (STRECK, 1997, P. 88). Desse modo a defesa poderia requerer a medida, licitamente, conforme uma interpretação segundo os princípios vigentes na Constituição Federal. Além disso, não se pode esquecer que a defesa estaria agindo dentro do princípio da proporcionalidade, que seja a liberdade. Crê-se que a não previsão legal da medida, se dá em razões de ordem prática, para que a interceptação não se torne praxe corriqueira, só admitindo a medida para a defesa quando pretende provar a inocência do acusado. As posições defendidas por tais doutrinadores e pela doutrina em geral, são plenamente aceitáveis, pois vedar à parte ré o direito de fazer prova de sua inocência é negar-lhe o direito constitucional de ampla defesa. No tocante aos titulares da ação penal privada, seria um contra-senso não admitir a produção da prova, quando a interceptação mostrar-se o único meio de se provar o alegado. Questão polêmica na doutrina, que não pode ser esquecida, é a determinação de ofício da medida. Parte dos doutrinadores acredita ser inconstitucional a determinação da medida cautelar de ofício, Lenio Luiz Streck (1997) afirma que a determinação da escuta telefônica ex officio choca-se com o moderno processo penal acusatório, estando esse posicionamento com a mais evidente razão, pois permitir ao juiz a produção de prova tão essencial para que fique caracterizada a verdade da acusação ou da inocência do réu, é tornar o julgador parcial, com tendências a favor de uma das partes, o que jamais poderia ocorrer, além de fazer com que o Estado, representado pela figura do juiz, seja um inquisidor, violando o Estado democrático de direito. 3.8 Interceptação como Prova Legal Analisando os pontos mais importantes e controvertidos da Lei que regulamenta o inciso doze do artigo quinto da Carta Magna, pode-se por fim, afirmar que sendo preenchidos todos os requisitos, entre eles a fundação da decisão e a competência do juiz que defere a medida, será a prova produzida através da interceptação telefônica imaculada, ou seja, não viciada por ilegalidades. Os requisitos citados são óbvios para qualquer operador do direito, não necessitando maiores delongas. A incompetência do juiz ao proferir qualquer decisão no processo acarreta a nulidade da mesma, sendo portador irrelevante maiores digressões sobre o assunto. A fundamentação da decisão é princípio constitucional relativo ao poder judiciário como um todo, devendo sempre estar presente em qualquer tipo de processo, judicial ou administrativo, a fim de possibilitar a defesa do acusado, logo não é estranho a um operador do direito, além de ser uma garantia fundamental do cidadão que não sofrerá restrição de seu direito sem a devida explicação, ou seja, fundamentação. Desse modo a decisão que concede a cautelar em comento não foge a esta regra, que permita ao acusado ao acusador o contraditório e ampla defesa no momento oportuno, já que a cautelar é inaldita altera partes. Assim, é de se dizer que a prova em comento será sempre lícita, desde que observados os requisitos explanados para a sua produção, tornando-se meio hábil e legítimo de prova. Não se pode negar que esse meio de intromissão na esfera íntima dos cidadãos, nos dias atuais, tornou-se um meio necessário para a persecução criminal, já que o crime encontra a cada dia mais meios apurados e sofisticados de organizar-se, mas não se pode com o intuito de proteger os interesses sociais, deixar de lado as prescrições legais, sob pena de burlar-se o Estado democrático de direito a tanto custo conquistado e cometermos o absurdo de combater o crime com o ilícito e desconstituirmos os direitos fundamentais já amplamente difundidos e inerentes a cada cidadão.   CONCLUSÃO A interceptação telefônica quando utilizada dentro dos parâmetros legais e conjugada com os valores constitucionais é uma prova hábil e legitima a instrução processual penal, já que não se macula por vícios. O uso da prova ilícita no processo penal, ou em outro qualquer, deve sempre ser repudiada, pois não se pode admitir que se busque provar algo através de uma violação constitucional. Mesmo quando se trata de um direito social, não se pode admitir que se utilize de um não jurídico para a construção ou defesa de alguma tese processual. A exceção a tal regra existe quando se trata do direito de liberdade a ser provado, pois no caso, estar-se-ia diante de uma legítima defesa, o que afasta a ilicitude do tipo, fazendo-se possível ultrapassar a vedação legal. De fato seria um absurdo manter-se, por exemplo, alguém preso com a ciência inequívoca de sua inocência, ainda que descoberta com base em uma prova obtida ilegalmente ou disposta de maneira ilegítima no processo. Isso é totalmente inaceitável. O princípio da proporcionalidade, então, não pode ser considerado em outros casos sob pena de se vilipendiar direitos que são igualmente protegidos pela Carta Maior e que em alguns casos alcançam o status de fundamentais. No que concerne à interceptação telefônica, entendendo-se como tal o gênero interceptação (o que abrange a escuta telefônica), há parâmetros legais que norteiam tal tipo de prova, além da previsão constitucional de seu uso. No entanto, a utilização maciça desse meio de prova, defendida por alguns operadores do direito em virtude da crescente organização do crime, em prol do bem social, não pode prevalecer. Os direitos individuais do cidadão de não ter sua vida privada exposta, não pode ser violado ou anulado a qualquer custo. Para a correta ponderação entre o direito a ser anulado em relação a outro que irá prevalecer, é necessário que se utilize dos preceitos constitucionais. Embora a interceptação telefônica tenha previsão constitucional e uma lei que a regulamenta, é prevista como uma exceção, devendo haver necessidade que justifique a violação do direito à intimidade e o preenchimento de requisitos para a sua concessão. Tais requisitos, assim como outros pontos da Lei, demonstram que a mesma necessita de uma reformulação, para melhor atender aos preceitos constitucionais e os norteadores do processo penal, a fim de que a utilização de tal meio de prova torne-se mais justo às partes existentes no processo e legítima, minimizando os danos existentes na violação a um direito fundamental, mesmo que tal seja previsto. Assim, não se pode esquecer que a violação de um direito constitucional, mesmo que ponderado e legitimamente aplicado, é sempre um prejuízo à ordem legal e natural dos fatos, onde a liberdade de cada cidadão é estruturada democraticamente.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-83/interceptacao-telefonica-face-aos-direitos-individuais/
A reforma do CPP e seus reflexos para o acusado: A busca pela conformidade constitucional do processo penal
O presente artigo tem por objetivo analisar criticamente algumas das alterações produzidas pela reforma do CPP, especificamente quanto ao momento do interrogatório, ao prazo da prisão preventiva em face dos novos prazos procedimentais e à regulamentação das provas ilícitas. Vale salientar, aqui, que não se pretende exaurir o tema, por demais extenso, mas apenas pontuar os aspectos da reforma que procuraram aproximar o processo penal às normas constitucionais, suscitando, assim, novas discussões e trazendo às antigas um novo fôlego.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO Com a promulgação da Constituição Federal em 1988 passou-se a verificar a necessidade de uma reforma do Processo Penal brasileiro. Isso decorreu do rol de garantias asseguradas no art. 5º da Carta Magna, as quais aplicadas ao processo demonstravam que muitos dos institutos previstos no Código de Processo Penal de 1941 não haviam sido recepcionados pelo texto constitucional. Nesse contexto, a atualização e a modernização do Código de Processo Penal mostravam-se imperativas. As Leis nº. 11.689, 11.690 e 11.719, que entraram em vigor em 2008, trouxeram alterações substanciais em diversas fases da persecução criminal, modificando várias facetas da dinâmica processual. Diante disso, o presente trabalho tem por objetivo analisar criticamente algumas das alterações produzidas pela nova legislação, especificamente quanto ao momento do Interrogatório pela nova sistemática, o novo prazo da Prisão e Preventiva em face dos novos prazos procedimentais e a nova percepção das provas ilícitas no CPP. Intentou-se observar, principalmente, as conseqüências práticas acarretadas pela reforma no que diz respeito a essas alterações e sua relação com a efetividade das garantias processuais constitucionais. Vale salientar, aqui, que não se pretende exaurir o tema, por demais extenso, mas apenas pontuar os aspectos da reforma que procuraram aproximar o processo penal às normas constitucionais, suscitando, assim, novas discussões e trazendo às antigas um novo fôlego. 1. A REFORMA DO CPP: UMA ANÁLISE CRÍTICA Antes de se tratar especificamente sobre as reformas do código de processo penal, faz-se importante avaliar criticamente a reforma processual advinda, sem dúvida necessária[1], todavia, tida por grande parte da doutrina como “desordenada, assistemática e, por isso, contraproducente em determinados momentos” (NUCCI, 2008, p. 115). Ao analisar os novos dispositivos legais, tem-se a impressão de que o legislador “lançou-se na tarefa de realizar uma obra sem haver […] projeto que lhe permitisse produzir resultados com linhas harmônicas[2]” (NUCCI 2008, p. 115). Jacinto de Miranda Coutinho (2002, p. 34) já asseverava antes mesmo da reforma advinda que, “[…] as reformas parciais não têm sentido quando em jogo está uma alteração que diga respeito à estrutura como um todo, justo porque se haveria de ter um patamar epistêmico do qual não se poderia ter muita dúvida. Isso, todavia, não é o que se passa com o sistema processual penal, onde, antes de tudo, não se consegue sequer delimitar corretamente o conceito de sistema. […] não se pode deixar de sustentar que um processo global consistente, refletindo seu tempo, há de vingar”. Com efeito, percebe-se que reformas parciais operadas em uma codificação legal muitas vezes resultam na sua falta de coerência interna, pois renova alguns dispositivos, adequando-os à realidade social e às novas concepções jurídicas, enquanto permite a permanência e coexistência de outros tantos que já não se coadunam com essa nova ordem, causando o enfraquecimento do próprio sistema. Em obra publicada sobre a reforma do CPP e o Sistema Acusatório, afirmou-se do mesmo modo que: “O risco que se delineia a partir da entrada em vigor das primeiras alterações é o insucesso da pretensão de se estabelecer um processo uno e coerente. Tal risco […] já se mostra em face das reformas pontuais. Logicamente, por razões que não se precisa aqui aduzir, a reforma global seria a melhor forma de permitir a adoção de um princípio unificador, que criaria para o processo a pretendida unidade” (PEREIRA; MEZZALIRA, 2008, s.p.). Não obstante, não se podem negar os aspectos positivos da reforma. Isso porque as modificações por ela trazidas demonstram clara intenção de adequar o diploma processual às normas e garantias constitucionais. Ainda que o ideal fosse, de fato, a edição de uma nova codificação integral das regras processuais penais, na qual não restariam tantas incongruências internas, há que se aceitar que a alteração delineou um processo mais próximo às exigências constitucionais. Superadas as críticas quanto à forma utilizada para realização da reforma processual penal, alguns comentários merecem ser tecidos sobre algumas das alterações feitas pelo legislador, consoante se passa a discorrer.  2. A CONSOLIDAÇÃO DO INTERROGATÓRIO COMO ATO DE DEFESA A reforma processual penal alterou significativamente os ritos, em especial o comum, regulado nos arts. 394 a 405 do CPP. Na nova dinâmica procedimental, atenta-se para o fortalecimento da ampla defesa através da obrigatoriedade de uma resposta à acusação escrita e anterior a qualquer produção probatória, havendo possibilidade de, logo após, operar-se a absolvição sumária do denunciado, e da inversão da ordem de ouvida deste. O novo posicionamento do interrogatório trouxe novamente à baila a discussão sobre a sua natureza. Tendo em vista a importância que tal definição tem para o acusado dentro do processo, haja vista que interfere na valoração dos elementos que são colhidos durante a sua ouvida, justifica-se uma análise mais aprofundada sobre o instituto. Na antiga sistemática do diploma processual, o direito do réu de exercer a sua autodefesa ao ser interrogado ficava em segundo plano, mormente em face da menção de que o seu silêncio poderia lhe causar prejuízos e em razão da posição em que o interrogatório se encontrava no decorrer do procedimento, o que sugeria que o objetivo supremo de tal ato era a obtenção da confissão, que, por sua vez, serviria de alicerce para a condenação (CAPEZ, 2007, p. 327). Assim, evidente que o Código de Processo Penal, dotado de forte inspiração inquisitiva, uma vez que construído em momento político propício às idéias absolutistas e ditatoriais, considerava a ouvida do acusado preponderantemente como momento de se recolher provas, funcionando tal ato apenas acidentalmente como meio de defesa (BARROS, 1996, p. 133). Contudo, a maneira como o processo penal era visto sofreu profundas mudanças com o advento da Constituição Federal, em 1988, que consagrou, dentre inúmeras garantias, o direito ao silêncio do acusado como extensão da própria ampla defesa (art. 5o, LXIII), bem como determinou a rígida separação entre as funções de acusar, defender e julgar, conferindo ao processo penal linhas claras do sistema acusatório. Em virtude disso, conclui Walter Nunes da Silva Jr. (2009, p. 131) que a Constituição de 1988, “[…] resgatou a natureza jurídica de genuíno meio de defesa para o interrogatório. Por isso, no desiderato de adaptar o sistema normativo à Constituição, foi dada nova redação ao art. 186 do CPP e se inseriu um parágrafo único a esse dispositivo, a fim de deixar claro que o silêncio é um direito, de modo que ele não importa em confissão, ademais de não poder ser interpretado em prejuízo da defesa”. Nesse passo, igualmente Fernando da Costa Tourinho Filho defende que, face às mudanças trazidas pela Constituição Federal, o interrogatório passou a ter natureza jurídica de meio de defesa. Explica o autor a sua posição: “[…] o certo é que a Constituição de 1988 consagrou o direito ao silêncio. O réu não é obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas. […] Se o acusado pode calar-se, não se pode dizer seja o interrogatório um meio de prova. Por outro lado, não estando ele obrigado a acusar a si próprio, não tem nenhuma obrigação nem dever de fornecer elementos de prova” (TOURINHO FILHO, 2002, p. 468). Em compasso com esse entendimento, Ada Pellegrini, Antonio Scarance e Antonio Magalhães Gomes Filho (2007, p. 93) argumentam que, “[…] consubstanciando-se a autodefesa, enquanto direito de audiência, no interrogatório, é evidente a configuração que o próprio interrogatório deve receber, transformando-se de meio de prova (como considerava o Código de Processo Penal de 1941, antes da Lei 10.792/2003) em meio de defesa: meio de contestação da acusação e instrumento para o acusado expor sua própria versão. É certo que, por intermédio do interrogatório […], o juiz pode tomar conhecimento de notícias e elementos úteis para a descoberta da verdade. Mas não é para esta finalidade que o interrogatório está preordenado. Pode constituir fonte de prova, mas não meio de prova: não está ordenado ad veritatem quaerendam.” Nesse sentido também se posiciona Fernando Capez (2007, p. 328), compartilhando da compreensão de que é no interrogatório que o acusado concretiza a sua autodefesa, insurgindo-se contra as acusações que lhe são feitas e influindo, destarte, na convicção do órgão jurisdicional. Ainda que se possa inferir do seu interrogatório algum elemento de instrução probatória, será decorrente de mera eventualidade[3], mormente porque essa não é a finalidade primordial, de acordo com a Constituição Federal, do ato processual em apreço. Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho (2005, p. 44), ao analisar o momento da ouvida do acusado e as diferentes correntes doutrinárias acerca de tal ato, obtemperam: “Outros, porém – e aí me incluo –, têm o interrogatório como, preponderantemente, meio de defesa. Diria mais: em nível prático, é o momento defensivo – como regra – mais importante de todos. É que o interrogatório baliza – e até define – toda a estratégia defensiva. É o momento – tal como a contestação no cível – onde o acusado resiste à pretensão deduzida na inicial de acusação”. Por outro lado, há doutrinadores que, antes da reforma processual, posicionavam-se no sentido de que o acusado, não obstante possa aproveitar o momento do interrogatório para esboçar sua defesa, fornece quase que invariavelmente elementos de prova sobre os fatos cuja verdade se procura descobrir, sendo, desta feita, preponderantemente meio probatório o ato em comento. Dentre os defensores desta posição encontra-se Júlio Fabbrini Mirabete (2003, p. 277), que sustenta ser o interrogatório um meio de prova perante a legislação brasileira, sem todavia negar que tal ato processual guarda características também de meio de defesa, “pois não há dúvida de que o réu pode dele valer-se para se defender da acusação, apresentando álibi, dando a sua versão dos fatos, etc”. Argumenta, ainda, que, mesmo quando o acusado utiliza o interrogatório para refutar as acusações que pesam contra si, não deixa de oferecer ao magistrado elementos probatórios e que influirão no seu julgamento, e até o seu silêncio, não obstante a proibição de ser interpretado em seu prejuízo, poderia acabar contribuindo para a formação da íntima convicção do juiz quando amparado por outras provas do processo. Por tais razões, assevera que o interrogatório é eminentemente de meio de prova. Igualmente defendia que o interrogatório representa meio probatório Nicola Framarino Dei Malatesta (2001, p. 414-426), que pondera: “Nunca se afirmou, nem se poderia afirmar, que o testemunho suspeito não é prova testemunhal. O testemunho do acusado é, portanto, para nós, um testemunho como outro qualquer, com a qualidade particular na testemunha, que, nem sempre, mas em determinados casos, gera suspeitas, tomadas em consideração, como qualquer suspeita do testemunho. […] O interrogatório é tão útil à descoberta da verdade, que não é lícito descuidá-lo principalmente com o acusado e não só tendo o objetivo de alcançar a descoberta da sua eventual criminalidade, mas também, sobretudo, visando chegar à descoberta da sua eventual inocência; mas o interrogatório, repito, não será legítimo senão quando respeite a consciência do acusado, a quem se reconhece o direito de silenciar”. E. Magalhães Noronha, ao refletir sobre a temática, também concluiu, em reflexão anterior à reforma, ser o interrogatório meio de prova, porquanto inserido no título reservado às provas dentro do Código de Processo Penal. Admite, contudo, que é possível ser tal ato também um meio de defesa, embora secundariamente. Isso porque, ainda que o acusado utilize o momento da sua ouvida para realizar a sua autodefesa, “não deixa de ministrar ao juiz elementos úteis à apuração da verdade, seja pelo confronto com provas existentes, seja por circunstâncias e particularidades das próprias declarações que presta” (NORONHA, 1998, p. 137). Por fim, observa-se, ainda, uma terceira corrente, na qual se defende a natureza jurídica mista do interrogatório. Através desse entendimento, tal instituto representaria concomitantemente meio de prova e meio de defesa, haja vista a possibilidade de se obter, com o depoimento judicial do réu, elementos de prova acerca dos fatos investigados no processo criminal, não obstante seja, também, o momento em que o acusado apresenta a sua versão dos fatos, defendendo-se das acusações que lhe foram feitas. É o entendimento de Edilson Mougenot Bonfim (2008, p. 339), que argumenta: “A nova disciplina, entretanto, conquanto empreste ao interrogatório características mais proximamente relacionadas à defesa do réu, não altera a natureza mista do interrogatório, mantendo-se, também, sua função probatória”. Nesse mesmo sentido se posiciona também Aury Lopes Jr., que obtempera: “[…] as alternativas “meio de prova” e “meio de defesa” não são excludentes, senão que coexistem de forma inevitável. Assim, se de um lado potencializamos o caráter de meio de defesa, não negamos que ele também acaba servindo de meio de prova, até porque, ingressa na complexidade do conjunto de fatores psicológicos que norteiam o “sentire” judicial materializado na sentença” (2007, p. 597). Aline Iacovelo El Debs (2001, p. 2), do mesmo modo, filia-se a essa corrente sustentando que a inquirição do réu é tanto momento de produção probatória quanto de se manifestar a sua defesa em relação aos atos que lhe são atribuídos. Desta forma, a autora esclarece que o interrogatório: “[…] trata-se de meio de defesa porque é a oportunidade que o acusado tem de ser ouvido, garantindo sua ampla defesa na forma de autodefesa, ele poderá narrar sua versão dos fatos e indicará provas em seu favor. Poderá também calar-se sem que isso seja usado contra ele. E ainda é possível que assuma o delito, porém, alegue alguma excludente de ilicitude ou de culpabilidade. Todavia não deixa de ser meio de prova para a lei brasileira. As respostas que o réu resolver dar ao magistrado, poderão ser usadas para formar o convencimento desse na busca da verdade real, a favor ou contra a defesa” (EL DEBS, 2001, p. 2). A jurista argumenta que o direito ao silêncio do acusado, elevado a garantia constitucional pela Constituição Federal de 1988, não retirou do interrogatório a característica de meio de prova, pois, se permanecer calado, o réu não contribuirá nem para a elucidação dos fatos, nem tampouco para se defender, hipótese em que não será nem meio probatório, nem defensivo. Todavia, quando decide se manifestar, o acusado, por mais que se limite a refutar todas as imputações que lhe são feitas, acabará, de algum modo, influindo na formação da convicção do magistrado, razão pela qual também deve ser considerado meio de prova. Nesse sentido também é o posicionamento de Antonio Milton de Barros (1996, p. 133). Segundo o autor, ao mesmo tempo em que o interrogatório surge como oportunidade para que o réu apresente a sua versão dos fatos, constitui também momento de produção de prova, uma vez que o acusado fornece através da sua fala dados para que o juiz afira a sua responsabilidade. No entanto, o que se percebe, após a reforma processual penal, é que, conquanto o interrogatório continue sendo regulado na seção destinada às provas, não há como negar que o interrogatório adquiriu contornos ainda mais claros de meio de defesa. Isso porque agora tal ato se situa no final da fase instrutória, de modo a possibilitar que o acusado exerça a sua autodefesa de posse de todas as provas já apuradas, fornecendo, assim, versão coerente com os elementos já colhidos. Ainda que o réu venha a confessar a prática delitiva, a sua declaração somente poderá ser considerada como prova se confirmada por outros dados dentro do conjunto probatório. Nesse sentido se manifesta Nereu José Giacomolli (2008, p. 69): “A disposição importante e acolhedora da tese de que o interrogatório integra a garantia da ampla defesa, na modalidade de defesa pessoal ou autodefesa, é a que determina a sua realização como último ato da audiência, após a colheita de toda a prova, derradeira oportunidade ao exercício da defesa pessoal antes do veredicto do magistrado de primeiro grau”. Na mesma esteira é a conclusão do autor Andrey Borges de Mendonça (2008, p. 294), que, ao abordar as mudanças no Código de Processo Penal trazidas pela novel reforma, esclarece: “[…] por fim, será realizado o interrogatório do acusado, após toda a produção da prova. O fato de o legislador ter colocado o interrogatório apenas no final demonstra que este é visto como meio de defesa (embora eventualmente possa ser, também, meio de prova, em caso de confissão).” Com efeito, nota-se que a reforma do Código de Processo Penal evidenciou a intenção do legislador de fazer do interrogatório um ato de concretização da autodefesa. Consoante afirma Walter Nunes da Silva Jr. (2009, p. 134): “Como se vê, agora, sim, o ordenamento jurídico infraconstitucional está dando ao interrogatório o efetivo tratamento de direito de defesa, permitindo, que o acusado, ao exercer o direito de ser ouvido pelo juiz, possa reportar-se a todas as provas apuradas contra si e contraditá-las”. Ademais, na esteira das mudanças recentemente realizadas no Código de Processo Penal no que tange ao interrogatório, convém mencionar a lei 11.900, de 08 de janeiro de 2009, que trouxe a possibilidade de se realizar, dentre outros atos instrutórios, a inquirição do réu por meio de videoconferência. Apesar de haver controvérsia doutrinária no que diz respeito à violação da ampla defesa do acusado em virtude da realização do interrogatório por meio desse novo método, não há que se falar em modificação da natureza jurídica deste instituto, pois a lei continua a considerá-lo meio de defesa; ele continua sendo o derradeiro dos momentos instrutórios, com os mesmos direitos garantidos constitucionalmente ao acusado que presta depoimento estando fisicamente na presença do juiz, como o direito ao silêncio, ao contraditório, à audiência e à prévia consulta com seu defensor. Nesse sentido é o posicionamento de Walter Nunes da Silva Jr. (2009, p. 145): “O interrogatório por videoconferência é um grande avanço no sistema processual penal e compreende um dos passos necessários à informatização do processo, conforme a Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Não se diga que a videoconferência ofende os princípios da ampla defesa e do contraditório. Basta que algumas cautelas para a maior transparência da realização do ato processual sejam tomadas, as quais, é verdade, devem ser estabelecidas em lei, a fim de evitar que não sejam dadas as devidas garantias ao acusado. A tecnologia utilizada para alguns interrogatórios feitos por essa via permite o contato privativo – em linha exclusiva e criptografada – entre o acusado e seu defensor, sendo assegurada a presença do advogado ao lado de seu cliente.” Além disso, não se pode olvidar que se trata de medida excepcional, devendo o juiz fundamentar a sua decisão com base em um dos incisos do §2º do art. 185 do Código de Processo Penal, de forma que a regra geral continua sendo a ouvida do acusado presente em audiência. O interrogatório por videoconferência, portanto, não altera a natureza jurídica do ato em apreço, nem tampouco fere a ampla defesa do acusado (GOMES, 2009-b, p. 30). Assim, percebe-se que as mudanças estabelecidas nos procedimentos criminais pela reforma processual penal vêm reforçar os argumentos já aventados pelos defensores da corrente que propugna ser o interrogatório preponderantemente meio de defesa, de forma a robustecer tal entendimento, especialmente tendo em vista a nova posição da realização do ato dentro do procedimento criminal, qual seja, após a colheita das provas. Por tais motivos é que não restam dúvidas de que o interrogatório é momento de efetivação da autodefesa do acusado, podendo, entretanto, configurar, ainda que eventualmente, momento de obtenção de elementos probatórios, sendo, assim, apenas subsidiariamente considerado fonte de prova. 3. O NOVO PROCEDIMENTO E O “NOVO” PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA Outro ponto que merece ser analisado é o instituto da prisão preventiva. Isso porque a reforma processual alterou também os prazos de duração das fases investigatória e processual, de forma a retirar o alicerce do entendimento jurisprudencial fixado a respeito do prazo razoável da segregação preventiva, deixando uma lacuna quanto a esse quesito. Os fundamentos da prisão preventiva estão devidamente previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. Entretanto, situação diversa ocorre quanto ao prazo dessa medida cautelar. Segundo Aury Lopes Jr. (2004, p. 41), ao analisar a duração do processo, “no Brasil, a situação é gravíssima. […] sequer existe limite de duração das prisões cautelares, especialmente a prisão preventiva, mais abrangente de todas”. Diante de tal omissão legislativa, passou-se a entender pela aplicabilidade de um prazo de oitenta e um dias[4] como limite à prisão preventiva, tendo tal limite temporal surgido a partir da Lei 9.034/95, conhecida como a Lei dos Crimes Organizados, mais tarde alterada pela Lei nº. 9303 de 1996, a qual trouxe regramento considerado “a consagração legislativa do critério jurisprudencial dos 81 dias” (LOPES JR.; BADARÓ, 2009, p. 115). Em face dessa regra legal, passou a jurisprudência a entender que, se crimes graves – como é o caso dos crimes previstos na Lei 9.034/95 – previam o encarceramento do acusado por no máximo oitenta e um dias, então os delitos comuns previstos no Código Penal, processados através das regras do Código de Processo Penal, não poderiam prever medida cautelar pessoal mais prolongada e gravosa. Com o mesmo objetivo de sanar a omissão legislativa, o Superior Tribunal de Justiça consolidou seu entendimento sobre o tema através de súmulas[5], todas no intuito de afastar argumentos sobre o excesso de prazo no processo penal. Tais súmulas corroboraram os entendimentos jurisprudenciais que passaram a admitir exceções ao limite de oitenta e um dias, tornando-se tal prazo “somente um marco para a verificação do excesso. A sua superação não traduzia necessariamente constrangimento ilegal, o qual deveria ser verificado em cada processo”. Todavia, apesar dessa indefinição do limite temporal da prisão cautelar preventiva antes da reforma processual advinda, é inegável que os oitenta e um dias eram utilizados, ainda que superficialmente, como forma de aferição do excesso de prazo da medida e conseqüente constatação de constrangimento ilegal do acusado. Dessa forma, havia pelo menos um parâmetro anterior para decretação do prazo razoável da medida cautelar pessoal preventiva. Atualmente, com a reforma do Código processual penal pátrio, parece fixar-se novamente o vácuo quanto ao tempo da prisão preventiva, pois o procedimento penal foi alterado, tornando-se mais enxuto, concentrado, não podendo mais, portanto, ser utilizado o mesmo prazo construído através de limites temporais antigos e não mais aplicáveis. Os oitenta e um dias que antes eram usados como parâmetro para reflexão sobre o excesso de prazo daquela medida cautelar, agora não mais podem ser considerados, acarretando, assim, a necessidade de se refletir criticamente sobre o prazo da prisão preventiva à luz do novo procedimento do CPP. A reforma nos procedimentos penais advinda com as Leis 11.689/08 e 11.719/08 alteraram substancialmente os prazos no processo penal, repercutindo tal situação, obviamente, nos limites de tempo razoável da prisão preventiva.  A Lei 11.689 de junho de 2008, referente ao procedimento do júri, o manteve com suas peculiaridades, definindo, porém, algumas modificações referentes aos prazos para cumprimento dos atos processuais. A que mais interessa para este trabalho é aquela prevista no novo art. 412 do CPP, o qual assevera que “o procedimento, na primeira fase, será concluído no prazo máximo de 90 (noventa) dias” (BRASIL, 2008). Apesar de inúmeras críticas quanto ao novo dispositivo legal, que não parece se coadunar com a realidade do Poder Judiciário, tal, por óbvio, altera o entendimento sobre o excesso de prazo da prisão preventiva daqueles acusados que estão encarcerados cautelarmente por cometimento de crimes dolosos contra a vida. Ora, como utilizar-se da regra dos 81 dias anteriormente vigente se o próprio CPP entende razoável a duração da instrução por 90 dias? Consoante entendimento de Aury Lopes Jr. e Gustavo Badaró (2009, p. 155): “Se o acusado estiver preso cautelarmente, e o iudicium accusationis não estiver concluído em 90 dias, estará configurado inegável constrangimento ilegal, devendo a prisão ser relaxada. A prisão será legal durante os 90 dias inicias. Após o nonagésimo dia, a prisão se torna ilegal e, toda e qualquer prisão ilegal deverá ser relaxada, nos termos do art. 5,inc. LXV, da Constituição.” Quanto às alterações trazidas pela lei 11.719/08, relacionadas ao procedimento comum, também alterou os prazos para cumprimento dos atos processuais, como, por exemplo, existência de resposta escrita por parte do acusado em 10 (dez) dias, e, em especial, a regra estabelecida no art. 400, caput, do novo CPP, referente ao procedimento ordinário, a qual informa que “na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias […]” (BRASIL, 2008). Sobre tal dispositivo legal, Andrey Borges de Mendonça (2008, p. 288) entende que, “[…] quando se tratar de réu preso, deverá, em princípio, ser observado, salvo se se tratar de atraso devidamente justificado pelas circunstâncias concretas do caso (necessidade de diligências, número de acusados, etc.), à luz do princípio da razoabilidade. Caso o excesso não seja razoável, caracterizará constrangimento ilegal, sanável pela via do habeas corpus.” Assim, também parece ser impossível nesses casos o uso da regra dos oitenta e um dias para delimitar a razoabilidade da prisão preventiva do acusado.  Quando da análise das Leis que alteraram o Código de Processo Penal, além de concluir-se pela impossibilidade de permanência do uso dos 81 dias como fixador de limite da prisão cautelar preventiva, percebe-se também que, apesar das inúmeras críticas já existentes há tempos sobre a omissão legislativa em fixar um prazo legal como sendo aquele razoável para a fixação da prisão preventiva, a reforma processual penal advinda novamente silenciou quanto a tal matéria, permanecendo a ausência de previsão legal sobre o tempo da prisão cautelar.  Veja-se que os novos dispositivos legais do CPP acima ressaltados, que trazem parâmetros de duração do tempo da fase instrutória do processo, não estão ali previstos como prazos de limitação da prisão cautelar preventiva. Tal conclusão parece óbvia na medida em que a prisão preventiva pode, seguramente, ser mantida por mais tempo que a fase de instrução do processo, como se constata quando da análise dos prazos processuais ao longo de toda a persecução penal após a reforma do CPP: “Seguindo-se o critério da soma dos prazos dos atos processuais, para a prática dos diversos atos do inquérito e do procedimento comum ordinário, até a sentença perfaz-se um total de 85 dias: Inquérito 10 dias (art. 10); denúncia 05 dias (art. 46);defesa preliminar 10 dias (art. 396); audiência de instrução e julgamento 60 dias (art. 400, caput); soma 85 dias. No caso de interrupção da audiência, pela complexidade do caso, a tal prazo de 85 dias, devem ser somados mais 30 dias, perfazendo um total de 115 dias: Alegações das partes: 10 dias (art. 404, par. Único), sentença: 20 dias (art. 404, par. Único, c/c art. 800, §3º), soma: 115 dias. Finalmente, caso a audiência tenha sido interrompida pela necessidade de realização de diligências complementares ao prazo de 115 dias, devem ser somados 5 dias, perfazendo um total de 120 dias” (LOPES JR.;BADARÓ, 2009,p. 146). Nesse sentido, tem-se a análise de Guilherme de Souza Nucci (2008, p. 603) que, verificando as reformas do CPP, afirma que, “[…] inexiste em lei, um prazo determinado para sua duração (da prisão preventiva) […]. A regra é que perdure, até quando seja necessário, durante a instrução, não podendo, é lógico, ultrapassar eventual decisão absolutória […] bem como o trânsito em julgado da decisão condenatória […]. Torna-se muito importante, entretanto, respeitar a razoabilidade de sua duração, não podendo transpor os limites do bom senso e da necessidade efetiva para instrução do feito.” Assim, com o advento da reforma processual, além da percepção de que permanece o processo penal sem um limite legal para a medida cautelar preventiva, constata-se também que os entendimentos anteriores à reforma não podem mais ser considerados como limitadores de tal medida, haja vista as alterações ocorridas nos procedimentos, que necessariamente alteraram os prazos existentes no Processo Penal brasileiro. Com a reiterada omissão legislativa no que diz respeito à fixação do tempo da prisão preventiva e a ausência de entendimento atual sobre os parâmetros de limitação do tempo dessa medida, parece óbvio que a garantia de um prazo razoável de tal prisão cautelar merece uma melhor análise, pois: “O processo não pode se transformar numa pena antecipada. Todo réu presumido inocente tem direito de ser julgado em prazo razoável. Não é razoável ficar três anos, aguardando um julgamento. Beccaria, em 1764, já se insurgia calorosamente contra o cruel tormento da incerteza, afirmando que “o cidadão detido só deve ficar na prisão o tempo necessário para a instrução do processo” (GOMES;MOLINA;BIANCHINI, 2007, p. 270). Ainda, quanto ao tempo das prisões cautelares, entende-se que estas “devem durar um prazo razoável para a necessária maturação e cognição, mas sem excessos, pois o grande prejudicado é o réu, aquele submetido ao ritual degradante e à angústia prolongada da situação de pendência” (CRUZ, 2006, p. 174). Quanto ao Prazo Razoável, a Emenda Constitucional nº. 45 acrescentou formalmente ao inciso LXXVIII do art. 5º da Carta Magna[6] “o direito a uma duração razoável do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação entre os direitos e garantias fundamentais constitucionais[7]” (DIAS, 2007, p. 235). Apesar, portanto, da referência constitucional ser direcionada para a duração processual como um todo, assevera Rogério Machado Cruz (2006, p. 107) que através desse preceito pode-se concluir acerca da garantia de que, “[…] ninguém possa ser mantido preso, durante o processo, além do prazo razoável, seja ele definido em lei, seja ele alcançado por critério de ponderação dos interesses postos em confronto dialético. É dizer, todos têm o direito de ser julgado em prazo razoável e também o direito de não serem mantidos presos por prazo irrazoável”. Segundo leciona Bárbara Sordi Stock (2006, p. 148), a legislação brasileira não prevê limite temporal à duração do processo penal[8], tampouco as Cortes Internacionais, situação que dificulta a definição de “prazo razoável”. Entretanto, essa ausência de fixação legal acerca dos prazos máximos para duração do processo e da medida cautelar preventiva no ordenamento jurídico brasileiro surge em decorrência da opção do legislador de utilizar-se da “doutrina do não-prazo”, também utilizada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos e Convenção Americana de Direitos Humanos (LOPES JR. 2007, p. 153). Por tal entendimento, “[…] considera-se como ilegítimo qualquer movimento legislativo que, a priori, tente fixar o limite de extensão temporal do processo, sob pena de desprezar-se as circunstâncias do cotidiano que, em sua inteireza, não são passíveis de previsão e tratamento pelo ordenador normativo” (GOMES, 2007, p. 84). Na opinião de Aury Lopes Jr. e Gustavo Badaró (2009, p. 41), tal doutrina “deixa amplo espaço discricionário para avaliação segundo as circunstâncias do caso e o sentir do julgador”. A partir dessa doutrina, passou-se a se analisar alguns critérios para aferição da razoabilidade da prisão cautelar, haja vista inexistência de previsão legal. Inicialmente, Em 27 de junho de 1968, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos decidiu um dos primeiros casos fáticos, conhecido como caso “Wemhoff” em que se discutiu o que se deveria entender por razoabilidade da prisão cautelar, tendo se utilizado, na ocasião, a “teoria dos três critérios”, a saber: “a) complexidade do caso[9]; b) a atividade processual do interessado (imputado)[10]; c) a conduta das autoridades judiciárias[11]”(LOPES JR.;BADARÓ,2009,p.40). Segundo os autores, tais critérios “têm sido sistematicamente invocados, tanto pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos[12], como também pela Corte Interamericana de Direitos Humanos” (LOPES JR.; BADARÓ, 2009, p. 41). Dessa forma, desrespeitando-se esses três critérios, estar-se-ia diante de uma dilação indevida do processo. A reforma processual penal advinda em agosto de 2008 permaneceu utilizando-se do critério do não-prazo, omitindo-se em relação à fixação de limites para o tempo da prisão cautelar preventiva. A decisão do legislador em não delimitar prazos legais para o tempo de duração da prisão preventiva vai ao encontro da doutrina que entende pela desnecessidade desse marco legal. A indeterminação do tempo da prisão cautelar pessoal preventiva, mesmo após a reforma do CPP, corrobora a necessidade de utilização do princípio da Razoabilidade como fator determinante para estabelecer os contornos de duração daquela medida. Conforme já verificado neste trabalho, atualmente não há qualquer critério para limitar o tempo da medida cautelar, havendo a imperiosidade de análise da razoabilidade como fixador do prazo máximo de duração da prisão preventiva e conseqüente verificação de constrangimento ilegal em face do acusado encarcerado. Verificando a necessidade de análise do Princípio da Razoabilidade frente a qualquer situação fática que envolva a prisão cautelar do indivíduo, parece claro que a partir da reforma do Código de Processo penal, omissão do legislador em tomar para si a responsabilidade de determinar o prazo da medida cautelar com a reforma processual e sucessiva queda da doutrina dos 81 dias, o princípio constitucional recebe um status ainda maior, deixando de ser apenas um norteador das decisões jurisprudenciais e passando a ser o único meio de fixação do tempo da prisão preventiva e delimitação do excesso de prazo de tal medida, sendo a melhor forma de coadunar a regra processual penal com os preceitos e garantias constitucionais. 4. A REGULAMENTAÇÃO LEGAL DAS PROVAS ILÍCITAS Por fim, insta tecer algumas observações quanto à regulamentação infraconstitucional das provas ilícitas, introduzida no Código de Processo Penal pela lei 11.690/2008. A nova redação do art. 157 do Código de Processo Penal preceitua serem ilícitas todas as provas “obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. A doutrina, antes mesmo de haver previsão constitucional quanto à proibição de tais provas, já costumava identificar como suas sub-espécies a prova ilegítima e a prova ilegal (ou ilícita em sentido estrito). A primeira era resultante do desrespeito a normas procedimentais; a segunda, da violação de regras de cunho material (GOMES FILHO, 2009, p. 265-266). Antônio Magalhães Gomes Filho (2009, p. 266) ressalta que: “Outra diferença entre elas decorre do momento em que se configura a ilegalidade: nas ilícitas, ela ocorre quando da sua obtenção; nas ilegítimas, na fase de produção. Também é diversa a consequência dos respectivos vícios: as ilícitas são inadmissíveis no processo (não podem ingressar e, se isso ocorre, devem ser desentranhadas); as ilegítimas são nulas e, por isso, a sua produção pode ser renovada, atendendo-se então às regras processuais pertinentes.” Maria Elizabeth Queijo (2003, p. 377-378) salienta, outrossim, que há dois aspectos que devem ser considerados relativamente ao tema ora tratado: o primeiro, de natureza material, diz respeito à produção da prova, isto é, à “individualização do ato ilícito”; o segundo, processual, refere-se à admissibilidade da prova e à sua utilização e valoração dentro do processo. A importância de se considerar esses dois aspectos consiste no fato de que anteriormente havia dois entendimentos[13] quanto às consequências da produção de uma prova por meios ilícitos: alguns doutrinadores entendiam que o aspecto material não influenciava o processual, de modo que as evidências colhidas deveriam sempre ser aceitas no processo, não importando o modo pelo qual se deu a sua obtenção. A responsabilização por eventual desrespeito a direitos ou formalidades na produção de provas seria diretamente aplicada ao seu infrator, através da imposição de sanção administrativa, civil e penal (QUEIJO, 2003, p. 379). De outra banda, havia quem sustentasse que provas colhidas por meios ilícitos não poderiam ser admitidas dentro do processo, pois “mesmo que fossem punidos os autores das infrações, não seria adequado que o Estado, que objetiva combater os ilícitos, deles se beneficiasse, utilizando a prova ilícita” (QUEIJO, 2003, p. 379). Na jurisprudência brasileira, como bem ressalta a autora, o entendimento inicial dos Tribunais era pela aceitação no processo de provas obtidas por meios ilícitos. Posteriormente, contudo, passou-se a entender pela inadmissibilidade de tais provas (QUEIJO, 2003, p. 390).  A vedação à admissibilidade de provas ilícitas no processo surgiu expressamente na legislação brasileira com a Constituição Federal de 1988, sendo elencada como direito fundamental, no art. 5º, inciso LVI. Até então, a questão da (in)admissibilidade de provas obtidas por meios ilegais ou ilegítimos era discutida apenas doutrinariamente e em âmbito jurisprudencial, através da aplicação de teorias desenvolvidas principalmente no direito americano e alemão (SILVA JR., 2009, p. 171). Nos Estados Unidos, desenvolveu-se a tese da inadmissibilidade das provas produzidas por meios ilícitos (exclusionary rules) a partir do julgamento do caso Boyd vs. US, no ano de 1886, no qual se sustentou que a teoria estaria implícita na Constituição Americana, pois se presta à proteção dos direitos fundamentais ali declinados. Por tal motivo, a Corte Suprema argumentou que, havendo a violação simultânea da Quarta e Quinta Emendas à Constituição, que se referem respectivamente à segurança do indivíduo e de seus bens contra apreensões arbitrárias e à garantia contra a auto incriminação, na busca de provas, estas não poderiam ser admitidas dentro do processo (SILVA JR. 2009, p. 171).  Tempos depois, no ano de 1920, em outro caso emblemático dentro do tema, conhecido como Silverthone Lumber Co vs. US, fixou-se na jurisprudência americana o entendimento de que não só as provas obtidas por meios ilícitos não poderiam ser utilizadas em processos judiciais como também aquelas cuja descoberta resultasse da obtenção das primeiras. Trata-se da teoria que ficou conhecida como fruits of the poisonous tree – frutos da árvore envenenada –, na qual se inadmite também as provas derivadas das ilicitamente produzidas (SILVA JR. 2009, p. 171). Frise-se, contudo, que ambas as teorias de exclusão admitem exceções; há casos em que a prova, ainda que derivada de prova ilícita, poderá entrar no processo: “(…) excepcionam-se da vedação probatória as provas derivadas da ilícita, quando a conexão entre umas e outras é tênue, de modo a não se colocarem a primária e as secundárias como causa e efeito; ou, ainda, quando as provas derivadas da ilícita poderiam de qualquer modo ser descobertas por outra maneira. Fala-se, no primeiro caso, em independent source e, no segundo, na inevitable discovery. Isso significa que, se a prova ilícita não foi absolutamente determinante para o descobrimento das derivadas,ou se estas derivam de fonte própria, não ficam contaminadas e podem ser produzidas em juízo” (grifo dos autores – GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, 2007, p.163). As exclusionary rules passaram a ser aplicadas também na Justiça alemã, através da tese das Beweisverbote – proibição de provas –, em que a inadmissibilidade de provas ilícitas no processo resulta do entendimento de que “(…) as limitações ou obstáculos à produção das provas, em verdade, são normas processuais impostas como forma de preservar os direitos subjetivos fundamentais encartados no ordenamento jurídico” (SILVA JR., 2009, p. 171).  Maria Elizabeth Queijo (2003, p. 381) salienta que, no sistema jurídico alemão, assim como no americano, a inadmissibilidade de provas ilícitas se refere apenas àquelas produzidas ao arrepio de direitos constitucionais. Contudo, no sistema alemão, a tese desenvolvida para amenizar a Beweisverbote foi a teoria da proporcionalidade, na qual são sopesados, em cada caso, o grau e extensão da violação ao direito individual e o dano que poderá advir da não aceitação da prova ilícita, “evitando-se solução desproporcional e inaceitável” (QUEIJO, 2003, p. 382-383). Nesse mesmo sentido a lição de Walter Nunes da Silva Júnior (2009, p. 200): “O princípio da proporcionalidade foi construído na doutrina e jurisprudência alemãs, possuindo ampla aceitação no Direito europeu continental. Quanto ao tema da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, que, na dogmática alemã, segue o regime das Beweisverbote, o Tribunal Constitucional Federal do referido país (…) adota, em sua linha argumentativa, duas vertentes, pondo, de um lado, o paradigma da preservação dos direitos da personalidade (direitos fundamentais) e, do outro, recorre ao princípio da proporcionalidade,a fim de fazer a ponderação de interesses e, com isso, conceber a legitimação da prova, sacrificando, assim, na hipótese, o bem jurídico do acusado” (grifos do autor). Como bem ressalta Walter Nunes da Silva Júnior (2009, p. 174-176), a jurisprudência pátria, que em um primeiro momento aceitava no processo provas ilicitamente obtidas em prol da busca da verdade, passou, paulatinamente, a rejeitá-las, aceitando-as eventualmente, contudo, em face da aplicação do princípio da proporcionalidade. Inspirando-se no direito comparado, os Tribunais passaram a entender também inaceitáveis as provas derivadas das ilícitas, uma vez que a violação de direitos fundamentais não poderia resultar em um benefício ao Estado na persecução criminal (QUEIJO, 2003, p. 379). Com o advento da Constituição Federal em 1988, consolidou-se o posicionamento já dominante na jurisprudência e doutrina brasileiras quanto à inadmissibilidade das provas ilícitas, assim entendidas tanto as ilegais quanto as processualmente ilegítimas, sendo-lhes aplicada a sanção de invalidade (GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, 2007, p. 166-167). Lastreado na Carta Magna, o Supremo Tribunal Federal assentou seu entendimento de que não seria pertinente ao sistema jurídico pátrio a aplicação do princípio da proporcionalidade, pois a vedação de provas ilícitas constitui direito fundamental. Todavia, considerando-se que não há hierarquia entre os direitos fundamentais (SILVA JR., 2009, 174), admite-se a atenuação da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos quando estas forem pro reo, uma vez que é levado em conta, aqui, o direito de defesa, o qual também é fundamental e se coaduna perfeitamente com o princípio processual penal do favor rei (QUEIJO, 2003, p. 383). Ademais, também se argumenta que, em se tratando de prova diretamente colhida pelo acusado, seria possível a sua admissão em razão da excludente de ilicitude da legítima defesa (GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, 2007, p. 162). Nesse ponto, cumpre transcrever a ilação destes autores: “Pensamos que, nesses casos (admissibilidade da prova ilícita que beneficie a defesa, eventual adoção do princípio da proporcionalidade e vícios da prova regular derivada da ilicitamente obtida), a Constituição brasileira não afasta radicalmente nenhuma tendência; e isto porque, como já dito (…), os direitos e garantias fundamentais não podem ser entendidos em sentido absoluto, em face da natural restrição resultante do princípio de sua convivência, que exige a interpretação harmônica e global das liberdades constitucionais” (GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, 2007, p. 170). Com a reforma do Código de Processo Penal houve mudanças significativas no campo da prova ilícita, demonstrando claramente a intenção do legislador em disciplinar a matéria baseando-se nas diretrizes estabelecidas pela jurisprudência e em consonância com a determinação constitucional. O caput do art. 157 do mencionado diploma traz, agora, uma definição do que se deva entender por provas ilícitas, unindo, sob este conceito, as provas ilegítimas e as ilegais. Nesse ponto, Antônio Magalhães Gomes Filho (2009, p. 266) refere não ter sido essa decisão a mais acertada, porquanto desconsidera que as ilegítimas, por desrespeitarem a forma, são nulas e podem, por isso mesmo, serem refeitas. Outrossim, a lei 11.690/08 acrescentou ao dispositivo aludido três parágrafos. O primeiro deles traz em seu bojo a inadmissibilidade das provas derivadas das ilícitas, contemplando a teoria americana dos frutos da árvore envenenada, bem como duas das exceções a essa tese. Assim, não se considerará maculada a prova derivada “quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras”. O §2º do art. 157, por sua vez, cuida da definição de fonte independente. Entretanto, salienta Antônio Magalhães Gomes Filho (2009, p. 268-269) que a descrição foi infeliz, uma vez que o legislador confundiu os conceitos de fonte independente e descoberta inevitável, caracterizando o primeiro com a definição do segundo. Nesse contexto, oportuna a lição do autor: “Os fundamentos dessas duas exceções à contaminação da prova são evidentemente diversos: na hipótese de haver uma fonte independente, a prova derivada tem concretamente duas origens – uma ilícita e outra lícita –, de tal modo que, ainda que suprimida a fonte ilegal, o dado probatório trazido ao processo subsiste, e, por isso, pode ser validamente utilizado. Já na situação de descoberta inevitável, a prova tem efetivamente uma origem ilícita, mas as circunstâncias do caso permitem considerar, por hipótese, que seria inevitavelmente obtida, mesmo se suprimida a fonte ilícita.” Assim, verifica-se que, pela redação dada ao artigo, está-se a falar de fato de descoberta inevitável, porquanto menciona-se a mera possibilidade de que, retirada a prova ilícita, encontrar-se-ia a prova derivada, por outros meios. Por tal motivo, o autor defende a inconstitucionalidade desse dispositivo, haja vista que, da forma como foi escrito, dá oportunidade de convalidar toda e qualquer prova derivada, “o que subverte não só aquela idéia original, mas também coloca em risco a própria finalidade da vedação constitucional” (GOMES FILHO, 2009, p. 269). Contudo, por toda a evolução jurisprudencial no tema das provas ilícitas, acredita-se que tal situação não ocorrerá. Por certo que houve um equívoco na redação do artigo, mas, tendo em vista que se trata o Código de Processo Penal de legislação infraconstitucional, há que se o interpretar conforme a Constituição Federal. Assim o fazendo, não há riscos de se retorcer a vedação constitucional às provas ilícitas. Até porque mesmo no caso da descoberta inevitável há que se considerar que, pelas peculiaridades do caso concreto, seria aquela prova cuja obtenção se deu por meio de outra ilícita invariavelmente encontrada. Vale mencionar que o fato de estarem previstas apenas essas exceções à exclusão das provas ilícitas por derivação não impede que a jurisprudência reconheça outras no caso concreto (SILVA JR. 2009, p. 184). Derradeiramente, a disposição legal do §3º do art. 157, que faz menção à inutilização das provas declaradas ilícitas por decisão judicial preclusa, também tem sofrido críticas por parte dos doutrinadores. Isso porque, considerando que muitas vezes a prova ilícita foi colhida com violação de direitos e garantias fundamentais do acusado, a legislação em comento desconsiderou que tal prova poderá ser utilizada dentro de procedimento judicial que vise a responsabilizar aqueles que a colheram. Há também a hipótese de essa prova vir a ser admitida pro reo em outro processo, como, por exemplo, em uma revisão criminal, de modo que o arquivamento sigiloso em cartório teria sido uma opção mais razoável (GOMES FILHO, 2009, p. 270-271). Com efeito, tendo em vista que alguns Tribunais têm admitido a aplicação do princípio da proporcionalidade quando a prova colhida ilicitamente for benéfica ao réu, realmente a previsão de destruição da prova não é a mais condizente com o sistema processual brasileiro. 5. CONCLUSÃO A reforma processual penal trouxe ao ordenamento jurídico repercussões bastante expressivas no intuito de coadunar os preceitos constitucionais de garantias e respeito ao acusado às regras da persecução penal. Nesse sentido, o legislador finalmente asseverou o que já havia sido pacificado pela jurisprudência acerca da natureza do interrogatório, tornando-o efetivamente um meio de defesa, o que restou evidente pela mudança no momento da sua realização. Ainda, as alterações repercutiram diretamente no prazo da prisão preventiva, já que, com novos prazos para duração da instrução criminal, o tempo da medida cautelar não mais pode ser atrelado àqueles limites temporais antigos do CPP, não havendo mais que se falar em excesso de prazo após o período de oitenta e um dias, que fora estipulado através de construção jurisprudencial baseada nos procedimentos da Lei de Ritos de 1940. Apesar das alterações trazidas pelo CPP, o legislador mais uma vez se omitiu quanto à fixação de uma regra legal que determinasse de forma objetiva o tempo razoável daquela medida cautelar. Diante dessa “lacuna” legal, o Princípio da Razoabilidade resta como parâmetro para fixação do tempo da medida cautelar preventiva, tendo o intuito de trazer a ela contornos objetivos para determinar possível excesso de prazo. No que se refere às provas ilícitas, demonstrou-se claramente a intenção do legislador em disciplinar a matéria baseando-se nas diretrizes estabelecidas pela jurisprudência, em consonância com a determinação constitucional e legislação alienígena, trazendo para o Código de Processo Penal regramento sobre o tema e adequando-o à Constituição Federal.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-82/a-reforma-do-cpp-e-seus-reflexos-para-o-acusado-a-busca-pela-conformidade-constitucional-do-processo-penal/
O limite do direito de provar em processo penal
O presente trabalho visa apontar as questões mais relevantes no tocante à produção de prova na matéria criminal, de modo a procurar um equilíbrio entre o respeito às garantias fundamentais do cidadão e um processo penal eficaz, isto porque, sendo o poder punitivo um poder deslegitimado, a violação a qualquer direito fundamental para o fim exclusivo de produzir uma prova para a concretização do exercício desse poder é, também uma pena e, portanto, deslegitima no Estado Democrático de Direito . São tratados temas como o conceito de prova, a natureza jurídica desta e da liberdade probatória. Nesse ínterim também são analisados os meios de prova, provas ilícitas e provas ilegítimas, quando também é analisada a utilização da interceptação telefônica como prova em processo penal.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO: O presente trabalho visa apontar as questões mais relevantes no tocante à produção de prova na matéria criminal, de modo a procurar um equilíbrio entre o respeito às garantias fundamentais do cidadão e um processo penal eficaz, que não se mostre uma garantia de impunidade. 1 PROVA EM PROCESSO PENAL: Ideologicamente, o processo objetiva a reconstrução dos fatos ocorridos para que possam ser extraídas as respectivas conseqüências daquilo que restar comprovado, sendo a prova o instrumento usado pelos sujeitos processuais para comprovar os fatos da causa, isto é, aquelas alegações que são deduzidas pelas partes como fundamento para o exercício da tutela jurisdicional. Guilherme Nucci entende que existem três sentidos para o termo prova: a) Ato de provar: atividade realizada, em regra, pelas partes, com o fim de demonstrar a veracidade de suas alegações, é o processo pelo qual se verifica a exatidão do alegado; b) Meio: meios ou instrumentos utilizados para a demonstração da verdade de uma afirmação ou existência de um fato; c) Resultado da ação de provar: é o resultado final da atividade probatória, ou seja, a certeza ou convicção que surge no espírito de seu destinatário. Desse modo, prova é uma expressão dinâmica e terá distinta acepção (conceito), dependendo do sentido que se empregue ao vocábulo. O destinatário direto da prova é o magistrado, sendo assim, a prova tem como finalidade permitir que o julgador conheça os fatos sobre os quais fará incidir o direito. Aliás, este é o objetivo primordial do processo de conhecimento, no âmbito do qual a parte mais substancial dos atos é voltada à instrução – produção de provas que permita ao julgador exercer o poder jurisdicional. Por isso, a prova foi chamada por Mascardo de “alma do processo”. Disso tudo se extrai a natureza jurídica da prova, que nada mais é que um direito subjetivo com vertente constitucional para a demonstração da realidade dos fatos. A prova se pauta por regras e princípios organizados segundo critérios lógicos. Obviamente o exercício probatório deve restringir-se aos fatos pertinentes à lide, especialmente em razão do princípio da economia processual. Contudo, no processo penal, todos os fatos que de algum modo são importantes para a decisão judicial devem ser provados.    A liberdade probatória é a regra, o rol de meios de prova admissíveis é aberto, o Código de Processo Penal não esclarece taxativamente os meios de prova admissíveis. Os únicos fatos acerca dos quais o meio de prova é prescrito pela lei são aqueles referentes ao estado das pessoas, em relação aos quais o parágrafo único do art. 155 do CPP dispõe que devem ser observadas as restrições à prova estabelecidas na lei civil, dessa forma, a súmula 74 do STJ assevera que o reconhecimento de menoridade do réu requer prova por documento hábil. Exceto essa situação, vigora relativa liberdade probatória quanto aos sujeitos do processo, respeitando-se apenas as proibições legais. Destaca-se o art. 295 do CPPM, que dispõe: “Admissibilidade do tipo de prova Art 295. É admissível, nos têrmos dêste Código, qualquer espécie de prova, desde que não atente contra a moral, a saúde ou a segurança individual ou coletiva, ou contra a hierarquia ou a disciplina militares.” Não precisam ser provados no processo penal os fatos notórios, as presunções absolutas (art. 27, CP, por exemplo), as máximas de experiência do julgador, os fatos intuitivos ou evidentes e os fatos inúteis ou irrelevantes. As presunções podem ser absolutas ou relativas. As absolutas não admitem prova em contrário, enquanto as relativas podem ser afastadas por prova em contrário. 2 MEIOS DE PROVA: Meio de prova é todo fato, documento ou alegação que possa servir, direta ou indiretamente, à busca da verdade real dentro do processo. Na busca pela verdade real, podem as partes optar por meios de prova não especificados em lei. São exemplos de meios de prova: a perícia no local do crime (art. 169, CPP) e o depoimento do ofendido (art. 201, CPP). Os meios de prova podem ser tipificados em lei ou ser moralmente legítimos, sendo estes chamados de “prova inominada”. No processo penal brasileiro não há limitação dos meios de prova, esta liberdade probatória é muito importante, pois permite a busca da verdade real, vige em nosso país o princípio da busca da verdade real, conforme julgado acima. Entretanto, o princípio da liberdade probatória não é e nem pode ser absoluto, existem limites consagrados, como, por exemplo, o disposto no art. 5°, LVI da CRFB/88, que determina a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos. Conforme bem lecionam Nestor Távola e Rosmar Antonni: “é impensável uma persecução criminal ilimitada, sem parâmetros onde os fins justificassem os meios, inclusive na admissão de provas ilícitas. O Estado precisa ser sancionado quando viola a lei, e assegurar a imprestabilidade das provas colhidas em desrespeito à legislação é frear o arbítrio, blindando as garantias constitucionais, e eliminando aqueles que trapaceiam, desrespeitando as regras do jogo”. Neste sentido destaca-se, dentre tantos outros, o fato de a escuta clandestina, alvo de investigações das CPIs, ter se tornado franca e impune atividade no Brasil, prova disto foi o descontrole a que chegou a operação de espionagem clandestina promovida pelo delegado Protógenes Queiroz, que promoveu verdadeira espionagem clandestina no caso do banqueiro Daniel Dantas. O delegado montou uma central de espionagem que, a pretexto de investigar crimes cometidos pelo ex-banqueiro Daniel Dantas, chegou a cobrir, segundo reportagem publicada na revista Veja edição 2103 de 11/03/2009, a vida amorosa de uma ministra até o que se falava na antessala do presidente de República, passando pelas atividades do presidente do STF, do ex-presidente da República e do governador do estado de São Paulo. Tal descontrole chegou a tal ponto que, neste mesmo mês, foi desvendada no Recife outra investida ilegal de espionagem política na qual uma pessoa teria sido sondada supostamente por membros de um partido político, com uma proposta para desvendar a vida privada de um senador. Tal falta de limites não pode prosperar, a vedação de prova ilícita é inerente ao Estado Democrático de Direito, não se pode buscar punição para um indivíduo custe o que custar, até mesmo por que, dessa forma, se estaria violando frontalmente princípios consagrados pela CRFB/88, que jamais podem ser ignorados.  Neste sentido destaca-se: “É indubitável que a prova ilícita, entre nós, não se reveste da necessária idoneidade jurídica como meio de formação do convencimento do julgador, razão pela qual deve ser desprezada, ainda que em prejuízo da apuração da verdade. É um pequeno preço que se paga por viver-se em um Estado Democrático de Direito” (STF, Plenário, APn 307-3/DF, rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 13 out. 1995). Realmente, o rol de meios de prova admissíveis é aberto, disso decorre que tampouco haverá em lei um rol de provas consideradas ilícitas, contudo, a priori, é necessário, em cada caso, verificar se o meio de prova usado, ou cuja utilização se pretenda, não fere o ordenamento jurídico ou a esfera do moralmente aceitável – do que se pode depreender a dificuldade em qualificar certos meios de prova como lícitos ou ilícitos. A reforma legislativa introduzida recentemente em nosso sistema, alterou o art. 157 do CPP. A Lei 11.690/08 deu nova redação ao caput do referido artigo e, não só repetiu o disposto no art. 5°, LVI da CRFB/88 – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos -, como definiu “assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”, sendo que também acrescentou que tais provas devem ser desentranhadas dos autos. Assim dispõe o art. 157 do CPP: “Art. 157.  São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. § 1o  São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.  § 2o  Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. § 3o  Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.” O projeto 4.205/01 também previa um § 4°, que dizia: “O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão”, isso por que, ao ter contato com a prova, é inquestionável que o juiz reste “contaminado” por ela, de forma que isto influencie, mesmo que inconscientemente, a sua decisão. Parece acertado o entendimento de Aury Lopes Jr. no tocante a este assunto, no sentido de que “não basta anular o processo e desentranhar a prova ilícita: deve-se substituir o juiz do processo, na medida em que sua permanência representa um imenso prejuízo, que decorre dos pré-juízos (sequer é pré-julgamento, mas julgamento completo!) que ele fez”.  Entretanto o §4°, apesar de razoável, foi vetado em razão do reduzido número de julgadores e da precariedade do nosso sistema para uma determinação como esta, vez que, por exemplo, quando os Tribunais julgassem um habeas corpus, estariam impedidos de julgar recursos posteriores por causa do contato ocorrido no julgamento daquele, e, principalmente em razão das conseqüências que seriam geradas no caso de descumprimento do parágrafo, que daria causa a situações de nulidade absoluta, a exemplo das demais causas de impedimento. Não se pode esquecer também, o referido parágrafo levaria ao afastamento peremptório do juiz natural da causa, mesmo nas circunstâncias em que a prova ilícita, por ser meramente acidental, não tivesse reflexo tão decisivo no convencimento do julgador. Sendo assim, a solução encontrada é que o juiz deveria declarar-se suspeito, afastando-se do caso, ao perceber que o acesso à prova ilícita atingiu diretamente seu convencimento, lhe despindo de imparcialidade. De volta, a prova deverá ser vedada, proibida ou inadmissível – classificação de gênero de prova dada por Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho no livro “As nulidades no processo penal” – toda vez que sua produção implicar em violação da lei ou de princípios de direito material ou processual, cujas espécies são: as provas ilícitas e as provas ilegítimas. 3 PROVA ILEGÍTIMA E PROVA ILÍCITA: Prova ilegítima é aquela cuja obtenção infringe norma processual, por exemplo, quando a confissão do acusado suprime o exame de corpo de delito ou quando o laudo pericial é subscrito por apenas um perito não oficial. Prova ilícita é aquela cuja obtenção viola princípios constitucionais ou preceitos legais de natureza material. Exemplos de prova ilícita são a confissão do acusado obtida mediante tortura (Lei 9.455/97) – já que nenhum bem jurídico deve prevalecer sobre o respeito e a integridade física e psíquica de um indivíduo – e a interceptação telefônica efetivada sem permissão judicial (Lei 9.296/96).  Entretanto, tanto a CRFB/88 quanto a Lei 11.690/08 que imprimiu a reforma do sistema probatório brasileiro, ambas alheias à classificação doutrinária, não fizeram qualquer distinção entre provas ilícitas e provas ilegítimas. A interceptação telefônica merece especial atenção, especialmente em razão do supracitado fato de a escuta clandestina ter se tornando alvo de investigações principalmente das CPIs. O inciso XII do art. 5° da CRFB/88 permite a quebra do sigilo das comunicações de dados e telefônicas “por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Com vistas a regulamentar essa exceção constitucional, foi editada a Lei 9.296/96, que não trouxe um numerus clausus, isto é, não trouxe um rol taxativo de infrações penais que sujeitariam os suspeitos à captação de prova através de interceptação telefônica, como as legislações portuguesa e alemã; referida lei restringiu-se a estabelecer hipóteses de não cabimento da medida no seu art. 2°, que determina: “Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses: I – não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; II – a prova puder ser feita por outros meios disponíveis; III – o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção. Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.” Portanto, conforme leciona Sérgio Ricardo de Souza, é inadmissível a utilização da interceptação telefônica sem que esteja presente o requisito cautelar consistente em indícios que caracterizem o fumus comissi delict, ou seja, não há de se decretar a medida como forma de colher os elementos indiciários iniciais, ao contrário, para decretá-la, o julgador tem que perquirir se existem tais indícios, para justificá-la a teor do disposto no art. 93, IX da CRFB/88. Da mesma forma, as infrações penais punidas com detenção, prisão simples ou exclusiva pena de multa ou educativa, não autorizam a utilização deste meio de prova. Entretanto, o entendimento adotado no STF (HC 83.515/RA, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 04.03.2005, p. 11) é de que, ocorrendo deferimento deste meio de captação de prova em relação a uma infração penal não relacionada no art. 2° da Lei 9.296/96 e, no decorrer desta interceptação, o próprio investigado ou um interlocutor seu fizer referência à prática de algum dos crimes abrangidos pela vedação desse artigo, havendo conexão entre o crime cuja investigação autorizou a interceptação e outra infração para a qual é vedada, já que as infrações estão ligadas entre si (vinculação de conexão ou continência) e fazem parte do mesmo cenário probatório, a prova acrescida e captada de forma eventual pode ser validamente utilizada na persecução penal. A doutrina majoritária coaduna com o STF, de forma que, segundo lição de Vicente Greco Filho, o que não se admite é a utilização da interceptação telefônica em face de fato em conhecimento fortuito e desvinculado do fato que originou a providência. De acordo com ensinamento de Luiz Flavio Gomes e Raul Cervini, de outro lado, referido meio de prova não será válido quando em relação ao encontro de fato não conexo, bem como quanto a fatos cometidos por terceiras pessoas sem nenhuma relação de continência com o investigado. Esse encontro fortuito vale unicamente como notitia criminis. Importante referir oportunamente que o STF e o STJ têm admitido como lícita a gravação de conversa telefônica nos casos em que o autor da gravação é um dos interlocutores, ainda que sem o conhecimento e/ou autorização do outro interlocutor, a ilicitude só ocorre quando terceiro estranho à conversação procede à gravação. De outra banda, determina o art. 5° da mesma lei:  “Art. 5° A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.” Atualmente tem-se feito renovação sucessiva deste prazo, o que não parece razoável, pois, como já tratado anteriormente é forte a tendência de relativização e restrição dos direitos e garantias fundamentais, vistos como empecilhos para o efetivo combate à criminalidade, entretanto o poder punitivo não pode restar “deslegitimado” de tal forma que fira direitos fundamentais da pessoa, impedindo a consolidação do processo penal como garantia de liberdade. Assim, não parece razoável a permissão de interceptação por “prazo indeterminado”, quinze dias, mais quinze dias, mais quinze dias e assim por diante, até que se apure infração penal em certo dia. Contudo, colacionam-se alguns julgados referentes ao tema: “STF: EMENTA: Recurso Ordinário em Habeas Corpus. 1. Crimes previstos nos arts. 12, caput, c/c o 18, II, da Lei nº 6.368/1976. 2. Alegações: a) ilegalidade no deferimento da autorização da interceptação por 30 dias consecutivos; e b) nulidade das provas, contaminadas pela escuta deferida por 30 dias consecutivos. 3. No caso concreto, a interceptação telefônica foi autorizada pela autoridade judiciária, com observância das exigências de fundamentação previstas no artigo 5º da Lei nº 9.296/1996. Ocorre, porém, que o prazo determinado pela autoridade judicial foi superior ao estabelecido nesse dispositivo, a saber: 15 (quinze) dias. 4. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento segundo o qual as interceptações telefônicas podem ser prorrogadas desde que devidamente fundamentadas pelo juízo competente quanto à necessidade para o prosseguimento das investigações. Precedentes: HC nº 83.515/RS, Rel. Min. Nelson Jobim, Pleno, maioria, DJ de 04.03.2005; e HC nº 84.301/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, unanimidade, DJ de 24.03.2006. 5. Ainda que fosse reconhecida a ilicitude das provas, os elementos colhidos nas primeiras interceptações telefônicas realizadas foram válidos e, em conjunto com os demais dados colhidos dos autos, foram suficientes para lastrear a persecução penal. Na origem, apontaram-se outros elementos que não somente a interceptação telefônica havida no período indicado que respaldaram a denúncia, a saber: a materialidade delitiva foi associada ao fato da apreensão da substância entorpecente; e a apreensão das substâncias e a prisão em flagrante dos acusados foram devidamente acompanhadas por testemunhas. 6. Recurso desprovido.” (RHC 88371 / SP – SÃO PAULO RECURSO EM HABEAS CORPUS Relator(a):  Min.GILMAR MENDES Julgamento:  14/11/2006   Órgão Julgador:  Segunda Turma) “STF: EMENTA: HABEAS CORPUS. “OPERAÇÃO ANACONDA”. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ALEGAÇÕES DE NULIDADE QUANTO ÀS PROVAS OBTIDAS POR MEIO ILÍCITO. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. IMPORTANTE INSTRUMENTO DE INVESTIGAÇÃO E APURAÇÃO DE ILÍCITOS. ART. 5º DA LEI 9.296/1996: PRAZO DE 15 DIAS PRORROGÁVEL UMA ÚNICA VEZ POR IGUAL PERÍODO. SUBSISTÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS QUE CONDUZIRAM À DECRETAÇÃO DA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. DECISÕES FUNDAMENTADAS E RAZOÁVEIS. A prova pericial deverá servir de base à sentença, o que não se aplica ao recebimento da denúncia. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO PARA JULGAR OS FATOS IMPUTADOS AO PACIENTE, DADA A SUPOSTA PARTICIPAÇÃO DE SUBPROCURADOR DA REPÚBLICA, O QUE DETERMINARIA A COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (ART. 105, I, A, DA CONSTITUIÇÃO). Ainda não houve o oferecimento de denúncia contra o subprocurador da República, de modo que não há como deslocar a competência para o Superior Tribunal de Justiça. VIOLAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. DESMEMBRAMENTO DOS AUTOS. A regra do art. 79 do Código de Processo Penal – competência por conexão ou continência – é abrandada pelo teor do art. 80 do Código de Processo Penal, que faculta a separação dos autos quando se tratar de fatos distintos, como ocorre nos caso concreto. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. IMPEDIMENTO DO PACIENTE DE PRESENCIAR A SESSÃO DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO QUE RECEBEU A DENÚNCIA. Não há, nos autos, prova de incidente dessa natureza. De qualquer forma, ao magistrado é facultado o uso do poder de polícia, nos termos do art. 251 do Código de Processo Penal. A norma aplicável à espécie determina a intimação pessoal, devidamente efetuada, no caso, tendo o procurador presenciado a sessão e, inclusive, feito sustentação oral. ALEGAÇÕES DE PARCIALIDADE DA DESEMBARGADORA RELATORA DA AÇÃO PENAL E DE NULIDADE DO ACÓRDÃO QUE RECEBEU A DENÚNCIA. DESCA BIMENTO. ATO PROCESSUAL DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO. A fundamentação do acórdão em fatos concretos afasta a alegação de ausência de requisitos legais para a prisão preventiva. DIREITO DE TRANSFERÊNCIA DO PACIENTE PARA LOCAL ADEQUADO, EM VIRTUDE DE SUA PRERROGATIVA DE SER RECOLHIDO APENAS EM PRISÃO ESPECIAL. A causa de pedir não foi apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça, de sorte que seu exame pelo Supremo Tribunal Federal acarretaria supressão de instância. Habeas corpus conhecido em parte e, nessa parte, indeferido”. ( HC 84301 / SP – SÃO PAULO HABEAS CORPUS Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA  Julgamento:  09/11/2004 Órgão Julgador:  Segunda Turma) Destarte, se houver uma motivação deficiente na decisão judicial prolatada para a restrição de um direito fundamental na produção da prova, se o magistrado for incompetente para a medida ou ocorrer a violação dos requisitos legais necessários à interceptação telefônica, por exemplo, os vícios processuais daí decorrentes levarão à nulidade da prova, e não à sua ilicitude. Certo é que as provas obtidas por meio considerado ilícito não poderão ingressar no processo, devendo o julgador determinar o seu desentranhamento dos autos se já se encontrarem neles, de modo a evitar que essas provas, ainda que racionalmente desconsideradas pelo julgador, acabem por exercer influência na formação do seu convencimento. A sentença que se fundar em prova ilícita será nula. Não se pode esquecer de mencionar as teorias que tratam do tema, justificando ou não a utilização de prova ilícita. A figura da prova ilícita por derivação (§ 1° do art. 157, CPP), trata de prova que, conquanto isoladamente considerada possa ser considerada lícita, decorre de informações provenientes da prova ilícita. Nesse sentido é a “teoria dos frutos da árvore envenenada”, que diz respeito a um conjunto de regras jurisprudenciais nascidas na Suprema Corte norte-americana, segundo as quais as provas obtidas licitamente, mas que sejam derivadas ou sejam conseqüência do aproveitamento de informações contidas em material probatório obtido com violação dos direitos constitucionais do acusado, estão igualmente viciadas e não podem ser admitidas na fase decisória do processo penal. O problema consiste justamente em estabelecer o nexo causal entre a ilegalidade originária que justifique a regra de inadmissão da prova e a obtenção do material probatório de forma derivada. É possível que tenha havido a ruptura da cadeia causal ou esta se tenha enfraquecido suficientemente em algum momento, de modo a se fazer possível a admissão de determinada prova, porque não alcançada pelo efeito reflexo da ilegalidade praticada originariamente. O §1° do art. 157 consagrou a teoria dos frutos da árvore envenenada, trazendo as seguintes exceções à referida teoria: a ausência de demonstração do nexo de causalidade e quando a prova puder ser obtida por fonte independente, sendo que o § 2° do mesmo artigo define como fonte independente “aquela que, por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”. Aqui reside outra dificuldade: a de saber o que são os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, e se eles realmente levariam à descoberta da mesma prova obtida através da ilícita. Como leciona Sérgio Ricardo de Souza, a jurisprudência do STF é pacífica no sentido de que não há nulidade do processo nem da decisão atacada , quando apesar da presença da prova ilícita por derivação, o julgador se basear em outras provas não viciadas, que por si só são suficientes para fundamentar a referida decisão, regra esta conhecida como teoria da fonte independente e aplicável também em relação à própria prova ilícita, o que, aliás, está em consonância com o art. 157 e seus parágrafos. Ainda, segundo os ensinamentos de Nestor Távora e Rosmar Antonni, a prova absolutamente independente não seria propriamente uma exceção aos efeitos da teoria dos frutos da árvore envenenada, e sim uma teoria coexistente, permitindo justamente a devida integração, partindo-se do pressuposto de que, não havendo vínculo entre as provas, não há de se falar em contaminação de provas que não derivaram de provas ilícitas. Inclusive existem precedentes do STF que adotam esta teoria e admitem até mesmo o aproveitamento de denúncia lastreada em provas distintas e independentes da prova ilícita, como em um cumprimento de busca e apreensão sem as formalidades legais (HC n° 84.679, primeira turma, rel. Min. Eros Grau, DJU 30/09/2005). Há ainda a teoria da descoberta inevitável, segundo a qual, a prova que, embora circunstancialmente tenha decorrido de prova ilícita, poderia ser conseguida de qualquer maneira por atos de investigação válidos, poderia ser aproveitada, eliminando-se a contaminação, cabendo ao magistrado analisar as circunstâncias do caso concreto e concluir se realmente houve inevitabilidade da descoberta. Outra teoria decorrente da primeira, tratada por Walter Nunes da Silva Júnior, é a da boa-fé, o doutrinador lembra que o assunto fez parte da discussão no caso Collor. Com efeito, naquela oportunidade, discutiu-se, entre os Ministros do Supremo Tribunal Federal, a validade da degravação dos dados da memória de computadores que foram apreendidos em uma das empresas de Paulo César Farias. O problema foi de que os computadores não haviam sido apreendidos em diligências dos agentes policiais acobertados por mandado de busca e apreensão. Os computadores foram recolhidos por agentes fiscais, sob suspeita de que eles tinham sido importados em o devido pagamento do Imposto de Importação. Essas máquinas foram encaminhadas pelos agentes fiscais para os policiais federais, o que foi bastante para entender que as provas derivadas da recuperação da memória dos computadores eram ilícitas, posto que a autoridade policial deveria ter ingressado no escritório profissional com base em mandado de busca e apreensão, para dispor dos computadores. Ocorre que caso sejam encontrados elementos que caracterizem crime em situação de flagrante, como no caso de ser descoberto um depósito de drogas para a comercialização, a intervenção está autorizada por força do art. 5° XI da CRFB/88 e não em razão do mandado que tinha outro objetivo. Novamente no posicionamento de Nestor Távora e Rosmar Antonni, nos demais casos deve a autoridade envolvida na diligência provocar o juiz para que se obtenha uma ampliação do mandado, em razão de novos elementos eventualmente encontrados. Vale destacar que, de acordo com o § 3° do art. 157, a sanção processual para as provas inadmissíveis é a sua imprestabilidade, isto é, ela deverá ser inutilizada, destruída. Contudo, por exemplo, em um caso que, em virtude de interceptação telefônica efetivada sem permissão judicial, se descobre um depósito de cocaína com muitos quilos da droga, a prova ilícita contaminou as provas dela derivadas; aí o que se faz? Vai se destruir a prova? Não se irá utilizá-la? Se apreendida a droga terá que devolvê-la? Saliente-se que a proibição da prova ilícita é uma garantia individual contra o Estado, assim é possível a utilização de prova favorável ao acusado, ainda que colhida com infringência a direitos fundamentais seus ou de terceiros, e, quando produzida pelo próprio interessado, traduz hipótese de legítima defesa, que exclui a ilicitude, conforme leciona Ada Pellegrini Grinover na obra “As provas ilícitas na Constituição”. Assim, chega-se à conclusão pretendida neste artigo. Em razão do princípio da proporcionalidade, buscando equilíbrio entre o respeito às garantias fundamentais do cidadão e um processo penal justo e eficaz, vêm-se mitigando a vedação às provas ilícitas, admitindo-se como eficaz a prova que, em princípio seria considerada ilícita, desde que ela não seja adotada como único elemento de convicção e que seu teor corrobore os demais elementos probatórios recolhidos no processo. CONCLUSÃO: Contudo, deve ser ressaltada a exigência do due process of law, que é uma garantia da pessoa contra a arbitrariedade do Estado, isto porque, sendo o poder punitivo um poder deslegitimado, a violação a qualquer direito fundamental para o fim exclusivo de produzir uma prova para a concretização do exercício desse poder é, também uma pena e, portanto, deslegitima no Estado Democrático de Direito.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-82/o-limite-do-direito-de-provar-em-processo-penal/
O princípio do contraditório no inquérito policial
O trabalho tem como objetivo principal examinar a incidência do princípio do contraditório no inquérito policial brasileiro, trazendo à baila as inúmeras interpretações doutrinárias e jurisprudenciais ante o tema. Desta forma, impõe-se um exame do inquérito quanto a seu histórico, conceito e natureza jurídica. Como nosso sistema penal é misto, ou seja, possui um hibridismo dos sistemas acusatório e inquisitório, este último possibilita que haja no ordenamento pátrio um instituto pré-processual que, a primeira vista, não admite o princípio constitucional do contraditório. Este princípio garante tanto à defesa quanto à acusação a ciência de todas as provas produzidas pela parte contrária, podendo ainda contrapô-las. Com isso, cria-se uma discussão acerca da inconstitucionalidade de decisão que impossibilita a incidência do aludido princípio, que é corolário do devido processo legal. Ainda, examinar-se-á o Projeto de Emenda Constitucional que pretende reformar o Código de Processo Penal, haja vista que este se encontra bastante defasado em face da Carta Magna. O novo código tem por finalidade aproximar o sistema penal à realidade social hodierna. Ante o exposto, o presente estudo traz argumentos de correntes doutrinárias opostas com o intuito de apreciar se o instituto em tela deve ou não ser observado no inquérito policial.[1]
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO No presente trabalho, abordar-se-á a possibilidade de emprego do princípio constitucional do contraditório no inquérito policial. Haja vista que doutrina e jurisprudência pátrias possuem uma enorme dicotomia de compreensão ante o tema proposto, revestindo-o de importância ímpar ao operador do direito.   Desde os tempos mais remotos, o Estado tem buscado minimizar os danos causados pelos infratores ao patrimônio jurídico dos cidadãos de bem através de leis repressivas ou preventivas. Para se alcançar a punibilidade do culpável, fez-se mister um procedimento investigativo capaz de embasar a persecução criminal e chegar ao verdadeiro autor da infração. Neste desiderato, surge o Inquérito Policial, que será conceituado no primeiro capítulo deste trabalho, já que foi elencado nos Arts. 4º a 23 do Código de Processo Penal, com o fito de apurar a indícios de materialidade e autoria nas infrações penais. Para que a Administração Pública consiga tutelar os direitos individuais dos cidadãos, usando-se do Direito Penal e do Direito Processual Penal, não se aceitam interpretações desses diplomas que contrariem veementemente os princípios constitucionais. É preciso que todas as legislações estejam em sintonia, salientando-se que na ausência desta possibilidade, a Carta Magna e seus preceitos devem preterir a qualquer outra norma. No segundo capítulo, abordar-se-á os princípios inerentes ao Processo Penal, dando ênfase, evidentemente, ao princípio do contraditório. Este preceito aparecia no Pacto de São José de Costa Rica de forma imperiosa a toda sociedade que busca fugir do totalitarismo. A Constituição Federal de 1988 – diploma democrático por excelência – não hesitou em recebê-lo, ao tratar do mesmo no Art. 5º, inciso LV, o qual se consubstancia no entendimento de que uma parte deve ter a ciência de todas as provas produzidas no processo pela parte contrária e, ainda, tem a prerrogativa de contrapô-las. Destarte, cria-se uma indagação sobre até onde os princípios constitucionais são obrigatoriamente observados em todas as fases do processo judicial, arriscando-se, inclusive, que um criminoso fique impune, já que os preceitos democráticos no processo preterem a segurança jurídica dos indivíduos Ante o exposto, no terceiro capítulo expor-se-á a dicotomia de entendimentos sobre o emprego do aludido princípio do inquérito. Haja vista que a doutrina majoritária tem interpretado que não cabe o princípio do contraditório para o inquérito, por ser esse um procedimento administrativo inquisitivo, ou seja, de caráter não processual. Chega-se a essa conclusão orientada pelo simples fato de que a própria constituinte entregou a presidência da investigação ao poder executivo e não ao judiciário, através das polícias judiciárias. Entretanto, há sustentação doutrinária e jurisprudencial definindo o indiciado como sujeito de direitos e, como tal, teria garantias legais e constitucionais, entre elas o contraditório e a ampla defesa durante o inquérito. Afiançam esses juristas, entre outras coisas, que o intérprete do direito não pode analisar o caso apenas na literalidade da lei, denegando os princípios constitucionais somente porque está expresso no Art. 5º, LV que o contraditório será observado nos processos judiciais, excluindo, então, o inquérito, compreendido como um procedimento administrativo. Ante tais entendimentos, impõe-se a questão sobre qual doutrina abarca a melhor concepção sobre a investigação policial. No último capítulo será examinada a participação do advogado do indiciado no inquérito. No Código de Processo Penal, não se encontra uma previsão inequívoca da intervenção do defensor nas diligências realizadas pelo delegado de polícia, nem mesmo sobre a obrigatoriedade da presença deste profissional no interrogatório de testemunhas e do próprio cliente. Também, cria-se uma dúvida se o delegado de polícia deve mesmo constituir um defensor quando não o possui o indiciado. A questão acima exposta surge em virtude de o CPP datar de 1941, transformando-se num diploma bastante defasado para tutelar os anseios de uma sociedade em constante evolução, pois forjado numa época em que o interesse público, traduzido na repressão aos crimes, preteria aos direitos individuais,  Por derradeiro, tramita no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional com o propósito de reformar o atual Código de Processo Penal. Um novo diploma possivelmente resolverá as questões que atualmente ensejam certa insegurança jurídica ao ordenamento pátrio, como é o caso do inquérito policial.   1   DO INQUÉRITO POLICIAL NO BRASIL 1.1 Do conceito e da natureza jurídica do inquérito O inquérito é um procedimento administrativo inquisitorial informativo usado para dar embasamento à propositura, ou não, de uma ação penal. Sua função precípua é a apuração da existência de um delito e sua autoria, ou seja, tem como meta a obtenção de provas sobre as infrações cometidas. Com isso, percebe-se que está inserida claramente na seara jurídica do Processo penal, estando previsto no Título II, do Art. 4º ao 23 do CPP, decreto Lei N.3.689, de 03 de Outubro de 1941. Mirabete conceitua com grande propriedade o inquérito como: “Todo procedimento policial destinado a reunir os elementos necessários à apuração da prática de uma infração penal e de sua autoria. Trata-se de uma instrução provisória, preparatória, informativa, em que se colhem elementos por vezes difíceis de obter na instrução judiciária, como auto de flagrante, exames periciais, etc.” Na mesma toada, Edílson Mougenot Bonfim define o procedimento adicionando o atributo da inquisitividade: “Inquérito Policial é o procedimento administrativo, preparatório e inquisitivo, presidido pela autoridade policial, e constituído por um complexo de diligências realizadas pela Polícia Judiciária com vistas à apuração de uma infração penal e à identificação de seus autores.” A natureza jurídica da investigação preliminar é notadamente administrativa, tendo o fito de colaborar na formação da convicção do Ministério Público na ação pública ou do particular no caso de ação privada, além disso, e não menos importante, usado na colheita de provas urgentes, que são aquelas obtidas após a infração, devendo ser apuradas o mais rápido possível em virtude de se tornarem inócuas com o passar do tempo, visto que o infrator pode mudar a cena do crime ou esconder objetos que possivelmente seriam utilizados como prova. Também deve o representante da polícia, se for o caso, exigir o exame de corpo de delito, muitas vezes fundamental para a instrução criminal realizada futuramente em juízo.      A atribuição de proceder à persecução criminal preliminar é da polícia judiciária, conforme dispõe o Art. 4º do CPP. Entendendo-se como tal a Polícia Federal e Polícia Civil, logo o legislador ao atribuir essa função à Polícia judiciária excluiu das polícias militares a condução de investigações pré-processuais. Em regra, a responsabilidade pela condução da investigação se dá em razão do local onde foi consumada a infração, segundo o estabelecido no caput do Art. 70, do CPP, pois o mesmo juízo competente para presidir a futura instrução, atrairá a investigação preliminar, em função do princípio do juiz natural. Contudo, a prorrogação de competência pode ocorrer em razão do tipo penal infringido. Assim expõe Mirabete: “Nada impede, também, que se proceda à distribuição da competência em razão da matéria (ratione materiae), ou seja, levando-se em conta a natureza da infração penal. Em vários estados se têm criado delegacias especializadas para investigação sobre crimes determinados (homicídios, roubos, etc.).” Faz-se importante entender que a investigação não serve apenas à persecução do criminoso, igualmente tem o caráter de evitar que inocentes sejam levados a juízo, comprometendo sua reputação, com material falso, mentiras e insinuações sem nenhum teor probatório. Não se pode esquecer que um crime causador de grande comoção na sociedade, muitas vezes leva a opinião pública a incriminar o primeiro suspeito, que pode ser inocente e levado a uma situação embaraçosa apenas pelo furor do momento. O titular da condução da investigação preparatória para a ação penal é o delegado de polícia de carreira, seja ele federal ou civil, utilizando-se de todo aparato policial para organizar suas diligências. Sendo que a polícia federal exerce com exclusividade a função de polícia judiciária da união, conforme o §1º, IV, do Art. 144 da CF/88, tendo a polícia civil a incumbência de diligenciar como polícia judiciária, ressalvada a atribuição da união, apurando as infrações penais, salvo as militares, como preceitua o mesmo artigo supracitado no §4º. Frise-se que o representante do Ministério Público pode acompanhar as diligências e até mesmo, requisitá-las, entretanto, a presidência do ato é do delegado, por força da autonomia entre os poderes, tendo em vista ser o Ministério Público um órgão com independência funcional e as polícias serem órgãos ligados ao Executivo. Cabe aqui ressaltar que o Inquérito Policial não é único meio de investigação previsto no Direito pátrio para sustentar uma ação penal. Existem outros, pois, segundo Nucci: “São autoridades capazes de produzir provas pré-constituídas para fundamentar a ação penal os oficiais militares (inquérito militar), os chefes de repartições públicas ou corregedores permanentes (sindicâncias e processos administrativos), os promotores de justiça (inquérito civil, voltado a apurar lesões a interesses difusos e coletivos, os funcionários de repartição florestal e de autarquias com funções correlatas designadas para atividade de fiscalização (inquérito da polícia florestal), os parlamentares durante os trabalhos das Comissões Parlamentares de Inquérito, entre outras possibilidades legais […].”   Pelo exposto acima, entende-se que a denominação de investigação preliminar abarca mais precisamente esse procedimento do que inquérito policial, tendo em vista que não é somente a polícia judiciária que tem essa atribuição. Independentemente do detentor da titularidade para presidir o inquérito, o Estado recebe, através do Poder de Polícia, a faculdade de proporcionar a ordem e a segurança dos cidadãos e instituições. Este poder se encontra disposto no Código Tributário Nacional em seu art. 78: “Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.         Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.“ Manuel Messias Barbosa, citando Caio Tácito, caracteriza o poder de polícia como o ‘conjunto de atribuições concedidas à Administração para disciplinar e restringir, em favor de interesse público adequado, direito e liberdades individuais’. 1.2 Dos aspectos Históricos do Inquérito Policial O desenvolvimento da sociedade trouxe como conseqüência diversos fatores, entre eles os conflitos interpessoais. Para dirimi-los, precisou-se de instrumentos que facilitassem à administração a tutela dos direitos individuais e coletivos, assim surgindo o inquérito, com o fito de investigar materialidade e autoria de infrações, como conhecemos hodiernamente. O inquérito teve sua primeira aparição na Grécia, mais precisamente em Atenas. Não tinha uma vertente criminalista, pretendia-se com esta prática, na época, apurar o comportamento profissional e familiar de candidatos à carreira de policial, os quais seriam escolhidos, após uma investigação administrativa, pelos magistrados da cidade. Foram os romanos que criaram uma das mais remotas espécies de inquérito já pesquisada. Vigia no império a ”Inquisitio”, que era um procedimento investigatório para apurar materialidade e autoria. Os magistrados delegavam à vítima ou sua família e amigos o condão de acusadores, seguido das prerrogativas da função, como se dirigir ao local do crime, realizar busca e apreensão, coletar dados e até mesmo ouvir testemunhas. Essa investigação do direito romano era especialmente originária, pois diferentemente da grega, dava ao acusado o direito de defesa e contraditório, materializados da prerrogativa de realizar diligências no intuito de aduzir provas inocentadoras. Depois de algum tempo, chegou-se à concepção de que o Jus Puniendi deveria se encontrar exclusivamente no poder estatal. Extinguia-se a função de acusador sob a égide do particular, seja ele a vítima ou algum consangüíneo seu, ainda que a ação fosse proposta pelo ofendido. Entendia-se que o procedimento em poder do particular ficava extremamente passional. No Brasil, o inquérito policial teve origem durante a colonização do país pelos portugueses, trazendo consigo um nítido e conseqüente caráter processual dessa nação européia. Como estes utilizavam as chamadas ordenações para dizer o direito, foram aqui implantadas as Ordenações Filipinas, sendo o marco do procedimento investigativo em nosso país, vigorando em todo o Brasil – colônia. Com a independência do Brasil, criou-se a necessidade de se desvencilhar do jugo da metrópole, não bastando apenas a aquisição de soberania política, mas também cultural e jurídica. Seguindo esses preceitos, a Constituição de 1824 buscava amarrar em suas normas a conduta social exigida, preocupada com a parte política e patrimonial. Contudo, não se ateve de forma pormenorizada à parte criminal, deixando apenas as bases para uma futura ordem penal. Em 1832 nascia o Código de Processo Criminal de Primeira Instância, configurando-se na primeira legislação pátria que tratava de processo penal. Foi este que alterou substancialmente a matéria penal ao implantar a investigação criminal, fazendo também uma reforma no sistema judiciário, pois até então vigia o antigo Código das Filipinas, que não mais traduzia os anseios da sociedade brasileira, já com uma década de independência. O novo diploma mudou a forma de investigação de um crime no país ao criar as bases do atual inquérito policial, ainda com nome de procedimento informativo, porém já se utilizando das suas características. Sendo assim possível, mormente, pela separação entre a polícia e o judiciário, que dava maior autonomia àquela em relação a este. Também, mudavam-se alguns dispositivos que tinham, agora, o fito de investigar a infração e descobrir o seu autor, buscando fornecer elementos para o representante do Ministério Publico ou ao próprio particular ajuizar a denúncia. A definição de Inquérito policial só surgiu com a edição da Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo decreto 4.824, de 22 de novembro do mesmo ano, pois antes se denominava Investigação provisória ou procedimento investigativo. Deu-se esse nome atual quando se estipulou no Art. 42 que: “O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito”. 1.3 Das atuais características do Inquérito Policial brasileiro O inquérito policial é uma peça meramente informativa que tem o escopo de esclarecer a materialidade e indícios de autoria, dando embasamento ao titular da ação penal para acusar o suspeito ou arquivar a denúncia. Já na instrução criminal propriamente dita se verifica a procedência ou improcedência da ação. Serão tratadas neste tópico as características inerentes ao inquérito policial, que pela peculiaridade de seus atos possui formas diferentes de abordagem em relação ao processo penal como um todo. Faz-se mister evidenciar que o inquérito policial é peculiar porque assim o Código de Processo Penal, tacitamente, a tratou, ao conceder a titularidade da mesma ao delegado de polícia, que é um bacharel em direito, que deve desenvolver o procedimento conforme os ditames legais.    O delegado de polícia durante sua atividade de persecução criminal preliminar tem atribuições diversas, como o interrogatório, as diligências, a busca e apreensão, etc. 1.3.1 Inquisitório Inicialmente, a autoridade policial age com certa discricionariedade quanto às diligências requeridas, possuindo autonomia de decisão, o que lhe confere um importante atributo para o desempenho de seu trabalho. Pode agir ou não agir quando lhe convém, desde que não seja para atender a interesses escusos, seguindo os preceitos fixados pela norma jurídica. Como preceitua Nucci: “Se o indiciado não pode exigir sejam ouvidas tais e quais testemunhas nem tem o direito, diante da autoridade policial, as diligências que, por acaso julgue necessária, mas, simplesmente, pode requerer sua realização e ouvida de testemunhas, ficando, contudo, o deferimento ao prudente arbítrio da Autoridade Policial, nos termos do Art. 14 do CPP (salvo em se tratando de exame de corpo de delito ou de diligencia imprescindível ao esclarecimento da verdade, ficando esta última ao juízo da autoridade, nos termos do Art. 184 do CPP), conclui-se, seu caráter é inquisitivo.” Conforme citado pelo autor, o arbítrio de decisão da autoridade policial traduz-se em um caráter inquisitivo do procedimento. Podendo o delegado iniciar a investigação de ofício, sem precisar de provocação do juízo ou mesmo de requisição do Ministério Público ou do particular. Pode também deferir ou indeferir qualquer solicitação de ambas as partes, seja esta da acusação ou mesmo do suspeito, sem precisar fundamentar a uma ou outra decisão. No entanto, conforme o Art. 84 do CPP, esta discricionariedade não alcança o exame de corpo de delito, já que este, se requerido por qualquer dos envolvidos, não poderá ser indeferido. Ademais, já há jurisprudência do STJ em que o Ministro Nilson Naves assenta o poder do indiciado de impetrar recurso no casa de recusa do delegado em proceder à diligência requisitada. Ressalta-se que as partes podem recorrer da decisão de indeferimento ao juiz ou Ministério Público, e estes podem requisitar a diligência, caso entendam que é pertinente para elucidar o fato.  Esse poder inquisitivo, importante frisar, se diferencia das outras características do inquérito, pois não está explícita no CPP, dando margem a inúmeras interpretações e distorções que serão abordadas adiante. Percebe-se, consoante ao arrazoado, que só pelo fato de receber a denominação de “inquérito”, já evidencia o presente atributo. O caráter inquisitivo do procedimento ainda está consubstanciado no preceito do Art. 107 do CPP, o qual dispõe que a autoridade policial não está desprotegida no inquérito, tendo em vista que o indiciado não pode opor-lhe suspeição nos autos do mesmo procedimento. Algo cogente, porque é sabido que o indiciado tenta se esquivar da perquirição de todas as formas, usando-se, por diversas vezes, deste ato de cunho puramente protelatório, acusando a autoridade de trazer uma inimizade ante a sua pessoa. O dispositivo em voga dá ao delegado de polícia a tranqüilidade de atuar livremente, contudo, caso o motivo da suspeição seja legítimo e fidedigno, deve este se declarar suspeito, estando sujeito, se não o fizer, as sanções penais e administrativas. Norberto Avena coloca o inquérito como de natureza inquisitiva, mas faz uma ressalva: “Tratando-se de um procedimento inquisitorial, destinado, como já se disse a angariar informações necessárias à elucidação de crimes, não há ampla defesa no seu curso. Igualmente, não há falar-se em contraditório, salvo em ralação ao inquérito objetivando a expulsão de estrangeiro, pois, quanto a este, o Decreto 86.715/1981, regulamentando os dispositivos da Lei 6.815/1980 (Estatuto do Estrangeiro), estabeleceu uma seqüência de etapas que, abrangendo a possibilidade de defesa, devem ser observadas visando a concretizar o ato de expulsão (arts. 102 a 105).” Não é só a doutrina supracitada que coloca o inquérito como inquisitório, também o Supremo Tribunal Federal, que através de decisão do Ministro Pedro Chaves, proferiu o instituto como sendo procedimento investigatório, informativo e de natureza inquisitorial.    1.3.2 Escrito Além de inquisitiva, a investigação preliminar ainda é escrita. O Art. 9º do CPP assegura que: “Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade”. Percebe-se nitidamente a intenção do legislador em transformar esta fase num procedimento formalizado e documentado. Dando-lhe legitimidade necessária para que obtenha status de prova idônea, usada no convencimento do titular da ação penal. 1.3.3 Sigiloso A primeira fase da persecução criminal também é sigilosa. Essa assertiva tem amparo legal no art. 20 do CPP: “A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade. Parágrafo Único. Nos atestados de antecedentes que lhe forem solicitados, a autoridade policial não poderá mencionar quaisquer anotações referentes à instauração de inquérito contra os requerentes, salvo no caso de existir condenação anterior.” Essa particularidade da investigação correr em sigilo faz-se necessária porque sem ela haveria dificuldades de oferecer os elementos indispensáveis à elucidação do fato delitivo. Do contrário, numa investigação ostensiva, dando ao suspeito ou qualquer pessoa o livre acesso aos documentos da peça, acarretaria a ocultação das provas que pudessem incriminar ao indiciado, ou mesmo, daria a este a oportunidade de, por exemplo, pressionar as testemunhas. De acordo com Nucci:  “As investigações já são acompanhadas e fiscalizadas por órgãos estatais, dispensando-se, pois, a publicidade. Nem o indiciado, pessoalmente, aos autos tem acesso. É certo que, inexistindo inconveniente à ‘elucidação do fato’ ou ao ‘interesse da sociedade’, pode a autoridade policial, que o preside, permitir o acesso de qualquer interessado na consulta aos autos do inquérito.” Deixou-se bastante evidente que para esse processualista, caso o delegado entenda que a publicidade das diligências cause prejuízo à investigação, deve manter o sigilo, utilizando-se de seu poder discricionário. Notadamente, o sigilo no inquérito perdeu muito de sua eficácia com a publicação do Estatuto do Advogado, Lei 8.906/94, em virtude de que seu Art. 7º, XVI, garante ao advogado o direito de “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos”. Mesmo que haja doutrinas e jurisprudências contrárias a esse dispositivo, a lei é precisa e não deixa margem para interpretação diversa da autoridade policial, que não pode se esquivar dessa regra, porque estaria ofendendo a prerrogativa do defensor. O sigilo somente persiste no inquérito quanto a impedir que pessoas do povo ou mesmo o próprio investigado acompanhem o procedimento, mas está obsoleto quanto ao defensor.  1.3.4 Obrigatório No Art. 5º, I, do CPP se expressa o atributo da obrigatoriedade do inquérito, haja vista que sujeita o inquérito a ser iniciado de ofício pela autoridade nos crimes de ação pública. Logo, ao receber a notitia criminis, o delegado não tem discricionariedade para contemplar a conveniência ou oportunidade de oferecer a persecução criminal, ela é cogente. Esse atributo surge quando o Estado tomou para si o jus puniendi do domínio do cidadão. Deste modo, cabe a ele promover a instauração do inquérito policial através da polícia judiciária, nos casos de ação pública incondicionada. Assim como, tem a obrigação de oferecer a denúncia utilizando-se da pessoa do Ministério Público quando existentes todos os requisitos. Do contrário, grande parte dos crimes restariam impunes. Relata-se, também, que a característica da obrigatoriedade da instauração do inquérito é conseqüência do princípio da indisponibilidade, que se revela na impossibilidade por parte do titular da investigação de arquivá-la a sua livre convicção. 2 DOS PRINCÍPIOS DO PROCESSO PENAL Princípios legais são balizas que guiam o operador do direito nos caminhos que devem ser seguidos para a obtenção de uma justiça idônea e eficaz. Cada um deles tenta demonstrar uma linha de ação e o seu conjunto traça o rumo do ordenamento de um Estado. Não é raro um princípio dar origem a outros. Desta forma, Nucci aduz: “[…] princípio jurídico quer dizer um postulado que se irradia por todo o sistema de normas, fornecendo um padrão de interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo, estabelecendo uma meta maior a seguir. “ A Constituição Federal é que contempla as metas a serem atingidas e os preceitos exigidos por uma sociedade em constante mutação. Cabe a doutrina e jurisprudência pátrias interpretarem os princípios constitucionais que orientarão o processo e de que forma serão empregados. O processo penal não foge ao jugo da Carta Magna. Ressalta-se que possui mandamentos que muitas vezes podem criar algum conflito de interpretação com esta, por se tratar de lei que trata de matéria singular, qual seja a infração penal, com regras abstratas tendentes a alcançar o fato concreto tido como reprovável pelo conjunto social e criar um meio processual eficaz de persecução criminal na medida da punibilidade do autor. Quanto a isso, assim disserta Mirabete: “A finalidade mediata do processo penal confunde-se com o direito penal, ou seja, é a proteção da sociedade, a paz social, a defesa do interesses jurídicos, a convivência harmônica das pessoas no território da nação. O fim direto, imediato, é conseguir, mediante a intervenção do juiz, realização da pretensão punitiva do Estado derivada da prática de uma infração penal, em suma, a realização do direito penal objetivo.” Percebe-se que para o autor a finalidade do Processo Penal afasta-se um pouco de uma visão garantidora de direitos imposta pela Constituição Federal de 1988. A medida da utilização de princípios constitucionais no processo está dependente de qual sistema processual penal será engajado, seja ele acusatório, inquisitório ou misto. Esta discussão sobre o sistema adotado por nosso código será examinada no capítulo 3.2 deste trabalho. Na contramão desse desiderato, Aury Lopes Junior arrazoa: “[…] pensamos ser imprescindível que o processo penal passe por uma constitucionalização, sofra uma profunda filtragem constitucional, estabelecendo-se um (inafastável) sistema de garantias mínimas. Ou ainda, pensamos o processo penal desde seu inegável sofrimento, a partir de uma redução de danos.” Este doutrinador segue uma linha em que os preceitos constitucionais devem ser observados independentes do sistema processual adotado, somente sendo mitigados, excepcionalmente, quando o caso concreto assim exigir. Segue o mesmo autor, sendo ainda mais contundente: “[…] os princípios gozam de plena eficácia normativa, pois são verdadeiras ‘normas’. Os princípios (especialmente os constitucionais) são normas fundamentais ou gerais do sistema. São fruto de uma generalização sucessiva e constituem a própria essência do sistema jurídico, com inegável caráter de ‘norma’.” Sobre o debate quanto ao uso irrestrito dos princípios constitucionais no processo judicial, Pacelli entende que os direitos fundamentais do indivíduo serão mitigados caso invada os direitos fundamentais de uma coletividade. Assim assegura o autor: “Em determinadas situações, a equação a ser resolvida não poderá limitar-se à tradicional oposição entre segurança pública x liberdade individual; veremos que a fórmula poderá ser outra: direitos fundamentais (dimensão coletiva) x direitos fundamentais (dimensão individual).” Imprescindível, neste momento, comentar que as garantias expostas pela Constituição Federal são absorvidas no processo penal, dando origem aos direitos fundamentais do acusado ou réu na persecução criminal. Portanto, Nucci não só as recepciona, como as distribui: “[…] há princípios explicitamente inseridos na constituição e outros, implícitos. Muitos são vinculados, na essência, à pessoa humana; outros, embora a esta beneficiem em última análise, são mais próximos da relação processual, tanto assim que, por vezes, não servem exclusivamente ao réu, mas também ao órgão acusatório. Há, ainda, os princípios orientadores da atuação do estado, logicamente para servir de proteção, em última análise, à pessoa humana.” Busca-se, neste capítulo, dividir os mais basilares princípios processuais de acordo com o autor supracitado. Sempre evidenciando que o persecução penal tem uma fase pré-processual e outra processual propriamente dita, possuindo por conseqüência, princípios variantes: A primeira é uma instrução prévia denominada inquérito policial, presidida pela autoridade administrativa, a qual já teve seus preceitos e características enumerados no capítulo anterior.  E outra chamada de instrução criminal ou judicial, realizada, in loco, pelo juiz. Abordar-se-á neste capítulo, sucintamente, àqueles relativos ao processo como um todo, sem a pretensão de elencar todos os princípios, mas sim, aqueles mais notórios e aceitos pela doutrina. 2.1 Princípios do processo penal explícitos na constituição Federal Os princípios oriundos da Carta Republicana têm a função de servirem como preceitos informadores do processo judicial. Diante de tal compreensão, cabe aqui elencar aqueles que possuem dispositivos explícitos naquele diploma e que buscam tutelar elevado grau de segurança jurídica para o cidadão que se vê acusado numa persecução criminal 2.1.1Princípio do Devido Processo Legal O princípio inestimável para a validade de uma sentença penal condenatória é o devido processo legal.  Traduzido na literalidade do Art. 5º, inciso LIV, da CF/88, desta forma: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Expressando que qualquer contenda será resolvida em juízo, tendo o processo como único instrumento legítimo para decidi-la. É o “due process of Law” matéria notadamente processual, tendo a liberdade como objeto de sua tutela. Para muitos doutrinadores como Pacelli, o Devido Processo legal é o aglutinador de vários outros preceitos, como é o caso do Juiz Natural, onde se buscou extinguir o juizado de exceção, proibindo a instituição de órgão judiciário para um caso específico. Além deste, abarca também os princípios da legalidade, direito ao silencio e não auto-incriminação, publicidade, contraditório, ampla defesa, estado de inocência, etc. 2.1.2 Princípio da legalidade O princípio da legalidade estava presente na Declaração dos direitos do Homem, em 1789. Constava nesta que “Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescrita”. Criado no intuito de restringir o poder do Estado ante ao cidadão, visando a evitar excessos oriundos da supremacia do poder público. Entendia-se pelo preceito em comento que somente se podia imputar uma infração a alguém caso estivesse prevista no ordenamento pátrio. Destarte, nossa constituição federal aderiu a essa regra no Art. 5º, inciso II, onde “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Ainda, o mesmo artigo no inciso XXXIX reitera: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. 2.1.3 Princípio da publicidade        O princípio da publicidade importa a ciência do acusado ou mesmo da sociedade dos atos realizados pela justiça. Serve não só ao acusado para que possa exercer seu direito ao contraditório e ampla defesa, corolário que é a publicidade do princípio do devido processo legal, mas também a sociedade como um todo, para que pratique a fiscalização, evitando-se atos contrários aos preceitos legais ou ainda pior, poluídos por arbitrariedades. A constituição federal de 1988 consagrou-o como regra no Art. 5º, LX: “A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Note-se que o dispositivo trás uma ressalva, na qual a publicidade pode ser preterida pelo sigilo quando exigido pelo interesse social. Será tema abordado a seguir, pois, possui grande relevância neste trabalho. O CPP fez alusão ao princípio no Art. 792: “As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais […]”. Segundo Nucci, existe uma divisão entre publicidade geral e especial. A primitiva seria dar conhecimento aos atos processuais e autos do processo a qualquer do povo. Essa deve ser mitigada quando o interesse social assim o exigir, no intuito de evitarem-se inconvenientes e proteger de embaraços a vítima ou o autor de infração.  Já a publicidade especial, que se traduz no acesso aos atos processuais e autos do processo às partes, deve ser cogente no ordenamento jurídico deste país. 2.1.4 Princípio da presunção de inocência O princípio da presunção de inocência tem sua gênese na Declaração dos Direitos do homem e do cidadão de 1789, assegurando no seu Art. 9º que toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarada culpada, logo, a prática de uma infração penal só pode ser atribuída a outrem após ser decidida em sentença condenatória irrecorrível. Convenciona-se que pela presunção de inocência, cabe a acusação o ônus de provar a culpabilidade do suspeito. A Constituição Federal de 1988 assegurou esse preceito de forma incisiva, sem deixar o mínimo de subjetividade, no Art. 5º, LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Hodiernamente, parte da doutrina não entende como uma presunção de inocência, mas sim um estado de inocência, tendo em vista que a primeira concepção parecia um pouco vaga, abrindo margem para que essa inocência apenas presumida pudesse perder sua existência na fase pré-processual. Com a denominação de estado de inocência isso não ocorre, dando ao acusado um caráter de não culpabilidade até a decisão judicial condenatória, e assim impossibilitando uma prisão cautelar se contra o acusado não correrem indícios de autoria e materialidade, além de necessidade ou conveniência, caso se entenda que em liberdade poderia causar algum óbice ás investigações. Nesse diapasão, Pacelli assenta: “[…] o princípio exerce função relevantíssima, ao exigir que toda privação de liberdade antes do trânsito em julgado deva ostentar natureza cautelar, com a imposição de ordem judicial devidamente motivada. Em outras palavras, o estado de inocência (e não a presunção) proíbe a antecipação dos resultados finais do processo, isto é, a prisão, quando não fundada em razões de extrema necessidade, ligadas à tutela da efetividade do processo e/ou da própria realização da jurisdição penal.”   Como de costume, Aury Lopes Junior, citando a FERRAJOLI, é enfático na sua busca pela constitucionalização do processo penal brasileiro, afirmando que o princípio da presunção de inocência: “[…] é um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que para isso tenha-se que pagar o preço da impunidade de algum culpável. Isso porque, ao corpo social, lhe basta que os culpados sejam geralmente punidos, pois o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção, estejam protegidos.” Neste desiderato, assevera-se que o ônus da prova é do Estado-acusaçao e não do réu, então, se não foram produzidas provas suficientes o acusado não deixa seu estado de inocência, pois o interesse de nosso diploma constitucional é, antes, assegurar a liberdade, do que imputar a sanção aos infratores. 2.1.5 Princípio da ampla defesa O princípio da ampla defesa é uma garantia constitucional ao indivíduo de defender-se com todos os meios de prova existente no direito pátrio. Surge no Art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.                                                Esse princípio norteia toda a defesa de um indivíduo que tem um de seus bens jurídicos ameaçado pelo poder estatal. Dá, portanto, ao indivíduo o poder de apresentar argumentos em sua proteção, requisitar diligencias, impugnar ações contra si, constituir um profissional habilitado à sua defesa, ser notificado de todos os atos inerentes a sua pessoa, etc. Importante frisar, ainda, que é um dever do estado à prestação ao cidadão de uma defesa técnica efetiva. Sendo disposto no inciso LXXIV, Art. 5º da CF/88: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. 2.1.6 Princípio do contraditório O princípio do contraditório é o cerne do presente trabalho. Então, nada mais acentuado que se cuide desse preceito constitucional com o máximo de atenção. Primeiramente, não há dúvida que o princípio do contraditório é imperativo no Processo penal. Sua existência está fundamentada no Art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, pois “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Precisa-se, primeiramente, conceituar o contraditório, explicando quais são seus desdobramentos como princípio constitucional. Para, em momento posterior, abordar as diferentes interpretações da doutrina pátria quanto a serem o contraditório e a ampla defesa institutos independentes ou se, verdadeiramente, seriam subordinados um ao outro. Para conceituar o contraditório, Tourinho Filho aduz que: “Tal princípio consubstancia-se na velha parêmia audiatur etaltera pars – a parte contrária deve ser ouvida. Traduz a idéia que a defesa tem o direito de se pronunciar sobre tudo quanto for produzido em juízo pela parte contrária. Já disse: a todo ato produzido por uma das partes caberá igual direito da outra parte de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou, ainda, de dar uma interpretação jurídica diversa daquela apresentada pela parte ex adversa.” A essa interpretação do contraditório coloca-se mais um atributo que não foi demonstrado pelo ilustre doutrinador, que seria a ciência às partes da contenda dos atos e fatos praticados pelo oponente. Tendo em vista que para contestar algo, tem-se, antes, que conhecer a natureza da imputação. Na mesma senda, assim expressa Aury Lopes Junior: “O contraditório pode ser inicialmente tratado como um método de confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas: a acusação (expressão do interesse punitivo do estado) e a defesa (expressão do interesse do acusado [e da sociedade] em ficar livre de acusações infundadas e imune a penas arbitrárias e desproporcionadas). É imprescindível para a própria dialética do processo.” O contraditório é o que assegura aos litigantes no processo o direito de ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, ou seja, são princípios dependentes reciprocamente. Importa esclarecer que, algumas vezes, entendem-se os princípios do Contraditório e da ampla defesa como sinônimos. Entretanto, não o são. Conforme visto anteriormente, apenas têm uma ligação bastante íntima, visto que ambos se originam do devido processo legal. Neste diapasão, Aury Lopes Junior, citando Ada Pellegrini Grinover, preceitua que ‘defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é esta – como poder correlato ao de ação – que garante o contraditório’. Impõe-se como diferença marcante destes dois princípios a concepção de que do contraditório servem-se defesa e acusação, enquanto que a ampla defesa abarca o direito apenas do acusado de obter uma defesa técnica idônea e efetiva. Não se pode esquecer que a incumbência de zelar pelo cumprimento daqueles dois relevantes preceitos é do Estado. Neste sentido, são aplicados na Constituição Federal de 1988 no já citado Art. 5º, LV. Corroborando este entendimento, o mesmo diploma, no art. 5º, LXXIV, assevera: “o estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. 2.2 Princípios do processo penal implícitos na constituição Federal Existem princípios que a Carta Magna não dispôs de forma notória, mas a doutrina tratou de esclarecê-los. Haja vista que a sua inobservância traria conseqüências devastadoras para o processo judicial de um país que tem a democracia como desígnio.   2.2.1 Princípio da não auto-incriminação O princípio da não auto-incriminação também pode ser considerado como princípio de que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo. Foi introduzido no Brasil pelo Decreto Nr 678, de 06 de Novembro de 1992, que recebia os preceitos regulados pelo Art. 8º, item 2, da Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de Novembro de 1969, o qual asseverava a pessoa humana o “direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”. Ainda, a própria carta magna deu guarida ao princípio, sem assegurá-lo formal ou literalmente, em vários incisos dos direitos e garantias fundamentais, pois, como exemplo, remete-se ao seu Art. 5º, LXIII, onde dispõe que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. Neste dispositivo, especialmente, deu ao preceito uma inclusão na seara processual penal. Alguns autores como Nucci, entendem que cabe ao órgão acusador o ônus de provar a culpabilidade do suspeito, haja vista que possui um extenso rol de agentes e instrumentos hábeis a realizar uma persecução criminal bem elaborada, prescindindo da participação do acusado na confirmação do fato ou mesmo de sua auto-incriminação. 2.2.2 Princípio do duplo grau de jurisdição Este princípio é que confere solidez democrática ao ordenamento jurídico pátrio, demonstrando-se que no país não se está envidando esforços na busca de um direito mais justo. O reexame da decisão proferida em primeira instancia afasta julgamentos com natureza meramente política, abalizados no interesse de classes dominantes locais. Traz ao juízo a certeza de que, hodiernamente, não restarão impunes quaisquer atos seus que impliquem em improbidade ou corrupção, diferente do que acontecia em tempos remotos. O Pacto de São José de Costa Rica empregou no Art. 8º, item 2, h, a regra de que existe para todo cidadão o direito a recurso de decisão à órgão judicial diretamente superior. Como esse diploma que versa sobre direitos humanos universais foi recebido pela constituição brasileira no Art. 5º, parágrafo 2º, resta claro que ganha status de norma constitucional, ainda que de forma implícita. Com isto, se a carta magna confere esse direito a decisões em matérias de ordens diversas, acentua-se de sobremaneira essas garantias ao Processo Penal, pois cuida do direito fundamental que é a liberdade de ir e vir do cidadão. 2.3 Princípios tipicamente processuais penais Existem preceitos que são peculiares ao processo penal, uma vez que a seara penal apresenta diferenças a outros processos do ordenamento jurídico brasileiro, principalmente quanto à iniciativa na produção de provas. 2.3.1 Princípio da verdade real Aborda-se, neste momento, um ponto notadamente relevante na persecução criminal que é o princípio da verdade real. Este representa o poder do estado de empenhar-se ao máximo para descobrir a realidade dos fatos decorrentes de uma conduta tipicamente reprovável, agindo o juiz, muitas vezes, de ofício. Não deve o poder acusatório contentar-se com o que lhe é apresentado, mas ordenar tantas diligências quanto forem possíveis e oportunas. Neste ponto, o processo penal diferencia-se acentuadamente dos demais processos do direito pátrio, tendo em vista que os demais observam a verdade formal, onde o juiz atenta àquilo que é trazido pelos litigantes. Assim alude Mirabete: “Com o princípio da verdade real se procura estabelecer que o jus puniendi somente seja exercido contra aquele que praticou a infração penal e nos exatos limites de sua culpa numa investigação que não encontra limites na forma ou iniciativa das partes. Com ele se excluem os limites artificiais da verdade formal, eventualmente criados por atos ou omissões das partes, presunções, ficções, transações etc. tão comuns no processo civil […].” Importa, neste momento, apontar que existe doutrina deveras relevante contrária a existência do aludido princípio. É o que ocorre numa linha mais garantidora de direitos fundamentais dentro da persecução penal, representada por Aury Lopes Junior. Entende esse processualista que o princípio da verdade real atenta contra o princípio da presunção de inocência, que é mais preponderante, na medida em que enseja uma verdade processual relativa, onde o juiz da causa não tem poderes investigativos, devendo manter-se alheio as provas e julgar conforme aquilo que lhe é trazido aos autos pelas partes, ou seja, aos fatos provados.     2.3.2 Princípio da persuasão racional Representa que as partes devem se utilizar de todas as provas permitidas em direito para convencer o juiz de que sua versão é a que sintetiza a verdade real. Também, exprime que o juiz tem a liberdade total de formar sua convicção, embora deva fundamentar sua decisão a luz do ordenamento jurídico. Como salientado no subtítulo, presume-se tipicamente processual penal este princípio porque o próprio diploma o assegura no Art. 381, III, quando alude que a sentença conterá a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão. Contudo, tal dispositivo deve ser submetido as crivo do art. 93, inc. IX da Constituição federal. Não se pode esquecer que este preceito tem algumas ressalvas, sendo que a mais saliente ocorre no Tribunal do júri, cujos jurados não precisam fundamentar suas decisões, nem mesmo alegar por quais razões a tomaram, haja vista que para manter sua segurança o voto destes é secreto.    O princípio da persuasão racional é de suma importância para a discussão sobre a utilização do contraditório no inquérito, que é a matéria do presente trabalho de graduação, sendo colocado em evidência este preceito no Capítulo 2.2.2. 3   DO USO DO CONTRADITÓRIO NO INQUÉRITO         Conforme já conceituado acima, entende-se o princípio constitucional do contraditório como a ciência ao acusado de que lhe está sendo imputada uma infração, oferecendo-lhe a prerrogativa de contrapor todas as acusações.      Resta claro em nosso ordenamento que o contraditório deve ser obrigatoriamente respeitado em qualquer processo judicial que visa à tutela de bens jurídicos postos em litígio. Haja Vista que o Art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988, prevê que aos litigantes devem ser observados os princípios do contraditório e ampla defesa. Sendo, inclusive, causa de nulidade do feito a sua não observância. 3.1 Das divergências doutrinárias No tocante ao uso do princípio do contraditório no instituto do inquérito policial propriamente, doutrina e jurisprudência pátrias agem com enorme dicotomia. A grande maioria não aceita seu emprego, enquanto que uma minoria, porém relevante, aprova-o. 3.1.1 Não existe contraditório no inquérito O cerne da questão baseia-se no Art. 5°, inciso LIV, da CF/88, pois estipula que em todo processo, seja ele administrativo ou judicial, deve-se observar o contraditório e a ampla defesa. Entretanto, o legislador não foi preciso em sua colocação, abrindo margem a múltiplos entendimentos. Expor-se-á, desde já, o que pensa a maciça doutrina brasileira sobre esse desiderato. Em síntese, para os autores que negam o contraditório, não se considera a investigação preliminar como processo administrativo, mas sim procedimento. Visto que não há um juiz, nem mesmo decisão punitiva ou absolutória. Existe sim, uma peça informativa que serve à busca de provas de autoria e materialidade, com o escopo de dar base ao convencimento do titular da ação penal para denunciar ou não o suposto autor de crime. Neste diapasão, Alexandre de Moraes alega:  “O contraditório nos procedimentos penais não se aplica aos inquéritos policiais, pois a fase investigatória é preparatória da acusação, inexistindo, ainda, acusado, constituindo, pois, mero procedimento administrativo, de caráter investigatório, destinado a subsidiar a atuação do titular da ação penal, o Ministério Público.” Reforçando esse juízo, para Celso Antônio Bandeira de Mello, “processo administrativo é uma sucessão itinerária e encadeada de atos administrativos que tendem, todos, a um resultado final e conclusivo”. O que não ocorre no inquérito, que é, pois, apenas uma peça informativa. Quanto à dúvida formada de ser o inquérito processo ou procedimento, Tourinho Filho é mais incisivo ao firmar: “Certo que o Art. 5º, LV, da Lex Legum proclama que ‘aos litigantes, em processo judicial ou administrativo… ’ se permite a ampla defesa; então, por conseguinte, não se pode dizer que o ‘processo administrativo’ aí compreenda o inquérito, sob pena de transmudarmos os indiciados em litigantes… o que sabe a disparate. Ademais quando o dispositivo constitucional fala em processo administrativo com ampla defesa refere-se, iniludivelmente, àquele procedimento que pode culminar com alguma, como ocorre nas administrações públicas. Às vezes são denominados sindicâncias. E, às escâncaras, tal não se dá no inquérito, peça meramente informativa.” Corrobora com essa idéia, o fato do dispositivo discutido descrever que aos “litigantes” deve ser garantido o contraditório e ampla defesa, contudo, nesse procedimento não há lide, há, sim, uma persecução criminal prévia, com o intuito de buscar um lastro probatório mínimo, porque em momento distinto haverá a oportunidade de defesa, e será essa na instrução criminal em juízo. Quanto a isso, recorre-se, novamente a óptica de Tourinho Filho, pois: “A autoridade policial não acusa: Investiga. E a investigação contraditória é um não senso. Se é assim, parece-nos não ter sentido estender o instituto do contraditório ao inquérito, em que não há acusação.”      Importante frisar, ainda, que para condenar um indivíduo por um crime cometido, deve-se utilizar um sistema processual, o que vem a gerar uma discussão relevante porque cada um dos sistemas irá alicerçar-se em diferentes princípios. A maioria da doutrina brasileira entende que nosso sistema processual penal é misto, tendo, primeiramente, uma fase inquisitiva, qual seja a persecução preliminar e outra acusatória, compreendida pela instrução criminal em juízo. Por conseguinte, no inquérito vige o sistema inquisitório, que dispensa a bilateralidade de ações, dando poder ao titular da investigação diligenciar, até mesmo, de ofício, desde que atue dentro dos limites fixados estritamente pela norma. Nesta ordem, José Frederico Marques expõe: “Infelizmente, a demagogia forense tem procurado adulterar, a todo custo, o caráter inquisitivo da investigação, o que consegue sempre que encontra autoridades fracas e pusilânimes. Por outro lado, a ignorância e o descaso relativos aos institutos de processo penal contribuem, também, decisivamente, para tentativas dessa ordem.” Dada a importância do sistema processual penal empregado, faz-se relevante o entendimento de que não está explícito na lei o sistema utilizado em nosso país, se inquisitivo ou acusatório, é sim, uma criação doutrinária, abrindo margem para uma dicotomia de idéias. Para os autores que discordam do uso do contraditório no inquérito, o que ocorre é que há uma divergência marcante entre a Constituição Federal de 1988 e o Código de Processo Penal. Visto que ambos trazem preceitos que atuam diretamente na seara do delito. Nossa constituição baseia-se em princípios de forte cunho democrático, buscando a todo instante limitar os diversos poderes estatais, e ainda, limitar o jugo do estado sob o particular. Não se pode esquecer, numa análise sistêmica, que essa defesa incessante de direitos fundamentais explica-se porque a carta magna foi elaborada após um período extenso de caudilhismo militar, período em que o Estado detinha todo poder e agia de forma pouco democrática, ocasionando um diploma bem elaborado quanto aos direitos fundamentais, mas que apresenta certa deficiência de deveres. Ante o exposto, a Constituição Federal vai de encontro ao CPP, pois este é um código forjado nos anos 40, o qual foi elaborado para assegurar que os delitos não restassem impunes, trazendo dispositivos imbuídos de garantir que a repressão e prevenção dos crimes deveriam, até mesmo, preterir a uma maior garantia do cidadão. Por óbvio, não se pode denegar o uso de um ou de outro, pois são institutos indispensáveis ao nosso ordenamento. Nucci busca elucidar essa discussão ao aduzir: “É certo que muitos processualistas sustentam que o nosso sistema é o acusatório. Mas baseiam-se exclusivamente nos princípios constitucionais vigentes (contraditório, separação entre acusação e órgão julgador, publicidade, ampla defesa, presunção de inocência, etc.). Entretanto, olvida-se, nessa análise, o disposto no código de Processo Penal, que prevê a colheita inicial da prova através do inquérito policial, presidido por um bacharel em direito, que é o delegado, com todos os requisitos do sistema inquisitivo (sigilo, ausência de contraditório e ampla defesa, procedimento eminentemente escrito, impossibilidade de recusa do condutor da investigação etc). Somente após ingressa-se com ação        penal e, em juízo, passam a vigorar as garantias constitucionais mencionadas, aproximando-se o procedimento do sistema acusatório.” Outro ponto marcante no estudo sobre o uso do contraditório no inquérito policial diz respeito à possível ineficácia acarretada ao procedimento, caso o delegado seja obrigado a dar ciência de todas as diligências realizadas. A informação antecipada dos atos administrativos ao suspeito causaria tumulto na investigação e o autor da infração ficaria apto a esconder os meios utilizados na infração penal.  Os princípios democráticos e defensores dos direitos fundamentais elencados pela constituição federal de 1988 não devem ser usados para minimizar o poder estatal de controle da criminalidade, pois, afinal, o direito a segurança pública ofertada pelo estado também se compõe de garantia fundamental do cidadão. Neste contexto, o sigilo das investigações do Art. 20 do CPP, procura corrigir uma má interpretação da carta magna. O sigilo das averiguações permite que o delegado busque as provas necessárias a elucidação do delito com tranqüilidade, sem o advogado de defesa, por exemplo, acompanhando cada iniciativa sua, impedindo-o de proceder na sua colheita de provas. Sempre lembrando que não há acusação forjada contra o indiciado, apenas arrazoadas suspeitas. Sendo assim, o sigilo da diligência não acarreta nenhum tipo de privação da liberdade do mesmo. O Art. 20 do CPP é contundente ao garantir que: “A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário a elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. Sigilo este, arcabouço do sistema inquisitório, onde o processo é despido de contraditório e da ampla defesa. Como salienta Tourinho Filho: “Com o sigilo haverá restrição à defesa?Evidentemente, não. Se no inquérito não há acusação, claro que não pode haver defesa. E se não pode haver defendido, não há cogitar-se de restrição de uma coisa que não existe.” Ainda, autores como Nucci e Mirabete colocam o indiciado como objeto da investigação. Ele se torna cidadão-indiciado não sujeito de direitos neste procedimento em particular, pois a busca da verdade real o impede de acompanhar diligências, requisitar informações ou contrapor provas, a menos que o delegado as tome como imprescindíveis, por juízo próprio, sem permissão ou ordem de outrem. Neste diapasão, importante julgado foi proferido no Supremo Tribunal Federal, negando a designação do indiciado como mero objeto de investigações. Levantou-se, então, certa dúvida nos autores do país, pois o acórdão expressa que ele é sujeito de direitos, sem explicar que direitos são esses. Para a doutrina publicista, quando se coloca o indiciado como objeto de investigação, não o transforma em simples pessoa inanimada, mas apenas em cidadão desprovido de ingerência durante a investigação. O que o ilustre ministro quis colocar é que o indiciado tem os direitos evidenciados no Art. 5º, LXIII, quais sejam o de ficar em silencio, sem que isso acarrete algum prejuízo a ele, constituir advogado e se comunicar com a família. Quanto a esta discussão, Nucci expõe: “É a posição natural ocupada pelo indiciado durante o desenvolvimento do inquérito policial. Não é ele, como no processo, sujeito de direitos a ponto de poder requerer provas e, havendo indeferimento injustificado, apresentar recurso ao órgão jurisdicional superior. Não pode, no decorrer da investigação, exercitar o contraditório, nem a ampla defesa, portanto. Deve acostumar-se ao sigilo do procedimento, não tendo acesso direto aos autos, mas somente através de seu advogado.” 3.1.2 Existe contraditório no inquérito Para alguns autores, o inciso LV do Art. 5º da CF/88 garante o uso do contraditório no inquérito policial porque traz a baila preceitos democráticos os quais a carta magna fez questão de prever. Não cabendo a negativa basear-se apenas na literalidade das expressões do dispositivo, ou mesmo servir de obstáculo o simples fato de ser a investigação policial um processo ou procedimento. Estes doutrinadores abrigam o entendimento de que em qualquer fase da persecução criminal, seja ela na investigação preliminar ou mesmo em juízo, o princípio constitucional do contraditório deve fazer-se presente. Seguindo essa linha de pensamento, alguns autores como Ada Pelegrini Grinover, Antonio Carlos de Araujo Cintra e Candido Rangel Dinamarco afiançam que após o indiciamento, mesmo não sendo formal este ato, e inexistindo, ainda, a acusação propriamente dita, já há uma situação de litígio, ante a confrontação do investigado com o estado acusador. Então, conforme o Art. 5º, LV da CF/88, deve-se permitir o contraditório pelas conseqüências causadas por este ato, causando, por óbvio, a exposição do nome do cidadão em inquérito que apura um delito, deixando sua reputação bastante fragilizada. Os autores supracitados assim expressam: “Em virtude da natureza constitucional do contraditório, deve ele ser observado não apenas formalmente, mas sobretudo pelo aspecto substancial, sendo de se considerar inconstitucionais as normas que não o respeitem. “ O penalista Aury Lopes, seguidor desta corrente, coloca que a grande discussão gira em torno do indiciamento sem prévia prisão cautelar. Haja vista que a prisão cautelar já dá ciência ao cidadão de que a ele se está imputando um delito e por quais razões, tanto ao ser colocado em custódia na prisão preventiva e temporária, ou quando em Flagrante delito pela nota de culpa. Nesta hipótese, o poder estatal já indicou o autor da infração e a acusação está incipiente, abrindo margem às garantias presentes no Art. 5º, LXIII, como por exemplo, a assistência de advogado. Caso não seja respeitado este dispositivo, assegura-se a liberdade do mesmo com a utilização dos remédios constitucionais do Habeas Corpus e Mandado de segurança. Entretanto, quanto a indiciado em liberdade, o CPP não definiu exatamente sobre o momento em que o suspeito, indivíduo com mera probabilidade de ser o autor do delito, passa a situação de indiciado, indivíduo que contra ele correm fundadas razões de ter cometido a infração. “Nos casos em que o sujeito passivo permanece em liberdade, o CPP não dispõe claramente sobre o indiciamento como ato em si. Tampouco a doutrina brasileira deu merecido destaque ao tema, possivelmente cega pelo mofado e superado entendimento de que durante o inquérito o indiciado não passa de simples objeto de investigação. São limites doutrinais como este, estabelecidos na época do verbo autoritário, que freiam o próprio desenvolvimento e evolução do processo penal.” Outro ponto bastante aduzido por essa teoria é de que se o Art. 5º, LV, traz a previsão de que em todos os processos administrativos são assegurados o contraditório e a ampla defesa, estendendo-se aos acusados em geral, não há porque o inquérito policial fugir a essa regra. Tendo em vista que, conforme citado anteriormente, a partir do indiciamento há um litígio entre estado e indiciado, ou mesmo uma acusação em caráter não formal através da imputação. Logo, esta lide ou acusação informal, transforma o inquérito policial em processo no sentido amplo. Destarte, Rogério Lauria Tucci leciona que deve, pois, ser a investigação preliminar abrigada pelo dispositivo em tela. Assim afirma o autor: “Se o próprio legislador nacional entende ser possível a utilização do vocábulo processo para designar procedimento, nele se encarta, à evidência, a noção de qualquer procedimento administrativo e, conseqüentemente, a de procedimento administrativo-persecutório de instrução provisória, destinado a preparar a ação penal, que é o inquérito policial.” Ainda, o Art.14 do CPP alude que a autoridade, a seu juízo, pode rejeitar os requerimentos de diligencias por parte do indiciado ou seu representante legal. No entendimento dos rotulados autores garantistas, a luz da constituição Federal de 1988, o delegado deve obrigatoriamente realizá-las quando se presume que apurará os fatos e circunstâncias. Até mesmo Mirabete, que não confere contraditório ao inquérito, expressa que “caso a diligência ou juntada de documentos possa servir, presumivelmente, à apuração do fato ou de suas circunstâncias, ainda que favorecido o indiciado, deve deferir o pedido.” Observa-se também, que as provas colhidas no inquérito não deveriam ser usadas durante a instrução criminal porque servem apenas de peça informativa, não tendo valor probatório judicial, pois colhidas fora do contraditório, que é corolário do devido processo legal, preceitos estes trazidos pela carta magna vigente. Entretanto, não é o que ocorre na prática. Até mesmo para Nucci, autor que se contrapõe a doutrina que ora se observa, os juízes comumente se utilizam de provas periciais ou mesmo aquelas irrepetíveis, praticadas sem a participação do indiciado,  para formarem seu livre convencimento. Isto posto, fundamentam suas decisões baseados exclusivamente no inquérito, o que, logicamente, seria inconstitucional. Assim define o autor, quanto ao juiz nacional: “[…] se vale, sem a menor preocupação, de elementos produzidos longe do contraditório, para formar sua convicção. Fosse o inquérito, como teoricamente se afirma, destinado unicamente para o órgão acusatório, visando à formação de sua opinio delecti e não haveria de ser parte integrante dos autos do processo, permitindo-se ao magistrado que possa valer-se dele para a condenação de alguém.”  Neste mesmo diapasão, Aury Lopes Junior conclui que o princípio do contraditório deve ser obedecido no inquérito. Haja vista que os juízes não obedecem ao princípio do devido processo legal que só admite a utilização de provas obtidas em juízo como fundamento de sentença condenatória. Para este autor: “A prova que é colhida na fase do inquérito e trazida integralmente para dentro do processo acaba mascarando a decisão final do julgador, tendo em vista que a eleição de culpa ou inocência é o ponto nevrálgico do ato decisório e pode ser feita com base nos elementos do inquérito policial e disfarçada com um bom discurso.” Para reforçar a executividade do princípio, prevê o Art. 155, do CPP (Alterado pela Lei 11.690 de 2008): “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas (grifo nosso).” Essa alteração do Código de Processo Penal trouxe o fortalecimento da permissão ao contraditório no inquérito, já que se o juiz pode fundamentar sua convicção em elementos normativos colhidos na investigação prévia, caso sejam provas cautelares, irrepetíveis ou antecipadas, por óbvio, ao menos neste momento, o aludido princípio deve ser observado de pronto. Não cabe dar ao indiciado apenas o contraditório diferido, que somente terá efetividade durante o processo judicial, mostrando-se tardio e ineficaz. Para finalizar, existem jurisprudências acolhedoras do entendimento de que as provas obtidas na investigação podem fundamentar uma decisão de procedência da acusação. Então, neste caso, acarretaria a conseqüente liberdade de ampla defesa no procedimento, pois foi o único momento de produção de provas. 3.2 Das divergências jurisprudenciais A jurisprudência pátria tem decidido com certa dicotomia sobre a aceitação ou não dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial. Nota-se que de forma majoritária afasta-se a utilização dos aludidos preceitos. Mas, neste esboço, analisa-se também aquela que os assegura, visto que em direito toda decisão proferida por um tribunal gera uma expectativa real de direitos subjetivos e uma mudança de paradigmas quanto à matéria. Passa-se a mencionar a seguir algumas jurisprudências que rejeitam o uso do contraditório na fase de investigação preliminar. “RE136239 / SP, Relator: Ministro Celso de Mello, primeira turma, DJ 07/04/1992. DEFENSOR – ILICITUDE DA PROVA – INOCORRENCIA – NATUREZA DO INQUERITO POLICIAL – DISCIPLINA DA PROVA – APLICAÇÃO RETROATIVA DA CF/88 – INVIABILIDADE – INOCORRENCIA DE LESÃO A ORDEM CONSTITUCIONAL (CF/88, ART. 5, XL, LVI E LXIII E ART. 133) – RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO. – O inquérito policial constitui mero procedimento administrativo, de caráter investigatório, destinado a subsidiar a atuação do Ministério Público. Trata-se de peça informativa cujos elementos instrutórios – precipuamente destinados ao órgão da acusação pública – habilitá-lo-ão ao instaurar a persecutio criminis in judicio. – a unilateralidade das investigações desenvolvidas pela policia judiciária na fase preliminar da persecução penal (informatio delicti) e o caráter inquisitivo que assinala a atuação da autoridade policial não autorizam, sob pena de grave ofensa a garantia constitucional do contraditório e da plenitude de defesa, a formulação de decisão condenatória cujo único suporte seja a prova, não reproduzida em juízo, consubstanciada nas pecas do inquérito. – a investigação policial – que tem no inquérito o instrumento de sua concretização – não se processa, em função de sua própria natureza, sob o crivo do contraditório, eis que e somente em juízo que se torna plenamente exigível o dever de observância ao postulado da bilateralidade e da instrução criminal contraditória. A inaplicabilidade da garantia do contraditório ao procedimento de investigação policial tem sido reconhecida tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência dos tribunais (RT 522/396), cujo magistério tem acentuado que a garantia da ampla defesa traduz elemento essencial e exclusivo da persecução penal em juízo. – nenhuma acusação penal se presume provada. Esta afirmação, que decorre do consenso doutrinário e jurisprudencial em torno do tema, apenas acentua a inteira sujeição do Ministério Público ao ônus material de provar a imputação penal consubstanciada na denuncia. – a regra constitucional superveniente – tal como a inscrita no art. 5º, LXIII, e no art. 133 da Carta Política – não se reveste de retroprojeção normativa, eis que os preceitos de uma nova constituição aplicam-se imediatamente, com eficácia ex nunc, ressalvadas as situações excepcionais, expressamente definidas no texto da lei fundamental. O princípio da imediata incidência das regras jurídico constitucionais somente pode ser excepcionado, inclusive para efeito de sua aplicação retroativa, quando expressamente o dispuser a Carta Política, pois “as constituições não tem, de ordinário, retroeficácia. Para as Constituições, o passado só importa naquilo que elas apontam ou mencionam. fora dai, não” (Pontes de Miranda). – a nova constituição do Brasil não impõe a autoridade policial o dever de nomear defensor técnico ao indiciado, especialmente quando da realização de seu interrogatório na fase inquisitiva do procedimento de investigação. A lei fundamental da República simplesmente assegurou ao indiciado a possibilidade de fazer-se assistir, especialmente quando preso, por defensor técnico. A constituição não determinou, em conseqüência, que a autoridade policial providenciasse assistência profissional, ministrada por advogado legalmente habilitado, ao indiciado preso. – nada justifica a assertiva de que a realização de interrogatório policial, sem que ao ato esteja presente o defensor técnico do indiciado, caracterize comportamento ilícito do órgão incumbido, na fase pré-processual, da persecução e da investigação penais. A confissão policial feita por indiciado desassistido de defensor não ostenta, por si mesma, natureza ilícita.” “HC39192/SP; Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima – Quinta turma, DJ 01/07/2005.PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO. CONCURSO DE PESSOAS. DÚVIDA QUANDO DO RECONHECIMENTO DOS DENUNCIADOS PELA VÍTIMA EM JUÍZO. AUSÊNCIA DE OUTRAS PROVAS PRODUZIDAS COM OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. ABSOLVIÇAO COMO ÚNICA SOLUÇAO. ORDEM CONCEDIDA. 1. O fato de a vítima haver reconhecido os pacientes como autores do delito na fase inquisitorial não se mostra suficiente para sustentar o decreto condenatório, principalmente quando em Juízo o reconhecimento dos denunciados não se realizou com convicção, além de não ter sido produzida, ao longo da instrução criminal, qualquer outra prova que pudesse firmar a conduta delitiva denunciada e a eles atribuída. 2. O inquérito policial é procedimento meramente informativo, que não se submete ao crivo do contraditório e no qual não se garante aos indiciados o exercício da ampla defesa, razão pela qual impõe-se, na hipótese, a absolvição dos denunciados. 3. Ordem concedida para restabelecer a sentença absolutória.” Merecem a devida análise as jurisprudências supracitadas, sendo oriundas, respectivamente, do STF e STJ. A primeira retrata o entendimento do ministro Celso de Mello que, como de costume, proferiu um relatório que não deixa arestas, abarcando as principais características do Inquérito Policial, quais sejam, mero procedimento administrativo informativo, inquisitório, unilateral e sigiloso, dentro do contexto daqueles juristas que não aceitam o princípio do contraditório nesta fase do processo penal. A segunda jurisprudência além de coadunar com a afirmação da anterior, ainda realça que o contraditório e a ampla defesa por não estarem presentes na investigação policial, devem, obrigatoriamente, encontrar-se na fase judicial, que é quando ocorre a renovação das provas, sob pena de desconsideração destas e conseqüente absolvição do suspeito, em caso de negativa desta observação. Expor-se-á, neste momento, julgados que remetem a executabilidade dos princípios do contraditório e da ampla defesa na investigação preliminar. Entendimento este, não menos relevante no contexto jurídico, mas que se encontra em esfera reduzida.  “HC 10427 / SP – São Paulo, Relator: Juiz Erik Gramstrup, QuintaTurma, DJ 28/08/2001. ‘HABEAS CORPUS’. SENTENÇA CONCESSIVA. RECURSO VOLUNTÁRIO DO MPF. JUÍZO DE RETRATAÇÃO POSITIVO. ARTIGO 574, INCISO I, DO CPP. VIOLAÇÃO. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DA REMESSA OBRIGATÓRIA. SIMPLES INAPTIDÃO DA DECISÃO PARA PASSAR EM JULGADO. SÚMULA N. 423 DO STF. INQUÉRITO JUDICIAL. PEÇA MERAMENTE INFORMATIVA. INOCORRÊNCIA DE NULIDADE CAPAZ DE INVALIDAR A AÇÃO PENAL JÁ INSTAURADA. ARTIGO 588 DO CPP. INTIMAÇÃO DA PARTE CONTRÁRIA PARA CONTRA-ARRAZOAR O RECURSO. INVESTIGADO OU INDICIADO. OBRIGATORIEDADE. PRINCÍPIO DO FAVOR REI. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA E DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. OBRIGAÇÃO DO MAGISTRADO. EFEITO SUSPENSIVO. INSUBSISTÊNCIA. PRETENDIDA APLICAÇÃO IMEDIATA 33 DO ARTIGO 589 DO CPP. INVIABILIDADE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIAS. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. Se da sentença concessiva de ‘habeas corpus’ houve também recurso voluntário do Ministério Público Federal, que resultou no juízo de retratação positivo e, por conseguinte, na reforma daquela decisão, não há se falar em violação do disposto no artigo 574, inciso I, do Código de Processo Penal, tendo em vista, justamente, a não subsistência da decisão que havia concedido, inicialmente, o ‘habeas corpus’, para o fim de trancar o inquérito policial instaurado em face do paciente. 2. Embora o Código de Processo Penal rotule como nulidade a ausência da remessa obrigatória, segundo o melhor entendimento da nossa doutrina pátria o que ocorre, na hipótese, é simplesmente a inaptidão da decisão para passar em julgado, nos moldes elencados pela Súmula n. 423 do STF. 3. Eventuais defeitos verificados em sede de inquérito judicial, por se tratar de peça meramente informativa, não consubstanciam nulidade capaz de invalidar a ação penal já instaurada. 4. Nos termos do disposto no artigo 588 do Código de Processo Penal, a intimação da parte contrária para contra-arrazoar o recurso apresenta-se de rigor, não devendo o julgador fazer nenhuma distinção quando o recorrido for investigado ou indiciado, posto que o legislador não a fez. 5. Embora ainda não esteja instaurada regularmente a relação processual, nem por isso ausente está o interesse de agir do indivíduo, levando-se em consideração o bem jurídico maior tutelado, qual seja a sua liberdade de locomoção. 6. Vigorando no processo penal o princípio do favor rei, qualquer interpretação das normas legais devem ser no sentido de melhor proteger os direitos e garantias individuais do acusado, indiciado ou investigado. 7. Ainda que o contraditório não se faça presente, no mais das vezes, na fase do inquérito policial, nem por isso o direito de defesa do indivíduo, garantido na nossa Carta Magna, bem como o princípio do duplo grau de jurisdição, reconhecido expressamente na Convenção Americana dos Direitos do Homem, devam restar prejudicados, visto que somente com a intimação do investigado ou do indiciado para contra-arrazoar o recurso, é que poderá vir a manifestar-se em caso de juízo de retratação positivo, no sentido de o novo ‘decisum’ poder ser submetido a exame e julgamento pela instância superior. 8. Não se constitui em mera faculdade, mas, sim, em obrigação do magistrado proceder à intimação do recorrente, ainda que investigado ou indiciado, para, em querendo, contra-arrazoar o recurso em sentido estrito. 9. Considerando que a vigência da medida liminar, no tocante ao efeito suspensivo concedido, ficou condicionada até o momento em que a autoridade impetrada procedesse a novo juízo de retratação nos autos, e levando em consideração que o mesmo consubstanciou-se na reforma da decisão impugnada, afastando, assim, a anistia anteriormente concedida, de modo a tornar prejudicado o recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal, não há como subsistir nesta fase de julgamento do mérito, a concessão do mencionado efeito suspensivo. 10. Somente a ocorrência de uma decisão efetiva e não a sua mera hipótese permite ao Tribunal a apreciação de qualquer insurgência por parte do interessado, através dos meios legais consectários. Inviabilidade da imediata aplicação do disposto no artigo 589 do Código de Processo Penal, sob pena, inclusive, de supressão de instâncias. 11. Ordem, parcialmente, concedida, para o fim de, tão-somente, reconhecer o direito do paciente, ainda que investigado ou indiciado, para, em querendo, contra-arrazoar o recurso em sentido estrito, prosseguindo a ação penal em seus demais termos.” “HC 58579 / RJ – Rio de Janeiro, Relator: Ministro Clóvis Ramalhete, Primeira Turma, DJ 12/05/1981. INDICIADO. Direito desse a contra-arrazoar recurso oferecido antes de recebida a queixa ou denuncia. Sua negação constitui constrangimento ilegal e cerceamento de defesa. Habeas corpus concedido para revogar o acórdão proferido em recurso, em que se impedia ao indiciado, contra-arrazoar o recurso em sentido estrito. II. A situação de ser indiciado gera interesse de agir que autoriza se constitua entre ele e o juízo, a relação processual, desde que espontaneamente intente requerer no processo, ainda que em face de inquérito policial. Habeas corpus concedido unanimemente. III. A instauração do inquérito policial, com indiciados nele configurados, faz incidir nestes a garantia constitucional da ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. IV. Pedido de habeas corpus provido.” Ante o exposto, percebe-se que o entendimento jurisprudencial permissivo ao exercício dos aludidos preceitos constitucionais não é inequívoco. Necessita-se de maior precisão quanto à permissão de observar livremente o princípio do contraditório na investigação. Examinando in loco aos acórdãos, nota-se que o primitivo ressalta no item Nr 07, que o contraditório não está presente no inquérito, porém coloca em evidência a expressão – no mais das vezes – dando a sensação que em algum momento é aceito, sem determinar quando. Permite-se nesta decisão jurisprudencial, de forma precisa, apenas o direito de defesa e duplo grau de jurisdição, o que é consolidado na doutrina pátria. Já na decisão derradeira, o Ministro Clóvis Ramalhete expõe, no item Nr 03, que a ampla defesa deve ser observada quando há indiciamento, tendo em vista os riscos a lesão da liberdade e imagem pública do investigado. Entretanto, não assinou nenhum direito ao contraditório. 3.3 Da participação do advogado no inquérito Depois do debate da questão sobre o recebimento dos princípios do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial, cresce de importância aludir sobre a participação do advogado nesta seara, já que cabe a este profissional a defesa do pólo passivo da persecução criminal. A própria carta magna acentua em seu Art. 133, que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. São inúmeros os aspectos para aqui discorrer, todavia, ater-se-á neste capítulo a dois deles, que são o acesso do advogado aos autos do inquérito e sua forma de atuar durante o interrogatório. 3.3.1 Acesso do advogado do indiciado aos autos de inquérito Com a entrada em vigor da Lei Nr 8.906, de 04 de julho de 2004, Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, que no seu Art. 7º, XIV, conferiu a este profissional a prerrogativa de acesso aos autos do inquérito, o que se presume ter praticamente extinto o sigilo, que é uma das características do procedimento. Nesta óptica, Nucci assim se pronuncia: “Em síntese, o sigilo não é, atualmente, de grande valia, pois se alguma investigação em segredo precise ser feita ou esteja em andamento, pode o suspeito, por intermédio de seu advogado, acessar os autos e descobrir o rumo que o inquérito está tomando.” Aqui o autor explica o sigilo como atributo da investigação, que deve ter caráter sigiloso. Contudo, cabe uma discussão quanto à situação em que é decretado, por parte do juiz, que o inquérito correrá sob o segredo de justiça em razão do interesse público, conforme o Art. 20, do CPP: “A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. Neste caso, há o conflito entre dois princípios constitucionais, resolvendo-se pela prevalência do interesse público, traduzido no sigilo da investigação, ante ao princípio da publicidade, que beneficia o particular. Esta é a propositura de Manuel Messias Barbosa, para quem: “Se nos processos judiciais e administrativos sob o regime de segredo de justiça, o próprio Estatuto da Ordem estabelece restrições ao princípio da publicidade, Art. 7º, §1º, com muita mais razão elas devem ocorrer na fase apuratória, momento em que se colhem os primeiros elementos a respeito da infração penal. Esse raciocínio é aplicável principalmente nos tempos atuais, em que se expande a macro criminalidade, o tráfico de entorpecentes, delitos contra o sistema financeiro nacional praticados por organizações criminosas, lavagens de ativos provenientes de ilícitos, etc.”  Abaixo algumas jurisprudências antagônicas que evidenciam a dicotomia ao qual se reveste o tema. A primeira negando a prerrogativa do advogado, a segunda permitindo o acesso apenas a dados que versam sobre o próprio indiciado, excluindo às informações de terceiros e a última preterindo ao sigilo em favor do acesso do advogado. “RMS nº 12.516/PR, Rel. Min. ELIANA CALMON, j. em 20/08/2002). PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INQUÉRITO POLICIAL. ADVOGADO. ACESSO. NECESSIDADE DE SIGILO. JUSTIFICATIVA. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.      I – O inquérito policial, ao contrário do que ocorre com a ação penal, é procedimento meramente informativo de natureza administrativa e, como tal, não é informado pelos princípios do contraditório e da ampla defesa, tendo por objetivo exatamente verificar a existência ou não de elementos suficientes para dar início à persecução penal. Precedentes. II – O direito do advogado a ter acesso aos autos de inquérito não é absoluto, devendo ceder diante da necessidade do sigilo da investigação, devidamente justificada na espécie (Art. 7º, § 1º, 1, da Lei nº 8.906/94). Recurso desprovido”.” “HC 65.303 / PR – Relator MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA, Oitava Turma, DJ: 23/06/2008 PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. INQUÉRITO POLICIAL. ACESSO. ADVOGADO. SIGILO DAS INVESTIGAÇÕES. ORDEM DENEGADA. 1. Ao inquérito policial não se aplica o princípio do contraditório, porquanto é fase investigatória, preparatória da acusação, destinada a subsidiar a atuação do órgão ministerial na persecução penal. 2. Devem-se conciliar os interesses da investigação com o direito de informação do investigado e, conseqüentemente, de seu advogado, de ter acesso aos autos, a fim de salvaguardar suas garantias constitucionais. 3. Acolhendo a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça decidiu ser possível o acesso de advogado constituído aos autos de inquérito policial em observância ao direito de informação do indiciado e ao Estatuto da Advocacia, ressalvando os documentos relativos a terceiras pessoas, os procedimentos investigatórios em curso e os que, por sua própria natureza, não dispensam o sigilo, sob pena de ineficácia da diligência investigatória. 4. Habeas corpus denegado.” “HC 90232 / AM – Amazonas, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ 18/12/2006. I. HABEAS CORPUS: INVIABILIDADE: INCIDÊNCIA DA SÚMULA 691 (“NÃO COMPETE AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL CONHECER DE “HABEAS CORPUS” IMPETRADO CONTRA DECISÃO DO RELATOR QUE, EM “HABEAS CORPUS” REQUERIDO A TRIBUNAL SUPERIOR, INDEFERE A LIMINAR”). II. INQUÉRITO POLICIAL: INOPONIBILIDADE AO ADVOGADO DO 32 INDICIADO DO DIREITO DE VISTA DOS AUTOS DO INQUÉRITO POLICIAL.                                                                                                      1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio. 2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade. 3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações. 4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório. 5. Habeas corpus de ofício deferido, para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta aos autos do inquérito policial e a obtenção de cópias pertinentes, com as ressalvas mencionadas.” Na prática do inquérito policial pátrio, evidencia-se que corriqueiramente os delegados não juntam aos autos diligências recém realizadas e ainda não conclusas, com o fito único de omitir do defensor do indiciado as provas obtidas. O que se consubstancia numa atitude contrária ao entendimento colhido do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil que clama pelo acesso irrestrito do profissional aos autos. Em que pese à legislação supracitada, não há exatidão no Código de processo Penal sobre o momento em que as diligências devem ser levadas aos autos. Nem mesmo está previsto uma sanção ao titular da investigação que descumprir veementemente a norma que obriga a promoção de documentos ao defensor. Percebe-se também que a doutrina e jurisprudência do país não têm atentado quanto à importância desse preceito, fazendo com que este se torne por vezes inócuo.  3.3.2 Forma de atuar do defensor do indiciado no interrogatório Quanto à forma de atuar do defensor durante a oitiva de testemunhas ou do próprio investigado no inquérito policial, a discussão gira em torno da obrigatoriedade daquele profissional estar presente no ato e da possibilidade de formular perguntas, assim como de protestar alguma indagação por parte do delegado entendida como fora dos limites legais. Com a entrada em vigor da Lei 10.792, de 02 de setembro de 2003, diversas mudanças ocorreram no Código de Processo Penal, mudanças estas que interessam ao presente estudo, já que alteraram os Arts. 185 a 196, trazendo à baila a controvérsia sobre a obrigação do interrogatório durante o inquérito seguir todas as premissas daquele realizado em juízo pelo magistrado. Para os doutrinadores que rejeitam a ampla defesa na fase preliminar da persecução criminal, as modificações refletem-se apenas naquilo que não for contrário ao poder inquisitivo do titular da investigação, já que ainda não há acusação formal, ilidindo as prerrogativas que serão dadas ao indiciado somente em juízo, a posteriori. Por óbvio, entende-se que continua válido o disposto no Art. 5º, LXIII, da CF/88, que consiste no direito de permanecer em silêncio e constituir advogado. Para Nucci as mudanças são plausíveis: “[…] embora a maioria delas somente seja aplicável em juízo, pois concernente a ampla defesa, que não ocorre na fase inquisitiva. Assim, não é obrigatória a presença de defensor no interrogatório feito na polícia (Art. 185), nem tampouco há o direito de interferência, a fim de obter esclarecimentos (Art. 188).” Não é esta a concepção de Aury Lopes Junior, para este garantista, como já mencionado no capítulo 2 deste trabalho, a temática resume-se à existência de indiciamento, pois, em caso afirmativo, ocorre a acusação informal abrindo margem a ampla defesa e às prerrogativas dela inerentes.  Assim define o autor:  “A forma do interrogatório policial deverá ser a mesma prevista para o interrogatório judicial, pois assim determina o Art. 6º, V, ao remeter para os Art. 185 e seguintes. É imprescindível que o suspeito seja informado – antes da realização do interrogatório – de que o faz na condição de suspeito, e não como mera testemunha ou informante, bem como deve ser realizado na presença de seu defensor. Também deve ser assegurado o direito de o advogado formular as perguntas necessárias para melhor esclarecimento da situação e defesa do suspeito, nos termos da nova redação do Art. 188 do CPP.” Ante o tema proposto, a jurisprudência mais uma vez tem decidido de forma heterogênea. Em acórdão já mencionado no capítulo 2.3 desta pesquisa, que ora aparece de forma resumida, entende-se como obrigatória a constituição de defensor ao indiciado. “RE136239 / SP, Relator: Ministro Celso de Mello, primeira turma, DJ 07/04/1992. – a nova constituição do Brasil não impõe a autoridade policial o dever de nomear defensor técnico ao indiciado, especialmente quando da realização de seu interrogatório na fase inquisitiva do procedimento de investigação. A lei fundamental da República simplesmente assegurou ao indiciado a possibilidade de fazer-se assistir, especialmente quando preso, por defensor técnico. A constituição não determinou, em conseqüência, que a autoridade policial providenciasse assistência profissional, ministrada por advogado legalmente habilitado, ao indiciado preso. – nada justifica a assertiva de que a realização de interrogatório policial, sem que ao ato esteja presente o defensor técnico do indiciado, caracterize comportamento ilícito do órgão incumbido, na fase pré-processual, da persecução e da investigação penais. A confissão policial feita por indiciado desassistido de defensor não ostenta, por si mesma, natureza ilícita.” Diversamente, existem decisões não menos relevantes que facultam o uso do advogado na fase investigativa, como se assegura abaixo: “STJ. HABEAS CORPUS Nº 139.412 – SC (2009/0116052-9) RELATORA MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA.09/02/2010. HABEAS CORPUS . TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO EM FLAGRANTE. LIBERDADE PROVISÓRIA INDEFERIDA. FALTA DE FUNDAMENTAÇAO. REPERCUSSAO DO DELITO. VEDAÇAO LEGAL. MEDIDA QUE NAO SE JUSTIFICA. POUCA DROGA. PENA FIXADA NO MÍNIMO LEGAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. Conforme reiterada jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, toda custódia imposta antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória exige concreta fundamentação, nos termos do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal. 2. Se o magistrado de primeira instância indeferiu o pedido de liberdade provisória amparado apenas na vedação legal contida no art. 44 da Lei n. 11.343/06, na quantidade de droga (28 pedras de cocaína) e na repercussão social causada pelo delito, fica evidente o constrangimento ilegal. Tais motivos não se revelam idôneos para justificar a imprescindibilidade da medida extrema, destacando-se que já foi proferida sentença condenatória, sendo fixada a reprimenda no mínimo legal. 3. É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o inquérito policial é procedimento inquisitivo e não sujeito ao contraditório, razão pela qual a realização de interrogatório sem a presença de advogado não é causa de nulidade. 4. Ordem parcialmente concedida para garantir à paciente o direito de aguardar em liberdade o trânsito em julgado da condenação.” Por derradeiro, o que ocorre na prática é que alguns delegados durante a investigação preliminar permitem o livre acesso dos advogados aos autos. Também não procedem ao interrogatório sem a presença do defensor do suspeito, mesmo quando solto e, ainda, acatam ao pedido de diligência do suspeito quando as alegações sirvam para a elucidação do fato, o que se presume ser as atitudes mais recomendadas. Na contramão destas atitudes, algumas autoridades policiais agem com descumprimento destes preceitos, ao julgarem-se amparados no descompasso causado pela dicotomia presente no sistema processual penal, e verdadeiramente estão, porque o CPP que data de 1941 não é preciso em seus mandamentos nestes quesitos. Assim, mais uma vez, por não existir uma norma reguladora, nem tão pouco sanções ante o seu descumprimento, comumente os delegados procedem ao interrogatório do indiciado sem a presença de defensor, em que pese as orientações do juízo da comarca para que não se realize a oitiva sem constituir advogado para o indiciado, nos casos em que este não o possua. Neste sentido, Nucci confirma ser plausível a constituição de advogado para o indiciado, não recomendando a intervenção do mesmo no interrogatório investigativo, pois não há ampla defesa no procedimento. Assim assevera o autor: “[…] não há fundamento para a exclusão do advogado da produção da prova, embora no seu desenvolvimento não possa intervir – fazendo perguntas para a testemunha, por exemplo -, mas somente acompanhar, porque os atos dos órgãos estatais devem ser pautados pela moralidade e pela transparência.” Entretanto, cabe um juízo de perspicácia deste profissional em não deixar que seu constituinte seja induzido a se auto-incriminar e, como não há uma medida exata de participação deste na produção da prova, pode contradizer o que for admitido pelo delegado. 4 DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL Tramita-se no Congresso Nacional um Projeto de Emenda à Constituição tendente a reformar profundamente o Código de Processo Penal Brasileiro, que desde o dia 3 de junho de 2010 aguarda inclusão na Ordem do Dia do Senado Federal. Se aprovadas essas mudanças, o Inquérito Policial será abordado como uma temática bem diferente da atual. Então, apresentando-se o inquérito como tema deste trabalho e por oferecer-se de grande relevância para a seara jurídica, importa uma análise, ainda que sumária, do projeto em si, com seus artigos e das suas motivações.  Uma comissão de juristas com trabalhos reconhecidos no âmbito jurídico, como Antonio Correa, Antonio Magalhães Gomes Filho, Eugênio Pacelli de Oliveira, Fabiano Augusto Martins Silveira entre outros, apresentou um anteprojeto junto a Comissão de constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, através de Requerimento Nr 227 de 2008, tendo como intuito a reforma do Código de Processo Penal. Haja vista que ele data de 1941, ou seja, um diploma antigo e que já não atende as necessidades de uma sociedade contemporânea, nem mesmo está em estrita consonância com a Carta Magna. Pretendem os autores modernizar a legislação processual penal, trazendo agilidade ao sistema e providenciando que haja maior eficácia na apuração das infrações, ao mesmo tempo em que ofereça maiores garantias para as vítimas e também, para réus e acusados. Interessa-nos, prioritariamente, examinar o conteúdo da reforma quanto à investigação preliminar, pois o texto propõe a criação do juiz de garantia, que seria um magistrado competente para atuar na investigação, sendo diverso daquele que decidirá a causa em juízo. Destarte, aspira-se que o juiz de garantia faça um controle de legalidade da persecução preliminar, assim como almeja salvaguardar as garantias fundamentais do acusado e da vítima. Logo, com juízes diferentes, um para verificar o inquérito e outro para julgar, dar-se-á ao processo mais impessoalidade de julgamentos. O Art. 10 da reforma descreve: “Para todos os efeitos legais, caracteriza-se a condição jurídica de “investigado” a partir do momento em que é realizado o primeiro ato ou procedimento investigativo em relação à pessoa sobre a qual pesam indicações de autoria ou participação na prática de uma infração penal, independentemente de qualificação formal atribuída pela autoridade responsável pela investigação”. Este dispositivo busca resolver a confusão causada, na óptica de inúmeros doutrinadores já citados anteriormente, pela falta de previsão por parte do CPP atual sobre o momento em que o suspeito passa a situação de indiciado. No Art. 14, expõe-se: “É facultado ao investigado, por meio de seu advogado ou de outros mandatários com poderes expressos, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas. Parágrafo único. As entrevistas realizadas na forma do caput deste artigo deverão ser precedidas de esclarecimentos sobre seus objetivos e do consentimento das pessoas ouvidas. Ademais, o Art. 27 assevera: “A vítima, ou seu representante legal, e o investigado poderão requerer à autoridade policial a realização de qualquer diligência, que será efetuada, quando reconhecida a sua necessidade. §1º Se indeferido o requerimento de que trata o caput deste artigo, o interessado poderá representar à autoridade policial superior ou ao Ministério Público. Aqui nos parece, claramente, que é aumentado o direito de defesa do investigado no inquérito policial em relação ao CPP atual. Tendo em vista que neste diploma, o Art. 14 prevê que a autoridade poderá realizar a diligência solicitada pelo indiciado ou não, a seu critério. Já na reforma, o delegado é obrigado a efetuar a diligência, quando necessária a elucidação da infração. Algo profundamente inovador tratando-se de investigação no ordenamento jurídico pátrio. A reforma ora mencionada é repleta de dispositivos que mudariam de forma incisiva o Código de Processo Penal, contudo, não cabe aqui as expor em sua totalidade, apenas os principais pontos inerentes ao estudo do inquérito, almejando trazer a tona os esforços envidados pelos juristas para alcançar o objetivo de fazer leis que satisfaçam a necessidade da sociedade hodierna. CONCLUSÃO Depois da discussão em face da utilização ou não do princípio do contraditório no inquérito policial, faz-se mister evidenciar que a utilização de preceitos constitucionais é cogente a todos as legislações pátrias. Toda nação que anseia ter reconhecida sua política como democrática, tem a obrigação de garantir o respeito aos direitos fundamentais de seus cidadãos, mesmo quando os interesses do Estado possam ser minimizados. Entretanto, como já foi abordado, ocorreu que a persecução penal foi dividida em duas fases. A primeira traduzida no inquérito, onde a própria carta magna dispôs no Art. 144, §1º, I e § 2º que as polícias, federal e civil, teriam a atribuição de apurar as infrações penais, ou seja, seria a investigação presidida por autoridades administrativas. A segunda seria o processo judicial, sob competência de um juiz, onde seriam instruídas as provas e prolatada a sentença, entre outras coisas.    Como o instituto em tela é de presidência de uma autoridade sem competência de julgamento, nada mais óbvio tratar-se de um procedimento administrativo e não processo. Corrobora com esta concepção, o fato da investigação preliminar ter apenas o fito de apurar indícios de autoria e materialidade, servindo para embasar a convicção do titular da denúncia ou queixa, tanto que pode ser dispensado quando o titular da ação já possui os requisitos acima mencionados, conforme dispõe o CPP nos Art. 12 e 39, §5º. Entendem-se por princípio do contraditório, a ciência a ambas as partes da lide de todos os atos realizados pela parte contrária, além de ter a faculdade de contradizer a tudo que for trazido aos autos. Este princípio foi trazido pela constituição no Art. 5º, inciso LV, onde é assegurado o contraditório aos litigantes em todo processo judicial. Com isso, mostra-se corolário do devido processo legal e não deixa dúvida sobre sua a incidência durante o processo em juízo. A incerteza gira em torno de sua utilização no procedimento administrativo inquérito policial e se de alguma forma a sua ausência acarretaria a inconstitucionalidade do ato. Após examinar diferentes doutrinas, percebe-se que o princípio do contraditório não se faz presente no inquérito policial, haja vista que é um procedimento administrativo de cunho exclusivamente probatório e não será neste momento decidida à punibilidade do suspeito, ou seja, não há sanção alguma que o autorize. Dar a ciência de todas as diligências realizadas pela polícia traria conseqüências danosas à atividade, como a oportunidade do infrator esconder as provas, evadir-se ao descobrir que há indícios contra si e até mesmo ameaçar testemunhas. Não é possível que a segurança da sociedade como um todo fique exposta a impunidade em prol do direito de apenas um indivíduo, se posteriormente ele terá o contraditório assegurado. Não ensejando inconstitucionalidade alguma caso o princípio seja prescindido no inquérito. Quanto à produção de provas irrepetíveis, que são aquelas urgentes, obtidas durante a investigação porque o decurso de tempo poderia acarretar sua desconstituição ou desaparecimento e por conta disso, impossíveis de serem renovadas em juízo, não há como negar o contraditório diferido. A ausência deste traria prejuízos ao indiciado, ocorrendo um desprestígio ao princípio constitucional do devido processo legal. Ainda, importa esclarecer que no inquérito policial, após o ato de indiciamento, o cidadão torna-se suscetível a inúmeros danos morais e patrimoniais. Daí surgindo à prerrogativa de uma defesa dinâmica e dilatada, pois esta é perfeitamente compatível no procedimento de investigação policial. Destarte, cabe ao indiciado, facultativamente, através da perspicácia de seu advogado, exercitar seus direitos, inclusive exigindo à feitura de diligências que possam elucidar os crimes, de ter acesso as provas já obtidas e, principalmente, poder argumentar durante o interrogatório do investigado e das testemunhas. Entretanto, a ampla defesa, como hodiernamente é concebida pela doutrina, não é viável no inquérito haja vista que é uma decorrência do contraditório, que também não se faz presente.    Por todo o exposto, acreditamos que o novo Código de Processo penal, se aprovado, regulamentará de forma precisa esta matéria de suma importância para a segurança jurídica dos cidadãos. Não se aceita mais um diploma que está defasado mais de 50 anos em relação à constituição Federal, instituto este que rege toda a dogmática jurídica pátria. Assim sendo, a reforma do CPP abrigará uma considerável dilatação na defesa do investigado no Inquérito policial. Contudo, não entendemos o princípio do contraditório como compatível com o procedimento porque iria alijar a nobre função das polícias judiciárias que é de apurar as infrações penais e constituir indícios probatórios de materialidade e autoria.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-82/o-principio-do-contraditorio-no-inquerito-policial/
Apontamentos sobre a autonomia das esferas administrativa e processual penal na apuração dos crimes contra a ordem tributária
Este trabalho traz uma breve a abordagem da autonomia entre as esferas administrativa e processual penal no que diz respeito ao oferecimento de denúncia em tema de crimes contra a ordem tributária, tendo como ponto de partida a discussão sobre a origem comum ou não da obrigação e do crédito tributário.
Direito Processual Penal
1 – Introdução  É antigo na doutrina e na jurisprudência o debate acerca da interconexão entre o procedimento administrativo para acertamento de lançamento tributário e a atuação do órgão do Ministério Público nas ações penais em tema de crimes contra a ordem tributária, notadamente frente à autonomia de ambas as instâncias – administrativa e penal. Já se cogitou considerar o “lançamento definitivo” como condição de procedibilidade. Hodiernamente, defende-se, entre outras argumentações, que seja condição objetiva de punibilidade, elemento normativo do tipo ou justa causa para a instauração da ação penal. Como se infere, é assunto que demanda profundas reflexões, especialmente à vista da Súmula Vinculante n. 24. 2 – Do Procedimento Administrativo O ordenamento jurídico brasileiro, ao garantir a todos o devido processo legal, com seus consectários do contraditório e da ampla defesa, não se limitou à esfera judicial, antes, expressamente o estendeu ao âmbito administrativo (art. 5º, LIV e LV, CF/88). Sendo o lançamento o ato tendente a tornar líquida e certa a obrigação tributária, a qual nasce com a concretização do fato abstratamente previsto na norma, desde logo se vislumbra que a partir dele pode ter lugar um procedimento (tributário) e administrativo, tendente à sua discussão. Tal procedimento pode culminar com a confirmação do lançamento, como também pode declará-lo nulo ou inexato, podendo ser acertado, neste último caso, o valor em relação àquele inicialmente apurado. Só ao final do procedimento administrativo ter-se-á então o crédito tributário definitivamente constituído e apto a ser exigido do contribuinte ou responsável, o qual pode satisfazê-lo espontaneamente, manter-se inerte (conduta que fatalmente acarretará a inscrição do crédito em dívida ativa e o ajuizamento de execução fiscal contra si) ou, então, submeter o caso ao crivo do Judiciário.[1] Esse é o entendimento da doutrina mais tradicional, apegada à dicotomia entre obrigação e crédito tributário. Para outra corrente, no entanto, a despeito de o Código Tributário prescrever que o lançamento é o ato tendente a constituir o crédito tributário, na verdade, este nasce no mesmo momento em que a obrigação tributária. Confira-se a lição de Silva:[2] “Cabe esclarecer, porém, que a doutrina mais moderna tem refutado tal distinção, salientando que tanto a obrigação quanto o crédito tributário ingressam no mundo jurídico simultaneamente, no momento em que o contribuinte pratica um determinado ato do mundo fenomênico apto a acarretar o surgimento de um correspectivo dever fiscal ( = fato gerador).” Ato contínuo, o mesmo autor faz referência ao magistério de Torres:[3] “O CTN diz, no art. 113, § 1º, que a obrigação tributária “extingue-se juntamente com o crédito tributário”. A obrigação e o crédito não só se extinguem como também nascem conjuntamente. Nada obstante, o Código reserva o termo “crédito” à obrigação que adquire concretitude ou visibilidade e passa por diferentes graus de exigibilidade. (…)  A técnica utilizada pelo Código deve ser empregada com cautela, pois obrigação e crédito não se distinguem em sua essência, como declara o próprio CTN no art. 139: O crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza deste. (…) A distinção que por vezes faz o CTN deve ser entendida no sentido didático. Embora o crédito se constitua juntamente com a obrigação pela ocorrência do fato gerador, recebe ele graus diversos de transparência  concretitude (sic), na medida em que seja objeto de lançamento, de decisão administrativa definitiva ou de inscrição nos livros da dívida ativa. O crédito tributário passa por diferentes momentos de eficácia: de crédito simplesmente constituído (pela ocorrência do fato gerador) torna-se crédito exigível (pelo lançamento modificado ou pela decisão administrativa definitiva) e finalmente crédito exeqüível (pela inscrição nos livros da dívida ativa), dotado de liquidez e certeza.” (destaques do autor e grifos nossos) 3 – Do Processo Penal   O processo penal, por sua vez, visa essencialmente dar concreção ao Direito Penal, ultima ratio, através da determinação do delito e da imposição da pena, legalmente prevista. Neste sentido, a lição de Lima:[4] “Mas o Direito Penal é despido de coerção direta e, ao contrário do Direito Privado, não tem atuação nem realidade concreta fora do processo correspondente. Para que possa ser aplicada uma pena, não só é necessário que exista um injusto típico, mas também que exista previamente o devido processo penal. […] Existe uma íntima e imprescindível relação entre delito, pena e processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena.” Para cumprir sua finalidade, todavia, o processo penal deve nortear-se por todas as garantias previstas constitucionalmente (especialmente configuradas no art. 5º e seus incisos), mesmo porque, desde que o Estado de Direito avocou a si o direito (e o consequente dever) de fazer justiça, deve fazê-lo dentro de limites constitucionalmente traçados. Assim é que o moderno Processo Penal prima por seu caráter instrumental em relação ao Direito Penal (o que não configura nenhum demérito, porque este sem aquele também nada seria, nem poderia) e garantista. Uma característica marcante o distingue do processo civil: a busca pela verdade material. 4 – Dos Crimes contra a Ordem Tributária Antes da tipificação dos crimes contra a ordem tributária pela Lei n. 8.137/90, a Lei n. 4.729/65, revogada por aquela, já tratava de crimes de sonegação fiscal. A grande diferença entre ambas é que nesta os crimes eram de mera conduta, os quais se aperfeiçoavam independentemente de resultado lesivo, enquanto que na primeira, pelo menos os crimes tipificados em seu art. 1º, são de resultado, emergindo tal conclusão do núcleo do tipo “suprimir ou reduzir tributo”. Na lição de Souza:[5] “Dessa classificação dos crimes advém conseqüências jurídico-penais de suma importância: na classificação entre crimes formais e materiais, leva-se em consideração o momento consumativo do delito; na distinção entre crimes de dano, ou de perigo, leva-se em consideração o resultado da ação delituosa. Dessa distinção decorre que os crimes materiais, ou de dano, só se consumam com a efetiva produção do resultado previsto no tipo e efetiva lesão ao bem jurídico protegido. Tendo em vista a definição legal dos crimes contra a ordem tributária (supressão ou redução de tributos), eles só se consumam com a efetiva produção desse resultado. E, logicamente, só se pode falar em supressão ou redução do tributo após o término do procedimento administrativo, que culmina com o lançamento, atividade privativa das autoridades fazendárias. Bem se pode concluir pela existência de uma relação de interdependência das instâncias penais e administrativas no concernente à verificação dos crimes contra a ordem tributária. Se, ao tempo da Lei 4729/65 bastava tão somente a realização de uma das condutas previstas na lei, agora, tal já não basta para que se tenha por caracterizado o delito; é preciso que além das condutas típicas, se produza o resultado lesivo ao erário público, é necessária a comprovação efetiva do dano ao erário público: a supressão ou redução do tributo.” Pois bem. O art. 83, da Lei n. 9.430/96, por sua vez, prescreve: “Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a existência fiscal do crédito tributário correspondente. Parágrafo único. As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos policiais e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz.” Por outro lado, também o art. 15, da Lei n. 8.137/90, continua a determinar que a ação penal por delitos contra a ordem tributária é de natureza pública incondicionada. Segundo Souza, a representação tratada no art. 83, da Lei n. 9.430/96, nada tem que ver com o instituto da “representação” previsto no Código Penal ou Código de Processo Penal, como condição de procedibilidade, no sentido de condicionar a propositura da ação penal à representação do ofendido. Deve ser interpretado no sentido de notitia criminis, porque não é razoável que seja oferecida denúncia em desfavor de alguém pelo cometimento de crime contra a ordem tributária, quando é elemento normativo do tipo o vocábulo “tributo”, o qual só pode ser considerado suprimido ou reduzido depois de o crédito tributário estar definitivamente constituído na esfera administrativa, o que, normalmente, só ocorre após o fim do procedimento administrativo. [6] Observe-se que tal autor se filia à corrente tradicional do Direito Tributário, segundo a qual obrigação e crédito tributário têm momentos distintos de nascimento. Outro é o entendimento de Silva, o qual, após discorrer brevemente sobre o julgamento da ADI 1.571-MC (rel. Min. Néri da Silveira, DJU de 25.9.98), em que ficou assentado que o exaurimento da instância administrativa não constitui condição de procedibilidade da ação penal, ainda que a exigibilidade da exação fiscal esteja pendente em face de recurso interposto pelo contribuinte na esfera administrativa, teceu críticas ao posicionamento do Min. Sepúlveda Pertence no julgamento do HC 81.611/DF, em que este proferiu voto no sentido de que a decisão definitiva do processo administrativo, nos casos dos crimes tipificados no art. 1º, da Lei n. 8.137/90, consubstancia uma condição objetiva de punibilidade, sem a qual a denúncia deve ser rejeitada, uma vez que apenas a autoridade administrativa fiscal tem competência para constituir o crédito tributário, cuja existência ou montante só restam configurados após a decisão final do processo administrativo.[7] Ainda segundo tal autor, não obstante a natureza material dos delitos tipificados no art. 1º, da Lei n. 8.137/90, não se pode confundir a consumação do crime tributário, que ocorre com o vencimento do prazo previsto para recolhimento do tributo, com o exaurimento do crime, no que se incluem os atos de constituição (lançamento) e análogos (de fiscalização).[8] Aduz ainda que “punibilidade não é requisito (ou elemento) do delito, mas a sua consequência jurídica” e que, além de não integrar a estrutura do tipo, do injusto e da culpabilidade, também não está coberta pelo dolo ou culpa do agente, de modo a não se poder condicionar o oferecimento da denúncia pelo órgão do Ministério Público ao fim do processo administrativo.[9] E continua:[10] “De fato, se a efetiva exigibilidade do tributo espelhada no auto de infração ainda encontra-se sob o crivo da administração tributária, face à pendência de recurso interposto pelo contribuinte, é possível que, em determinada situação específica, qual seja, quando houver a impugnação do nascimento do fato gerador da obrigação tributária, o resultado da decisão administrativa definitiva afete o tipo de injusto, vinculando, por conseguinte, o teor da sentença penal no sentido da não-caracterização do ilícito penal tributário. Nessa situação particular, em que o conteúdo da decisão definitiva da instância administrativa possui aptidão para esvaziar o conteúdo do tipo de injusto, caso seja reconhecida a pretensão do contribuinte, forçoso concluir que ela não pode ser tida como condição objetiva de punibilidade, mas sim como elemento integrante do tipo penal tributário, uma vez que estará ausente a efetiva supressão ou redução do tributo estampada no auto de infração.” (destaques nossos.) Pugna, então, pelo reconhecimento da quebra da autonomia entre as esferas penal e administrativa, em certas circunstâncias, encaminhando a solução do problema para a disciplina das questões prejudiciais heterogêneas (arts. 92 e 93, do CPP).[11] Obtempera, por fim, que isso só ocorrerá se e quando, “no curso do processo criminal, não for possível a produção de outras provas comprobatórias do aperfeiçoamento do ilícito penal tributário”, o que significa dizer que admite a prolação de sentença condenatória mesmo que tenha havido, na instância administrativa, a desconstituição ou cancelamento da autuação fiscal, justificando a conduta do magistrado à luz dos princípios da inafastabilidade da jurisdição, da verdade real e da livre convicção, o que não configura invasão à seara reservada à autoridade administrativa.[12] Harada, em artigo sobre o tema, afirma que, se a intenção da Corte Suprema era a de impedir a apresentação de denúncia em tais crimes, antes do encerramento do processo administrativo, a súmula não cumprirá seu fim, eis que inexiste em nosso ordenamento a figura do “lançamento provisório” e que o crédito reputa-se definitivamente constituído com a notificação do lançamento referido no art. 142, do CTN. Assim, depois de consumada a notificação, pode até ter lugar procedimento administrativo tendente a infirmar ou invalidar o lançamento, mas este estará irremediavelmente feito pela autoridade competente.[13] 5 – Conclusão A interconexão entre processo administrativo e a atuação do Ministério Público em   sede de crimes contra a ordem tributária varia, dependendo do ponto de vista que se adote no que tange, principalmente, à natureza do lançamento: declaratória em relação à obrigação tributária e constitutiva em relação ao crédito tributário (posição tradicional) e meramente declaratória em relação a ambos – obrigação e crédito tributários. Não obstante isso, há que se ter em mente a edição do verbete de Súmula Vinculante n. 24, ao qual já são endereçadas algumas críticas, focadas na expressão “lançamento definitivo”, que remetem à concepção meramente declaratória do lançamento.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-81/apontamentos-sobre-a-autonomia-das-esferas-administrativa-e-processual-penal-na-apuracao-dos-crimes-contra-a-ordem-tributaria/
Princípios constitucionais à luz do Direito Processual Penal brasileiro
O direito se expressa por meio de normas, sendo que tais normas se exprimem por meio de regras ou princípios. As regras disciplinam uma determinada situação, onde, quando ocorre essa situação, a norma tem incidência, e, quando não ocorre, não tem incidência. Quando duas regras colidem, fala-se em conflito, sendo que, ao caso concreto uma só será aplicável. O conflito entre regras deve ser resolvido pelos meios clássicos de interpretação: a lei especial derroga a lei geral, a lei posterior afasta a anterior, etc. Princípios são definidos como sendo, as diretrizes gerais de um ordenamento jurídico ou de parte dele. Seu campo de incidência é muito mais amplo que o das regras, podendo, entre eles haver colisão, não conflito, e, quando colidem, não se excluem. Em sendo mandados de otimização sempre poderão ter sua incidência em casos concretos, às vezes, concomitantemente dois ou mais deles. A diferença vital entre as regras e os princípios, está na questão de a regra cuidar dos casos concretos, como por exemplo, o inquérito policial que destina a apurar a infração penal e sua autoria, conforme dispõe o artigo 4º do Código de Processo Penal Brasileiro. Em razão da função fundamentadora dos princípios, é certo que outras normas jurídicas neles encontram o seu fundamento de validade. O artigo 261 do Código de Processo Penal Brasileiro que garante a necessidade de defensor ao acusado tem por fundamento os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório, da igualdade, entre outros. Quando da decisão, o juiz valer-se-á da interpretação extensiva, da aplicação analógica bem como do suplemento dos princípios gerais de direito (Código de Processo Penal Brasileiro, artigo 3º). Levando em consideração que a lei processual penal admite interpretação extensiva, aplicação analógica bem como o suplemento dos princípios gerais de direito, em não havendo regra específica regente do caso, torna-se possível solucioná-lo somente com a invocação de um princípio.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO Apesar de não haver hierarquia entre os princípios que norteiam as diretrizes gerais do ordenamento jurídico, pode-se dizer que gozam de supremacia, de forma incontestável, os constitucionais, apresentando-se como exemplos: o princípio da ampla defesa (Constituição da República Federativa do Brasil/88, artigo 5º, inciso LV), do contraditório (Constituição da República Federativa do Brasil/88, artigo 5º, inciso LV), da presunção de inocência (Constituição da República Federativa do Brasil/88, artigo 5º, inciso LVII). Também existem princípios provenientes de regras internacionais, como por exemplo, o princípio do duplo grau de jurisdição, que está contemplado na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), artigo 8º, inciso II, alínea “h”. 1. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA Destaca GRECO FILHO (1999) a respeito do princípio da ampla defesa, como fundamentos principais deste: “a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) possuir defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133 [CF/88]); e, e) poder recorrer da decisão desfavorável.” De forma contundente, afirma o autor mencionado que a ampla defesa é o cerne ao redor do qual se desenvolve o processo penal, não se tratando de mero direito, mas de uma dupla garantia, sendo elas: do acusado e do justo processo. Salienta-se, ainda, que o princípio constitucional da ampla defesa, expressamente previsto no artigo 5°, inciso LV, da Constituição da República Federativa do Brasil/88, que assegura aos “litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, não se confunde com a plenitude de defesa, instituto consagrado no artigo 5°, inciso XXXVIII, alínea “a”, da Constituição da República Federativa do Brasil/88, dispositivo este, citado logo abaixo. Esta, na verdade, encontra-se dentro do princípio maior da ampla defesa, consubstanciando-se na garantia da apreciação de todas as teses e argumentos despendidos aos jurados e também ao magistrado. Verifica-se também, que o princípio da ampla defesa tem reflexos importantes dentro do direito processual penal, orientando a aplicação das regras infraconstitucionais objetivando o fiel respeito e salvaguarda dos preceitos fundamentais assegurados pela Constituição da República Federativa do Brasil/88. Todavia, ressalta-se que a garantia ao direito de defesa teve uma importante inovação trazida ao ordenamento jurídico pátrio através da Lei n° 9.271 de 17 de abril de 1996, que alterou os artigos 366 e 368 do Código de Processo Penal Brasileiro, representando o fim da visão tradicional de que o acusado poderia ser condenado à revelia, prestigiando a atuação efetiva e concreta do contraditório e da ampla defesa. 2. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO A Constituição da República Federativa do Brasil/88 consagrou em seu artigo 5°, inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes, pois garante a ampla defesa do acusado”. Tal princípio, sendo uma garantia fundamental, deve ser permitido a ambas as partes, sendo assim, caberá igual direito à outra parte de discordar, aceitar ou simplesmente modificar os fatos e o direito alegado pelo autor, de acordo com o que lhe for mais conveniente. O princípio do contraditório, previsto no artigo 5º, inciso LV da Constituição da República Federativa do Brasil/88, leva em conta a igualdade de oportunidade entre as partes de apresentar argumentações e provas e de contradizê-las perante um juízo. É este procedimento dialético entre as partes interessadas que dá fundamento ao processo. O contraditório garante a imparcialidade do juiz perante a causa que também deve exercê-la na preparação do julgamento. Em razão de refletir garantia de imparcialidade do juiz na valoração daquilo que foi dialeticamente trazido ao processo, o contraditório é tido entre as garantias fundamentais de um processo justo. Ensina GOMES FILHO (1997) que o processo feito sob contraditório possui característica político-ideológica, em decorrência de propiciar ao acusado, e, também ao acusador, a participação nas atividades de preparação da sentença, refletindo, assim, a adesão do grupo social. Este princípio cumpre com a sua função social, pois, legitima a decisão a ser tomada porque na maioria dos casos, litigantes, na esperança de influenciar o resultado do processo, aceitam o compromisso de participar e acatar a decisão dada pelo Estado. O princípio do contraditório tem seu primeiro momento de atuação quando na citação ou em atos homólogos a ela, pela informação à parte dos atos praticados pelo seu contendor. É através do conhecimento dos atos e manifestações da parte contrária que o interessado poderá contrariá-los, tratando-se, portanto, de exigência prévia para o exercício de atividades processuais. Será pelo exercício da reação, compreendida como a manifestação da contrariedade dos atos praticados pelo seu adversário, que se terá o segundo momento da atuação do princípio do contraditório. Ao se levar em conta a existência no sistema acusatório de uma fase pré-processual de caráter inquisitório, executada por repartição não judicial e consubstanciada no inquérito policial, não temos restrições ao exercício do contraditório processual exigido constitucionalmente. As funções de instrução preparatória no Brasil são desenvolvidas pela polícia judiciária com a realização do inquérito, que não é secreto, e, onde a investigação preliminar e a instrução probatória são secretas e não contraditórias. 3. PRINCÍPIO DA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES Ressalta CANOTILHO (1999) que a fundamentação das decisões judiciais constitui-se em um princípio jurídico-organizatório e funcional da teoria do constitucionalismo. A motivação judicial tem como pilar o trinômio: controle da justiça, racionalidade objetiva e delimitação do objeto a ser eventualmente impugnado. Nas palavras do autor: a exigência de fundamentação das decisões judiciais ou da “motivação de sentenças” radica em três razões fundamentais: (1) controle da administração da justiça; (2) exclusão do caráter voluntarístico e subjetivo do exercício da atividade jurisdicional e abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos juízes; (3) melhor estruturação dos eventuais recursos, permitindo às partes, em juízo um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas. De acordo com o mesmo autor citado anteriormente, a decisão terá por compromisso atender a exclusão do caráter voluntarístico e subjetivo do exercício da atividade jurisdicional, e, abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos magistrados. Já o objeto definido pela motivação especificará os limites e o campo de abrangência que incidirá o instrumento recursal. Através da racionalidade exposta, as partes tomam conhecimento da atividade jurisdicional, onde, eventualmente podem buscar a reforma impugnando fundamentos jurídicos ou nulidades existentes. Ressalta-se ainda, que a motivação das decisões judiciais é uma garantia constitucional importantíssima para a ocorrência de um eficaz controle da justiça. Diversas são as garantias asseguradas pela motivação das decisões judiciais, sendo que dentre elas, pode-se citar: o controle da administração da justiça, o controle de racionalidade do juiz ao decidir, e, a eventual delimitação do objeto de impugnação, podendo ser, considerado o principal parâmetro, tanto da legitimação interna ou jurídica, quanto da externa ou democrática da função judiciária. No Brasil, o sistema de apreciação de provas utilizado é o do livre convencimento motivado, onde, o magistrado detém autonomia para conferir às provas que lhe são trazidas durante o processo, a carga que acreditar ser conveniente. Tal sistema contrapõe-se ao da prova tarifada, sendo que este último atribui à lei a carga específica para cada prova, todavia, o sistema da prova tarifada se mostrou inviável por favorecer práticas desfavoráveis ao sujeito passivo do processo penal. E, finalizando, pode-se dizer que o princípio das fundamentações das decisões, aliado ao princípio da publicidade, proporcionará ao jurisdicionado o mais amplo exercício de princípios, tais como: o do contraditório e a da ampla defesa. 4. PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ O princípio da imparcialidade do juiz se apresenta tanto no processo penal quanto no processo civil, justificando-se pela própria essência da função jurisdicional, que é a de dar a cada um, o que é seu, o que estaria profundamente prejudicado se exercido por um órgão estatal parcial. A imparcialidade pressupõe a independência do juiz, razão pela qual a Constituição da República Federativa do Brasil/88, em seu artigo 95, citado abaixo, lhe assegurou algumas prerrogativas basilares, objetivando evitar que ele venha a sofrer qualquer tipo de influências ou coações, sendo elas: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio.  “Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias: I – vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado; II – inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII; III – irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005) Destaca-se que a vitaliciedade é adquirida, em primeiro grau de jurisdição, após dois anos de exercício da magistratura, período este, em que o magistrado só perderá o cargo por decisão do tribunal ao qual estiver vinculado. E, vencido o período do estágio probatório, o juiz só perderá o cargo por sentença judicial transitada em julgado. Já a prerrogativa da inamovibilidade se define como sendo a impossibilidade de remoção compulsória do magistrado da comarca ou seção judiciária em que atua, salvo, por motivo de interesse público ou através de uma decisão proferida por votos de dois terços dos membros do tribunal respectivo, sendo assegurado sempre à ampla defesa. E, a irredutibilidade de subsídios objetiva resguardar a segurança financeira do magistrado, evitando com isso, que ele seja passível de sofrer qualquer ameaça no sentido de se ver obrigado a atuar de determinada forma, afim de que não corra o risco de não perceber seus subsídios. Com relação às prerrogativas concedidas aos magistrados, citada acima, que objetivam garantir sua imparcialidade, o legislador ordinário, prevendo a ocorrência de um possível desrespeito a tais normas definiu situações em que o magistrado estaria impedido de atuar em determinadas causas, justamente pela ausência de capacidade subjetiva. Desta forma, com o intuito de assegurar a devida aplicação do princípio da imparcialidade do órgão julgador, o Código de Processo Penal Brasileiro, em seus Artigos 252, 253 e 254, relacionados abaixo, estabeleceu causas de impedimento e suspeição dos magistrados que em sendo confirmadas, poderão impedi-los de atuar no processo. “Art. 252.  O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que: I – tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito; II – ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha; III – tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão; IV – ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito. Art. 253.  Nos juízos coletivos, não poderão servir no mesmo processo os juízes que forem entre si parentes, consangüíneos ou afins, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive. Art. 254.  O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes: I – se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles; II – se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia; III – se ele, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes; IV – se tiver aconselhado qualquer das partes; V – se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes; Vl – se for sócio, acionista ou administrador de sociedade  interessada no processo.” (BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso: 15 de novembro de 2008) O impedimento é caracterizado como sendo a mais grave das causas, e, configura-se como sendo uma ligação direta do magistrado com o processo em análise, como por exemplo, nas situações em que seu cônjuge tiver atuado no processo, ou, quando ele mesmo tiver atuado como juiz da causa em outra instância, ou, quando ele ou outro familiar for parte, ou, tiver interesse direto na demanda processual. Em havendo alguma das causas de impedimento, o magistrado deverá espontaneamente se afastar do processo, e, se não for tomada tal atitude, qualquer das partes processuais poderá argüir o impedimento, e, se restar devidamente comprovado, será dado seu imediato afastamento. Já a suspeição, mesmo não sendo tão grave quanto o impedimento, também acaba por interferir na imparcialidade do juiz, e, por este motivo, poderá ser argüida pelo próprio juiz, e, se este não o fizer, poderá ocorrer a recusado deste, por qualquer das partes. E, a suspeição se apresenta quando, por exemplo, o magistrado é amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes, ou, também, quando houver orientado as partes, ou, mesmo quando for credor ou devedor do autor ou do réu. 5. PRINCÍPIO DA INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS OBTIDAS POR MEIOS ILÍCITOS A Constituição da República Federativa do Brasil/88 vedou de forma expressa a utilização no processo, de provas originadas por meios ilícitos, consoante o disposto no inciso LVI de seu artigo 5º, sendo que tal vedação é proveniente da observância do princípio da dignidade da pessoa humana, que deve sobrepor à atuação estatal, limitando, dessa forma, a persecução penal.  “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[…] LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005) Salienta-se que não há uma regra específica no sentido da inadmissibilidade de provas ilegais no ordenamento jurídico pátrio, sendo, tal proibição proveniente da importação da regra do direito americano, conhecida pela expressão fruits of the poisonous tree (frutos da árvore envenenada). Todavia, menciona-se que a vedação quanto à utilização das provas ilegais no processo, vem sendo atenuada, em decorrência da aplicação da teoria da proporcionalidade ou da ponderação de interesses, onde, deve prevalecer o princípio que for mais apropriado ao caso concreto. Contudo, em sendo a prova ilegal produzida com o fim de resguardar outro bem protegido pela Constituição da República Federativa do Brasil/88, de maior valor que este, não haverá restrição quanto à sua utilização. Afirma-se que a teoria anteriormente mencionada, tem admitido a utilização, no processo, de provas ilegais que sejam favoráveis ao acusado, desde que sejam indispensáveis ao caso e tenham sido produzidas pelo próprio interessado. No presente contexto, a ilegalidade da prova seria excluída pela legítima defesa do acusado, sendo, isto, causa excludente de antijuridicidade. Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil/88, algumas condutas foram consideradas incompatíveis quanto à prova, principalmente, em face do disposto em seu artigo 5º, inciso LVI. Nesse sentido, uma busca e apreensão ao arrepio da lei, uma audição de conversa privada por interferência mecânica de telefone, gravadores, uma interceptação telefônica, uma fotografia de pessoa ou pessoas em seu círculo íntimo, uma confissão obtida por meios condenáveis, como o famoso “pau de arara”, e, enfim, qualquer prova oriunda de meios ilícitos, seja afrontando à Constituição, seja desrespeitando o direito material ou processual, não será em juízo admitida. Tudo isso, reflete uma demonstração de respeito, não só à dignidade humana, mas, também, à seriedade da justiça e ao ordenamento jurídico nacional. 6. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA O artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil/88 assegura que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, elevando, dessa forma, o princípio da presunção de inocência a dogma constitucional. O princípio da presunção de inocência preconiza que a liberdade do acusado somente poderá ser restringida antes da sentença definitiva, através de medida cautelar que se faça efetivamente necessária, cabendo ao órgão acusador o dever de comprovar a culpabilidade do acusado, sendo que este não tem o dever de provar sua inocência. Ao prolatar a sentença condenatória, o magistrado deve estar convicto de que o acusado foi o autor do delito em questão, e, na ocorrência de dúvidas quanto à sua responsabilidade, o magistrado deverá absolver o réu. No caso em tela, apresenta-se o princípio do in dubio pro reo (na dúvida, deve-se decidir favoravelmente ao réu), onde, na ausência de provas suficientes para dirimir qualquer dúvida a respeito da autoria do delito, o magistrado terá a obrigação de prolatar sentença absolutória a favor do acusado, na forma do artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal Brasileiro. Frente ao exposto, ressalta-se que o Estado tem o dever de provar os fatos criminais pertencentes ao indivíduo, sendo que, em havendo dúvida, o magistrado absolverá o réu, sob pena de exercício arbitrário de poder. Salienta-se ainda, que o princípio da presunção de inocência constitucionalmente assegurado poderá ser afastado pelas provas geradas ao longo do devido processo legal, sempre sob o manto do contraditório, e, da ampla defesa. 7. PRINCÍPIO DA VERDADE REAL O processo penal não deve encontrar limites na forma ou na iniciativa das partes, ao contrário, impõe-se-lhe como objetivo principal a busca e o descobrimento da verdade real, material, cabendo ao magistrado verificar além dos parâmetros artificiais da verdade formal, com o intuito primordial de fazer valer a função punitiva para aquele que realmente tenha sido o responsável pelo ilícito penal. O princípio da verdade real também é utilizado no processo civil, entretanto, no processo penal, considerando que os direitos são indisponíveis, observa-se a supremacia do interesse público sobre a autonomia privada, o que, por si só caracteriza motivação suficiente para o predomínio do sistema da livre investigação das provas. Dentro desse contexto, o magistrado tem o dever de prosseguir com o processo quando da inércia da parte, determinando a realização de todas aquelas provas que forem necessárias à instrução da causa, e, também, conhecer de circunstâncias sem a necessidade de provocação das partes, almejando sempre esclarecer a verdade real. Ao se reproduzir a verdade no processo penal busca-se a escolha das melhores provas em matéria criminal, salientando, que o magistrado não poderá ater-se somente aquelas originadas pelas partes, salvo se estas se apresentarem como sendo as mais pertinentes ao caso concreto. A verdade real no processo penal é determinada pelo interesse público, presente tanto nas ações penais públicas quanto nas privadas, pois, para o exercício do poder de punir por parte do Estado, é necessário que a verdade dos fatos, seja efetivamente alcançada, sob pena da ocorrência de muitas injustiças. Portanto, a verdade real, analisada em termos processuais, não representa a verdade absoluta, mas, deve ser compreendida como a verdade processual mais próxima possível da realidade. Considerações Finais Os princípios constitucionais aludidos neste artigo são basilares quando aplicados propriamente ao Direito Processual Penal Brasileiro, sendo caracterizado como as diretrizes norteadoras da funcionalidade jurídica. A aplicação justa, coerente e legal de tais princípios conduzirá a tão indispensável inviolabilidade preconizada pelos direitos individuais dos cidadãos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-81/principios-constitucionais-a-luz-do-direito-processual-penal-brasileiro/
Apontamentos sobre a autonomia das esferas administrativa e processual penal na apuração dos crimes contra a ordem tributária
Este trabalho traz uma breve a abordagem da autonomia entre as esferas administrativa e processual penal no que diz respeito ao oferecimento de denúncia em tema de crimes contra a ordem tributária, tendo como ponto de partida a discussão sobre a origem comum ou não da obrigação e do crédito tributário.
Direito Processual Penal
1 – Introdução  É antigo na doutrina e na jurisprudência o debate acerca da interconexão entre o procedimento administrativo para acertamento de lançamento tributário e a atuação do órgão do Ministério Público nas ações penais em tema de crimes contra a ordem tributária, notadamente frente à autonomia de ambas as instâncias – administrativa e penal. Já se cogitou considerar o “lançamento definitivo” como condição de procedibilidade. Hodiernamente, defende-se, entre outras argumentações, que seja condição objetiva de punibilidade, elemento normativo do tipo ou justa causa para a instauração da ação penal. Como se infere, é assunto que demanda profundas reflexões, especialmente à vista da Súmula Vinculante n. 24. 2 – Do Procedimento Administrativo O ordenamento jurídico brasileiro, ao garantir a todos o devido processo legal, com seus consectários do contraditório e da ampla defesa, não se limitou à esfera judicial, antes, expressamente o estendeu ao âmbito administrativo (art. 5º, LIV e LV, CF/88). Sendo o lançamento o ato tendente a tornar líquida e certa a obrigação tributária, a qual nasce com a concretização do fato abstratamente previsto na norma, desde logo se vislumbra que a partir dele pode ter lugar um procedimento (tributário) e administrativo, tendente à sua discussão. Tal procedimento pode culminar com a confirmação do lançamento, como também pode declará-lo nulo ou inexato, podendo ser acertado, neste último caso, o valor em relação àquele inicialmente apurado. Só ao final do procedimento administrativo ter-se-á então o crédito tributário definitivamente constituído e apto a ser exigido do contribuinte ou responsável, o qual pode satisfazê-lo espontaneamente, manter-se inerte (conduta que fatalmente acarretará a inscrição do crédito em dívida ativa e o ajuizamento de execução fiscal contra si) ou, então, submeter o caso ao crivo do Judiciário.[1] Esse é o entendimento da doutrina mais tradicional, apegada à dicotomia entre obrigação e crédito tributário. Para outra corrente, no entanto, a despeito de o Código Tributário prescrever que o lançamento é o ato tendente a constituir o crédito tributário, na verdade, este nasce no mesmo momento em que a obrigação tributária. Confira-se a lição de Silva:[2] “Cabe esclarecer, porém, que a doutrina mais moderna tem refutado tal distinção, salientando que tanto a obrigação quanto o crédito tributário ingressam no mundo jurídico simultaneamente, no momento em que o contribuinte pratica um determinado ato do mundo fenomênico apto a acarretar o surgimento de um correspectivo dever fiscal ( = fato gerador).” Ato contínuo, o mesmo autor faz referência ao magistério de Torres:[3] “O CTN diz, no art. 113, § 1º, que a obrigação tributária “extingue-se juntamente com o crédito tributário”. A obrigação e o crédito não só se extinguem como também nascem conjuntamente. Nada obstante, o Código reserva o termo “crédito” à obrigação que adquire concretitude ou visibilidade e passa por diferentes graus de exigibilidade. (…)  A técnica utilizada pelo Código deve ser empregada com cautela, pois obrigação e crédito não se distinguem em sua essência, como declara o próprio CTN no art. 139: O crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza deste. (…) A distinção que por vezes faz o CTN deve ser entendida no sentido didático. Embora o crédito se constitua juntamente com a obrigação pela ocorrência do fato gerador, recebe ele graus diversos de transparência  concretitude (sic), na medida em que seja objeto de lançamento, de decisão administrativa definitiva ou de inscrição nos livros da dívida ativa. O crédito tributário passa por diferentes momentos de eficácia: de crédito simplesmente constituído (pela ocorrência do fato gerador) torna-se crédito exigível (pelo lançamento modificado ou pela decisão administrativa definitiva) e finalmente crédito exeqüível (pela inscrição nos livros da dívida ativa), dotado de liquidez e certeza.” (destaques do autor e grifos nossos) 3 – Do Processo Penal   O processo penal, por sua vez, visa essencialmente dar concreção ao Direito Penal, ultima ratio, através da determinação do delito e da imposição da pena, legalmente prevista. Neste sentido, a lição de Lima:[4] “Mas o Direito Penal é despido de coerção direta e, ao contrário do Direito Privado, não tem atuação nem realidade concreta fora do processo correspondente. Para que possa ser aplicada uma pena, não só é necessário que exista um injusto típico, mas também que exista previamente o devido processo penal. […] Existe uma íntima e imprescindível relação entre delito, pena e processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena.” Para cumprir sua finalidade, todavia, o processo penal deve nortear-se por todas as garantias previstas constitucionalmente (especialmente configuradas no art. 5º e seus incisos), mesmo porque, desde que o Estado de Direito avocou a si o direito (e o consequente dever) de fazer justiça, deve fazê-lo dentro de limites constitucionalmente traçados. Assim é que o moderno Processo Penal prima por seu caráter instrumental em relação ao Direito Penal (o que não configura nenhum demérito, porque este sem aquele também nada seria, nem poderia) e garantista. Uma característica marcante o distingue do processo civil: a busca pela verdade material. 4 – Dos Crimes contra a Ordem Tributária Antes da tipificação dos crimes contra a ordem tributária pela Lei n. 8.137/90, a Lei n. 4.729/65, revogada por aquela, já tratava de crimes de sonegação fiscal. A grande diferença entre ambas é que nesta os crimes eram de mera conduta, os quais se aperfeiçoavam independentemente de resultado lesivo, enquanto que na primeira, pelo menos os crimes tipificados em seu art. 1º, são de resultado, emergindo tal conclusão do núcleo do tipo “suprimir ou reduzir tributo”. Na lição de Souza:[5] “Dessa classificação dos crimes advém conseqüências jurídico-penais de suma importância: na classificação entre crimes formais e materiais, leva-se em consideração o momento consumativo do delito; na distinção entre crimes de dano, ou de perigo, leva-se em consideração o resultado da ação delituosa. Dessa distinção decorre que os crimes materiais, ou de dano, só se consumam com a efetiva produção do resultado previsto no tipo e efetiva lesão ao bem jurídico protegido. Tendo em vista a definição legal dos crimes contra a ordem tributária (supressão ou redução de tributos), eles só se consumam com a efetiva produção desse resultado. E, logicamente, só se pode falar em supressão ou redução do tributo após o término do procedimento administrativo, que culmina com o lançamento, atividade privativa das autoridades fazendárias. Bem se pode concluir pela existência de uma relação de interdependência das instâncias penais e administrativas no concernente à verificação dos crimes contra a ordem tributária. Se, ao tempo da Lei 4729/65 bastava tão somente a realização de uma das condutas previstas na lei, agora, tal já não basta para que se tenha por caracterizado o delito; é preciso que além das condutas típicas, se produza o resultado lesivo ao erário público, é necessária a comprovação efetiva do dano ao erário público: a supressão ou redução do tributo.” Pois bem. O art. 83, da Lei n. 9.430/96, por sua vez, prescreve: “Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a existência fiscal do crédito tributário correspondente. Parágrafo único. As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos policiais e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz.” Por outro lado, também o art. 15, da Lei n. 8.137/90, continua a determinar que a ação penal por delitos contra a ordem tributária é de natureza pública incondicionada. Segundo Souza, a representação tratada no art. 83, da Lei n. 9.430/96, nada tem que ver com o instituto da “representação” previsto no Código Penal ou Código de Processo Penal, como condição de procedibilidade, no sentido de condicionar a propositura da ação penal à representação do ofendido. Deve ser interpretado no sentido de notitia criminis, porque não é razoável que seja oferecida denúncia em desfavor de alguém pelo cometimento de crime contra a ordem tributária, quando é elemento normativo do tipo o vocábulo “tributo”, o qual só pode ser considerado suprimido ou reduzido depois de o crédito tributário estar definitivamente constituído na esfera administrativa, o que, normalmente, só ocorre após o fim do procedimento administrativo. [6] Observe-se que tal autor se filia à corrente tradicional do Direito Tributário, segundo a qual obrigação e crédito tributário têm momentos distintos de nascimento. Outro é o entendimento de Silva, o qual, após discorrer brevemente sobre o julgamento da ADI 1.571-MC (rel. Min. Néri da Silveira, DJU de 25.9.98), em que ficou assentado que o exaurimento da instância administrativa não constitui condição de procedibilidade da ação penal, ainda que a exigibilidade da exação fiscal esteja pendente em face de recurso interposto pelo contribuinte na esfera administrativa, teceu críticas ao posicionamento do Min. Sepúlveda Pertence no julgamento do HC 81.611/DF, em que este proferiu voto no sentido de que a decisão definitiva do processo administrativo, nos casos dos crimes tipificados no art. 1º, da Lei n. 8.137/90, consubstancia uma condição objetiva de punibilidade, sem a qual a denúncia deve ser rejeitada, uma vez que apenas a autoridade administrativa fiscal tem competência para constituir o crédito tributário, cuja existência ou montante só restam configurados após a decisão final do processo administrativo.[7] Ainda segundo tal autor, não obstante a natureza material dos delitos tipificados no art. 1º, da Lei n. 8.137/90, não se pode confundir a consumação do crime tributário, que ocorre com o vencimento do prazo previsto para recolhimento do tributo, com o exaurimento do crime, no que se incluem os atos de constituição (lançamento) e análogos (de fiscalização).[8] Aduz ainda que “punibilidade não é requisito (ou elemento) do delito, mas a sua consequência jurídica” e que, além de não integrar a estrutura do tipo, do injusto e da culpabilidade, também não está coberta pelo dolo ou culpa do agente, de modo a não se poder condicionar o oferecimento da denúncia pelo órgão do Ministério Público ao fim do processo administrativo.[9] E continua:[10] “De fato, se a efetiva exigibilidade do tributo espelhada no auto de infração ainda encontra-se sob o crivo da administração tributária, face à pendência de recurso interposto pelo contribuinte, é possível que, em determinada situação específica, qual seja, quando houver a impugnação do nascimento do fato gerador da obrigação tributária, o resultado da decisão administrativa definitiva afete o tipo de injusto, vinculando, por conseguinte, o teor da sentença penal no sentido da não-caracterização do ilícito penal tributário. Nessa situação particular, em que o conteúdo da decisão definitiva da instância administrativa possui aptidão para esvaziar o conteúdo do tipo de injusto, caso seja reconhecida a pretensão do contribuinte, forçoso concluir que ela não pode ser tida como condição objetiva de punibilidade, mas sim como elemento integrante do tipo penal tributário, uma vez que estará ausente a efetiva supressão ou redução do tributo estampada no auto de infração.” (destaques nossos.) Pugna, então, pelo reconhecimento da quebra da autonomia entre as esferas penal e administrativa, em certas circunstâncias, encaminhando a solução do problema para a disciplina das questões prejudiciais heterogêneas (arts. 92 e 93, do CPP).[11] Obtempera, por fim, que isso só ocorrerá se e quando, “no curso do processo criminal, não for possível a produção de outras provas comprobatórias do aperfeiçoamento do ilícito penal tributário”, o que significa dizer que admite a prolação de sentença condenatória mesmo que tenha havido, na instância administrativa, a desconstituição ou cancelamento da autuação fiscal, justificando a conduta do magistrado à luz dos princípios da inafastabilidade da jurisdição, da verdade real e da livre convicção, o que não configura invasão à seara reservada à autoridade administrativa.[12] Harada, em artigo sobre o tema, afirma que, se a intenção da Corte Suprema era a de impedir a apresentação de denúncia em tais crimes, antes do encerramento do processo administrativo, a súmula não cumprirá seu fim, eis que inexiste em nosso ordenamento a figura do “lançamento provisório” e que o crédito reputa-se definitivamente constituído com a notificação do lançamento referido no art. 142, do CTN. Assim, depois de consumada a notificação, pode até ter lugar procedimento administrativo tendente a infirmar ou invalidar o lançamento, mas este estará irremediavelmente feito pela autoridade competente.[13] 5 – Conclusão A interconexão entre processo administrativo e a atuação do Ministério Público em   sede de crimes contra a ordem tributária varia, dependendo do ponto de vista que se adote no que tange, principalmente, à natureza do lançamento: declaratória em relação à obrigação tributária e constitutiva em relação ao crédito tributário (posição tradicional) e meramente declaratória em relação a ambos – obrigação e crédito tributários. Não obstante isso, há que se ter em mente a edição do verbete de Súmula Vinculante n. 24, ao qual já são endereçadas algumas críticas, focadas na expressão “lançamento definitivo”, que remetem à concepção meramente declaratória do lançamento.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-81/apontamentos-sobre-a-autonomia-das-esferas-administrativa-e-processual-penal-na-apuracao-dos-crimes-contra-a-ordem-tributaria/
Princípios constitucionais à luz do Direito Processual Penal brasileiro
O direito se expressa por meio de normas, sendo que tais normas se exprimem por meio de regras ou princípios. As regras disciplinam uma determinada situação, onde, quando ocorre essa situação, a norma tem incidência, e, quando não ocorre, não tem incidência. Quando duas regras colidem, fala-se em conflito, sendo que, ao caso concreto uma só será aplicável. O conflito entre regras deve ser resolvido pelos meios clássicos de interpretação: a lei especial derroga a lei geral, a lei posterior afasta a anterior, etc. Princípios são definidos como sendo, as diretrizes gerais de um ordenamento jurídico ou de parte dele. Seu campo de incidência é muito mais amplo que o das regras, podendo, entre eles haver colisão, não conflito, e, quando colidem, não se excluem. Em sendo mandados de otimização sempre poderão ter sua incidência em casos concretos, às vezes, concomitantemente dois ou mais deles. A diferença vital entre as regras e os princípios, está na questão de a regra cuidar dos casos concretos, como por exemplo, o inquérito policial que destina a apurar a infração penal e sua autoria, conforme dispõe o artigo 4º do Código de Processo Penal Brasileiro. Em razão da função fundamentadora dos princípios, é certo que outras normas jurídicas neles encontram o seu fundamento de validade. O artigo 261 do Código de Processo Penal Brasileiro que garante a necessidade de defensor ao acusado tem por fundamento os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório, da igualdade, entre outros. Quando da decisão, o juiz valer-se-á da interpretação extensiva, da aplicação analógica bem como do suplemento dos princípios gerais de direito (Código de Processo Penal Brasileiro, artigo 3º). Levando em consideração que a lei processual penal admite interpretação extensiva, aplicação analógica bem como o suplemento dos princípios gerais de direito, em não havendo regra específica regente do caso, torna-se possível solucioná-lo somente com a invocação de um princípio.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO Apesar de não haver hierarquia entre os princípios que norteiam as diretrizes gerais do ordenamento jurídico, pode-se dizer que gozam de supremacia, de forma incontestável, os constitucionais, apresentando-se como exemplos: o princípio da ampla defesa (Constituição da República Federativa do Brasil/88, artigo 5º, inciso LV), do contraditório (Constituição da República Federativa do Brasil/88, artigo 5º, inciso LV), da presunção de inocência (Constituição da República Federativa do Brasil/88, artigo 5º, inciso LVII). Também existem princípios provenientes de regras internacionais, como por exemplo, o princípio do duplo grau de jurisdição, que está contemplado na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), artigo 8º, inciso II, alínea “h”. 1. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA Destaca GRECO FILHO (1999) a respeito do princípio da ampla defesa, como fundamentos principais deste: “a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) possuir defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133 [CF/88]); e, e) poder recorrer da decisão desfavorável.” De forma contundente, afirma o autor mencionado que a ampla defesa é o cerne ao redor do qual se desenvolve o processo penal, não se tratando de mero direito, mas de uma dupla garantia, sendo elas: do acusado e do justo processo. Salienta-se, ainda, que o princípio constitucional da ampla defesa, expressamente previsto no artigo 5°, inciso LV, da Constituição da República Federativa do Brasil/88, que assegura aos “litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, não se confunde com a plenitude de defesa, instituto consagrado no artigo 5°, inciso XXXVIII, alínea “a”, da Constituição da República Federativa do Brasil/88, dispositivo este, citado logo abaixo. Esta, na verdade, encontra-se dentro do princípio maior da ampla defesa, consubstanciando-se na garantia da apreciação de todas as teses e argumentos despendidos aos jurados e também ao magistrado. Verifica-se também, que o princípio da ampla defesa tem reflexos importantes dentro do direito processual penal, orientando a aplicação das regras infraconstitucionais objetivando o fiel respeito e salvaguarda dos preceitos fundamentais assegurados pela Constituição da República Federativa do Brasil/88. Todavia, ressalta-se que a garantia ao direito de defesa teve uma importante inovação trazida ao ordenamento jurídico pátrio através da Lei n° 9.271 de 17 de abril de 1996, que alterou os artigos 366 e 368 do Código de Processo Penal Brasileiro, representando o fim da visão tradicional de que o acusado poderia ser condenado à revelia, prestigiando a atuação efetiva e concreta do contraditório e da ampla defesa. 2. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO A Constituição da República Federativa do Brasil/88 consagrou em seu artigo 5°, inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes, pois garante a ampla defesa do acusado”. Tal princípio, sendo uma garantia fundamental, deve ser permitido a ambas as partes, sendo assim, caberá igual direito à outra parte de discordar, aceitar ou simplesmente modificar os fatos e o direito alegado pelo autor, de acordo com o que lhe for mais conveniente. O princípio do contraditório, previsto no artigo 5º, inciso LV da Constituição da República Federativa do Brasil/88, leva em conta a igualdade de oportunidade entre as partes de apresentar argumentações e provas e de contradizê-las perante um juízo. É este procedimento dialético entre as partes interessadas que dá fundamento ao processo. O contraditório garante a imparcialidade do juiz perante a causa que também deve exercê-la na preparação do julgamento. Em razão de refletir garantia de imparcialidade do juiz na valoração daquilo que foi dialeticamente trazido ao processo, o contraditório é tido entre as garantias fundamentais de um processo justo. Ensina GOMES FILHO (1997) que o processo feito sob contraditório possui característica político-ideológica, em decorrência de propiciar ao acusado, e, também ao acusador, a participação nas atividades de preparação da sentença, refletindo, assim, a adesão do grupo social. Este princípio cumpre com a sua função social, pois, legitima a decisão a ser tomada porque na maioria dos casos, litigantes, na esperança de influenciar o resultado do processo, aceitam o compromisso de participar e acatar a decisão dada pelo Estado. O princípio do contraditório tem seu primeiro momento de atuação quando na citação ou em atos homólogos a ela, pela informação à parte dos atos praticados pelo seu contendor. É através do conhecimento dos atos e manifestações da parte contrária que o interessado poderá contrariá-los, tratando-se, portanto, de exigência prévia para o exercício de atividades processuais. Será pelo exercício da reação, compreendida como a manifestação da contrariedade dos atos praticados pelo seu adversário, que se terá o segundo momento da atuação do princípio do contraditório. Ao se levar em conta a existência no sistema acusatório de uma fase pré-processual de caráter inquisitório, executada por repartição não judicial e consubstanciada no inquérito policial, não temos restrições ao exercício do contraditório processual exigido constitucionalmente. As funções de instrução preparatória no Brasil são desenvolvidas pela polícia judiciária com a realização do inquérito, que não é secreto, e, onde a investigação preliminar e a instrução probatória são secretas e não contraditórias. 3. PRINCÍPIO DA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES Ressalta CANOTILHO (1999) que a fundamentação das decisões judiciais constitui-se em um princípio jurídico-organizatório e funcional da teoria do constitucionalismo. A motivação judicial tem como pilar o trinômio: controle da justiça, racionalidade objetiva e delimitação do objeto a ser eventualmente impugnado. Nas palavras do autor: a exigência de fundamentação das decisões judiciais ou da “motivação de sentenças” radica em três razões fundamentais: (1) controle da administração da justiça; (2) exclusão do caráter voluntarístico e subjetivo do exercício da atividade jurisdicional e abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos juízes; (3) melhor estruturação dos eventuais recursos, permitindo às partes, em juízo um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas. De acordo com o mesmo autor citado anteriormente, a decisão terá por compromisso atender a exclusão do caráter voluntarístico e subjetivo do exercício da atividade jurisdicional, e, abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos magistrados. Já o objeto definido pela motivação especificará os limites e o campo de abrangência que incidirá o instrumento recursal. Através da racionalidade exposta, as partes tomam conhecimento da atividade jurisdicional, onde, eventualmente podem buscar a reforma impugnando fundamentos jurídicos ou nulidades existentes. Ressalta-se ainda, que a motivação das decisões judiciais é uma garantia constitucional importantíssima para a ocorrência de um eficaz controle da justiça. Diversas são as garantias asseguradas pela motivação das decisões judiciais, sendo que dentre elas, pode-se citar: o controle da administração da justiça, o controle de racionalidade do juiz ao decidir, e, a eventual delimitação do objeto de impugnação, podendo ser, considerado o principal parâmetro, tanto da legitimação interna ou jurídica, quanto da externa ou democrática da função judiciária. No Brasil, o sistema de apreciação de provas utilizado é o do livre convencimento motivado, onde, o magistrado detém autonomia para conferir às provas que lhe são trazidas durante o processo, a carga que acreditar ser conveniente. Tal sistema contrapõe-se ao da prova tarifada, sendo que este último atribui à lei a carga específica para cada prova, todavia, o sistema da prova tarifada se mostrou inviável por favorecer práticas desfavoráveis ao sujeito passivo do processo penal. E, finalizando, pode-se dizer que o princípio das fundamentações das decisões, aliado ao princípio da publicidade, proporcionará ao jurisdicionado o mais amplo exercício de princípios, tais como: o do contraditório e a da ampla defesa. 4. PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ O princípio da imparcialidade do juiz se apresenta tanto no processo penal quanto no processo civil, justificando-se pela própria essência da função jurisdicional, que é a de dar a cada um, o que é seu, o que estaria profundamente prejudicado se exercido por um órgão estatal parcial. A imparcialidade pressupõe a independência do juiz, razão pela qual a Constituição da República Federativa do Brasil/88, em seu artigo 95, citado abaixo, lhe assegurou algumas prerrogativas basilares, objetivando evitar que ele venha a sofrer qualquer tipo de influências ou coações, sendo elas: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio.  “Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias: I – vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado; II – inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII; III – irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005) Destaca-se que a vitaliciedade é adquirida, em primeiro grau de jurisdição, após dois anos de exercício da magistratura, período este, em que o magistrado só perderá o cargo por decisão do tribunal ao qual estiver vinculado. E, vencido o período do estágio probatório, o juiz só perderá o cargo por sentença judicial transitada em julgado. Já a prerrogativa da inamovibilidade se define como sendo a impossibilidade de remoção compulsória do magistrado da comarca ou seção judiciária em que atua, salvo, por motivo de interesse público ou através de uma decisão proferida por votos de dois terços dos membros do tribunal respectivo, sendo assegurado sempre à ampla defesa. E, a irredutibilidade de subsídios objetiva resguardar a segurança financeira do magistrado, evitando com isso, que ele seja passível de sofrer qualquer ameaça no sentido de se ver obrigado a atuar de determinada forma, afim de que não corra o risco de não perceber seus subsídios. Com relação às prerrogativas concedidas aos magistrados, citada acima, que objetivam garantir sua imparcialidade, o legislador ordinário, prevendo a ocorrência de um possível desrespeito a tais normas definiu situações em que o magistrado estaria impedido de atuar em determinadas causas, justamente pela ausência de capacidade subjetiva. Desta forma, com o intuito de assegurar a devida aplicação do princípio da imparcialidade do órgão julgador, o Código de Processo Penal Brasileiro, em seus Artigos 252, 253 e 254, relacionados abaixo, estabeleceu causas de impedimento e suspeição dos magistrados que em sendo confirmadas, poderão impedi-los de atuar no processo. “Art. 252.  O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que: I – tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito; II – ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha; III – tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão; IV – ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito. Art. 253.  Nos juízos coletivos, não poderão servir no mesmo processo os juízes que forem entre si parentes, consangüíneos ou afins, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive. Art. 254.  O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes: I – se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles; II – se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia; III – se ele, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes; IV – se tiver aconselhado qualquer das partes; V – se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes; Vl – se for sócio, acionista ou administrador de sociedade  interessada no processo.” (BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso: 15 de novembro de 2008) O impedimento é caracterizado como sendo a mais grave das causas, e, configura-se como sendo uma ligação direta do magistrado com o processo em análise, como por exemplo, nas situações em que seu cônjuge tiver atuado no processo, ou, quando ele mesmo tiver atuado como juiz da causa em outra instância, ou, quando ele ou outro familiar for parte, ou, tiver interesse direto na demanda processual. Em havendo alguma das causas de impedimento, o magistrado deverá espontaneamente se afastar do processo, e, se não for tomada tal atitude, qualquer das partes processuais poderá argüir o impedimento, e, se restar devidamente comprovado, será dado seu imediato afastamento. Já a suspeição, mesmo não sendo tão grave quanto o impedimento, também acaba por interferir na imparcialidade do juiz, e, por este motivo, poderá ser argüida pelo próprio juiz, e, se este não o fizer, poderá ocorrer a recusado deste, por qualquer das partes. E, a suspeição se apresenta quando, por exemplo, o magistrado é amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes, ou, também, quando houver orientado as partes, ou, mesmo quando for credor ou devedor do autor ou do réu. 5. PRINCÍPIO DA INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS OBTIDAS POR MEIOS ILÍCITOS A Constituição da República Federativa do Brasil/88 vedou de forma expressa a utilização no processo, de provas originadas por meios ilícitos, consoante o disposto no inciso LVI de seu artigo 5º, sendo que tal vedação é proveniente da observância do princípio da dignidade da pessoa humana, que deve sobrepor à atuação estatal, limitando, dessa forma, a persecução penal.  “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[…] LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005) Salienta-se que não há uma regra específica no sentido da inadmissibilidade de provas ilegais no ordenamento jurídico pátrio, sendo, tal proibição proveniente da importação da regra do direito americano, conhecida pela expressão fruits of the poisonous tree (frutos da árvore envenenada). Todavia, menciona-se que a vedação quanto à utilização das provas ilegais no processo, vem sendo atenuada, em decorrência da aplicação da teoria da proporcionalidade ou da ponderação de interesses, onde, deve prevalecer o princípio que for mais apropriado ao caso concreto. Contudo, em sendo a prova ilegal produzida com o fim de resguardar outro bem protegido pela Constituição da República Federativa do Brasil/88, de maior valor que este, não haverá restrição quanto à sua utilização. Afirma-se que a teoria anteriormente mencionada, tem admitido a utilização, no processo, de provas ilegais que sejam favoráveis ao acusado, desde que sejam indispensáveis ao caso e tenham sido produzidas pelo próprio interessado. No presente contexto, a ilegalidade da prova seria excluída pela legítima defesa do acusado, sendo, isto, causa excludente de antijuridicidade. Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil/88, algumas condutas foram consideradas incompatíveis quanto à prova, principalmente, em face do disposto em seu artigo 5º, inciso LVI. Nesse sentido, uma busca e apreensão ao arrepio da lei, uma audição de conversa privada por interferência mecânica de telefone, gravadores, uma interceptação telefônica, uma fotografia de pessoa ou pessoas em seu círculo íntimo, uma confissão obtida por meios condenáveis, como o famoso “pau de arara”, e, enfim, qualquer prova oriunda de meios ilícitos, seja afrontando à Constituição, seja desrespeitando o direito material ou processual, não será em juízo admitida. Tudo isso, reflete uma demonstração de respeito, não só à dignidade humana, mas, também, à seriedade da justiça e ao ordenamento jurídico nacional. 6. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA O artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil/88 assegura que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, elevando, dessa forma, o princípio da presunção de inocência a dogma constitucional. O princípio da presunção de inocência preconiza que a liberdade do acusado somente poderá ser restringida antes da sentença definitiva, através de medida cautelar que se faça efetivamente necessária, cabendo ao órgão acusador o dever de comprovar a culpabilidade do acusado, sendo que este não tem o dever de provar sua inocência. Ao prolatar a sentença condenatória, o magistrado deve estar convicto de que o acusado foi o autor do delito em questão, e, na ocorrência de dúvidas quanto à sua responsabilidade, o magistrado deverá absolver o réu. No caso em tela, apresenta-se o princípio do in dubio pro reo (na dúvida, deve-se decidir favoravelmente ao réu), onde, na ausência de provas suficientes para dirimir qualquer dúvida a respeito da autoria do delito, o magistrado terá a obrigação de prolatar sentença absolutória a favor do acusado, na forma do artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal Brasileiro. Frente ao exposto, ressalta-se que o Estado tem o dever de provar os fatos criminais pertencentes ao indivíduo, sendo que, em havendo dúvida, o magistrado absolverá o réu, sob pena de exercício arbitrário de poder. Salienta-se ainda, que o princípio da presunção de inocência constitucionalmente assegurado poderá ser afastado pelas provas geradas ao longo do devido processo legal, sempre sob o manto do contraditório, e, da ampla defesa. 7. PRINCÍPIO DA VERDADE REAL O processo penal não deve encontrar limites na forma ou na iniciativa das partes, ao contrário, impõe-se-lhe como objetivo principal a busca e o descobrimento da verdade real, material, cabendo ao magistrado verificar além dos parâmetros artificiais da verdade formal, com o intuito primordial de fazer valer a função punitiva para aquele que realmente tenha sido o responsável pelo ilícito penal. O princípio da verdade real também é utilizado no processo civil, entretanto, no processo penal, considerando que os direitos são indisponíveis, observa-se a supremacia do interesse público sobre a autonomia privada, o que, por si só caracteriza motivação suficiente para o predomínio do sistema da livre investigação das provas. Dentro desse contexto, o magistrado tem o dever de prosseguir com o processo quando da inércia da parte, determinando a realização de todas aquelas provas que forem necessárias à instrução da causa, e, também, conhecer de circunstâncias sem a necessidade de provocação das partes, almejando sempre esclarecer a verdade real. Ao se reproduzir a verdade no processo penal busca-se a escolha das melhores provas em matéria criminal, salientando, que o magistrado não poderá ater-se somente aquelas originadas pelas partes, salvo se estas se apresentarem como sendo as mais pertinentes ao caso concreto. A verdade real no processo penal é determinada pelo interesse público, presente tanto nas ações penais públicas quanto nas privadas, pois, para o exercício do poder de punir por parte do Estado, é necessário que a verdade dos fatos, seja efetivamente alcançada, sob pena da ocorrência de muitas injustiças. Portanto, a verdade real, analisada em termos processuais, não representa a verdade absoluta, mas, deve ser compreendida como a verdade processual mais próxima possível da realidade. Considerações Finais Os princípios constitucionais aludidos neste artigo são basilares quando aplicados propriamente ao Direito Processual Penal Brasileiro, sendo caracterizado como as diretrizes norteadoras da funcionalidade jurídica. A aplicação justa, coerente e legal de tais princípios conduzirá a tão indispensável inviolabilidade preconizada pelos direitos individuais dos cidadãos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-81/principios-constitucionais-a-luz-do-direito-processual-penal-brasileiro/
Aplicação do artigo 366 do Código de Processo Penal aos crimes de lavagem de dinheiro
O ponto de partida deste trabalho é a possibilidade de aplicação do artigo 366 do Código de Processo Penal aos crimes previstos na Lei nº. 9.613/1998. Assim, com o objetivo de aplicar da melhor maneira possível a lei, e com a finalidade de que a justiça seja realmente cumprida, através de uma bibliografia calcada no método crítico-histórico, resgatando uma visão histórica e conceitual, para, então, adentrar nas fases e nos efeitos causados pelo crime de Lavagem de Dinheiro, em especial, a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 2º, da supramencionada Lei, e sua efetiva aplicação aos crimes em comento.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO O Direito Penal Econômico nasceu do intervencionismo estatal do século XX no domínio econômico. É um direito novo face a uma nova realidade estatal econômica, possuidora de características próprias. Caracterizou-se como um arsenal de técnicas jurídicas a serviço do Estado, para a realização de suas diretrizes econômicas, significando o instrumento normativo da base de sustentação do sistema econômico do Estado. Como a economia é um campo extremamente vulnerável a ataques, necessário se faz um conjunto de normas com a finalidade de assegurar que as relações econômicas não ofendam ou coloquem em risco bens jurídicos relevantes. Assim, é o Direito Penal Econômico o ramo do direito penal que trata das infrações contra a ordem econômica, tipificando condutas que agridem bens jurídicos importantes para o bom e regular funcionamento da economia. Com efeito, na atual conjuntura mundial, um dos crimes que mais atormentam a ordem jurídica é a Lavagem de Dinheiro, posto o significativo aumento da criminalidade organizada, utilizando técnicas refinadas para mascarar a origem ilícita dos bens, direitos ou valores provenientes de crimes. Nesta esteira, o estudo em pauta tem o objetivo de trazer à baila a discussão acerca dos crimes da Lavagem de Dinheiro: seu conceito, origem, evolução e etapas, os crimes precedentes, e em especial, a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 2º, da lei em comento, posto que afronta direitos constitucionais, como a ampla defesa e o contraditório. Ademais, a leitura do diploma ora estudado deve ser feita sob o prisma da Lei Maior, que garante um devido processo constitucional ao acusado. Ao final, esperamos alcançar nosso objetivo de sensibilizar conhecedores e leigos em geral, de que, a vedação da aplicação do artigo 2º, § 2º, da Lei de Lavagem é inconstitucional, ou seja, um nada no mundo jurídico, e que a suspensão do processo e da prescrição, previstas no artigo 366 do Código de Processo Penal, é de perfeita e harmônica convivência com a Lei nº. 9.613/1998. 1. DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO           1.1 Conceito Lavagem de dinheiro é o meio pelo qual bens, direitos ou valores obtidos com a prática dos crimes listados no artigo 1º da Lei nº. 9.613/98 conseguem se desvincular de suas origens passando a ser reconhecidos como provenientes de alguma atividade legalmente estabelecida, podendo, assim, ser utilizado livremente sem constituir ilícito ou mesmo prejudicar a imagem de seu possuidor. Sobre o tema, assim se manifestaram alguns renomados doutrinadores: “Lavagem de Dinheiro é um processo através do qual o criminoso busca introduzir um bem, direito ou valor provindo de um dos crimes antecedentes na atividade econômica legal, com aparência de lícito (reciclagem)”.[1] “Crime de lavagem consiste na operação financeira ou transação comercial que oculta ou dissimula a incorporação, transitória ou permanente, na economia ou no sistema financeiro do País, de bens, direitos ou valores que, direta ou indiretamente, são resultado ou produto dos seguintes crimes: a) tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; b) terrorismo; c) contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; d) extorsão mediante seqüestro; e) praticados contra a Administração Pública; f) cometidos contra o sistema financeiro nacional; h) praticados por organização criminosa”.[2] “Tradicionalmente, a lavagem de dinheiro tem sido encarada (isoladamente) como a limpeza do dinheiro sujo gerado por atividades criminosas; na imagem mental coletiva, esses crimes estão provavelmente associados ao tráfico de drogas. É claro que a lavagem inclui esse tráfico, mas na verdade abrange muito mais. Para entender e avaliar o poder e a influência da lavagem de dinheiro, é necessário recordar a finalidade dos crimes. A imensa maioria dos atos ilegais é perpetrada para conseguir uma só coisa: dinheiro. Se for gerado pelo crime, o dinheiro será inútil a menos que a fonte sórdida dos recursos possa ser disfarçada ou preferivelmente ‘apagada’. A dinâmica da lavagem de dinheiro assenta sobre o âmago corrupto dos muitos problemas sociais e econômicos espalhados pelo mundo todo”.[3] “De acordo com o estudo realizado pode-se afirmar que a lavagem de dinheiro se encontra estreitamente vinculada à criminalidade organizada, pois, na maioria dos casos, a comissão desse delito requer uma estrutura não só para a comissão da lavagem como também do delito previsto, o que origina os bens que serão lavados. É certo que, na maioria das vezes, o delito que gera mais ganhos é o tráfico de drogas e, portanto, está muito vinculado à lavagem de dinheiro. Porém, no Brasil, não somente ele gera grandes quantidades aptas à lavagem. Assim, podemos citar outras atividades criminosas com as quais se obtêm grandes somas de dinheiro ou bens, como o tráfico de armas, o jogo ilícito, a subtração de veículos e seu contrabando, a extorsão mediante seqüestro, as redes de prostituição e a exploração sexual, os crimes contra a administração pública, o roubo de cargas etc. As organizações criminais se movem pela facilidade de obtenção de grandes quantias de dinheiro com a comissão de alguns delitos que ultrapassam as fronteiras dos países. Essas grandes somas tendem a ser recicladas mediante sua introdução nos circuitos financeiros, obtendo assim uma aparência de legalidade”.[4] Portanto, depreende-se que lavagem de dinheiro é o método pelo qual uma pessoa física ou organização criminosa processa os valores decorrentes de um crime buscando conferir a eles uma aparência de licitude. 1.2 Histórico Remonta-se ao século XVII, na Inglaterra, o início do crime de lavagem de dinheiro, por intermédio da pirataria realizada nas embarcações. Devido ao custo elevado de manutenção de um navio, os piratas acabavam saqueando e roubando os demais navios. Não obstante, o ‘tesouro’ não era enterrado, fato que, na verdade, guarda somente relevância folclórica, sendo que eles utilizavam um método de lavagem semelhante ao atual. Vários estudos apontam o surgimento da expressão ‘lavagem de dinheiro’ a um fenômeno ocorrido nos Estados Unidos por volta dos anos 20, quando foi montada uma rede de lavanderias para aparentar a procedência lícita do dinheiro auferido com a prática de atividades delitivas. “A expressão lavagem de dinheiro originou-se, historicamente, no costume das máfias norte-americanas, na segunda década do século 20, de usar lavanderias para ocultar a procedência ilegal de seu dinheiro. Deve-se observar que em muitos países, inclusive Portugal, em vez de ‘lavagem de dinheiro’ é usado o termo ‘branqueamento de dinheiro’. Internacionalmente, a expressão ‘money laudering’ é utilizada para designar esta atividade. Esta terminologia vem recebendo algumas críticas no meio jurídico pela sua falta de rigor técnico devido sua origem popularesca, e, inclusive, à expressão branqueamento, é atribuída a pecha de racista. Alguns doutrinadores preferem utilizar o termo Lavagem de Capitais, pelo seu caráter mais abrangente”.[5] “A expressão ‘lavagem de dinheiro’ parece ter surgido nos Estados Unidos, na década de 20. As quadrilhas daquela época se emprenhavam em fazer mais ou menos a mesma coisa que as quadrilhas de hoje: desvincular os recursos provenientes de crime das atividades criminosas em si. Para conseguir isso as quadrilhas se apoderavam de empresas onde o dinheiro ‘girava’ rapidamente – como as lavanderias e os lava rápidos – passando em seguida a misturar o dinheiro ganho, criando assim uma razão comercial lógica para a existência de grandes somas”.[6] Todavia, o marco fundamental na criminalização da lavagem de dinheiro foi a Convenção de Viena de 1988, sobre o tráfico de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, que fazia referência expressa à ‘lavagem de dinheiro’ como conversão, transferência, ocultação ou encobrimento da natureza, origem, localização, destino, movimentação ou propriedade verdadeira dos bens decorrentes de atividades ilícitas. “Logo após a realização da mencionada Convenção de Viena, alguns países começaram a criminalizar a ‘lavagem’ de dinheiro, configurando-a somente quando a ocultação dos bens, direitos ou valores tivesse como fato ilícito anterior o tráfico de entorpecentes. Pode-se dizer que esta foi a linha primária de legislação sobre a matéria. Todavia, nos países que adotaram tal sistemática, verificou-se que a ‘lavagem’ também estava sendo utilizada como fase conclusiva de outras modalidades criminosas. A partir disto, o rol de crimes anteriores passou a ser ampliado, sendo que, em algumas legislações, sua abrangência confirmou-se de forma plena para alcançar todo sistema repressivo penal, figurando como exemplos desta ordem as legislações dos Estados Unidos da América, Bélgica, França, Itália e Suíça, as quais admitem a conexão da ‘lavagem’ a qualquer atividade ilícita anterior”.[7] Inicialmente, a lavagem de dinheiro estava vinculada ao tráfico de entorpecentes, em função da acentuada repercussão na seara econômica dos países. Era a denominada legislação de ‘primeira geração’. Em seguida, a concepção de crime antecedente sofreu considerável evolução, dando origem à legislação de ‘segunda geração’, sendo exemplos dessa geração as legislações vigentes na Alemanha, Espanha, Portugal e Brasil. Por fim, na ‘terceira geração’, o critério definidor foi a menor ou maior gravidade de qualquer fato delituoso antecedente. Assim, países como a Bélgica, França, Itália, México, Estados Unidos e Suíça optaram por conectar a lavagem de dinheiro a todo e qualquer ilícito precedente. Hoje, na economia globalizada, a aliança mundial de combate à lavagem de dinheiro, justifica-se pelos tipos de delitos que visa coibir, como o tráfico de drogas, armas, mulheres, o terrorismo, dentre outros, que são crimes transnacionais, nos quais uma ação, praticada em determinado país, pode repercutir efeitos em diversos pontos do mundo. Embora a maioria dos países possua leis de combate a lavagem de dinheiro, é necessário que haja uma cooperação mais ágil entre eles, para que se obtenha resultados, realmente importantes. Sabe-se que não somente o Brasil possui elencadas em seus dispositivos legais, normas de prevenção e combate à lavagem de dinheiro. Outros países também possuem em seus normativos jurídicos, previsões legais referentes ao crime em tela, os quais serão tratados isoladamente no tópico a seguir. 1.2.1 Estados Unidos Os Estados Unidos são os pioneiros no combate à lavagem de dinheiro internacional, sendo que internamente contam com diversas normas legislativas e regulamentadoras para controlar o problema. Fazem parte da história americana dois personagens de maior relevância na origem do crime em comento. O primeiro deles é Alphonse Capone, mais conhecido como ‘Al Capone’, líder do crime organizado na cidade de Chicago, ao final da década de 20, e responsável pelo desenvolvimento de novas técnicas de lavagem de dinheiro. O segundo personagem é Meyer Lansky, que juntamente com Bugsy Siegel, instalou as casas de jogos de Las Vegas, aumentando, assim, as oportunidades de lavar o dinheiro sujo adquiridos nos tempos da proibição. Em 2001, com os atentados terroristas, os Estados Unidos trouxe para si a tarefa de reduzir a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo em todo o mundo, já que foi com o patrocínio deste dinheiro que os desastres ocorreram. Destarte, os Estados Unidos mantém-se como país de atividade preventiva e repressiva mais atuante no combate à lavagem de dinheiro. 1.2.2 Suíça Uma das legislações pioneiras na incriminação da lavagem de dinheiro é o Código Penal da Suíça, em seu artigo 305, que traz aspectos gerais sobre o crime, sendo que uma lei federal especial traz os detalhes. “As medidas positivas que a Suíça adotou contra a lavagem de dinheiro são mencionadas em diversos pontos deste livro. A legislação contra a lavagem de dinheiro, que entrou em vigor a partir de 1º de abril de 1998, aperfeiçoou indiscutivelmente os sistemas referentes à manutenção de registros contábeis, identificação dos clientes e denúncia das transações suspeitas. Os regulamentos afetam não só os bancos, mas também contadores, advogados e consultores financeiros independentes, bem como as companhias seguradoras”.[8] 1.2.3 Espanha O Código Penal Espanhol prevê o crime de lavagem de dinheiro, sendo que suas condutas incriminadoras são semelhantes às previstas pela legislação brasileira: adquirir, converter, transmitir, ocultar, encobrir bens de origem ilícita. Destaca-se na legislação espanhola, a fixação da pena em até seis anos, bem como a possibilidade de agravamento se houver participação do agente em organização criminosa. 1.2.4 Alemanha Como legislação de segunda geração, o Código Penal alemão traz expressamente quais são os crimes antecedentes à lavagem de dinheiro. Vê-se previsão expressa aos crimes cometidos contra a ordem tributária, a organização dos mercados, assim como os crimes cometidos por intermédio de organização criminosa. “Na Alemanha, a lavagem de dinheiro é considerada um delito comparável a todos os crimes sérios. Os regulamentos gerais e a estrutura de controle do país são razoavelmente adequados, mas um tanto controverso é o fato de não existir nenhuma entidade que centralize as informações e os relatórios financeiros sobre a lavagem de dinheiro. Não obstante, a Alemanha tornou obrigatória a prevenção da lavagem de dinheiro para os bancos, as instituições de crédito e de serviços financeiros, as empresas financeiras, a companhias de seguros, os leiloeiros, os cassinos e os negociantes de ouro”.[9] 1.2.5 Itália O crime de lavagem de dinheiro foi incluído no Código Penal italiano em 1990, sendo que as condutas criminosas envolvem adquirir, receber e ocultar dinheiro e bens provenientes de atividade ilícita, abrangendo os crimes de extorsão, seqüestro, tráfico de entorpecentes e afins. A pena pode variar de dois a doze anos, acrescida de multa, bem como pode ser agravada no caso de a lavagem de dinheiro ter sido praticada a partir de uma atividade profissional. 1.2.6 França Assim como Itália e Suíça, a França também é exemplo de legislação de terceira geração, posto que apresenta como crime antecedente a prática de qualquer delito. “A França definiu a lavagem de dinheiro como algo relacionado aos recursos advindos de qualquer crime, mantém procedimentos de identificação dos clientes e regulamentos que obrigam a denunciar as transações suspeitas, aplicáveis aos bancos e demais instituições financeiras, aos corretores de seguros, às agências de correio, às casas de câmbio, aos tabeliães e aos agentes imobiliários. Todas as informações são coligidas por uma entidade central, a TRACFIN”.[10] 1.2.7 Portugal A Lei nº. 11, publicada em 27 de março de 2004, traz novo regime de prevenção e repressão do branqueamento de vantagens de proveniência ilícita, estabelecendo medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao crime em comento “Em Portugal, a lavagem de dinheiro não parece assumir proporções significativas, embora a lavagem dos recursos procedentes do tráfico de drogas constitua um problema especial. A abrangência da legislação contra a lavagem de dinheiro é impressionante: é obrigatória a identificação dos clientes, os registros contábeis precisam ser mantidos durante dez anos e é obrigatória a denúncia das transações suspeitas; além disso, se a transação foi anormalmente substancial, a instituição financeira está obrigada a obter do cliente uma declaração referente à origem dos recursos”.[11] 1.2.8 Brasil Influenciado pelo compromisso assumido na Convenção de Viena, em 1988, o Brasil editou a Lei nº. 9.613/98, que: a) tipifica os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; b) dispõe sobre a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos na lei; c) cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF. “Diante da gravidade do fenômeno ‘lavagem’, o legislador ditou normas de múltiplas conseqüências, reunindo-as em um diploma complexo. Não se trata exclusivamente de um conjunto de regras penais, visto que a Lei de ‘Lavagem’, além de especificar os tipos penais em seu art. 1º, incs. I a VIII e parágrafos, também estabeleceu disposições de natureza processual penal (arts. 2º a 8º), bem como avança para outro vasto campo, apresentando mandamentos que dialogam com o direito penal (nacional e estrangeiro), direito administrativo, direito financeiro, direito econômico, direito civil e direito comercial (arts. 9º a 17º)”.[12] A lei brasileira é dividida em nove capítulos. Nos dois capítulos iniciais (‘Dos Crimes de Lavagem ou Ocultação de Bens, Direitos e Valores’ e ‘Disposições Processuais Especiais’), a lei trata especificamente da tipificação do crime de lavagem de dinheiro e de seus aspectos processuais. Adiante, nos capítulos III e IV, aborda os efeitos da condenação e crimes praticados no estrangeiro. Em seguida, do capítulo V ao VIII, traz os aspectos administrativos. Por fim, no capítulo IX, estabelece a criação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF. 1.3 Etapas da Lavagem de Dinheiro O crime de lavagem de dinheiro reclama um processo complexo e bem estruturado, envolvendo várias operações até a sua consumação. A doutrina aponta três fases nas quais se desenvolve o delito: a) Fase da colocação, que consiste na introdução do dinheiro ilícito no sistema financeiro. Os lavadores costumam se utilizar de algumas técnicas, como o “smurfing”, que é o fracionamento de grandes valores em pequenos, de modo a escapar do controle administrativo imposto às instituições financeiras, que são obrigadas a comunicar a Receita Federal às transações acima de determinando valor. Outra técnica é a utilização de estabelecimentos comerciais que trabalham com dinheiro em espécie. b) Fase da dissimulação, sendo a realização de uma série de negócios ou movimentações financeiras, a fim de impedir o rastreamento de valores. c) Fase da integração, em que, já com aparência lícita, os valores são incorporados ao sistema econômico, geralmente por meio de investimentos no mercado mobiliário ou imobiliário e, até mesmo no refinanciamento de novas atividades ilícitas. Impende ressaltar que, para o Supremo Tribunal Federal, a configuração do delito em comento se dá com a realização de qualquer uma das três fases, não sendo necessária a prática de todas elas.[13] 1.4 Características do Crime de Lavagem de Dinheiro 1.4.1 Bem Jurídico Tutelado Ainda é motivo de discussões doutrinárias a determinação do bem jurídico tutelado nos crimes de lavagem de dinheiro. “(…) é importante observar que a ‘natureza do bem jurídico’ no âmbito da lavagem de dinheiro é ainda um tema muito discutido pela doutrina, já que interesses individuais podem ser atingidos pela conduta do agente. Na verdade, tudo dependerá da análise do caso concreto, pois determinada conduta, em razão de sua escassa lesividade ao sistema econômico-financeiro poderá afetar apenas órbitas individuais e menos genéricas (crimes contra o patrimônio e a administração, falsidades etc.), requerendo um objeto de proteção de menor espectro”.[14] Atualmente, existem três correntes doutrinárias a respeito do tema. “Um setor minoritário na doutrina defende que o bem jurídico protegido é a Administração da Justiça, ainda que não esqueça que a lei também protege a ordem socioeconômica do país. É que o comportamento do lavador é, de fato, prejudicial ao livre mercado, muitas vezes comprometendo a livre concorrência entre as empresas, pois ao beneficiar-se de capitais ilícitos o lavador não necessita recorrer aos canais legítimos para buscar dinheiro, como, por exemplo, crédito bancário. De qualquer sorte, para esse setor da doutrina, a Administração da Justiça é sempre vulnerada em qualquer das fases de lavagem, o que não ocorre com os outros bens jurídicos indiretamente protegidos, como o sistema econômico”.[15] Outra corrente afirma que o bem jurídico protegido é o mesmo bem do crime antecedente. Todavia, este entendimento não possui muitos respaldos nos dias de hoje, sendo que era uma boa justificativa à época da legislação de primeira geração, em que o único crime antecedente era o tráfico de drogas. Por fim, a corrente prevalente nos dias de hoje, é a que traz como bem jurídico tutelado a ordem econômico financeira, já que o crime em foco coloca em risco o equilíbrio do mercado e a livre concorrência, uma vez que a criminalidade organizada, através de sua estrutura altamente organizada, participa ativamente do cotidiano financeiro de qualquer país. Assim, busca-se garantir a mínima segurança das operações e transações de ordem econômica e financeira. 1.4.2 Sujeitos do Delito Por tratar-se de crime comum, o sujeito ativo do crime de lavagem de dinheiro pode ser qualquer pessoa, seja ele autor do crime antecedente ou não. Já o sujeito passivo é o Estado, justamente porque o crime em tela deixa nele suas maiores marcas. “Tendo em vista a objetividade jurídica estabelecida para o tipo, o sujeito passivo principal é o Estado, ao qual cabe o monopólio da administração da justiça. Consoante a natureza do crime precedente mediatamente poderão existir outros lesados(…)”.[16] 1.4.3 Objeto Material Constituem objeto material do crime de lavagem de dinheiro, os bens, direitos e valores provenientes direta ou indiretamente de crime. “Para a doutrina que tratou do tema, o objeto material no delito de lavagem de dinheiro previsto na Lei brasileira são os bens, direitos e valores que sejam produtos dos crimes antecedentes previstos na Lei. Seguindo a mesma interpretação da doutrina espanhola, fica claro que o objeto de proteção não são os bens, direitos e valores em si, senão a circulação destes no mercado como um elemento essencial para seu bom funcionamento e o da economia em geral que pode ser perturbada enquanto outros bens que tenham origem delitiva se incorporem a essa circulação. Mas, diferentemente do legislador espanhol, o legislador brasileiro se referiu expressamente a todos os bens que sejam objeto material a um número taxativo de delitos prévios. O legislador brasileiro fez menção expressa a estes objetos materiais na redação do artigo 1º da Lei 9.613/98 que estabelece: ‘ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime’”.[17] 1.4.4 Tipo Objetivo O tipo objetivo do crime em estudo vem explicitado no caput do artigo 1º, da Lei nº. 9.613/98, que dispõe: “Art. 1º. Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direita ou indiretamente, de crime”. Para uma melhor compreensão do tipo objetivo, necessário se faz o significado dos verbos “ocultar” e “dissimular”. “Ocultar significa encobrir, esconder, sonegar, não revelar, enquanto dissimular é ocultar com astúcia, fingir, disfarçar”.[18] “‘Ocultar’ é o ato de esconder, de tornar algo inacessível às outras pessoas. Esta ação pode ser efetuada diretamente, sem a utilização de qualquer ardil ou artifício (…); já ‘dissimular’ é encobrir, disfarçar, mascarar, fraudar, escamotear ou alterar a verdade. Assim é possível dissimular a localização de um bem modificando sua aparência exterior para que não seja reconhecido ou simplesmente mentindo acerca de onde se encontra”.[19] 1.4.5 Tipo Subjetivo O tipo subjetivo do crime de lavagem de dinheiro é o dolo, seja ele direto ou eventual. Todavia, a doutrina majoritária entende ser somente possível o dolo direto. “A conduta do sujeito deve estar dirigida à ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade dos bens provenientes dos crimes enumerados na Lei de Lavagem, o que significa, em princípio, que só é possível o dolo direto nestas condutas. Não consideramos que o sujeito, na comissão destes delitos, possa ser indiferente sobre a ocultação ou dissimulação dos bens sobre os quais vai atuar, porque os bens têm que ser provenientes dos crimes expressamente enumerados, o que significa que o sujeito atua com uma finalidade específica”.[20] Ademais, não é possível a modalidade culposa, já que não há expressa previsão legal. “Em primeiro lugar, cabe dizer que a lei brasileira não menciona a modalidade culposa, pois todos os crimes são dolosos. O legislador brasileiro não estabeleceu a figura culposa para o delito de lavagem de dinheiro. Ademais, o Código Penal brasileiro adota o sistema taxativo (numerus clausus) para a incriminação da culpa, é dizer, os tipos que permitem a comissão culposa estão expressamente previstos na Parte Especial do Código. Assim, ainda que os tipos sobre a lavagem não estejam contidos no Código, seguem as mesmas regras contidas na Parte Geral deste, ou seja, só admitiriam a comissão culposa se houvesse a previsão expressa pelo legislador”.[21] 1.4.6 Das Penas A pena cominada para o delito de lavagem de dinheiro é de três a 10 anos de reclusão e multa. Em relação à pena de multa, deve-se observar o disposto nos artigos 49 a 52 do Código Penal brasileiro. Com efeito, por tratar-se de crime acessório, a maioria da doutrina critica a desproporção entre as penas do crime de lavagem, que é acessório, e as penas dos crimes antecedentes. “A autonomia e intensa lesividade social do delito estudado, em nossa opinião, justificam plenamente a exacerbação de sua punição mas não retiram seu caráter acessório. Conseqüentemente, não há como justificar-se uma apenação completamente desproporcional àquela que é cominada para determinados crimes antecedentes”.[22] Ainda, em relação às penas, o parágrafo 4º, do artigo 1º, da Lei de Lavagem, traz as causas de aumento de pena. Referido dispositivo legal determina: “A pena será aumentada de 1 (um) a 2/3 (dois terços), nos casos previstos nos incisos I a VI do caput deste artigo, se o crime for cometido de forma habitual ou por intermédio de organização criminosa”. “(…) O termo habitual pode ser compreendido como a repetição freqüente de um ato, e a doutrina assinala que o crime habitual é aquele que se constitui de uma reiteração de atos, penalmente indiferente, por sis mesmos, mas que constituem um todo, um delito apenas, o que se traduz num modo ou estilo de vida do agente, ou é o que contém comportamentos idênticos e repetidos, que só se realizam com a ocorrência da ação reiterada. Assim, o significado do conceito contido na Lei de Lavagem não coincide com o conceito de crime habitual utilizado pela doutrina que exige, para sua consumação, uma reiteração das condutas, pois, se ocorre um só ato, não haverá crime habitual. Em nossa opinião, a intenção do legislador é no sentido de apenar com mais gravidade os casos em que os sujeitos pratiquem lavagem de forma habitual, e não isoladamente. No entanto, diferentemente do conceito de crime habitual, ainda que haja um só ato de lavagem, já existirá este delito, o que não ocorre com o delito habitual que exige a reiteração de atos para a existência do delito. De acordo com isso, para a aplicação desse preceito, deve ficar provado que havia uma certa freqüência na conduta do sujeito, ou seja, que estava dedicado a lavar capitais de forma habitual”.[23] Já a segunda causa de aumento se dá quando o crime é cometido por intermédio de organização criminosa, que é a união voluntária de várias pessoas com a finalidade de praticarem crimes. 1.4.7 Delação Premiada ou Colaboração Espontânea Determina o parágrafo 5º, do artigo 1º, da Lei de Lavagem: “A pena será reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços) e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, co-autor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objetos do crime”.  A delação premiada ou colaboração espontânea surge quando o Estado reconhece sua própria ineficiência. Nada mais é do que a compra da justiça pelo preço da impunidade. Em que pese às duras críticas feitas pela doutrina, ela constitui importante meio de se enfrentar uma organização criminosa, já que ela quebra o liame subjetivo que liga os criminosos. Sua natureza jurídica é de causa de diminuição de pena, sendo que esta redução é obrigatória para o sujeito que colabore com as autoridades, já que se trata de direito público subjetivo. Todavia, o perdão judicial e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos é uma faculdade do juiz, que deverá analisar cada caso concreto. 1.4.8 Tentativa A figura da tentativa vem prevista no parágrafo 3º, do artigo 1º, da Lei de Lavagem que determina: “A tentativa é punida nos termos do parágrafo único do art. 14 do Código Penal”.  “No momento de fixar a pena do crime tentado, o juiz deve respeitar a consagrada fórmula de cálculo, ou seja, quanto mais se aproximar o agente da consumação menor a diminuição da pena, e quanto menos percorrido o iter criminis maior a redução”.[24] 2. CRIMES PRECEDENTES A palavra crime é uma elementar do delito de lavagem de dinheiro. Logo, existe uma relação de acessoriedade objetiva entre o crime antecedente e o delito de lavagem de dinheiro. Ademais, o legislador brasileiro enumerou de forma taxativa os crimes que podem dar origem ao delito de lavagem de dinheiro. 2.1 Tráfico de Drogas O primeiro crime antecedente vem regulamentado na Lei nº. 11.343/2006, nos artigos 33 e 34. “No entanto, para a caracterização do delito de lavagem de dinheiro, é necessário que tudo o que seja proveniente do tráfico de drogas (bens, direitos ou valores) seja posto em circulação no mercado econômico ou financeiro e que se oculte sua origem ilícita. Somente assim caracteriza-se o delito de lavagem”.[25] 2.2 Terrorismo e seu financiamento A discussão que existe tanto na doutrina quanto na jurisprudência pátria é se existe ou não o delito de terrorismo no Brasil. Quanto ao tema, há duas correntes. A primeira corrente afirma que o delito de terrorismo está previsto no artigo 20, da Lei nº. 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional), já que a exposição de motivos da Lei de Lavagem cita como crime de terrorismo o previsto na Lei nº. 7.170/83. Já a segunda corrente, da qual Luís Flávio Gomes é adepto, afirma ser impossível entender o artigo 20 da Lei de Segurança Nacional como a tipificação para o terrorismo, posto que o dispositivo legal é indeterminado. 2.3 Contrabando ou Tráfico de Armas “O inciso III dispõe como crime antecedente ao de lavagem o contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua fabricação. O delito de contrabando encontra-se previsto no artigo 334 do Código Penal, enquanto em relação ao contrabando de armas foi promulgada uma lei que regulamenta a compra, o uso e a autorização das armas. A razão da inclusão pelo legislador do delito antecedente do tráfico de armas deve-se pelo informe da ONU em que há a informação de que o tráfico de armas proporciona um movimento enorme de dinheiro anualmente, e esses valores ilícitos passam a integrar o sistema econômico do país”.[26] 2.4 Extorsão Mediante Seqüestro “O inciso IV estabelece a conduta antecedente da extorsão mediante seqüestro. Este delito está previsto no artigo 159 do Código Penal, considerado também como crime hediondo. A prática desse crime no Brasil é freqüente, e os valores obtidos com esse tipo de delito, normalmente, ficam sempre dentro do próprio país. Porém, como não existe um controle sobre o destino do dinheiro ou dos bens obtidos, esses acabam por circular livremente como lícitos no mercado financeiro, ou através da aquisição de propriedades Como nesse tipo de delito o dinheiro provém, muitas vezes, de quadrilhas organizadas, o legislador pretende impedir a utilização desses fundos obtidos ilicitamente. Assim, se o sujeito oculta ou dissimula os bens provenientes do seqüestro, ocorrerá o delito de lavagem”.[27] 2.5 Crimes contra a Administração Pública No Direito Penal, o conceito de Administração Pública é bastante amplo, de modo a abranger toda a atividade do Estado, inclusive a de governo. Para o Direito Penal, funcionários públicos são todos os que, embora transitoriamente ou sem remuneração, exercem cargo, emprego ou função pública, equiparando, inclusive por analogia, todos os que exerçam cargo, emprego ou função em entidade paraestatal. Existem várias figuras típicas que tipificam os crimes contra a Administração Pública, todavia, nem todas elas podem servir de base para a imputação do crime de lavagem de dinheiro. Tais crimes estão tipificados no Título XI, do Código Penal. Todos os delitos previstos neste título são de ação penal pública incondicionada, ou seja, a autoridade administrativa, por dever de ofício, sob pena de responsabilidade, deve de imediato, tomar todas as providências necessárias, de acordo com o caso concreto, visando apurar o fato, sobre os aspectos de autoria e materialidade, adotando as medidas administrativas e jurídicas. 2.6 Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional Os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional estão tipificados na Lei nº. 7.492/86, sendo que a prática de qualquer um deles pode ser considerado antecedente ao crime de lavagem de dinheiro, já a própria Lei de Lavagem tutela, entre outros bens, o Sistema Financeiro Nacional. “(…) Vale a pena recordar que o Sistema Financeiro Nacional está composto pelo conjunto de atividades executadas pelas instituições financeiras, e estas, por sua definição legal, são as pessoas jurídicas de direito público ou privado, que tenham como atividade principal ou secundária a captação, mediação, ou aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, mediação, ou administração de valores mobiliários(…)”.[28] 2.7 Crimes praticados por Organização Criminosa O tipo penal previsto no inciso VI, do artigo 1º, da Lei de Lavagem, determina como delito precedente aquele praticado por organização criminosa previsto na Lei nº. 9.034/95. Ocorre que a lei penal brasileira não define o que vem a ser organização criminosa, o que acaba por dificultar a aplicação deste dispositivo. A doutrina, amparada pela Convenção de Palermo, costuma conceituar organização criminosa como o grupo formado por três ou mais pessoas, que atua de forma permanente, sempre com o fim de praticar crimes que trarão benefícios econômicos ou morais. Todavia, essa mesma doutrina que conceitua o que vem a ser organização criminosa, afirma que na prática é difícil ou quase impossível a aplicação deste dispositivo legal, por tratar-se de um tipo aberto. Se admitirmos a aplicação deste dispositivo, significa, a princípio, que toda e qualquer infração penal praticada por organização criminosa, que oculte ou dissimule bens, direitos ou valores, configurará o crime de lavagem de dinheiro. 2.8 Crimes Praticados por Particular Contra a Administração Pública Estrangeira Os crimes antecedentes que configuram a lavagem de dinheiro neste caso estão tipificados no Capítulo II-A do Título XI, do Código Penal, introduzido pela Lei nº. 10.467/02. São delitos antecedentes da lavagem de dinheiro a corrupção ativa e o tráfico de influência em transação comercial internacional. Ademais, os dispositivos dispõem o que vem a ser funcionário público estrangeiro. 3. PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL A palavra ‘processo’ tem origem no latim procedere, e significa seguir adiante, caminhar, avançar, sendo que todo processo deve estar em harmonia com a Teoria Geral do Processo, que nada mais é do que a peça fundamental para o estudo dos princípios aplicáveis ao Processo Penal Constitucional. Por Teoria Geral do Processo entendemos ser o conjunto de normas e princípios que servem como vetores interpretativos aos operadores do Direito. Este capítulo tem como objetivo trazer à baila uma análise sobre alguns princípios constitucionais inerentes ao processo penal, não com a pretensão de exaurir toda a matéria relativa ao tema, mas com a principal finalidade de estudar aqueles princípios que acreditamos serem basilares para o Direito Processual Penal Constitucional, verificando como estes limitam o poder de punir estatal, à luz da Constituição Federal, que é a norma de validade e o ponto de partida para todo o ordenamento jurídico. Inúmeros são os princípios processuais penais que encontram garantia constitucional, sendo alguns deles, os mais importantes, e que serão analisados neste trabalho: princípio do devido processo constitucional, princípio do contraditório, princípio da ampla defesa, princípio do duplo grau de jurisdição e princípio da presunção de inocência. 3.1 Princípio do Devido Processo Constitucional “O princípio do devido processo legal é, sem dúvida, o aglutinador dos inúmeros princípios processuais penais (art. 5º, LIV, CF). Constitui o horizonte a ser percorrido pelo Estado democrático de Direito, fazendo valer os direitos e garantias humanas fundamentais. Se esses forem assegurados, a persecução penal se faz sem qualquer tipo de violência ou constrangimento ilegal, representando o necessário papel dos agentes estatais na descoberta, apuração e punição do criminoso”.[29] Este princípio se bifurca em devido processo constitucional processual, que nada mais é do que a somatória de todos os princípios aplicáveis ao processo, e em devido processo constitucional material ou substantivo, que se traduz no direito que todo indivíduo tem de exigir que o Estado elabore leis e atos razoáveis, pois se não o forem, serão inconstitucionais. Em que pese este princípio ser amplamente aceito pela doutrina, ele não é aplicado pela jurisprudência majoritária. 3.2 Princípio do Contraditório ou Audiência Bilateral É a garantia constitucional que assegura a ampla defesa do acusado. O acusado goza do direito de defesa sem restrições, em um processo em que deve estar assegurada a igualdade das partes. “Quer dizer que a toda alegação fática ou apresentação de prova, feita no processo por uma das partes, tem o adversário o direito de se manifestar, havendo um perfeito equilíbrio na relação estabelecida entre a pretensão punitiva do Estado e o direito à liberdade e à manutenção do estado de inocência do acusado (art. 5º, LV, CF)”.[30] 3.3 Princípio da Ampla Defesa Consubstancia-se este princípio no conjunto de direitos que lhe permitem a utilização de métodos amplos para a sua defesa. Como o réu é a parte “mais fraca” no processo, ante ao poderio do Estado, a ele lhe é concedida a ampla possibilidade de defesa, a fim de se equilibrar a balança. “A ampla defesa gera inúmeros direitos exclusivos do réu, como é o caso de ajuizamento de revisão criminal – o que é vedado a acusação – bem como a oportunidade de ser verificada a eficiência da defesa pelo magistrado, que pode desconstituir o advogado escolhido pelo réu, fazendo-o eleger outro ou nomeando-lhe um dativo, entre outros”.[31] 3.4 Princípio do Duplo Grau de Jurisdição Proferida a decisão judicial, tem a parte o direito de buscar o seu reexame por um órgão jurisdicional superior. As justificativas deste princípio são que: mais juízes irão julgar o recurso; maior precaução do juízo a quo, pois ciente de que poderão recorrer de sua decisão, age com mais cautela; e a possibilidade do efetivo exercício da ampla defesa. A questão que ainda impera na doutrina e jurisprudência é se este princípio é ou não uma garantia constitucional. A doutrina que o defende como garantia constitucional afirma que decorre da organização judiciária prevista na Constituição Federal, bem como da ampla defesa. Ademais, há previsão expressa no Pacto de São José da Costa Rica, incorporado pela ordem jurídica interna no Decreto 678/1992, no artigo 8º, 2, h. Já para os que defendem que o princípio em comento não é uma garantia constitucional, o fazem com base na ausência de previsão expressa na Constituição Federal. 3.5 Princípio da Presunção de Inocência ou Estado de Não Culpabilidade Por este princípio ninguém será considerado culpado senão após uma sentença penal condenatória com trânsito em julgado, segundo o disposto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal. “Tem por objetivo garantir, primordialmente, que o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa. As pessoas nascem inocentes, sendo esse o seu estado natural, razão pela qual, para quebrar tal regra, torna-se indispensável que o Estado-acusação evidencie, com provas suficientes, ao Estado-juiz a culpa do réu. Por outro lado, confirma a excepcionalidade e a necessidade das medidas cautelares de prisão, já que indivíduos inocentes somente podem ser levados ao cárcere quando realmente for útil à instrução e à ordem pública. No mesmo prisma, evidencia que outras medidas constritivas aos direitos individuais devem ser excepcionais e indispensáveis, como ocorre com a quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico (direito constitucional de proteção à intimidade), bem como a violação de domicílio em virtude de mandado de busca (direito constitucional à inviolabilidade de domicílio)”.[32] 4. APLICAÇÃO DO ARTIGO 366 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL AOS CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO 4.1 Natureza Jurídica do Artigo 366 do Código de Processo Penal A Lei nº. 9.271/96 modificou o artigo 366 do Código de Processo Penal, que permitia que o réu citado por edital e que não fosse encontrado nem constituísse advogado pudesse ser processado e condenado ao final. Procurou-se com essa alteração aplicar efetivamente a ampla defesa do acusado, bem como evitar uma série de erros judiciários. O direito de ser informado da acusação é irrenunciável, assim, todo acusado tem esse direito, que inclusive tem status de norma constitucional (artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal), já que o mesmo encontra previsão expressa no Pacto de São José da Costa Rica, incorporado pela ordem jurídica interna no Decreto 678/1992, no artigo 8º. Percebe-se pela redação do dispositivo em comento que o legislador teve duas intenções: uma foi a de proteger o próprio direito de defesa do acusado, e a outra foi preservar o direito de punir do Estado. Assim, o motivo autorizador da criação do artigo 366 do Código de Processo Penal foi a ampla defesa, que bifurca-se em defesa técnica e auto-defesa. A defesa técnica é realizada por advogado, sendo indispensável e irrenunciável. Já a autodefesa é aquela feita pelo próprio acusado, mais precisamente em seu interrogatório, no qual o acusado tem o direito de audiência, ou seja, ser ouvido, o direito de presença, que se traduz no direito de comparecer e a capacidade postulatória, que abrange a legitimidade para interpor Habeas Corpus, Recursos etc. Portanto, nos termos do artigo 366, citado o acusado por edital e não comparecendo para o interrogatório nem constituindo advogado nos autos, o processo ficará suspenso, tem como finalidade preservar a autodefesa, já que um defensor desconhecido do acusado, não poderá, efetivamente, exercer a ampla defesa, pois não terá o conhecimento dos fatos. “A modificação ocorrida no art. 366 teve a finalidade de garantir a ampla defesa e o contraditório efetivos do acusado no processo penal. Citado por edital, de maneira ficta, a grande probabilidade é que não tenha a menor ciência de que é réu, razão por que não se defenderá. Suspende-se, então, o andamento do processo, não afetando seu direito de defesa. Mas, pode haver provas urgentes a produzir, cujo atraso implicaria a sua perda, fundamento pelo qual abriu-se a exceção de, sem a certeza de ter sido o acusado cientificado de existência do processo-crime, determinar o juiz a realização de provas consideradas imprescindíveis e imediatas”.[33] Com efeito, o artigo 366 do Código de Processo Penal tem natureza jurídica híbrida, porquanto reúne caráter processual (suspensão do processo), bem como caráter material (suspensão da prescrição). Destarte, entendeu o Supremo Tribunal Federal que o supracitado dispositivo somente se aplica aos crimes cometidos após a entrada em vigor da Lei nº. 9.271/96. 4.2 Suspensão do Processo e da Prescrição Determina o artigo 366 do Código de Processo Penal: “Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312”. Com efeito, citado por edital o acusado não comparece, nem constitui advogado, o processo será suspenso. A finalidade dessa providência de ordem processual reside no fato de que o legislador entendeu que na hipótese em comento deve ser preservada a garantia de que a parte contrária será ouvida, principalmente porque os acusados citados fictamente raramente tomam conhecimento da acusação contra eles realizada. Assim, não poderá ser decretada a revelia do acusado, com a presunção de que ele tomou ciência da imputação, ou seja, caso não haja a certeza do efetivo conhecimento por parte do acusado da ação penal contra ele intentada, fica proibida a decretação de sua revelia. “Em sentido contrário, para efeito analítico, se o acusado, mesmo estando ausente, constituir defensor, o processo prosseguirá em seus regulares atos procedimentais até o julgamento do meritum causae. Nessa hipótese, como é evidente, não poderá ser cogitada a não-imposição da revelia do acusado, uma vez que, se esse constituiu defensor, é porque chegou a seu conhecimento a imputação contra si assacada. Daí sua contumácia que, em última análise, implica ausência injustificada diante do juízo em que o feito tem fluência, e não pode ter o condão de evitar a decretação de sua revelia, que fica exclusivamente reservada àquele acusado que, presumivelmente, não tem conhecimento da acusação que sobre ele incide. Tudo se passa como se ele tivesse sido citado pessoalmente.”[34] O processo e a prescrição não podem ser suspensos indefinidamente, pois isso equivaleria a tornar o delito imprescritível, o que somente é possível nos casos expressos na Constituição Federal. “No caso de ser aplicada a suspensão do processo, fica também suspenso, como visto, o curso do prazo da prescrição. Acrescentou-se, pois, uma nova causa impeditiva da prescrição àquelas previstas no art. 116 do CP. Não se fixa na lei o prazo máximo de suspensão do prazo da prescrição e, por essa razão, alegou-se a inconstitucionalidade do art. 366. Entretanto, pacificou-se o entendimento de que não há inconstitucionalidade do dispositivo, pois com ele ficam asseguradas as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa”.[35] Deste modo, como não há previsão legal regulando o tempo de suspensão do processo e da prescrição, bem como ele é indispensável, surgiram três correntes. A primeira corrente afirma que o processo e a prescrição ficam suspensos por prazo indeterminado, até que o acusado compareça ou constitua advogado. A segunda corrente defende que o prazo de suspensão será o máximo do prazo prescricional em abstrato admitido pelo Código Penal, ou seja, vinte anos. Por fim, a terceira corrente, que é a que prevalece, prega que o prazo de suspensão do processo e da prescrição será o máximo previsto para a prescrição em abstrato do crime cometido. “(…) Assim, por ausência de previsão, tem prevalecido o entendimento de que a prescrição fica suspensa pelo prazo máximo em abstrato previsto para o delito. Depois, começa a correr normalmente. Ilustrando: no caso de furto simples, cuja pena máxima é de quatro anos, a prescrição em abstrato dá-se com oito anos. Por isso, o processo fica paralisado por oito anos sem correr prescrição. Depois, esta retorna seu curso, finalizando com outros oito anos, ocasião em que o juiz pode julgar extinta a punibilidade do réu”.[36] 4.3. Da Inconstitucionalidade do Artigo 2º, § 2º, da Lei 9.613/1998 Determina o artigo 2º, § 2º, da Lei 9.613/1998, que: “No processo por crime previsto nesta Lei, não se aplica o disposto no art. 366 do Código de Processo Penal”. Assim, a Lei de Lavagem de Dinheiro não autoriza a suspensão do processo e do curso do prazo de prescrição ao acusado que, citado por edital, não comparece à audiência nem constitui advogado. A justificativa para a não aplicação do artigo 366 do Código de Processo Penal, é que a sua incidência representaria um prêmio ao acusado por um crime tão grave e que iria protelar o devido processo constitucional, além do que trata-se de uma norma processual penal especial. Ademais, afirmam ser o instituto um elemento importante para evitar-se a impunidade. Todavia, a vedação da aplicação do instituto supramencionado é absurdamente inconstitucional, isto porque, afronta diretamente o direito individual ao contraditório e a ampla defesa previstos na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LV: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Outrossim, não há que se falar em prêmio ao acusado, posto que, por se tratar de uma norma mista, possuindo conteúdo tanto material quanto processual, permite a suspensão do processo e do prazo prescricional, bem como autoriza a produção antecipada de provas e a decretação de prisão preventiva, sempre que presentes seus requisitos. “Bem de ver, ainda, que a redação atual do art. 366, CPP não representa um escudo para a proliferação da impunidade. Ao contrário. O próprio legislador confere ao juiz a possibilidade de determinar a produção antecipada de provas consideradas urgentes. Além disso, o benefício da suspensão do processo é compensado com a suspensão do prazo prescricional, cuja medida constitui um sério fardo imposto àquele que se encontre em local incerto e não sabido. E mais ainda, está o juiz autorizado a decretar a prisão preventiva do acusado, e ela é viável de ser determinada para a garantia da instrução do processo”.[37] Com efeito, apesar de determinar no artigo 2º, § 2º, a inaplicabilidade da suspensão do processo e do prazo prescricional, prevê, na mesma lei, no artigo 4º, § 3º, sua incidência, no tocante à restituição dos bens apreendidos em virtude de indícios da prática de lavagem de dinheiro, o que nos revela a contradição da própria lei. “Contradição autofágica: se no art. 2º, § 2º, o legislador prescreveu a inaplicabilidade do art. 366 do CPP, no art. 4º, § 3º, está prevista sua incidência. É uma contradição inexplicável. E autofágica em relação àquele preceito. A qualidade da produção legislativa, como se vê tem sido deplorável. Como pode o legislador dizer no art. 2º que um tal dispositivo não é aplicável e logo em seguida, dois artigos depois, dizer que esse mesmo preceito é aplicável? Legislação apopética é autofágica. Nesses casos, como se sabe, deve sempre prevalecer o preceito que mais amplia a liberdade”.[38] Portanto, estamos diante de uma antinomia jurídica, na qual o operador do direito deverá valer-se dos princípios gerais do direito, bem como da proporcionalidade e razoabilidade a fim de alcançar a melhor solução. Neste mesmo sentido vem a teoria da tipicidade conglobante, a qual nos auxilia nesta contradição legal. “A tipicidade conglobante é a comprovação de que a conduta legalmente típica está também proibida pela norma, o que se obtém desentranhando o alcance da norma proibitiva conglobada com as restantes normas da ordem normativa. Atua como um corretivo da tipicidade legal, posto que pode excluir do âmbito típico aquelas condutas que apenas aparentemente estão proibidas (…)”[39] Assim, devemos primar pelos direitos e garantias previstos na Constituição Federal, que assegura a todos o contraditório e a ampla defesa, aplicando-se, portanto o artigo 366 do Código de Processo Penal, visto que referida proibição é completamente inconstitucional. “(…) cuida referido artigo (366) da suspensão do processo decorrente da citação por edital. O direito de ser informado da acusação é impostergável (v. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 8º, que tem ‘status’ constitucional, por força do art. 5º, § 2º, da CF). Todo acusado tem esse direito. Faz parte da ampla defesa. É garantia constitucional, que não pode ser suprimida pelo legislador infraconstitucional. Conclusão: o art. 2º, § 2º, da Lei 9.613/98 ganhou vigência, mas não possui validez (Ferrajoli). Não é juridicamente válido. É um nada jurídico”.[40] Destarte, diante a inconstitucionalidade do supracitado artigo da Lei de Lavagem de Dinheiro, bem como do conflito legal entre os dispositivos (artigo 2º, § 2º e artigo 4º, § 3º), a solução extraída é a aplicação da norma mais benigna, ou seja, a que ordena a suspensão do processo e da prescrição, quando o acusado, citado por edital, não comparece à audiência nem constitui advogado. CONCLUSÃO Como se viu, o fenômeno do delito de lavagem de dinheiro vem recebendo cada vez mais atenção nos últimos anos. Em vários países, é cada vez mais discutido formas para se evitar a proliferação e a impunidade a este crime. Historicamente, remonta-se o surgimento da expressão ‘lavagem de dinheiro’ a um fenômeno ocorrido nos Estados Unidos por volta dos anos 20, quando foi montada uma rede de lavanderias para aparentar a procedência lícita do dinheiro auferido com a prática de atividades delitivas. Entretanto, o marco fundamental na criminalização da lavagem de dinheiro foi a Convenção de Viena de 1988, sobre o tráfico de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, que fazia referência expressa à ‘lavagem de dinheiro’ como conversão, transferência, ocultação ou encobrimento da natureza, origem, localização, destino, movimentação ou propriedade verdadeira dos bens decorrentes de atividades ilícitas. Ao abordarmos o crime em comento, estudamos que o mesmo depende da prática de crimes precedentes, bem como este fenômeno vem alcançando dimensões extraordinárias, gerando, como conseqüência, a preocupação dos governos como dos organismos internacionais. Isto se deve ao crescimento da criminalidade organizada. Nosso objetivo é mostrar a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 2º, da Lei 9.613/1998, que veda a aplicação do artigo 366, do Código de Processo Penal, isto porque, afronta diretamente o direito individual ao contraditório e a ampla defesa previstos na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LV. Segundo o instituto previsto no artigo 366, do Código de Processo Penal, citado o acusado por edital e não comparecendo para o interrogatório nem constituindo advogado nos autos, o processo ficará suspenso, tem como finalidade preservar a autodefesa, já que um defensor desconhecido do acusado, não poderá, efetivamente, exercer a ampla defesa, pois não terá o conhecimento dos fatos. Ademais, busca-se com a suspensão do processo e da prescrição efetivamente a ampla defesa do acusado, bem como evitar uma série de erros judiciários. Com efeito, o direito de ser informado da acusação é irrenunciável, assim, todo acusado tem esse direito, que inclusive tem status de norma constitucional (artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal), já que o mesmo encontra previsão expressa no Pacto de São José da Costa Rica, incorporado pela ordem jurídica interna no Decreto 678/1992, no artigo 8º. Outrossim, apesar de determinar no artigo 2º, § 2º, a inaplicabilidade da suspensão do processo e do prazo prescricional, prevê, na mesma lei, no artigo 4º, § 3º, sua incidência, no tocante à restituição dos bens apreendidos em virtude de indícios da prática de lavagem de dinheiro, o que nos revela a contradição da própria lei. Destarte, devemos objetivar sempre os direitos e garantias previstos na Constituição Federal, que assegura a todos o contraditório e a ampla defesa, aplicando-se, portanto o artigo 366 do Código de Processo Penal, visto que referida proibição é completamente inconstitucional.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-80/aplicacao-do-artigo-366-do-codigo-de-processo-penal-aos-crimes-de-lavagem-de-dinheiro/
A prova pericial no Direito Processual Penal brasileiro
Ao ser definido um paralelo entre a prova pericial e os demais meios de provas admitidos pelo Direito Processual Penal Brasileiro, observa-se que estas poderão se tornar frágeis e inexatas, acabando por prejudicar a aplicação do direito ao caso concreto, frente àquela proveniente de um minucioso estudo técnico científico que se projeta no meio material por intermédio de um laudo pericial. Hipoteticamente analisando a processualística penal, esta mostra que o magistrado se valerá dos princípios do livre convencimento motivado, e, também da livre apreciação da prova, podendo, dessa forma, se valer de qualquer meio de prova quando da realização do julgamento, inclusive da prova pericial, com peso especial quando necessário, devendo, nesse contexto, motivar sua convicção. Consoante ao exposto acima, revela-se a importância do estudo aprofundado a respeito da prova pericial no direito processual penal brasileiro, pois, os operadores jurídicos e agentes políticos necessitam de meios eficazes e atuantes para combater à criminalidade, objetivando proporcionar aos cidadãos, a paz social, tão fundamental em um Estado democrático de direito.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO Afirma-se que a necessidade de provar teve origem na antiguidade, onde, na pré-história existiam diversas formas de prova, tais como: a confissão, o juramento, o testemunho para se obter os esclarecimentos acerca de um fato, dentre outros. A prova escrita foi utilizada primeiramente pelos babilônicos, e, mais tarde, pelos egípcios e hebreus. Na Grécia antiga utilizava-se como prova, tanto nas causas cíveis como nas criminais, a confissão nas sentenças condenatórias. Nas sociedades primitivas inexistia a figura da prova, primeiramente devido ao fato de que o mais forte era o vencedor do conflito, e, depois, em decorrência da autocomposição, para a qual não se detinha uma decisão sobre quem possuía razão, mas abdicação de todo ou de parte do direito. No entanto, com a evolução social e o fortalecimento do Estado, no período do surgimento dos árbitros, é que os primeiros sistemas de provas começaram a surgir. Contudo, observa-se que à medida que a sociedade se desenvolvia, o Estado se fortalecia, aparecendo novos mecanismos de estruturação e administração social. Incluso nas relações de conflito, surgiu a arbitragem obrigatória, havendo, a partir de então, a predominância da justiça pública sobre a privada, ficando a religião de fora do processo de solução dos conflitos. Por ocasião disso, necessário se tornou a demonstração dos argumentos trazidos para que a parte fosse vitoriosa em sua pretensão, abrindo-se, dessa forma, o campo para a produção de provas dos acontecimentos e fatos. 1. CONCEITO DE PROVA Salienta SANTOS (1952) que no sentido comum, prova significa verificação, inspeção, exame, confirmação, reconhecimento por experiência, experimentação, revisão, comprovação, confronto, e, menciona ainda, que este vocábulo é usado para indicar tudo àquilo que pode nos convencer de um fato, das qualidades boas ou más de uma coisa, da exatidão de uma coisa. Já, quanto ao sentido jurídico, o autor afirma que: “[…] o vocábulo é empregado em várias acepções: Significa a produção dos atos ou dos meios com os quais as partes ou o juiz entendem afirmar a verdade dos fatos alegados (“actus probandi”); significa ação de provar, de fazer a prova. Nessa acepção se diz: a quem alega cabe fazer a prova do alegado, isto é, cabe fornecer os meios afirmativos de sua alegação. Significa o meio de provar considerado em si mesmo. Nessa acepção se diz: prova testemunhal, prova documental, prova indiciária, presunção. Significa o resultado dos atos ou dos meios produzidos na apuração da verdade. Nessa acepção se diz: o autor fez a prova da sua intenção, o réu fez a prova da exceção.” A partir da presente definição, observa-se a caracterização da prova como meio, onde, a prova seria um instrumento utilizado para a demonstração da existência dos fatos pertinentes e/ou essenciais ao processo. Porém, afirma-se que não basta a mera realização do ato em si, mas, há de ser verificado a validade, moralidade e legalidade dos procedimentos, bem como sua co-relação com os fatos controversos, apresentando, como meio e fim ao mesmo tempo. E, em rápidas pinceladas, porque esta questão será abordada no desenvolver deste trabalho, menciona-se que a prova pericial pode ser definida como sendo uma modalidade de prova caracterizada por levar ao juiz, elementos instrutórios de ordem técnica, podendo consistir em uma declaração de ciência, na afirmação de um juízo ou em ambas as operações simultaneamente. 2. ELEMENTOS DA PROVA Os elementos da prova são conceituados como sendo as afirmações e os fatos comprovados que se encontram no mundo real e são levados ao processo, como por exemplo, o exame de corpo de delito. O processo penal brasileiro admite todas as provas obtidas através de meio lícito, e, não somente àquelas arroladas no Código de Processo Penal Brasileiro, se destacando como exemplos, as filmagens, as interceptações telefônicas, dentre outras. Ensina TOURINHO (2004), acerca do conceito de elementos da prova: “[…] são todos os fatos ou circunstâncias em que repousa a convicção do juiz”. Ressalta-se, que a perícia é responsável por detectar e analisar os elementos da prova, sendo posteriormente levados ao processo, se apresentando como sendo a capacidade teórica e prática com a função de empregar determinado campo de conhecimento, alcançando sempre os mesmos resultados. A perícia criminal é materializada através do exame pericial, que é um ato de instrução que poderá ocorrer na persecução criminal, tanto na fase do inquérito policial, quanto na fase processual penal. Todavia, ressalta-se que a prova pericial será admitida na instrução probatória no processo penal, mesmo que levantada no inquérito policial, ficando dessa forma, postergado o contraditório, não existindo, nesse sentido, a repetição do exame pericial no processo penal, quando houver sido realizado no inquérito policial inquisitivo.   Com exceção do exame pericial, todos os atos praticados na fase de inquérito policial se consideram meras informações na fase processual penal, não apresentando valor probatório algum, como por exemplo, o reconhecimento de autoria e declarações de pessoas. Mesmo considerando que a prova pericial tem força probante em juízo, até quando realizada na investigação preliminar, afirma-se que no processo penal brasileiro não vigora o sistema vinculatório, onde, o magistrado está adstrito ao laudo, que prevaleceria sobre a prova testemunhal. 3. MEIOS DE PROVA ADMITIDOS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO Salienta MIRABETE (2005), acerca de meios de prova: “Meios de prova são as coisas ou ações utilizadas para pesquisar ou demonstrar a verdade através de depoimentos, perícias, reconhecimentos etc. Como no processo penal brasileiro vige o principio da verdade real, não há limitação dos meios de prova. A busca da verdade material ou real, que preside a atividade probatória do juiz, exige que os requisitos da prova em sentido objetivo se reduzam ao mínimo, de modo que as partes possam utilizar-se dos meios de prova com ampla liberdade”. Portanto, meios de prova é conceituado como tudo aquilo que puder servir direta ou indiretamente à comprovação da verdade real pela qual se busca no processo. Quanto à questão da classificação das provas, relacionada aos meios de prova empregados em direção à reprodução da prova, dependendo dos meios utilizados, esta pode ser pessoal (referente a pessoas), e, real (referente a coisas). A prova pessoal caracteriza-se por ser aquela resultante da atividade de uma pessoa (exemplo: depoimentos). Já a prova real se configurará quando impulsionada pela observação ou pela existência nos autos da coisa em si, exemplificando, tem-se os instrumentos utilizados na prática do delito. Salienta-se, ainda, que os vários meios de prova especificados no Código de Processo Penal Brasileiro, constituem os chamados meios legais de prova. 4. PROVA ILÍCITA Conceitua CAPEZ (2007) prova ilícita, da seguinte forma: “Como aquela que for vedada, em virtude de ter sido produzida com afronta a normas de direito material. Desse modo, serão ilícitas todas as provas produzidas mediante pratica de crime ou contravenção, as que violem normas de direito civil, comercial ou administrativo, bem como aquelas que afrontem princípios constitucionais”. Dentro desse contexto, o artigo 5°, inciso LVI, da Constituição da República Federativa do Brasil/88 afirma que a convicção do órgão jurisdicional somente pode ser formada com base em provas obtidas através de meios legalmente admitidos, onde, as provas ilícitas deverão ser imediatamente rechaçadas, objetivando, nesse sentido, resguardar importantes garantias em relação à ação persecutória Estatal. Entretanto, a inadmissibilidade das provas ilícitas não é absoluta, pois, quando o intuito é corrigir possíveis distorções a que a rigidez de seu banimento poderia causar situações de excepcional gravidade, a doutrina constitucional moderna tem preconizado uma leve atenuação quanto à vedação das provas ilícitas. Torna-se de suma importância, mencionar também, a existência na doutrina de diferenciações quanto à prova ilegal, prova ilegítima e prova ilícita. Na concepção de MORAES (2003), prova ilegal é definida como aquela que afronta qualquer norma legal ou princípio geral do ordenamento jurídico, tanto podendo ser de natureza processual, quanto, material; já prova ilícita será aquela que contrariar dispositivos do direito material, e, finalizando, prova ilegítima é conceituada como sendo aquela que avilta normas de direito processual. 5. TEORIA DA PROPORCIONALIDADE De acordo com MIRABETE (2005), a teoria da proporcionalidade, revela-se quando, após analisado o caso concreto, deverá priorizar-se o princípio considerado mais importante frente à respectiva situação considerada. No curso do que foi previamente apresentado acima, a moderna doutrina constitucional tem admitido uma atenuação à vedação constitucional de admissibilidade das provas ilícitas, no intuito de corrigir possíveis injustiças que a rigidez da exclusão poderia gerar em casos de excepcional gravidade. Convém salientar que a teoria da proporcionalidade tem ocorrência quando há conflito entre normas constitucionais garantidoras de direitos, onde, que se violados, poderão atingir, direta ou indiretamente, a dignidade da pessoa humana. Portanto, a teoria da proporcionalidade é aplicada quando, no caso concreto, existe o choque entre preceitos constitucionais de relevância paritária. Aduz GRECO FILHO (1999), a respeito da mencionada teoria que: “[…] entendo, porém, que a regra não seja absoluta, porque nenhuma regra constitucional é absoluta, uma vez que tem de conviver com outras regras ou princípios também constitucionais. Assim, continuará a ser necessário o confronto ou peso entre os bens jurídicos, desde que constitucionalmente garantidos, a fim de se admitir, ou não, a prova obtida por meio ilícito. Veja-se, por exemplo, a hipótese de uma prova decisiva para a absolvição obtida por meio de uma ilicitude de menor monta. Prevalece o princípio da liberdade da pessoa, logo a prova será produzida e apreciada, afastando-se a incidência do inc. LVI do art. 5° da Constituição, que vale como princípio, mas não absoluto, como se disse”. A teoria ganha ainda mais relevo e aceitação quase que unânime quando se tratar da utilização, em processo penal, da prova favorável ao réu, ainda que coligida com infringência a direitos fundamentais seus ou de terceiros. 6. PROVA ILÍCITA PRO REO Levando-se em consideração a questão de que nenhum direito preconizado pela Constituição da República Federativa do Brasil/88 tem caráter absoluto, verifica-se que a doutrina e a jurisprudência, atualmente têm aceitado exceções no que concerne a vedação constitucional das provas ilícitas, principalmente, frente ao dispositivo constitucional que assegura a todo o réu a ampla defesa, podendo este fazer uso dos meios e recursos a ela inerentes (artigo 5°, inciso LV, da Constituição da República Federativa do Brasil/88). Dentro desse contexto, informa-se que existe posicionamento praticamente unânime no sentido de reconhecer a possibilidade de o réu utilizar-se, em sua defesa, da prova que lhe seja mais favorável, até mesmo quando obtida de forma a desrespeitar direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Destaca-se que o processo penal rege-se pelo princípio do favor rei, onde, em sintonia com esse, encontra-se expressamente assegurada na Carta Magna, à ampla defesa, “com meios e recursos a ela inerentes”, o que faz com que se estabeleça a plenitude de defesa como condição preponderante e prioritária quando em confronto com outros princípios, mesmo que constitucionalmente reconhecidos. Relata-se também, que a prova obtida com violação aos princípios e preceitos constitucionais, quando colhida pelo próprio acusado em seu favor, terá sua ilicitude afastada pelas causas excludentes previstas em lei, sendo elas: a legítima defesa, e, a inexigibilidade de conduta diversa, por parte de quem está sendo injustamente acusado. 7. PROVA ILÍCITA POR DERIVAÇÃO Prova ilícita por derivação é conceituada como aquela em que em si mesma é lícita, contudo, revela-se, que somente se chegou a ela, em decorrência de informação obtida de prova ilicitamente colhida. Considerando um posicionamento mais sensível aos direitos humanos consagrados pela Constituição da República Federativa do Brasil/88, afirma-se que uma prova colhida em desarmonia para com os preceitos fundamentais constitucionais transmitirá sua ilicitude a todas as provas dela decorrentes, devendo por isso, ser banida do processo. Ressalta-se que no Brasil, não há qualquer disposição legal acerca da prova ilícita por derivação, sendo que a solução dos casos é buscada através da doutrina e da jurisprudência. Certamente, a posição mais sensível às garantias da pessoa humana e mais afinada com a moderna concepção do processo penal, voltada à tutela da liberdade dos acusados, é no sentido de inadmitir-se as provas ilícitas por derivação, a posição do Supremo Tribunal Federal, é clara no sentido de que as provas ilícitas por derivação não devem ser aceitas, em consonância com a doutrina dos frutos da árvore envenenada e pelo efeito preventivo do disposto no artigo 5º, LVI, da Constituição da República Federativa do Brasil/88. 8. PRINCIPAIS ALTERAÇÕES DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PELA LEI N. 11.690/08, QUANTO À PROVA PERICIAL O ordenamento jurídico processual penal pátrio passou atualmente por grandes mudanças, principalmente, frente à entrada em vigor das seguintes leis: Lei n. 11.689/08, que estabeleceu um novo perfil ao tribunal do júri; Lei n. 11.690/08, que definiu modificações na instrução probatória, e, também, através da Lei n. 11.719/08, que apresentou novas regras procedimentais. Nesse contexto, a Lei n. 11.690, de 09 de junho de 2008, alterou o Código de Processo Penal Brasileiro no que concerne à produção e à apreciação da prova, onde, o legislador buscou dar efetividade ao direito de defesa, e, também ao contraditório, ambos assegurados na Constituição da República Federativa do Brasil/88. 8.1. PROVA PERICIAL A prova pericial é definida como sendo uma prova técnica, pois, representa algo que se objetiva certificar acerca da existência de fatos, a partir de conhecimentos específicos. Menciona-se, ainda, que a prova pericial através de sua materialização instrumental, isto é, do laudo pericial, demonstra a peculiaridade de ser uma função estatal destinada a fornecer dados instrutórios. Verifica-se que várias foram às inovações trazidas ao campo probatório, onde, verifica-se que a prova pericial sofreu algumas alterações, sendo elas: o número de peritos, a possibilidade de admissão de assistentes, e, também o exercício da prerrogativa do contraditório. 8.2. PERITOS O perito criminalístico possui inúmeras atribuições, entretanto, pode-se dizer que este exerce a função principal de fornecedor de dados instrutórios de natureza material destinados à descoberta da verdade, se dedicando à apuração de fatos supostamente considerados delitivos, ou seja, examinando situações fáticas, no mínimo, aparentemente criminosas.  Atualmente, de acordo com a legislação em vigor, exige-se que o perito oficial tenha diploma de curso superior, de acordo com a nova redação dada ao artigo 159 do Código de Processo Penal Brasileiro pela Lei n. 11.690/08, todavia, os peritos que ingressaram sem a exigência de curso superior até a data da entrada em vigência da Lei n. 11.690/08, poderão continuar a exercerem seu ofício, exclusivamente, nas respectivas áreas para as quais foram habilitados, ressalvados, os peritos médicos, conforme o artigo 2º, da Lei n. 11.690/08. 8.3. COMPROMISSO DOS PERITOS O perito oficial que quando foi empossado em seu cargo já assumiu seu compromisso, não será compromissado pela autoridade, uma vez que a assunção do compromisso se deu quando do ato de sua posse. Por outro lado, os peritos não-oficiais deverão prestar seu compromisso de fielmente desenvolver suas atribuições, através de um juramento (artigo 159, parágrafo 2º do Código de Processo Penal Brasileiro). Contudo, frente à ausência do compromisso de juramento, ocorrerá mera irregularidade, que não terá o condão de macular o laudo pericial. 8.4. NÚMERO DE PERITOS A redação anterior do artigo 159 do Código de Processo Penal Brasileiro preconizava que a perícia deveria ser realizada por dois peritos oficiais, onde, na falta destes, por duas pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior e com habilitação técnica relacionada à natureza do exame pericial necessário. Com o advento da Lei n. 11.690/08, proporcionou-se uma nova redação ao caput do mencionado artigo, passando a exigir apenas um perito oficial e que este portasse diploma superior. Entretanto, em se tratando de uma perícia complexa a ser realizada, em decorrência de abranger mais de uma área de conhecimento especializado, o magistrado poderá nomear mais de um perito oficial, e a parte possui a faculdade de indicar mais de um assistente técnico.  (artigo 159, parágrafos 1º e 7º, do Código de Processo Penal Brasileiro). 8.5. ASSISTENTE TÉCNICO A Lei n. 11.690/08 disponibiliza as partes, ao Ministério Público, ao querelante, ao assistente de acusação, e, também ao acusado a prerrogativa de elaborarem quesitos e indicarem assistente técnico, sendo que este passará a atuar a partir de sua admissão pelo magistrado, e, somente após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelo perito oficial, com intimação das partes (artigo 159, parágrafos 3º e 4º, do Código de Processo Penal Brasileiro). 8.6. PROVA PERICIAL E CONTRADITÓRIO Salienta-se que todas as provas devem ser submetidas ao contraditório, devendo também ser produzidas diante do juiz, na instrução. Todavia, em algumas ocasiões se faz necessário a imediata produção da prova pericial, antes do encerramento da fase de investigação, afim de comprovar-se cabalmente a materialidade do delito e identificação de sua autoria. Em virtude disso, quando da realização das provas de natureza cautelar não será possível a participação da defesa, sob o risco de ser inviabilizada a persecução penal. Nesse sentido, quando da produção da prova pericial, o contraditório somente será realizado em juízo (artigo 155, caput do Código de Processo Penal Brasileiro), limitando-se ao exame acerca da idoneidade do profissional responsável pela perícia, e, também, das conclusões alcançadas, quando já perecido o material periciado. Em consequência disso, o objeto da prova, na maioria das vezes, será a qualidade técnica do laudo, e, especialmente, o cumprimento das normas legais a ele pertinentes, por exemplo, a exigência de motivação, de coerência, de atualidade e idoneidade dos métodos, dentre outros. 8.7. MATERIAL PROBATÓRIO O material pericial analisado será disponibilizado no ambiente do órgão oficial, desde que, possa ser conservado de maneira correta e mantida sob a responsabilidade do órgão oficial, afim de que os assistentes tenham acesso a ele, podendo, dessa forma, elaborar os pareceres pertinentes (artigo 159, parágrafo 6º do Código de Processo Penal Brasileiro) Considerações Finais Ressalta-se, que a procura de subsídios e fundamentos à produção de prova pericial, representados através de elementos de exatidão e convicção na busca da garantia do direito e da verdade, deverá ter prioridade na análise das políticas públicas de segurança, afim, de que o Estado possa proporcionar uma segurança jurídica eficaz no que concerne à aplicação da justiça. Portanto, a prova pericial é fundamental para a ocorrência de um processo penal justo, legal e coerente.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-80/a-prova-pericial-no-direito-processual-penal-brasileiro/
Provas ilícitas e o devido processo legal: Uma análise a partir da Lei nº. 11.690/2008
Analisa o grau de realização do princípio do devido processo legal, a partir da novel redação emprestada ao artigo 157 do Código Processual Penal brasileiro pela Lei n.º 11.690/2008, referente à matéria de inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas ilicitamente.
Direito Processual Penal
Introdução Previsto no art. 5º, inciso LIV, o princípio do devido processo legal figura como direito e garantia fundamental àquele que se encontra sob o alvo de um processo judicial ou administrativo. Entender um processo como devido significa dizer que em todos os seus momentos devam ser obedecidas regras e princípios que o torne salutar e o faça atingir seu primordial objetivo de prestação efetiva da tutela jurisdicional. Dentre tais princípios decorrentes do processo devido, encontra-se a vedação constitucional inserta no inciso LVI do mesmo artigo, que diz serem “inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Com o fito de aumentar o grau de realização desse valor-princípio, a Lei n.º 11.690, de 10 de junho de 2008, trouxe inovações ao texto legal do Código de Processo Penal, alterando a redação de seu artigo 157 e acrescentando parágrafos ao mesmo, concernente ao tema da inadmissão de provas obtidas ilicitamente para o processo penal, de maneira a tornar uníssono, em âmbito constitucional e infraconstitucional, o discurso sobre a matéria, que já possuía assentos doutrinário e jurisprudencial bem firmados. Tendo como ponto de partida a trilogia valorativa da citada lei reformadora, qual seja, buscar alterações com o escopo dar maior celeridade, simplicidade e segurança ao processo penal e com isso alcançar a efetiva prestação jurisdicional, verificar-se-á em qual medida a novel redação emprestada ao artigo 157 do Código Processual Penal realizará tais valores, sem, contudo, implicar em possíveis furtos aos direitos e garantias fundamentais do acusado. Dar-se-á especial importância à vedação imposta pela Presidência da República ao § 4º do mencionado artigo do tabulário processual penalista, uma vez que desconsiderou a figura do juiz da causa como sujeito capaz de sofrer influenciações das provas obtidas ilicitamente e expurgadas do processo. Ao desenvolvimento, pois. 1 Processo Penal como garantia do acusado Antes do advento da Carta Política de 1988, o princípio fundamental que norteava o Código Processual Penal brasileiro era o da presunção de culpabilidade do acusado, sendo este apontado como potencial e virtual culpado. Dentro dessa perspectiva, o processo penal apresentava peculiares características de conotação evidentemente autoritárias, onde, na balança entre a tutela da segurança pública e a tutela da liberdade individual, prevalecia a preocupação quase que exclusiva com a primeira, e a busca da verdade real dava azo a práticas autoritárias e abusivas por parte dos poderes públicos.[1] O caráter rígido que permeava o processo penal foi sofrendo flexibilizações com o passar dos tempos, sendo alteradas inúmeras regras restritivas do direito à liberdade. Com o advento da Constituição Federal de 1988, tais alterações operaram no sentido diametralmente oposto ao que apontava o antigo regime penal-processualista. Segundo aponta Eugênio Pacelli[2], “enquanto a legislação codificada pautava-se pelo princípio da culpabilidade e da periculosidade do agente, o texto constitucional instituiu um sistema de amplas garantias individuais”. Continua o renomado autor, explicitando a mudança de ares trazida com o novo diploma político: “A mudança foi radical. A nova ordem passou a exigir que o processo não fosse mais conduzido, prioritariamente, como mero veículo da aplicação da lei penal, mas, além e mais que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado”.[3] O processo penal, portanto, passou a ser instrumento em favor do acusado, passando a ser devido, ou seja, deve obediência a uma série de princípios dos quais este (due process of law) é fonte fundamental. Desse modo, o processo penal é uma garantia que, antes de ser meio para a condenação, é meio de defesa efetiva do acusado, pois todos os seus princípios devem ser observados. Nessa esteira, César Dario Mariano da Silva aponta: “O processo, como o meio pelo qual o Estado exerce a jurisdição, tem de ser pautado pela estrita legalidade. Essa legalidade nada mais é do que a observância aos mandamentos constitucionais e legais que regem tanto o processo civil quanto o penal. É uma garantia das partes, que vêem no Estado o mecanismo para a solução de seus conflitos de interesses. Assim, há necessidade da perfeição do ato judicial para que ele possa produzir seus efeitos, sob pena de ser declarado inválido ou ineficaz”.[4] As características que passaram a figurar no processo penal, dessa forma, apresentaram conotação amplamente garantista, de um processo construído sob os rigores da lei, da ética (na conduta) e do Direito, cuja observância passou a ser imposta a todos os agentes do Poder Público, de maneira que a verdade, agora judicial, fosse o resultado da atividade probatória licitamente desenvolvida.[5] Para o momento, todavia, analisam-se, como garantias que devem ser asseguradas no processo penal, apenas a inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente e a imparcialidade do órgão julgador, quando em contato com as referidas provas de procedência ilícita, de acordo com a reformadora Lei Federal n.º 11.690/2008. Primeiramente, mostrar-se-á em breves linhas como se deu a necessidade de imposição de limitações ao Estado, quando da persecução penal. Em seguida, discorre-se sobre as alterações advindas com a lei reformadora, visando a manifestação legal infraconstitucional a respeito da inadmissibilidade das provas ilicitamente obtidas, para, finalmente, tecer-se alguns comentários acerca da imparcialidade do juiz no tocante à matéria. 2 A reconstrução dos fatos através da prova e a necessidade de limitações ao Estado Antes de se apontar as inovações trazidas pela Lei n.º 11.690/2008, mister fazer um breve incurso sobre o tema da realização da atividade probatória desenvolvida pelo Estado, quando funcionando em razão da persecutio criminis. Trata-se, simplesmente, da tentativa de busca da verdade para a aplicação do direito ao caso em espécie. Conforme descreve Eugênio Pacelli[6], “Ao longo de toda a sua história, o Direito defrontou-se com o tema da construção da verdade, experimentando diversos métodos e formas jurídicas de obtenção da verdade, desde as ordálias e juízo de deus (ou dos deuses), na Idade Média, em que o acusado submetia-se a determinada provação física (ou suplício), de cuja superação, quando vitorioso, se lhe reconhecia a veracidade de sua pretensão, até a introdução da racionalidade nos meios de prova.” A partir dessa visão racionalista, onde se buscaram meios para a construção da realidade histórica dos fatos (delituosos), é que começaram a surgir limitações impostas ao Estado, no momento da persecução penal. Isto porque ele, o Estado, é o detentor monopolista da atividade jurisdicional e rejeita toda e qualquer forma de solução privada e unilateral dos conflitos, mormente os de natureza penal[7]. Desse modo, “Para a consecução de tão gigantesca tarefa, são disponibilizados diversos meios ou métodos de prova, com os quais (e mediante os quais) se espera chegar o mais próximo possível da realidade dos fatos investigados, submetidos, porém, a um limite previamente definido na Constituição Federal: o respeito aos direitos e às garantias individuais, dos acusados e de terceiros, protegidos pelo imenso manto da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente.”[8] (grifo do autor). A Lei n.º 11.690/08, em consonância com a limitação constitucional prevista, acabou por disciplinar a matéria da provas ilícitas no Código Processual Penal. Vejamos suas nuances. 3 A Lei n.º 11.690/2008 e suas inovações acerca das provas ilícitas O já mencionado princípio da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente encontra previsão expressa em nossa Carta Constitucional, em seu artigo 5º, inc. LVI, e sofreu regulamentação da recente Lei reformadora do Código Processual Penal brasileiro, que alterou o seu artigo 157 e acrescentou parágrafos ao mesmo, passando a ter a seguinte redação: “Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. § 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. § 2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. § 3º Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente. § 4º O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão. (VETADO)”. À época, Luiz Flávio Gomes já noticiava alguns dos benefícios mais evidentes trazidos pela alteração legal. Segundo o respeitado jurista, o artigo dava dois passos à frente, o primeiro determinando que as provas ilícitas deveriam ser desentranhadas do processo, e o segundo estando no conceito de provas ilícitas contido no corpo do artigo, qual seja: “as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. Para LFG, a nova regulamentação do art. 157, além de a) coibir práticas infracionais do próprio Estado e assegurar direitos e garantias individuais de todos, acabou por b) fixar parâmetros legais dentro dos quais não mais se poderá alegar nulidade.[9] A questão de se coibirem práticas abusivas do Estado (primeiro ponto), quando da persecução penal, no que tange à obtenção de provas, já figurava como um discurso de rotina no âmbito jurisprudencial e doutrinário, sempre destacando a tutela das garantias individuais do acusado em face do aparato estatal. Significa dizer que o Estado não poderá a todo custo e de qualquer modo promover a persecução penal, podendo fazê-la somente de acordo com a estrita legalidade, a fim de encontrar a verdade judicial a partir de uma atividade probatória licitamente desenvolvida. Quanto à fixação de parâmetros legais (segundo ponto), a nova redação dada ao art. 157, caput, do CPP diz serem ilícitas as provas obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. Todavia, pondera César Dario, tal violação não se opera a todo e qualquer tipo de norma ou princípio constitucional, mas apenas naqueles casos em que houver desrespeito a normas ou princípios de direito material relacionados com a proteção das liberdades públicas (colhida mediante tortura, violação do domicílio, sigilo das conversações telefônicas, da correspondência, da intimidade, v.g.).[10] Luiz Flávio Gomes, complementando o raciocínio exposto, entende que a prova ilícita, além de se enquadrar como aquela obtida mediante ofensa a direito material tocante às liberdades públicas, possui natureza extraprocessual, ou seja, é externa ao processo penal.[11]  Diferentemente ocorre com a denominada prova ilegítima, que possui natureza processual e não implica em qualquer infração de norma material, mas, tão-somente, em infração de norma processual. Desse modo, a violação de norma de natureza processual não levará à ilicitude da prova (sistema de inadmissibilidade), mas à sua nulidade (sistema de nulidade)[12]. Poder-se-ia tomar, assim, a prova ilegal como gênero, das quais são espécies a prova ilegítima (que atenta contra norma processual) e a prova ilícita (que viola princípio constitucional).[13] Entender a diferenciação entre os sistemas (inadmissibilidade e nulidade) possibilita realizar a seguinte inferência prática: toda prova ilícita será processualmente ilegítima, mas nem toda prova ilegítima será considerada ilícita, salvo quando a nulidade também caracterizar violação a norma de direito constitucional, relacionada à proteção das liberdades públicas, bem como violação a norma legal, que implique infração a direito material. [14]–[15] Para Luiz Flávio Gomes[16], “o que é decisivo para se descobrir se uma prova é ilícita ou ilegítima é o locus da sua obtenção: dentro ou fora do processo. De qualquer maneira, combinando-se o que diz a CF, art. 5º, inc. LVI (“São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos) com o que ficou assentado no novo art. 157 do CPP (“ilícitas são as provas obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”), se vê que umas e outras (ilícitas ou ilegítimas) passaram a ter um mesmo e único regramento jurídico: são inadmissíveis” (cf. PACHECO, Denílson Feitoza, Direito processual penal, 3. ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2005, p. 812). (grifo nosso).      A inserção do § 1º, no art. 157, foi a primeira manifestação positivada em nosso ordenamento jurídico a respeito da inadmissibilidade de provas ilícitas por derivação, posição já consolidada pelo Supremo Tribunal Federal, referente à teoria criada pela Suprema Corte norte-americana, denominada fruit of the poisonous tree (frutos da árvore envenenada), onde o defeito da árvore se transmite a seus frutos, ou seja, em sendo a prova obtida ilicitamente, as que dela decorrerem e guardarem nexo de causalidade também assim o serão. A própria redação do mencionado dispositivo faz a ressalva dos casos em que não há a necessária correlação de causa e efeito entre a prova ilícita e a derivada ou, ainda, quando esta puder ser obtida por uma fonte independente das primeiras. No § 2º, o legislador trouxe o entendimento do que se considera por fonte independente. A dicção do § 3º, segundo LFG, “tem por objetivo sepultar, de vez, qualquer possibilidade de consulta a tal prova (ilícita). Se ela foi reconhecida como ilícita, assim declarada por decisão judicial transitada em julgado, não há qualquer razão lógica para sua manutenção no processo. Evita-se, assim, que a parte interessada se sinta tentada a invocá-la e, pior, que as instâncias superiores eventualmente se impressionem com seu teor. Melhor seu desentranhamento e posterior inutilização”.[17] Feitas essas breves observações acerca das mudanças imprimidas pela Lei 11.690/2008, destina-se tópico próprio para a análise do § 4º do art. 157, do CPP, que foi vetado pelo Presidente da República. 4 A relação sujeito x objeto e as provas ilícitas (o vetado § 4º) Nas linhas anteriores, falou-se a respeito de como o legislador infraconstitucional tratou a matéria das provas ilícitas no tabulário processual penalista. Há de se notar, contudo, como fez LFG[18], que, durante os sete anos de tramitação pelo Congresso, foram apresentadas dezoito emendas ao PL 4.205/2001 (que resultou na Lei n.º 11.690/2008), restando rejeitadas oito. Dentre as rejeitadas merece a nossa atenção a emenda de nº. 2, pois ela foi uma tentativa do Senado suprimir o parágrafo 4º do art. 157, in verbis:  “§ 4º O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão”. Veja-se que a tentativa do legislador foi a de otimização do já mencionado dispositivo-guia constante no inciso LVI, do art. 5º da CF/88, pois a vedação das provas obtidas ilicitamente no processo penal, numa visão constitucional e radicalmente garantista, não levaria em consideração a comunicação realizada única e exclusivamente entre a prova e o processo, ou a prova e as provas derivadas (fruto da árvore envenenada), mas, também, a relação entre o sujeito intérprete e o objeto contaminado de ilicitude. Sua argumentação se baseava nos seguintes dados, segundo colação de Luiz Flávio Gomes[19]: “O dispositivo […] visa a afastar do julgamento o juiz que tiver sido ‘contaminado’ pelo conhecimento de prova declarada ilícita, de forma a proteger as garantias do acusado e assegurar a imparcialidade do julgador. Ora, o simples fato de impedir que o juiz se valha de provas declaradas inadmissíveis para fundamentar sua decisão não basta para preservar os mencionados princípios norteadores do processo se o magistrado tiver conhecimento de tais provas. Esse mecanismo é insuficiente para garantir que o magistrado não tenha sua convicção – e, portanto, sua decisão – influenciada pelo conhecimento de provas inadmissíveis. Ademais, acredito que o referido dispositivo, com a redação dada por esta Casa, atende melhor a vontade constitucional de impedir que provas ilícitas ou obtidas por meios ilícitos possam contaminar a subjetividade do julgador”. Desse modo, já que o juiz não fica tolhido pela certeza moral do legislador, poderá atuar livremente, observadas as limitações legais para tanto, formando sua convicção de uma ou de outra forma, desde que o arcabouço probatório assim o permita. Destarte, a prova ilícita, por ventura apresentada pela acusação, não deixará de figurar como elemento da convicção constituída pelo órgão julgador singular, contaminando-o de fato. Aqui, mostra-se pertinente fazer menção à doutrina de RICOEUR[20] que diz: “nas ciências do espírito, como já foi monstrado várias vezes, o sujeito e o objeto se implicam mutuamente. O sujeito se dá a si mesmo no conhecimento do objeto. Em contrapartida, é determinado, em sua mais subjetiva disposição, pela tomada que o objeto exerce sobre o sujeito, antes mesmo que este empreenda seu conhecimento”. Seria, portanto, uma ilusão acreditar que o juiz se mostra impermeável à verdade (percepção de verdade) trazida pela prova ilicitamente obtida. Condenaria, só não fundamentando com base na prova ilícita, vez que o ordenamento legal não concede tal permissivo, mas nas demais provas que assim o permitissem. Tem-se, aqui, materialmente falando, um retorno ao sistema da íntima convicção[21], pautada na certeza moral do juiz. O sistema da íntima convicção só não se apresentaria de forma legítima e transparente – quando do juiz que tivesse contato com a prova ilicitamente obtida –, pois existem limitações constitucionais (sobretudo em observância ao devido processo legal) que devem ser obrigatoriamente observadas pelo magistrado, a exemplo da motivação das decisões judiciais (art. 93, IX), da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente (art. 5º, LVI), e da ‘virtual’ baliza que demarca o campo probatório constante dos autos de um processo, devendo o magistrado se ater a tal espaço definido processualmente, nunca além dele. De todo modo, as referidas limitações restam como válvula de escape para a parte que se veja alvo de um julgamento injusto por parte do juízo a quo, pois que “surge a imperiosa necessidade do julgador em motivar sua decisão, isto é, pode julgar da forma que melhor lhe parecer, acertada ou equivocadamente, desde que fundamente tal decisum, já que o Juiz “deve convencer-se e procurar convencer os outros. Se não persuade qualquer das partes, essa recorre. E se não convence o Tribunal ad quem, esse reforma a sentença ou, mais corretamente, substitui-a por outra” […]. Com isso, ademais, observa, por um lado, o princípio constitucional que exige a motivação das decisões judiciais (art. 93, IX) e, de outra banda, demonstra sua imparcialidade na análise da prova que poderá ser refutada pelas partes”.[22]–[23] (grifamos em negrito). Se o referido § 4º tivesse acolhida a sua redação, por projeção de seus efeitos (grosso modo), tornar-se-ia possível a promoção da exceção de suspeição[24] do magistrado ‘contaminado’ pela prova ilicitamente obtida, ou, ainda, a nulidade absoluta[25] do processo que restasse fulminado com sentença por ele proferida.  Todavia, não obstante a argumentação despendida, o destino que tomou o referido § 4º foi o de sofrer o veto da Presidência da República, fundamentado em contra-argumento proferido pela Advocacia-Geral da União e do Ministério da Justiça, que o entenderam como contrário ao interesse público, nesses termos: “O objetivo primordial da reforma processual penal consubstanciada, dentre outros, no presente projeto de lei, é imprimir celeridade e simplicidade ao desfecho do processo e assegurar a prestação jurisdicional em condições adequadas. O referido dispositivo vai de encontro a tal movimento, uma vez que pode causar transtornos razoáveis ao andamento processual, ao obrigar que o juiz que fez toda a instrução processual deva ser eventualmente substituído por um outro que nem sequer conhece o caso”.[26] Veja-se que, juntamente ao fato de haver uma válvula de escape, que permite a observância dos direitos e garantias fundamentais do acusado ainda que com a vedação do discutido § 4º, tem-se, também, a observância do princípio da identidade física do juiz, segundo o qual o juiz que tiver realizado a audiência de instrução e julgamento do processo ou seja, realizado toda a instrução processual, a este ficará vinculado, proferindo sentença no mesmo, ressalvadas as hipóteses legais (art. 132, CPC) – lançando-se mão de um diálogo de fontes jurídicas. Na interação de todos esses princípios, como o da celeridade, simplicidade e identidade física do juiz, bem como a observância das limitações constitucionais e legais pertinentes ao processo penal, face à redação constante do vetado § 4º, tem-se, num juízo de proporcionalidade, que andou bem das pernas o legislador brasileiro ao optar por dar viabilidade àqueles primeiros. Inegável que o sujeito interpretador se veja condicionado pelo objeto que apreende, contudo, mostrar-se-ia desarrazoada a retirada de um magistrado do processo penal, tão-somente em razão de seu contato com uma prova ilícita. As limitações constitucionais para tanto são previstas, devendo ser observadas, caso contrário, poderá a decisão do juízo a quo ser atacada mediante recurso interposto pela parte que se vir prejudicada. Ante toda a argumentação despendida ao longo do presente trabalho, viu-se que o processo penal, antes de ser um meio para a condenação do acusado, passou a ser uma garantia do cidadão em face da investida estatal, quando da persecução penal, principalmente com o sistema jurídico garantista instaurado pela Carta Política de 1988. Sob essa ótica, todo e qualquer processo judicial ou administrativo passou a ser devido, ou seja, em obediência a uma série de princípios e sub-princípios legais, figurando dentre eles a vedação constitucionalmente expressa das provas ilicitamente obtidas, devendo estas ser desentranhadas do processo no qual se deu sua frustrada tentativa de ingresso. A Lei nº. 11.690/2008 inseriu dispositivo referente à matéria no Código de Processo Penal, alterando o caput do art. 157 e acrescentando parágrafos ao mesmo, positivando entendimento já consolidado pela doutrina e jurisprudência acerca do tema das provas ilicitamente obtidas. Deu-se especial importância, destinando-se tópico distinto, à vedação imposta ao § 4º, do art. 157, do CPP, trazendo-se à tona os argumentos que envolveram o debate acerca de sua mantença no intento reformista. Viu-se que, não obstante o juiz ser condicionado pela prova ilicitamente obtida, ainda que a mesma desentranhada seja do processo, para que o mesmo se mantenha como juiz da causa, outros valores hão de ser considerados, tais como a economia e celeridade processuais, a identidade física do juiz, bem como o interesse público. Tem-se, portanto, a ampla observância do devido processo legal, vez que se possibilita a realização de um processo célere, simples e seguro – tal como propôs a lei reformista –, não deixando de ser observadas as garantias inerentes ao indivíduo que se vê alvo de um processo penal que lhe move o Estado.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-79/provas-ilicitas-e-o-devido-processo-legal-uma-analise-a-partir-da-lei-n-11-690-2008/
A inconstitucionalidade da castração química face ao princípio da dignidade humana
Aborda-se neste trabalho a polêmica acerca da inconstitucionalidade do projeto de lei que trata da castração química como medida punitiva para os autores de crimes sexuais. Faz-se também um contraponto entre a Constituição Federal de 88, o Pacto San Jose da Costa Rica, o Código Penal dentre outras, a fim de demonstrar a incompatibilidade de tal medida no atual contexto constitucional.[1]
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO O presente trabalho trata sobre a questão do Projeto de Lei 522/2007 sobre a castração química nas hipóteses em que o autor dos crimes tipificados nos arts. 213, 214, 218 e 224 for considerado pedófilo, conforme o Código Internacional de Doenças. Esse projeto de lei tem levantado diversas críticas principalmente no tocante à sua constitucionalidade. Recentemente a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal considerou o projeto inconstitucional e fez algumas mudanças na sua matéria, mais especificamente sobre a voluntariedade do apenado em aderir ao tratamento. Contudo, é inevitável não observar essa discussão do ponto de vista Constitucional, até porque, é por conta dela que diversas controvérsias têm sido levantadas. O projeto deixou de levar em consideração preceitos fundamentais defendidos pelo ordenamento Pátrio. Com base na CF/88, faz-se uma análise segundo a dignidade da pessoa humana bem como o Pacto de San José que também veda o método adotado como forma de punir os criminosos sexuais. 1 CASTRAÇÃO QUÍMICA 1.1 Contexto histórico Nos últimos anos, a castração química para autores de crimes sexuais tem sido tema de grandes polêmicas na seara jurídica nacional e internacional. Devido ao sensacionalismo que se criou em torno dessa matéria, grande parte da sociedade possui um conhecimento equivocado acerca da castração química, na medida em que acaba sendo relacionada a um castigo cruel e doloroso. A fim de se evitar tais “pré-conceitos” torna-se imperioso definir em que consiste a castração química e como ela se originou. A imposição de castigos do homem em relação ao seu semelhante persiste ao longo da História, vez que “desde tempos imemoriais que o ser humano se tem mostrado bastante insensível ao sofrimento alheio, transformando esses momentos em verdadeira recreação, transcendendo o todo imaginável”[1].  Segundo o Aurélio, castrar consiste no ato de privar alguém, total ou parcialmente, dos órgãos de reprodução. Historicamente, a castração remonta suas origens na Antiguidade, com a Lei de Talião, onde vigorava a máxima “olho por olho, dente por dente”. A técnica utilizada consistia no esmagamento, que de acordo com Bubeneck[2] caracteriza-se por submeter o corpo do condenado a pressões que culminam por romper ou quebrar ossos do esqueleto e triturar órgãos essenciais. Marques[3] explica que a capação feita a macete consistia em colocar os testículos do condenado em local rígido para serem esmagados com um golpe certeiro, efetuado por um grosso pau roliço, parecido com um bastão ou cassetete ou marreta fabricada com madeira de lei. Há esse tempo, o autor de um crime sexual recebia como pena, um dano igual ou parecido ao que havia praticado. Com o advento da Idade Média, período em que a Igreja utilizava-se da inquisição seguia-se os parâmetros da Lei de Talião. Curiosamente, há que se falar ainda que, a Igreja não a utilizava somente como forma de punição, mas também por “motivos religiosos”, a exemplo dos castaris, que necessitavam ter uma voz aguda para cantarem hinos nas igrejas. O tempo foi passando e a castração passou a ser utilizada como forma de impor humilhações aos inimigos vencidos em guerra. Já na metade do séc. XX, ela foi utilizada com o objetivo de “purificar a raça”, ao tornar vários tipos de criminosos estéreis.[4] A época em que era colônia de Portugual, o sistema penal brasileiro tinha como base as ordenações Manuelinas, Filipinas e Afonsinas, as quais adotavam as seguintes penas: de morte, mutilação através do corte de membros, degredo, tormento, prisão perpétua e o açoite[5]. Frise-se que a imposição de penas desse tipo vigorou no Brasil, mesmo após sua independência, pois  “O homem que praticasse determinados atos sexuais considerados imorais ou criminosos poderia ser condenado à castração, então conhecida por capação que podia ser concretizada por várias maneiras, contanto que com o castigo o agressor não tivesse mais possibilidade de voltar a delinqüir devido a perda total do seu apetite sexual”.[6] Como forma de ilustrar o contexto social daquela época, Marques traz ainda uma sentença datada de 15 de outubro de 1833, prolatada no Estado do Sergipe, em relação a uma tentativa de estupro, in verbis: “SENTENÇA DO JUIZ MUNICIPAL EM EXERCÍCIO, AO TERMO DE PORTO DA FOLHA – 1883. SÚMULA: Comete pecado mortal o indivíduo que confessa em público suas patifarias e seus boxes e faz gogas de suas víctimas desejando a mulher do próximo, para com ella fazer suas chumbregâncias. O adjunto Promotor Público representou contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Senhora Sant´Anna, quando a mulher de Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava de tocaia em moita de matto, sahiu dela de sopetão e fez proposta a dita mulher, por quem roía brocha, para coisa que não se pode traser a lume e como ella, recusasse, o dito cabra atrofou-se a ella, deitou-se no chão deixando asencomendas della de fora e ao Deus dará, e não conseguio matrimônio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreyo Correia e Clemente Barbosa, que prenderam o cujo flagrante e pediu a condenação delle como incurso nas penas de tentativa de matrimônio proibido e a pulso de sucesso porque dita mulher taja pêijada e com o sucedido deu luz de menino macho que nasceu morto. As testemunhas, duas são vista porque chegaram no flagrante e bisparam a pervesidade do cabra Manoel Duda e as demais testemunhas de avaluemos. Dizem as leis que duas testemunhas que assistem a qualquer naufrágio do sucesso faz prova, e o juiz não precisa de testemunhas de avaluemos e assim: Considero que o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento, por quem roía brocha, para coxambrar com ella coisas que só o marido della competia coxambrar porque eram casados pelo regime da Santa Madre Igreja Cathólica Romana. Considero que o cabra Manoel Duda deitou a paciente no chão e quando ia começar as suas coxambranças viu todas as encomendas della que só o marido tinha o direito de ver. Considero que a paciente estava pêijada e em consequência do sucedido, deu a luz de um menino macho que nasceu morto. Considero que a morte do menino trouxe prejuízo a herança que podia ter quando o pae delle ou mãe falecesse. Considero que o cabra Manoel Duda é um suplicado deboxado, que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quis também fazer coxambranças com a Quitéria e a Clarinha, que são moças donzellas e não conseguio porque ellas repugnaram e deram aviso a polícia. Considero que o cabra Manoel Duda está preso em pecado mortal porque nos Mandamentos da Igreja é proibido desejar do próximo que elle desejou. Considero que sua Majestade Imperial e o mundo inteiro, precisa ficar livre do cabra Manoel Duda, para secula, seculorum amem, arreiem dos deboxes praticados e as sem vergonhesas por elle praticados e apara as fêmeas e machos não sejam mais por elle incomodados. Considero que o Cabra Manoel Duda é um sujeito sem vergonha que não nega suas coxambranças e ainda faz isnoga das incomendas de sua víctima e por isso deve ser botado em regime por esse juízo. Posto que: Condeno o cabra Manoel Duda pelo malifício que fez a mulher de Xico Bento e por tentativa de mais malifícios iguais, a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete. A execução da pena deverá ser feita na cadeia desta villa. Nomeio carrasco o Carcereiro. Feita a capação, depois de trinta dias o Carcereiro solte o cujo cabra para que vá em paz. O nosso Prior aconselha: Homine debochado debochatus mulherorum inovadabus est sentetia qibus capare est macete macetorim carrascus sine facto nortre negare pote. Cumpra-se a apregue-se editaes nos lugares públicos. Apelo ex-officio desta sentença para juiz de Direito deste Comarca. Porto da Folha, 15 de outubro de 1833. Assinado: Manuel Fernandes dos Santos, Juiz Municipal suplente em exercício.” Com o passar dos anos e devido ao avanço das ciências, bem como das sociedades, a castração passou a ser de dois tipos, quais sejam: física ou química. A castração física no homem caracteriza-se pela perda do pênis ou dos testículos; enquanto que na mulher se dá pela perda dos ovários. Geralmente, esse tipo de intervenção acaba ocorrendo como forma terapêutica para tratamento de cânceres de próstata ou de ovário, a fim de tentar se obter a cura do paciente; ou ainda, em operações de mudança de sexo. Esse tipo de procedimento é irreversível. A castração química, por sua vez, origina-se nos Estados Unidos da América, em 1996, e consiste na aplicação de hormônios que inibem o desejo sexual. A Califórnia foi o primeiro Estado a utilizá-la. Atualmente, os Estados da Geórgia, Montana, Oregon e Wisconsin admitem apenas o uso da castração química; enquanto que, a Flórida, Califórnia, Iowa e Louisiana admitem duas modalidades, a química e a cirúrgica voluntária. Já o Texas admite apenas esta última.[7] Além dos EUA, outros países têm usado as seguintes medidas para fazer frente à pedofilia, quais sejam: “Grã Bretanha: permite a castração química voluntária e possui um registro nacional de abusadores de crianças; Dinamarca e Suécia: admitem a castração química para casos extremos. As taxas de recidividade caíram acentuadamente; França: possui projeto de lei que prevê tratamento obrigatório, que pode ser psiquiátrico ou farmacológico, com administração de fármacos que inibem a libido; Áustria: a castração química foi proposta em 1999, porque as terapias tradicionais são insuficientes”.[8] No Brasil, o assunto veio à tona quando um Psiquiatra da cidade de Santo André, em São Paulo, admitiu que vem realizando castração química em pedófilos que quiseram se submeter ao tratamento voluntariamente.[9] 1.2 Vantagens e desvantagens da castração química Como não poderia ser diferente, a castração química tem sido objeto de bastantes críticas e adesões dos profissionais das diversas áreas de atuação. Aqueles que defendem o uso da castração química em autores de crimes sexuais partem da idéia de que ela não seria uma pena cruel, mas sim um tratamento médico sem grandes gravidades físicas, na medida em que consiste na aplicação de dosagens do hormônio medroxiprogesterona (mais conhecido como Depo Provera) para que haja uma diminuição na libido desses sujeitos. Devido à perda do desejo sexual são grandes as chances do agente não voltar a delinqüir. Nos países em que ela vem sendo utilizada, pesquisas indicam que os casos de reincidência caíram de 75% para 2%, após o tratamento com hormônio. Esse é um dado que não merece ser desprezado, pois o uso dessa alternativa comprova que várias pessoas deixariam de serem vítimas de violência sexual.[10] Dentre os efeitos negativos podemos citar: depressão, queda de cabelo, perda de massa muscular, fadiga crônica, impotência sexual irreversível etc. Há quem afirme ainda que não se trate de um tratamento médico, mas sim de mera possibilidade de contenção social[11]. Porém, deve-se levar em conta que não são apenas os fatores psicológicos que são relevantes na prática de um crime, mas também fatores sociais e culturais. Importante ressaltar que tais efeitos só duram enquanto persistir o tratamento, o que não impediria que o condenado voltasse a cometer tais crimes, pois segundo Aguiar[12], o condenado que não quer, de fato, sua reabilitação, pode ser capaz de praticar crimes sexuais mesmo que esteja privado de sua testosterona. Há relatos, inclusive, de pessoas impotentes que praticaram crimes de conotação sexual. Estudos médicos acerca da castração química afirmam ainda que, “A castração com o Depro Provera não é, em tese, definitiva. O molestador tem que se apresentar sempre ao médico designado para continuar tomando as injeções no prazo indicado, sem as quais os testículos poderão, até mesmo aumentar a produção de testosterona acima dos níveis anteriormente verificados e causar uma alteração em sua libido de forma mais intensa do que a originalmente verificada”.[13] No entanto, a principal crítica para a não utilização da castração química diz respeito a sua irreversibilidade, bem como pela violação aos princípios da inviolabilidade e da integridade física do indivíduo, mas “Apesar do nosso ordenamento jurídico ter abolido de vez as penas cruéis, a discussão sobre a aplicação de uma pena peculiar para aqueles que cometem crimes de ordem sexual, destarte para aqueles praticados contra crianças através da chamada pedofilia, volta a tona agora de maneira mais presente, vez que  tramita no Congresso nacional o Projeto de Lei nº 552/07 de autoria do Senador Gerson Camata para propor modificação no Código Penal com a pena de castração através da utilização dos recursos químicos, ou seja, a castração química para tais criminosos”.[14] Diante de tanta polemica, a única certeza que se tem é que a maioria das vítimas de crimes sexuais são crianças indefesas, o que faz com que esses crimes sejam considerados cada vez mais repugnantes pela sociedade. 2 PEDOFILIA Não há como se falar em castração química sem adentrar na questão da pedofilia, vez que “(…) consideramos verdadeiros monstros: violadores de crianças, os quais, geralmente, são executados nas próprias prisões pelos seus colegas autores de outros delitos. Os sentenciados não toleram algozes sexuais de crianças e se transformam em carrascos, uma vez não confiantes na própria Justiça. Esse fenômeno social, o qual assola o mundo que se diz civilizado, chama-se pedofilia”.[15] De acordo com Trindade[16], Pedofilia é uma palavra de origem grega, onde paidos significa criança ou infante, e philia, significa amizade ou amor. Dessa forma podemos afirmar que a pedofilia deve ser entendida como a atração sexual por crianças, e o sujeito que a pratica é denominado como pedófilo. “Embora o pedófilo seja muitas vezes descrito como um tipo estranho, aversivo e repulsivo, capaz de despertar sentimentos de asco, frequentemente associado com o tipo marginal, com sujeitos vadios, desocupados, “sujos”, escroques ou solitários “ratos de biblioteca”, ainda assim parece impossível estabelecer um perfil ou uma imagem característica do agente pedófilo, pois muitos deles não se enquadram em nenhum tipo descritivo específico”.[17]  Em geral, os pedófilos são capazes de entender o caráter ilícito dos seus atos, pois estes “(…) vão desde a carícia ao ato sexual (beijos lascivos, atuação por meio de conversa obscena, utilização de crianças em fotografia, filme e gravações pornográficas, exibicionismo sexual, conjunção carnal e coito anal), repercutindo as mais graves conseqüências para a vítima em seu desenvolvimento afetivo e social”.[18] Esta realidade, infelizmente, reafirma a necessidade de que sejam tomadas providências no sentido de se proteger plenamente a criança, pois como se sabe não existe cura para a pedofilia, o que se tem é apenas uma melhora temporária. Por conta disso, quando se fala em violência sexual em face do menor, há uma tendência favorável ao uso da castração química nesses criminosos, pois a continuidade desses abusos sexuais não pode ser aceita. “Os pesquisadores argumentam que os child molestors passam o tempo na prisão preparando fantasias sexuais sórdidas que envolvem as crianças. Explicam que essas fantasias são traduzidas realidades quando o criminoso volta a ter contato com crianças que segue à inevitável liberação dele da prisão. Afirmam ainda que a prisão, simplesmente, produz os criminosos mais furtivos. Pedófilos não querem ser encarcerados novamente; assim, eles pensam em modos novos para estuprar crianças evitando serem descobertos e presos novamente. A prisão aumenta tendências agressivas em pedófilos masculinos, enquanto a castração química se dirige para a raiz da causa do desvio sexual compulsivo”.[19] A criança, como ser humano, espera proteção e cuidado por parte dos adultos. Isto por si só justifica a necessidade de se combater esse tipo de crime que não é mera ficção, e não deve ser tratado de forma impune pelo Estado. 3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Como se sabe, os princípios exercem uma função fundamental em toda disciplina. No que tange a seara jurídica, os princípios constituem aquelas ideias fundamentais que sustentam todo um arcabouço inerente a um ramo do direito. Para José Afonso da Silva, o princípio da dignidade humana “é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”[20]. Alexandre de Moraes também destaca a importância desse princípio quando diz que: “A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico devem assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos Direitos Fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”.[21] A Constituição de 1988 previu em seu artigo 1º, inciso III a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental. Tal princípio “não é um direito concedido pelo ordenamento jurídico, mas um atributo inerente a todos os seres humanos, independentemente de sua origem, raça, sexo, cor ou quaisquer outros requisitos”.[22] Esse princípio estabelece uma obrigação de proteção da pessoa humana, por parte do Estado, de modo a respeitar e proteger, promovendo condições que tornem possível a vida com dignidade. Quando não se observa essas condições, sem dúvida tal princípio resta afetado. No que tange ao debate desse trabalho, é notório a impossibilidade de se encaixar no ordenamento jurídico pátrio qualquer medida punitiva capaz de lesionar um princípio que tem como fundamento, algo intrínseco à condição de ser humano, a sua dignidade.  Embora a CF/88 tenha dado tanta importância para os direitos fundamentais, lamentavelmente, se observa a violação crescente desses direitos, bem como o descrédito pela dignidade humana. O Estado deve não só deixar de praticar atos que atentem contra essa dignidade, mas também deve prove-la, como forma de garantir o mínimo existencial a cada ser humano. 3.1 Direitos Humanos O Tratado da Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecido como Pacto de San Jose da Costa Rica, busca a consolidação entre os países americanos do respeito à justiça social e à liberdade, baseando-se nos direitos humanos essenciais, independente da nação que a pessoa faça parte. É datado de 1969, mas foi assinado pelo Brasil somente em 1992.[23] Com base na Emenda Constitucional n.º 45 de 2004, os tratados internacionais dos quais o Brasil faça parte, foram equiparados a Emendas Constitucionais, conforme observa-se no art. 5º, §§2º e 3º da CF/88: “§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Esse tratado é composto por 81 artigos que prevêem desde direitos fundamentais (vida, liberdade, dignidade, integridade), proibição da escravidão e servidão humana, garantias judiciais, liberdades de consciência, religião, expressão, até a proteção da família. (idem) O Pacto San José prescreve em seu art. 5º o Direito à integridade pessoal, enfatizando o respeito à integridade física, psíquica e moral. Assevera também que “ninguém será submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes”. Ressaltando ainda que, a pessoa que estiver privada da sua liberdade deve ser tratada “com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”. Percebe-se que o Pacto de San José, no Brasil, foi elevado a um status constitucional, justamente por se tratar de direitos fundamentais, que integram o direito positivo brasileiro. Desse modo, seu texto pode ser citado para fundamentar decisões, bem como corroborar entendimentos adotados no cotidiano.  4 A INCONSTITUCIONALIDADE DA CASTRAÇÃO QUÍMICA FACE A PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA A utilização da castração química é incompatível com o texto normativo constitucional. Isso porque, ao ser usada como medida de punição para quem comete crimes contra criança ou adolescente fere não só princípios fundamentais, mas também diversos dispositivos constitucionais. A Carta Magna prevê em seu artigo 5º inciso XLVII a impossibilidade de existir penas de morte, de caráter perpétuo, de banimento e cruéis. Tal vedação é norteada por princípios fundamentais, pelos quais a própria República Federativa fundamenta-se (art. 1º, III). É possível corroborar esse entendimento em todo o arcabouço constitucional. No artigo 5º, inciso XLIX, a CF/88 assegurou “aos presos o respeito à integridade física e moral”, impossibilitando qualquer medida exploratória de direitos aos detidos por parte do Estado. O referido art. 5º, no seu inciso X, destaca ainda, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, honra e imagem. Assim, aquele que atentar contra esse inciso, estará retirando do apenado direitos concedidos pela Constituição. O Código Penal, em consonância com a Carta Magna, traz no artigo 38 outros direitos atribuídos aos detentos, prescrevendo: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”. Vê-se que, embora esteja privado de sua liberdade, o preso continua protegido pela dignidade humana, sendo que, qualquer conduta que viole ou venha retirar esse manto de proteção, estará agindo contra a segurança jurídica do país. Partindo do mesmo raciocínio, a Lei das Execuções Penais de 1984, impõe às autoridades “o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios”. Por sua vez, o Pacto San José da Costa Rica, em seu artigo 5º, assevera que é direito de toda pessoa ser respeitada na sua integridade física, psíquica e moral. Da mesma forma, preceitua que ninguém deverá “ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes”, e que “toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”. A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, em parecer sobre o projeto de lei 522 de 2007, descreveu:  “A questão da possibilidade de tratamento químico de condenado por pedofilia em nosso sistema jurídico não é simples. Numa leitura apressada de nossas normas, poder-se-ia fugir do âmago do problema apenas relatando que o nosso sistema jurídico não autoriza violação à integridade física do condenado por parte do Estado. (…) o indivíduo tem um direito que pode arguir contra o Estado. Tal direito individual consubstancia-se na idéia política de liberdade negativa: há fronteiras dentro das quais os homens são invioláveis, que impedem a imposição da vontade do Estado ou da de um homem sobre outro”.[24] A castração química configura uma pena degradante, pois “priva de dignidades, torna, vil estraga, deteriora aquele que é submetido a ela. É ainda cruel, pois desumana, dolorosa, prejudica enormemente a vida daquele que a receba como parte da reprimenda”.[25] O referido projeto, de relatoria de Marcelo Crivella (PRB-RJ), teve sua matéria modificada após a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania reconhecer a sua inconstitucionalidade, passando então, contra vontade do seu criador Gerson Camata, de tratamento compulsório para tratamento voluntário. Nesse novo texto, o condenado poderá ter sua pena reduzida em um terço caso aceite submeter-se a tal procedimento.[26] O condenado é induzido a submeter-se ao tratamento com o intuito de ter sua pena diminuída, abrindo mão de um direito indisponível que é o direito a vida e  saúde, vez que ninguém poderá dela dispor, nem mesmo para angariar outros benefícios. Se assim o fosse, o indivíduo poderia vender seus próprios órgãos (rim, fígado) com o fim de obter lucro. A liberdade provisória desses criminosos sexuais ficaria condicionada à submissão ao tratamento hormonal.  Diante disso, sua decisão sobre aceitar ou não esse tratamento, não pode ser considerada livre e voluntária. Outro ponto relevante, diz respeito à vedação do “bis in idem”, vez que ninguém será punido mais de uma vez pelo mesmo fato. É o que ocorreria nesse tipo de caso, pois além da pena privativa de liberdade, o apenado seria é instigado a aceitar outra pena, considerada cruel e desumana, como pressuposto para obtenção de sua liberdade. O Conselho Nacional de Medicina não indica a castração química como tratamento para controle da pedofilia. O medicamento utilizado para inibição da libido, o Depo-provera, deverá ser utilizado com uma aplicação ao mês, durante 90 dias.[27] O objetivo do tratamento é apenas conter o desejo sexual exagerado, contudo, seus efeitos colaterais são inúmeros: “insônia, convulsões, depressão, tontura, dor de cabeça, nervosismo, sonolência, perda de cabelo, aumento de pêlos, cansaço, reações no local da injeção, febre, redução da tolerância à glicose”, perda de cálcio dentre outros. (idem) Nesse contexto, observa-se como a norma constitucional é ferida diante de tantas atrocidades, sendo incompatível com os preceitos defendidos, na medida em que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Por conta disso, não se pode concordar com um projeto de Lei que desrespeita a superioridade da Carta Magna, violando princípios fundamentais sob os quais a própria nação é constituída. Inúmeras vezes, ao longo da História, o homem cometeu diversas atrocidades justificadas por ideologias. Zaffaroni[28] destaca o genocídio indígena americano, o tráfico de homens africanos e o colonialismo mais cruel e explorador. “Cada atrocidade foi cometida em nome da ‘humanidade’ e da ‘justiça’. (…) cada ideologia tinha sua ideia do homem e, na medida em que a realizava, tudo estava justificado pela necessidade”. É inaceitável que um projeto de lei venha trazer um arcabouço punitivo em descompasso o texto constitucional, justificando-se pela necessidade de punição especial para esse tipo penal, achando que, todas as mazelas seriam resolvidas.  Agir de forma cruel com esses indivíduos seria o mesmo que punir ladrões amputando seus braços ou difamadores cortando as suas línguas, para em seguida lhes conceder suas liberdades. É lamentável que o texto normativo seja diversas vezes ignorado, com medidas abusivas e rechaçadas de violabilidade. É necessário que as autoridades tenham consciência de que esse projeto não se encaixa na Constituição Federal de 1988, por ferir, inúmeras vezes, seus  preceitos normativos, o que seria uma grande ameaça à segurança jurídica do país. CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta de castração química oferecida pelo Projeto de Lei torna-se incompatível com o texto normativo da Constituição Federal de 1988. Isso porque, a castração como medida de punição, para quem cometem crimes contra criança ou adolescente, fere não só princípios fundamentais, mas também diversos dispositivos constitucionais. É possível corroborar esse entendimento em todo o arcabouço constitucional, posto que tal vedação é norteada por princípios fundamentais pelos quais a própria República Federativa fundamenta-se (art. 1º, III). A Carta Magna prevê em seu artigo 5º inciso XLVII a impossibilidade de existir penas de morte, de caráter perpétuo, de banimento e cruéis, ao passo que o inciso III, prescreve que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. No que toca a vedação do “bis in idem”, é notório que ocorreria esse tipo de caso, pois além da pena privativa de liberdade, o apenado seria instigado a aceitar outra punição, como pressuposto para obtenção de sua liberdade com maior brevidade. É cristalina a impossibilidade de se encaixar no ordenamento jurídico qualquer medida punitiva capaz de lesionar um princípio que tem como fundamento, algo intrínseco à condição de ser humano, qual seja, sua dignidade.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-79/a-inconstitucionalidade-da-castracao-quimica-face-ao-principio-da-dignidade-humana/
Os sujeitos do processo penal
O trabalho em apreço possui como objetivo examinar, sob o prisma das preleções doutrinárias pátrias, os sujeitos no Processo Penal, identificando-os, qualificando-os e verificando a importância de sua inserção no processo, bem como analisando o tratamento legal que lhes é dispensado. Serão abordados os sujeitos constantes do Título VIII do Código de Processo Penal, o qual abarca o juiz, o Ministério Público, o acusado, seu defensor, os assistentes e auxiliares da justiça (funcionários da justiça, peritos e intérpretes).[1]
Direito Processual Penal
1.  INTRODUÇÃO O Direito é um emaranhado inextrincável de soluções e obstáculos impostos à convivência social[2], com a nítida finalidade de regulá-la a partir de valores e interesses dominantes na sociedade. Com o fortalecimento do Estado, alcançando-se a soberania, tanto perante seus próprios cidadãos quanto às demais Nações, foi estabelecida a proibição da autotutela[3], fazendo com que fosse inscrito no Direito, a partir da construção da praxis, o fenômeno da jurisdição, que pode ser entendida como poder, dever[4] e atividade. Enquanto poder, é prerrogativa do Estado, sendo ele o único que possui a capacidade de decidir impositivamente os conflitos. Em contraposição ao fato de que é o exclusivo hábil a resolver os litígios, sendo vedado aos particulares resolvê-los por si sós, o Estado tem o dever de exercer a jurisdição sempre que provocado, não podendo se eximir desta importante tarefa para a pacificação social. O vocábulo “jurisdição” também pode ser empregado na sua acepção de “atividade”, significando por sua vez o conjunto dos atos do(s) juiz(es) na condução do processo até sua resolução, exercendo o poder que lhe compete e cumprindo o múnus que lhe é imposto. Da proibição da autotutela aos particulares não apenas se originou o dever estatal de prestar a atividade jurisdicional. Dela nasceu também o monopólio do Estado do ius puniendi e da persecução criminal. É a partir dessas observações propedêuticas que se deve examinar os sujeitos no Processo Penal, e delas também decorre o indicativo da relevância do estudo do tema. O processo inexiste sem que lhe impulsionem as partes, seus representantes, assistentes e o juiz, com a ajuda dos funcionários do Poder Judiciário. Além disso, diversas vezes a verdade real (mais precisamente dizendo, a verdade judicial) não pode ser alcançada sem a interferência de peritos e intérpretes. A existência do processo está condicionada à atuação de sujeitos. As partes são espécie do gênero dos sujeitos processuais, e, segundo Oliveira Pacelli[5], podem ser entendidas simplesmente como aquele que pede algo em juízo, bem como a pessoa perante a qual é feito o pedido. Logo, além das partes, há vários outros sujeitos que agem no processo penal, conforme detalhamento no decorrer do presente trabalho. Capez[6] classifica os sujeitos processuais em principais e acessórios ou colaterais. “Por principais entende-se aqueles cuja ausência torna impossível a existência ou a complementação da relação jurídica processual; acessórios, por exclusão, são aqueles que, não sendo indispensáveis à existência da relação processual, nela intervém de alguma forma”. No entanto, antes de adentrar ao exame pormenorizado de cada sujeito processual, impende consignar algumas notas acerca da relação processual penal, relacionando-a à Teoria Geral do Processo e ao Processo Civil. O Processo Penal possui várias peculiaridades que o distinguem do Processo Civil e tornam árdua a tarefa de enquadrá-lo perfeitamente em uma Teoria Geral do Processo. É neste sentido a advertência de Oliveira Pacelli: “Não nos parece tarefa fácil a aplicação de uma chamada teoria do processo, normalmente aplicável no âmbito dos processos e procedimentos não-penais, às categorias específicas do processo penal”.[7] Enquanto no processo civil sobressai a existência de uma relação jurídica entre Autor e Estado, cuja característica precípua é a qualidade que tem aquele sobre este para exigir a prestação jurisdicional, eis que o autor possui direito à jurisdição e o Estado o dever de prestá-la, no processo penal a relação entre ambos transcende esses aspectos. No processo penal, o autor da ação, normalmente o Ministério Público, não exerce qualquer direito face ao Estado, mas apenas exerce o dever resultante da concretização de fato tipicamente descrito em lei, sendo o Parquet único legitimado para a persecução penal.[8] Assim, além de estar obrigado à prestação jurisdicional, o Estado deve também prestar a persecução penal, sendo compulsório o exercício da mesma, segundo o princípio de Obrigatoriedade da Ação Penal Pública, inserto nos artigos 5º, 6º e 24 do Código de Processo Penal, derivado do brocardo “nec delicta maneant impunita”[9]. A obrigatoriedade exsurge logicamente também da constatação de que o Estado extirpou a legitimidade da vítima para a persecução criminal, devendo então substituir-lhe e consolidar o direito à segurança, imperativo de interesse público. Esses elementos acarretam a ideia conclusiva de que, diferente do que ocorre no âmbito civil, no processo penal o direito à jurisdição e o direito de iniciativa da atuação em juízo estão reunidos em pessoa que, em regra, sequer integra a relação processual, tendo seus direitos exercidos pelo Ministério Público. Outra impropriedade da importação dos conceitos e institutos do processo civil e da Teoria Geral do Processo para o processo penal reside na definição carneluttiana de lide, segundo a qual lide significa conflito de interesse qualificado por uma pretensão resistida. No entanto, nem sempre haverá resistência do acusado à pretensão do Autor. O vício conceitual então poderá ser corrigido para assentir que, ao invés de pretensão resistida, há uma pretensão insatisfeita. O ius puniendi não pode ser exercido contra o acusado sem o devido processo legal. A aplicação do Direito Penal deve ser jurisdicionalizada, mediante utilização imprescindível do processo para que seja legitimada a punição estatal. Ainda analisando o desacerto em utilizar o conceito de Francesco Cannelutti de lide, aplicando-o ao processo penal, encontra-se no exame sobre o interesse. Na seara do processo civil, a satisfação do interesse quase sempre resulta em vantagem para o credor. No processo penal, da condenação do réu à sanção privativa de liberdade não decorrem quaisquer vantagens para a vítima e mesmo para o Estado, apontando-se apenas a virtude de manter o sentimento de segurança da população geral. Há autores que tentam elaborar uma adequação ao conceito clássico de lide ao processo penal, ao aduzir que lide é o conflito de interesses entre o ius puniendi e o direito de liberdade. Tal conceito técnico deve ser ilidido com base nas premissas de que, no processo penal, o Estado age também como prestador da atividade. Ademais, embora haja quem não consiga assentir, o Ministério Público age também com imparcialidade, interessando-lhe tanto na condenação quanto lhe interessa presenciar a absolvição do inocente. Nesse sentido, impende ainda suscitar a diferença entre parte formal e parte material, cujos contornos são hábeis a explicar a atuação imparcial do Ministério Público no processo penal, mesmo sendo ele parte. Assim sendo, parte formal se traduz na ideia da mera posição processual de parte, independente do conteúdo de direito substancial contido nos requerimentos e alegações do Ministério Público, in casu. Por outro lado, parte material convoca a noção de coincidência entre a manifestação de direito material na causa e a posição de parte no processo penal. 2. DO JUIZ Com vistas à superação de um sistema inquisitivo, que concentra em uma única figura as funções de acusar, defender e julgar, e com o advento do sistema acusatório, passa a ter maior relevância a imparcialidade do juiz. Imparcialidade esta que possui íntima relação com o princípio do juiz natural, com a respectiva vedação ao juiz ou tribunal de exceção, visando evitar a alteração de determinada, concreta e específica decisão. Daí falar-se em casos de impedimento, incompatibilidades e suspensão do juiz. As hipóteses de impedimento estão relacionadas a fatos e circunstâncias de fato e de direito, e com condições pessoais do próprio julgador. O artigo 252, incisos I e II do Código de Processo Penal, prevê a hipótese na qual determinados parentes do juiz, seu cônjuge, ou ele próprio tenham exercido funções relevantes no processo, que, inclusive, influenciaram na formação do convencimento judicial. O inciso III do referido artigo, ao dispor sobre duplo grau de jurisdição, pronuncia-se sobre a hipótese do juiz também ter exercido a função de juiz em outra instância.  Impende consignar que o referido impedimento deve ser suscitado, a fim de que a referida questão seja apreciada, sem prejuízo da validade do primeiro julgamento. Quanto a este aspecto Eugênio Pacelli de Oliveira[10] esclarece que: “O simples recebimento da denúncia ou queixa, por exemplo, embora portador de certo conteúdo decisório, não será causa de impedimento, uma vez que as questões mais relevantes do processo, sejam elas de fato, sejam elas de direito, não são freqüentemente resolvidas naquele momento. Obviamente, ocorrerá impedimento se a decisão anterior for em sentido contrário, isto é, de rejeição da denuncia ou queixa, hipótese em que o conteúdo decisório é manifesto e evidente.” Prevê, ainda, o artigo 252, inciso IV que também haverá impedimento quando o juiz, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte (caso de ação penal privada) ou diretamente interessado no feito, em caso de recomposição civil do dano, por exemplo. Em seguida, prevê o CPP que, nos juízos coletivos, não pode, prestar serviços no mesmo processo, os juízes que foram parentes entre si, para que se evite influência no julgamento. Nos procedimento do Tribunal do Júri, são impedidos de servir no mesmo conselho de sentença, marido e mulher, ascendentes, descendentes, sogro e genro ou noras, irmãos, cunhados, tio e sobrinho, padrasto, madrasta ou enteado, conforme prescreve o art. 448, CPP. Consigne-se que o mesmo ocorre com aqueles que mantêm união estável. Já em relação à suspeição, pode-se defini-la como os fatos e/ou circunstancias objetivas que influenciem no ânimo do julgador. Podendo ser objetivos, quando se referem ao objeto, ou subjetivos, em relação aos sujeitos envolvidos. O artigo 254, CPP, estabelece como causas de suspeição: amizade íntima ou inimizade capital com qualquer das partes (inciso I); o fato de estar o juiz, cônjuge, ascendente ou descendente respondendo a processo por fato análogo, cujo caráter criminoso haja controvérsia (inciso II); se o juiz, ou o cônjuge, ou parente, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes (inciso III); se tiver aconselhado qualquer das partes (inciso IV); se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes (inciso V); e se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo (inciso VI).  Como bem lembra Pacelli, o juiz não pode ser administrador de sociedade, a não ser associação de classe, em virtude da vedação ínsita no art. 36, II, Lei Complementar nº 35/79). No que se refere ao parentesco por afinidade, há de se registrar que esta cessa com a dissolução do casamento, exceto na hipótese de sobrevierem descendentes. Entretanto, conforme artigo 255, CPP, o juiz não poderá atuar em processo quando for parte sogro, genro, cunhado ou enteado, ainda que tenha havido dissolução do casamento sem descendentes. Em relação à figura da suspeição provocada – injuria, ou qualquer outro ato praticado com o fim de afastar o juiz, não haverá configurada a suspeição, segundo inteligência do art. 256, CPP. Diferente das hipóteses de suspeição e impedimento, as hipóteses de incompatibilidade reclamam o exame detido de cada situação concreta, quando não afirmada de ofício pelo magistrado. Ora, inexiste casuística legal das incompatibilidades (artigo 112, CPP). Diante disto, pode-se dizer que nesta espécie, reúnem-se as recusas do juiz sob o fundamento de razões de foro íntimo. Embora não haja previsão legal, não pairam dúvidas de que a imparcialidade do juiz restaria comprometida. 2.1. PODERES GERAIS E INICIATIVA PROBATÓRIA Por certo, o juiz deve zelar pela perfeita regularidade do processo, podendo, inclusive, utilizar-se de força policial. No que concerne à gestão da prova, Pacelli defende que em um sistema processual pautado no livre convencimento motivado seria difícil estabelecer parâmetros para atuação judicial. Entretanto, tratando-se do sistema de partes, a atividade de controle da prova é exercida, unicamente, sob o prisma da legalidade de sua produção, introdução e valoração. Entretanto, deve-se ponderar que o problema não diz respeito à gestão da prova, mas à possibilidade do magistrado determinar, de ofício, prova na fase da investigação. Tal inconstitucionalidade é proveniente da alteração introduzida pela Lei 11.690/08 no artigo 156 do CPP. Frise-se que esta atividade probatória deve existir apenas na hipótese de dúvida razoável sobre ponto relevante do processo. Não se deve aceitar, todavia, a adoção de posição supletiva ou subsidiária da atuação do órgão de acusação, em vista da violação ao sistema acusatório e ao princípio da igualdade de armas. Pelas razões supramencionadas, Pacelli não considera que houve uma descaracterização do modelo acusatório, pelo fato do juiz possuir a iniciativa probatória. Aduz, no entanto, que atividade inquisitorial existia no art. 3º da Lei 9.034/95 que permitia a participação do juiz na coleta e formação do material probatório na fase de investigação. Registre-se que esta disposição foi censurada pela Suprema Corte no julgamento da ADIn 1570, quando houve por reconhecida sua inconstitucionalidade. 2.2. JUIZ NATURAL Compreende o órgão da jurisdição cuja competência está ínsita na própria Constituição (art. 5º, LIII) e tenha sido fixada antes da prática de infração penal. O princípio do Juiz Natural, indubitavelmente, tem correlação com o juiz imparcial e independente, restando, em parte, explicado as prerrogativas dispensadas no artigo 95. 2.3.PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ A lei 11.719/2008 inovou no processo penal brasileiro, inserindo o princípio da identidade física do juiz (artigo 399, § 2º, CPP), restando consagrado que o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. Registre-se que o art. 132, do Código de Ritos pode ser aplicado subsidiariamente, já que não há qualquer vedação quanto a isto, bem como conferir celeridade processual. 3. DO MINISTÉRIO PÚBLICO O Ministério Público surgiu como consequência da ampliação da intervenção estatal a partir da necessidade de se impedir a vingança privada, com a jurisdicionalização das soluções dos conflitos da sociedade. Sua origem, com as características que hodiernamente pode-se vislumbrar, remonta ao século XVIII, na França, no apogeu do Iluminismo, cerne do modelo processual acusatório. O Ministério Publico surgiu com a superação do modelo acusatório privado, nasce com a tomada pelo Estado do monopólio da Justiça Penal, onde cabe ao Poder Público não somente dizer o direito, como também formular a acusação. Assim, o Ministério Público se mostra como o órgão estatal responsável pela promoção da persecução penal, não cabendo ao juiz qualquer função pré-processual ou investigativa, para que sua imparcialidade reste preservada. Esse modelo essencialmente acusatório foi adotado no Brasil com o advento da Constituição de 1988, quando o Ministério Público passou a ter a titularidade da ação penal pública e a função de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais[11]. Para que o Ministério Público possa desenvolver as suas tarefas a Magna Carta[12] instituiu alguns princípios/prerrogativas aos seus membros, quais sejam, independência funcional, unidade e indivisibilidade, que possuem os seguintes desdobramentos no interior da relação processual penal: 3.1. IMPARCIALIDADE O Ministério Público não deve ser considerado um órgão de acusação, mas sim um órgão legitimado para a acusação nas ações penais públicas, pois, não é por ser o titular desta e por estar ligado ao princípio da obrigatoriedade de oferecimento da denúncia que o parquet deve, fundamentalmente, fazê-lo. Enquanto órgão estatal, o Ministério Público não deve primar pela acusação, mas sim pelo respeito à ordem jurídica, o que faz presumir pela sua imparcialidade na jurisdição penal, devendo ele, tão-somente, perquirir pelo efetivo respeito ao Direito. Impende consignar, consoante assevera Pacelli[13], que a obrigatoriedade de oferecimento da denúncia a qual está vinculado o parquet está condicionada ao seu convencimento acerca dos fatos investigados, tanto isso é verdade que o Ministério Público pode requerer arquivamento de inquérito quando se depara com provas insubsistentes[14], pode recorrer em favor do acusado, etc.. Ele possui inteira liberdade na apreciação dos fatos e do direito, ou seja, cabe ao Ministério Público tanto primar pela condenação do culpado quanto pela absolvição do inocente. 3.2. SUSPEIÇÃO, IMPEDIMENTO E INCOMPATIBILIDADE O artigo 258 do Código de Processo Penal traz as possibilidades em que o membro do Ministério Público deve ser afastado do processo pela falta de imparcialidade. São as mesmas aplicáveis ao juiz (art. 254 do CPP), quais sejam, os casos de suspeição, de impedimento e de incompatibilidade. Senão vejamos, in verbis: “Art. 258 do CPP.  Os órgãos do Ministério Público não funcionarão nos processos em que o juiz ou qualquer das partes for seu cônjuge, ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, e a eles se estendem, no que Ihes for aplicável, as prescrições relativas à suspeição e aos impedimentos dos juízes. Art. 254 do CPP.  O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes: I – se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles; II – se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia; III – se ele, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes; IV – se tiver aconselhado qualquer das partes; V – se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes; Vl – se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo.” O procedimento de impugnação das causas de imparcialidade do órgão do Ministério Público é aquele previsto no artigo 104 do Código de Processo Penal, o qual determina que “o juiz, depois de ouvi-lo, decidirá, sem recurso, podendo antes admitir a produção de provas no prazo de três dias”. Quando a arguição ocorre durante o processo criminal, o incidente será resolvido antes do julgamento da causa. Após o trânsito em julgado de sentença absolutória, não poderá haver revisão desta por conta da vedação da revisão pro societate, ou seja, no interesse da acusação, logo, impossível a suscitação de impedimento suspeição ou incompatibilidade neste caso. Impende consignar que, de acordo com Pacelli[15], não se pode aplicar às situações de imparcialidade do Ministério Público, por analogia, a regra contida no artigo 581, III do CPP[16], que trata da possibilidade de interposição de recurso em sentido estrito da decisão que julga alguma imparcialidade do juiz, haja vista que, o artigo 104 é claro ao afirmar que a decisão que versa sobre incompatibilidade, suspeição ou impedimento de membro do parquet é irrecorrível. Ainda consoante Pacelli[17], embora o supracitado artigo 104 informe que as decisões que julgam as causas de imparcialidade de membro do Ministério Público são consideradas irrecorríveis, nada obsta que a matéria possa ser levada aos órgãos jurisdicionais superiores através de apelação, dada sua natureza de decisão interlocutória, ou mediante habeas corpus, sob o fundamento de coação ilegal por falta de justa causa (art. 648, I CPP). A hipótese, entretanto, é de nulidade relativa, tendo em vista que não está relacionada com o caso concreto. Assim, vê-se que a violação da imparcialidade de membro do Ministério Público possuiu tratamento diferenciado daquele dado a dos magistrados, haja vista que, a deste último é tratada com mais rigor, pois, ao final, é dele a responsabilidade de julgar o processo. Depois de transitada em julgado a sentença condenatória, é vedada a anulação da mesma com fulcro na parcialidade do Ministério Público. 3.3. O PROMOTOR NATURAL Para que se entenda o princípio do promotor natural, necessário correlacioná-lo com os princípios institucionais da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional do parquet, acrescentando-se ainda a prerrogativa de inamovibilidade de seus membros. Por unidade entende-se que não pode haver o fracionamento do Ministério Público enquanto instituição pública, sem prejuízo da distribuição operacional de suas atribuições, tendo sido estas distribuídas constitucionalmente: Ministério Público da União (Federal, do Distrito Federal e Militar), Ministério Público dos Estados. A indivisibilidade, por seu turno, é caracterizada pela permissão de que qualquer membro do respectivo parquet pode participar de processo já em curso, ou seja, o Ministério Público é indivisível e pode atuar através de qualquer de seus representantes. Já a inamovibilidade dos órgãos do Ministério Público, é uma garantia constitucional que assegura aos membros do parquet que, o afastamento destes tão-somente poderá se efetuar “por interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa”[18]. Fundada no princípio da indivisibilidade funcional, na prerrogativa de inamovibilidade dos promotores e na inspiração do princípio do juiz natural se desenvolveu a doutrina no promotor natural. O princípio do promotor natural veda a instituição de órgão (promotor) de exceção, ou seja, “cuja designação não tenha se originado a partir de critérios rigidamente impessoais”[19]. As regras para a distribuição do promotor para determinado caso devem ser fixadas previamente, somente sendo possível a designação de um outro promotor por critérios estabelecidos em lei. A prerrogativa do promotor natural, entendida também como vedação a promotor de exceção, possui como escopo evitar que “a instituição não se reduza ao comando a as determinações de um único órgão de hierarquia administrativa, impondo-se, por isso mesmo, como garantia individual”[20]. O princípio em comento está ligado, diretamente, aos limites da independência funcional, porque com a autonomia dos membros do parquet, com sua livre manifestação, impede-se que ocorram afastamentos de membros com o escopo de fazer prevalecer sentimento, convicções e/ou inclinações pessoais dos chefes da instituição. O princípio do promotor natural, visto sob a ótica da inamovibilidade, implica na vedação de substituição do membro do parquet arbitrariamente, sem o atendimento dos critérios legais, como por exemplo, férias, licenças, suspeição, etc. Ocorre que, embora o princípio do promotor natural seja de suma importância para o desenrolar de um processo penal onde se garanta ao réu a fixação do órgão de acusação previamente, sob critérios impessoais, tal princípio vem sendo negado pelo Supremo Tribunal Federal que entende ser este incompatível com a indivisibilidade do Ministério Público.[21] Entretanto, consoante visto anteriormente, o princípio do promotor natural não se contradiz com o princípio da indivisibilidade do Ministério Público. A indivisibilidade está assentada, repise-se, na prerrogativa de permitir que qualquer membro do parquet oficie nos autos de qualquer processo sem a necessidade de designações específicas. Tal prerrogativa nada tem a ver com o princípio do promotor natural, que deve ser interpretado no sentido de que o promotor somente pode oficiar nos processos distribuídos para ele sob critérios previamente fixados. Nada obstante, possa haver a substituição do membro do parquet nos casos previstos em lei, tal qual se dá entre os magistrados. Ademais, ainda sob a ótica do princípio do promotor natural, impende consignar que se denúncia for oferecida por promotor ilegítimo para o caso, antes do trânsito em julgado da sentença, pode dar ensejo a nulidade relativa desta através de apelação ou de habeas corpus. Caso a sentença já tenha passado em julgado e tenha sido absolutória, não poderá ser reexaminada em razão da vedação da revisão pro societate. Todas essas questões são pacíficas na doutrina e na jurisprudência. No entanto, em caso de sentença condenatória passada em julgado, há controvérsia quanto à possibilidade de nulidade desta com fulcro na ilegitimidade do promotor, ou seja, na violação do princípio do promotor natural. De acordo com Pacelli[22] a ilegitimidade do parquet é causa de nulidade absoluta, pois, o princípio do promotor natural é a garantia do acusado de que o membro responsável pela persecução penal será regularmente, adequadamente e previamente constituído, assim, aplicando-se por analogia a norma constitucional, ninguém poderá ser processado senão pela autoridade judiciária competente. Outra questão que se impõe quando da reflexão acerca do princípio do promotor natural, é que não há possibilidade de se conceber a figura do promotor ad hoc, ou seja, “nomeação de advogado para o exercício temporário e precário das funções ministeriais, em razão de eventual ausência do órgão oficiante, como ainda previsto no art. 448 do CPP, em relação ao Tribunal do Juri”.[23] As funções do promotor foram instituídas constitucionalmente, eles são agentes políticos e somente poderá exercer a referida função aquele que tiver sido regularmente aprovado em concurso público para a carreira. Assim, as disposições do art. 448 do CPP devem ser tidas por revogadas. Tal entendimento foi confirmado pelas decisões proferidas nos autos da ADI 2.2874/GO, Relator Min. Marco Aurélio, e ADI 2.958-MC/SC, Reator Cesar Peluso. 3.4. OUTRAS PRERROGATIVAS E VEDAÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO Ainda goza o Ministério Público de outras prerrogativas, quais sejam, estruturação em carreira, relativa autonomia administrativa e orçamentária (art. 127, §2° da Magna Carta), limitações à liberdade do chefe do Executivo para nomeação e destituição do procurador-geral (art. 128, §§ 1° a 4° da Constituição). Os membros do parquet, em particular, ainda possuem as seguintes garantias e prerrogativas constitucionais: vitaliciedade (art. 128, §5°, I, a), irredutibilidade de subsídios (art. 39, §4°) e exigência de ingresso na carreira mediante aprovação em concurso público. Por fim, a Constituição ainda veda aos membros do Ministério Público o seguinte: a representação judicial e consultoria jurídica de entidades públicas (art. 129, IX); a percepção de contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; e, o exercício da advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração. 3.5. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A AÇÃO PENAL PRIVADA Nos termos do Código de Processo Penal, nos casos de ação penal privada, deverá o Ministério Público, sob pena de nulidade processual, intervir em todos os atos do processo na qualidade de fiscal da lei, tenha ou não aditado a queixa (artigos 45 e 48). De acordo com Capez[24], caso o órgão do Ministério Público, ao tomar conhecimento dos elementos que instruem a queixa, notar que se fazem presentes elementos ensejadores de ação penal pública, deverá oferecer denúncia, oportunidade em que se transformará em litisconsorte ativo. No caso de ação penal privada subsidiária da pública, a atuação do parquet será diferenciada, nesta hipótese, sob pena de nulidade, ele deverá intervir no processo na qualidade de assistente, fornecendo meios de provas, interpondo recursos, etc. Tem ainda o órgão ministerial, a prerrogativa de assumir o processo como parte principal em caso de abandono deste pelo querelante, nada impede, por sua vez, que este, depois de assumido o processo pelo Ministério Público, intente a sua intervenção no mesmo na qualidade de assistente da acusação (art. 268 do CPP). Importa registrar que, quando se tratar de ação penal de iniciativa privada exclusiva, em caso de abandona desta pelo querelante, não poderá o Ministério Público substituí-lo, pois estaria violando o princípio da disponibilidade inerente às ações desta natureza. 4. DO ACUSADO Basicamente, é preciso verificar se a figura do acusado é capaz de integrar a relação processual penal (a legitimatio ad processum) ou tem capacidade de estar em juízo (legitimatio ad causam). A Constituição da República de 1988 consagra em seu art. 5º, incisos LIII, LIV e LV como direito do acusado o devido processo, consagrando o Princípio da Legalidade, que ninguém deve ser processado e julgado senão pela autoridade competente, prevalecendo o Princípio do Juiz Natural e, ainda, consagra o Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa, dando direito ao acusado de se defender, já que o nosso ordenamento coloca a vida como valor supremo e trazendo em seu bojo o Princípio da Humanidade. Calha registrar que o menor de 18 anos, além de penalmente inimputável, não detém de legitimidade ad processum ou capacidade. Ressalte-se também que a exigência legal de representação do maior de 18 anos e menor de 21 anos, de que trata o Código de Processo Penal, não foi modificada pelo novo Código Civil, entretanto a Lei 10.792/03 parece ter alterado a legislação processual e revogou expressamente o art. 194 do Código de Processo Penal, no qual fazia exigência de curador. Conforme alude Eugênio Pacelli de Oliveira[25]: “Ora, se o interrogatório do réu é indiscutivelmente meio de defesa, para o qual se exige a nomeação de defensor, parece inaceitável a idéia de que somente para aquele (interrogatório) seria indispensável a nomeação de curador (conforme revogação do art. 194), remanescendo, porém, a exigência para os demais atos.”   Ademais, a nova menoridade civil não afeta a menoridade penal, consoante o disposto no art. 2.043 do Código Civil de 2002. No que concerne ao absolutamente incapaz, cuja incapacidade resulte de inimputabilidade proveniente de doença ou retardamento mental, e que caiba medida de segurança, do qual decorre de prática de ato ilícito e fato típico, pode integrar a relação processual, desde que esteja devidamente representado por um curador, seja aquele que já estiver no exercício da curatela legal ou pode ser nomeado pelo Juiz Criminal, conforme arts. 149 e seguintes do CPP. Em razão do Princípio da inocência, se existir circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena, em razão da comprovada exclusão de culpabilidade, não é cabível imposição de medida de segurança. Imperioso se faz destacar que mesmo havendo impossibilidade do acusado com seu verdadeiro nome, art. 259 do Código de Processo Penal, não evitará a instauração e o desenvolvimento da ação penal, desde que seja possível a sua identificação física. Destarte, no ordenamento penal vigente há possibilidade da pessoa jurídica ser responsabilizada penalmente em crimes ambientais, conforme Lei de n. 9.605/98. 5. DO DEFENSOR O ordenamento jurídico preleciona no art. 261 do Código de Processo Penal que “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”, sendo evidenciada, pois, a exigência de que todo ato processual se realiza na presença de um defensor devidamente habilitado no quadro da Ordem dos Advogados do Brasil, corroborando em defesa técnica, de acordo parágrafo único do artigo em epígrafe. Entretanto, na prática, depende do próprio réu a produção de algumas provas, já que ele é o único que detém das informações necessárias à preparação da defesa. Cumpre salientar que a manifestação fundamentada somente pode ser aplicada nas fases procedimentais em que haja debate sobre questões de fato e de direito. Mas, tratando-se de fase que antecede à instrução, na qual a defesa terá a oportunidade de se manifestar de forma conclusiva, não se poderá impor sanção de nulidade absoluta do processo por ausência de manifestação fundamentada do defensor dativo ou público. Em fases procedimentais como as alegações finais, a ausência de fundamentação será causa de nulidade absoluta do processo, por violar o princípio da ampla defesa e o aludido artigo 185 do CPP, que traz a possibilidade de participação e intervenção do defensor no interrogatório, que até então não era permitido, e a ausência de nomeação de defensor para o citado ato constitui nulidade absoluta. A defesa se dará por defensor constituído, ou seja, aquele escolhido livremente pelo acusado, pelo defensor dativo, nomeado pelo Estado, para quem não pode ou não quiser constituir advogado pelo defensor ad hoc, designado especificamente para o caso. Se o acusado não dispuser de suficientes condições financeiras, o juiz arbitrará os honorários do defensor dativo, pelo que preleciona o art. 263, parágrafo único do CPP, e quando pobre será custeado pelo Estado, através das Defensorias Públicas. Nesse contexto, se o juiz entender insuficiente, deficiente ou inexistente a defesa realizada pelo defensor dativo, deverá nomear outro, podendo a todo tempo o acusado nomear advogado de sua confiança, conforme arts. 263, 422 e 449, parágrafo único, CPP. Quando se tratar de defensor constituído, o juiz não poderá adotar a mesma medida, pois não foi por ele nomeado. Diz o Código que a nomeação de defensor constituído independerá de instrumento de mandato, como a procuração, se o acusado o indicar por ocasião do interrogatório (art. 266, CPP). É válido ressaltar, sobre a defesa técnica, o entendimento jurisprudencial manifestado na Súmula nº 523 do Supremo Tribunal Federal, quando ensina que a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só anulará se houver prova de prejuízo para o réu. Desse modo, é mister a defesa efetiva, pois configura-se em garantia constitucional, que não se limita apenas à impossibilidade de participação no processo, mas deve-se entender e exigir a efetiva atuação do defensor pelo interesse do acusado, podendo ser auferido sempre diante de um caso concreto, ponderando-se as provas carregadas aos autos pela acusação e a possibilidade real de sua confrontação pela defesa. O interrogatório é a real oportunidade de que dispõe o acusado para se defender diante do juiz, configurando-se em um meio de defesa. Nesse diapasão, a Lei 11.719/08 regulamentou as hipóteses de adiamento de audiência, quando em razão do não comparecimento do defensor, que deverá justificar, por qualquer meio, a sua ausência até antes do início da audiência de instrução (art. 265, § 2°), adiando-se o ato por tal razão. Se a ausência decorrer de obstáculo insuperável e de última hora, é conveniente que o juiz, antes de determinar o prosseguimento da causa, verifique a sua complexidade e as provas a serem produzidas naquele momento, sob pena de, nomeando outro procurador, causar dano irreparável à defesa. 6. DA ASSISTÊNCIA Por certo, determinadas infrações penais além de produzir sanção penal, também criam efeitos de natureza patrimonial. Surgindo, assim, para as vítimas o direito de recomposição do patrimônio atingido. Diante disto, há grande interesse por parte da vítima do crime na condenação do acusado na ação penal, a fim de ver constituído título judicial executivo, conforme art. 584, II, do CPC. Por estas razões, é assegurada a intervenção da vítima na ação penal. 6.1. LEGITIMAÇÃO A modalidade de procedimento que viabiliza esta intervenção é denominada assistência. O legitimado a agir é o ofendido, ou o seu representante legal, nas hipóteses elencadas em lei, ou em caso de ausência e morte, as pessoas indicadas no art. 31 do CPP. Além da legitimação, imprescindível a capacidade postulatória, devendo, portanto, ser representado por um advogado. Há celeuma doutrinária e até mesmo jurisprudencial quanto ao fato de ser possível a legitimação de pessoa de direito público como assistente de acusação. Quanto à esta questão, entendimentos são divididos, havendo aqueles que entendem que o Ministério Público já representa o interesse do Estado, não havendo que se falar em outro organismo estatal na ação penal. Pacelli comunga do entendimento diverso, segundo o qual a condenação penal pode acarretar efeitos em outros ramos do Direito. Logo, qualquer pessoa, natural ou jurídica, público ou privado, pode requerer sua satisfação. Entretanto, nos termos do artigo 270 do CPP não se admite a assistência de co-réu no mesmo processo, já que este é parte do processo, e não terceiro interessado. 6.2. O ASSISTENTE COMO CUSTOS LEGIS Apesar de tudo quanto exposto, não é a satisfação do dano civil o único interesse a justificar a atuação do assistente na ação penal.  O artigo 29 do CPP e o artigo 5º, LIX da Constituição Federal dão à vítima a faculdade de iniciativa processual penal, em caso de inércia do Ministério Público, o que chamamos de ação privada subsidiária da pública.  Resta aqui evidenciado outro interesse jurídico ao ofendido, consubstanciado na reprovação do Estado ao ato praticado pelo ofensor, e a conseqüente aplicação de sanção penal. Obviamente, o interesse da vítima na ação penal não é unicamente a obtenção de título executivo para obtenção de seu direito reparatório, vez que caso fosse teria ela a opção de recorrer ao juízo da vara cível. A escolha do ofendido e de seus sucessos como legitimados para figurarem como assistente, deve encontrar respaldo no princípio da igualdade processual, já que com a figura de um terceiro na relação processual pode ocorrer um desequilíbrio, afetando a paridade de armas. A justificativa, entretanto, é simples: o ofendido, indubitavelmente, já é titular de interesse jurídico, embora não penal, relevante. Logo, podendo ele demandar civilmente contra o réu pelos mesmos fatos, pode também participar da ação penal. Assim, há de se concluir que a posição de custos legis é apenas do particular, já que a pessoa de direito público somente legitima sua interferência na defesa de interesse de outra espécie de natureza. 6.3. FACULDADES PROCESSUAIS Apesar de figurar como terceiro interessado, o assistente possui muitas faculdades processuais. Cumpre explicitar que apesar da redação do artigo 268 do CPP, ao assistente do Ministério Público não é permitido intervir em todos os termos da ação penal, sua atividade é meramente supletiva daquela atribuída ao Ministério Público. Só pode o assistente ingressar na ação penal, após a instauração da demanda, ou seja, com o recebimento da denúncia. Ademais, uma vez rejeitada a denúncia, não se reconhece a legitimidade do assistente, conforme artigo 271 do CPP. O assistente somente pode interpor recurso próprio nas hipóteses possíveis, a exemplo da inércia do Ministério Público.  A decisão de extinção de punibilidade não mais afetará recurso em sentido estrito. Também não é facultado ao assistente aditar denúncia, nem arrolar testemunhas, já que a nova Lei do Júri, 11.689/2008, eliminou a figura do libelo, ao qual era permitido ao assistente a hipótese de aditamento. Entretanto, apesar de não haver previsão expressa, passou a ser possível ao assistente a inclusão de testemunhas não arroladas pelo Ministério Público, desde respeite o número máximo de cinco reservado à acusação. Além disto, o assistente também pode indicar diligências probatórias, desde que, ouça o Ministério Público. Em suma, na ação penal, pode o assistente: indicar meios probatórios, arrolar testemunhas, apresentar arrazoados, e participar de debates orais. Uma vez prolatada a decisão, o assistente tem legitimidade recursal, nas hipóteses de inércia do parquet, impugnar sentença absolutória e extintiva de punibilidades e nas decisões de impronúncia. Se o Ministério Público interpuser recurso, ao assistente caberá, somente, apresentar suas razões. Se o órgão não apresentar recurso, o assistente pode fazer referente às decisões supramencionadas. Pode, assim, o assistente opor embargos de declaração, apelação, recurso especial, extraordinário. Ademais, havendo recurso parcial pelo MP, pode o assistente recorrer da parte não suscitada por aquele. Consoante a súmula 208 do STF não pode o assistente recorrer de sentença que concedeu habeas corpus. Vale registrar que o prazo para o assistente recorrer é o mesmo reservado ao MP, quando já tiver habilitado no processo. Caso não esteja, o prazo será de 15 dias, segundo o artigo 598, CPP. 6.4. RECURSO DE SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA Outra questão, que é fruto de discussões doutrinárias, diz respeito à legitimidade do assistente para recorrer de sentença condenatória, com a finalidade de aumentar a pena. Revendo sua posição, Pacelli argumenta que não é possível a interposição pelo assistente de recurso de sentença penal condenatória apenas com vistas ao aumento da quantificação da sanção, o que tentava ser justificado mediante a hipótese de inércia do Ministério Público em interpor recurso, em analogia à Ação Penal Privada Subsidiária da Pública. A possibilidade de ajuizamento de Ação Penal Privada substitutiva, em caso de inércia do Ministério Público, possui como substrato o princípio da obrigatoriedade da Ação Penal Pública. Omisso o órgão primariamente legitimado, é dada ao particular a prerrogativa de cessar a inércia jurisdicional e propor a ação subsidiária, hipótese na qual estará agindo como fiscal do cumprimento do dever estatal de propor ação penal. Com efeito, não existe no ordenamento pátrio o princípio da obrigatoriedade de recurso para efeitos de aumento de pena. Não se caracteriza inércia do Ministério Público em virtude de o mesmo deixar de recorrer de uma sentença penal condenatória, a qual já cominou sanção ao acusado. Enquanto titular exclusivo da ação penal, é o Ministério Público o único legitimado a realizar o juízo de valor acerca do acerto ou não da decisão. Por outro lado, há que se fazer a ressalva de que nos casos de sentença absolutória, mesmo que com ela esteja de acordo o Ministério Público, por força do artigo 271 do Código de Processo Penal, abrir-se ao assistente oportunidade para interposição de recurso. Além de opção legislativa, a hipótese repousa na justificativa de que a decisão final, in casu, da instância penal poderá vincular a instância civil, sendo possível que disso decorra prejuízos à esfera patrimonial da vítima. 6.5. PROCEDIMENTO Segundo a regulamentação do Código de Processo Penal, pode haver a intervenção do assistente desde o recebimento da denúncia, até que a decisão não transite em julgado, recebendo o processo na fase em que estiver. Logo, não se pode cogitar a interferência do assistente no processo em fase de execução penal, conclusão decorrente da dicção do artigo 269 do Codex Processual Penal. 7. DOS AUXILIARES DA JUSTIÇA – PERITOS, INTÉRPRETES E FUNCIONÁRIOS DA JUSTIÇA Além dos sujeitos processuais acima considerados, não se pode olvidar o grupo dos auxiliares da justiça, os quais Capez classifica como sujeitos acessórios, mas cuja relevância pode ser fundamental na persecução pela verdade real no processo penal. Tais sujeitos são convocados a interferir no processo, merecendo regulamentação própria no Código Processual Penal (Título VIII), ainda que esparsa, abarcando o artigo 274 para os funcionários da justiça, bem como os artigos 275 a 281, para peritos e intérpretes. Nestor Távora e Rosmar Antonni R. C. de Alencar[26], invocando Guilherme de Souza Nucci, identificam os funcionários da justiça: “os servidores da justiça – ou serventuários – são funcionários públicos pagos pelo Estado, a serviço do Poder Judiciário. São os escrivães-diretores, escreventes, oficiais de justiçam dentre outros”. A regulamentação legal para os serventuários da justiça é que se lhes aplicam, no que couber, as prescrições sobre suspeição dos juízes. A maior parte dos doutrinadores assevera que tal suspeição apenas pode recair sobre os escrivães, em virtude de sua maior proximidade com o magistrado e da sua condição de chefia nos serviços cartorários, sendo esta a posição de Nucci e Pacelli. Contudo, é acertado o juízo de Antonni e Távora ao observar que, com o crescimento da quantidade de demandas no Poder Judiciário, os juízes têm delegado aos serventuários, cada vez mais, ainda que informalmente, a prática de atos ordinatórios e a confecção de “minutas” das decisões. Assim, a possibilidade de aferição de suspeição deve ser averiguada em cada caso concreto, resguardando-se a impessoalidade do serviço público. No que concerne aos peritos, estes são, em regra, integrantes da Administração Pública. Contudo, ainda que sejam peritos particulares, com os requisitos autorizadores do artigo 159, §1° do Código de Processo, estão submetidos à disciplina judiciária[27] constante do artigo 275, haja vista estarem no desempenho de função pública, sob o manto do princípio da legalidade. Confluindo para a formação de convencimento do magistrado, os peritos e intérpretes desempenham papel de grande relevância no processo penal, do que se verifica manifesta a necessidade de cautela quanto à qualidade e a idoneidade do serviço prestado, não se esquecendo de que se trata de serviço público. Por esse motivo, mais uma vez como medida de resguardo do princípio da impessoalidade do serviço público e pela legítima persecução da verdade real, ou melhor, judicial, aplicam-se aos intérpretes e peritos as normas de impedimento consubstanciadas no artigo 279 do Código de Ritos Penal, bem como se lhe estendem as hipóteses de suspeição de magistrados, no que for cabível. 8. CONSIDERAÇÕES SOBRE O OFENDIDO A sistemática do Código de Processo Penal não inclui no Título referente aos sujeitos processuais a figura do ofendido, o qual é regulamentado nos artigos 201, no Título VII – Da Prova, Capítulo V, com redação alterada pela Lei n° 11.690/2008. Conjugando-se os parágrafos do artigo 201 do CPP com o artigo 159, §3°[28], do mesmo diploma, exsurge a problemática de como pode ser qualificado o ofendido, nas hipóteses em que decidiu por não intervir como assistente: seria então ele parte ou sujeito do processo, tendo em vista sua faculdade em participar da produção de provas? Diversos autores são silentes sobre o tema. Pacelli enuncia entendimento de que no caso estaria o ofendido atuando como parte, e não sujeito processual. Verifica-se obscuro o entendimento, pois, embora haja distinção entre sujeito processual e parte, é cediço que as partes são subespécies dos sujeitos processuais, com qualificação diferenciada das demais. 9. CONCLUSÃO Ao decorrer do presente trabalho, perseguiu-se o escopo de identificar, analisar e pormenorizar os sujeitos do processo penal, em seus aspectos mais relevantes, consoante apontado por parte dos juristas pátrios que dissertaram sobre o assunto, tendo sido imprescindíveis os comentários acerca da legislação processual aplicável. Conforme já propugnado alhures, o tema é de relevância sobressalente, tendo em vista o fato de que o processo jamais poderá prescindir da atuação e interferências dos sujeitos processuais, tanto para que seja respeitado o princípio processual geral de inércia da jurisdição, bem como observados os princípios regentes da Ação Penal, dentre os quais se destacam o princípio da obrigatoriedade e da oficialidade. Quanto aos sujeitos processuais colaterais (peritos e intérpretes), também não se deve olvidar a proeminência de sua atuação no processo em busca da verdade real (ou judicial), colaborando para o asseguração, o mais próxima o possível, da justiça das decisões. Cada sujeito processual examinado interfere no processo penal consoante as peculiaridades que lhes são conferidas por lei, contribuindo para o alcance das finalidades do processo de lograr a aplicação justa do ius puniendi monopolizado pelo Estado, e imprescindível para a comunidade jurídica que tanto almeja o direito à segurança, e para o próprio ente estatal, o qual, através da persecução penal, ratifica sua soberania e restaura a ordem jurídica.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-79/os-sujeitos-do-processo-penal/
A eficácia da prisão efetuada a partir da rede Infoseg
o presente artigo aborda a necessidade de constante atualização do Direito diante dos avanços tecnológicos dos instrumentos que podem servir para a concretização dos comandos jurídicos. Procura demonstrar a legalidade da utilização dos meios eletrônicos, cuja aplicação já foi objeto de decisões favoráveis dos tribunais superiores. Sinaliza, por fim, a necessidade de aprimoramento dos instrumentos oficiais no sentido de incorporar a modernidade, principalmente da área de informática, visando sobretudo à concretização da justiça de maneira mais eficiente.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO Tema muito interessante diz respeito aos avanços da ciência de um modo geral, quando confrontamos esses avanços com a criticada inércia do Direito em face da evolução tecnológica dos instrumentos pouco utilizados pela ciência jurídica para a consecução dos seus fins. À vista disso, é que temos acompanhado, pela imprensa, a realização de prisões, na maioria das vezes realizada pela Polícia Rodoviária Federal, de indivíduos em trânsito pelo país e que possuem mandado de prisão em aberto no sistema informatizado de comunicações denominado Rede Infoseg. A atenção tem se voltado para essas prisões exatamente em face do procedimento inusitado levado a efeito pelos policiais rodoviários que não presenciam o flagrante delito, mas sim procedem de acordo com o estrito cumprimento do dever legal, que legitima o cumprimento da ordem de prisão, na opinião da jurisprudência pátria, na maioria das vezes autorizada por autoridade judiciária com jurisdição em outro estado bem distante daquele em que se efetuou a prisão. Esse procedimento tem gerado certa controvérsia diante do disposto no art. 289 e parágrafo único do Código de Processo Penal, que preveem: “Art. 289. Quando o réu estiver no território nacional, em lugar estranho ao da jurisdição, será deprecada a sua prisão, devendo constar da precatória o inteiro teor do mandado. Parágrafo único. Havendo urgência, o juiz poderá requisitar a prisão por telegrama, do qual deverá constar o motivo da prisão, bem como, se afiançável a infração, o valor da fiança. No original levado à agência telegráfica será autenticada a firma do juiz, o que se mencionará no telegrama.” Segundo aqueles que criticam a falta de atualização do Direito, estaríamos, mais uma vez, diante de um caso em que os recursos tecnológicos acabaram por ultrapassar os artigos da Lei, mormente uma Lei elaborada há décadas, como é o caso do Código de Processo Penal. Para tanto, a fim de manter a atualização do Direito, a jurisprudência pátria tem se firmado no sentido da admissão de o decreto prisional ser cumprido mediante o seu registro na rede informatizada, dispensando-se os formalismos burocráticos gerados pela expedição de carta precatória ou telegrama, procurando, assim, dar efetividade à ordem prisional, através dos meios mais modernos de comunicação. 2.A REDE NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA Pois bem, acerca da Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e fiscalização – Rede Infoseg, dispõe o Decreto n.º 6.138/2007: “Art. 1o Fica instituída, no âmbito do Ministério da Justiça, a Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização – Rede Infoseg, com a finalidade de integrar, nacionalmente, as informações que se relacionam com segurança pública, identificação civil e criminal, controle e fiscalização, inteligência, justiça e defesa civil, a fim de disponibilizar suas informações para a formulação e execução de ações governamentais e de políticas públicas federal, estaduais, distrital e municipais. Art. 2o Poderão participar da Rede Infoseg os órgãos federais da área de segurança pública, controle e fiscalização, as Forças Armadas e os órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público, e, mediante convênio, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Art. 5o Os dados disponíveis em índice nacional da Rede Infoseg são de acesso restrito dos usuários credenciados. Art. 6o O fornecimento de informações de monitoramento e controle da Rede Infoseg e de seus usuários é condicionado à instauração e à instrução de processos administrativos ou judiciais, sendo o atendimento da solicitação de responsabilidade exclusiva do chefe do setor de inteligência dos órgãos integrantes da rede, observados, nos casos concretos, os procedimentos de segurança da informação e de seus usuários.” (grifou-se) Sendo assim, vê-se que os novos recursos de informática proporcionam uma forma de comunicação maior entre os órgãos judiciais e os de fiscalização policial, na medida em que permite o registro de mandados e ocorrências inerentes aos cidadãos em trânsito no país. Dessa forma, procura-se coibir, dentre outras coisas, a conduta do cidadão que, no passado, praticava ilícitos em determinado local com a consequente evasão do distrito da culpa, a fim de frustrar a aplicação da lei penal. Portanto, foi criada a Rede Infoseg, no âmbito do Ministério da Justiça, que consiste num banco de dados relativo à informação, justiça e fiscalização, atuação essa que diz respeito à própria aplicação do princípio da eficiência na administração pública, previsto no art. 37, caput, da Constituição: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…)” A propósito do princípio da eficiência na Administração Pública, lembremos as lições da sempre festejada Maria Sylvia Di Pietro: “O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público.”[1] Por conta disso, reconhece-se perfeitamente a legalidade do Decreto n.º 6.138/2007, na forma disposta no art. 84, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição, bem como no disposto nos arts. 25, inciso XIV, 27, inciso XIV, alínea “d”, e 47 da Lei n.º 10.683/2003. 3.JURISPRUDÊNCIA SOBRE O TEMA Constata-se a possibilidade de realização de prisão baseada em consultas ao Sistema Infoseg, sem que se tenha em mãos o tradicional mandado de prisão, já que tal prática tem se revelado conforme o entendimento jurisprudencial dominante. Isso porque, como bem têm se posicionado nossos Tribunais, a prisão efetuada através da consulta ao Infoseg se justifica, pois ela se coloca como alternativa aos órgãos de segurança pública no combate à criminalidade. Senão, vejamos: “ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL- MANDADO DE PRISÃO – POLICIA FEDERAL – INFORMAÇÃO DADA POR VARA CRIMINAL- ESTRITO CUMPRIMENTO DA LEI – INCONFIGURADO DANO MORAL. -Ajuizou-se ação ordinária objetivando a condenação da ré em danos materiais e morais, equivalentes a 500 (quinhentos) salários mínimos, cada um, decorrentes do sofrimento pelo que o autor passou e ainda continua passando por ter ficado detido na Polícia Federal, quando foi solicitar expedição de seu passaporte. -O próprio autor sustenta em sua réplica, mais precisamente no item 9 de fls.113: “O que na verdade ocorreu, foi que o Dr. Juiz de Direito da 28a. Vara Criminal da Comarca da Capital ao ter deprecado o Mandado de prisão, em nome de RODS ALMEIDA DE AGUIAR acrescentou por engano MAURO ALGARRÃO DA SILVA.” -In casu, resta evidente que os agentes da Polícia Federal e o Delegado agiram no estrito cumprimento do dever legal. Diante da consulta ao sistema de dados da Polícia Federal, que constatou-se informação de expedição do mandado de prisão do autor, advinda de Varas Criminais, não cabia outro procedimento a fazer que não fosse a reclusão do autor para averiguação, que foi exatamente o ocorrido, sendo o mesmo liberado posteriormente após averiguações. -Noutro eito, a própria magistrada sustenta que a atividade policial foi pautada em informações advindas de Varas Criminais, entretanto, entendeu que houve falha do serviço no que concerne a desatualização dos dados constantes no sistema disponível à utilização pela Polícia Federal. -Com efeito, a meu juízo, vislumbro justamente ao contrário, que as informações erradas vieram da Vara Criminal, não podendo a Polícia Federal ficar buscando todos os dados para serem atualizados, e sim os Órgãos Públicos mandarem todas as informações corretas, o que não foi o caso, eis que constava no sistema o mandado de prisão contra o autor, não cabendo outra alternativa aos agentes da Polícia Federal que não fosse a reclusão do autor para verificar a veracidade dos fatos. -Remessa Necessária e Recurso conhecidos e providos” (TRF 2ª. Região. Apelação n. 2003.51.01.007914-1. Oitava Turma Especializada. Rel. Des. Fed. Poul Erik Dyrlund, j. em 19.11.2008) (grifos nossos). Nessa trilha, reconhecendo a legalidade dos procedimentos de prisão que são tomados com base nos registros de mandados de prisão constantes do Infoseg, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina: “Dessa forma, os procedimentos adotados em tais circunstâncias não podem ser censurados, pois na espécie agiram os policiais no estrito cumprimento do dever. Em momento algum fizeram uso da força, ou agiram de forma insensata. Assim, o ato de retirar o suspeito do veículo, cumprir o mandado de prisão, a busca no automóvel e a posterior locomoção à delegacia de polícia para averiguação dos fatos, não podem, em momento algum, ser considerados impróprios. Em dias que a criminalidade atinge índices alarmantes, não há que se reprimir a atitude de policiais militares para averiguar eventual ocorrência, porquanto a atuação preventiva é positiva para manutenção da ordem pública e segurança dos cidadãos. In casu, ato contínuo, após a condução do casal à delegacia, conforme se infere dos autos, houve a apresentação do alvará de soltura referente ao mandado de prisão, e, como não podia ser diferente, procedeu-se a imediata liberação do varão suspeito.” (TJ/SC. Apelação Cível 2004.008084-0. Rel. Des. Francisco Oliveira Filho, j. 01.06.2004) (grifou-se) O Superior Tribunal de Justiça, através do voto proferido em habeas corpus, da relatoria da ministra Jane Silva, já decidiu pela legalidade do procedimento: “PROCESSUAL PENAL – HABEAS CORPUS – HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO – PRISÃO PREVENTIVA. CUMPRIMENTO EM OUTRO ESTADO DA FEDERAÇÃO. AUSÊNCIA DE CARTA PRECATÓRIA EXPEDIDA ANTERIORMENTE PELO JUÍZO DA CAUSA. MERA IRREGULARIDADE POSTERIORMENTE SANADA VIA FAX. IMPOSSIBILIDADE DE EXIGÊNCIA DE PRÉVIA DEPRECAÇÃO CASO O PARADEIRO DO ACUSADO SEJA INCERTO E NÃO SABIDO. PRISÃO EFETIVADA PELA AUTORIDADE POLICIAL RODOVIÁRIA FEDERAL APÓS CONSULTA AO INFOSEG. EXISTÊNCIA DE MANDADO JUDICIAL PRÉVIA E LEGALMENTE EXPEDIDO. AUSÊNCIA DE NULIDADE. ORDEM DENEGADA. 1.Inexiste nulidade na efetivação da prisão preventiva do paciente em Estado da Federação diverso daquele do Juízo da causa em razão da ausência de carta precatória, pois incerta e não-sabida a localização do agente, notadamente quando a deprecação em questão foi ulteriormente sanada, via fax, pelo Magistrado que determinou a custódia cautelar. 2. Para a efetivação da prisão, basta a existência de prévia decisão judicial determinando a custódia preventiva do paciente, com o respectivo mandado de prisão, situação devidamente observada pelos agentes policiais rodoviários federais após consulta ao INFOSEG, o qual se reportava ao mandado em questão. 3. Ordem Denegada.” (STJ. HC 115384. Rel. Min. Jane Silva – convocada. Data publicação: 02/12/2008). Registre-se que o próprio Supremo Tribunal Federal reconhece o banco de dados do Infoseg como consulta legítima para se aferir os antecedentes criminais dos denunciados, cf. MS 26593/DF, Rel. Min. Carlos Britto, HC 87571 MC/MT, Rel. Min. Gilmar Mendes. Por outro lado, verifica-se que, vez por outra, são encontrados erros nos registros constantes no Infoseg, o que não tem o condão de gerar a responsabilidade dos agentes que efetuarem a prisão com base nesses registros incorretos, tendo em vista que a responsabilidade por esses atos é dos órgãos que inserem ou deixam de retirar os dados da rede Infoseg, a fim de que eles representem a realidade. Assim, os agentes policiais que efetuarem a restrição da liberdade do cidadão com base em mandado de prisão constante no Infoseg, agirão no estrito cumprimento do dever legal, que é causa de exclusão da responsabilidade. Por conseguinte, recomenda-se que os agentes públicos, diante da ordem de prisão constante no sistema eletrônico, empreendam o máximo de cautela, a fim de verificar a veracidade e atualidade da ordem prisional, procurando, inclusive, ratificá-la junto ao órgão expedidor, que poderá confirmar o mandado por meio de fax ou telegrama, nos termos da jurisprudência e do disposto no parágrafo único do art. 289, do Código de Processo Penal: “HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE TENTATIVA DE HOMICÍDIO. MANDADO DE PRISÃO TRANSMITIDO VIA FAX A OUTRA COMARCA. POSSIBILIDADE. URGÊNCIA. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 289 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTOS. CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL E GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. AMEAÇA À VÍTIMA. PRECEDENTES DO STJ. 1. Não há ilegalidade na transmissão via fax do mandado de prisão, pois o Juízo que decretou a prisão preventiva do Paciente era competente para o processamento e julgamento da ação penal, bem como o original do mandado de prisão foi enviado à Comarca de Marabá horas após o seu cumprimento, conforme determina o parágrafo único do art. 289 do Código de Processo Penal. 2. A prisão cautelar foi satisfatoriamente motivada na necessidade da segregação do acusado para garantia da ordem pública e da instrução criminal, por haver notícia nos autos da intenção do Paciente de ocultar provas e de consumar o homicídio. 3. Habeas corpus denegado.” (STJ. HC 200600549009. Quinta Turma. Rel. Min. Laurita Vaz. DJ DATA:17/12/2007 PG:00233) (grifado). Além disso, no que tange à prisão por ordem judicial fora do distrito da culpa, a jurisprudência pátria, inclusive a do STF e STJ, tem reconhecido que a falta de expedição de carta precatória para que seja efetuada a prisão em local diverso daquele em que foi decretada a prisão preventiva constitui mera irregularidade: “[…] a interpretação dada pelo Juízo de primeira instância e confirmada pelo acórdão do Superior Tribunal de Justiça, ora impugnado, de que a falta de precatória acarreta mera irregularidade, seja a mais razoável. Nossa Constituição prevê, em seu art. 5º, LXI, que “ninguém será preso se não em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”. A ausência de carta precatória não torna a prisão ilegal, quando houver mandado expedido por autoridade competente, mas tão somente acarreta nulidade sanável. (…) Por outro lado admitir, o relaxamento da prisão preventiva do paciente em face de mera irregularidade administrativa seria apegar-se a formalismos excessivos e atitude extremamente prejudicial ao resguardo da ordem pública e aplicação da lei penal (…)” (STF. HC. 85712/GO. Rel. Min. Joaquim Barbosa. J. 03/05/2005). (grifado). Em face disso, percebe-se a preocupação da Corte Constitucional com a aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade a salvaguardar os direitos que devem se sobrepor a outros direitos, na forma como já observado pelo Superior Tribunal de Justiça: “(…) Enxergar o direito pelos olhos da Constituição, significa, por exemplo, ver o direito à luz do Princípio da Proporcionalidade, ou Razoabilidade, que é um dos mais importantes (se não for o mais) princípios albergados na Constituição, o qual consiste num parâmetro de valoração dos atos do Poder Público, para aferir se eles são informados pelos valores ditados pela Constituição (BARROSO, Luís Roberto, ‘Interpretação e Aplicação da Constituição’, Saraiva, p. 204, 1996.). Em síntese, enseja a verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a legitimidade dos fins do ato em discussão (idem, p. 200). A valoração da razoabilidade do ato, se faz através de um ‘juízo de ponderação de resultados’, cujo requisito é a adequação entre os meios e os fins do ato em exame (STUMM, Raquel Denise, ‘Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro’, Livraria do Advogado Ed., p. 81, POA, 1995).” (STJ. REsp 820669. Rel. Min. Hamilton Carvalhido. J. 02.05.2006) (grifos nossos). 4.LEGITIMIDADE DOS MEIOS ELETRÔNICOS Por conseguinte, mostra-se legítima a ação policial que dá cumprimento à ordem de prisão inserida na rede Infoseg, visto que o estado deve se preocupar com a segurança da coletividade, especialmente em face de indivíduos de alta periculosidade que venham a por em risco a paz social, raciocínio esse que leva em conta a aplicação do princípio da proporcionalidade como forma de equilibrar os direitos individuais. Por outro lado, como já observado, devem os agentes executores da ordem se cercar dos cuidados necessários para evitar os erros que possam causar os constrangimentos e prisões indevidas. Para tanto, devem os órgãos credenciados no sistema orientar os chefes do setor de inteligência dos órgãos integrantes da rede no sentido de envidar os esforços necessários a mais completa atualização da rede, notadamente retirando os registros de mandado de prisão que já tenham perdido a eficácia, como no caso da revogação da prisão pelo juízo competente, a fim de evitar a responsabilidade do agente que não atualizou o sistema corretamente ou que tenha dado causa a erro no respectivo mandado. Ainda com relação ao uso dos avanços tecnológicos, pelos órgãos aplicadores do Direito, tivemos a edição, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Resolução n.º 100/2009, que disciplinou a utilização do Sistema Hermes (malote eletrônico) por todos os Tribunais brasileiros, para a expedição de cartas precatórias, cartas de ordem e outras correspondências, verbis: “RESOLUÇÃO Nº 100, DE 24 DE NOVEMBRO DE 2009  Dispõe sobre a comunicação oficial, por meio eletrönico, no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições constitucionais e regimentais, eCONSIDERANDO que compete ao Conselho Nacional de Justiça o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, bem como zelar pela observância do Art. 37 da Carta Constitucional (Art. 103-B, § 4º, caput e inciso II);CONSIDERANDO que a eficiência operacional é um dos objetivos estratégicos a ser perseguido pelo Poder Judiciário, a teor da Resolução nº 70 do Conselho Nacional de Justiça; CONSIDERANDO os princípios constitucionais da eficiência e da razoável duração dos processos, e a necessidade de modernizar a administração da Justiça com a utilização dos recursos disponíveis da tecnologia da informação; CONSIDERANDO o disposto no art. 7º da Lei 11.419/2006, prevendo que as comunicações entre os órgãos do Poder Judiciário serão feitas, preferencialmente, por meio eletrônico;CONSIDERANDO a economia, celeridade e eficiência alcançadas com a utilização do Sistema Hermes – Malote Digital por diversos Tribunais;CONSIDERANDO o disposto no Termo de Cooperação Técnica nº 004/2008;CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça na sua 95ª Sessão Ordinária, realizada em 24 de novembro de 2009, nos autos do procedimento 200910000066914,
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-79/a-eficacia-da-prisao-efetuada-a-partir-da-rede-infoseg/
O papel da pena diante do sistema prisional e da sociedade atual
A pena surge a partir do momento em que o homem necessita de regulamentações com relação as suas atitudes e as relações sociais, caracterizando assim se a conduta deve ou não, ser punida ou não dentro destas relações. Este estudo aborda exatamente a questão das penas, partindo desde sua origem e conceito, passando pela sua evolução chegando ao objetivo principal que é confrontar estes aspectos com a reflexão de que as penas mais rígidas não resolvem, ao contrário tornam o sistema penal cada vez mais frágil. É necessário que ocorra a conscientização da sociedade de que é preciso fazer mais do que apenas presídios, é de fundamental importância parar e refletir sobre formas de tornar realmente aplicável e efetiva as penas, atingindo-se assim a conduta ilícita do criminoso e também repercutindo a prevenção de novos delitos.
Direito Processual Penal
1. Introdução O direito penal e mais particularmente as penas estão no cotidiano da aplicação do Direito, são estas medidas que a sociedade encontra para manter a ordem com relação aos atos ilícitos que possam causar dano ao convívio social. O presente estudo tem como principal objetivo a ênfase exatamente em observar e analisar a história das penas desde a antiguidade até os dias atuais, pontuando os aspectos mais importantes dentro de cada período histórico. Apresenta-se inicialmente um apanhado da origem da pena, em seguida são analisados então a evolução do papel da pena na sociedade no decorrer dos séculos e a sua verdadeira aplicação no atual cenário brasileiro. Com o intuito de realizar um trabalho que possa mostrar a evolução pela qual passou a pena desde as primeiras realidades até os entendimentos realizando um pensamento critico a respeito das fases da pena, visando entender o seu verdadeiro papel e função dentro da sociedade.  2. Breve estudo sobre a origem e história das penas 2.1 Origem da Pena A origem das penas se perde no tempo, sem duvida é muito remota, “sendo tão antiga quanto a humanidade. Por isso mesmo é muito difícil situá-la em suas origens”.[1] A pena surge no momento em que surgem as relações sociais entre os indivíduos. Sendo que, com a presença de outra pessoa, acaba gerando a necessidade de se criar regras mínimas de delimitação de espaço e também do que é permitido ou proibido, bem como suas conseqüências. A respeito do surgimento das primeiras penas o referido autor menciona que “é plausível que as primeiras regras de proibição e, conseqüentemente, os primeiros castigos (penas), se encontrem vinculados às relações totêmicas.”[2] Sabe-se que a pena nasceu junto com o próprio homem no momento em que este começa a se relacionar com outros indivíduos, mas interessante é o entendimento e explicação de crime e origem da pena dado por Julio Fabbrini Mirabete[3]: “Não se pode falar em um sistema orgânico de princípios penais nos tempos primitivos. Nos grupos sociais dessa era, envoltos em ambiente mágico (vedas) e religioso, a peste, a seca e todos os fenômenos naturais maléficos eram tidos como resultantes das forças divinas (totem) encolerizadas pela prática de fatos que exigiam reparação. Para aplacar a ira dos deuses, criaram-se séries de proibições (religiosas, sociais e políticas), conhecidas por “tabu”, que não obedecidas, acarretavam castigo. A infração totêmica ou a desobediência tabu levou a coletividade à punição do infrator para desagravar a entidade, gerando-se assim o que, modernamente, denominamos de crime e pena. O castigo a pena, em sua origem remota, nada mais significava senão a vingança, revide à agressão sofrida, desproporcionada com a ofensa e aplicada sem preocupação de justiça.”          Mais tarde, com a diversidade das tribos surgiram então duas espécies de penas, a de perda da paz e a pena de vingança do sangue, que conforme o autor Julio Fabbrini Mirabete[4], “evoluíram para o talião e a composição.” Dado a idéia de castigo que a pena possuía como ideal, nas antigas civilizações eram aplicadas à pena de forma bastante abusiva, com a de morte, passando pelo patrimônio do infrator alcançando até mesmo os seus descendentes. Desta forma, pode-se inicialmente já observar que a pena em sua origem surge de forma impensada e cruel, não possuindo limites, mas começam a despontar pensadores a respeito do verdadeiro significado da pena, como demonstra o autor Julio Fabbrini Mirabete, a respeito das penas na história: “Mesmo na época da Grécia Antiga e do império Romano, predominavam a pena capital e as terríveis sanções do desterro, açoites, castigos corporais, mutilações e outros suplícios. No meio de tanta insensibilidade humana, porém, já Sêneca pregava a idéia de que se deveria atribuir à pena finalidades superiores, como a defesa do Estado, a prevenção geral e a correção do delinqüente e, embora nos tempos de solo e Anaximandro a pena fosse considerada como castigo, na Grécia Clássica, entre os sofistas, como Protágoras, surgiu uma concepção pedagógica de pena. Por vários séculos, porém, a repressão penal continuou a ser exercida por meio da pena de morte, executada pelas formas mais cruéis, e de outras sanções cruéis e infamantes”.    O autor José Antonio Paganella Boschi[5], dá um exemplo da forma como se deu o surgimento das primeiras regras de convivência e a partir daí o surgimento de penas para quem desregulasse as determinações: “Enquanto só, o homem não precisa de Códigos de conduta. Se Robinson Crusué, ao salvar-se do naufrágio, por exemplo, se pusesse a pensar na beira da praia em um modelo de direito penal para a sua ilha deserta, pouca ou nenhuma utilidade teria esse esforço, a não ser depois da chegada do novo amigo, Sexta-feira (o Alter), com quem ele passaria a conviver, sem chance de destacar plenamente os riscos de que um interferisse na esfera da liberdade do outro.” Assim, pode-se perceber a importância que é dada à pena, pelo fato desta em conjunto com o Direito tentar manter a organização e o controle das relações sociais. 1.2 Conceito de pena A respeito da origem da palavra pena muitos estudiosos[6] entendem que a palavra pena, viria do latim poena, significando castigo, ou ainda do latim punere (por) e pondus (peso), trazendo o sentido de peso de contrabalançar os pratos da balança da Justiça. O conceito de pena não é algo muito simples de expressar, principalmente em tempos em que discute muito o conceito, o caráter e a verdadeira função da pena. Na verdade a pena deriva de uma ação penal, onde o Estado impõe ao condenado uma sanção patrimonial e pecuniária ou de sua liberdade, como retribuição pelo ato ilícito apurado e sentenciado, tendo esta o intuito de se evitar novos delitos. Conforme ainda determina o artigo 59, caput, do Código Penal: “Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:” Assim pode se perceber que o artigo apresenta exatamente a natureza mista da pena, sendo ela retributiva por ocasião do delito cometido e preventiva no momento que pelo menos tenta, com a aplicação desta, uma prevenção daquele tipo de crime cometido.   Dando um conceito à pena o autor Aníbal Bruno[7], conceitua esta como “a sanção, consistente na privação de determinados bens jurídicos, que o Estado impõe contra a prática de um fato definido na lei como crime.” Já o autor Franz Von Liszt[8] define a pena como um “mal, que, por intermédio dos órgãos da administração da justiça criminal, o Estado inflige ao delinqüente em razão do delito.” Entre os doutrinadores internacionais encontra-se a definição de pena por Jeremias Bentham[9], como sendo “um mal legal que deve recair acompanhado das formalidades jurídicas, sobre indivíduos convencidos de terem feito algum ato prejudicial, proibido pela lei, e com o fim de se prevenirem semelhantes ações para o futuro.”  Ainda em doutrina estrangeira o autor Fillipo Grispgni[10], coloca que pena “é a diminuição de um ou mais bens jurídicos, infligido ao autor de um ilícito jurídico pelos órgãos jurisdicionais adequados.” Desta forma a pena pode ser vista como uma conseqüência jurídica, sendo um mal que se impõe a quem descumpre uma norma ou comete um ato ilícito, tendo assim os seus bens jurídicos diminuídos na proporção dos seus atos, visando que não se propague determinada atitude. 2.2 Evolução histórica da pena O estudo que se faz entorno da questão da evolução da pena procura trilhar o caminha desta desde os primórdios das civilizações até os dias atuais como forma de abordar os pontos mais importantes que evoluíram durante os séculos, como passa-se a abordar. Interessante é a classificação que o autor Pedro Rates Gomes Neto[11] faz a respeito dos períodos de evolução da pena, distribuindo da seguinte forma: “vingança privada, vingança divina, vingança pública, período humanitário, período científico e período da nova defesa social.” Desta forma, para efeitos de melhor expressar o tema proposto, se analisa os já citados períodos de forma breve, procurando salientar, como colocado, os pontos mais importantes. 2.1.1 Período da vingança privada Este período é o mais primitivo pelo qual já passou a pena, sendo que esta era usada unicamente com o intuito de vingança e não guardava qualquer relação entre a pessoa do criminoso e o crime cometido. Dentro do período em estudo a pena era usada da forma mais cruel e ampla possível, Walter de Abreu Garcez[12] comenta como eram tratados o ofensor e seus familiares, mencionando: “Na denominada fase da vingança privada, cometido um crime, ocorria a reação da vitima, dos parentes e até do grupo social (tribo), que agiam sem proporção à ofensa, atingindo não só o ofensor, como também todo o seu grupo. Se o transgressor fosse membro da tribo, podia ser punido com a “expulsão da paz” (banimento) que o deixava a mercê dos outros grupos, que lhe infligiam, invariavelmente, a morte. Caso a violação fosse praticada por elemento estranho à tribo, a reação era a da vingança de sangue, considerada como obrigação religiosa e sagrada, verdadeira guerra movida pelo grupo ofendido àquele a que pertencia o ofensor, culminando, não raro, com a eliminação completa de um dos grupos.”     A fase da vingança privada por que passou a pena á algo impensável, devido ao desequilibro que existia entre a conduta do delinqüente e  a pena aplicada a ele, a pena era tida como forma de vingança reduzindo a nada tribos e grupos por fatos muitas vezes isolados ao contexto do grupo social. Ainda sobre o referido período, o autor Pedro Rates Gomes Neto[13], desenvolve o seguinte pensamento: “Trata-se da lei do mais forte, ficando sua extensão e forma de execução a cargo da pessoa do ofendido. O transgressor poderia ser morto, escravizado ou banido. A pena ultrapassava a pessoa do infrator para se concentrar em sua família ou inteiramente em sua tribo, com a total dizimação desta, não se importando com a figura da culpa.” Na verdade este período é visto como um momento em que a pena era utilizada como instinto de defesa aliado a punição e ao castigo. Evidentemente que a pena imposta neste momento histórico é por demais severa, o que a evolução, segundo o já referido autor Pedro Rates Gomes Neto[14], tratou de certa forma amenizar com a pena de Talião[15] e depois com a composição. Nesta época as punições eram aplicadas de forma igual ao crime cometido, como por exemplo, segundo o Código de Hammurabi, se alguém tirar um olho de outro, perderá o seu também de forma igual ou ainda se um mestre de obras não construir solidamente uma casa e esta, se ruir matando o proprietário ou o seu filho, da mesma forma o construtor será morto ou o seu filho. Com a composição os crimes mais horrendos passaram a ser reparados por meio de pecúnia, passando o infrator a ter que indenizar a vitima na proporção do mal causado, Julio Fabbrini Mirabete complementa: “Surge a composição, sistema pelo qual o ofensor se livraria do castigo com a compra de sua liberdade (pagamento em moeda, gado, armas). Foi a composição largamente aceita pelo Direito Germânico, sendo a origem remota das formas modernas de indenização do Direito Civil e da multa do Direito Penal.”  Dentro do mesmo contexto da composição o autor Roberto Lyra[16], preleciona: “O “você me paga”, “pagar com a mesma moeda”, são “corruptelas histórico-culturais” dos dias de hoje derivadas da época da composição, inclusive temos hoje no ordenamento jurídico-penal a Lei nº. 9.099/95, que permite a composição, ou seja, o crime praticado pelo infrator, após transacionado com membro do Ministério Público, seja reparado com pena pecuniária.”   Desta forma identifica-se que ainda nos dias atuais encontramos resquícios das primeiras formas de aplicação da pena, sendo que foi a partir da composição que a pena foi individualizada. 2.1.2 Período da vingança divina Neste período a pena era vista como uma forma de demonstrar a ira divina e regenerar a alma do infrator, esta fase pela qual passou a pena pode ser demonstrada pela passagem referida pelo autor Pedro Rates Gomes Neto[17]: “Apesar do funcionamento filosófico da punição ser altruísta, a história da humanidade ai um período perverso, de muita maldade. Em nome dos deuses, praticaram-se monstruosidades e iniqüidade. Trata-se de um período degradante, inspirado em princípios religiosos fanáticos.” Fica explicito com a citação do autor, que a pena no período citado era atribuído com o fim de provocar e fazer maldade ao delinqüente, como forma de vingança atribuindo a ordem aos deuses. O direito vem desde o período anterior demonstrando ligações com o castigo e a vontade dos deuses, pois deveria reprimir o crime como satisfação aos deuses pela ofensa praticada no grupo social. Julio Fabbrini Mirabete[18], complementa a respeito do período da vingança divina: “O castigo, ou oferenda, por delegação divina era aplicado pelos sacerdotes que infligiam penas severas, cruéis e desumanas, visando especialmente à intimidação. Legislação típica dessa fase é o Código de Manu, mas esses princípios foram adotados na Babilônia, no Egito (Cinco Livros), na China (Livros das Cinco Penas), na Pérsia (Avesta) e pelo povo de Israel (Pentateuco).” Nota-se que a pena neste período já é aplicada de forma mais restrita, mas a monstruosidade com que é demonstrada com o fim de regenerar a alma do individuo é algo que exige reflexões, mas que apenas passam a ter sentido a partir do período humanitário no século XVIII.  2.1.3. Período da vingança pública Devido aos requintes de maldade que a pena carregou nos dois períodos já mencionados, fez com que o Estado, então mais forte recolhesse a responsabilidade pelo direito de punir, ou seja, jus puniendi. Assim, o direito de punir passando para as mãos do Estado começou a ser regulamentado, mas pouca coisa mudou, segundo o autor Pedro Rates Gomes Neto[19] ainda conservava-se “o talião, a composição e a própria vindita. Todavia não mais ao critério da vítima.” Assim a punição continuava da mesma forma cruel e desproporcional, “uma retrospectiva das espécies adotadas anteriormente”[20], como se observa na China onde o dona da casa poderia matar o ladrão que fosse encontrado furtando, o que em termos é aceito pela legislação penal brasileira com relação a legitima defesa própria e de patrimônio.[21] Na maioria dos paises como Grécia, Roma, Itália a pena de morte era uma das principais a serem aplicadas, ainda haviam as penas de mutilação e escravidão por divida. Em Roma havia até mesmo modos de aplicação da pena diferenciados conforme a classe social do infrator “em certa época, a pena de morte se dava da forma seguinte: para os patrícios, decapitação; para os plebeus, morte degradante; para os escravos crucifixão.” Neste mesmo período na França as penas eram por demais exageradas e horríveis, sendo que tudo ocorria aos olhos do povo, entre as que chamam mais a tenção estão    2.1.3.1 A Pena de prisão na época da vingança pública O autor Luis Garrido Guzman[22] aponta que na antiguidade a pena de privação de liberdade era desconhecida, ao passo que mesmo que houvesse o encarceramento, este não tinha a função de pena e repousava em outras razões. Durante este período os delinqüentes eram apenas eram guardados para aguardarem o julgamento sendo que as principais aplicações penais eram a pena de morte, a pena corporal e a pena infamante. Hans von Hentig, destaca alguns aspectos das prisões na época da antiguidade: “A prisão era uma espécie de ante-sala de suplícios. Usava-se a tortura, freqüentemente, para descobrir a verdade. As masmorras das casas consistoriais e as câmaras de torturas estavam umas ao lado das outras e mantinham os presos até entregá-los ao Monte das Orças ou às Pedras dos Corvos, abandonando, amiúde, mortos que haviam sucumbido à tortura ou à febre do cárcere. A prisão foi sempre uma situação de grande perigo, um incremento ao desamparo e, na verdade, uma antecipação da extinção física”.              Percebe-se que na antiguidade a prisão era usada como uma espécie de deposito de delinqüentes que aguardavam o seu julgamento e a aplicação da pena, seja de morte, corporal ou infamante. Da mesma forma explicita o autor Cezar Roberto Bitencourt[23]: “Podem-se encontrar certos resquícios de pena privativa de liberdade fazendo um retrospecto da história em suas diferentes etapas até o século XVIII, porém, durante vários séculos, a prisão serviu de depósito contenção e custódia da pessoa física do réu, que esperava, geralmente em condições subumanas, a celebração de sua execução.”    Até mesmo em tempos mais remotos, como na Grécia a finalidade da prisão era a custodia e a tortura, Luis Garrido Guzman[24] menciona que a Grécia, ou mais exatamente a civilização helênica, desconheceu a privação da liberdade como pena. Contardo Ferrini[25] menciona que até mesmo os romanos não reconheceram a prisão, o encarceramento como pena e sim como custódia, coloca também que “nem o direito da época republicana nem o da época do império conheceram a pena de prisão e ainda em no direito Justiniano considerava-se como inadmissível e ilegítima uma condenação judicial à prisão temporal ou perpétua.” Do atual período estudado esperava-se mais seriedade, organização e maior consciência na aplicação da pena, mas continuou a se verificar foi uma barbárie, o que ocasionou então a revolta por esta situação, gerando um movimento denominado humanitário. 2.1.4 Período Humanitário Para que melhor seja entendido o objetivo que os seguidores deste período buscavam, cita-se interessante passagem do já referido autor Pedro Rates Gomes Neto[26], com relação aos verdadeiros motivos que levaram a reivindicação deste movimento: “O povo, o mundo assistia, calado, a uma verdadeira atrocidade. Criavam-se fórmulas as mais imagináveis e cruéis possíveis, para a execução dos transgressores. Uma vez sentenciado, o homem deixa de ser humano. Passa a ser tratado como animal. Talvez, como um animal de maior espécie, seu corpo é objeto se seviciais, as mais impressionantes. E tudo é feito não só para afligir, senão também para humilhar ou como mero divertimento. Não bastava expor o homem a dor física. Era preciso que ele também se compadecesse moralmente. Mas o que mais impressiona é que o povo a tudo aplaudia.”  Foi a partir deste cenário desumano e sangrento que começou a luta contra a monstruosidade que era a aplicação das penas, que teve como principal ponto de representatividade a obra Dei Delitti e Delle Pene, ou seja, Dos delitos e das Penas de Cesare Bonesane, Marquês de Beccaria. É dentro da obra de Beccaria que começa o fervor de idéias com relação ao período, expondo as razões de sua obra: “Fragmentos da legislação de antigo povo conquistador, reunidos por ordem de um príncipe que reinou, em Constantinopla, há doze séculos, juntados depois costumes dos lombrados e amortalhados em volumoso calhamaço de comentários pouco incorrigível são antigo acervo de opiniões que uma grande parte da Europa prestigiou com o nome de “leis”; e ainda hoje, o prejuízo da rotina, tão nefasto quanto difundido, faz com que uma opinião de Carpozow, uma velha prática preconizada por Claro, um suplício que Franscisco imaginou como bárbara complacência, continuem  sendo orientações friamente seguidas por esses homens, que deveriam tremer ao decidirem da vida e da sorte de seus concidadãos. É esse código sem forma, produto monstruoso de séculos mais bárbaros, que desejo examinar nesta obra.”        Como na exposição de motivos de sua obra Beccaria abordou em seu pensamento questões de grande relevância, como, por exemplo, o entendimento de que o juiz somente poderia aplicar pena se fundamentada em lei, devendo este interpretá-la de forma a não cometer abusos.  Com a contribuição deste ilustre autor aos poucos as penas de morte, corporais e infamantes, foram sendo abolidas, no lugar destas surgem as penas privativas de liberdade e os presídios com o objetivo de ressocializar e reintegrar os presos à sociedade após o cumprimento da pena. No mesmo período na Inglaterra surge John Howard[27], preocupado com a humanização do sistema penitenciário, após ser preso passou a se dedicar a este fim, sendo que foi eleito sheriff em 1773, do condado de Bedford. Este humanitário trouxe algumas contribuições com as idéias de seu livro State of Prisions, onde basicamente relata o que passou na prisão e o que deveria ser alcançado para um melhor ambiente nestas, sendo que as suas principais reivindicações eram: hieginização e alimentação adequados, ensinamento de educação moral e religiosa e obrigatoriedade de trabalho e ensino profissional. Oportuno observar que em pleno século XXI, as mesmas questões levantadas em 1773, são quase as mesmas, o que demonstra total retrocesso da aplicação responsável das penas e de um sistema prisional adequado. 2.1.5 Período Científico Segundo o autor Pedro Rates Gomes Neto[28] coloca que este período se convencionou com esta denominação por questões pedagógicas.    Neste período a pena deixa de lado a idéia de ser uma proteção jurídica da vítima para com o delinqüente, passando a pena para a questão da qualidade do delito e variando de acordo com a intensidade deste. Desta forma, este período vê o delito “considerado como um fato individual e social, representando um sintoma patológico de seu autor. Por isso, a pena passa a atuar como um remédio, não mais como um castigo.”[29] Mas com o advento da Primeira Guerra Mundial, desaparece a União Internacional de Direito Penal, surgindo assim os regimes do fascismo, nazismo e comunismo, ameaçando os Direitos Humanos e restabelecendo penas cruéis como a pena de morte, na Itália. Com a Segunda Guerra Mundial, termina o então período científico e surge o período atual chamado de Nova Defesa Social. 2.1.6 Período da Nova defesa social – período atual Este período teve seu início em 1945 com o professor Filippo Gramática, ao fundar o Centro de Estudos da Defesa Social, que visava o estudo dos diversos tipos de delinqüentes, suas causas e responsabilidade penal. O autor Evandro Lins da Silva[30], define o movimento representado neste período: “O Movimento de Defesa Social não tem propriamente uma unidade de pensamento, nem está filiado a qualquer escola filosófica. Ele tem uma concepção crítica do fenômeno criminal e o acompanha e estuda nas suas transformações, nas suas causas, nos seus efeitos, entendendo-o como resultado de uma diátese social, que deve ser curada racionalmente, através de uma política que respeite a dignidade da pessoa humana e resguarde os direitos do homem. Ele tem uma posição reformista quanto à atividade punitiva do Estado, que há de ser exercida de modo não dogmático, mas dentro de uma visão abrangente dos conhecimentos humanos. O movimento, como já notamos, repudia o álgido tecnicismo jurídico e, por isso, entende que a lei não é a única fonte do direito, mormente na sua aplicação.”    Marc Ancel[31], autor e seguidor de Filippo Gramática, fundador do Centro de Estudos da Defesa Social, prega o sentido que envolve esta escola: “Uma confiança no destino do homem, uma proteção do ser humano, uma reação contra a repressão cega, uma preocupação de humanizar as instituições penais e de assegurar a recuperação social daquele que se tenha desviado para a delinqüência.” Basicamente este período contempla a idéia de que a pena serve de proteção à sociedade, também de reeducação do delinqüente através de um processo e um tratamento penal mais humano. O contrário acontece atualmente entre as decisões que aplicam ou analisam as penas e a realidade do sistema penal e prisional, como se observa de algumas decisões que aplicam doutrinas e posicionamentos que não condizem com a situação atual de caos prisional, onde o condenado é duplamente apenado primeiro com a pena objeto da condenação e segundo com a discriminação e a sua exclusão do meio social, como a seguir citada: “EXECUÇÃO. REMIÇÃO. CONTAGEM. Como destacou o Magistrado, decisão que se colhe, O sistema informatizado do Tribunal de Justiça adotou a tese de que a remição representa pena efetivamente cumprida. A matéria já foi examinada pelo e. Superior Tribunal de Justiça que se alinhou com a posição mais favorável ao condenado, reconhecendo que a o instituto da remição deve ser entendido como pena efetivamente cumprida. Tendo a pena criminal, em nosso sistema, como função precípua à reeducação do condenado e sua integração no convívio social, as regras que informam a execução penal devem ser interpretadas em consonância com tais objetivos. Dentro dessa visão teleológica, a remição pelo trabalho, segundo o modelo do art. 126, da Lei de Execução penal, deve ser compreendida na mesma linha conceitual da detração penal, computando-se o tempo remido como tempo de efetiva execução da pena restritiva de liberdade. DECISÃO: Agravo ministerial desprovido.”[32] As decisões deveriam ser mecanismos de repreensão dos crimes, mas também de socialização do condenado, o que na realidade não ocorre, mesmo assim continua-se a agir da mesma forma, por que agrada a sociedade o fato da punição, como sempre ocorreu durante todo o período histórico. Na verdade esta dura realidade não apenas aflige e corrompe quem é diretamente atingido pela pena, mas ao mesmo tempo está a se construir um grupo de pessoas excluídas e marginalizadas, sem futuro algum, por não encontrar meios de recuperar o seu caráter e a sua cidadania. O objetivo do período em foco é o de buscar uma maneira de ressocializar o condenado de modo a levar em conta a proteção aos Direitos Humanos, à dignidade da pessoa humana e também a sociedade como um todo. CONCLUSÃO Com relação ao tema do presente trabalho é oportuno colocar que não se pretendeu aqui esgotar o tema, pelo contrário, seriam necessárias várias laudas para desenvolver de forma mais significativa o tema tão real a toda a sociedade. Viu-se que as penas surgem no momento em que o homem se relaciona em sociedade e que assim também advém regras a serem cumpridas para o bom convívio e as penas para castigar quem viola o sistema social. As penas no decorrer dos séculos evoluíram muito, sendo inicialmente usada apenas a titulo de vingança, passando pelo período humanitário onde a sociedade através de pensadores como Cesare Beccaria começaram a ver a necessidade de amenizar a crueldade da pena, terminando com a análise do período atual da nova defesa social. O propósito de analisar primeiramente o conceito e evolução das penas para então, após, desenvolver a temática proposta, procurou demonstrar como a pena evolui e que mesmo assim, hoje, não atende mais as necessidades da sociedade e dos apenados, a rigidez das penas não gera mudanças, ao contrário corrompe as esperanças do individuo de possuir um futuro melhor.  As penas sofreram mudanças significativas ao longo dos tempos, mas continuam, no atual momento, necessitando de muitas reflexões principalmente no que se refere às formas de pena e sua aplicação. A necessidade de um novo modelo penal, onde seja concreta e eficaz a consciência da sociedade em ressocializar e reeducar o apenado para novamente introduzi-lo nesta, é o primeiro passo para que tudo comece a mudar.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-78/o-papel-da-pena-diante-do-sistema-prisional-e-da-sociedade-atual/
Breves considerações sobre a legitimidade das avaliações técnicas na execução penal
A Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal – LEP) estabeleceu originariamente três avaliações técnicas, firmadas por uma equipe interdisciplinar de profissionais das áreas de Psicologia, Psiquiatria, Assistência Social e Segurança Pública. Constituem-se nos exames criminológico, de personalidade, e dos pareceres das Comissões Técnicas de Classificação. Com a edição da Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003, os arts. 6º e 112 foram parcialmente revogados, suprimindo-se o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação para a concessão de benefícios, passando-se a exigir somente o atestado de boa conduta carcerária, concedido pelo diretor do estabelecimento prisional, além da fração mínima do cumprimento de pena. Com a mudança legislativa, a doutrina vem reacendendo a discussão sobre a legitimidade de realização dessas avaliações no curso da execução penal. Concluiu-se, nesse sucinto estudo, que as análises previstas na LEP fazem parte do pensamento mundial reformista da segunda metade do século passado, que reconhece os direitos humanos dos presos, permitindo uma visão, na integralidade, da pessoa dos encarcerados em seus diversos aspectos, como o histórico, social e psicológico,  e destinam-se a dar suporte ao magistrado para uma fiel e legítima individualização da pena privativa de liberdade na execução.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO A Lei de Execuções Penais, em seu art. 112, na forma originária, estabelecia que a pena privativa de liberdade seria executada de forma progressiva, com a transferência do condenado para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, após o cumprimento de um sexto (1/6) da pena e o seu mérito indicasse a progressão. O parágrafo único regulava que a decisão seria motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário. Após a edição da Lei n.10.792 de 2003, o dispositivo foi parcialmente modificado. O critério subjetivo calcado no mérito, exigido para a progressão, foi substituído pelo bom comportamento carcerário a ser comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. Ademais, o mesmo procedimento passou a ser adotado, também, em face do parágrafo segundo, no tocante ao livramento condicional, ao indulto e à comutação de penas, mantidos os prazos previstos nas normas vigentes. O art. 6º da Lei de Execuções Penais, por sua vez, previa que a Comissão Técnica de Classificação faria a proposta de progressões e regressões de regimes, bem como das conversões. Hoje, com as alterações introduzidas pela Lei n.10.792 de 2003, permanece em vigor apenas a elaboração do programa individualizador da pena privativa de liberdade. Todavia, os Tribunais Superiores e parte da doutrina vêm entendendo que embora o exame criminológico não esteja mais prescrito na LEP para a concessão de benefícios na execução, é possível ao juiz determinar, quando entender imprescindível, que o condenado a ele se submeta. Neste caso, a decisão do magistrado deverá ser devidamente motivada.  E hoje já está em trâmite, inclusive, o Projeto de Lei n. 1.294/2007, que prevê o retorno dessa perícia e do parecer da Comissão Técnica de Classificação, em casos de crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa. Mas é importante ressaltar que a mudança legislativa trouxe à tona uma antiga discussão sobre a legitimidade da realização de avaliações dessa natureza no sentenciado, durante a execução penal. Apregoam alguns que o sistema  baseado nessas análises foi inspirado pelas doutrinas correicionalistas da defesa social e que, no Brasil, em específico, contraria os ideais garantistas do Estado Democrático de Direito, inaugurado pela Constituição Federal de 1988. Em pólo oposto, outros doutrinadores argumentam que a realização dos exames de personalidade, criminológico e dos pareceres das Comissões Técnica de Classificação encontram respaldo no princípio constitucional da individualização das penas, inscrito no art. 5º, inciso XLVI, da Carta Magna. Como cada ser humano é único, a execução da pena também deve respeitar suas peculiaridades, reconhecendo-se que essas avaliações são importantes ferramentas para se aferir as condições subjetivas do condenado na classificação inicial e na concessão de benefícios durante a execução penal, eis que oriundas de equipes interdisciplinares. Ao invés de ferirem a dignidade da pessoa humana, observam o homem em sua individualidade. Com o escopo de colher melhores subsídios para a edificação de uma linha conclusiva sobre o assunto, é que se dedica o presente apontamento. Acolhendo-se a segunda posição, pretende-se demonstrar a legitimidade das avaliações procedidas em encarcerados na execução penal por equipes interdisciplinares, o que viabiliza a execução de uma sanção punitiva adequada e individualizada ao condenado, em estrita conformidade com o Estado Social e Democrático de Direito estabelecido na Lei Mater. 2. AS AVALIAÇÕES TÉCNICAS PREVISTAS DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS NO SISTEMA PRISIONAL Com a edição da Lei Federal n. 7.210/84 (Lei de Execução Penal) e da Lei n. 7.209/84 (Parte Geral do Código Penal Brasileiro) foram previstas três avaliações a serem procedidas durante a execução da pena privativa de liberdade: o exame criminológico, o exame de personalidade e o parecer das Comissões Técnicas de Classificação (C.T.C.). Inaugura-se no sistema normativo brasileiro, por força de correntes criminológicas contemporâneas, distanciadas das correntes positivistas, uma compreensão do crime como um complexo fenômeno social, convergindo as análises da execução penal para um olhar abrangente do ato criminoso, a exigir-lhe um exame interdisciplinar. Registra-se que, em nível mundial, nesse momento histórico, o condenado passa a ser considerado um sujeito de direitos. Objetiva-se a melhora das condições de sobrevivência dos presos no ambiente carcerário e se aposta nas possibilidades de sua reinserção social, passando a serem empreendidas reformas legislativas substanciais, que no Brasil eclodiram nas duas leis supramencionadas.[1] Assim, as avaliações técnicas na execução surgem com o escopo de melhor conhecer o homem submetido ao sistema carcerário, na sua integralidade para estimulá-lo ao convívio em sociedade, contribuindo, sobremaneira, a uma justa individualização da pena. 2.1. O EXAME CRIMINOLÓGICO Álvaro Mayrink da Costa pontua que “o exame criminológico permite o conhecimento integral do homem, sem o qual não se poderá vislumbrar uma justiça eficaz e apropriada”. Registra que a simples “aplicação fria da norma penal, tomando como ponto de partida um critério de valorização político-jurídica, inevitavelmente conduziria a enormes injustiças e monstruosos equívocos”.[2] No magistério de Alvino de Sá, o exame criminológico visa ao estudo da dinâmica do ato criminoso, de suas causas e dos fatores a ele associados, constituindo-se, pois, em uma “perícia”. Oferece num primeiro momento o diagnóstico criminológico, e num segundo, permite concluir pela maior ou menor probabilidade de reincidência, o chamado prognóstico criminológico.[3]   Consoante os ditames dos arts. 34 e 35 do Código Penal, quando do ingresso no sistema carcerário, o condenado a uma pena privativa de liberdade, nos regimes fechado e semi-aberto, deve submeter-se ao exame criminológico. Entretanto, dos termos do art. 8º e parágrafo único da Lei de Execução Penal, deduz-se que no regime fechado o exame criminológico é obrigatório e no semi-aberto é facultativo. Mas não se pode perder de vista que, em face dos reais objetivos da Lei de Execução Penal, é indispensável a sua realização também no regime semi-aberto, “como forma de aplicar o tratamento recuperatório aos condenados”.[4] Registra-se que nesse momento o condenado ainda não se contaminou com os efeitos deletérios da prisão, encontrando-se cronologicamente mais próximo de sua atividade criminosa,  permitindo que o diagnóstico seja mais fidedigno.[5] Serve, assim, como importante parâmetro às avaliações futuras, em casos de progressão de regime, livramento condicional, indulto e comutação de pena. Tal exame é realizado no Centro de Observação, instalado em unidade autônoma ou em anexo a estabelecimento penal, em face de determinação dos arts. 96 e 97 da Lei de Execuções Penais. Os resultados obtidos são encaminhados à Comissão Técnica de Classificação, oferecendo-lhe subsídios para uma melhor classificação dos presos, ao lado daqueles oferecidos pelo exame de personalidade, que será descrito adiante.[6] Entretanto, ressalta Alvino de Sá que o exame criminológico de “entrada” no sistema carcerário, “praticamente nunca foi feito, pelo menos, no Estado de São Paulo” e ao que “tudo indica dificilmente será feito”, em face do grande contingente de presos que ingressam no presídio por mês.[7] Na Bahia, infelizmente, também não há notícias de que este exame já tenha sido realizado na forma como preconizada na LEP.[8] Lamentável que dispositivos legais de vanguarda não vêm sendo cumpridos pelo Poder Executivo, ao deixar de implantar infraestrutura necessária que torne o texto legal realidade. Conduta diametralmente oposta vem sendo adotada: o Poder Legislativo, ao verificar a falta de vontade política do Poder Executivo no cumprimento da lei, decide revogá-la, como bem fez com relação aos arts. 6º e 112 da LEP, extirpando o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação em casos de concessão de benefícios ao apenado, o que, sem sombra de dúvida, promoveu um retrocesso na execução penal. Hoje, conforme a LEP, basta o atestado de boa conduta carcerária firmado pelo diretor do estabelecimento prisional, além dos requisitos objetivos de temporalidade no cumprimento da pena. Os Tribunais Superiores[9], interpretando a Lei nº 10.792/2003 sob os enfoques constitucional e infraconstitucional[10], vem decidindo, entretanto, no sentido da possibilidade de o juiz determinar, de forma motivada, a realização do exame criminológico quando entender necessário à formação de sua convicção para a concessão de um benefício.[11] Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 439, que tem a seguinte redação: “Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”.[12]  O Juízo da Vara de Execuções da comarca de Salvador adota a posição de que o exame criminológico “ficou restrito, via de regra, aos casos de crimes hediondos, praticados com violência ou grave ameaça incomuns, aos crimes sexuais com indicativos de distúrbios psíquicos, ou em qualquer caso, quando as circunstâncias reclamem”.[13] Saliente-se que já está em trâmite o Projeto de Lei n. 1.294/2007, o qual prevê o retorno do exame criminológico e do parecer da C.T.C. para a instrução de pedidos de benefícios legais, em casos de crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa, o que demonstra, considerando-se também os dados jurisprudenciais apontados, a legitimidade das avaliações técnicas na execução penal, fundamentada na necessária exigência de um olhar interdisciplinar sobre o sentenciado na execução. 2.2 O EXAME DE PERSONALIDADE No dizer de Jorge Trindade, “personalidade é um conjunto biopsicossocial dinâmico que possibilita a adaptação do homem consigo mesmo e com o meio, numa equação de fatores hereditários e vivenciais”. Acrescenta que a personalidade está fundada numa “construção, e não num grupo de características estanques e adquiridas pelo nascimento”.[14] Daí inferir-se que o grande diferencial entre um ser humano e outro é a sua personalidade. Portanto, para a real individualização executória da pena é preciso que o juiz detenha o maior número de informações possíveis acerca do preso. Nesse passo, estabeleceu a Lei de Execuções Penais, através de seu artigo 9º, que a Comissão Técnica de Classificação poderá, observando a ética profissional, entrevistar pessoas, requisitar de repartições ou estabelecimentos privados, dados e informações a respeito do condenado, além de realizar outras diligências e exames necessários. Assim, justificam-se as entrevistas de pessoas, preferencialmente da família do condenado, bem como a obtenção de informes do antigo emprego do sentenciado ou a visita à morada da família e de amigos, para que se conheça melhor a pessoa que está sob julgamento, com o escopo de receber ou não benefícios durante a execução da pena, esclarece Nucci.[15] Mas é preciso distinguir o exame criminológico do exame de personalidade. A Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, em seu item 34, o faz de forma esclarecedora. Afirma que o exame criminológico “parte do binômio delito-delinquente, numa interação de causa e efeito, tendo como objetivo a investigação médica, psicológica e social” do preso. Já o exame de personalidade “consiste no inquérito sobre o agente para além do crime cometido”. Quanto ao método, refere-se que o exame de personalidade encontra-se “submetido a esquemas técnicos de maior profundidade nos campos morfológico, funcional e psíquico”. O exame criminológico, acentua Alvino Sá,  busca “investigar as causas do comportamento criminoso e a dimensão anti-social da conduta do apenado” e, com isso, inferir sobre “a probabilidade de reincidência”. Já o exame de personalidade, refere-se o autor, volta-se para a “investigação das causas de sua conduta criminosa”, na sua realidade integral e individual de “pessoa”, incluída aí toda a sua história. Pontua que o exame de personalidade é um exame clínico, firmado pela Comissão Técnica de Classificação, “não no sentido estritamente médico-psicológico do termo”.[16] Daniele Penha ressalta que o exame de personalidade se presta à “construção de um plano de individualização da pena e, no âmbito específico da Psicologia, é base para a determinação de tratamentos e intervenções na esfera da saúde mental”.[17] Também este exame não vem sendo realizado e, na prática, ressalta Alvino de Sá, sequer é conhecido, “talvez até por conta das confusões conceituais” que o norteiam. O que vem sendo feito no estado de São Paulo e outros estados é uma avaliação do preso quando ele ingressa no presídio, por meio das chamadas “entrevistas de inclusão”, pela C.T.C. Os dados colhidos nessas entrevistas servem para o encaminhamento do agente “para esta ou aquela atividade, para este ou aquele programa” e oferecem subsídios para a definição de prioridades em termos de “projetos de reintegração social a serem elaborados e implantados”.[18] Na Bahia, quando o preso ingressa no sistema carcerário, dá-se início a um precário exame de personalidade, procedendo-se a entrevistas com o interno e seus familiares, que buscam obter dados a respeito de eventual reincidência ou frustração de execução penal anterior. Recentemente, “a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos vem implantando o Programa de Assistência Individualizada em algumas unidades, com a promessa de implementar a individualização da pena”.[19] 2.3. O PARECER DAS COMISSÕES TÉCNICAS DE CLASSIFICAÇÃO Consoante regula o art. 7º da Lei de Execuções Penais, “a Comissão Técnica de Classificação, existente em cada estabelecimento, será presidida pelo diretor e composta, no mínimo, por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social, quando se tratar de condenado à pena privativa de liberdade”. Sua função é analisar o condenado com maior profundidade: elabora o parecer para o início do cumprimento da pena e, antes da Lei n.10.792 de 2003, firmava o parecer para a progressão e regressão de regime. Mirabete[20] certifica que a Comissão Técnica de Classificação possui a legítima função de elaborar o programa individualizador e de acompanhamento do preso. Isto depois de realizados os exames gerais e criminológicos no Centro de Observação. Na falta de Centro de Observação[21], permite a lei (art. 98 da LEP) que os exames sejam realizados no próprio presídio, pela Comissão Técnica de Classificação (C.T.C.). Trata-se, portanto, a C.T.C., de um órgão dinâmico, que tão logo toma conhecimento da observação criminológica realizada, deve dar início aos procedimentos necessários ao exame de personalidade. De posse desses elementos, procurará definir o perfil do preso, devendo ser acompanhado e preparado ao convívio social.[22] Para tanto, ressalta Alvino Sá, “a C.T.C. criará estratégias de acompanhamento e avaliação, seja da eficácia dos programas, seja da resposta dos presos aos mesmos”.[23] Com base nesse trabalho, cabia à C.T.C., antes da reforma de 2003, que alterou a redação dos art. 6º e 112, da LEP, propor à autoridade competente, as progressões e regressões de regimes, bem como as conversões e opinar sobre elas quando não tivesse feito a proposta. São os verdadeiros “pareceres das Comissões Técnicas de Classificação”. Esclarece com propriedade Alvino de Sá: “O parecer da CTC, se tecnicamente bem feito, bem fundamentado, se de fato emanado de todo um engajamento da equipe dentro da dinâmica institucional, não é avaliação pontual, mas reflete toda uma história, uma história de vida prisional, em face das propostas, facilidades, oportunidades, limites e obstáculos da instituição, em contraponto com a história da vida pregressa do preso. Torna-se um instrumento de avaliação amplo e rico de elementos de convicção para a conclusão a que chega. Emanado que é das próprias interações institucionais e construído no dia-a-dia, não há que converter-se, em sua redação final, em nenhuma surpresa para ninguém, inclusive para o reeducando. A equipe deveria ter condições de, no final, explicá-lo, “traduzi-lo” para o recluso, justificá-lo em face de toda a resposta que o recluso vem dando em sua vida institucional. O parecer deveria converter-se em verdadeiro instrumento pedagógico.”[24] Gulherme Nucci afirma com lucidez que o juiz da execução penal, “última voz na individualização executória da pena, precisa ser bem informado e dar a cada um o que é seu por direito e justiça”. Assegura que presos que se encontram ligados ao crime organizado, por exemplo, podem ser perfeitamente detectados pelos profissionais da Comissão Técnica de Classificação, embora jamais tenham cometido qualquer falta grave. Registra que embora esses presos possuam, muitas vezes, prontuário limpo, têm “atividade sub-reptícia no presídio, sem qualquer merecimento para a progressão”.[25] Sem dúvida que as avaliações técnicas previstas na Lei de Execução Penal além de serem muito úteis à individualização da pena, estabelecida no texto constitucional, respeitam o condenado no seu lado humano. Ao ser-lhe propiciada a participação de programas de reintegração social, orquestrado por uma equipe interdisciplinar, a lei demonstra a preocupação do Estado em estimulá-lo[26] (não reformá-lo) a uma mudança interior. Mas é preciso que se dê real efetividade a esses programas com a seleção de bons técnicos e a instalação de infraestrutura adequada, que possam trazer luzes ao doloroso, porém ainda necessário sistema do cárcere. 3. A IMPORTÂNCIA DA INTERDISCIPLINARIEDADE NA EXECUÇÃO PENAL Há de se reconhecer que a Lei de Execuções Penais foi elaborada por juristas de escol na área dos Direitos Humanos e que realmente acreditavam na capacidade de recuperação do encarcerado. Assim, dotaram o texto de mecanismos que propiciassem a individualização da sanção também na fase executiva. O princípio da individualização da pena, consubstanciado no art 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, estabelece que a punição deve ocorrer na exata medida de culpabilidade do agente, sem a obediência de padrões. Assim, as penas cominadas na lei são aplicadas de forma específica na condenação, com base nas circunstâncias judiciais estabelecidas no art. 59, do Código Penal. Mas esta determinação legal não termina quando proferida a sentença. Passa-se então à terceira fase de individualização da pena. Ao se executar uma sentença transitada em julgado, “há permanente individualização e mutação desse comando, alterando-se a quantidade (com a remissão e a unificação de penas) e a intensidade de punição aplicada (com a progressão e o regime condicional)”.[27] Para o cumprimento do múnus, o juízo da execução conta com diversos instrumentos previstos na Lei de Execução Penal, tais como o exame de personalidade, o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação (CTC), já conceituados. Como se pôde verificar, são avaliações realizadas por diferentes profissionais das áreas da Psicologia, da Psiquiatria, da Assistência Social, além de agentes penitenciários. Daí a credibilidade e, portanto, a legitimidade dessas análises, fulcradas em circunscrições diversas do conhecimento humano. Não se pode mais conceber, nesse momento histórico, que Poder Judiciário se valha apenas de operadores do Direito para a consecução da Justiça. As várias ciências afins só poderão enriquecer a prestação jurisdicional. E isto foi reconhecido na edição da LEP originariamente. Por outro lado, a prescrição legislativa exige um aparato estrutural adequado para o efetivo desempenho desses técnicos, e é fato que nem sempre o Poder Público está consciente da necessidade de tal mister. Com isto, deixando de fornecer a indispensável logística, propicia a elaboração de laudos mecânicos, padronizados[28], que terminam por influenciar mudanças legislativas, como a dos arts. 6º e 112 (Lei n. 10.792/03), promovendo, nessa senda, o desmanche do verdadeiro conteúdo humanístico abrigado na LEP. No diapasão de Guilherme Nucci, “se os pareceres e os exames eram padronizados em alguns casos, não significa que não mereçam aperfeiçoamento”. Acrescenta que “sua extinção em nada contribuirá para a riqueza do processo de individualização da pena ao longo da execução”.[29] Daniele Penha pontifica que: “Se todos esses procedimentos fossem realizados conforme prevê a LEP e neste caso, com as condições básicas de trabalho para os profissionais, suprimir essas avaliações geraria uma grande perda para a sociedade e também para o preso, dado que o crime é constituído também por uma esfera psíquica, tem um componente subjetivo que não é tratado a partir do encarceramento (o encarceramento só piora as tensões psíquicas e tende a cronificar o comportamento criminoso). A dimensão subjetiva do crime não pode ser acessada pela letra fria da lei e muitas vezes obedece a uma lógica que só pode ser compreendida quando há uma saída do senso comum.” Nesse lanço, convém que se reconheça o significativo valor das equipes que tornam a individualização da pena uma realidade na execução através de suas avaliações técnicas. Os profissionais da Psicologia, Psiquiatria e Assistência Social constituem importante contributo para a valorização humana do condenado, e são capazes de vislumbrar facticidades intrínsecas de sua personalidade e entorno social que não podem ser detectadas apenas por agentes penitenciários ou isoladamente pelos operadores do Direito. Alvino de Sá[30] aponta uma importante alternativa para a tomada de decisões mais seguras sobre a concessão de benefícios, que seria uma “avaliação técnica interdisciplinar da resposta do preso à terapêutica penal”. Tal avaliação não se voltaria apenas para os aspectos criminógenos da personalidade do preso, mas procuraria “focalizar seu crescimento pessoal ao longo da execução penal, seu compromisso com os valores ético-morais, os valores do trabalho, da justiça, da família, entre outros”. Pontua que a “boa ou ótima conduta” do condenado teria um “significado mais complexo, tecnicamente interpretado e contextualizado”. Essa avaliação interdisciplinar seria feita, no dizer do autor, pela C.T.C., integrada por profissionais da área da Psiquiatria, Psicologia, Assistência Social e de Segurança, constituindo-se, assim, no “verdadeiro parecer de C.T.C., previsto na LEP, até a reforma de 2003, em seus arts. 6º e 112, para o qual se exigiria, no entanto, que a C.T.C. exercesse de fato suas funções”, também previstas no art. 5º da mesma Lei. Tendo em conta “a natureza e gravidade do crime cometido, os históricos criminal e prisional”, seria recomendável em determinados casos, ainda, afirma Alvino de Sá, a realização das duas avaliações para a concessão de benefícios legais, ou seja, o mencionado parecer da C.T.C. e o exame criminológico. O segundo, por se tratar de perícia, deveria ser feito por outra equipe que não acompanha o preso.[31] Em face do quanto ilustrado, conclui-se ser indispensável, na fase de execução, que sejam procedidas avaliações interdisciplinares da conduta do preso. Primeiro, quando ingressa no sistema prisional, ele deve ser conhecido na sua integralidade, ou seja, como pessoa (exame de personalidade) e na sua íntima relação com o delito praticado (exame criminológico inicial). De posse desses dados, a equipe da C.T.C. promoverá programas específicos de reintegração social, devendo acompanhá-lo durante toda a execução, avaliando sempre as respostas a esses programas, sem prejuízo das perícias necessárias, em casos complexos, para a concessão de benefícios.[32] Subtrair a equipe interdisciplinar da execução penal é fulminar a individualização da pena no seu nascedouro. As análises reguladas na LEP não significam em absoluto uma subsunção ao atavismo lombrosiano. Não se trata de tornar o preso um simples objeto de exame, mas enxergá-lo como o resultado de um plexo histórico, psicológico, familiar e sociológico, com os fins de promover as melhores condições para a sua harmônica reintegração social. 4. CONCLUSÃO 1. A Lei de Execuções Penais consagrou originariamente avaliações técnicas que se consubstanciam no exame criminológico, no exame de personalidade e nos pareceres da Comissão Técnica de Classificação, as quais se destinam a auxiliar o magistrado na individualização da pena privativa de liberdade, na execução penal. 2. Com a edição da Lei n.10.792 de 2003, os arts. 6º e 112 foram parcialmente revogados suprimindo-se o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação quando da concessão de benefícios penais, passando-se a exigir, além de percentual mínimo de cumprimento de pena, tão somente o atestado de boa conduta carcerária, firmado pelo diretor do estabelecimento prisional. 3. Segmentos doutrinários vêm reacendendo a discussão, desde a mudança legislativa, sobre a legitimidade das avaliações previstas na LEP: alguns sustentam que essas análises técnicas contrariam as garantias estabelecidas na Lei Mater, e outros defendem que as mencionadas avaliações se justificam em face do princípio constitucional da individualização das penas, inscrito no art. 5º, inciso XLVI, da Carta Magna. 4. Concluiu-se que as avaliações em epígrafe integram o pensamento reformista, instalado em nível mundial na segunda metade do século passado e cristalizado, no Brasil, através da LEP e da nova redação da Parte Geral do Código Penal, com base no reconhecimento dos direitos humanos dos encarcerados. A inserção das avaliações previstas da LEP, realizadas por técnicos das áreas da Psicologia, Psiquiatria, Assistência Social e Segurança, que formam uma equipe interdisciplinar, demonstra a preocupação do legislador com a “pessoa” do preso na sua integralidade, ao considerar os seus diversos aspectos históricos, sociais e psicológicos, visando, sobretudo, a sua reinserção na sociedade. 5. O Estado tem o dever de investir em aparato estrutural que melhor atenda à qualidade das avaliações técnicas. Desta maneira, ao realizar a tarefa de análise e acompanhamento do condenado, durante o cumprimento da sanção privativa de liberdade, tais avaliações constituem-se em instrumentos úteis à individualização da pena na execução, respaldando de forma legítima a decisão judicial sobre a concessão de benefícios legais. Nessa intelecção, o preso é visualizado como sujeito de direitos, constatando-se o respeito às garantias constitucionais. APÊNDICE A – ENTREVISTA Edmundo Reis, Promotor de Justiça da Vara de Execuções Penais de Salvador 1.O exame criminológico de que trata o art. 34 do Código Penal vem sendo realizado em Salvador? Não da forma preconizada na LEP. O que se faz é dar início ao exame de personalidade procedendo-se entrevistas com o interno e seus familiares e buscar obter dados a respeito de eventual reincidência ou frustração de execução penal anterior.  Recentemente, a SJDH vem implantando o Programa de Assistência Individualizada (em anexo) em algumas unidades, com a promessa de implementar a individualização da pena. 2.Após a edição da Lei n. 10.792 de 2003, exames criminológicos vêm sendo determinados pelo juiz da execução penal? Qual a posição adotada pelo Ministério Público na hipótese de não determinação judicial do exame criminológico? Os exames criminológicos, mesmo após a edição da Lei 10. 792/03, continuam a ser determinados pelo juízo da VEP/Salvador, na esteira do quanto têm sustentado os tribunais superiores. Cumpre esclarecer, contudo, que a partir de meados do ano findo, em face do colapso apresentado pelas CTC da Penitenciária Lemos Brito e da Colônia Lafaiette Coutinho, em razão do grande número de exames requisitados e da desestrutura de tais unidades para dar fiel cumprimento à tarefa, acrescido pela ferrenha oposição da Defensoria Pública à realização do exame, brandindo o argumento de que a lei já não o exigia como requisito para as progressões e livramentos, tais exames ficaram restritos, via de regra, aos casos de crimes hediondos, praticados com violência ou grave ameaça incomuns, aos crimes sexuais com indicativos de distúrbios psíquicos e em qualquer caso, quando as circunstâncias reclamem. É de se esclarecer, todavia, que os critérios escolhidos para eleição dos casos que deverão ser objeto de requisição de exame criminológico submetem-se à avaliação subjetiva dos operadores do direito envolvidos no processo, dando margem a divergências que culminam com a interposição de recursos de parte a parte. 3.Em caso positivo, em que local estão sendo realizados os exames criminológicos em Salvador? No Centro de Observação Penal? Onde ele se encontra situado? O Centro de Observação Penal – COP, situado no Complexo Penitenciário da Mata Escura, ao lado da Penitenciária Feminina, desde o provimento CGJ – 14/2007, se destina, além da realização do exame criminológico, da custódia excepcional de presos provisórios, e hoje também de condenados. Só que o que deveria ser exceção, virou regra. E tem sido ele utilizado como unidade destinada a abrigar ex–policiais condenados ou processados, agentes penitenciários ou presos que estejam sendo ameaçados no sistema. Em resumo, o COP está com sua ínsita função desvirtuada pelo excesso de presos que se encontram nele custodiados, considerando que a população carcerária cresce vertiginosamente, inclusive o contingente de ex-policiais e proscritos pelas facções criminosas que disputam o poder  dentro do sistema penitenciário.  4.O preso (não lembro o nome dele) que assassinou a médica, pouco antes do dia dos pais (caso amplamente divulgado pela mídia) teve sua progressão de regime com base apenas no atestado de boa conduta carcerária ou se submeteu a exame criminológico? Solicito informar, se possível, os dados do condenado. O preso a que a Sra. se refere chamava-se GILVAN CLEUCIO DE ASSIS. Cumpria pena na Colônia Lafayette Coutinho, após alcançar a progressão de regime. Consta do processo que o exame criminológico precedeu a concessão do benefício. Como bem enfatizam os psicólogos que prestam esse tipo de serviço junto às unidades prisionais, é quase impossível se fazer um prognóstico de reincidência, sobretudo quando não se tem o exame criminológico de entrada e o acompanhamento diário para a concretização do exame de personalidade é feito de forma precária. Não disponho de maiores dados a respeito do aludido interno porquanto, segundo a divisão interna, da 7ª Promotoria de Justiça, à mim está afeta o acompanhamento do regime fechado. Ademais, o respectivo processo de execução já não se encontra na VEP, posto que arquivado em face do óbito do sentenciado. 5.São procedidos, nesta Capital, exames de personalidade, nos termos do art. 7º da LEP? Sim, são realizados de forma precária com as entrevistas aos presos, seus familiares e busca de documentos que possam subsidiar o processo de individualização. Como se trata de exame, é mais restrito aos profissionais da área que integram os CTC das Unidades. (Para maiores esclarecimentos lhe indico a Dra Daniele Penha – psicóloga da PLB – pessoa que reputo da mais alta competência, com quem conto para dirimir minhas dúvidas  e que se colocou a sua disposição). 6.De que vem se ocupando a Comissão Técnica de Classificação nos estabelecimentos prisionais de Salvador? Como é realizada a classificação dos presos? De que técnicos ela se encontra constituída nos presídios? As CTC existentes em cada unidade, são constituídas pelos técnicos e integrantes da administração prisional especificados no art 7º da LEP. Nas unidades de Salvador não se tem realizado a classificação nos moldes em que foi legalmente preconizada. Procede-se, quando muito, as rotinas próprias do exame de personalidade, e assim mesmo, sem o aprofundamento devido. A falta de estrutura é muito grande. APÊNDICE B – ENTREVISTA Daniele Penha, Psicóloga da Vara de Execuções Penais de Salvador 1. Qual é a função do psicólogo enquanto integrante da Comissão Técnica de Classificação?O psicólogo na CTC tem basicamente duas funções: proceder ao exame de personalidade e traçar juntamente com outros profissionais da comissão um plano de individualização da pena. O psicólogo dentro da CTC presta um serviço de assistência, comprometendo-se com o desenvolvimento do indivíduo no curso da execução penal.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-78/breves-consideracoes-sobre-a-legitimidade-das-avaliacoes-tecnicas-na-execucao-penal/
O Tribunal Penal Internacional: Uma compreensão analítica
Discorre sobre a importância, a adequação constitucional e a eficácia do instituto do Tribunal Penal Internacional e sua ratificação nas relações jurídicas após a aceitação do Brasil acerca do Tratado de Roma. A partir da busca de uma forma mais eficaz de combate aos crimes contra a humanidade, objetivou-se uma maior valorização de procedimentos ligados à defesa universal da pessoa humana, fazendo com que criminosos pudessem ser julgados além das fronteiras de sua pátria.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO O presente trabalho visa discutir acerca da necessidade, da eficácia e da experiência que representa o Tribunal Penal Internacional, perante a legislação pátria, como forma de resolver, de forma complementar, os impasses referentes a direitos ligados à pessoa humana sob a esfera da tutela global dos direitos humanos. Num primeiro momento, a abordagem explicita as características e as causas pertinentes ao Tribunal Penal Internacional. Em seguida serão discutidos os seus objetos de atuação, conseqüências e sua constitucionalidade em face da Carta Magna de 1988. Por fim, serão tecidos comentários analíticos sobre o tema. 2. CONCEITOS E OBSERVAÇÕES ATINENTES AO TPI O Tribunal Penal Internacional, assim como o que propõe, parte de uma intenção clara de tutelar a figura da pessoa humana diante dos excessos e abusos cometidos por governos, grupos ou quaisquer instituições que, de alguma maneira venham a ofender os princípios básicos referentes à humanidade.  Dessa forma, buscando uma forma mais integrada na resolução de questões, surgiu a idéia, por parte do ordenamento jurídico brasileiro, de assinar em 07 de fevereiro de 2000 e, posteriormente ratificar em 12 de junho de 2002, o Tratado de Roma (o qual foi concluído em 17 de julho de 1998). O Tratado em questão, estabelecendo uma Corte Internacional com sede em Haia, veio para consubstanciar os tribunais Ad Hoc realizados, por exemplo,  pela ONU no caso da guerra da Bósnia-Herzegovina e também após as atrocidades ocorridas em Ruanda no ano de 1994. Nas palavras de MARCELO BESSA: “O Estatuto de Roma entrou em vigor no dia 1 de julho de 2002 e estabelece, pela primeira vez na História, um tribunal penal internacional de caráter permanente, destinado a processar e julgar os responsáveis pelos mais graves crimes internacionais […]” [1] Logo, aferir responsabilidade ao Tribunal Penal Internacional quanto à importância nos seus procedimentos é de total valia, pois esse é um dos fatores essenciais relativos à sua existência. O processo de intenções para sua estruturação remete a tempos posteriores à Primeira Guerra Mundial, onde aconteceu, pela primeira vez, o uso de armas de destruição em massa como gases venenosos e agentes bacteriológicos por parte das nações em conflito. Verdadeiramente, foi após a Segunda Guerra Mundial que surgiram demandas referentes às atrocidades cometidas pelas tropas do Eixo em campos de concentração e instalações fabris, o que contribuiu para que fosse criado o Tribunal de Nuremberg, onde criminosos de guerra foram julgados por seus crimes. Eis que a partir desse fato histórico é que começaram os diálogos entre as nações acerca da necessária tutela aos direitos humanos e princípios fundamentais da humanidade. O homem já não poderia ser mais visto como detentor de poderes indeléveis, mas sim como subserviente a um ideário fundamental que regra a convivência humana. O procedimento comum verificado anteriormente à intenção de criar um Tribunal Penal Internacional compreende basicamente quatro caracteres distintos: a rivalidade entre Estados e suas propostas belicosas, a supremacia de políticas econômicas servis e clientelistas frente ao bem estar dos cidadãos, o atraso político para se tratar de questões atinentes aos Direitos Humanos e a inépcia do Estados em julgar crimes de seus próprios governantes. Importante citar, ainda que pareça contraditório, o poder exercido pela globalização, a partir dos anos 80 e se intensificando nos anos 90 e 2000, a qual, na posição de ferramenta catalisadora de meios como comunicação instantânea e integração econômica, contribuiu imensamente para uma maior fiscalização e observação entre as Nações com relação ao convívio entre Estado e cidadãos. 3. FUNCIONALIDADE E OBJETIVOS DO TPI E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL Valendo-se do que expressa em seu Estatuto, o TPI procurou “vestir-se” de legitimidade e de legalidade. Fato este perceptível ao ficar estipulado, pelo referente Tratado, o alcance dos efeitos de suas decisões e competências aos países, que além de serem signatários, ratificaram sua existência. Esta, ao atingir efeito inclusive perante o ordenamento nacional possibilita uma autonomia eletiva aos Estados-membros com referência à escolha dos 18 juízes da Corte. Essencial é a fala de LEWANDOWSKI onde diz que “A escolha dos juízes caberá à Assembléia dos Estados-Partes, recaindo sobre pessoas que gozem de consideração moral, imparcialidade e integridade […]” [2]. Fundamentalmente, o Tribunal Penal Internacional diferencia três espécies de crime, quais sejam, o genocídio (extermínio de um determinado povo), agressão e crimes contra a humanidade, inseridos os crimes de guerra (ofensas generalizadas a civis como tortura, estupros e crimes ligados às etnias). Além disso, como ensina CRISTINA CALETTI: “O princípio pacta sunt servanda diz que compromissos assumidos devem ser cumpridos e os Estados-partes do Estatuto de Roma assumiram o dever de cooperar no ajuizamento e investigação dos crimes, sendo assim, devem seguir todos os seus preceitos.” [3] O Tribunal, assim formado, dividir-se-á em três seções: a Seção de Ações Preliminares (que examinará a admissibilidade dos processos), a Seção de Primeira Instância (a qual ficará a cargo dos julgamentos que por ventura se realizem) e a Sessão de Apelações (responsável pela apreciação dos recursos cabíveis) .É claro que existem mais tratativas, como explica RICARDO RIBEIRO VELLOSO: “A idéia de um Tribunal Penal Internacional já foi acatada por 138 Estados, sendo necessário para sua entrada em vigor que, no mínimo, 60 países ratificassem seu Estatuto, o que já aconteceu. A Corte Internacional terá sede na Holanda, e será composta por 18 países. Com o início dos trabalhos do TPI não será mais necessário a criação de Tribunais Ad Hoc, terminando com a discussão em torno da legitimidade desses tribunais.” [4] Quanto à efetiva adequação do Tratado à luz do que determina a Constituição Federal, exemplos são evidenciados nas palavras de CRISTINA CALETTI: “Em 7 de fevereiro de 2000 o Brasil assinou o Estatuto de Roma, mas só em 20 de junho [sic] de 2002 o ratificou. Essa demora se deu principalmente porque existem aparentemente grandes divergências entre o Estatuto de Roma e o Direito Brasileiro, a primeira delas diz respeito à extradição, proibida pelo art. 5º, LI e LII da Constituição Federal de 1988 e a segunda delas diz respeito à prisão perpétua, proibida pelo art. 5°, XL, VII, b também da Carta Maior de 1988.” [5] Destarte, apesar da polêmica doutrinária existente, vale lembrar que o Tribunal Penal Internacional adquire roupagem de complementaridade, ou seja, atua, se assim for acionado, de modo subsidiário ao ordenamento de quaisquer Estados-partes, não caracterizando explicitamente nenhum confronto hierárquico ou de soberania entre a Corte e as legislações nacionais. No caso do Brasil, isso não é tão fácil de ser compreendido pela maioria dos cidadãos, visto que o Estado Democrático de Direito goza de considerável solidez e segurança em comparação a alguns Estados que padecem de guerras e outros conflitos ofensivos aos princípios fundamentais da pessoa humana. 5. CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS Indubitavelmente, o Tribunal Penal Internacional representa um eficaz e moderno avanço no que se refere ao diálogo entre as Nações mundiais acerca dos direitos da pessoa humana, compreendendo, assim, inúmeros compromissos não só estatais mas globais aos ditames das boas relações internas e externas dos Estados para com seus cidadãos e destes consigo mesmos. Apesar de ainda estar em fase de aprimoramento, a Corte de Haia já reúne um considerável número de países membros, evidenciando uma ostensiva preocupação por parte dos governos dos Estados, contribuindo para um futuro mais respeitoso do homem com seu semelhante. Dessa forma, caberá aos juízes componentes a meticulosa e devida apreciação dos casos que se lhes forem apresentados, de modo a preservar sempre o bem estar social e a coexistência pacífica entre os povos. 6. CONCLUSÃO É possível concluir, portanto, de modo favorável ao modelo debatido no presente trabalho, observando uma imensa gama de avanços que disponibilizam as funções alusivas ao Tribunal Penal Internacional, possibilitando à humanidade uma nova e tentadora oportunidade de conversação e bom entendimento. Quanto aos aspectos jurídicos debatidos, vale ressaltar o que já foi dito a respeito das características complementares e subsidiárias das regras do Tratado de Roma frente aos ditames normativos nacionais. A tarefa é deveras árdua, pois engloba aparentes supressões ideológicas às soberanias estatais, o que é imperativo desmistificar ao longo do tempo.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-78/o-tribunal-penal-internacional-uma-compreensao-analitica/
O problema do conflito de princípios e a proposta de solução de Alexy: Aproximações epistêmicas e prático-jurídicas à máxima da proporcionalidade e a prisão cautelar
ao arrancar dos aspectos gerais da teoria dos direitos fundamentais de Alexy, o presente artigo pretende colocar em evidência a categoria dos princípios, que tem como característica a função de otimizar direitos fundamentais. No entanto, devido ao fato de não se aceitar uma ordem valorativa para os princípios, observam-se as colisões, que são resolvidas pela aplicação da máxima da proporcionalidade, aqui demonstrada pela análise do posicionamento do STF quanto à prisão preventiva.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO A pretensão de substantivação das liberdades e demais interesses do homem que vai inscrita nas normas fundamentais, positivadas em documentos político-jurídicos em momentos conflituosos (definidos como revoluções – constitucionais –, cujo objetivo é dar um novo arranjo ao Estado, reestruturando-o politicamente, em suas instituições e contemplando os interesses do homem depreendidos dialeticamente nas relações entre o povo e a auctoritas), é, também, foco para conflitos numa outra e superveniente dimensão. Melhor explicando, podemos dizer que os conflitos que demandam a positivação constitucional de certas posições político-jurídicas, antes de encontrarem a solução definitiva no fechamento do ciclo revolucionário-constitucional (como talvez entendessem, numa primeira etapa da história constitucional moderna – a do movimento intelectual anterior à onda de constitucionalização de fins do século XVIII –, os jusracionalistas e, posteriormente, os exegetas), configuram, apenas, uma das séries de ondas de conflitos, que se estendem indefinida e ininterruptamente ao longo da vida do direito. Os direitos de liberdade, v.g., depreendidos de uma natureza humana e, portanto, inerentes a todos os homens, atemporal e universalmente, não são tão irredutíveis como pensavam os politólogos e jurisfilósofos oitocentistas. O idearium de um Benjamin Constant, para quem a liberdade só encontrava limites estabelecidos pela lei, não perscrutava aí as dificuldades operacionais de seu campo prático, cuja teia problemática tendeu a tornar-se mais densa a cada avanço da humanidade (científico, técnico etc.).[1] E basta para que tomemos contato com os problemas dessa categoria pensarmos nas esferas conceituais do direito à intimidade e à preservação da imagem e a da liberdade de imprensa; ou da segurança pública (com o objetivo de proteger a vida, a integridade física e a propriedade dos cidadãos) e as garantias de índole constitucional-processual. Tal como a evolução das ondas, em que há sempre a crista de uma parecendo engolir a que se desfaz nas areias, os conflitos de normas fundamentais sucedem-se uns aos outros, requerendo posições mediadoras de política jurídica que, contudo, se relativizam a dimensão conceitual das normas fundamentais, não podem comprometer seu núcleo duro. A solução para o problema da hermenêutica constitucional não pode, portanto, arrancar da idéia[2] de que as normas definidoras de direitos fundamentais têm valor absoluto. A vasta dimensão ontológica do princípio da dignidade da pessoa humana, apenas para citar aquele a que freqüentemente o operador jurídico recorre para tentar harmonizar certas normas fundamentais em entrechoque, não deve ser entendido como um supraprincípio, que se sobrepõe hierarquicamente aos demais, sem padecer de relativização: as exigências político-jurídicas para o concertamento da sociedade de um Estado democrático de direito, partem, é claro, de um ideal de dignidade da pessoa humana, mas não o empregam com toda sua força ideológica no campo prático-social; porque uma tal aplicabilidade pressuporia uma humanidade homogênea, sem dissensos ou conflitos e sem perigos. A alternativa que resta tem de partir de uma racionalidade jurídica mediadora, em que os discursos sobre direitos fundamentais são analisados com a finalidade de descobrir-lhes valores éticos orientadores para a dissolução problemática concreta. Esta vertente hermenêutica, que renuncia a qualquer prévia posição hermética em torno das valorações, portanto, só é posta em operação, por um lado, nas situações críticas[3], e, por outro lado, tendo-se como premissa de que nenhum dos direitos fundamentais possui valor absoluto. A teoria dos direitos fundamentais de Alexy parte dessa metódica. Reconhece o caráter relativo dos direitos fundamentais e, demonstrando a ocorrência de conflitos entre eles, procura uma solução discursiva mediadora, empregando a máxima da proporcionalidade. O presente artigo pretende avançar sobre o problema dos conflitos entre normas do direito fundamental, tendo como eixo axial a teoria dos direitos fundamentais de Alexy. Para tanto, deverá, num primeiro momento, estabelecer os alicerces da teoria do constitucionalista alemão, e, posteriormente, fazer aproximações epistemológicas ao problema do conflito de normas. Ao final, já será possível descrever em linhas gerais a proposta de Alexy para a dissolução da problemática dos conflitos de normas, que é seu equacionamento através da máxima da proporcionalidade. É neste ponto que trataremos de uma das questões paradigmáticas de nosso tribunal constitucional, que é o enfrentamento dos limites da prisão cautelar. A pesquisa bibliográfica servirá para dar arrimo, através do método dedutivo, à formulação de nossa posição quanto à questão problemática referida ao conflito de direitos fundamentais. As categorias que constituem diretrizes para o desenvolvimento do texto, encontram-se já destacadas na parte preambular do trabalho e serão, à medida que delas nos ocupamos, conceituadas no corpo do texto. I. TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE ALEXY E O CONCEITO DE NORMA DE DIREITO FUNDAMENTAL. Os direitos fundamentais podem ser abordados de múltiplas maneiras, e parece-nos inolvidável o fato de que começaram a existir através da perspectiva filosófica, quando se definiram aqueles direitos inerentes a uma natureza humana e que, portanto, fazem parte do direito natural[4]; no entanto podem ser estudados e compreendidos segundo os métodos da história, que pretende demonstrar seu surgimento; ou da sociologia, que elabora leis a partir dos exames empíricos sobre a função dos direitos no sistema social; isto apenas para citar três formas de abordagem do tema. Contudo, Alexy adverte que seu intuito não é outro senão o de estabelecer uma teoria jurídica geral dos direitos fundamentais, tendo como um dos objetivos “[…] a reabilitação da tantas vezes criticada axiologia dos direitos fundamentais”[5], abrindo, com isso, uma brecha para que divisemos seu modo de entender a estrutura geral do direito. Na verdade, a vertente do positivismo científico que tenta escoimar das ciências sociais, por um lado, o conhecimento comum, a doxa, e, por outro, qualquer rasgo de conhecimento com características de ética, moral ou outra fonte alheia aos métodos estabelecidos segundo uma epistemologia própria, como pretendia Weber[6], e que no direito se notabilizará pelo juspositivismo kelseniano, que refuta as influências metajurídicas, não consegue explicar de maneira convincente a prevalência da Grundnorm como norma hipotética justificadora de todas as demais do corpus iuris. Porque as posições político-jurídicas assumidas pela auctoritas ao longo das experiências jurídicas (jurídico-legislativas e jurídico-jurisdicionais) são hauridas, tout court, do vasto universo de fenômenos humanos e não do puro e simples decisionismo. Da mesma forma, v.g., os direitos de liberdade que, antes de serem compreendidos pela razão humana como fato natural, são decorrentes das experiências sócio-culturais e, portanto, tornam-se direitos datados dentro de um sistema histórico, sem que para tal se possa excluir as influências de diversos conhecimentos, inclusive os axiológicos, que se entrecruzam num determinado hic et nunc histórico; e quando concretizados como direitos fundamentais, estão sujeitos a uma carga valorativa no momento pragmático-jurídico, que por nenhuma forma elide seu étimo justificante; basta que se pense na hermenêutica mais simples, que parte da semântica dos termos jurídicos e aí já localizaremos, nos jogos de linguagem desenvolvidos pelo intérprete algum traço ético. Alexy, no entanto, alerta que a sua não deixa de ser uma teoria dogmática – calcada nos pressupostos da dogmática jurídica – e, portanto, pretende estabelecer as bases para a compreensão dos direitos fundamentais. A dogmática jurídica, de onde arranca o constitucionalista os pressupostos para suas investigações, apresenta três dimensões: a analítica, a empírica, e a normativa. Na dimensão analítica, “[…] trata-se da consideração sistêmico-conceptual do direito válido”, abrangendo desde os conceitos fundamentais (conceito de norma, v.g.), “[…] passando pela construção jurídica […] até a investigação da estrutura do sistema jurídico […] e da fundamentação sobre a base de direitos fundamentais.”[7] Já a dimensão empírica apresenta dois significados: “primeiro, com relação ao conhecimento do direito positivamente válido e, segundo, com relação à utilização de premissas empíricas na argumentação jurídica.”[8] Nesta dimensão tende-se a estabelecer um prognóstico da práxis judicial, ultrapassando, dessa forma, os conceitos de direito e de validade do positivismo jurídico. Por fim, na dimensão normativa vai-se para além das constatações acerca do direito positivo válido, para alcançar a orientação e a crítica da práxis jurídica, especialmente da práxis jurisprudencial[9]. Estabelecendo esses vetores, Alexy referirá que a teoria pretendida é integrativa (das três dimensões da dogmática jurídica), enfatizando, no entanto, a dimensão analítica, em que investiga as estruturas dos direitos fundamentais, em seu conceito, influência no sistema jurídico e fundamentação. Explica: “A via para uma adequada teoria integrativa conduz-se através de uma teoria estrutural dos direitos fundamentais. Uma teoria estrutural – enquanto parte de uma teoria integrativa – é uma teoria primariamente analítica. É uma teoria primária e não puramente analítica, porque investiga estrutura tais como a dos conceitos de direitos fundamentais, da influência dos direitos fundamentais no sistema jurídico e da fundamentação dos direitos fundamentais, tendo em consideração as tarefas práticas de uma teoria integrativa.”[10] Portanto, ao colocar em relevo o aspecto eminentemente prático da ciência jurídica, Alexy procura dar à sua tese um viés empírico-analítico, que permitirá, por um lado, investigar os fundamentos conceituais dos direitos fundamentais e, por outro lado, adentrar o âmbito da pragmática jurídico-constitucional, aquela que é operada pelos tribunais ao darem concreção às regras e princípios fundamentais. Mas sua metódica requer seja antes estabelecido o conceito de norma de direito constitucional. Ao tratar dessa categoria, Kelsen refere-nos que com o vocábulo norma “[…] quer-se significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira.”[11] Mas explica que a acepção de norma inclui não só o comando de dever dirigido ao homem, mas, também, a permissão e a atribuição de competência, ou poder, para agir de certa maneira[12]. A norma, expondo esquematicamente, encerra um dever-ser (Sollen) dirigido a um ser (Sein). Mas o normativismo formalista do modelo kelseniano reduz a norma a estruturas lógico-formais, extraindo de seu conteúdo os aspectos fáticos e valorativos. Por outras palavras, os elementos metajurídicos, como os valores axiológicos, serão estranhos ao seu conceito de norma. Já Alexy procura evitar o reducionismo juspositivista, através de um conceito semântico de norma, segundo o qual há distinção entre norma de direito fundamental e direito fundamental, sendo aquela uma idéia mais ampla do que esta; assim como, também, há diferença entre norma e enunciado normativo, uma vez que aquela categoria deve encerrar um caráter deôntico. Assim, partindo da distinção entre norma e enunciado normativo, poder-se-á dizer que o enunciado expressa uma norma de conteúdo deôntico (um mandado, uma obrigação, um dever, uma permissão etc.). De maneira a que se chegue à conclusão de que “Uma norma é o significado de um enunciado normativo.”[13] Ou, segundo entendemos, o enunciado normativo é o instrumento lingüístico que compreende significante e significado, entendendo-se aquela categoria lingüística como “[…] um relatum” cuja definição não se pode separar da de significado[14]; ao passo que esta categoria, “como representação psíquica da “coisa””, conterá em si os aspectos psicológicos e ideológicos, apenas mediados através de significantes[15]; já por isso, não será desarrazoado pensar-se que o significado poderá vir à compreensão do intérprete através de diversos significantes; ou, transpondo isso para a teoria semântica de norma, uma norma de direito fundamental poderá ser expressa por vários enunciados normativos. A norma (na sua acepção mais ampla, que concerne aos âmbitos ético, moral, religioso etc.), para ser entendida como um dever-ser que é, ou seja, contendo uma determinação vinculante, tem de trazer ínsita a idéia de validade. Por outras palavras, deve ser considerada, em seu campo conceitual, a capacidade de fazer-se cumprir o dever-ser nela expresso. Normas sociais defasadas no tempo histórico-cultural ou deslocadas do ambiente sociocultural de origem, v.g., não vinculam, nem mesmo se tornam exigíveis e nem seu desatendimento imporá a conseqüência da censura moral. No que concerne especificamente ao mundo jurídico, a idéia de validade vai aderida à imposição da norma por autoridade autorizada – a auctoritas instituída, com competências específicas – para o efeito. Mas o conceito semântico de norma que Alexy defende, é indiferente às teorias de validade (sociológicas, éticas, jurídicas)[16], preocupando-se fundamentalmente com a adjetivação da norma como norma de direito fundamental. A partir disso, Alexy irá sustentar a existência de dois tipos de normas de direito fundamental: a norma jusfundamental que está diretamente estatuída na Constituição, existindo segundo uma referência a sua positivização; e a norma adscrita, que não é simplesmente aquela atestada pela jurisprudência, mas sim a norma à qual se pode dar uma fundamentação jusfundamental correta[17]. No entanto, a teoria de Alexy ultrapassa a exposição tipológica das normas de direito fundamental, avançando numa teoria da estrutura das normas. I.1 Classificação das normas constitucionais. Alexy propõe a classificação bipartida das normas de direito fundamental em princípios e regras, alertando que a distinção se faz necessária para o estabelecimento de um “marco de uma teoria normativo-material dos direitos fundamentais […]”[18]. Após referir sobre as imprecisões em torno dos termos, passa a delimitar suas características. Antes de tudo, referindo que regras e princípios “podem ser formulados com a ajuda das expressões deônticas básicas do mandado, a permissão e a proibição”; para além de que princípios e regras são “razões para juízos concretos de dever-ser”. Diante dessas constatações, o autor passa a investigar critérios para a distinção das duas modalidades de normas, partindo daquele que trata do grau de generalidade da norma, pelo qual chega à conclusão de que as regras possuem menor grau de generalidade, e o inverso ocorrendo com os princípios. É possível, disso, estruturar uma tese que diferenciará regras de princípios segundo um juízo qualitativo. Em todo caso, deixando entredita a vinculação entre ambas modalidades. I.2.1 Conceito de regras e princípios.   Segundo Alexy, “[…] as regras são normas que só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então há de fazer-se exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras contêm determinações no âmbito do fático e juridicamente possível.”[19]. Já quanto aos princípios, refere o constitucionalista que “são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes”. Podem ser tidos, portanto, como mandados de otimização[20]. II. CONFLITOS DE NORMAS. Se se perspectiva a Constituição como elemento de formação e coordenação de todo o corpus iuris do Estado, então necessária e obrigatoriamente ter-se-á de considerar dois aspectos fulcrais para sua caracterização: de um lado, a força vinculativa representada pela validez histórico-político-jurídica do conjunto de direitos fundamentais nela catalogados; de outro lado, o descortino de um sistema de estruturação que, por isso mesmo, deve ser coerente e harmonioso. Com efeito, a Constituição é não apenas expressão formal de determinado hic et nunc histórico-político-jurídico de um Estado, mas um complexo conjunto de regras e princípios (que são as normas de direito fundamental), que têm a pretensão de vigência. Por outras palavras, a Constituição, tal como ocorre com as leis em geral, determina um dever-ser irrecusável e peremptório no plano das concreções jurídicas, já que, através dessa pretensão de vigência, ela ordena e conforma a realidade social e política do Estado[21]. Nessa característica da Constituição, encontramos sua força vinculativa. No entanto, a aplicação das normas de direito fundamental, com suas funções ordenadora e conformadora, não pode ser levada a cabo sem a consideração do aspecto sistêmico das normas encerradas na Constituição. É por isso que Hesse, ao tratar da interpretação constitucional, refere aí interferir o princípio da unidade da Constituição, segundo o qual “A relação e interdependência existentes entre os diferentes elementos da Constituição obrigam a não contemplar, em nenhum caso, só a norma isolada, mas sempre no conjunto em que deve ser situada”. E mais adiante arremata: “[…] as normas constitucionais devem ser interpretadas de tal maneira que se evitem contradições com outras normas constitucionais.”[22] A isso devemos denominar de princípio da concordância prática. O princípio da unidade da Constituição também nos permite avançar noutro sentido: o de que a Constituição não prescreve a prevalência ou a hierarquia de normas, de modo que podemos considerá-las todas estabelecidas num mesmo plano. Se é assim, a aplicação de determinado princípio ou regra deverá ultrapassar o problema das colisões, por isso sendo impraticável a interpretação da norma isolada. II.1 O problema do conflito de regras e de princípios. O conflito ocorre quando se apresenta como possível a aplicação – a substantivação no plano prático-jurídico – de mais de uma norma de direito fundamental que, no entanto, tendem para soluções contraditórias para uma mesma questão problemática. Assim, se pensarmos no princípio da segurança pública, que é descrito em mais de um enunciado normativo, mas que no art. 144, CR depreendemos que se trata de responsabilidade do Estado “[…] para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio […]”, chegaremos à conclusão de que tal tarefa, em inumeráveis situações concretizada por qualquer das modalidades de prisão processual, colidirá com os princípios que tendem para a otimização da liberdade do cidadão, dentre os quais o princípio da presunção da inocência (art. 5º, LVII, CR). Mas as colisões, como refere Alexy[23], são verificáveis tanto com o manejo de regras quanto de princípios e, sob este aspecto, ambas modalidades de normas de direito fundamental não se diferenciam. Mas qual o critério distintivo? Em verdade, regras e princípios diferenciam-se na forma de como solucionar os conflitos. Enquanto o conflito de regras permitirá a introdução de regra de exceção, ou pela derrogação da regra antiga pela nova, ou pela aplicação da regra especial em supressão da regra geral, reconduzindo o problema ao conceito de validade jurídica[24], a colisão de princípios resolve-se de outra forma, uma vez que já não mais estará em causa a validade. Explica Alexy que enquanto “Os conflitos de regras são tratados na dimensão da validade; a colisão de princípios – como só podem entrar em colisão princípios válidos – tem lugar mais para além da dimensão da validade, na dimensão do peso.”[25] Por outras palavras, na colisão de princípios, não se discute a validade (como elementos estruturantes e de otimização de direitos fundamentais, os princípios não contêm determinações definitivas, mas apenas ordens que tendem para o implemento de situações jurídicas, por isso e por causa de seu alto grau de generalidade, não se submetendo a alterações como normalmente se vêem necessárias na outra categoria de normas da Lei Fundamental, que, como quaisquer regras, podem tornar-se defasadas), mas a importância que cada norma contraposta representa para o caso problemático concreto, devendo a divergência resolver-se, sempre, casuisticamente. Expliquemos melhor uma idéia geral de princípio. II.2 Considerações acerca do manejo de princípios. Como já demos a entender, os princípios são antes representações com forte carga ideativa de direitos fundamentais e que tendem para sua otimização, do que mandamentos definitivos e de menor grau de generalidade. Neste sentido, os princípios possuem uma função ordenadora, que se presta a conformar relações político-constitucionais. Mas, para além disso, refere Miranda que os princípios “[…] exercem também uma acção mediata tanto num plano integrativo e construtivo como num plano essencialmente prospectivo”. Arrematando seu entendimento, o constitucionalista português explica que “A acção mediata dos princípios consiste, em primeiro lugar, em funcionarem como critérios de interpretação e de integração, pois são eles que dão coerência geral do sistema. […] Servem, depois, os princípios de elementos de construção e qualificação: os conceitos básicos de estruturação do sistema constitucional aparecem estreitamente conexos com os princípios ou através da prescrição de princípios”.[26] Dessa forma, os princípios tanto possuem uma carga de valor constitucional autônoma (sem dúvida, adensada pelas forças ideológicas produzidas pelos discursos políticos, jurídicos e econômicos a cada momento histórico), como reforçam o âmbito conceitual dos direitos fundamentais através de suas funções ordenadora e de integração no momento interpretativo e de constituição das normas adscritas. Por isso o entendimento de Alexy no sentido de que os princípios são não apenas “razões para as regras”, mas “juízos concretos de dever-ser”. Assim, voltando ao exemplo anterior, dispõe a Constituição (art. 144) que o princípio da segurança pública é “[…] dever do Estado, direito e responsabilidade de todos […]”, e visa “[…] a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio […]”, sendo exercida através de órgãos das polícias e dos bombeiros militares; não nos parecendo desarrazoado, no entanto, afirmar que a idéia de segurança pública não se esgota nas atribuições constitucionais conferidas às polícias, uma vez que, para certos casos, pode haver necessidade do sacrifício do bem jurídico-constitucional da liberdade física imposto a quem se imputa prática de crime; e tal assertiva – da segurança pública concretizada através da prisão processual – converge em apoio à regra de inafiançabilidade de certos crimes de maior potencial ofensivo (art. 5º, XLIII, CR) e da jurisdicionalização da determinação do ato coercitivo e de seu controle (art. 5º, LIII, LXI, LVIII, CR). Desta forma, é possível dizer que as prisões processuais, de forma genérica previstas na Constituição, estão arrimadas no princípio da segurança pública e que esta tarefa não fica sob a exclusiva incumbência das polícias. II.3 O cariz de relatividade dos mandados deônticos inserto nos princípios. Como a teoria dos direitos fundamentais de Alexy não trata apenas da estrutura formal da Constituição, mas de seu aspecto relacionado com a substantivação dos direitos – pretendendo, desta forma, estabelecer posições dogmático-jurídicas para as operações no plano prático-jurídico –, abordando, portanto, o plano das concretizações jusfundamentais pela experiência jurídico-jurisdicional, necessariamente inclui na órbita problemática a interpretação das normas. É quando se evidencia, por um lado, que os enunciados normativos apresentam registros semânticos abertos, carentes de uma melhor delimitação conceitual para sua aplicabilidade nos casos concretos; e, por outro lado, que essa vagueza conceitual permite a ocorrência de colisão de princípios. Alexy inclina-se a reconhecer que a situação problemática daí decorrente só pode ser resolvida através da operação argumentativa que determina a prevalência de um princípio sobre o outro. Incide no equacionamento a máxima da proporcionalidade. III. MÁXIMA DA PROPORCIONALIDADE. Normalmente se diz que o princípio da proporcionalidade está inserido no próprio lógos do direito penal e basta refletirmos sobre os fins da pena para que cheguemos à conclusão de que tanto seu caráter retributivo quanto seus traços preventivo-geral e preventivo-especial requerem um juízo de proporcionalidade. Mas também haverá traços desse princípio no direito administrativo, especialmente quando em conflito interesses de graus e categorias diversos e os de caráter público. Talvez vejamo-lo como princípio-matriz para a solução de conflitos de interesses jurídicos em todos os ramos do direito público, inclusive no direito constitucional[27]. Não sem razão Pedrollo, arrimado em Raquel Stumm, afirma que “Como subprincípio do Estado de Direito, a proporcionalidade abrange toda a atuação estatal, sendo derivada de um imperativo substancial do Estado de Direito, que impõe o exercício moderado do poder.”[28] Em arremate, refere: “Também atende ao princípio da unidade da Constituição, harmonizando os interesses diversos ali presentes, sem o sacrifício unilateral de um em benefício de outro.”[29] A proporcionalidade é também tratada por Alexy, que concebe como elemento dogmático recorrente à solução do problema da colisão de princípios. Contudo, o constitucionalista, referindo que o conceito dessa categoria não coincide com aquele que emprega para princípio, prefere denominar de máxima da proporcionalidade. Tentemos seguir-lhe as pegadas. III.1 Conceito de proporcionalidade e suas etapas operacionais. A idéia fundamental em que se radica a proporcionalidade é a de equilíbrio. Equacionando-se, portanto, o problema jusfundamental de colisão de princípios por meio dessa máxima, o operador jurídico tenderá a conformar a norma segundo um juízo não de validade dos princípios em jogo, mas de preferência de um deles. Sempre, como já deixamos dito, de maneira a otimizar um direito fundamental em causa. A máxima da proporcionalidade, portanto, intervém no plano prático-jurídico, para dar arrimo a uma norma normada casuística e concreta. Para que seja operada, a máxima divide-se em três “máximas parciais”: a da adequação, a da necessidade e da proporcionalidade stricto sensu. A máxima da adequação levada a cabo na equação dos princípios colidentes, requer seja reconhecido no discurso argumentativo o princípio logicamente mais adequado à otimização do direito fundamental posto em causa. É claro que a ponderação que aí se faz não leva a um único resultado correto, mas isso não implica reconhecer tratar-se de um procedimento inviável. A máxima da necessidade relaciona-se com a escolha do meio mais benigno para a otimização fática de um direito fundamental. Acerca dessa máxima, refere Pedrollo que ela “decorre do fato de que um princípio impõe sua otimização fática (eficácia), o que contudo deve, necessariamente, ser operado de forma a que afete o menos possível outros princípios válidos e com iguais pretensões de realização.”[30] Já a máxima da ponderação em sentido estrito, é o postulado da ponderação propriamente dito. Seu emprego no processo de argumentação lógica implica na utilização de recursos discursivos não diretamente vinculados à ponderação. Refere Alexy que “[…] podem ser utilizados todos os argumentos possíveis na argumentação jusfundamental”, como os argumentos dogmáticos, pré-judiciais, práticos e empíricos em geral, e para a fundamentação de um enunciado de preferência condicionado e para a fundamentação da regra correspondente, pode recorrer-se à vontade do legislador constitucional, às conseqüências negativas de uma determinação alternativa de preferência, às decisões anteriores etc.[31] Daí verificar-se a possibilidade de maior controle racional para a formulação de um enunciado normativo de preferência. É esta a base para que Alexy formule uma lei de ponderação para a efetiva operação da máxima de ponderação dos princípios: “quanto maior é o grau da não satisfação ou de afetação de um princípio, tão maior tem que ser a importância da satisfação do outro.”[32] Se, como facilmente se infere, o procedimento de ponderação não leva a uma solução definitiva para os conflitos, na medida em que se considere o sistema jurídico-constitucional um sistema aberto, ao menos é possível, por um lado, reforçar a teoria da argumentação jurídica como forma de mitigar os riscos do puro decisionismo do velho modelo hermenêutico, radicado na simples subsunção do fato à norma; e, por outro lado, possibilitar uma dinâmica interpretativa que se pretenda consentânea com cada hic et nunc histórico-social. III.2 O problema da falibilidade dos juízos de valores nas operações de proporcionalidade A crítica normalmente atribuída à teoria argumentativa de Alexy referida à falta de critério material para a escolha do princípio que deve preponderar num caso de concreta colisão de princípios, desconsidera, antes de mais, o fato de que, em etapa antecedente ao problema jusfundamental, quando se planificam os princípios ao nível abstrato, todos os princípios devem ser considerados igualmente válidos e insuscetíveis de hierarquização, porque conotam não com uma ordem de valores (por isso, não decorrentes de prévio juízo de valor), mas, direta ou indiretamente, com o homem como ser ontológico (passa-se de forma diversa o problema de catalogação de bens e interesses do homem com dignidade constitucional, que se relacionam a uma escala de valores axiológicos). Além do mais, a eleição de um princípio jusfundamental como prevalecente em relação a outro, por operação jurídico-jurisdicional de normativização concreta e casuísta – a decisão judicial – não ocorre segundo os ditames kelsenianos de pureza do direito, mas, inapelavelmente, segundo a noção de que o mundo jurídico é permeável em relação ao conhecimento e à experiência comuns – a doxa – sofrendo, pois, as mais diversas influências, éticas, sociológicas, filosóficas, políticas etc. Mas na medida em que o magistrado enxerga o mundo para além da fria e calculada operação racional de interpretação e entende necessária a mediação discursiva efetivada com prudência, pela aplicação da máxima da proporcionalidade, naturalmente sofrerá o influxo de diversos fatores que ingressam nos jogos de linguagem jurídica[33]. Assim, v.g., a maior consciência sobre direitos humanos numa comunidade, causada pela atividade de grupos de pressão ou por programas de agremiações políticas e pela própria atividade político-social em torno da matéria, muito provavelmente ingressará nos jogos de linguagem jurídica; assim como o descontrole sobre a criminalidade em razão das deficiências da segurança pública, pode permear a operação de argumentação jurídica. Embora tais fatores possam sujeitar o operador jurídico a erros por causa, v.g., da ampliação da circunstância de vinculação à questão problemática determinada, são indicativos minimamente seguros do que está a ocorrer no meio social, causando uma interseção no mundo prático-jurídico. Há, obviamente, a possibilidade de falhas – e as há com freqüência –, mas se considerarmos que a argumentação jurídica é um horizonte aberto, então sempre haverá a possibilidade para novas operações retificadoras. III.3 A liberdade e o princípio de segurança pública. Recentes julgados de nossa Corte Constitucional têm colocado em causa a constitucionalidade da regra contida no art. 44 da Lei 11.343/2006, que determina a inafiançabilidade e a vedação da liberdade provisória para quem estiver incurso numa das modalidades de tráfico de drogas e de crimes equiparados (arts. 33, caput, § 1º e 34 a 37), a partir de uma lógica de argumentação jurídica que põe em confronto princípios constitucionais e a mencionada regra legal. Melhor explicando, joga-se, nesse discurso jurídico, com a contraposição dos princípios que favorecem a liberdade física (dignidade da pessoa humana, presunção da inocência e devido processo legal) à regra definidora da prisão cautelar. Mas o exame da constitucionalidade da regra contida no art. 44 não pode, a nosso ver, radicar-se pura e simplesmente na interpretação daqueles princípios, como se houvesse flagrante desequilíbrio na situação jurídico-legal. Isto porque há suporte constitucional – caracterizado por regras e princípios – não só para uma política criminal mais severa em relação ao crime de tráfico de drogas, mas, também, para a prisão cautelar. Isso determinará uma incursão mais profunda na questão problemática, possibilitando mais de uma linha discursiva. III.3.1 Proibição de liberdade provisória como regra abstrata e a priori Em decisão sobre habeas corpus, com pedido de medida cautelar (HC 100.959 – TO)[34], o Min. Celso de Mello escrutina o decreto judicial que manteve a segregação arrimado na gravidade do crime e na possibilidade de o paciente voltar a delinqüir, trazendo à sua argumentação entendimentos jurisprudenciais já consolidados em nossa Corte Constitucional. De antemão, o relator salienta que “[…] a gravidade em abstrato do crime não basta para justificar, só por si, a privação cautelar da liberdade individual do paciente”, e ajunta com a afirmação de que “O Supremo Tribunal Federal tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta, só por si, para justificar a privação cautelar do status libertatis daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado.” Há, nesse sentido, inúmeros julgados (RTJ 172/184, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; RTJ 182/601-602, Rel. p/ o acórdão Min. Sepúlveda Pertence; RHC 71.954/PA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence). A propósito, o relator destaca dois julgados que se enfeixam com seu entendimento: “A gravidade do crime imputado, um dos malsinados crimes hediondos (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária […]” (RHC 71.954/PA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence). E: “A ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO JUSTIFICA A PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU. A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por atos arbitrários do Poder Público, mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, eis que, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5º,   LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada.” (RTJ 187/933-934, Rel. Min. Celso de Mello). Em segundo lugar, ainda no julgado do HC 100.959 – TO, o Min. Celso de Mello repele a possibilidade de o decreto de prisão fundamentar-se na conjectura de que, em liberdade, o criminoso voltará a delinqüir. Lembra, a esse propósito, que “A prisão preventiva, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e presença de indícios suficientes de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação de liberdade do indiciado ou do réu”. Volta à antiga máxima (muitas vezes repetida equivocadamente, sem se levar em consideração a natureza da prisão cautelar) de que a prisão preventiva não pode ser utilizada como instrumento de punição antecipada do indiciado ou do réu; ao princípio da presunção da inocência; e enfatiza que, sem “indicação de fatos concretos – de que o ora paciente, em liberdade, poderia delinqüir ou frustrar, ilicitamente, a regular instrução processual” –, a prisão cautelar não tem cabimento. Por fim, o Ministro do STF coloca em causa a constitucionalidade do art. 44, referindo: “Essa vedação apriorística de concessão de liberdade provisória, reiterada no art. 44 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), não pode ser admitida, eis que se revela manifestamente incompatível com a presunção da inocência e a garantia do due process, dentre outros princípios consagrados pela Constituição da República, independentemente da gravidade objetiva do delito.” E arremata citando julgado de lavra do Min. Eros Grau: “A vedação da liberdade provisória ao preso em flagrante por tráfico de entorpecentes, veiculada pelo art. 44 da Lei 11.343/2006, é expressiva de afronta aos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III, e 5º, LIV e LVII, da Constituição do Brasil). […] A inconstitucionalidade do preceito legal me parece inquestionável.” (HC 100.872-MC/MG. Rel. Min. Eros Grau). Trata-se, como se vê, de uma decisão polêmica, que merece análise mais aturada. Tentemo-la. III.3.2 Da prisão preventiva Se se pensar na redução do status libertatis por meio da decretação da prisão preventiva, a argumentação expendida por Celso de Mello tem certo cabimento. Por outras palavras, admitimo-la, a princípio, quando estivermos diante da situação de decretação da prisão preventiva, mas não em relação a outras modalidades de prisão. Expliquemos. Por óbvio, a tão-só gravidade do ilícito penal não será suficiente para um prévio juízo de necessidade, adequação e proporcionalidade da segregação (aqui, desde uma premissa de que o princípio da proporcionalidade é também empregue no processo penal); haverá, pois, a necessidade de conjugarem-se os pressupostos legais da prisão preventiva, descritos no art. 312, CPP. Também está claro que seu objetivo – garantir a ordem pública ou econômica, ou para a conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal –, não pode arrimar-se em preconceitos, em conjecturas, nem mesmo na forte probabilidade de condenação, sob pena de infringirem-se algumas das garantias constitucionais de índole processual, inclusive o princípio da presunção da inocência. Mas, por outro lado, ao condicionar o decreto de prisão a argumentos com “base empírica idônea” e na “indicação de fatos concretos”, o posicionamento do Ministro do STF merece atenção. Primeiro, porque os termos utilizados não nos parecem adequados, não havendo, v.g., como formular um juízo empírico sobre o que pode constituir um vir a ser, que depende essencialmente do aspecto volitivo do criminoso. Como prognosticar, de forma empiricamente segura, que o criminoso representará perigo para a ordem pública, potencialidade de frustrar a aplicação da lei penal ou a instrução criminal? Em segundo lugar, dependendo do jogo de linguagem em que os termos são inseridos, aquelas condicionantes podem restringir ou facilitar o recurso ao expediente da prisão preventiva. Melhor explicando, para uma determinada argumentação jurídica, só constituirá uma “base empírica idônea” para a decretação da prisão preventiva, a vida pregressa do criminoso multi-reincidente; ou, por outro lado, para uma diversa linha de argumentação, a prisão poderá ser recomendada se houver indicativos concretos de que o criminoso é capaz de articular-se numa organização, comandando-a e tendo acesso a outras extensões criminosas. Queremos com isso demonstrar que ambos indicativos cristalizados na jurisprudência de nossa mais alta Corte não passam de conceitos que se submetem a valorações de cariz político-jurídico (e, portanto, reparáveis em qualquer momento, porque diretamente relacionados à formação do magistrado, inclusive politicamente); e, dentro da linha semântica de argumentação, prestam-se a uma ampla gama de formulações jurídicas, que não são auto-exclusivas, nem hierarquicamente estratificadas. O que resta? Para nós, o juízo de conveniência para a decretação da prisão preventiva deve, essencialmente, ser formulado pelo juiz da causa. É ele quem pode mensurar, com maior grau de acerto, os indicativos da adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu. Enquanto que às instâncias superiores, na falta de critérios objetivos para a revisão do decisum (e enquanto não os houver), caberá o exercício do controle da legalidade e da constitucionalidade do ato judicial. III.3.3 Do controle da constitucionalidade da prisão cautelar É claro que quando se fala em termos de controle da constitucionalidade de uma decretação de prisão preventiva, necessariamente haverá a necessidade de aferição da observância das normas de direito fundamental (que compreendem, naquele sentido falado por Alexy, regras e princípios) na decisão judicial. É quando invariavelmente surgem as colisões (aparentes ou não) de princípios, que devem ser equacionadas pela mediação discursiva de política jurídica, utilizando-se, para tanto, da máxima da proporcionalidade. No citado voto do Ministro Celso de Mello (item III.3.1), há referência de que o decreto de prisão preventiva pode importar numa punição antecipada do indiciado ou réu, pondo em causa, portanto, o princípio da presunção da inocência; e, por outro lado, aquele magistrado da Corte Constitucional tende a reconhecer, num âmbito muito mais amplo, já extrapolando o exame de caso concreto, a inconstitucionalidade do art. 44 da Lei 11.343/06, referindo, com base em precedente decisão de lavra do Ministro Eros Grau, que, para além de colidir com o princípio da presunção da inocência, a regra legal afrontaria o due process of law e o princípio da dignidade da pessoa humana. Entendemos, no entanto, que a situação jurídica não pode ser equacionada de maneira tão definitiva e peremptória. Vejamos. Em primeiro lugar, não se pode valorar de forma absoluta os princípios, nem mesmo estabelecer-lhes uma ordem hierárquica por motivos já bastantes conhecidos: a absolutização, por um lado, implicaria na impraticabilidade das normas de direito fundamental, já que em vez de harmonizarem-se os conteúdos ideológicos de normas, haveria sempre o confronto e o caráter de exclusão recíproca; de forma que o princípio da segurança pública (ínsito à Constituição material do Estado moderno) e o da presunção da inocência sempre e irremediavelmente entrariam em colisão, impedindo qualquer espécie de prisão cautelar. Por outro lado, a hierarquização dos princípios de direito fundamental por operações de política jurídica – estabelecendo, portanto, graus de importância para os princípios – causaria empecilhos à substantivação e à otimização de certos fins de direito constitucional; além do que esse seria um processo que correria os riscos de arbitrariedade e de ideologização, de todo em todo incompatíveis com a estrutura do Estado democrático de direito material; assim, tanto a priorização do princípio da segurança pública em relação ao princípio da presunção da inocência, como o inverso, impediriam uma correta apreciação dos fins da justiça (criminal). Se os princípios, como normas de direito fundamental, prescrevendo “mandados de otimização”, não são absolutos, que contornos definidores devemos dar à presunção da inocência e à dignidade da pessoa humana? Parece-nos que, diante da impossibilidade de conceitos estanques, prontos e acabados, devemos procurar um valor semântico para ambos princípios, através da prática discursiva da argumentação jurídica. Assim, antes de mais, e no que concerne ao princípio da presunção da inocência, temos de considerar que a presunção “(…) não deverá ser – como efetivamente não foi – absolutizada, pois caso tal situação se verificasse, poderíamos ser conduzidos à inconstitucionalização de toda a instrução criminal”[35]. Além do mais, o princípio da presunção da inocência, como norma de direito constitucional, tende a otimizar um tratamento especial ao indiciado ou réu, diferenciado daquele que se deve destinar ao condenado por sentença penal definitiva. Daí que, a priori, tal princípio não colida, sempre e necessariamente, com as medidas cautelares destinadas a indiciados e réus, como a prisão preventiva. Ao tratar da questão, a processualista portuguesa Alexandra Vilela refere: “(…) ao afirmamos que o arguido é presumido inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (…), não pretendemos significar que qualquer freio colocado à sua liberdade individual se revela contrário ao princípio constitucional da presunção de inocência, enquanto modo de tratamento a outorgar ao arguido”[36]. Isto porque, por um lado, se a presunção da inocência impede que os efeitos ordinários de uma condenação sejam atribuíveis por antecipação a quem esteja submetido à prisão cautelar, sua extensão ideológica, por outro lado, não pode afetar um outro princípio igualmente inscrito na Constituição dos Estados modernos, que é o da segurança pública, sob pena de tornar inviável sua concretização ou otimização através do processo penal. Fala-se, ademais, que a regra proibitiva de liberdade provisória contida no art. 44 atenta não só contra o princípio da presunção da inocência, como, também, contra o princípio da dignidade da pessoa humana, erigido à condição de supraprincípio, sobrepondo-se a todos os demais, guiando os direitos fundamentais. Tão simples assim? Obviamente, não. O princípio da dignidade da pessoa humana, tal como o da presunção da inocência, pode – e deve – ser conotado com todos os demais princípios de direito constitucional de índole processual penal, mas sua extensão ideológica não pode desenvolver-se para além da elipse, sob pena de negar-se a si próprio. Ou, ainda em termos esquemáticos, se a idéia de dignidade da pessoa humana se desenvolve ao longo da linha elíptica, naturalmente deve voltar ao ponto de partida, não podendo ultrapassar dessa configuração. Em termos exemplificativos, se se tentar absolutizar o princípio da dignidade da pessoa humana, como um vetor a cortar a figura elíptica, o próprio núcleo ideativo do princípio será invalidado; de maneira que, negando-se a possibilidade de prisão preventiva para o criminoso, se estará negando, v.g., a dignidade da pessoa humana do cidadão sujeito aos potenciais riscos causados por aquele criminoso em liberdade. Por fim, temos de considerar que o controle de constitucionalidade das decisões judiciais de prisão cautelar não pode pôr de lado outras regras inscritas na Constituição, que se enformam ao quadro de possibilidade da medida constritiva. Assim, o art. 5º, XLIII, inaugurando uma política criminal mais severa, dispõe que o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, deve ser categorizado como crime inafiançável (se não se permite fiança, com maior razão a proibição da outra modalidade de liberdade provisória); já o inciso LXI, refere que a prisão decorrerá do flagrante delito ou “por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente” (como é o caso da decisão que decreta a prisão preventiva, modalidade que deve ser entendida implícita na regra de direito constitucional); por fim, o inciso LXVI abre a possibilidade para a liberdade provisória, com ou sem fiança, desde que admitida em lei (ou seja, a questão é remetida à solução legal; no caso em análise, a solução deve partir da aplicação do art. 44 que, por sua vez, se inscreve dentro dos marcos político-criminais estabelecidos no art. 5º, XLIII, da Constituição). Então, pode-se de pronto inquinar o art. 44 de inconstitucional? Não nos parece. Nem também a uma outra vertente jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça: “HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E LAVAGEM DE DINHEIRO. RELAXAMENTO DA PRISÃO EM FLAGRANTE. NULIDADE DA LAVRATURA DO AUTO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO VÍNCULO ASSOCIATIVO ENTRE O PACIENTE E A CORRÉ. NECESSIDADE DE EXAME DILATADO DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA PARA DIRIMIR A QUESTÃO. 1. Por demandar o reexame aprofundado do contexto coligido no curso do procedimento criminal e por não restar evidente de uma análise perfunctória dos elementos probatórios, o habeas corpus não é o instrumento adequado para dirimir questão atinente à negativa de autoria ou atipicidade do delito em tese cometido por preso em flagrante.” “LAVRATURA DO AUTO DE PRISÃO. ARGUIÇÃO DE IRREGULARIDADES NA SUA REALIZAÇÃO. PEÇA PRODUZIDA NOS DITAMES DOS ARTS. 304 E 306 DO CPP. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. Se o auto de prisão em flagrante foi lavrado conforme o ordenamento processual penal, não há que se falar em nulidade do ato simplesmente por eventual atraso na comunicação da detenção a familiar indicado pelo paciente, que, ademais, dispensou a presença de advogado e teve todos os direitos constitucionalmente garantidos.” “EXCESSO DE PRAZO NA FORMAÇÃO DA CULPA. QUESTÃO NÃO APRECIADA PELO TRIBUNAL IMPETRADO. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NÃO CONHECIMENTO. 1. A questão relacionada ao excesso de prazo para o encerramento da instrução criminal, por não ter sido debatida pelo Tribunal de Origem, não pode ser apreciada nesta Corte Superior, sob pena de incidir-se na indevida supressão de instância.” “LIBERDADE PROVISÓRIA. VEDAÇÃO LEGAL. OBEDIÊNCIA AOS ART. 5º, INC. LXVI, DA CF/88 E 44 DA LEI 11.343/2006. PRECEDENTES. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA E CONSTITUCIONAL. COAÇÃO NÃO DEMONSTRADA. 1. Não caracterizado constrangimento ilegal a manutenção da negativa de concessão de liberdade provisória ao flagrado no comentimento em tese do delito de tráfico de entorpecentes praticado na vigência da Lei 11.343/2006, notadamente em se considerando o disposto no art. 44 da citada lei especial, que expressamente proíbe a soltura clausulado nesse caso, mesmo após a edição e entrada em vigor da Lei 11.464/2007 (precedentes do STF e da Quinta Turma do STJ). 2. Condições pessoais favoráveis são irrelevantes para a concessão da liberdade provisória, se presentes na hipótese outros elementos determinantes à manutenção da prisão processual.3. Writ conhecido em parte, e neste ponto, denegado” (Habeas corpus n.º 107.564-SP (2008/0118309-2). Relator: Min. Jorge Mussi. Impetrante: Merhy Daychoum e outro. paciente: K.A.A. Julgado em 23.06.2009). Diga-se, aliás, que na medida em que se deixa de considerar o amparo constitucional das medidas de coação, como a da prisão preventiva, em qualquer de suas modalidades, cria-se um entendimento não só defasado em relação ao princípio da segurança pública, como se estabelece uma norma jurídico-jurisdicional – a decisão judicial – contra legem. E mais. Uma decisão com este teor normativo ou uma lei que contrariasse o disposto no art. 5º, XLIII, CR, seria inquinada de inconstitucional. Neste sentido pronunciou-se o STF: “HABEAS CORPUS. 1. PRISÃO EM FLAGRANTE POR TRÁFICO DE DROGAS. LIBERDADE PROVISÓRIA: INADMISSIBILIDADE. 2. PEDIDO FORMULADO PARA QUE OS PACIENTES TENHAM O DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE: IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA CONDENATÓRIA QUE ASSENTOU ESTAREM PRESENTES, NO CASO, OS PRESSUPOSTOS PARA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR. 1. A proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição da República à legislação ordinária (Constituição da República, art. 5º, inc. XLIII): Precedentes. […] Inconstitucional seria a legislação ordinária que dispusesse diversamente, tendo como afiançáveis delitos que a Constituição da República determina sejam inafiançáveis. Desnecessidade de se reconhecer a inconstitucionalidade da Lei n. 11.464/07, que, ao retirar a expressão ‘e liberdade provisória’ do art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.072/90, limitou-se a uma alteração textual: a proibição da liberdade provisória decorre da vedação de fiança, não da expressão suprimida, a qual, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal, constituía redundância” (Habeas corpus 97.883-5 Minas Gerais. Relatora: Min. Cármen Lúcia. Paciente: K.J.S.M. e outros. Advogado: Defensoria Pública da União. Coator: Rel. do RHC n.º 24.090 do STJ. Julgado em 23.06.2009). Em suma, a questão problemática hoje tratada pela Corte Constitucional não chega a ser equacionada de forma adequada. Primeiro, porque verdadeiramente não passa de um conflito aparente de princípios. O julgado que serviu de paradigma para nossa análise, não estabelece um discurso argumentativo de contraposição de normas, mas, tout court, se desenvolve segundo a lógica de hierarquização de alguns princípios, sem, no entanto, os conotar com o restante quadro constitucional. Daí que a dignidade da pessoa humana e a presunção da inocência, princípios que otimizam o direito fundamental da liberdade física, apareçam sozinhos, como se outros não entrassem no discurso jurídico regulador da sociedade, como o relacionado com a segurança pública. Depois, porque o conflito de princípios – se é que pode ser criado à guisa de dar outra feição à norma jurídico-legal do mencionado art. 44 – poderá colocar em causa não a constitucionalidade do art. 44 (que, como demonstrado, tem suporte constitucional), mas sua eventual malversação, incidindo no abuso ou arbitrariedade da prisão. E, nesse caso, sim, diríamos possível a aplicação da máxima da proporcionalidade para solucionar, v.g., a quaestio decorrente do excesso de prisão. CONCLUSÕES Há perfeita imbricação entre os direitos e garantias de liberdades individuais e as regras processuais penais, de modo que o estudioso poderá identificar no quadro constitucional direitos constitucionais de índole processual, ou direitos constitucionais processuais. O elevado grau de abstração das normas jurídico-constitucionais, contudo, impõe dificuldades ao intérprete e operador jurídico: os equacionamentos problemáticos para a concreção das normas no plano prático-jurídico, deverão, antes de mais, mitigar os riscos de colisão ou de produção de normas jurídico-jurisdicionais inconstitucionais por meio de procedimento interpretativo de integração; em relação a isso, empregam-se os princípios de direito fundamental como normas de otimização. Mas, na medida em que se observa a possibilidade de uma mesma questão problemática ser tangenciada por normas de direito fundamental que indicam soluções distintas, ocorrem as colisões, que merecem tratamento específico por meio do procedimento da máxima da proporcionalidade. É certo que a argumentação jurídica levada a efeito para dissolver a colisão de princípios, não permite ao intérprete uma solução definitiva do problema, uma vez que o sistema jurídico-constitucional é aberto e não exclui o ingresso de variados níveis argumentativos. Nem, a nosso ver, exclui o discurso jurídico que procura atualizar a norma constitucional com o momento histórico-social. No entanto, os postulados da argumentação jurídica, ao pretenderem uma maior racionalidade para as decisões jurídicas, evitam os problemas do positivismo clássico, como o da pura subsunção do fato à norma. Neste ponto, parece-nos que a interpretação que se tem feito de certos princípios de direito fundamental pelo STF, incorre em equívocos desse gênero, que, no entanto, são absolutamente evitáveis. O questionamento da constitucionalidade do art. 44, da Lei n. 11.343/06 evitou colocar em ponderação os princípios que nitidamente arrimam a regra de proibição de liberdade provisória ali contida. Melhor explicando: ao perspectivar a questão problemática unicamente pela via do princípio da presunção da inocência, da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal, a Corte Constitucional deixou de lado, tout court, aqueles princípios que fundamentam as hipóteses de prisão cautelar em nosso sistema processual penal e que dão sustentação à mencionada regra legal. E aquele entendimento não parte, em verdade, de uma autêntica colisão de princípios, senão que arranca em direção à justificação de uma posição de política criminal. Contudo, a colisão pode verificar-se em variadas situações, v.g., quando estiver em jogo o próprio princípio da legalidade – em relação a um caso concreto de prisão – e o princípio da presunção da inocência.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-78/o-problema-do-conflito-de-principios-e-a-proposta-de-solucao-de-alexy-aproximacoes-epistemicas-e-pratico-juridicas-a-maxima-da-proporcionalidade-e-a-prisao-cautelar/
Abreviación en el proceso penal
Juicio abreviado, una imposición de criterios de oportunidad en el proceso penal. La víctima, portadora de intereses legítimos, no encuentra satisfacción en los mecanismos de la justicia penal.
Direito Processual Penal
I. INTRODUCCIÓN Principio de oportunidad es la expresión más significativa sobre la facultad otorgada al ministerio público para suspender, interrumpir o renunciar a la persecución penal de los autores y partícipes en hechos que revistan las características de una conducta punible. El aumento de la criminalidad, particularmente en delitos menores, comenzó, entre otras razones, por fundamentos socioeconómicos que trajeron consigo el incremento de delitos patrimoniales, por lo general de pequeña cuantía pero de comisión reiterada. Esta circunstancia obligó a buscar métodos adecuados para resolver un gran número de casos en el menor tiempo y evitar una emergente paralización de la justicia penal. Tal situación que amenazaba con no permitir afrontar jurisdiccionalmente todas las manifestaciones ilícitas existentes impulsó la creación de un sistema capaz de dar una respuesta rápida y eficaz a tantos ilícitos punibles. Es entonces que, en búsqueda de posibles soluciones, se concibe la idea de descriminalización de conductas introduciendo el principio de oportunidad para llegar a través de la previa negociación con el acusado, en su caso, a una condena sin necesidad de abrir el proceso correspondiente. De esta forma surge el procedimiento denominado juicio abreviado establecido en el C.P.P.N. y que consiste en la posibilidad para el imputado de admitir la existencia del hecho que se le imputa, su participación en aquél y prestar conformidad sobre la calificación legal y la pena solicitada por el representante del ministerio público para de este modo no llevar adelante la audiencia de debate oral y así, si el tribunal de juicio no rechaza el acuerdo, se dicte sentencia conforme lo pactado. A partir del análisis del mecanismo de este sistema me propongo establecer que su práctica implica, necesariamente, una franca imposición de criterios de oportunidad en el proceso que colisiona con precedentes de nuestra historia jurídica y conlleva a graves renunciamientos en el ordenamiento procesal y constitucional. Además, deja fuera del conflicto a la víctima, expropiando sus derechos y privilegiando la reacción penal por ante la reparación a él debida a consecuencia del injusto sufrido. Con las perspectivas que aparecen en el sistema procesal penal por la introducción de prácticas de justicia reparadora destinadas a las víctimas se hace necesario atender estos espacios de desigualdad. Acerca de la interpretación del derecho fundamental de las víctimas y su privación de derecho en el juicio penal De ello me ocuparé en el último capítulo del trabajo acerca de la interpretación del derecho fundamental de las víctimas y su privación de derecho en el juicio penal. El incremento sufrido en el derecho penal -–no más última ratio- y la consecuente sobrecarga de trabajo para las autoridades encargadas de la persecución penal produjo un impacto negativo en el derecho procesal penal. Tales circunstancias provocan entorpecimiento en los procesos penales, una excesiva duración de los procedimientos en la materia y una justicia que se encuentra en situación crítica debido a una insuficiente dotación de medios que permitan llevar a juicio oral y público la totalidad de los casos. Esta dificultad no resulta privativa de la actualidad. La Revolución napolitana (junio de 1799) tuvo entre sus protagonistas a los exponentes más representativos de la cultura democrática de la época, entre ellos, ael maestro Mario Pagano y a otros iluministas que ofrendaron su vida a la Revolución Jacobina. Fue precisamente Mario Pagano[1] quién desde un punto de vista estrictamente jurídico reafirmando los temas clásicos de la reforma iluminista del momento, entre ellos, la unificación de las fuentes del derecho y la eficacia de la justicia; reconoció que de hecho “la situación de su tiempo se caracterizaba por la presencia de una legislación farragosa e inorgánica y por la falta de una jurisdicción unitaria que, en todas sus formas, resultara expresión directa del poder central. Su lógica consecuencia eran los innumerables abusos judiciales y una exasperante lentitud en las decisiones”[2]. Este contexto había generado una crisis irreversible en la justicia, que tenía como corolario lógico una constante agudización del gravísimo problema de la criminalidad[3]. Estas cuestiones y la necesidad de simplificar el proceso penal llevan a la aplicación del sistema de juicio abreviado, incorporado al Código Procesal Penal de la Nación por medio de la ley 24.825, plasmada en el nuevo artículo 431 bis de ese cuerpo normativo. Relevancia de la cuestión para el Derecho Procesal Penal Como ya se mencionó las críticas a la lentitud de la justicia no son nuevas. “La excesiva duración de los litigios constituye uno de los mayores y más viejos males de la administración de justicia”[4]. Ante ello el legislador ha previsto mediante el procedimiento de juicio abreviado la posibilidad de no llegar al debate cuando exista conformidad entre la acusación y la defensa respecto del hecho, participación del imputado y el monto de la pena a imponer. Sin embargo el problema y las quejas subsisten actualmente. El fenómeno de la extensa duración de los procesos penales reconoce, entre otras, dos razones predominantemente apreciables en su problemática. La primera, determinada fácticamente, es la mora constante de la administración de justicia penal para acabar con los procesos interminables. La segunda, de naturaleza jurídica, radica en que a partir de las distintas interpretaciones respecto del derecho del acusado a ser juzgado dentro de un plazo razonable, esencialmente jurisprudencial, permite la aplicación del instituto en estudio para simplificar el proceso, sin alterar las circunstancias fácticas del caso que se juzga. Juicio previo, inviolabilidad de la defensa, incoercibilidad moral del justiciable, estado de inocencia y carga probatoria son otras de las garantías que pueden resentir la aplicación del sistema abreviado, por ello no debe perderse de vista el justo equilibrio que debe existir entre celeridad y garantías que permita al imputado, al momento de prestar conformidad, conocer el alcance y las consecuencias que implica aceptar una pena que no se limita a un conveniente monto sino que tiene un amplio espectro de circunstancias que lo exceden. Se ha de reconocer que nos hallamos frente a un instituto novedoso que está regulado por normas implantadas en el esquema legislativo, recibidas de otras culturas jurídicas, por ello tal inserción no sólo repercute seriamente en el ordenamiento procesal penal sino también en el constitucional por cuanto su aplicación puede avasallar algunas de las garantías constitucionales previamente enumeradas. Para Binder[5] la simplificación del proceso penal implica básica y centralmente un problema de política criminal. Las exigencias de simplificación del juicio; dada la importante carga que requiere la realización de un debate oral, continuo y decidido por jurados, si en el futuro es posible su implementación según Constitución; corre grave riesgo de desnaturalizar la diferencia substancial del contexto en que se desean aplicar aquellas soluciones. En marco del modelo que rige nuestro procedimiento la constancia de características inquisitivas de la instrucción adicionada a la simplificación del juicio, amenaza trasladar a la misma el peso de la decisión sobre el hecho punible, la responsabilidad del imputado y la pena aplicable, debilitando a su vez los rasgos que constituyen la garantía de control de los actos de la instrucción durante el juicio, es decir el carácter contradictorio, oral y público del debate, el principio de inmediación, la necesidad de producción íntegra de la prueba en esa etapa entre otros derechos fundamentales. La clara imposición de criterios de oportunidad que propone el juicio abreviado importa además otro riesgo procesal señalado reiteradamente por los críticos del “plea bargaining” estadounidense: la posibilidad que la no aceptación de la propuesta del fiscal por parte del imputado y su defensor conlleve la amenaza de un peligro de condena más grave[6]. Así se pone en cuestión si la supuesta “aceptación voluntaria” del imputado y el rechazo del acuerdo por parte de éste no lo coloca en una situación desventajosa. Por su parte la Corte Suprema ha expresado reiteradamente que la celeridad en la respuesta que debe dar al sistema no constituye un asunto menor y que el instituto en tratamiento consolida en forma efectiva el derecho a una respuesta jurisdiccional más rápida. Planteo de los problemas centrales Analizando el principio de oportunidad que facilita el mecanismo de solución negociada de los casos penales y definiendo sus particularidades dentro del sistema judicial, en un ámbito donde la discrecionalidad del ministerio público es  categóricaabsoluta, adelantaré en los umbrales de la investigación y dentro de un estricto marco teórico que el legislador no se expresó con la suficiente claridad al propugnar el instituto, de allí es que surgen las distintas interpretaciones especialmente en la doctrina. Razones simplemente utilitarias favorecen el tipo de juicio negociado y la jurisprudencia dominante admite la aplicación del sistema, enmarcado en el principio de oportunidad sin brindar una cobertura segura ni determinar los límites estrictos de su ámbito. No se han establecido las consecuencias jurídicas y previsibles producto de la aplicación del instituto. Frente a la realidad que evidencia una administración de justicia de recursos insuficientes escasos en el sistema penal y en particular a la aplicación de una norma cuya constitucionalidad se discute, la abreviación del proceso marca camino hacia la realización de criterios abiertos que aparecen como eficaces y rápidos en la persecución penal. En tanto el derecho procesal penal admita casos que se resolverán desde la perspectiva de la oportunidad incumbirá para la constitucionalidad del proceso que éstos sean correctamente estipulados. Reglas inciertas sobre el funcionamiento del principio de oportunidad lesionan el principio de legalidad y permiten que estos procedimientos se difundan de manera endémica. Las decisiones de no perseguir, emitidas por las autoridades de la investigación pudieran no ser ni limitadas ni eficientemente controladas[7]. La incertidumbre de la sociedad frente a la postura de reinterpretar el derecho de los acusados de un ilícito coloca en el centro de atención la problemática que pretende dilucidar este trabajo. Ya se evidencia una crítica; que aun pareciendo simple se torna decisiva a la hora de cuestionar la aplicación de dicha actividad procesal; proponiendo que el mecanismo negociado entre las partes está inspirado entre otras incidencias, en que el límite superior de la pena en muchos delitos se encuentra más allá de toda proporcionalidad, por ello el acusado tiene vital interés en la restricción del ámbito de decisión del juez, obteniendo una mínima participación de éste con los acuerdos. El fin de la propuesta es presentar una interpretación que superando el actual criterio dominante de considerar apropiado el juicio abreviado a partir del principio de oportunidad judicial, para poner fin al conflicto penal, cumpla con los fines de protección previstos por la norma, en un marco de respeto por las garantías y los principios básicos del proceso penal constitucional. Análisis de las consecuencias jurídicas Estas tareas están determinadas por la interpretación de las normas del instituto en estudio, en comparación con las correspondientes al sistema de derechos fundamentales de las personas, como límite a la actividad represiva del Estado y en consideración al respeto irrestricto de la dignidad humana.  En opinión de Bovino[8] según la regulación normativa del principio de oportunidad y de los nuevos mecanismos que hoy se han extendido a casi todos los países de la región, las nuevas disposiciones legales podrían terminar por frustrar los fines propios de la oportunidad como también la de otros mecanismos de simplificación del procedimiento (mediación penal, conciliación, etc.). El principio de oportunidad se apoya en teorías relativas y/o utilitarias de la pena, por ello responde a motivos que se vinculan más a criterios de efectividad del sistema penal. La realidad de la persecución penal, aun concebida desde el principio de legalidad, muestra que la pauta que transmite este principio no es en gran medida concretable. “El proceso penal y el derecho procesal penal no residen sólo en la realización del derecho penal, sino que, al mismo tiempo, persigue fines propios”[9], la verdad se presenta de manera tal que resulta ser una verdad formalizada por las reglas procesales. Por el contrario el principio de legalidad encuentra sostén en las teorías absolutas de la pena y por su alto contenido ético, consecuente con el Estado de Derecho. Nuestra Constitución Nacional en su art. 18, prevé que nadie puede ser penado sin juicio previo fundado en ley anterior al hecho del proceso, mas no impone la obligatoriedad en la imposición de una pena o de la persecución penal. De las garantías constitucionales, contenidas en el artículo de referencia, surge expresamente “la necesidad de acusación como presupuesto del juicio, mas no ordena que aquella se produzca en todo caso”[10]. Por ello sus valores principales residen en la pretensión de igualdad de tratamiento de los habitantes ante la ley (art. 16 C.N., arts. 8.1 y 24 C.A.D.H.) de conservar al máximo la división de poderes, de tornar realidad en la mayoría de los casos, que la solución del conflicto provenga de un juicio público, inmediato y oral. En definitiva, todas estas razones residen en el ámbito de la equidad ideal de la administración de justicia penal. Toda una quimera a la hora de considerar el instituto que analizamos -juicio abreviado- y de distinguir entre pretensión penal y acción penal. Es posible decir entonces que la primera inicia el proceso y que define en el ámbito de un proceso penal un objetivo concreto, que en el caso resulta ser la imposición de una pena o medida de seguridad de acuerdo con las previsiones normativas. La acción penal, por tanto, será la que pone en marcha toda una secuencia procesal, recorriendo los caminos o instancias, hasta el pronunciamiento jurisdiccional conclusivo. En palabras de Zaffaroni:[11] “(…) puede entenderse el art. 18 como estableciendo el principio de legalidad procesal[12] y dando por presupuesto el de legalidad penal, lo que no sería descabellado, teniendo en cuenta que en la propia discusión de la Convención de Virginia hubo constituyentes que se opusieron a su inclusión expresa por considerarlo obvio”[13]. En cualquier caso, es claro que el art. 18 consagra la legalidad procesal penal y la duda acerca de la legalidad penal (estaría también incorporada a ese dispositivo o se deduciría del art. 1° constitucional) ha perdido importancia en función de su actual consagración expresa en el art. 9° de la CA y 9° del PIDCP (inc. 22 del art. 75). Adelantada la opinión de este autor, describiré como opera el principio de legalidad y los problemas que acarrea su aplicación en la práctica. También analizar los fines político-criminales del principio de oportunidad, finalmente justificaré los motivos por los cuales determinadas maneras de regular su aplicación producen, inevitablemente, más problemas que soluciones. Alcance de la investigación.: Procedimiento dogmático Antes de abordar el tratamiento del tema considero necesario delimitar el propósito de la investigación en estudio. Se trata de problemas y soluciones que dependen exclusivamente de consideraciones de dogmática jurídicajurídicas y ello impone que la cuestión se aborde desde una perspectiva metodológica, es decir que el trabajo se oriente al análisis de conceptos jurídicos, dentro del sistema al que pertenecen, para aplicarlos al caso concreto. Para ello corresponde la interpretación de las normas penales y procesales penales del sistema y del principio que lo faculta, en el ámbito de aplicación correspondiente. Es atinente a las cuestiones abordadas en el trabajo. a). Si el juicio abreviado sobreviene en una imposición de criterios de oportunidad en el sistema penal que importa un riesgo procesal al justiciable. b). Si su inserción en el esquema legislativo, regulado por normas implantadas y recibidas de otras culturas jurídicas, repercute seriamente en el ordenamiento procesal penal y en el constitucional y si su aplicación puede avasallar garantías constitucionales como las de: juicio previo, autoincriminación, oralidad, inmediación y publicidad. c). Si la víctima, marginada en el proceso pese a ser portadora de intereses legítimos, no encuentra satisfacción en los mecanismos abreviados de la justicia procesal penal.  VICTIMA XXX d). Por último el objeto de la tesis (solución del problema) es presentar una interpretación que; superando el actual criterio dominante de considerar apropiado el juicio abreviado y el principio que lo habilita para poner fin al conflicto penal, debe cumplir con los fines de protección previstos por la norma, en un marco de respeto de las garantías y de los principios básicos del proceso penal constitucional. En la extensión de la investigación intentaré presentar el juicio abreviado como una práctica estatal inquisitiva y arbitraria. Su estudio se restringirá al análisis dogmático, tanto de las consecuencias jurídicas que la aplicación del instituto origina como del tipo normativo objetivo de la regla de derecho cuya violación da lugar a las consecuencias señaladas. La dogmática jurídica representa, como método de la investigación, una ciencia exegética hermenéutica cuyo objeto es la comprensión y explicación del derecho positivo a través de la interpretación de los textos correspondientes, con miras a su aplicación en los casos concretos. Por lo tanto, la investigación no tiene contenido empírico, se reduce al estudio dogmático de los preceptos que intervienen en la solución del problema objeto de análisis, en relación también con su funcionamiento dentro del orden jurídico en que se aplica. No se trata de un trabajo sociológico ni está basado en estadísticas, cumple una función de investigación puramente jurídica que no depende de estudios de campo ni de pruebas, tampoco persigue planteos reformistas. Tan solo explica la vigencia de una norma procesal y las consecuencias relevantes de su aplicación, su objetivo es entonces establecer que la práctica del juicio abreviado implica una franca imposición de criterios de oportunidad en el proceso que colisiona con precedentes de nuestra historia jurídica y conlleva a graves renunciamientos en el ordenamiento procesal y constitucional. II. LLEGALIDAD VVsS. OOPORTUNIDAD. Concepto y alcance de estos principios en el proceso penal El principio de legalidad ha sido regulado en el artículo 71 del Código Penal. El texto de esa disposición dice: “Deberán iniciarse de oficio todas las acciones penales, con excepción de las siguientes: a) las que dependieren de instancia privada; b) las acciones privadas”. De allí se interpreta claramente que el mismo establece el principio de legalidad procesal. A este principio se lo enuncia fácilmente indicando que todo delito de acción pública debe ser obligatoriamente investigado, juzgado y castigado (si corresponde) y con igual compromiso de esfuerzos estatales. De la manera en que ha sido interpretado en nuestro derecho el principio de legalidad procesal impone a los órganos estatales correspondientes el deber de promover la persecución penal en todos los casos en que se tenga conocimiento de la posible comisión de un hecho punible. El mismo principio exige que, una vez promovida la persecución penal, ésta no se pueda suspender, interrumpir o hacer cesar. Ningún criterio utilitario o relacionado con la escasa gravedad del hecho[14] puede ser utilizado para no iniciar o para no continuar la persecución. El principio de legalidad implica que la promoción de la acción penal constituye un imperativo para el ministerio público y que dicho imperativo actualmente está instituido en presupuestos de objetado valor que además producen consecuencias negativas en el funcionamiento cotidiano de administración de la justicia penal. Explicado de esta forma no parece difícil considerar que uno y otro principio (legalidad y oportunidad) estén básicamente encontrados. Esto ocurre cuando el principio de oportunidad manifiesta un ejercicio del ius puniendi extendiéndose en un sentido tan amplio que conlleva la afectación de la norma, es decir que quebranta estándares de seguridad jurídica que proporciona la previsión legal de los delitos y de las penas. Desde la doctrina se afirma que: “para especificar el precepto en su total contenido es menester recurrir a leyes o disposiciones no penales, que son las que contienen los mandatos revelando lo que el derecho quiere. Es el mandato contenido en la norma lo que otorga al Estado la facultad de exigir el imperativo, pero es la ley penal la que le otorga el derecho de castigar su infracción” [15]. Así esta teoría de las normas permitió distinguir el destinatario de las mismas del destinatario de la ley penal. La norma, en cuanto integrativa del precepto de la ley penal, está dirigida a los individuos que deben obedecer el mandato absteniéndose de la conducta prohibida. La ley penal, como designación de la pena, está dirigida a los órganos del Estado encargados de aplicarla, imponiéndoles el deber de hacerlo toda vez que se haya dado una infracción de mandato que esté penalizada. El principio de legalidad procesal constituye una garantía para los particulares y una exigencia de seguridad jurídica, así también una limitación al poder punitivo del Estado. Para fortalecer el carácter intimidatorio de la ley penal, y para evitar arbitrariedades, los juristas de la tradición conti­nenta­l europea consideran conceptúan inseparable del precepto canon de la obligatoriedad de la norma penal el principio de obligato­riedad de la acción penal, e incompatible con una visión democrática de la función penal el principio de discrecio­nali­dad. Actualmente este principio tiene en el ámbito del derecho internacional una extendida vigencia como principio fundamental del Estado de Derecho y ha sido también acogido en numerosas regulaciones supranacionales. Tiene, entre otras, una justificación jurídico penal y originalmente se basa (esta fundamentación) en la “teoría de la coacción psicológica” de Feuerbach[16]. Los fines de la pena, las finalidades extrapenales y los puntos de vista de la culpabilidad también pueden ser relevantes en el derecho procesal, es algo que ponen de relieve, aparte de los presupuestos de procedibilidad, especialmente, los supuestos del principio de oportunidad. “(…) hacen depender el sobreseimiento de la escasa culpabilidad y de la ausencia de interés público en la persecución penal. Tal interés público sólo puede precisarse según el criterio de los fines de la pena. Y cuando en otros casos puede producirse el sobreseimiento por razones políticas, de estrategia de persecución o de economía procesal, en ellos se imponen finalidades extrapenales frente a la necesidad de la pena”[17]. Si los supuestos del principio de oportunidad pertenecen al derecho procesal es sólo porque en tales ámbitos el legislador no ha querido recurrir al procedimiento de subsunción para fijar la decisión sobre la imposición de una pena sino que se ha encomendado al arbitrio del ministerio fiscal y del tribunal. Para lograr los objetivos que le asignan se debe reconocer que se trata de una herramienta pensada para ser administrada por el órgano encargado de la persecución penal estatal. El objeto y fin de este principio exige que sea utilizado como un instrumento necesario y útil para racionalizar, ordenar y planificar criterios genéricos de política persecutoria en la materia. III. DISCRECIONALIDAD fiscalDEL MINISTERIO PÚBLICO Selectividad de casos La selectividad de los tribunales respecto de los casos más sencillos, es una elección de hecho que responde a la estructuración normativa del sistema de persecución penal. Aquí gravita la falta de asignación de medios por encima de las posibilidades materiales de investigación, por ello debe limitarse la tarea de los tribunales a la función de juzgar y garantizar los derechos individuales, aliviándolos de la función de llevar adelante la persecución penal mediante la investigación preliminar. Para que los defectos de la investigación judicial no sean transferidos a ésta es necesario que al mismo tiempo se reorganice el ministerio público para hacerse cargo eficientemente de la prevención penal, dotándolo de recursos humanos, medios y el establecimiento de criterios más flexibles en la asignación de casos. En este sentido es necesario contar con una regulación que permita asignar en determinados casos, debido a la complejidad que éste presente, a más de un fiscal. Actualmente, en la práctica se viene realizando aunque sólo en la investigación de aquellos delitos que tienen desmedida trascendencia pública. Un sistema penal apoyado en una teoría absoluta de la pena debe perseguir todos aquellos delitos de los que tenga noticia[18]. En tal sistema los órganos encargados de la promoción de la acción penal están sujetos a perseguir, obligatoriamente, todo delito de acción pública y este deber se expresa bajo el principio procesal de legalidad. Un sistema penal orientado hacia la obtención de ciertos fines, es decir, que repose en una concepción preventiva o mixta de la pena, no debe perseguir necesariamente a todo delito sino en la medida que ello sea necesario o útil para alcanzar esos fines, y en éste los órganos encargados de la promoción penal tienen cierta discrecionalidad para decidir cuáles hechos habrán de perseguir. Esta discrecionalidad se expresa bajo el principio procesal de oportunidad. El dilema sobre la conveniencia de adherir a uno u otro principio abarca en gran medida la discusión acerca del sentido de la pena estatal. Se aduce que el principio de oportunidad sería de gran utilidad para hacer más efectiva la lucha contra cierto tipo de delitos ilícitos (los más graves) pues permitiría restar complejidad a los casos seleccionados; reduciendo la persecución penal a uno o varios delitos de una serie de comportamientos delictivos; para conseguir una condena posible y suficiente en un tiempo relativamente breve, deduciendo de la persecución penal aquellos delitos o -meras clasificaciones penales- que no agreguen demasiado al juicio sobre la pena y que, sin embargo, complican el procedimiento por su cantidad o por la dificultad de su prueba. También se encuentra en juego la eficiencia y transparencia del sistema de enjuiciamiento en lo penal, que sin duda se vería beneficiado si los procesos penales tardaran menos tiempo en su tramitación, si el Estado previniere más eficazmente el delito, si las penas se impusieran en tiempo oportuno, se atendieran con preferencia las causas que provocan mayor daño social y especialmente si la selección la realiza el legislador y no el funcionario de turno de manera informal[19]. Tanto el principio de legalidad como el de oportunidad presentan factores de peso que no deben ser ignorados. En favor del principio de legalidad puede sostenerse que: a) es igualitario, mientras que la aplicación selectiva y oportunista de las normas lleva a debilitarlas, y en consecuencia a debilitar el aspecto estabilizador de la sociedad. b) el principio de oportunidad se aplica en el periodo de instrucción, de este modo los criterios concretos de oportunidad no son conocidos por el público, lo cual deja a la oportunidad fuera del ámbito de control del mismo y muchas veces cuestionado. En contra de este principio puede sostenerse que: c) el principio de legalidad parte de una concepción idealista de la realidad. La cifra negra de la criminalidad es la demostración de que el derecho penal no se aplica igualitariamente pues además de los factores que llevan a que determinados hechos nunca sean conocidos existen otros procesos fácticos de selección, no controlados, que impiden la actuación de la ley penal; d) las normas de derecho penal material no operan automáticamente en la práctica: ciertas secuencias del procedimiento dependen especialmente de un criterio de oportunidad no formalizado en reglas procesales, pero insustituible; ejemplo de ello es la discrecionalidad de un juez en la determinación del estado de sospecha para someter a proceso a una persona, o la duda para absolver por aplicación del principio in dubio pro reo; e) el proceso penal no está obligado a la indagación a toda costa de la verdad material sino a la indagación de la verdad por vías jurídico-formales que limitan la actuación del derecho penal, como la prohibición probatoria ilegítima y como remedio la regla de la exclusión; f) los recursos personales y materiales de las autoridades encargadas de la instrucción siempre resultarán escasos y el principio de legalidad no podrá evitar que ellas desarrollen su actividad en forma selectiva de conformidad con los criterios no institucionalizados y exentos de todo control. Mediante el principio de oportunidad se tiende a facultar al órgano de persecución penal o a la víctima a que unilateralmente decidan la subsistencia de la acción penal o el abandono de la misma. Este principio tiene que conectarse necesariamente con la idea de subsidiariedad del derecho penal, es decir que éste sea la última ratio del ordenamiento jurídico, y que sólo es lícito recurrir a él cuando otras sanciones jurídicas aparezcan insuficientes para mantener la confianza en el Derecho y la paz social. En este rumbo la idea privilegia la solución de conflictos por medios no penales, fomentando procesos compositivos que favorezcan la reconciliación con la víctima y con la sociedad, en especial tomándola en cuenta y promoviendo la prevención-integración. Por otra parte la idea de un derecho penal mínimo examinado desde un universo de conductas reprimidas como delito llevaría a un proceso de descriminalización, convirtiendo algunas de estas conductas en atípicas y otras en simples faltas o infracciones menores[20]. Estas tendencias a formalizar el principio de oportunidad favorecen sin duda la capacidad operativa del sistema penal en la medida que permite a los órganos encargados de promover el enjuiciamiento prescindir de su promoción o continuación en los casos en que los criterios de oportunidad así lo indican. En ese sentido este principio institucionaliza la selectividad que bajo el principio de legalidad se practica de facto pues en rigor de verdad el sistema de persecución penal fundado en el principio procesal de legalidad aplica de hecho el principio de oportunidad. Muchas denuncias sobre defraudaciones y abuso de confianza originados en relaciones contractuales son desestimadas de plano, con indicación de recurrir a la vía civil con dudosos fundamentos acerca de la naturaleza extra-penal del conflicto que en buen romance significa que los jueces, (o en su caso los fiscales) derivan a las partes a que compongan su conflicto por medio del procedimiento civil. La experiencia indica que, en muchos de los casos, la desestimación de plano es a veces  prematura y encubre una reticencia a investigar esta clase de delitos. Junto con estos supuestos hay otros factores incontrolables que operan conforme a criterios de oportunidad, como ejemplo baste citar la discrecionalidad que tiene el juez para decretar el procesamiento de una persona pues no existe un estándar determinado sobre el grado de sospecha para fundar tal decisión, y más aún, la discrecionalidad en la intensidad de la investigación y en la recepción de la declaración del imputado. Las experiencias señaladas hablan en favor de introducir el principio de oportunidad pero ello exige que la misma sea formalizada, esto es que los criterios de regulación del principio estén claramente fijados en la ley y que el órgano facultado para determinar la oportunidad goce de una inserción institucional que lo ponga a resguardo de intereses políticos ajenos a los de política criminal, que la someta al mismo tiempo al control público para evitar que la decisión sobre la oportunidad se ejerza al margen del sistema penal. Una organización republicana exige que estas decisiones sean controlables. Al respecto es necesario advertir que este principio sólo es compatible con el Estado de Derecho y si sus criterios están determinados con precisión en la ley, las reglas de oportunidad que estén así reguladas sin precisión, destruirán en su estructura el principio de legalidad. Por otro lado el principio de legalidad sobrecarga la tarea de quienes promueven la averiguación de los delitos y en función de ello el principio de oportunidad se manifiesta como alternativa seductora. La mezcla de legalidad y oportunidad depende de la ética de las autoridades y de los tribunales, del control y confianza de la población en la administración de la justicia penal. La decisión sobre la introducción del principio de oportunidad exige considerar la conveniencia de adjudicar algún tipo de control sobre promover o no una acción,  de limitar el principio al sostenimiento de la misma manteniendo la obligatoriedad de su promoción o de limitarlo en el caso de oposición del imputado o de la víctima, pero siempre exigir que esa decisión sea fundada y por escrito. La solución abordada ante la crisis del principio de legalidad es la de hacer concesiones al principio de oportunidad mediante la implementación de distintos mecanismos e institutos para simplificar el proceso. En palabras de Hassemer la síntesis del pensamiento penal y procesal de estos tiempos afirmaría “tanta legalidad como sea posible, tanta oportunidad como sea necesaria (política y económicamente)”[21]. Principalmente la opción por el principio de oportunidad exige resolver si la facultad de promover la persecución de los delitos, conforme a criterios de oportunidad, estará a cargo de un órgano sujeto a directivas del Poder Ejecutivo o de un órgano del Poder Judicial que tenga garantizada su independencia y estabilidad. En conclusión, existirían buenas razones para introducir el principio de oportunidad procesal pero ello debe hacerse con suma prudencia, especialmente en una sociedad que necesita vivir la experiencia de una función estabilizadora y pacificadora en las normas penales. Aunque se reforme la ley procesal admitiendo criterios de oportunidad resulta necesario señalar que no es válido legítimo emprender una asignación de esfuerzos basada en un criterio simplista según el cual el principio debería permitir una selección de los delitos más graves permitiendo para desistir de la persecución penal respecto de otros delitos en atención a su levedad. En estos casos el principio de oportunidad debería reservarse perfectamente para los casos de complejidad de hechos y dificultades de prueba[22]. IV. LÍMITES CONSTITUCIONALES AdeaL PRINCIPIO DE OPORTUNIDAD Inaplicabilidad ante graves violaciones a Derechos Humanos Los límites al principio de oportunidad están ceñidos por la Constitución Nacional (art. 75 inc. 22) que incorpora a partir del año 1994 tratados de Derechos Humanos ratificados por el Estado y normas de derecho humanitario internacional. En función de esta normativa supranacional, de conformidad con lo dispuesto en el Estatuto de Roma, las leyes internas se mantienen armónicas a las mismas y el principio de oportunidad limitado en su aplicación cuando los hechos de los que se trate puedan significar graves violaciones a estos derechos (crímenes de lesa humanidad, genocidio, etc.). En su caso, podría invocarse el artículo 1.1. de la Convención Americana que impone a los Estados Parte la obligación de garantizar el libre y pleno ejercicio de los derechos y libertades reconocidos en el Tratado a toda persona sujeta a su jurisdicción. Esto supone que el Estado se organice de modo tal que pueda asegurar jurídicamente el pleno ejercicio de los derechos humanos. Si se admitiera la aplicación del principio de oportunidad frente a esta clase de delitos el Estado estaría violando el mandato originario e incumpliendo su obligación de prevenir, investigar y sancionar toda violación de los derechos fundamentales[23]. Desde la más estricta jurisprudencia de la Corte Interamericana se ha sostenido que, “[e]l Estado está (…) obligado a investigar toda situación en la que se hayan violado los derechos humanos protegidos por la Convención. Si el aparato del Estado actúa de modo que tal violación quede impune y no se restablezca, en cuanto sea posible, a la víctima en la plenitud de sus derechos, puede afirmarse que ha incumplido el deber de garantizar su libre y pleno ejercicio a las personas sujetas a su jurisdicción”[24]. En atención a lo expuesto el principio de oportunidad no puede aplicarse frente a hechos que hayan afectado derechos humanos protegidos por la Convención. Por lo tanto delitos de homicidio doloso, genocidio o la desaparición forzada de personas deberán ser siempre investigados. Una interpretación distinta podría comprometer la responsabilidad internacional de nuestro país ante la Corte Interamericana. Por otra parte el tratamiento igualitario de las reglas penales y procesales, sobre todo en cuanto a sus presupuestos de legitimidad, aparece impuesto ya por razones de declaración: “el derecho procesal penal es parte del derecho penal”[25] o debido a que ambas cumplen funciones paralelas tendientes a lograr los mismos fines en el proceso[26]. Atento a ello en mi opinión, tanto las normas dirigidas a la solución penal de los conflictos sociales como las que regulan los actos de las autoridades judiciales encargadas de aplicar el sistema de simplificación del proceso, deben provenir del legislador. V. RrAZONES DE PpOLÍTICA CcRIMINAL Desformalización de la justicia penal El amplio proceso de criminalización que se dio en las últimas décadas del siglo XX con la frecuente modificación del Código Penal; aprobación masiva de leyes especiales (Blumberg y otras), incremento de los tipos de peligro abstracto, agravamiento de penas, nuevos tipos penales, flexibilización de prácticamente todas las garantías penales y procesales, desvalorización de derechos y garantías fundamentales, flexibilización morigeración de la prisión cautelar, tutela prioritaria de bienes jurídicos supraindividuales (salud pública, consumidor, etc.), anticipación de la tutela penal, admisión de la transacción penal, premios para el colaborador de la justicia (recompensas), “plea bargaining” y otros métodos de abreviación del sistema procesal, etc., marcó una radical transformación. Ello determina un interrogante de parte de los dogmáticos del derecho penal: ¿qué se debe hacer para contener la cuota permanente de criminalidad (convencional u organizada), y al mismo tiempo respetar las clásicas garantías del derecho penal tradicional? Si admitimos la necesidad de protección de los bienes jurídicos para lograr la convivencia social la tendencia más clara sería la construcción de un sistema jurídico distinto y es entonces donde avanza la idea del sistema penal de dos velocidades de Silva Sánchez[27]. Éste se conforma por: a) un núcleo básico constituido por el clásico derecho penal, fundado en la pena privativa de libertad y en el respeto a todas las garantías penales y procesales;, b) un derecho sancionador auxiliar, aplicado por el Poder Judicial, pero sin hacer uso de la pena de prisión, lo que permite cierta flexibilización de las garantías, del sistema de imputación, así como la posibilidad de elaboración de acuerdos, de transacción penal, etc., c) de un derecho administrativo clásico aplicado por la Administración Pública, y d) del Derecho Civil, Internacional, Comercial, etc. En esta orientación, tomar como punto de partida la protección del bien jurídico conduce sin duda a un exceso puesto que ello deja fuera la de perspectiva del concepto de autor. En consecuencia el derecho penal sería el núcleo básico de ese sistema jurídico que tendría como ejes: la pena privativa de libertad, el debido proceso legal clásico, y respeto a todas las garantías penales y procesales. Regido por principios fundamentales como: exclusiva protección de bienes jurídicos; intervención mínima (fragmentariedad y subsidiariedad del derecho penal); de legalidad; de materialización del hecho (derecho penal del hecho); de ofensividad; de responsabilidad subjetiva; de culpabilidad; de proporcionalidad; de igualdad y de humanidad o dignidad. Todos esos principios cuentan con aprobación, explícita o implícita constitucionales, y del mismo modo, casi todos integran el fundamento de la Política Criminal argentina. Abandonada la dogmática formalista y legalista y adoptado el método de la ponderación, expone Roxin: “(…) en la solución justa para cada caso concreto, conforme propugnado por la dogmática teleológica, que persigue valores y fines constitucionales, se torna posible restablecer la estructura garantizadora del derecho penal tradicional, que debe ser reservado para la aplicación en pocos casos, solamente los más graves”[28].. El Derecho Penal material no sólo determina los límites de la punibilidad sino que al mismo tiempo tiene la tarea de sostener y asegurar las normas fundamentales de una sociedad (Prevención General Positiva)[29]. El aseguramiento de las normas supone que éste es realizado de la misma manera que el derecho penal alega. Si se vuelve desproporcionado a través del funcionamiento del proceso penal o a través de la aplicación del principio de oportunidad es de esperarse que todo el sistema penal sufra importantes perjuicios. La población espera siempre que el Estado observe las normas del Derecho Penal que ha promulgado. La teoría de la prevención general establece que la función motivadora del Derecho Penal se dirija a todos los ciudadanos. La forma cómo tiene lugar este proceso es precisamente lo que diferencia las dos variantes que existen sobre esta teoría: la prevención general negativa y la prevención general positiva. La primera se caracteriza por ver a la pena como mecanismo de intimidación para motivar a los ciudadanos a no lesionar bienes jurídicos penalmente protegidos, la segunda cambia el mecanismo de su realización, ya no es la intimidación de la amenaza penal la que debe motivar a los ciudadanos sino el fortalecimiento que produce la pena -justa- en la convicción de la población sobre la imposibilidad de agredir los bienes jurídicos[30]. “El Estado tiene el monopolio de la aplicación del Derecho Penal, el diseño de política criminal que realice debe ser “racional” atento que el derecho penal ocupa en el sistema jurídico general un lugar secundario. Ese carácter le es dado porque sólo debe actuar cuando ya lo han hecho otros sistemas más eficaces para la resolución del conflicto. Es el continuador de instituciones públicas o privadas que deben actuar previamente, ya que la norma penal es débil para actuar por sí sola”[31]. En mi opinión no debe propiciarse la aplicación del principio de oportunidad a razones de Política Criminal. Considero que para ello es necesario establecer cuál ha de ser la razón fundante que habilite legalmente la implementación del principio. Esta reflexión parece ser el mejor camino para alcanzar la moderación del derecho penal, o sea, la no utilización emocional e irracional condicionado por los avatares de los acontecimientos. Un Derecho penal concebido de mínima intervención, si bien anclado en la pena de prisión (razonable), pero con total respeto al debido proceso legal y los derechos fundamentales y garantías del procesado. Política Criminal es Política de Estado. En palabras de Santiago Mir Puig: “(…) consiste en aquel sector de la política que guarda relación con la forma de tratar la delincuencia, se refiere al conjunto de criterios empleados o a emplear en el tratamiento de la criminalidad. Cada ordenamiento jurídico penal responde a una determinada orientación y expresa una concreta política criminal. En este sentido, la Política Criminal, no es una disciplina teórica, sino una orientación práctica” [32]. Es perceptible que frente a la evolución en la trasgresión de la norma con el progreso de la criminalidad , se debilita o abandona la misma (se descriminaliza, se despenaliza, se morigera, etc.), y se proyectan procedimientos técnicos más adecuados jurídicamente. Partiendo de la realidad del fenómeno habría que recordar que este funcionalismo colaboró en crear una relativa anomia, utilitaria para ciertos comportamientos ilegítimos. A primera vista nada parecería más satisfactorio que existan criterios claros de detección por parte del Estado y que éstos respondan a las urgencias por resolver los conflictos penales, pero prontamente aparecerán otras dificultades, me refiero a la persecución de delitos cometidos desde el Poder. Desde un punto de vista político-criminal se sostiene, en relación a los delitos cometidos desde la Administración gubernamental, la necesidad de contar con un mecanismo de persecución delictiva confiable que no dependa de la voluntad de órganos sospechados de complacencia y del que podrían haberse valido los imputados. Se parte de la base que el fiscal, como órgano estatal de persecución punitiva, no permita (ni obstaculice) una represión eficaz de ciertos delitos que tocan muy de cerca al Estado. Esta preocupación debe alertar acerca de la necesidad de contar con una organización institucional del Ministerio Público -sin perjuicio de las existentes- que, mediante instancias de control (interno y externo), ofrezca garantías de independencia del poder (sobre todo del poder político). Razones como las apuntadas han llevado a propugnar sistemas procesales que confieren una facultad de persecución penal autónoma reconocida por normas supra- constitucionales a quienes se presentan como víctimas (a través de la figura del querellante autónomo), como único medio para obtener una respuesta adecuada de la justicia penal. En materia de derecho penal significaría un aporte relevante para entender y mejorar la realidad jurídica, el lograr un sistema que, además de ser eficiente, garantice que la reacción punitiva del Estado resulte adecuada y congruente al derecho vigente. Recientemente buena parte del debate constitucional se ha centrado en la forma como la Constitución ha ‘refundado’ el Poder Judicial. “Un Estado de Derecho reclama instituciones vigorosas y poderes judiciales independientes. La noción de independencia judicial implica, entre otros elementos, que el juez no ha de tener más subordinación que a la ley y ello incluye independencia de distinta índole: independencia política frente al Poder Ejecutivo; independencia funcional frente a otros órganos judiciales; independencia económica frente a otros poderes, etc.”[33]. La relación del juez frente a la ley señala un ámbito de acción del ejercicio de la función judicial que obliga a representar el cumplimiento de su deber al objeto mismo de la función legislativa. La relación intrínseca entre la actividad del juez y la acción del legislador margina en principio aún a la misma función ejecutiva. Por ello su fuente natural será la ley con todo lo que ello conlleva. El capítulo se completa con el examen de procedimientos en el ámbito procesal penal y con la exposición de reflexiones sobre el rol de Para analizar ambos principioslos principios de  (legalidad y de oportunidad. , Aaún cuando no haya acuerdo doctrinario sobre su función en el proceso é. Éstos) no deben alegarse en razones de Política Criminal, s. Si bien durante el proceso mismo se plantean cuestiones o aspectos de índole fáctica que son reveladoras de un conflicto penal, en modo alguno, constituyen verdaderos motivos de Política Criminal. Tratándose de valores que hacen a la norma penal no parece admisible que se fijen pautas de aplicación desde la legislación ya que tales fundamentos no podríanueden considerarse argumentos o políticas de Estado, en el caso, simplemente se trata de cuestiones de preferencia o conveniencia procesal. Por su parte el principio de legalidad garantiza, para la concreta aplicación de la justicia penal, que se dará un trato igualitario a los ciudadanos y ello impone la aplicación igualitaria de las normas penales. El principio de oportunidad no puede exceptuar que una autoridad determine, de algún modo, la aplicación de las normas penales y con ello se lesione el mandato de igualdad que impone la Constitución. en el trato para con todos los ciudadanos. Para ello el modelo constitucional establece límites a la política criminal de acuerdo a los principios de legalidad y certidumbre, consiste en el ejercicio de una política criminal racional -limitada- fundamentada en el respeto por la dignidad humana y de los derechos fundamentales. La política criminal no debe ser expansiva y debe dejar espacio para la aplicación de otro tipo de políticas, no debe hallarse aislada del resto de las políticas de estado y su límite está en el respeto a las garantías. Al respecto y como anticipo del tema en estudio (el juicio abreviado) que dimana del principio de oportunidad, Binder señala que “uno de los usos de la palabra simplificación del proceso, en ciertos contextos concretos de la discusión de la política criminal, puede esconder una visión profundamente autoritaria del proceso penal”[34]. Por último en el capítulo, a la hora de examinar los presupuestos sobre la opción legalidad y/o oportunidad, cada uno de estos principios resalta distintas partes de la regulación jurídico-penal. La legalidad se sitúa del lado de las teorías absolutas de la pena mientras que la oportunidad se inclina hacia la ubicación de los fines del Derecho Penal y hacia las teorías relativas de la pena. La relación entre legalidad y oportunidad es un problema de implementación del derecho antes que un problema teórico jurídico, por ello, los casos de oportunidad deben ser determinados con precisión en la norma para resguardar la igualdad y el Estado de Derecho, distanciado de razones político-criminales. VI. EL PLEA BARGAINING NORTEAMERICANO Como punto de partida describiré la práctica del plea bargaining en los Estados Unidos para explicar sus fines dentro del sistema intentando ubicar su aplicación con respecto a la distinción entre los sistemas acusatorio e inquisitivo y si su práctica en los hechos tiende a atenuar la diferencia entre ambos. Así también analizar si el sistema estadounidense, como lo consideran algunos juristas anglosajones, por la forma en que realmente opera en la actualidad se parece mucho más a un sistema de justicia no contradictorio de orden administrativo. Académicos y abogados discuten los méritos del mismo desde una perspectiva más amplia. Los partidarios del modelo angloamericano descartan el proceso inquisitivo por considerar que éste resulta limitado para proteger los derechos fundamentales como así también consideran a los jueces del sistema continental simples funcionarios del Estado. Este procedimiento es mencionado habitualmente como el antecedente primario del régimen de juicio abreviado que dio origen en nuestro país a la ley 24.825, aunque esto no es compartido por algunos autores. A partir de la comparación de ambos sistemas podrán apreciarse algunas diferencias con el sistema americano, ello se desarrollará en el apartado correspondiente del estudio. En el mismo se encuentra implantada una institución que resulta distintiva; se establece un mecanismo de solución negociada del caso penal entre el fiscal y el abogado defensor. Se la concibe como un acuerdo mediante el cual la acusación se allana a pedir una sentencia más benigna, abandonar alguno de los cargos o dar alguna otra ventaja al acusado a cambio de que éste se declare culpable lo que evita la celebración del juicio oral por jurado[35]. La concepción que se tiene del proceso penal americano de que el acusado debe ser condenado por un jurado luego de un proceso contradictorio en el que la defensa pueda discutir con el ministerio público acerca del fundamento de la acusación sólo tiene un valor simbólico, la realidad es otra pues en muchos casos no se alcanza el juicio oral y público[36]. La defensa estándar de plea bargaining se basa en que la admisión de culpabilidad ahorra tiempo y dinero, reduce la incertidumbre y otorga ciertos poderes a las partes mediante la libertad de elección del procedimiento y los costos a cargo de las partes de realizarse el juicio. Así razones simplemente utilitarias favorecen el tipo de juicio negociado que exige a los prosecutors el mantenimiento del mismo nivel de condenas que en años anteriores. Se estimaba en 1971 que una reducción del noventa al ochenta por ciento de declaraciones negociadas demandaría que se duplicaran los medios humanos y técnicos de la administración de justicia, en tanto que una reducción al setenta por ciento exigiría triplicarlos, según expusiera el Chief Justice Burger en “Santobello vs. New York“, caso que se analizará más adelante en el trabajo. Algunos textos modernos señalan que el procedimiento de partes angloamericano no es una descripción cabal de lo que realmente ocurre en los tribunales penales. Entienden que el Gran Jurado es una herramienta del fiscal y que a través de las declaraciones de culpabilidad (guilty pleas), consecuencia de meticulosas negociaciones entre fiscal e imputado, se dispone de muchos más casos que los que son llevados a juicio. Que tales negociaciones, a veces combinadas con sistemas de reglas de determinación judicial de la pena, establecen regularmente la sentencia a ser impuesta al acusado. Se reconoce del mismo modo que en los casos que culminan sin juicio la información sobre los hechos que recibe el juez, más allá del reconocimiento de culpabilidad del propio imputado, será presentada de manera sumaria -escrita- antes que en forma oral. Más importante aún, la única determinación genuina realizada por las instituciones de la justicia penal acerca de si el acusado es realmente culpable es llevada a cabo por la policía y por el fiscal y no por el jurado o por el juez (quien simplemente acepta la decisión voluntaria e inteligente del acusado de renunciar al juicio)[37]. Sin embargo, aun cuando el plea bargaining y la discrecionalidad del fiscal puedan decidir sobre la mayoría de los juicios, a través de una declaración de culpabilidad, a veces, estos métodos son apreciados como propios de un sistema autónomo. En las discusiones sobre las ventajas y desventajas de este procedimiento del derecho angloamericano es poco frecuente que se reconozca que en la mayoría de los casos la primera imputación que recibe la persona acusada es, de hecho, la decisión administrativa de un funcionario estatal (el fiscal) que desempeña sus funciones de modo esencialmente inquisitivo. La conformidad con la pena por parte del acusado tras el acuerdo con quien detente la pretensión estatal remite a las prácticas persuasorias permitidas por el secreto en las relaciones desiguales propias de la inquisición[38]. Estos mecanismos simplificadores no solucionan el problema de la ineficacia sino que lo ocultan. No son, ni más ni menos, que la renuncia a principios fundamentales del sistema penal, así también, no constituyen remedio alguno para la ineficacia del procedimiento penal sino tan sólo paliativos que, la mayoría de las veces y casi exclusivamente intenta ocultar esa ineficacia[39]. No obstante han sido adoptados en las últimas décadas con diversa amplitud y alcance por diferentes eEstados. La crítica estándar del plea bargaining se basa en que las admisiones de culpabilidad debilitan la prueba más allá de duda razonable las audiencias contradictorias y otras garantías procesales y frecuentemente la mayoría de estas objeciones conciernen a criterios procesales en lugar de reproches de derecho penal sustantivo. El sistema deriva directamente de una noción acusatoria en que las partes se presentan como adversarios autónomos e iguales ante el tribunal y que el tribunal no es un elemento independiente de la administración de justicia estatal sino por el contrario un árbitro de las disputas existentes entre las partes. Así como éstas controlan el modo en que se presenta la prueba durante el juicio, ingresando sólo aquella información que se considera relevante para la presentación del caso que se pretende considerar, también pueden antes del juicio o fuera del tribunal establecer un acuerdo que ponga fin a la disputa de la manera que consideren adecuada. Si bien en un primer momento, en el proceso penal americano, la declaración de culpabilidad del acusado no eximía al Estado de celebrar el juicio oral con todas las garantías (caso “Wigh v. Rindskopt” año 1877), a fines del siglo XIX y principios del XX, debido a lo costoso de la tramitación de los juicios y al tiempo que insumía su sustanciación comenzó a imponerse la concepción contraria. La 14ª. Enmienda a la Constitución de los Estados Unidos, que obligaba a los Estados a no privar de la vida, la libertad, o de la propiedad sin el debido proceso legal a ninguna persona, como ya se expuso, comenzó a debilitarse. En este sistema el carácter ejecutivo de la persecución penal, de acuerdo al artículo II de la Constitución Federal de los Estados Unidos, corresponde al Poder Ejecutivo, consecuentemente, la posibilidad de que las decisiones del fiscal puedan ser controladas por un órgano ajeno al Poder Ejecutivo representaría un problema constitucional, vinculado al principio de la división de poderes[40]. Al acuerdo se llega por medio de la negociación entre el ministerio público y la defensa, acuerdo autorizado por la ley[41]. Para ello se le reconoce al primero una discrecionalidad absoluta, el principio de oportunidad irrestricta le permite tomar la decisión de determinar cuándo hay que llevar a cabo una investigación, de establecer en qué casos se puede garantizar inmunidad a un testigo o en cuáles se puede negociar la declaración de culpabilidad del acusado, qué tipo de recomendaciones hacer al tribunal, en definitiva, decide si, cuándo, cómo y por qué cargos acusar a un sujeto, pudiendo renunciar a la acción penal luego de haberla iniciado. Las ventajas que ofrece el ministerio público a cambio de la declaración de culpabilidad han recibido duras críticas por parte de algunos autores americanos, quienes dicen, que importaría penalizar a aquellos imputados que deciden ejercer un derecho constitucional al llevar su caso a juicio[42]. El enfoque dominante con relación a las admisiones de culpabilidad se centra en valoraciones de orden procesal. Éste no tiene en cuenta otros valores fundamentales como juicio contradictorio, publicidad, adecuada retribución, vindicación de las víctimas y de las normas penales. El “plea bargaining” consiste en la obtención por el acusado de una serie de concesiones oficiales a cambio de declararse culpable; es decir, se trata de una institución consistente en un give and take en donde el acusado cuando se declara culpable está esperando recibir un tratamiento menos severo (lenient treatment) por parte del órgano jurisdiccional. El acuerdo tiene lugar durante la etapa del arraingment, que se da cuando el imputado ha sido notificado de la acusación, leyéndosele el indictment o la information para que se pronuncie acerca de los cargos formulados. Por otra parte, hay quienes discuten si el “plea bargaining” se encuentra procesalmente (penal) adecuado. En el sistema el tribunal no funciona como órgano del Estado obligado a indagar sobre los hechos, en realidad, aplica reglas prácticas para alcanzar la verdad que permitan considerar que el resultado es justo. El tribunal se ocupa entonces de resolver disputas entre partes iguales, y si bien en los casos penales se aplican reglas especiales en su organización, un caso penal no es nada más que un litigio común; el Estado como cualquier particular en un caso civil de responsabilidad contractual o extracontractual; es sólo una entidad que puede acudir al tribunal a presentar un reclamo que debe ser satisfecho y el imputado no es ni más ni menos que la parte de quien se pretende obtener la satisfacción de ese reclamo. Exactamente como en un caso civil, si el demandante decide desistir de su pretensión o si el demandado reconoce su responsabilidad y acuerda con la satisfacción exigida, no subsiste disputa alguna que el tribunal pueda resolver. Y como tal las partes pueden resolver sus discrepancias conjuntamente a través de algún tipo de acuerdo. Si lo hacen el tribunal no buscará saber si el resultado es justo y/o conforme con la ley, porque al pactar se produce el efecto de eliminar la controversia que éste puede arbitrar. Por otra parte la inversión de la presunción de inocencia es uno de los principales problemas que plantea el sistema de plea bargaining. Tanto el fiscal como el defensor parten de la base de que el acusado es culpable y celebran acuerdos que presuponen la responsabilidad del hecho que se le imputa. Las partes sólo pueden influir sobre la pena a aplicar indirectamente a través de la determinación de los puntos de la acusación siempre que el juez no renuncie a ser él quién fije la misma. Se habla entonces de charge bargaining donde el objeto de los acuerdos no es la pena misma sino la cantidad y gravedad de las pretensiones penales que se harán valer ante el tribunal, ello tiene carácter vinculante para el juez, quien no puede examinar otros cargos que aquellos propuestos por el fiscal. Esta variante representa para el acusado un beneficio aparente debido a que realiza concesiones sin obtener a cambio ninguna seguridad en cuanto a su situación procesal. Por otro lado, generalmente, éste desconoce que las penas por delitos cometidos en concurso ideal suelen ser cumplidas simultáneamente como que la duración efectiva de su ejecución no está dada en la práctica por el límite máximo sino por el límite mismo del marco penal. Entiendo oportuno señalar que en Estados Unidos el plea bargaining comenzó a utilizarse de modo significativo en la segunda mitad del siglo XIX y en los comienzos del XX y a modo de crítica, que degrada garantías estructurales, permite que los fiscales ejerzan un rol judicial neutral y facilita el trabajo del abogado defensor que en su contexto pretende evitar el juicio público. Así también; la negociación socava la exactitud del proceso, el trato de igualdad y la percepción de justicia; debilita la prueba más allá de lo razonable poniendo en situación de riesgo a los acusados inocentes, autodeclarados culpables, en razón de conveniencia procesal. En definitiva, el controvertido procedimiento y la discreción del fiscal pueden decidir el destino de la mayoría de los acusados y sólo ocasionalmente, estas prácticas son percibidas como un sistema penal autónomo. Reconocimiento de culpabilidad “Plea of guilty” El “guilty plea” frecuentemente permite disponer de los casos penales evitando como se mencionara, la realización del juicio y la necesidad para el Estado de demostrar la culpabilidad del acusado. Se trata de una declaración que implica reconocimiento de culpabilidad, que puede ser prestada ante el tribunal por el propio imputado y/o por su defensor y con ella se renuncia a todo un catálogo de derechos reconocidos constitucionalmente. El fiscal americano cuenta con un amplísimo poder negociador, tiene la facultad de retirar cargos o de abstenerse de traer otros nuevos y esta circunstancia convierte al juez en un ratificador de lo que las partes hayan convenido, quitando al magistrado su carácter de órgano decisor. El requisito básico para la aceptación del acuerdo, que hasta el año 1968 era verbal, es que debe efectuarse por escrito y consignarse en los autos procesales. Corresponde asegurar la voluntariedad del acuerdo (que el acusado comprenda los cargos), la pena del delito y todas sus consecuencias puesto que, como se dijo; éste renuncia al derecho de no declararse culpable, al juicio por jurados, al careo con los testigos de cargo; reconociendo que todas las afirmaciones hechas en presencia de su abogado pueden ser utilizadas en su contra por haber incurrido en perjurio o falso testimonio[43]. También declina a objetar un allanamiento ilegal, una requisa infundada o detención ilegal, todos Estos derechos irrenunciables en nuestro sistema, de raigambre europeo continental. Si contrariamente, denuncia que la confesión fue ilegalmente obtenida la ‘plea’ y la sentencia deben ser anuladas, por ello la presencia del defensor en el acuerdo resulta fundamental, salvo que el acusado haya dado muestras de conocer las consecuencias de su admisión. Como se explicó las partes no se encuentran en igualdad de posición en el proceso americano. Inicialmente la ubicación del Ministerio Público aparece predominante ya que la evidencia que posee no siempre la exhibe en su totalidad a los defensores particulares, tal es así que la defensa debe esperar el momento oportuno para negociar debido a que la ausencia de control sobre la actividad probatoria podría acarrear a acordar una pena estricta para alguno de sus defendidos y al tiempo una disminución o retiro de los cargos para otros imputados en el mismo hecho. Como vemos los criterios empleados en este procedimiento no responden a un puro retribucionismo, es más está exonerado de otras críticas debido a los elevados índices de criminalidad en este país y a que el sistema no resistiría iniciar un proceso por cada ilícito que se verifique. Varias son las razones que pueden llevar al fiscal a entablar negociaciones con el imputado, en general las concesiones que efectúa obedecen a distintos propósitos (prioridades en la aplicación de la ley federal, naturaleza y gravedad del delito, efectos preventivos de la persecución, historia criminal del imputado, etc.). Empero debe quedar igualmente en claro que el imputado no tiene un derecho constitucional regulado a negociar su plea, si el fiscal no quiere negociar éste no tiene recurso alguno para lograrlo, aun cuando sea claramente discriminatorio. Resulta irrealista objetar al agente fiscal por la discrecionalidad y posibilidad que tiene de determinación de la pena. El sistema de justicia americano se ha desarrollado así porque el procedimiento acusatorio tradicional se ha tornado prácticamente ineficiente teniendo en cuenta los índices de criminalidad y la dimensión de los recursos judiciales. Cuando los procesos eran más sencillos cada imputado podía tener un juicio por jurado pero a medida que la complejidad del modelo aumentó aparece se consideró razonable que se busquen soluciones más rápidas y eficientes que resulten adecuadas a estas circunstancias. Aunque no emerja del proceso norteamericano el principio de búsqueda de la verdad -correspondencia o verdad histórica-, el magistrado que recibe el reconocimiento de responsabilidad de un acusado (guilty plea), además de verificar su voluntariedad y real conocimiento debe verificar que concurran con una base fáctica idónea para arribar a la sentencia. Si esta circunstancia no estuviera presente la declaración del imputado será considerada de no culpabilidad (not guilty). Llegado a este punto no es posible afirmar que la aceptación de culpabilidad sea es equivalente a nuestra confesión. En el sistema estadounidense el jurado se pronuncia a través de un veredicto sobre la culpabilidad del imputado. Éste se diferencia de cualquier otra decisión judicial; es pronunciado por legos sobre los hechos del caso que el tribunal puede aceptar o rechazar para fundar su decisión. En la resolución de condena judgment of conviction debe estar fundadoo el veredicto de culpabilidad por parte del jurado. VII. PpROVINCIA DE BbUENOS AaIRES Ley 11.922 y sus modificaciones  “La celeridad procesal implica mucho más que rapidez en el trámite de expedientes. Es un requisito indispensable para asegurar la garantía constitucional del debido proceso legal y el derecho de defensa en juicio”. “La justicia lenta no es justicia. Cada vez que una causa prescribe por el paso del tiempo es una nueva frustración del sistema. Y por más que se repartan culpas entre los operadores, las víctimas no saciarán jamás su sed de justicia y los verdaderos responsables del delito serán congraciados con la impunidad”. Con estas palabras[44], en el diario Hoy de la ciudad de La Plata, la Procuradora bonaerense impulsó en el año 2006 los juicios abreviados para casos de flagrancia. Para la fecha, según la entrevistada, los casos que se estaban juzgando en los distintos Departamentos Judiciales de la provincia, en juicios orales y públicos, correspondían a hechos delictivos cometidos entre los años 1998 y 2000 y según sus declaraciones al medio “(…) la modalidad del juicio abreviado para delitos con penas de hasta seis años de prisión es un instituto procesal que se utiliza, precisamente, a partir de la reforma del ’98”. La reproducción de la nota que encabeza la presentación del ejercicio del instituto en la provincia de Buenos Aires constituye un modo de reafirmar que el móvil que impulsa su aplicación en este ámbito no escapa a lo general. Ineficacia, exceso de burocracia, fundamentalmente morosidad y otros males que trataron de solucionarse en el servicio de Justicia bonaerense, en octubre de 1998, con la puesta en marcha de la reforma procesal penal (ley 11.922) cuando se pasó al sistema acusatorio y éste a poder de los fiscales y a la oralidad plena. Según el artículo 282 de ese código, la investigación penal preparatoria debe practicarse en un plazo de cuatro meses, a contar de la detención del imputado o de la toma de conocimiento del hecho. Del mismo modo prevé que, si el plazo es insuficiente, el fiscal dispondrá, fundamentadamente, la prórroga en hasta dos meses más, “según las causas de la demora y la naturaleza de la investigación” y en casos excepcionales debidamente justificados por su gravedad o difícil investigación, la prórroga dispuesta podrá ser de hasta seis meses”, precisa el artículo. Demás está decir que la nueva ley de enjuiciamiento no solucionó la profunda crisis que atravesaba el sistema judicial de la provincia. Para paliar el atraso en la resolución de los casos penales se optó también, como salida más cercana por una flexibilización, introduciendo el nuevo instituto como un remedio para posibilitar la descompresión del sistema. Su posterior modificación por, la ley 12.059, introdujo algunos cambios pero mantuvo como límite para admitir la vía abreviada hasta antes que se fije la fecha del debate, permitiendo en su caso, la posibilidad de no celebrar la audiencia oral. El art. 397 considera distintas oportunidades para su trámite. 1). La oportunidad del art. 334, es decir, la requisitoria fiscal de citación a juicio ante el juez de Garantías, en este caso, la conformidad con la calificación y la pena pedida por el fiscal puede ser prestada por el imputado y su defensor hasta la instancia del art. 336, esto es, hasta el término que determina el código (15 días) que tienen los nombrados para oponerse a la elevación o para oponer excepciones. 2). Si en la oportunidad el fiscal no hubiera pedido el trámite del instituto, formulando simplemente la requisitoria, éstos podrán solicitar la abreviación del juicio en el mismo plazo. En este caso, el Juez de Garantías deberá convocar a una audiencia a las partes en forma inmediata y en la cual el fiscal deberá manifestar si acepta la solicitud, debiendo en caso afirmativo, estimar la pena que estime corresponda con la que el imputado y su defensa deberán conformarse. 3). El tercer supuesto está dado por el último párrafo del artículo, en cuanto faculta a las partes a acordar el trámite hasta que se fije la audiencia oral, es decir, hasta que se resuelvan las cuestiones que refiere el art. 338, en la audiencia ante el Tribunal[45] . Éste será el último supuesto para formular la petición de abreviación, pero fundado en razones de economía procesal, puede presentarse directamente ante el tribunal oral, quedando a cargo de éste la resolución. En este supuesto, dictará sentencia sin más trámite en el plazo de cinco días y no podrá imponer una pena superior a la solicitada por el agente fiscal, pudiendo asimismo, absolver al imputado cuando así lo considere. Regirán en lo pertinente, las reglas del veredicto y la sentencia fundada en las constancias obrantes en la investigación preliminar (arts. 398 y 399). No obstante no escapa a agudas críticas. Juzgaron la reforma bonaerense como la transición hacia un sistema más inquisitivo aún que el Nacional, con la investigación a cargo de la policía y la confusión de funciones de dirección de la instrucción y de sentenciante en un solo magistrado, hacia uno netamente acusatorio en el que se quitó al juez de primera instancia la instrucción. Última reforma provincial Ley 13.943, modifica artículos de la Ley 11.922[46] La reforma al Código de Procedimiento Penal y a las leyes 12.061, 5.827 y 13.433, según aquellos que la cuestionan, aparece a resultas de la profunda crisis de inseguridad que afecta a la Provincia, debido principalmente a la presión mediática y a las demandas sociales contra magistrados que han ordenado excarcelaciones anticipadas a delincuentes y que posteriormente aparecieron en los medios como responsables en graves delitos[47]. En términos de oportunidad el proyecto se enmarca en los discursos que procuran resolver la problemática de seguridad a través del endurecimiento del sistema penal. Aparece claro que esta propuesta procura condicionar a los jueces para limitar las excarcelaciones en la provincia de Buenos Aires. Retomando el tema en estudio podemos decir que no son muchas las modificaciones efectuadas en la nueva ley respecto al juicio abreviado, sin duda la más importante es la facultad del MPF de aplicarlo en aquellos casos en los que estimare suficiente la imposición de una pena privativa de la libertad no mayor de quince (15) años[48]. Como podemos observar, de los seis años que autorizaba el código anterior, a partir del primer día de marzo de 2009 se facultará al encargado de la investigación que resuelva; a través de este procedimiento; causas que por la pena en expectativa sean consideradas más graves. A partir de esta modificación son pocos los casos que quedarán en la práctica con posibilidad de obtener una condena por medio de un juicio oral y público. Por otra parte casi la totalidad de los hechos que procese este sistema serán tramitados mediante un procedimiento que, como dijimos, restringe garantías constitucionales y que fueron pensados como mecanismos de excepción. Además considero que la inducción que se realiza desde la nueva ley hacia el trámite abreviado a modo de abarcar una mayor cantidad de casos desnaturaliza aún más el debido proceso. La reforma procesal penal impulsada por el Poder Ejecutivo provincial procura una mayor aceptación del procedimiento a partir de generalizar la prisión preventiva, ello producirá en los hechos una manda para los jueces en la aplicación de la misma como regla, salvo para delitos de escasa lesividad que no amenazan con la imposición de una pena privativa de libertad y para las situaciones enumeradas en el texto del artículo 159[49] del ritual en clara contradicción a la normativa procedimental del Código nacional. En ese ámbito (nacional) puede observarse que cada vez es mayor la necesidad de instituir la prisión preventiva como medida excepcional -no como regla- y que ésta no debe ir más allá del plazo razonable. Recientemente la Cámara Nacional de Casación (30/10/08) en pleno resolvió que no basta en materia de excarcelación o eximición de prisión para su denegación la imposibilidad de futura condena de ejecución condicional, o que pudiere corresponderle al imputado una pena privativa de la libertad superior a ocho años (arts. 316 y 317 del CPPN.), sino que deben valorarse en forma conjunta con otros parámetros tales como los establecidos en el artículo 319 del ordenamiento ritual a los fines de determinar la existencia de riesgo procesal[50]. Se puede apreciar claramente en el fallo que se evaluó la procedencia del beneficio excarcelatorio a la luz de las pautas proporcionadas en los reiterados fallos dictados al respecto por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos[51]. Una interpretación personal de la reforma es que en aras de instalar en la provincia una política criminal que permita alejarse de la crisis de inseguridad y de los repetidos cuestionamientos hacia el Poder Judicial al mismo tiempo procura, limitando las medidas de atenuación de la prisión preventiva y restringiendo todas las excarcelaciones, un acortamiento de los procesos penales operando en exceso el procedimiento en estudio. Por lo pronto entiendo que dilatar el encierro preventivo generará en el corto plazo un notable incremento en la tasa de prisionizados sin condena en las ya superpobladas cárceles bonaerenses. Respecto al análisis del mecanismo, otras reformas a la ley 11.922 se encuentran en los artículos de la ley 13.943 que se mencionan a continuación. a). Desde la perspectiva de la oportunidad se modificó el art. 6 CPP concediendo mayor participación a la víctima y al particular damnificado[52] sin perjuicio que en el párrafo tercero expresa que la participación de éstos no alterará las facultades concedidas por la ley de Ministerio Público al agente fiscal y en el siguiente que: “El ejercicio de la acción no podrá suspenderse, interrumpirse, ni hacerse cesar, excepto en los casos expresamente previstos por la ley” fórmula que contenía el mismo artículo según ley 12.059. Asimismo se mantuvo sin cambios sustanciales el párrafo tercero del art. 56 en cuanto a la posibilidad de aplicar criterios de oportunidad en cualquier etapa del proceso a través del instituto de juicio abreviado. b). El procedimiento mencionado como “salida o acuerdo alternativo” al juicio oral sin duda se trata del instituto en estudio y aparece en la nueva ley en los últimos párrafos del art. 338[53] fijando como límite para realizar la audiencia respectiva ante el Tribunal hasta treinta (30) días antes de la fecha fijada para el mismo como último plazo, ratificando lo determinado en el art. 397 de la ley 13.260. Oportunamente se mencionó la reforma del art. 395, (ley 12.059), respecto a la facultad del fiscal de solicitar el procedimiento en casos que tengan una pena inferior a 15 años. Se introdujo como agregado en el art. 398, según ley 13.260 al final del inc. 1, la cláusula “respetando el principio de congruencia” que considero redundante por cuanto de no observar dicho principio estaría, implícitamente, vulnerando la garantía constitucional y se agregó un último inciso que expresa: “En los casos en que se formule la petición ante un órgano colegiado, actuará un (1) solo Juez, quien deberá sustanciarlo y resolverlo”. c). Por último, se suprimió el segundo párrafo del art. 402 por el cual se facultaba al particular damnificado a interponer recurso casatorio cuando la sentencia resulte absolutoria. Esta incidencia tiene que ver con la supresión del Tribunal de Casación provincial reemplazado por las Cámaras departamentales. Esta iniciativa recibió numerosos reproches de inconstitucionalidad, entre otros, de magistrados, miembros del poder judicial[54] y letrados. Para terminar en el capítulo, el código actual (L. 11.922 y sus modificaciones) determina una sentencia definitiva dictada por los órganos a cargo del juzgamiento y un recurso de casación contra el cual se puede interponer recurso extraordinario ante la SCBA. La reforma (L. 13.943) prevé un recurso de casación denominado ‘recurso contra la sentencia definitiva’ (art. 338) a resolver por la Cámara de Apelación y Garantías Departamental y contra su fallo un recurso extraordinario ante la Suprema Corte provincial. VIIIIX. PROCEDIMIENTO NACIONAL Ley 24.825/97 (art. 431 bis) La introducción del artículo 431 bis en la ley formal nacional trajo consigo, entre otras una renovada discusión sobre la conveniencia de mantener o no el aferramiento al principio de legalidad procesal. A partir del examen de este mecanismo y su semejanza con los ya analizados en el trabajo, intentaré establecer, entre otras premisas, si su puesta en marcha implica necesariamente una imposición cierta de criterios de oportunidad. Veremos por tanto, si a partir de la tensión que se suscita en los sistemas analizados ha merecido un adecuado tratamiento legislativo como modo de verificar si asegura plena operatividad de los derechos fundamentales y a un tiempo concilian el interés público, sin violar las garantías individuales. La ley 24.825 que regula el juicio abreviado en el ámbito nacional también admite la no celebración del juicio oral y público autorizando que el fiscal, el imputado y su defensor, acuerden un tope punitivo máximo a imponer por los jueces, siendo imposible alterar las circunstancias fácticas del caso que se juzga. Es indudable que se trata de una norma de carácter procesal por cuanto se relaciona con el ejercicio de la acción más allá de la ubicación sustantiva del art. 71 CP. Antes de la vigencia de las leyes de sSuspensión de juicio a prueba y la denominada “ley del arrepentido”, el Código Procesal Penal Nacional (art. 408), previó la posibilidad de no producción de la prueba en el debate oral para casos de confesión en juicios correccionales, previo acuerdo entre el juez, el fiscal, la parte querellante y el defensor a través de un procedimiento que tiene algunas afinidades con el juicio abreviado[55]. El artículo presenta como característica para que este mecanismo resulte operativo, la obligatoria presencia del magistrado y del querellante en el acuerdo, y con ello discrepa con la ley 24.825. Tal vez la inclusión del juez en el procedimiento correccional se deba a que la norma exige una verdadera confesión y que ésta sólo puede ser prestada ante aquél. De todas formas no parece razonable tener al juez en el marco del acuerdo por cuanto la norma en estudio especifica que sólo podrán participar en él las partes, su presencia en el convenio puede afectar la transparencia e imparcialidad del mismo. Por otro lado, la ley 24.825 (inc. 3 in fine) determina que si hubiera parte querellante (…), se recabará su opinión la que no será vinculante, considerando al mismo actor pasivo en esta etapa del proceso. El querellante no es sujeto del acuerdo ya que aún su opinión adversa no será vinculante para que el mismo proceda. Éste no podrá agraviarse ante el procedimiento ya que la supresión no modifica el temperamento pues está excluido en la elaboración del trato. Se degrada la intervención de este sujeto eventual y se desoye su precisa ubicación delimitada por Creus al decir que se trata de “(…) una figura impura del querellante conjunto”. Conforme lo dicho en principio resulta de interés para esta investigación establecer un concepto, con aceptación en la doctrina, que sirva de inspiración a la hora de determinar claramente cuáles son los fines del proceso. Éste mayoritariamente expresa que: ‘eEl proceso resulta un medio lógico de discusión de los litigantes que presentan sus pretensiones ante la autoridad jurisdiccional, independiente e imparcial, para verlas resueltas en tiempo razonable, manteniendo la igualdad de armas en un contradictorio dialéctico y pacífico, llevado a cabo a través de una serie lógica y secuencial de instancias bilaterales y de actos concatenados entre sí ante un juzgador’. ÉsteEn atención al mismo, el juez no debe inmiscuirse en la estrategia y objetivos de las partes involucradas para no comprometer tales atributos indispensables. Por lo tanto, ninguna finalidad invocada como superior, por ejemplo, la de alcanzar la verdad real, afianzar la justicia, pacificar los ánimos sobresaltados por el delito y devolver la confianza pública, puede justificar que la autoridad jurisdiccional participe en las razones de oportunidad y conveniencia que inspiran las decisiones de los litigantes, sobrepasando el control de legalidad a su cargo, aunque uno de ellos sea el actor penal público que representa los intereses de la sociedad y de las víctimas. De ser así aceptado se corre riesgo cierto de salirse del acusatorio por confusión de roles, transformando al juez en parte, convirtiéndolo en un sujeto imprevisible en el proceso, dueño de un poder discrecional y amenazador de los derechos de los justiciables, con lo cual tendríamos en el magistrado una figura separada del debido proceso constitucional. Al respecto enseña Ferrajoli que: “(…) la separación de juez y acusación es el más importante de todos los elementos constitutivos del modelo teórico acusatorio, como presupuesto lógico y estructural de todos los demás”. La garantía de la separación (prosigue), “representa por una parte, una condición esencial de la imparcialidad del juez respecto de las partes de la causa y, por otra, un presupuesto de la carga de la imputación y de la prueba, que pesan sobre la acusación, que son las primeras garantías procesales del juicio” [56]. Podremos observar en el trabajo que en la dinámica de este procedimiento consensual en el proceso judicial penal se plantean diversos problemas, también en la función jurisdiccional en su conjunto. En el instituto la actuación del juez y la estrategia de las partes durante el proceso, e incluso las políticas judiciales, pueden comprometer la visión de un adecuado servicio de justicia y de justo respeto por los derechos fundamentales del imputado, reconocidos en la Carta Magna. En las causas de competencia criminal el acuerdo al que refiere el art. 431 bis podrá celebrarse también durante los actos preliminares del juicio, hasta el dictado del decreto de designación de audiencia para el debate (inc. 1). El juez debe elevar la solicitud y la conformidad prestada al tribunal de juicio, el que debe tomar conocimiento de visu del imputado y escucharlo si éste desea hacer alguna manifestación (inc. 3). El tribunal puede rechazar la solicitud por dos motivos, la necesidad de un mejor conocimiento de los hechos o por discrepancia fundada en la calificación legal admitida (inc. 3). Se debe proceder, entonces, según las reglas del procedimiento común y remitir la causa al tribunal que le siga en turno. En ese caso la conformidad prestada por el imputado y su defensor no puede ser tomada como indicio en su contra, ni el pedido de pena formulado vincula al fiscal que actúe en el debate (inc. 4). Si el tribunal no rechaza la solicitud llama a autos para sentencia y debe dictarla en un plazo máximo de diez días (inc. 3). La sentencia deberá fundarse en las pruebas adquiridas durante la instrucción y, en su caso, en la conformidad a la que se refiere el inc. 2, y no podrá imponer una pena superior o más grave que la requerida por el ministerio fiscal (inc. 5). Contra la sentencia impuesta es admisible el recurso de casación, según las disposiciones comunes (inc. 6). Por último, para la aplicación de las reglas del juicio abreviado en supuestos de conexidad de causas, el imputado debe admitir el requerimiento fiscal respecto de todos los delitos allí atribuidos, salvo que se haya dispuesto la separación de oficio. Y cuando hubiera varios imputados en la causa, el juicio abreviado sólo podrá aplicarse si todos ellos prestan su conformidad (inc. 8). En esto se diferencia del procedimiento bonaerense (art. 400 CPP) que se acepta en causas donde existe pluralidad de imputados. En el CPPN el juicio abreviado sólo procede a solicitud de todos los acusados cuando la imputación es subjetivamente múltiple. Se apunta a eliminar el riesgo de que uno de ellos quede a merced de la estipulada imputación, por la menor pena, asegurada a los demás; por otra parte, no resulta aplicable para los delitos de acción privada. Sí en cambio ante penas de reclusión, de inhabilitación y de multa o de penas conjuntas. El sistema tolera tan solo la estructura escrita, viene impuesta para la vista del art. 346 y su contestación (art. 347). Lo mismo ocurre con  la resolución judicial debido a que la forma correspondiente para el rechazo es la de auto, viene precedida por sustanciación previa, de conformidad con lo determinado en los arts. 121 y 122 CPPN. En procura de buen orden en el acuerdo es necesario documentar la decisión a modo de garantizar la seriedad y respeto del mismo. Existe alguna aproximación, en sus causas y efectos, con el régimen del proceso civil que, en el desarrollo de la pretensión cautelar y en consonancia con el reclamo de celeridad, ha llevado a desarrollos teóricos centrados en la eficiencia que culminan con la supresión misma de la idea de proceso en el que se suprimen las etapas que aseguran la audiencia de la contraparte. Como observamos aparece nuevamente en el centro de la escena los fines de política criminal. Ya fue expuesta y fundada mi opinión en el tema en el apartado pertinente del trabajo. Sin perjuicio sintetizo, no debe propiciarse la aplicación del principio de oportunidad en razones de Política Criminal, para ello, es necesario establecer cuál ha de ser la razón fundante que habilite legalmente su implementación en el proceso, entre otras objeciones formuladas sobre el punto. Las mismas se acogen hasta tanto la ley regule completamente la cuestión y con la justificación adecuada a las consecuencias (no violación de los principios de inmediación y publicidad, entre otras garantías), sin perjuicio de las que serán propuestas en este trabajo. Sin duda el tema exige una estricta explicación del deber de la política criminal que descarte la responsabilidad a través de la norma y los fines de éstas son los objetivos de prevención, tanto especial como general. Esta afirmación conlleva a que la utilización del derecho penal debe ser el último medio –última ratio- por parte del Estado frente a las acciones antijurídicas. La investigación en los modelos inquisitivos es una actividad formalizada y ritualista que impide obtener mayores niveles de eficiencia. Produce entre otras desventajas, alargamiento del tiempo de duración de los sumarios y en un nivel importante vulneración de derechos de los justiciables. La concepción del nuevo sistema (acusatorio) pasa necesariamente por darle a la investigación verdadero carácter preparatorio del juicio oral, lo que exige concretarla con mayor rapidez y agilidad que en la actualidad, asumiendo que sus resultados tengan valor informativo y no carácter probatorio. El ámbito en el que se despliega la labor probatoria es el juicio y no la investigación; ésta sólo aporta el material para desarrollar aquél a través de la formulación de la acusación, o para la adopción de otras decisiones jurisdiccionales[57]. Si debemos expresar a qué tipo de proceso responde la ley 23.984 (Código de procedimientos Penal de la Nación), creo advertir que el sistema que consagra no responde en forma pura a ninguno de los modelos antagónicos (inquisitivo – acusatorio), sino a uno que es una especie de ambos, el llamado “mixto” por distintos autores, entre ellos Cafferata Nores. En palabras de este autor se trata de un proceso inquisitivo mitigado que no es un modelo conforme al que impone la Constitución Nacional y al sistema internacional que tutela los derechos humanos con jerarquía constitucional por vía del art. 75 inc. 22 de la misma[58]. Por su parte Binder[59], destaca la necesidad de superar la discusión de modelos más que de problemas y que el eje de ella, en todo caso, más que girar en los tradicionales términos de la clasificación histórica (modelos acusatorio, inquisitivo y mixto), transite sobre la dualidad “proceso penal autoritario” y “proceso penal democrático”. Sin embargo la imposibilidad material de participar eficientemente en todos los asuntos que abordan el procedimiento y llegar al juicio oral refuerza la selectividad del sistema penal, favoreciendo ámbitos donde se puede ejercer el poder penal, en algunos casos con un alto grado de arbitrariedad. Por esta razón la selectividad de casos aparece abandonando el principio de oficiosidad (principio de legalidad procesal) y aceptando con mayor frecuencia los denominados criterios de oportunidad. La doctrina se ha expresado mayoritariamente a favor de su adopción, aún cuando subsistan algunas calificadas opiniones contrarias, entre ellas la de Perfecto Ibáñez quién manteniendo la línea argumental que insistentemente ha pregonado opina: “(…) detrás del principio de legalidad está la aspiración de que toda infracción penal tenga una respuesta adecuada (…) aparte de ser  metodológicamente incorrecto y políticamente inaceptable poner en la cuenta del principio de legalidad lo que sean derivaciones directas de un específico tratamiento del mismo, que podría o incluso debería ser otro”[60], y agrega el autor español: “(…) hay que insistir, ni el principio de obligatoriedad de la acción penal -racionalmente entendido- es la causa de todos los males de aquella (la justicia penal); ni la oportunidad el curasana de los mismos”. Si entendemos que el proceso penal tiene como misión principal facultar la intervención de la ley penal sustantiva ante la comisión de un hecho delictivo y limitar el poder punitivo del Estado en razón de una efectiva vigencia de las garantías individuales, como consecuencia, éste debe restablecer la paz social alterada por el suceso ilícito. A partir de esta [conocida] inferencia algunos operadores judiciales postulan que cualquier posición vinculada con la simplificación del procedimiento penal sólo podría estar orientada a que prevalezca un más adecuado desempeño de la primera función (de la ley penal sustantiva) en perjuicio de la segunda (preservación de las garantías individuales) y que dadas las especiales características del proceso penal, según la ley procesal nacional con la simplificación se mejoraría el cumplimiento de ambas funciones por igual. Esta posición, considero, no puede ser aceptada siquiera como hipótesis por cuanto en apartados precedentes se ha afirmado que no debe comprometer ningún derecho del justiciable y dada la importancia del debate en el marco de un proceso (debido) legal. Además, encuentro respuesta a este pensamiento la opinión de Maier[61] cuando refiere: “Los dos principales problemas que presenta el llamado juicio abreviado desde el punto de vista de un proceso penal respetuoso de las reglas del Estado de derecho: por un lado, la posibilidad de renunciar al juicio previo por parte de los intervinientes en el proceso, teniendo en cuenta que éste es el único procedimiento previsto por nuestra Constitución para autorizar al Estado a aplicar una pena; y, por otro, el dudoso carácter voluntario de la conformidad prestada por el imputado sobre el hecho atribuido, su participación en él, la calificación legal y la pena que se le impondrá”. Sin perjuicio, estimo, que un responsable ejercicio de las agencias del sistema resulta la principal garantía para que no se produzcan aplicaciones incorrectas de la ley en menoscabo de derechos de los imputados. Como vemos la doctrina no es pacífica al momento de valorar este tipo de procedimiento de simplificación, que sí encuentra correspondencia a pesar de la diversidad, respecto del accionar judicial en las disposiciones de estos institutos, en que deberá reflejar proyección procesal de las garantías penales con jerarquía constitucional en virtud de lo establecido en el artículo 31 de la Constitución Nacional. A la sazón la incertidumbre parte de sí; ante el cambio de paradigma que posibilita la negociación en materia penal, con la incorporación de los distintos procedimientos penales; el imputado al negociar el acuerdo realmente dispone de las garantías procesales. Este interrogante conduce a otro aspecto significativo y es si el sistema de abreviación evidencia un régimen normativo coherente con los imperativos constitucionales establecidos en los artículos 18 y 28 de la Constitución Nacional con los principios sentados en el procedimiento penal. De igual manera, si fue advertido por los legisladores al regular el instituto, cuáles fueron los argumentos que se tuvieron en cuenta para fundamentar los mismos. Tratándose de garantías indispensables para que los justiciables puedan conseguir el control de legitimidad y justicia reconocido en normas específicas (entre ellos, del art. 8, ap. 2, p. h) de la Convención Americana de Derechos Humanos y (art. 14, p. 5) del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, al tratarse de atributos que hacen a la Norma fundamental, y encontrarse en juego indirectamente estos resguardos, también nos encontramos frente a cuestiones que deben quedar bajo la facultad (de resguardar y velar) de los jueces. Resulta evidente que la función judicial de individualización de la pena constituye; junto a la apreciación de la prueba y la aplicación del precepto jurídico-penal a los hechos probados; una función autónoma del juez que representa la base de su actividad jurisdiccional de modo que exista coherencia con la función de la pena. Ésta debe observarse en su imposición judicial adecuada al hecho, en correspondencia con la culpabilidad del autor, sin importar si con ella se contribuye o no a la prevención general o a la resocialización del delincuente. La función de la pena debe informar todo el sistema penal de manera tal que de una y otra forma debe influir en su operatividad. En el plano legislativo, la determinación de la función de la pena debe permitir elaborar un juicio crítico sobre su legitimidad en los marcos punitivos previstos en la ley, en síntesis, ésta tampoco se debe propiciar como una discusión teórica sin alguna finalidad práctica. Existen demasiados interrogantes sin una clara respuesta si tenemos en cuenta que el proceso penal en su conjunto siempre afecta derechos del imputado por su mera realización, aún cuando no se dispongan medidas concretas de coerción personal. Del mismo modo pienso que, si la pena a imponer en el juicio abreviado (del CPPN) no resultara privativa de libertad, quizá desaparecería el ingrediente de coacción que limita la libertad de decisión del imputado. De todas formas, no cesaría la principal objeción que se le realiza, esto es, la supresión del debate oral y público, exclusivo procedimiento admitido por la Constitución para la aplicación de la ley penal. El principio del Estado de Derecho reclama que toda la actividad estatal esté regulada (autorizada) por la ley. El ejercicio del poder estatal, que incluye las decisiones de los magistrados, debe tener siempre un fundamento legal que represente el respeto por la preeminencia del Derecho. “La regla de derecho como instrumento limitador del poder del Estado, es ante todo un imperativo para lograr el mayor campo de libertad para las personas (seguridad), en tanto les garantiza que sólo deberán omitir (o ejecutar) aquellas acciones que están prohibidas (o mandadas)” [62] (art. 19 CN). Podemos apreciar que la interpretación dominante en la cuestión se fue distrayendo ante la generalizada aplicación del instituto,, con fundamento en razones de celeridad procesal, olvidando que el requisito indispensable para asegurar la garantía constitucional del  debido proceso legal y el derecho de defensa en juicio es el carácter contradictorio, principio éste de orden supranacional. No pPor ausencia de severos reproches dogmáticos y jurisprudenciales esta práctica continuó resolviéndose con un criterio utilitario, extendiendo más allá de lo razonable los alcances del principio de oportunidad procesal. Determinación de la pena en el marco de los acuerdos Una cuestión que parece no generar mayor discusión en la aplicación del mecanismo es la imposibilidad que tienen fiscal e imputado de pactar la no imposición de consecuencias accesorias que, a veces, sobrevienen como resultado de una condena penal. Varios autores se han expedido sobre esta consecuencia, entre ellos, Bruzzone[63]. Otra, es si el fiscal se encuentra facultado para pactar la ejecución condicional de la pena en los términos del art. 26 CP. Hasta el momento no se han encontrado precedentes en la Casación nacional que se expidan directamente sobre el punto. En la doctrina, Bruzzone[64] y Schiavo[65], se inclinan por la negativa mientras que Cafferata Nores[66] lo considera viable al señalar que el acuerdo de juicio abreviado sólo podrá moverse en el marco de la especie o cantidad de la pena prevista, o en el modo de su ejecución (también D´Albora)[67]. Cualquiera sea el resultado del análisis, es concluyente que no es posible acordar el que no se imponga alguna de las reglas de conducta previstas en el art. 27 bis CP para los casos de penas de ejecución condicional, debido a que no se puede disponer de alternativas que vengan ya impuestas por el legislador. Así lo entendió la Cámara Nacional de Casación Penal al señalar que las disposiciones contenidas en la norma son inherentes a la condena y en forma alguna pueden ser prenda de negociación por las partes[68]. Otro tanto ocurre con la reincidencia cuya declaración, en caso de corresponder, resulta imperativa para el tribunal. La Casación la califica como una consecuencia necesaria de la condena ya que deriva del carácter imperativo del art. 50 CP[69]. Pero las discrepancias aparecen cuando se trata de condiciones o consecuencias de la pena que resultan facultativas para el tribunal. Queda claro entonces, que de acuerdo al art. 431 bis (inc. 5), en la sentencia el tribunal no podrá imponer una pena superior o más grave que la pedida -y acordada- con el agente fiscal. Imponer una pena superior que la pactada de por sí resulta más gravoso para el justiciable. La alternativa va más allá de la mera cuantía punitiva y contiene la calidad de la pena a imponer, y dentro de ésta la posibilidad que resulte de ejecución condicional. En definitiva considero que una vez acordada esta modalidad de ejecución entre el fiscal y el imputado el tribunal deberá respetarla de lo contrario estaría infringiendoría lo dispuesto en el inc. 5 CPPN. XIX. legitimación y facultades DE LA VÍCTIMA Su RrECUPERACIÓN DE LA VÍCTIMA COMO PARTE DEL CONFLICTO PENAL Tengamos en cuenta que el derecho penal rara vez soluciona el conflicto para la víctima ya que el mismo no puede reponer las cosas al estado anterior al hecho que la afectó. En muchos casos el demandante más que buscar la vindicta por un hecho definido busca la resolución rápida de una circunstancia conflictiva que lo afecta a través de la intervención estatal. Frente a ello debe tenerse en cuenta que en interés de lograr  satisfacción para la víctima su cooperación en el juzgamiento, en aras de obtener una pena justa, sólo debe ser admisible a partir de que tenga legitimación para actuar, conjuntamente con el fiscal, en función de control de los actos del proceso. La legislación procesal posee suficientes mecanismos para resguardar los derechos de quienes deseen constituirse en parte querellante de manera tal que cualquier eventual resolución que al respecto adopten los órganos facultados para hacerlo no resulte tardía a sus pretensiones. Por lo demás, la inercia o la desidia del pretenso querellante para exigir su debido reconocimiento para garantizar el ejercicio seguro de sus derechos, o dicho de otro modo, la falta de utilización oportuna de los mecanismos procesales expresamente previstos por la ley ritual, no pueden justificar la indisposición de vías recursivas especiales que el régimen legal no prevé a su favor para tales circunstancias. Simultáneamente considero importante proponer que el desempeño de los organismos de asistencia hacia las víctimas, que deben participar simultáneamente con la intervención judicial o cuando tramite un procedimiento, intervenga en defensa de sus derechos aunque la víctima no desee participar en él. A la vez resulta oportuno señalar que diversas encuestas señalan que la víctima en ocasiones pretende renunciar a la pena a cambio de una reparación. El Estado y su concepción de la pena pública es el que impulsa su imposición todo lo cual parece mostrar que la afirmación de la pena imponiendo su castigo no beneficia a ninguno. Sintetizando, tenemos a la victimología como área decidida a darle una mayor intervención y satisfacción a los intereses de la víctima, se acude al derecho privado para encontrar un método de solucionar los conflictos penales y por último se plantea como propuesta la descriminalización de algunas figuras delictivas, las menos lesivas, en pos de reducir el extenso catálogo de ilícitos. Para lograrlo sostengo que se debe comenzar por aquellas infracciones superfluas, insignificantes o comprendidas en lo que se ha denominado ‘delitos sin víctima’ cuyas conductas podrían ser contenidas mediante el uso de herramientas de derecho privado o administrativo. Cabe aclarar que la estrategia de despenalización no implica dejarlas impunes sino sustituir las sanciones penales por otras formas de control legal no estigmatizantes tales como sanciones administrativas o civiles para luego iniciar procesos de socialización, control de la desviación y privatización de aquellos conflictos. No cabe duda que el derecho penal ha evolucionado y hoy busca la consideración de la víctima, incluso como impulsora del proceso penal. La experiencia nos enseña que no hay mejor investigador que el propio ofendido, que tan solo hay que resguardar que el mismo no se desvíe hacia la venganza, porque entonces estaríamos regresando al ‘ojo por ojo’ del primitivismo penal. Hasta aquí podemos afirmar que si bien el Código Procesal Penal de la Nación autoriza la participación procesal del acusador particular establece para el reconocimiento de tal investidura ciertos requisitos ineludibles, quedando investido de la legitimación procesal activa recién cuando el órgano jurisdiccional ha verificado su concurrencia. Adviértase que ni aun cuando medie una expresa decisión judicial que reconozca su derecho a intervenir en el proceso el acusador particular no adquiere potestades asimilables a las del Ministerio Público Fiscal. X. CONSIDERACIONES FINALES Conclusión Aunque en el trabajo se han plasmado diferentes opiniones en cada capítulo, éstas no implican una solución global a los problemas planteados como hipótesis dado que el tema admite muchas más líneas de investigación. De lo expuesto hasta ahora es posible señalar algunas conclusiones valorativas que sirven como parámetro para determinar con mayor claridad las cuestiones en estudio. Como resultado de la investigación realizada puede observarse que cada vez es mayor la cantidad de países que recurren; como una solución para la sobrecarga de trabajo de los organismos responsables de la persecución penal, la complejización y excesiva duración de los procesos penales; al mecanismo de acuerdos o juicios abreviados tal el caso de nuestro país. Esta modalidad conlleva alteración del sistema de garantías para con el imputado que debe operar (y respetarse) en el proceso penal. La eficacia que se pretende alcanzar con las formas de abreviación o simplificación del proceso debe tener como referente el principio de adecuación: “adecuación del procedimiento a su materia, adecuación de la culpabilidad a la pena y adecuación del servicio al todo social (Estado, autor y víctima), en compendio con el estándar recibido de la Corte Suprema Nacional, el logro, o mejor dicho, la búsqueda de un adecuado servicio de la justicia”[70]. Esta iniciativa impone uniformar reglas precisas en la Constitución, especialmente en las leyes procesales, con el derecho internacional de los Derechos Humanos. La jurisprudencia nacional y extranjera analizada   aporta evidencias que detrás de la razonabilidad que se pretende dar al instituto de juicio abreviado existen criterios procesales ambiguos, duramente cuestionados desde ese ámbito. La exigencia del juicio oral, verdadero protagonista del proceso, regulado en los códigos procesales vigentes, mantiene sólidos pilares que no sólo lo sostienen sino que son los que lo prestigian como mecanismo idóneo para resolver una causa penal y el único previsto por nuestra Constitución facultado para la aplicación de penas. La inmediatez, la concentración en la recepción de la prueba y la publicidad como elementos garantizadores son valiosos principios que no deben ser vulnerados. Cada paso del procedimiento carece de sentido si no se contempla desde la perspectiva que la amenaza de coerción pública conlleva y que en función de ello debe estar presente la exigencia del debido proceso legal. Así como el Estado no ha de ejecutar actos prohibidos por las leyes tampoco debe formalizaradmitir políticas penales que no estén debidamente establecidas en la norma. Por ello me parece penoso el que no se afronte en forma decidida y clara los problemas que trae consigo la crisis instalada en el Poder Judicial a partir de la inflación del derecho penal y la consecuente sobrecarga de trabajo que imposibilita resolver los conflictos en la materia. La búsqueda de soluciones alternativas para intentar paliar sus perniciosos efectos y la variedad de posibilidades para negociar la pena, e incluso la impunidad del acusado, como he señalado en el análisis del instituto, puede llevar a soluciones negativas amparadas en este escenario. En este contexto, el debate sobre el sistema debe estar centrado en el límite último que el ordenamiento jurídico de un Estado esté dispuesto a permitir en términos de eficacia, la práctica de su sistema penal debe resolver que la importancia no radica en la celeridad y economía de recursos, que la negociación de penas por sí misma aporta, sino en reconocer que el juicio sea la regla y no la excepción a la hora de administrar justicia. El discernimiento dominante en la materia ha sido que, mientras el derecho procesal penal admita casos que se resuelvan desde la perspectiva del principio de oportunidad, la constitucionalidad del sistema dependerá de que estos casos sean perfectamente precisados en la ley. Pese a ello, este juicio cuenta con una discreta aprobación por cuanto los tribunales superiores no han ofrecido criterios claros para determinar, exactamente, cuáles son las formas del procedimiento abreviado que representan violación de las formas sustanciales del juicio. Las ambiguas normas que regulan su funcionamiento lesionan el principio de legalidad y permiten que los procedimientos de este carácter se expandan de manera indiscriminada en los procesos provocando que las decisiones de no perseguir una investigación, emanadas del ministerio público, resulten ilimitadas y no controladas eficientemente desde la Jurisdicción. Considero posible la realización de un juicio oral, público -y rápido- para todos los hechos, en la medida que la investigación preliminar deje de ser innecesariamente prolongada. Una herramienta idónea para evitar la dilación y llevar a buen puerto la conclusión del proceso penal estriba en despejar todos los obstáculos procedimentales (rituales), desformalizándola mediante criterios más flexibles, salvaguardando las garantías del debido proceso, la defensa en juicio y el adecuado servicio de justicia, es más, de este modo se reduciría sensiblemente la cantidad de procesados, algunos detenidos sin condena. Para finalizar digo que no cabe duda que será una nueva forma de ver el derecho penal. Entender el delito como un conflicto y no como la mera infracción a una norma; entender a la víctima como real protagonista en el proceso y dejar de ver al Estado como el expropiador del conflicto; entender al poder judicial como parte esencial del Estado y a sus actos como un verdadero servicio en la búsqueda de la paz social; priorizando la prevención a la represión, en definitiva, son todos componentes de un sistema reparador que, de una vez por todas, debe entender un derecho penal mínimo como última incidencia.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-78/abreviacion-en-el-proceso-penal/
O Supremo Tribunal Federal e o prazo razoável da prisão preventiva
Este trabalho visa analisar a aplicação do Princípio da Razoabilidade pelo STF como forma de fixação do tempo da Prisão Preventiva ante a ausência de delimitação legal sobre o tema e impossibilidade de utilização da regra dos 81 dias, em face do advento da reforma processual ocorrida em 2008. Utilizou-se o método dedutivo, pois, a partir de uma visão ampla das prisões preventivas e do Princípio da Razoabilidade, amparada pelo CPP, jurisprudência e súmulas preexistentes, se buscará a obtenção de uma conclusão sobre o tempo da prisão cautelar. Observou-se que o STF já vem aplicando o Princípio da Razoabilidade em suas decisões como fator de limitação do tempo da medida cautelar, utilizando para tanto critérios específicos que se coadunam com aqueles citados pela doutrina e jurisprudência internacional. Faz-se necessário a utilização do Princípio da Razoabilidade como forma de limitação do arbítrio da fixação da medida cautelar, impedindo a ocorrência de constrangimento ilegal ao acusado.
Direito Processual Penal
Introdução As medidas cautelares no Processo Penal brasileiro possuem como característica básica a garantia do bom andamento do processo, objetivando que, ao final, haja uma sentença válida e efetiva, passível de produzir efeitos. Assim, a tutela cautelar (lato sensu) desempenha um papel fundamental, pois é um dos principais meios utilizados para o alcance de uma eficácia prática da sentença final, possibilitando que o processo atinja todos os escopos (jurídicos, políticos, sociais) para os quais foi originado. Entre tais medidas cautelares, as de caráter pessoal detêm características singulares, haja vista versarem sobre a garantia constitucional de liberdade do indivíduo antes de uma sentença condenatória transitada em julgado. Quanto às medidas cautelares pessoais, uma tem sido cada vez mais utilizada em nosso ordenamento jurídico: a prisão preventiva. Trata-se da prisão cautelar mais tradicional do Processo Penal brasileiro, tendo seus requisitos estabelecidos no art. 312 do Código de Processo Penal. Apesar da taxatividade de tal previsão legal, situação diversa ocorre quando se parte para a análise do prazo que deve ser estabelecido para tal medida. Ao verificar-se o texto legal, percebe-se uma omissão do legislador em relação à fixação do tempo que tal medida cautelar deve possuir, causando dúvidas sobre quando esta medida passa a ser desproporcional, tornando-se verdadeira antecipação de pena, situação que vai de encontro à previsão constitucional de duração razoável do processo. No intuito de solucionar essa “brecha” legal, a jurisprudência pátria passou a estabelecer o prazo de 81 dias para a conclusão da instrução criminal e, conseqüentemente, para o fim da prisão cautelar, haja vista a necessidade de que ao final deste prazo houvesse a prolação de sentença penal.  Ainda, com o mesmo objetivo de sanar a omissão legislativa, o consolidou-se entendimento sobre o tema através de algumas súmulas (Súmulas nº 21, 52 e 64 do STJ), todas no intuito de afastar argumentos sobre o excesso de prazo no processo penal. Apesar das discussões que o entendimento jurisprudencial e as súmulas causavam sobre a questão, sobre a possibilidade de avaliar-se o excesso de prazo nas prisões cautelares e, conseqüentemente, sobre um possível constrangimento ilegal do acusado, o prazo “razoável” da prisão cautelar parecia já estabelecido e pacificado através dos preceitos supra mencionados. Entretanto, a reforma processual penal ocorrida em agosto de 2008 parece ter trazido novo fôlego à discussão sobre o excesso de prazo das prisões cautelares, em especial da prisão preventiva. Isso porque, com o advento da reforma processual, novos prazos foram estabelecidos para cumprimento dos procedimentos, não havendo mais qualquer justificativa para aplicação dos 81 dias anteriormente estabelecidos, haja vista tal prazo basear-se no tempo estabelecido para os procedimentos antigos. Dessa forma, com a reforma do Processo Penal Brasileiro, novamente vem à tona a discussão sobre o tempo das prisões cautelares, em especial da prisão preventiva, bem como a reiterada omissão do legislador em estabelecer um prazo que possa ser considerado razoável para imposição da medida cautelar que restringe a liberdade do indivíduo. Diante disso, através da percepção da inexistência atual de regramento ou entendimento jurisprudencial que determine o que venha a ser o excesso de prazo da prisão preventiva, a única saída passa a ser analisar o Princípio da Razoabilidade como fator determinante sobre o tempo de tal medida cautelar, verificando sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal e, conseqüentemente, protetor do Princípio Constitucional de duração razoável do processo e das medidas cautelares. Assim, faz-se necessária uma análise crítica sobre o Princípio da Razoabilidade como fator limitador do prazo da prisão preventiva, já que tal tornou-se a única forma de impedir a ocorrência do excesso de prazo da medida cautelar no processo penal, haja vista a reforma processual penal e, portanto, a inaplicabilidade dos antigos entendimentos jurisprudenciais e súmulas sobre o tema. Nesse sentido, é importante verificar decisões  do Supremo Tribunal Federal sobre o excesso de prazo a partir dessa nova realidade que se apresenta, analisando a  possibilidade de aplicação do Princípio da Razoabilidade como obstáculo para ocorrência de excesso de prazo na fixação das prisões preventivas e constrangimento ilegal do acusado.  1 A Tutela Cautelar Pessoal no Processo penal brasileiro A tutela cautelar processual penal, apesar de se inserir no processo penal, difere deste na medida em que se destina a prevenir um dano ou prejuízo que adviria da demora da prestação jurisdicional. Tal medida desempenha um papel fundamental ao longo da persecução penal, pois é um dos principais meios utilizados para o alcance de uma eficácia prática da sentença final, possibilitando que o processo atinja todos os escopos jurídicos, políticos e sociais para os quais foi originado. Entre as medidas cautelares previstas no CPP, as de caráter pessoal detêm características singulares, haja vista versarem sobre a garantia constitucional de liberdade do indivíduo antes de uma sentença condenatória transitada em julgado. Destacam-se entre as medidas cautelares pessoais as variadas formas de prisão cautelar, como a prisão em flagrante, prisão temporária e a prisão preventiva. Esta última chama a atenção na medida em que tem sido sobejamente utilizada no ordenamento jurídico pátrio, consoante salienta Alberto Martín Binder (apud, GOMES, 2007, p. 64): “[…] na realidade de nossos sistemas processuais, a prisão preventiva é uma medida habitual, aplicada com um alto grau de discricionariedade e constitui, em muitos casos, a verdadeira pena. Este fenômeno é denominado de “os processos sem condenação” e sua proporção na América Latina está entre 60% e 90% do total das pessoas presas.” A partir da percepção do uso corriqueiro da medida cautelar preventiva, faz-se necessário melhor analisar tal medida, pois, para Luigi Ferrajoli (2006, p. 711), “por causa de seus pressupostos, de sua modalidade e da sua dimensão assumida, tornou-se o sinal mais vistoso da crise da jurisdição, […] e, sobretudo, da sua degeneração no sentido diretamente punitivo”. Segundo Marcellus Polastri Lima (2005, p. 259) “será indispensável para a decretação da prisão preventiva a identificação de um dos motivos do art. 312 do CPP, a saber: garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e assegurar a aplicação da Lei Penal.” Tais motivos elencados no art. 312 do CPP são considerados os requisitos taxativos para aplicação de tal medida cautelar. Assim, tem-se nesse dispositivo legal, “[…] os dois pressupostos de toda prisão cautelar: o fumus boni iuris e o periculum libertatis. A fumaça do bom direito é exigência da segunda parte do referido dispositivo, quando prevê, para a decretação da prisão preventiva, a existência do crime e indício suficiente de autoria. O periculum encontra-se previsto nas quatro hipóteses autorizadoras da prisão constantes na parte inicial do mencionado artigo” (FERNANDES, 2005, p. 315). Verificados a existência do fumus boni iuris no caso concreto, há de se verificar posteriormente os fundamentos da prisão preventiva, elencados na parte inicial do dispositivo do art. 312 do CPP, demonstrando o periculum libertatis. Quanto ao primeiro requisito existente, qual seja, a garantia da ordem pública, explica o autor Marcellus Polastri Lima (2005, p. 260) tratar-se de “necessidade de preservação da boa convivência social”. Para Antonio Scarance Fernandes (2005, p. 316), “a necessidade da prisão por garantia da ordem pública revela-se, essencialmente, nos casos em que o acusado vem reiterando a ofensa à ordem constituída”. O segundo fundamento previsto no art. 312 do CPP, a garantia da ordem econômica, é enfatizada como “uma redundância, uma vez que atingida a ordem econômica, também estará atingida a ordem pública” (LIMA, 2005, p. 261), mesmo posicionamento possui Fernando Capez, que entende ser tal fundamento “uma repetição” (CAPEZ, 2007, p. 269). Quanto ao requisito da Conveniência da instrução criminal, deve tal ser analisado frente a “possibilitar o bom andamento da instrução criminal, e não uma mera “conveniência”, consoante a letra da lei” (LIMA, 2005, p. 261). Antonio Scarance Fernandes (2005, p. 316) entende que a prisão por conveniência da instrução criminal “serve para garantir a prova”, sendo exemplos típicos dessa hipótese “a prisão porque há ameaça a testemunhas ou porque pode o acusado fazer desaparecer importantes fontes de prova”. Por fim, entende-se por assegurar a aplicação da Lei Penal, “o periculum in mora, pois em casos que o agente visa se furtar a cumprir futura sanção penal” (LIMA, 2005, p. 261). Ainda, “a custódia para assegurar a aplicação da lei penal normalmente é utilizada para evitar a fuga, o desaparecimento do acusado” (FERNANDES, 2005, p. 316). 2 Os Princípios norteadores da Prisão Preventiva Além das hipóteses de cabimento e dos fundamentos que devem necessariamente ser analisados, outro fator de extrema relevância quando da análise da decretação da prisão preventiva são os princípios norteadores de tal medida. Segundo entendimento de Mônica Ovinski de Camargo (2005, p. 258), os traços da excepcionalidade, provisoriedade e proporcionalidade devem estar presentes para a fixação da medida cautelar, “os quais atuam como limites legais para sua atuação”. Segundo leciona a autora, o princípio da excepcionalidade determina que “tal medida deve ser fixada como exceção à regra geral de manutenção de todos os direitos que pertencem ao inocente” (CAMARGO, 2005, p. 258). A partir desse pressuposto constitucional, nenhuma medida restritiva da liberdade do indivíduo deve ser tomada senão em caráter excepcional, quando devidamente evidenciados os fundamentos justificáveis para tal ordem. Em relação ao princípio da proporcionalidade, entende a autora que este “[…] oferece regras para que o magistrado se oriente no momento de julgar a adoção da medida excepcional.  A proporcionalidade atua no momento em que o juiz vai sopesar todas as razões e provas que recomendam a aplicação da medida cautelar, em confronto com aquelas que argumentam sobre suas consequências” (CAMARGO, 2005, p. 259). Assim, deve-se sempre antes de aplicar a prisão preventiva verificar se esta é proporcional ao caso concreto, sob pena de tornar-se uma medida mais gravosa do que aquela que receberia o acusado em caso de uma sentença condenatória final, o que vai de encontro à característica principal da medida cautelar, qual seja, não ser uma sanção, tampouco reprimenda penal. Por fim, quando ao princípio da provisoriedade, assevera-se que […] o critério da provisoriedade designa que a medida cautelar é instrumental e que, como tal, serve para alcançar determinado objetivo no decorrer do processo criminal, podendo ser conferida ou retirada a qualquer momento, de acordo com a sorte dos motivos que a ensejarem (CAMARGO, 2005, p. 259). O que se depreende destes ensinamentos é a importância de se fixar um termo máximo para a duração da medida cautelar, sob pena dela perder esse caráter, tornando-se “duradoura demais, firmando-se como inescusável execução antecipada de pena” (CAMARGO, 2005, p. 258). Nesse sentido, deve-se ter em mente que uma prisão com excesso de prazo não é provisória nem proporcional, gerando, assim, um constrangimento ilegal, fato que a Constituição Federal rechaça, já que garante a duração razoável do processo ao acusado. 3 O excesso de prazo da Prisão Preventiva e a reforma processual penal As Leis n.º 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008 alteraram substancialmente o Processo Penal brasileiro. Com elas, novos procedimentos foram estabelecidos e, conseqüentemente, novos prazos vieram à tona. Entretanto, para a compreensão do tema sobre o tempo da prisão preventiva após as reformas advindas, necessário faz-se analisar como era a situação anterior, ou seja, de que forma se estabelecia o prazo razoável de tal medida cautelar nos termos do antigo Código de Processo Penal. Apesar de haver previsão legal sobre os fundamentos da prisão preventiva (já elencados), situação diversa ocorria quanto ao prazo dessa medida. Quanto a tal situação, assevera Frederico Abrahão de Oliveira (1998, p. 93) que “à Prisão Preventiva não são estipulados prazos, nem momentos precisos para decretação”. Leciona Antonio Scarance Fernandes (2005, p. 125) que, para combater o excesso de prisão, invocava-se o art. 648, II Código de Processo Penal, “que considera constituir constrangimento ilegal, sanável por Habeas corpus, a permanência de alguém preso por mais tempo do que determina a lei”. Posteriormente, entretanto, com o advento da Lei n.º 9.303/96 (Lei do Crime Organizado), determinou-se que o prazo limite para a manutenção do indivíduo em prisão cautelar seria de 81 dias, passando-se a utilizar tal prazo também em outros casos de processos por crimes de reclusão por construção jurisprudencial, no intuito de suprir a lacuna legal (FERNANDES, 2005, p. 125). Com o mesmo objetivo de sanar a omissão legislativa, o STJ consolidou seu entendimento sobre o tema através de algumas súmulas, todas no intuito de afastar argumentos sobre o excesso de prazo no processo penal; Súmula n.º 21 do STJ: “Com a pronúncia resta superado o alegado constrangimento ilegal por excesso de prazo na instrução”; Súmula n° 52 do STJ: “Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo; “Súmula nº 64-STJ: “Não há constrangimento ilegal por excesso de prazo se a demora, em feito complexo, decorre de requerimentos da própria defesa”. Entretanto, entendimentos jurisprudenciais passaram a admitir exceções a essa regra, tornando-se os oitenta e um dias “somente um marco para a verificação do excesso. A sua superação não traduzia necessariamente constrangimento ilegal, o qual deveria ser verificado em cada processo”. (FERNANDES, 2005, p. 125). Nesse mesmo sentido já lecionada Antonio Scarance Fernandes (2005, p. 127) ao afirmar que “há, contudo, necessidade de que se evolua, no plano constitucional e legislativo, para fixação de regras mais claras a respeito do tempo de prisão cautelar, evitando-se excessos injustificáveis”.  Apesar das críticas sobre a omissão legislativa em fixar um prazo legal como sendo aquele razoável para a fixação da prisão preventiva, a reforma processual penal advinda em agosto de 2008 novamente silenciou quanto a tal matéria, permanecendo a ausência de previsão legal sobre o tempo da prisão cautelar. Ainda, com o advento da reforma processual, além da percepção de que se permanece sem um limite legal para tal medida cautelar, constata-se também que o prazo de 81 dias já não pode mais ser considerado como limitador de tal medida, haja vista as alterações ocorridas nos procedimentos, que necessariamente alteraram os prazos existentes no Processo Penal. Veja-se que os procedimentos foram alterados visando a celeridade processual, a fim de fazer valer o princípio constitucional da razoável duração do processo. Não obstante a reiterada omissão legislativa no que diz respeito à fixação do tempo da prisão preventiva, parece óbvio que a garantia de um prazo razoável a tal medida cautelar merece uma melhor análise, pois “[…] ninguém pode ser mantido preso, durante o processo, além do prazo razoável, seja ele definido por lei, seja ele alcançado por critério de ponderação dos interesses postos em confronto dialético. É dizer, todos têm o direito de ser julgados em prazo razoável e também o direito de não serem mantidos presos por prazo irrazoável” (CRUZ, 2006, p.107). Sobre tal matéria, o Supremo Tribunal Federal também se posicionou, asseverando que: “Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar, considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu. O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei.  A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência. – O indiciado e o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável(e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes” (BRASIL, 2008, s.p.). Em face dessa necessidade imperiosa de delimitar um prazo máximo para a prisão preventiva, situação que a reforma processual penal não resolveu, surge como fonte para análise do tempo de tal medida cautelar o Princípio da Razoabilidade, o qual será analisado a seguir. 4 O Princípio da Razoabilidade e seus contornos no processo penal A idéia de “prazo razoável” surgiu, inicialmente, nas declarações internacionais de direitos humanos (LOPES JR.;BADARÓ,2009, p.19); a Convenção de Roma, de 1950, foi a primeira a expor em seu texto legal a preocupação com a duração razoável do processo, em seu art. 6º, § 1º, o qual estabelece: “Toda pessoa tem o direito a que sua causa seja ouvida com justiça, publicamente, e dentro de uma prazo razoável […]”  (Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, 1950,s.p.). No art. 5º, § 3º da mesma declaração internacional, preceituou-se sobre a aplicação de limitação temporal, mais especificamente para as hipóteses de prisão cautelar:  “Toda pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1º, c, do presente artigo, deve ser trazida prontamente perante um juiz ou um outro magistrado autorizado pela lei a exercer a função judiciária, e tem o direito de ser julgado em um prazo razoável ou de ser posto em liberdade durante a instrução. O desencarceramento pode ser subordinado a uma garantia que assegure o comparecimento da pessoa à audiência” (Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, 1950,s.p.). Posteriormente, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, em seu art. 9º, n.º 3, passou a determinar que, “[…] qualquer pessoa acusada de um crime, quer esteja presa cautelarmente, quer esteja respondendo ao processo em liberdade, tem direito a ser julgada sem dilações indevidas. Porém, se o acusado estiver preso, tem o direito de ser julgado em um prazo razoável, sob pena de ser posto em liberdade’ (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, 1966, s.p.). Ainda, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em San Jose da Costa Rica, de 22 de dezembro de 1969, também trouxe regramentos sobre o tema do tempo razoável (LOPES JR.; BADARÓ, 2009). A partir da incorporação do Pacto de São José da Costa Rica[1] no ordenamento jurídico, o direito fundamental a um processo em prazo razoável passou a integrar o direito brasileiro.   No intuito de enfatizar tal preceito, a Emenda Constitucional nº. 45 acrescentou formalmente ao inciso LXXVIII do art. 5º da Carta Magna[2] “o direito a uma duração razoável do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação entre os direitos e garantias fundamentais constitucionais” (DIAS, 2007, p. 235). Apesar da referência constitucional ser direcionada para a duração processual como um todo, assevera Rogério Machado Cruz (2006, p. 107) que através desse preceito pode-se concluir acerca da garantia de que, “[…] ninguém possa ser mantido preso, durante o processo, além do prazo razoável, seja ele definido em lei, seja ele alcançado por critério de ponderação dos interesses postos em confronto dialético. É dizer, todos têm o direito de ser julgado em prazo razoável e também o direito de não serem mantidos presos por prazo irrazoável.” Não obstante tal preceito, o Princípio da Razoabilidade também se evidencia no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III da CF), dos direitos fundamentais que expressam vedação constitucional à tortura e tratamento desumano ou degradante (art. 5º, inciso III da CF), da garantia do devido processo legal (art. 5º, inciso LVI da CF) e do direito do contraditório e da ampla defesa previsto no art. 5º, inciso LV da Constituição Federal (STOCK, 2006, p. 147). Aury Lopes Jr. e Gustavo Badaró (2009, p. 38) chamam atenção para o fato de que o dispositivo constitucional brasileiro o qual prevê o prazo razoável, apesar de se embasar na Convenção Americana de Direitos Humanos, “não prevê, de forma expressa, um direito equivalente ao assegurado no artigo da CADH, qual seja, o direito de o acusado preso ser colocado em liberdade, se a duração do processo excede ao prazo razoável”. E seguem os autores, referindo que, ainda que não haja esse entendimento na Carta Magna, “pela conjugação do inc. LXXVIII com o inc. LXV, pode se concluir que existe de forma explícita no ordenamento jurídico o direito de o acusado ter sua prisão imediatamente relaxada se a duração do processo penal exceder ao prazo razoável” (LOPES JR.; BADARÓ, 2009, p. 38). Existem alguns fundamentos que justificam a aplicação do princípio da razoabilidade no processo penal, quais sejam: a) respeito à dignidade do acusado (pois um processo com dilações indevidas causa “altíssimos custos econômicos, físicos, psíquicos, familiares e sociais” ao réu); b) interesse probatório (na medida em que “o tempo que passa é a prova que se esvai”); c) interesse coletivo (pois a sociedade possui interesse no “correto funcionamento das instituições”) e; d) confiança na capacidade da justiça (de “resolver os assuntos que a ela são levados, no prazo legalmente considerado como adequado e razoável”- LOPES JR., 2007, p. 144).  Quanto ao conceito de prazo razoável, entende-se que este “parte daqueles conceitos tidos como vagos ou indeterminados do Código de Processo Penal e Penal” (apud, GIORGIS, 2004, p. 112). Assim, tal expressão depende de um conceito valorativo (seja ele ético, moral, social, econômico etc.), devendo ser atribuído pelo magistrado no momento de julgar o caso fático (apud, GIORGIS, 2004, p. 119). Para Aury Lopes Jr. e Gustavo Badaró (2009, p. 44) a idéia de razoabilidade “é aquela relativa à necessidade de uma justiça tempestiva, como um dos elementos necessários para se atingir o justo processo”. Segundo assevera Bárbara Sordi Stock (2006, p. 148), a legislação brasileira não prevê limite temporal à duração do processo penal, tampouco as Cortes Internacionais, situação que dificulta a definição de “prazo razoável”. Entretanto, essa ausência de fixação legal acerca dos prazos máximos para duração do processo e da medida cautelar preventiva no ordenamento jurídico brasileiro surge em decorrência da opção do legislador de utilizar-se da “doutrina do não-prazo”, também utilizada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos e Convenção Americana de Direitos Humanos (LOPES JR. 2007, p. 153). Na opinião de Aury Lopes Jr. e Gustavo Badaró (2009, p. 41), tal doutrina “deixa amplo espaço discricionário para avaliação segundo as circunstâncias do caso e o sentir do julgador”. A partir dessa doutrina, passou-se a analisar-se alguns critérios para aferição da razoabilidade da prisão cautelar, haja vista inexistência de previsão legal. A Corte Européia, diante da análise de casos que versavam sobre a duração razoável do processo, determinou critérios para aferição do prazo, denominado “teoria dos três critérios”, a saber: “a) complexidade do caso[3]; b) a atividade processual do interessado (imputado)[4]; c) a conduta das autoridades judiciárias[5]”(LOPES JR.;BADARÓ,2009,p.40). Percebe-se, portanto, que a ausência de fixação legal do prazo razoável da medida cautelar preventiva deixa nas mãos do julgador o poder de delimitar o tempo dessa prisão, levando em conta requisitos eleitos conforme seu entendimento para dirimir a questão, não havendo qualquer parâmetro legal para análise da razoabilidade da medida. Apesar dessa inexistência legal de fixação do prazo razoável da prisão cautelar, é inegável a necessidade de imposição de limites para tal medida, sob pena de causar constrangimento ilegal ao acusado, violação de suas garantias fundamentais, bem como tornar a prisão inócua para o processo, perdendo, assim, sua característica principal de ser medida instrumental para o bom desenvolvimento da lide processual. Mandel Martins Dias (2007, p. 230) informa que “a longa duração da relação jurídica processual representa prejuízos bastante indesejáveis, porquanto faz perdurarem os próprios e repudiáveis fatores anti-sociais que levaram o Estado a assumir o fado de resolver os conflitos interindividuais da sociedade”. Apesar de tais posicionamentos, a reforma processual penal advinda em agosto de 2008 permaneceu utilizando-se do critério do não-prazo, omitindo-se em relação à fixação de limites para o tempo da prisão cautelar preventiva. A decisão do legislador em não delimitar prazos legais para o tempo de duração da prisão preventiva vai ao encontro da doutrina que entende pela desnecessidade desse marco legal. A indeterminação do tempo da prisão cautelar pessoal preventiva, mesmo após a reforma do CPP, corrobora a necessidade de utilização do princípio da Razoabilidade como fator determinante para estabelecer os contornos de duração daquela medida. Conforme já verificado neste trabalho, atualmente não há qualquer critério para limitar o tempo da medida cautelar, havendo a imperiosidade de análise da razoabilidade como fixador do prazo máximo de duração da prisão preventiva e conseqüente verificação de constrangimento ilegal em face do acusado encarcerado. Verificando a necessidade de análise do Princípio da Razoabilidade frente a qualquer situação fática que envolva a prisão cautelar do indivíduo, parece claro que a partir da reforma do Código de Processo penal, omissão do legislador em tomar para si a responsabilidade de determinar o prazo da medida cautelar com a reforma processual e sucessiva queda da doutrina dos 81 dias, o princípio constitucional recebe um status ainda maior, deixando de ser apenas um norteador das decisões jurisprudenciais e passando a ser o único meio de fixação do tempo da prisão preventiva e delimitação do excesso de prazo de tal medida. Em face de tal conclusão, faz-se necessário analisar de que forma o STF, instância máxima jurisdicional, responsável por fazer valer os preceitos constitucionais, o qual analisa diariamente pleitos de liberdade daqueles que se vêem presos cautelarmente e que suscitam a análise da razoabilidade dessas medidas, vem aplicando o Princípio do Prazo Razoável em suas decisões, o que se fará a seguir. 5 O posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o prazo razoável da prisão preventiva Conforme já analisado, o prazo da prisão preventiva permanece como uma incógnita em nosso ordenamento jurídico, tendo se tornado questão ainda mais controversa a partir da reforma do Código de Processo Penal, a qual alterou os prazos dos procedimentos e, conseqüentemente, impossibilitou a aplicação da doutrina dos “81 dias”, anteriormente pacificada pelo Supremo Tribunal Federal através de súmulas. A importância do posicionamento do STF acerca do tema desse trabalho se perfectibiliza na medida em que o Princípio da Razoabilidade, desde a emenda constitucional n.º 45, recebeu status constitucional, tornando o prazo razoável não apenas um instrumento para delinear o tempo da prisão cautelar preventiva em face da omissão legislativa de fixar parâmetros legais, mas sim, uma garantia constitucional de respeito ao acusado no processo penal que deve, obrigatoriamente, ser assegurado. Em face de tal conclusão, faz-se necessário analisar de que forma o Supremo Tribunal Federal vem aplicando o Princípio da Razoabilidade em suas decisões, o que se fará a seguir. Salienta-se que o trabalho se propôs a analisar algumas decisões emanadas pelo STF, as quais versaram sobre o excesso de prazo da prisão preventiva. Nesse sentido, nove decisões foram verificadas, tendo todas elas ressaltado os três critérios anteriormente analisados ao longo do trabalho (complexidade do caso, conduta das autoridades judiciárias e conduta do acusado e defesa e ao longo do feito) no intuito de embasar a utilização do Princípio da Razoabilidade para solucionar os casos concretos enfrentados; todas as decisões analisadas foram colegiadas e unânimes, ou seja, não houve divergência entre os julgadores no momento de optar pelos critérios subjetivos para analisar a existência ou não do excesso de prazo da prisão cautelar preventiva.  5.1 Os requisitos analisados pelo STF para definir o Prazo razoável Em análise de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o excesso de prazo da Prisão Preventiva, percebe-se que alguns requisitos são constantemente trazidos à tona no momento de definir a razoabilidade da medida, trazendo fundamentos objetivos para determinar a limitação o tempo razoável da prisão preventiva. Tais fundamentos são aqueles já referidos ao longo do trabalho (complexidade do caso, atividade processual do interessado e conduta das autoridades judiciárias). Quanto a complexidade da causa, em decisão de Habeas Corpus n.º 94486 o STF determinou que “afigura-se razoável o prazo para o encerramento da instrução criminal diante da complexidade da causa e da respectiva instrução probatória” (BRASIL, 2008, s.p.). Em outra decisão, o Tribunal declinou haver no processo “registro de elementos nos autos da ação penal de origem que evidenciam a complexidade do processo, com pluralidade de réus (além do paciente), defensores e testemunhas” (BRASIL, 2008, s.p.). Em julgamento de Habeas Corpus nº 95045, a Ministra relatora Ellen Gracie, além de asseverar sobre a importância da análise principiológica sobre o tempo da prisão preventiva, também informou acerca da complexidade da instrução criminal como justificativa para determinar o prazo razoável da medida cautelar: DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PROCESSUAL. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO. DENEGAÇÃO. (…) A razoável duração do processo (CF, art. 5°, LXXVIII), logicamente, deve ser harmonizada com outros princípios e valores constitucionalmente adotados no Direito brasileiro, não podendo ser considerada de maneira isolada e descontextualizada do caso relacionado à lide penal que se instaurou a partir da prática dos ilícitos. A prisão cautelar do paciente pode se justificar, ainda que não encerrada a instrução criminal, com fundamento no parâmetro da razoabilidade em se tratando de instrução criminal de caráter complexo. Habeas corpus não conhecido” (BRASIL, 2008, s.p.). No mesmo sentido foi o posicionamento em decisão de outro Habeas Corpus pelo STF, ao afirmar que “[…]excesso de prazo não configurado. Complexidade da causa. Quatorze acusados. Está presente a complexidade do feito, que envolve 14 acusados, bem como a expedição de cartas precatórias e a oitiva de elevado número de testemunhas, o que afasta a alegação de excesso de prazo. Ordem conhecida em parte e, nessa parte, denegada” (BRASIL, 2009, s.p.). Outro dado bastante referido pelos ministros do STF para verificar a razoabilidade da prisão preventiva é a conduta das partes no processo. Em decisão de Habeas Corpus julgada pelo Relator Ministro Joaquim Barbosa, a conduta dos réus no sentido de intimidar as vítimas do delito justificaram a permanência da medida cautelar como sendo razoável, afirmando que: “A custódia cautelar foi decretada por se ter constatado, em audiência, que as testemunhas poderiam deixar de colaborar com a Justiça em razão do medo que os réus, em liberdade, lhes provocam. Periculosidade também destacada na decisão que decretou a custódia, considerando indícios de que os pacientes seriam pistoleiros profissionais. A diversidade entre as situações dos pacientes e a da co-ré beneficiada por alvará de soltura impede a extensão do writ” (BRASIL, 2008, s.p.). No mesmo sentido posicionou-se o Ministro Marco Aurélio, alegando que o tempo da prisão cautelar do acusado não se configurava irrazoável em decorrência do comportamento do próprio réu, o qual, utilizando-se de recursos processuais, causava a demora da prestação jurisdicional: “Operada a prisão preventiva, releva-se o tempo anterior à sentença de pronúncia, se, depois desta, a demora decorre do exercício do direito do réu de, retardando a realização do júri, insistir-lhe no reexame mediante recurso em sentido estrito” (BRASIL, 2008, s.p.). O mesmo argumento também foi utilizado para conceder a liberdade ao réu que, conforme entendimento, não havia contribuído para a demora de seu julgamento: “a duração prolongada e abusiva da prisão cautelar, assim entendida a demora não razoável, sem culpa do réu, nem julgamento da causa, ofende o postulado da dignidade da pessoa humana e, como tal, consubstancia constrangimento ilegal” (BRASIL, 2008, s.p.). O outro requisito encontrado nas decisões do Supremo Tribunal Federal para suprir a ausência de prazo razoável da prisão preventiva é a gravidade do delito o qual versa o processo; tal fundamento se coaduna com o critério da complexidade da causa, bastante presente nos julgados que analisam o tempo da prisão preventiva. Em decisão do Habeas Corpus nº 93523, afirmou-se que “a gravidade da imputação não obsta o direito subjetivo à razoável duração do processo (inciso LXXVIII do art. 5º da CF – BRASIL, 2008, s.p.). Em outra decisão, asseverou-se que “a circunstância de o paciente e outros responderem pela prática de quatro homicídios qualificados [chacina] torna razoável a dilação da instrução criminal para além do prazo legalmente estipulado” (BRASIL, 2007, s.p.). Dessa forma, verifica-se que a omissão do legislador em fixar um limite razoável para a prisão cautelar preventiva trouxe o surgimento da construção de uma outra forma de delimitação do tempo da medida cautelar, qual seja, a verificação de determinadas circunstâncias presentes no processo que, aparentemente, são capazes de fornecer subsídios aos julgadores para que supram a lacuna legislativa. As características eleitas pelo Supremo Tribunal Federal se coadunam com aquelas trazidas pela doutrina e jurisprudência internacional, sendo, sem dúvida, os critérios que, ante a ausência de fixação legal, têm sido levadas em especial consideração para análise do tempo da prisão preventiva, haja vista a importância jurisdicional do STF, tendo suas decisões enorme repercussão em todos os âmbitos do Poder Judiciário. 6 Conclusão A partir da análise de inexistência atual de regramento ou entendimento jurisprudencial que determine o que venha a ser o excesso de prazo da prisão preventiva, parece claro que a solução mais acertada é verificar a aplicabilidade do Princípio da Razoabilidade como fixador do tempo da Prisão Preventiva pelo Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal e, conseqüentemente, protetor do princípio constitucional de duração razoável do processo e das medidas cautelares. Após verificar vários julgados, percebe-se que o STF vem há tempos se posicionando no sentido de analisar o Princípio da Razoabilidade diante dos casos concretos como forma de fixação do tempo da medida cautelar. Não obstante, com a reforma do Código de Processo penal e conseqüente queda da doutrina dos 81 dias, o princípio constitucional recebe um status ainda maior, deixando de ser apenas um norteador das decisões do STF e passando a ser o único meio de fixação do tempo da prisão preventiva e delimitação do excesso de prazo de tal medida. Ante as decisões prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal, alguns requisitos práticos puderam ser verificados como sendo reiteradamente  trazidos à tona no momento de definir a razoabilidade da medida, trazendo fundamentos objetivos para determinar a limitação o tempo razoável da prisão preventiva. Tais requisitos são: complexidade da causa, conduta das partes no processo e gravidade do delito. Tais fundamentos também são asseverados pelo doutrina como sendo de verificação fundamental para delimitar o tempo da Prisão Preventiva no Processo Penal.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-78/o-supremo-tribunal-federal-e-o-prazo-razoavel-da-prisao-preventiva/
Da incongruência de um procedimento inquisitório no tribunal do júri
A Constituição Federal de 1988 classifica o processo penal brasileiro como sendo o acusatório. Dessa forma, se espera que haja uma harmonia da legislação infraconstitucional com o sistema adotado. Nesta proposta, o presente trabalho se propõe a verificar, sob a ótica do sistema acusatório, a (in)coerência da utilização  do inquérito policial, procedimento de características inquisitórias, no tribunal do júri.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO O sistema processual penal brasileiro possui uma classificação condizente ao tipo de governo que rege o Estado e as respectivas características políticas do mesmo. Nesse sentido, o Brasil, por ter já passado por diversas fases e modelos políticos, consequentemente, já oscilou quanto à classificação do sistema penal, conforme doutrina vigente. Atualmente, como Estado com imponentes características democráticas, tem o seu processo penal classificado como acusatório pela Carta Magna. Nesse sentido, por ser a Constituição Federal a lei maior que rege todo o ordenamento pátrio, presume-se encontrar toda e qualquer legislação em consonância com a mesma, do contrário não será assim recepcionada e, consequentemente, não adentrará ao conjunto legislatório que tem o condão de regulamentar o Estado. Com a eleição do sistema acusatório pela Carta Maior, a lei federal deve submeter-se às características enfatizadas pela Constituição, ao passo que, ao regulamentar a matéria penal, harmonize-se com a mesma, sob pena de não haver uma uniformidade processual e gritantes inconstitucionalidades. Apesar da relevante constatação acima, identificamos no processo penal brasileiro alguns fortes traços do sistema inquisitório, embora predominantemente acusatório. Sendo ambos os sistemas (acusatório e inquisitório) tão antagônicos, que preconizam valores tão díspares, seria possível a convivência dos mesmos em um mesmo procedimento? Esta é a crítica que estabelece da identificação de tal ocorrência no âmbito das diretrizes do direito penal brasileiro quanto da unidade procedimental do mesmo. Inegavelmente, a despeito de procedimento com características inquisitórias, o inquérito policial é o mais sobressalente, pois tem função apenas investigatória, que trata o acusado como mero objeto de inquirição, ausente as prerrogativas constitucionais de garantias e do contraditório. Apesar de ter viés inquisitivo, o inquérito policial integra os autos e pode influenciar, por vezes, a cognição do juiz quanto da valoração da prova em relação à oitiva das testemunhas em fase judicial, no sentido de comparação ao que foi colhido a critério de depoimento em fase pré-processual. É cediço que o juiz não pode fundamentar sua sentença baseado na coleta de provas realizada no inquérito, mas não se pode afirmar que não será por elas influenciado quando da sua apreciação, pois não poderá excluir da sua cognição informações então já conhecidas, mesmo que coletadas na ausência das garantias constitucionais, já que se trata de fase ainda não processual. A carga probatória inevitavelmente persuade o juiz e passa a interferir no seu íntimo convencimento. Nesse sentido, busca-se auferir até que ponto o inquérito pode integrar os autos em se tratando de sistema processual acusatório, não acarretando uma incongruência procedimental. A intenção do legislador constitucional ao regulamentar a matéria penal dentro do capítulo referente às garantias fundamentais, sem dúvida foi de reforçar a tutela ao indivíduo concedida no sentido de reprimir qualquer ato arbitrário que venha a atentar contra seus direitos. Nesse sentido, reafirma-se a idéia do protecionismo e garantismo penal que imanta o processo penal brasileiro. É a partir dessa idéia que o intérprete do direito deve fazer a leitura do direito penal, pois do contrário estaria a Carta Magna perdendo seu sentido de ser, uma vez que se constitui como instrumento de tutela dos direitos fundamentais do indivíduo. O tribunal do júri é uma das máximas consagrações do sistema acusatório, por ter ínsito a si um viés plenamente democrático. Nele se tem a máxima exaltação das garantias conferidas ao acusado pela Carta Constitucional, entretanto é possibilitada a utilização das informações pré-processuais obtidas quando da apreciação do inquérito. Dessa forma, parece instituir-se um contra-senso ao passo que se busca a efetivação da democracia por ser o acusado julgado por seus pares, mas ao mesmo tempo os jurados realizam a votação podendo ter baseado seu convencimento nas provas colhidas sem a presença das garantias constitucionais na fase pré-processual através do inquérito policial, ademais que a sua decisão não necessita de motivação. Por essas (in)coerências é que dispõe-se a verificar se o inquérito policial cumpre sua função ou a extrapola sob a ótica dos valores acusatórios, principalmente quando se verifica que um instituto criado para assegurar um  procedimento justo como o tribunal do júri, possa estar sendo relativizado pela utilização inadequada de procedimentos inquisitivos na sua tramitação. 2. CARACTERIZANDO O SISTEMA PENAL BRASILEIRO COMO ACUSATÓRIO A Constituição Federal de 1988, sem dúvida, foi um divisor de águas quanto às tratativas dos direitos e garantias fundamentais no sentido de conferir-lhes maior tutela. Sem dúvida alguma, estas garantias ganharam ampla força e a sua efetivação manifestou-se, em uma das formas, pela ampliação da liberdade do indivíduo e a restrição punitiva estatal.  Os reflexos do sistema repressivo vivenciado recentemente pela sociedade na época ditatorial e a flagrante ausência da democracia, ainda tão recente na memória dos cidadãos brasileiros, instigou o legislador a assegurar direitos e garantias fundamentais, sendo os mesmos consagrados a cláusulas pétreas, a fim de se evitar o renascimento de uma nova repressão já experimentada. Sem dúvida alguma, tais mudanças afetaram a (re)leitura do processo penal brasileiro, uma vez que a Carta Magna dispõe a respeito do tema já no capítulo destinado as garantias fundamentais do indivíduo, pois  o direito penal dispõe de um dos direitos mais importantes do indivíduo, a saber a liberdade. Devido a este fato, se dá tal importância à matéria, ao ponto de ganhar redação constitucional, como meio de assegurar garantias fundamentais inerentes a proteção da liberdade do indivíduo. Os sistemas penais definidos pela doutrina são dois: acusatório e inquisitório. A consagração de alguns princípios constitucionais, tais como o contraditório, a ampla defesa, a presunção da inocência, o devido processo legal, a publicidade dos atos processuais, dentre outros motivos, nos faz concluir que o sistema processual penal adotado pelo constituinte brasileiro é o acusatório. Além destas características, a distinção das funções de acusar, julgar e defender verificadas no processo, o caracterizam e classificam como acusatório, embora não haja expressamente essa determinação através de algum dispositivo legal. Sob essa ótica, o processo penal é verificado como sendo um processo de partes, no qual a acusação e defesa se contrapõem em igualdade de posições[1], tendo a mesma equivalência perante um juiz imparcial. Sob outra caracterização, não há uma iniciativa probatória por parte do juiz, cabendo as partes produzirem todas as provas que julgar necessárias ao convencimento daquele, que se mantém, ressaltando-se ainda mais uma vez, em uma postura imparcial. É conferida plena publicidade a todo procedimento, que em regra é predominantemente oral. As decisões são expostas às partes para que livremente as impugnem e as submetam ao duplo grau de jurisdição através dos recursos. Se desta forma o acusatório assim se caracteriza, o inquisitório por sua vez reúne as funções de julgar, acusar e defender em uma única pessoa. O réu passa, então, a ser um mero objeto do processo, perdendo a sua prerrogativa de parte. Desta forma, não há contraditório, cabendo a investigação apenas ao juiz inquiridor, inexistindo debate entre acusação e defesa. A tortura passa a ser o instrumento preterido para ser utilizada no intuito de se obter a rainha das provas, a confissão.  Nesse sentido, parece um tanto óbvio que o sistema inquisitório é incompatível com o Estado Democrático de Direito, uma vez que este sistema transpira características de um regime autoritário e o acusatório, por sua vez, remete a primazia pela democracia. Contudo, sabemos que a idéia de regimes puros já é ultrapassada, e a existência dos mesmos uma ficção. Portanto, é cediço que o sistema penal brasileiro não é totalmente acusatório, tendo resquícios inquisitórios, principalmente no que diz respeito à fase do inquérito policial, que é regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o acusado como mero objeto de investigação. Mesmo com fortes traços inquisitórios, ainda assim, o inquérito policial integra os autos processuais. Inclusive, o juiz ao tomar depoimento judicial de uma testemunha, analisa-o comparando ao que a mesma relatou no inquérito, que é produzido baseado na coleta de provas sem a presença do contraditório.[2] Contudo, mesmo assim o processo penal brasileiro é predominantemente acusatório, devido as caracterizações já anteriormente mencionadas e que se coadunam à idéia de um Estado Democrático de Direito. Dessa maneira, questiona-se no processo, a existência de procedimentos que não estejam albergados pelo manto do sistema acusatório, uma vez que já se concluiu que a Carta Magna de 1988 elegeu este para classificar o processo penal brasileiro. Com isso, surge a crítica quanto a (in)conformidade do processo penal a luz da ótica constitucional, por identificarmos alguns diplomas legais que encontram-se em desacordo com o sistema acusatório. Sem dúvida, para que haja harmonia no processo penal como um todo, é necessário que a lei federal esteja em consonância com a norma constitucional, por estar esta no topo do ordenamento. Embora o sistema penal brasileiro tido como acusatório traga ranços e resquícios do sistema inquisitório, o operador do direito deve fazer uma interpretação do processo penal a luz da constituição, pois é esta a norma que rege todo ordenamento e toda lei infraconstitucional, em contradição a ela, pela mesma não é recepcionada, sendo sequer tida como adentrada ao sistema legal consolidado.  Luigi Ferrajoli ensina-nos que: “Uma Constituição pode ser avançadíssima pelos princípios e direitos que sanciona, entretanto não passar de um pedaço de papel se carece de técnicas coercitivas – de garantias – que permitam o controle e a neutralização do poder  e do direito legítimo”[3]. Os sistemas processuais mencionados são frutos do período político de cada época, sendo que quanto mais as características do governo são autoritárias, mais assemelhadas são com o inquisitivo e, conseqüentemente, diminuem as garantias do acusado. Entretanto, quanto mais o Estado torna-se garantista e democrático, mais se aproxima do acusatório e reafirma-se como Estado Democrático de Direito[4]. Sendo assim, por ser o Brasil um Estado que desta forma é consagrado a nível constitucional, deve dispor de meios para garantir cada vez mais a efetivação do sistema acusatório ao processo penal como forma de  tutela e concretização  às garantias e direitos fundamentais ao indivíduo. 3. A ESSÊNCIA DO INQUÉRITO POLICIAL FRENTE A UM SISTEMA ACUSATÓRIO É sabido que o inquérito policial integra a fase pré-processual, pois são os elementos colhidos antes de ser instaurado um processo, antes do nascimento da ação penal. Diante da fase pré-processual, vislumbra-se que, até então, não estamos tratando com réu ou acusado, e sim, com suspeito ou indiciado, devendo este ser tratado como tal. Ao ser instaurado um inquérito, ainda não há parte, inexistindo relação processual. Ademais, a instauração de um inquérito investigatório, diferentemente do processo em si, não visa declarar alguém culpado ou inocente, mas evidenciar a existência ou não do fumus commissi delicti, isto é, revelar os indícios suficientes de autoria e provas da materialidade delitiva. O objetivo do inquérito é colher elementos suficientes a fim de ser, com isso, instaurada a ação penal. Este “faz referência ao conjunto de conhecimentos adquiridos no sentido jurídico de atividade de cognição e reflete a existência de uma concatenação de atos logicamente organizados, um procedimento”[5]. Ausente o processo, presume-se, equivocadamente, que não há garantias, uma vez que não há parte. Entretanto, embora inexista parte passiva, existe um cidadão que está sendo investigado, este dotado dos direitos primordiais de um Estado Democrático de Direito, mesmo inexistindo o processo. Ora, direito de defesa é existente nesta fase, uma vez que se trata de um direito personalíssimo, não sendo necessário o cidadão “ser parte”, sendo direcionada a ele pelo simples fato de lhe ser uma garantia individual a todos os cidadãos deste país. Conforme relata Paulo Rangel, “o investigado é objeto de investigação, porém isso não significa dizer, como comumente se diz, que não tem direitos previstos na Constituição”[6]. Destaca-se uma evidencia procedimental: sem processo é inviável a existência do contraditório, vez que, como se vê, ausente está o pólo passivo da ação, sendo inócuo dar vista a outra parte, pois esta não existe. Assim, a essência do procedimento pré-processual é meramente informativa, como aduz Paulo Rangel, “o inquérito tem valor apenas informativo. Não visa nenhum juízo de valor sobre a conduta do autor do fato, que, apontado no inquérito como tal, passa a ser tratado como indiciado”. Por fim, assegura que: “sua finalidade é preparar os elementos necessários que possibilitem o titular da ação, a descrição correta na peça exordial”[7]. No que concerne o valor probatório desta fase preparatória da ação penal, deve-se considerar inúmeros vícios e nulidades que tal instrumento pode trazer para o devido processo legal, além do que, como se viu, tal procedimento é pré-processual, nascendo para complementar ou instigar o convencimento da parte ativa da relação processual, pura e tão somente. Importante trazer à baila que a investigação preliminar já contém, por si só uma nulidade absoluta, uma vez que não respeita uma garantia constitucional, o contraditório. Porém, como tal inobservância existe pelo fato de se tratar de um procedimento aquém do processo penal, com isso, não pode ser alegada nulidade processual. Entretanto, os vícios existentes nesta fase podem ser refletidos no processo, se lhe for admitido como espécie de prova, podendo, com isso, trazer uma condenação ou absolvição errônea. Quando já existente o processo, existe a manifestação do sistema acusatório que, por sua vez, tem a forma, o procedimento, como uma garantia ao acusado. Assim, a prova deve ser colhida perante o estado-juiz, amparada pelo contraditório e a publicidade dos atos, rechaçando o sistema unilateral e, muitas vezes, secreto, vislumbrado em fase policial. A prova, para Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, “se identifica com a atividade probatória, isto é, com a produção dos meios e atos praticados no processo visando a convencer o juiz sobre a veracidade ou a falsidade de uma alegação sobre um fato[8]”. Assim, as evidências colhidas em fase investigatória não têm valor de prova, pois não são provas. A prova, como visto, é um elemento que visa o convencimento do julgador e, além do mais, é levada ao conhecimento da outra parte, vez que é amparada pelo contraditório. Diferentemente, é as declarações e demais atos colhidos em fase investigatória, que buscam apontar um suspeito, referem-se a uma hipótese, e não a uma afirmação[9]. Diante do exposto, é invalido reconhecer o inquérito policial como prova e, por conseguinte, basear uma sentença exclusivamente em tal elemento informativo. Este é o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vejamos: “EMENTA:  APELAÇÃO CRIME. DELITO DE CIRCULAÇÃO. HOMICÍDIO CULPOSO. FRAGILIDADE DA PROVA A AMPARAR A ABSOLVIÇÃO DO RÉU. Não havendo prova escorreita que bem defina a culpabilidade do réu, o corolário lógico é a proclamação da inocência, mormente quando, ainda, persiste dúvida, sendo que esta se resolve, também, em benefício do acusado. Fere o princípio do contraditório a sentença condenatória apoiada exclusivamente no inquérito policial. APELO MINISTERIAL IMPROVIDO EM DECISÃO UNÂNIME. (Apelação Crime Nº 70008498016, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Hirt Preiss, Julgado em 17/06/2004).” (grifo nosso).  De mais a mais, com o advento da Lei 11.690/2008, o artigo 155 do Código de Processo Penal passou a dispor: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”(grifo nosso).  Diante disso, nota-se que a Lei supramencionada veio dar força ao entendimento que já era, praticamente, uniforme na jurisprudência e doutrina brasileira, qual seja, o inquérito policial é uma peça informativa, não podendo ser o fundamento de uma decisão judicial, uma vez que vai contra a sua origem, pois não foi instaurado com este fim. 4. A (IM)POSSIBILIDADE DA LEITURA DO INQUÉRITO POLICIAL NO TRIBUNAL DO JÚRI O Tribunal do Júri foi disciplinado primeiramente em nosso contexto jurídico no ano de 1822, a fim de julgar os crimes de imprensa. Não obstante, no ano de 1824, com a promulgação da Constituição Imperial, ampliou-se a competência deste instituto, o qual passou a abranger causas cíveis e criminais. Ainda, a importante constituição de 1946, restabeleceu a soberania do júri, uma vez que o reintroduziu entre os direitos e garantias. Na atual Constituição, este instituto está previsto no art. 5º, XXXVIII, e é competente para julgar os crimes dolosos contra a vida, sendo embasado em princípios como: a plenitude do direito a defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos. Assim, quando um indivíduo, dentro deste país, comete um crime doloso contra a vida de outrem, será submetido a julgamento pelos seus pares, afastando-se, assim, a decisão do juiz, propriamente dito. É uma instituição que corrobora a existência de um sistema acusatório, visto que é delegada aos jurados a discricionariedade acerca do delito, pois está expresso, art. 5º, XXXVIII, alínea c, da Constituição Federal, a existência da soberania dos vereditos. Para Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró: “Outra característica histórica do processo acusatório anglo-americano é o julgamento pelo júri, que representa o máximo de oralidade e concentração, com partes em igualdade de condições e um juiz passivo e neutro”[10]. Nota-se que o Tribunal do Júri, também chamado de tribunal popular, é uma das evidentes manifestações que apontam o nosso sistema como acusatório. Contudo, sob pena de macularmos este instituto, devemos observar algumas particularidades do mesmo, no que concerne seu procedimento. Primeiramente, cabe ressaltar que a prova não é produzida perante o corpo de jurados que se encontra no Tribunal, sendo somente apresentada ou simplesmente lida para estes. Destaca-se ainda, que grande parte destes jurados desconhece a distinção de um inquérito policial e de um procedimento judicial, de uma prova e de um ato investigatório, tendo em vista que são pessoas idôneas, mas leigas acerca dos procedimentos e das “regras” do processo penal. Quando do debate oral entre as partes, poderá ser usado tudo que está dentro do processo, como enfatizou Lenio Luiz Streck: “O momento do debate, em plenário, concentra todos os elementos da construção do processo, num dado ponto, como se estivesse congelado, preconcebido”[11]. Ora, até mesmo o brocado latino “quod non est in actis non est in mundo”, isto é, o que não está nos autos não está no mundo manifesta que somente, pura e tão somente o que é parte do processo, deve ser lido e apresentado perante os juízes leigos. Evidente incongruência ao devido processo legal se flagra no momento em que o inquérito policial é lido aos jurados, pois, como já oportunamente relatado, não se trata de uma fase do processo, mas de uma fase pré-processual, tendo objetivos distintos ao daquele. Como referido anteriormente, no procedimento comum não é admitida a sentença baseada exclusivamente em elementos colhidos da fase investigatória, vez que este é uma fase inquisitória, quando ainda é ausente o contraditório. É o entendimento de Aury Lopes Junior: “[…] no Tribunal do Júri, qualquer esperança de ser julgado a partir da prova judicializada cai por terra, na medida em que não existe a exclusão física dos autos do inquérito policial e tampouco há vedação de que se utilize em plenário os elementos de fase inquisitorial”[12]. Uma das características das decisões dos jurados é que estes não precisam justificar o porquê do veredicto, vez que há, segundo Aury Lopes Jr., “absoluta falta de motivação do ato decisório[13]”. Assim, diferentemente do juiz togado, que precisa fundamentar sua sentença, os jurados condenam e absolvem pelo seu livre convencimento, vez que sua decisão é soberana. Além do mais, diante de um processo com evidente insuficiência de provas, pode a acusação embasar-se somente no inquérito policial e, com isso, convencer os jurados a condenar o acusado, pois, que para estes juízes leigos chamados jurados, não há distinção entre o que é ou não processo. Contudo, nota-se que tal condenação é uma decisão inquisitorial e desrespeitosa ao procedimento penal e Constituição, vez que estamos (ou deveríamos estar) garantidos pela cláusula pétrea, referida no art. 5º LIV da nossa Lei maior: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. É indiscutível que o uso do inquérito policial traz uma nulidade processual absoluta, diante da latente inobservância a uma garantia individual, sendo que o devido processo legal não foi respeitado. Nesse sentido, enfatiza Ada Pelegrini Grinover: “[…] a gravidade do ato viciado é flagrante e, em regra, manifesto o prejuízo que sua permanência acarreta para a efetividade do contraditório ou para a justiça da          decisão; o vício atinge o próprio interesse público de correta aplicação do direito”[14].  Ademais, não poderia o juiz, como fiscal das garantias constitucionais do acusado, pronunciar o réu, se ausentes as provas, propriamente dita. É o entendimento do Tribunal do Rio Grande do Sul: “EMENTA:  CÓDIGO PENAL. CRIMES CONTRA A VIDA. JÚRI. IMPRONÚNCIA MANTIDA. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ART. 155. PROVA TESTEMUNHAL. Nova redação do art. 155, CPP. Se o Juiz de Direito não pode fundamentar sua decisão exclusivamente com os elementos levantados no inquérito policial, tudo está a indicar também não possa, no momento de decidir ou não pela pronúncia, remeter o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri, com base em prova da mesma qualidade. APELO MINISTERIAL IMPROVIDO. POR MAIORIA.” (Apelação Crime Nº 70033847302, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 25/03/2010). Mostra-se, no mínimo, plausível o pedido de destacar do processo o inquérito policial. Não se trata de um apelo defensivo, mas de um respeito às “regras do jogo”, de observância aos princípios que a Constituição, como cláusulas pétreas, garantia a todo e qualquer cidadão, independentemente do crime por este cometido. Nesse sentido, deve o processo amoldar-se a Constituição Federal e não o contrário. É inadmissível em um Estado Democrático de Direito que uma pessoa seja condenada por meras presunções ou hipóteses levantadas em uma fase inquisitória. Assim, o direito caminhará no sentido de proteger o cidadão das barbáries presenciadas em outras épocas, garantindo processos justos e evitando que o indesejado sistema inquisitório volte a atormentar nossos processos. 5. CONCLUSÃO O sistema processual hodierno traz ínsito a si um viés inegavelmente protetivo em decorrência das barbáries já vivenciadas em épocas de regimes políticos repressivos e autoritários na qual relata nossa pregressa história, enquanto Brasil. Tal medida foi tomada no intuito de estabelecer previamente cautelas profiláticas de repressão contra possíveis atos arbitrários que venham a colocar em risco os direitos fundamentais dos indivíduos, como a exemplo daqueles experimentados na época do regime da ditadura militar. A consagração de tais garantias em nível de status constitucional não pode ser relativizada, uma vez que a proposta da Carta Magna de 1988 é estabelecer ao Brasil um modelo político democrático, que preserve um padrão protetivo de direitos. Nesse propósito que este Estado, como sendo Democrático de Direito regula a matéria penal com cautela e um teor bastante amplo de asseguramento de direitos, proporcionando ao acusado a tutela necessária para que goze de um processo amparado pelas devidas garantias, prevenindo decisões arbitrárias. O sistema processual brasileiro, embora predominantemente acusatório, mantém traços inquisitivos. Porém a presença de tais resquícios não justifica a possibilidade de prejudicialidade ao réu, enquanto da imputação de uma condenação arbitrária que resultaria em cerceamento indevido de sua liberdade pela utilização de instrumentos que vão contra os princípios acusatórios. Tal consequência nos remeteria aos atos autoritários oriundos do Estado em épocas de repressão. A admissão desta situação seria um retrocesso quanto aos avanços já conquistados pela democracia no Brasil. No tribunal do júri, que representa a máxima expressão de um processo democrático, tem-se, ao mesmo tempo, a presença de um procedimento puramente inquisitivo, a saber, a possibilidade da leitura do inquérito policial. Por óbvio, que o contato dos jurados com as provas obtidas na fase pré-processual no tribunal do júri, remete-nos uma idéia de incoerência procedimental, pois são características de sistemas penais paradoxais que se encontram convivendo dentro de um mesmo momento processual. Ao passo que se busca conferir uma maior proteção ao indivíduo, de outro lado o sistema prejudica o seu direito de defesa, uma vez que permite que os jurados formem seu convencimento a partir de provas obtidas sem as garantias processuais. Sem falar que a decisão proferida é isentada de qualquer fundamentação, fato que só vem a reforçar ainda mais a presença dos ranços do inquisitório no procedimento do júri. Neste sentido, perde-se o objeto da função do inquérito policial e intenta-se atribuir a ele função judicial probatória, sendo uma aberração e um desrespeito ao processo. A leitura do inquérito como meio de exploração de prova, poderá persuadir os jurados e interferir negativamente em relação ao réu quando do veredicto, pelo fato de que os mesmo são pessoas leigas, da sociedade, que, em regra, desconhecem o direito e as regras processuais, não sabendo, portanto, que o inquérito, a priori, não poderia influenciar na sua decisão. Por este fato, relativiza-se o direito do réu a uma prova judicializada. A única solução que parece mais coerente, segundo Aury Lopes Jr., seria “o sistema de exclusão física do inquérito policial, buscando evitar a contaminação dos jurados pelos atos (de investigação) praticados na fase inquisitória do inquérito policial[15]”. Com esse entendimento nos filiamos, por entender que o processo penal como um todo deve ser uniforme, pautado pelos princípios constitucionais a ele imputados. Assim sendo, o tribunal do júri atingirá o propósito a ele destinado no momento em que delimitar a exposição dos fatos feitos pelas partes aos jurados relativamente às provas produzidas em juízo. O contato dos juízes leigos com o processo deve ser limitado ao que está produzido judicialmente, sob pena de serem contaminados com oitivas não submetidas ao contraditório, caracterizando uma afronta aos princípios acusatórios, que visam assegurar ao acusado um procedimento democrático e, portanto, livre de qualquer atentado aos seus direitos e garantias fundamentais. Até o momento não temos vivido essa realidade, pois no Brasil milhares e milhares de acusados tem tido sua defesa prejudica pelo contato dos jurados com o inquérito, mas almeja-se que um dia o legislador atente para esta incongruência e, então, dê a devida conformidade ao processo penal no tocante ao procedimento do Tribunal do Júri de acordo com o sistema eleito pela Carta Magna.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-78/da-incongruencia-de-um-procedimento-inquisitorio-no-tribunal-do-juri/
Contradições entre a execução da sentença e a Lei de Execuções Penais vigente
O presente artigo possui um notável conteúdo religioso, visto que seu norte central é a obra do mestre Carnelutti As Misérias do Processo Penal, entretanto tal fato não elide seu interesse acadêmico, centrando-se na discussão da impossibilidade fática do processo penal ser perfeito, os efeitos de tal imperfeição crônica na humanização do indivíduo acusado e condenado. Usando em sua análise, tanto aspectos jurídicos quanto filosóficos, e, sem dúvida, com um toque literário, que faz de tal obra um livro de leitura agradável ao passo que com uma linguagem simples o autor aborda de forma clara temas delicados como a gana da multidão por sangue, a humanidade do juiz, a falibilidade das provas, a impossibilidade de se apurar de fato a verdade, a estrutura do poder judiciário e a sentença penal além de outros temas relacionados ao processo penal. Tomarei como foco central para o desenvolvimento desse trabalho a sentença penal descrita por Carnelutti fazendo um paralelo com a lei de execuções penais vigente em nossa atual sociedade traçando suas nuances e semelhanças.[1]
Direito Processual Penal
Resumo: O presente artigo possui um notável conteúdo religioso, visto que seu norte central é a obra do mestre Carnelutti As Misérias do Processo Penal, entretanto tal fato não elide seu interesse acadêmico, centrando-se na discussão da impossibilidade fática do processo penal ser perfeito, os efeitos de tal imperfeição crônica na humanização do indivíduo acusado e condenado. Usando em sua análise, tanto aspectos jurídicos quanto filosóficos, e, sem dúvida, com um toque literário, que faz de tal obra um livro de leitura agradável ao passo que com uma linguagem simples o autor aborda de forma clara temas delicados como a gana da multidão por sangue, a humanidade do juiz, a falibilidade das provas, a impossibilidade de se apurar de fato a verdade, a estrutura do poder judiciário e a sentença penal além de outros temas relacionados ao processo penal. Tomarei como foco central para o desenvolvimento desse trabalho a sentença penal descrita por Carnelutti fazendo um paralelo com a lei de execuções penais vigente em nossa atual sociedade traçando suas nuances e semelhanças.[1] Palavras-chave: Sentença, Lei de Execuções Penais, Punição, ressocialização, principio da dignidade da pessoa humana Abstract: This article has a remarkable religious content, as its north central is the work of master Carnelutti The Miseries of Criminal Procedure, however this fact does not suppress your academic interest, focusing on discussion of the factual impossibility of criminal procedure to be perfect the effects of such chronic flaw in the humanization of the individual accused and convicted. Using his analysis, both legal aspects as philosophical, and certainly with a literary touch, which makes such work a pleasant book to read while in simple language the author deals clearly sensitive topics such as Ghana’s multitude for blood, mankind’s judge, the unreliability of the evidence, the inability to ascertain the truth of fact, the structure of the judiciary and penal sentence and other topics related to criminal proceedings. Take as central focus for the development of this work the criminal sentence described by Carnelutti making a parallel with the existing criminal law plays in our current society by tracing the nuances and similarities. Keywords: Judgement, Sentence Law, Punishment, resocialization, principle of human dignity O mestre Carnelutti, faz uma analise do processo penal em sua obra sob uma óptica humanista, fazendo com que o acusado seja visto como aquilo que é, ou seja, um homem, como qualquer outro, malgrado a situação em que se encontra. O autor enfatiza que o processo penal não deve servir de espetáculo circense, a divertir a multidão. Segundo ele o processo é ou deveria ser, antes de tudo, caminho para a aplicação da justiça, admitindo-se a possibilidade desta. O autor compara a decisão condenatória a um funeral e a penitenciaria a um cemitério com a ressalva de que o condenado é um sepultado vivo. Carnelutti afirma, entretanto que a penitenciaria deveria ser vista como hospital e não como cemitério isso reforça a idéia de ressocialização do condenado visto que para ele a condenação é um diagnostico e deste modo o Juiz passa a ser visto sob esse prisma como um médico e o cárcere como um hospital cheio de doentes do espírito e sendo assim incumbe-lhe a função de curar esses males dos delinqüentes tornado os aptos a voltar à sociedade. Sob a ótica da obra de Carnelutti cabe comparar a explanação do autor com a nossa Lei de execuções Penais (LEP) Vigente sua promulgação em 1984 pautando-se com ênfase aos valores humanísticos e ressocializadores dos detentos. Aduzida legislação é marcada por fortes traços de correntes evolucionistas da ciência penal e de nobres facções pensantes que prezavam a defesa dos direitos humanos e a valorização do homem, sobretudo, como excluído social. Da execução da sentença segundo Carnelutti A cerca da execução da sentença Carnelutti menciona que o processo ao contrario do que pensam os demais juristas acaba com a absolvição do acusado e não tão somente com a pronuncia negativa ou positiva por parte do juiz, porquanto em caso de condenação no entendimento do autor nunca esta dita a ultima palavra, pois o acusado condenado tem direito a revisão e reabertura do processo, significando assim que a condenação não significa exatamente o fim do processo diferentemente da absolvição significa apenas que muda de sede saindo do tribunal e passando para a penitenciária, onde o condenado cumprirá a sentença. Deste modo pode-se compreender que na visão do autor a penitenciaria esta compreendida no palácio da justiça, fato interessante é a analogia que o autor faz entre a penitenciaria e o cemitério querendo mencionar que ao ser encarcerado o individuo passa a ser esquecido pela sociedade tal qual um falecido é nesse ponto que ele tece uma critica ao denominar o preso como um sepultado vivo, na concepção de Carnelutti o correto era assemelhar o presídio a um hospital, onde o juiz se assemelha a um médico ao proferir a sentença esta agindo tal qual o médico ao diagnosticar uma enfermidade em seu paciente, e deste modo a função da penitenciaria devia ser a de um hospital na medida em que os detentos ao entrar ali deveriam obter um tratamento visando sua recuperação tornando o assim um homem honrado, entretanto diferentemente do hospital onde o médico ao se dar conta de alguma modificação no diagnostico ao longo do tratamento pode voltar atrás e retificar o mesmo na penitenciaria uma vez que o juiz prolate a sentença e tramite em julgado será cumprida exatamente a pena decidida mesmo se ao longo do tempo for percebida melhora na conduta do individuo isso não importa deve ser respeitada a pena inicial. A pena não serve apenas para punir o condenado, mas também para advertir os demais para não praticarem infrações usando a aplicação da pena como meio a intimidar os indivíduos a delinqüir, esse fato, entretanto sinaliza a contradição entre a função repressiva e a função preventiva ao passo que o que a pena deve ser para ajudar o culpado não e o que deve ser para  ajudar os outros, Carnelutti menciona que ao mesmo tempo que a pena deveria servir para intimidar os outros deveria servir para redimir o condenado ou como ele fala curá-lo de sua enfermidade e para tanto é necessário conhecer qual é  a enfermidade a ser tratada. O autor menciona que delinqüência nada mais é que falta de amizade, ou seja, um ato de inimizade e ele mencionam ao comparar as palavras de cristo que é preciso ser pequeno para compreender que o delito deve-se a falta de amor, para ele os Sábios buscam a origem do delito no cérebro e os pequenos não esquecem que como disse Cristo os homicídios, os delitos as falsificações vem do coração e é ai que devemos chegar para curar os delituosos ao coração, ou seja, é através do amor que se deve encontrar a cura para as falhas humanas, a falta de amor não é preenchida senão com amor “amor com amor se paga” e é essa a cura que necessita o detento a cura através do amor. Isso não quer dizer segundo a obra que a cura não deva ser imposta através de um pena castigo, pois o castigo não é totalmente incompatível com o amor, pois segundo a Bíblia o pai que não usa o bastão não ama o filho diz a Bíblia e deste modo o amor pelo condenado não extingue a severidade da pena. Entretanto o autor enfatiza que não se pode exigir do Estado o que o Estado não pode dar, para Carnelutti o Estado é um robô gigante do qual a sociedade pode construir-lhe o cérebro mais não o coração, segundo o autor nós somos responsáveis pela redenção do condenado fazendo com que o problema deixe de ser meramente judicial e passe a ser um problema moral e deste modo o comportamento de cada um pode influenciar o curso do processo até a condenação ou absolvição do acusado em suma ele vê cada um de nós como um colaborador invisível dos órgãos da justiça, mas frisa que para tal basta o respeito. Ao final o condenado é o pobre por excelência, o ser na angustiosa necessidade de amor, ao observá-los envolto no uniforme  penitenciário  feito para diferenciá-los dos demais indivíduos basta observar em seu olhar mesmo ocultando a consciência mortífera de sua inferioridade para que compreenda-se o bem que pode levar a eles um simples  gesto de carinho, uma palavra, esses atos apoderam-se deles conquista-os, tirando de seus corações sentimentos que acreditava-se estarem sepultados. Enfim para o autor o nosso comportamento diante dos condenados é a indicação mais segura da nossa civilidade. A Lei de execuções Penais Brasileira e a Execução da sentença Quando se fala em Direitos humanos na atualidade é instantâneo ouvir o senso comum pregar que isso não passa de artifício para proteger bandido ou os poderosos corruptos da cadeia, mas a realidade é bem diversa do que reza o senso comum, a lei de Execuções Penais brasileira abrange não somente o direito do preso e sim a própria dignidade do ser humano e tem como finalidade prioritária reinseri-lo na sociedade e combater a criminalidade de forma humanizada e condizente com os anseios da sociedade atual. Os direitos humanos do preso ficam sempre em segundo plano esquecido pela sociedade que o quer ver banido da sociedade e punido pelo mal que praticou a ela própria, entretanto não se deve esquecer que o preso é antes de tudo um ser humano e como tal detém direitos inerentes a sua essência e não deixa de ser humano por ter infringido a lei foi sob esse enfoque humanístico que surgiu em 1984 a Lei de Execuções Penai (LEP) que tema  função de disciplinar o cumprimento da pena previamente estabelecida em sentença ou decisão Judicial A lei nº 7.210/1984, a lei de execuções penais, inicia-se esclarecendo que a integração do preso na sociedade é um dos seus principais objetivos isso vem expresso em seu artigo inicial, deste modo não basta somente a prisão do individuo que cometeu um delito para combater  o crime é necessário uma ressociaização caso contrario ao cumprir sua pena se não estiver devidamente ressocializado voltara a cometer os mesmos delitos anteriores a prisão. Deste modo percebe-se que a pedra basilar da Lei de execuções penais é a dignidade da pessoa humana devendo assim o preso ser respeitado enquanto ser humano desde o inicio da execução da pena A dignidade da pessoa humana deve ser respeitada desde o inicio do processo observando o artigo 3º da (LEP) percebe-se que o legislador em seu §único declara que não haverá distinção de natureza racial, social, religiosa ou política, e deste modo igualou um negro pobre morador de uma favela a um milionário morador de bairro nobre. Deste modo toda pessoa deve ser tratada de forma igual, sem predileções ou regalias ao ser executada sua pena pelo Estado. A individualização da pena foi um ponto agraciado pela lei de execuções penais ao passo que é inconcebível colocar na mesma cela um réu primário e um condenado por vários crimes, observando esse fato o legislador e o juiz estão respeitando a individualidade do ser humano principio consagrado na carta magna de 1988. De acordo com a lei A lei nº 7.210/1984 é de responsabilidade do Estado resguardar a integridade do preso bem como prestar-lhe assistência necessária a sua subsistência enquanto interno ao logo de seus artigos a lei especifica os deveres inerentes ao Estado no intuito de fazer do criminoso encarcerado um cidadão apto a ingressar na sociedade após o cumprimento de sua pena. Fazendo uma breve explanação a cerca da Lei de execuções Penais fica notório que a dignidade da pessoa humana é robustamente enlaçada em seus artigos e em todo o ordenamento jurídico brasileiro. Por fim cita-se com maestria, o art. 199 ratifica a proteção da dignidade humana em todas as condutas sócias afirmando que o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal. Uma conduta que é corriqueira das autoridades  policiais pode denegrir significativamente a dignidade da pessoa humana, fato esse que em tese deve ser evitado no ordenamento vigente Conclusão Traçando um paralelo entre a abordagem de Carnelutti em sua obra a cerca da Execução da sentença e a nossa lei de execuções penais vigente , é possível notar semelhanças no que tange a preocupação com o ser humano, Carnelutti ao mencionar o preso como um sepultado vivo quer enfatizar o fato de o mesmo ser colocado em cárcere não como um meio de ressocializá-lo mais sim de isolá-lo da sociedade, ao mesmo tempo que é usado como exemplo de punição para os demais indivíduos no intuito de demonstrar-lhes  o que lhe aconteceria caso transgredisse uma lei, o preso deve ser visto como um doente que precisa de tratamento segundo o autor e esse tratamento só será possível através de atos humanos e não de repudia é nesse sentido que o principio da dignidade da pessoa humana inerente a nossa legislação e presente na Lei de Execuções Penais tenta fazer do encarcerado um ser que mesmo tendo cometido um delito é antes de tudo um ser humano que possui direitos assegurados e que devem ser resguardados  Carnelutti deixa claro que o fato de dever existir traços de amor e respeito para com a pessoa do encarcerado isso não quer dizer que não deva existir severidade na pena o que não pode existir é uma exacerbada severidade beirando os moldes da crueldade e da desumanidade. Quando se fala em direitos humanos o senso comum não compreende que o detento precisa ter resguardados alguns direitos fundamentais para sua ressocialização como Carnelutti menciona só o amor gera o amor e deste modo para que um individuo transgressor possa ter uma chance de voltar a ser um cidadão de bem é necessário que seja visto como ser humano e lhe sejam dadas condições mínimas para sua recuperação cabe ao Estado fornecer esses recursos, pois é o Estado o responsável pela organização estatal e deste modo pela ressocialização dos condenados. Conclui-se, portanto após analise dos textos acima que em tese a nossa lei e o pensamento de Carnelutti tem muito em comum, pois existe nos dois uma grande preocupação com o ser humano e com a preservação dos direitos inerentes ao condenado devendo por esse modo este ser tratado com o mínimo de respeito, entretanto sabemos que na pratica não funciona dessa maneira tão romântica e idealiza, nossos presídios encontram-se abarrotados de presos e não lhes é oferecido o mínimo necessário para sua recuperação, ao contrario nos moldes encontrados atualmente em nosso país devido ao descaso do Estado torna-se cada vez mais difícil a ressocialização e a humanização dos condenados.   Referências bibliográficas CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Campinas:.Russell, 2008. Lei de Execuções Penais lei nº 7.210/1984   Nota: [1] Trabalho desenvolvido sob a orientação da Profesora Tanise Zago Thomasi, Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade AGES. Acadêmica de Direito na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais AGES, Paripiranga/Bahia.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/contradicoes-entre-a-execucao-da-sentenca-e-a-lei-de-execucoes-penais-vigente/
Condenação criminal em Tribunal de Juri e incerteza da culpa por inocorrência da figura do réu confesso
O presente artigo visa analisar o status do ato de condenar algum acusado, no Tribunal do Juri, tendo presente provas incompletas e controversas, e ausente a confissão do denunciado.[1]
Direito Processual Penal
Introdução O sistema punitivo brasileiro possui problemas estruturais, seja quanto o espaço físico do sistema prisional, seja quanto a organização do ordenamento jurídico penal. O ato de punir visa proteger a sociedade e mostrar o poder do Estado enquanto garantidor da ordem e da segurança pública. Presencia-se duas situações analisando o sistema penal e carcerário, o da depreciação das estruturas por falta de investimento, e os benefícios assistenciais aos presos e seus familiares, os quais causam indignação e revolta pública. A mídia, da mesma forma que demostra e ridiculariza essa assistência existente e criada para amenizar e evitar a criminalidade a longo prazo, trabalha com a concepção do pré-julgamento em casos que envolvem o Tribunal do Juri, onde estão presentes os crimes mais complexos por assim dizer. É necessário analisar portanto, a separação da razão e emoção em casos que envolvem abalo social, observando o risco da imparcialidade no julgamento pelos jurados. O trabalho buscará demonstrar a complexidade da condenação quando não se presencia o réu confesso e não estão presentes elementos que determinem a certeza à condenação do acusado. 1 – Legislação penal brasileira O Brasil possui como base estrutura do direito material, o Código Penal, este que foi instituído em 1940 e vem sofrendo alterações diversas, mas no entanto, ainda mantem-se o mesmo enquanto codificação vigente. Acontece que, desde seu nascimento e seu contexto, já passaram mais de 55 anos e mesmo assim ainda estamos discutindo sobre dados contraditórios e desproporcionais explicitados ao longo da redação dos artigos. Já é mais do que comprovado a necessidade de criarmos um novo Código Penal de acordo com nosso contexto e que, possua um rigor necessário para garantir nossa segurança[2] e possibilitar uma sensação de proteção estatal[3]. 2 – A figura da  confissão e o atenuamento da pena A figura da confissão é comumente percebida em nosso ordenamento. Primeiramente porque tem um caráter moral[4], segundo porque possui um caráter vantajoso para o acusado a partir de uma análise legal, pois está disposto na legislação penal que, aquele que confessar a autoria da conduta criminosa, terá direito a redução de pena[5]. Essa redução está contida no capítulo III da aplicação da pena em circunstâncias atenuantes, disposta no artigo 67, o qual afirma que são circunstâncias que sempre atenuam a pena:  “I – ser o agente menor de 21 (vinte e um), na data do fato, ou maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença; II – o desconhecimento da lei; III – ter o agente: a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral; b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano; c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima; d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime; e) cometido o crime sob a influência de multidão em tumulto, se não o provocou.” Essa condição favorável tem um valor prático muito importante, visto que, traz uma redução bem considerável especialmente em se tratando de crimes punidos com penas altas, caso em que anos entram em jogo. 3 – Tribunal da Juri, a condenação e a ausência do réu confesso Os crimes cometidos contra a pessoa de forma dolosa, devem seguir o rito do Tribunal do Juri por ser expresso em lei, cabendo aos jurados[6] de acordo com seus entendimentos, decidir sobre a condenação e absolvição. O crimes em grande parte, carecem de certeza quanto à produção de provas[7], justamente esse é o norte de sustentação que a defesa vale-se na intensão de demonstrar a negativa de autoria[8], mostrando aos jurados a impossibilidade de a acusação lograr sucesso na análise dos indícios. O julgamento de um réu é deveras prejudicado por diversas razões, sendo que a intervenção da mídia é uma delas[9], pois os jurados, em se tratando de caso de comoção pública[10], partem para o julgamento com uma possível resistência pessoal, o que acarretaria na inocorrência de análise das provas da defesa que visam trazer uma visão diversa, uma interpretação que opõe-se à posição do Promotor de Justiça. O ponto negativo, ao meu ver, é quando ocorre uma condenação, havendo contradição nas provas apresentadas pelo Ministério Publico, mas que por uma onda emotiva do corpo de jurados, consequência de uma comoção nacional e muitas vezes internacional, decidem em desfavor da defesa Nesse sentido expõe o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em seus julgados, o entendimento de que o Júri é livre para escolher a solução que lhe pareça justa, ainda que não seja melhor sob a ótica técnico-jurídica, decorrente do princípio da convicção íntima, e ainda sobre a ocorrência de pré-julgamento. “EMENTA: APELAÇÕES DEFENSIVA E MINISTERIAL. JÚRI – Quanto ao âmbito devolutivo do apelo defensivo, verifica-se, na espécie, que, ao arrazoar o recurso, em fundamentação única, sustenta a Defesa, de um lado, a existência de nulidade (contradição de resposta aos quesitos) ¿ utilizando-se da expressão ¿confusão que os senhores jurados fizeram¿ ao responderem o questionário -, de outro, com base nas mesmas respostas, assevera que o veredicto do Conselho de Sentença foi manifestamente contrário a prova dos autos. Observa-se, ainda, que embora a Defesa não tenha, nas razões recursais, trazido fundamentos por todas as alíneas invocadas quando da interposição (alínea ¿b¿), deve o apelo ser conhecido em toda a sua extensão. Com efeito, devemos considerar, quanto ao ponto, os termos da Súmula nº 713 do Pretório Excelso. ?Da alegação de existência de nulidade (art. 593, inciso III, alínea ¿a¿, do CPP). Contradição ou confusão de respostas. Inocorrência: – Não se vê, no caso em exame, a alegada contradição ou confusão por parte dos Srs. Jurados nas respostas aos quesitos formulados. – O primeiro quesito, respondido afirmativamente, referia-se ao fato principal. Tratando a espécie de delito praticado em co-autoria, este quesito foi formulado, acertadamente, sem inclusão do nome de co-réu. Evitou-se com tal formulação, conforme recomendado, o julgamento por inferência ou ¿contaminação da respostas dos jurados por indução ao prejulgamento¿. Precedente da Corte e da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal – O segundo quesito, também respondido afirmativamente, referia-se ao nexo causal com o resultado, ou seja, a morte da vítima. – Com as respostas ao terceiro, quarto, quinto e sexto quesitos se procurou apurar a responsabilidade da apelante, mais precisamente a forma que concorreu para o crime (art. 29 do Código Penal). As respostas afirmativas ao terceiro, quarto e sexto quesitos importou em revelar que a ora recorrente concorreu para o delito chamando ¿… um taxista para fazer a corrida¿, não permitindo que o taximetrista deixasse o local enquanto o executor atirava contra a vítima, e, finalmente, advertindo ¿o taxista de que não era para este contar nada sobre o ocorrido para outras pessoas.¿ A resposta negativa ao quinto quesito não importou em contradição ou confusão de resposta, pois o Conselho de Sentença tão-somente reconheceu que a apelante, na ocasião, não desempenhou também outra atividade, qual seja, a de observar o local, procurando evitar a aproximação de terceiros. Assim, segundo o veredicto do Tribunal do Júri, a participação da recorrente (ante as respostas afirmativas aos quesitos anteriormente mencionados) consistiu em providenciar o transporte e assegurar a fuga do local do crime. – A resposta negativa ao oitavo quesito (tese defensiva no sentido de participação em crime menos grave) não configurou contradição. Com efeito, conforme anteriormente referido, os Srs. Jurados reconheceram que a atividade da acusada consistiu em providenciar o transporte e assegurar a fuga do local do crime. Devemos relembrar, então, das lições do mestre Hungria, a seguinte passagem: ¿Como reconhecer-se a voluntas ad necem? Trata-se de um factum internum, e desde que não é possível pesquisá-lo no ¿foro intimo¿ do agente, tem-se de inferi-lo dos elementos e circunstâncias do fato externo. O fim do agente se traduz, de regra, no seu ato.¿ – A resposta afirmativa ao décimo quesito (tese defensiva no sentido de participação ¿de menor importância¿) também não importou em contradição ou confusão de resposta. Os Srs. Jurados, avaliando a conduta da ré, consideraram que a acusada autuou como participe, aquilatando, desta forma, seu papel no acontecimento. Não podemos olvidar que ¿O Júri é livre para escolher a solução que lhe pareça justa, ainda que não seja melhor sob a ótica técnico-jurídica, entre as teses agitadas na discussão da causa. Esse procedimento decorre do princípio da convicção íntima ¿ corolário do primado constitucional de soberania (CF , art. 5º, inciso XXXVII)”. (Precedentes: Resp 163760/DF; Rel.Gilson Dipp; DJ 15.05.2000 ¿ Resp 242592/DF; Rel. Hamilton Carvalhido; DJ 24.06.2002).¿. – A resposta afirmativa ao décimo segundo quesito (utilização de recurso que dificultou a defesa da vítima, ou seja, atraindo esta, que sabia desarmada, para local ermo e escuro) e negativa ao décimo terceiro quesito ( uso de recurso que dificultou a defesa da vítima, ¿…uma vez que o disparo pelo co-réu foi desferido pelas costas…¿) importou em revelar tão-somente que foi utilizado recurso que dificultou a defesa da vítima, mas não através da qualificadora genérica (tiro pelas costas). No caso sub judice, assim, sequer podemos afirmar que o Conselho de Sentença não escolheu a melhor solução sob a ótica técnico-jurídica. Com efeito, não se pode confundir a qualificadora genérica descrita no art. 121, § 2º, IV, do CP com a surpresa. Anote-se: HC 77347/SP, Relator: Min. NELSON JOBIM Órgão Julgador: Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal) – Temos, assim, que por tal fundamento não tem passagem o apelo defensivo. ? Da alegação de sentença do Juiz-Presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos Jurados ( Art. 593, inc. III, alínea ¿b¿, do CPP): – A r. sentença não divergiu da resposta dos jurados aos quesitos formulados. – Em relação a dosimetria, inclusive no que tange ao regime carcerário, objeto de inconformidade manifestada por ambas as partes, que apontam ofensa à lei, temos que a matéria deve ser enfrentada quando do exame do recurso fundado na alínea ¿c¿ do inciso III do art. 593 do CPP. Muito embora a questão pudesse ser aqui examinada, devemos ter em conta que as partes buscam a modificação da pena. Aplicável, assim, mutatis mutandis, o seguinte precedente do Pretório Excelso:HC 58675/ PR, Relator: Min. CUNHA PEIXOTO. ?Da pretensão de modificação do veredicto do Tribunal do Júri por alegada decisão contrária à prova dos autos (Art. 593, inc. III, alínea ¿D¿, do CPP): – O ¿… poder do tribunal togado de reformar a decisão do júri tem marcas e raias cujo alargamento pode convir à política criminal, mas ainda se acha desautorizada em lei. Não é qualquer desencontro na apreciação de provas que o justifica. Faz-se mister haja o tribunal do júri proferido decisão que não encontre qualquer apóio na prova.¿ (trecho do voto do eminente Min.. Orozimbro Nonato, em 19 de julho 1944, quando submetida, à 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal, a carta test. N. 11.744, in Eduardo Espínola Filho, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO ANOTADO). A lição continua atual e encontra amparo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. – Devemos lembrar que se trata de orientação dominante, tanto na doutrina como na jurisprudência, que havendo duas versões nos autos e sendo acolhida uma delas pelo Conselho de Sentença não é possível a cassação da decisão, sob fundamento de que ele contraria a prova dos autos. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e da Câmara. – O Conselho de Sentença, no caso sub judice, acolheu uma das versões existentes nos autos. Assim, é inviável a cassação da decisão do júri, pois encontra apoio na prova dos autos. ? Da alegação de erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena (art. 593, inciso III, alínea ¿c¿, do CPP). Inconformidade ministerial e defensiva: – A inconformidade do Ministério Público diz com a fixação da pena-base no mínimo legal, bem como com o regime carcerário. – Assiste, no caso concreto, parcial razão ao Parquet.Com efeito, embora a pena-base não tenha sido fixada aquém do mínimo legal, conforme afirma a acusação (foi estipulada em 12 anos de reclusão), o douto Julgador reconheceu três vetores negativos: (a) circunstância do delito; (b) conseqüências; e, (c) comportamento da vítima. – A pena-base, assim, não poderia ter sido fixada no mínimo legal. Com efeito, ¿O Juiz tem poder discricionário para fixar a pena-base dentro dos limites legais, mas este poder não é arbitrário porque o caput do art. 59 do Código Penal estabelece um rol de oito circunstâncias judiciais que devem orientar a individualização da pena-base, de sorte que quando todos os critérios são favoráveis ao réu, a pena deve ser aplicada no mínimo cominado; entretanto, basta que um deles não seja favorável para que a pena não mais possa ficar no patamar mínimo.¿ (destaquei ¿ trecho da ementa do HC 76196/GO¿GOIÁS, Relator: Min. Maurício Corrêa, j.  29/09/1998, Órgão Julgador:  Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal). – A questão relativa a fixação da pena provisória aquém do mínimo legal (2ª fase), ante o readequação da pena-base, resta prejudicada. – Na 3ª fase, o digno Julgador, considerando a incidência de uma minorante, reduziu a pena operada em ¼. Entende a combativa Defesa que a pena deveria ser reduzida em ¿mais 1/3 e não 1/4, com fez…¿ – Temos que não merece censura o quantum de diminuição estipulado pelo digno sentenciante, visto que restou ponderando o grau de participação da agente. Além disso, não podemos esquecer da existência de orientação jurisprudencial no sentido de que o papel que desenvolveu a ré é importante para a realização do crime (¿O acusado que na divisão de trabalho tinha o domínio funcional do fato (a saber, fuga do local do crime), é co-autor, e não mero partícipe, pois seu papel era previamente definido, importante e necessário para a realização da infração penal.¿, trecho da ementa HC 30503/SP, Relator: MIN. Paulo Medina, Órgão Julgador: Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, j. 18/10/2005) – No que tange ao regime carcerário, temos como inviável o acolhimento da inconformidade ministerial, restando, por outro lado, prejudicado o pleito da Defesa, considerando a majoração do apenamento. – Não devemos esquecer que ¿A sentença deve refletir o estado de fato da lide no momento da entrega da prestação jurisdicional, devendo o Juiz levar em consideração o fato superveniente.¿” (trecho da ementa do RESP 53765/SP, Relator Min. Barros Monteiro.) Assim, considero a nova redação dada ao § 1º do art. 2º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, alcançada pela Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, mais benéfica; e, tendo em conta, ainda, que o principio da não-retroprojeção não tem aplicação no direito penal quando beneficia o réu, é de ser mantido o regime fixado na sentença: o inicial fechado. APELAÇÕES DEFENSIVA: DESPROVIDA APELAÇÕES MINISTERIAL : PARCIALMENTE PROVIDA (ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2007). “EMENTA:  JURI. HOMICIDIO QUALIFICADO E ESTUPRO. REDACAO DEFEITUOSA DE QUESITO, OCORRENDO PRE-JULGAMENTO DO CRIME DE ESTUPRO. FINDA A VOTACAO, SERA O TERMO A QUE SE REFERE O ART-487 ASSINADO PELO JUIZ E JURADOS, A TEOR DO ART-491, TAMBEM DO CODIGO DE PROCESSO PENAL. NO CASO, HOUVE OMISSAO DA ASSINATURA DOS JURADOS. DERAM PROVIMENTO PELA LETRA “A”, INC-III, DO ART-593, DO CPP, PARA ANULAR O PROCESSO A PARTIR DO LIBELO, INCLUSIVE, PELA PREPONDERANCIA DA PRIMEIRA NULIDADE, MAIS ABRANGENTE. UNANIME” (ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 1986).  Nesse contexto de condenar sem haver certeza da culpa, por ausência de provas, lembra o artigo 386 e o inciso VII do Código de Processo Penal, inserido pela Lei n° 11.690 de 2008, dispõem que: “Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: VII – não existir prova suficiente para a condenação.” Pior ainda, é quando não ocorre a confissão, pois para quem acompanha o caso de forma não emocional, sempre fica com uma incerteza quanto à culpabilidade dos agentes, a qual é unida à um conjunto probatório frágil e contraditório em certos pontos, o que mostra uma fragilidade no sistema punitivo brasileiro, pois facilmente pode-se punir um inocente[11]. Conclusão Entende-se que a grande repercussão de um caso de comoção nacional e até internacional, leve à um pré julgamento da população como um todo, afetando com certeza a versão a ter maior peso na análise dos jurados. O pré-julgamento realizado pelos meios de telecomunicação, apresentam-se como um forte indicativo para que o conselho de sentença aja com parcialidade e de forma simplesmente emotiva em sua análise, não adentrando nas questões da ausência de conhecimento jurídico dos jurados e coisas do gênero, em respeito à Lei Magna. Nota-se que a ausência da confissão pelo réu, quando as provas são contestáveis por sua fragilidade ou por carência de elementos que garantam sua consistência, causam uma sensação de que se está condenando alguém que pode ser inocente e aí presencia-se a violação do princípio in dubio pro reo, visto que só deve-se punir quando realmente não houverem dúvidas. O que mostra-se mais forte nesses julgamentos de grande comoção social, é o desejo de vingança que emana a sociedade. É possível perceber que para o senso comum, os acusados devem ser condenados a qualquer custo, não trabalha-se com a idéia de que outro possa ter realizado aquela conduta, lembra a expressão “já que está, que vá”, já que está sendo julgado, que vá para a cadeia e faça-se a devida justiça. O pré-julgamento é portanto singelamente constatado, sendo revoltante notar a felicidade nas faces da sociedade enlouquecida ao poder ver que alguém foi condenado[12] (mesmo com provas questionáveis e de caráter duvidoso). A condenação soa negativo, vez que, mostra o quanto somos errantes enquanto seres humanos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/condenacao-criminal-em-tribunal-de-juri-e-incerteza-da-culpa-por-inocorrencia-da-figura-do-reu-confesso/
O uso indiscriminado de algemas – Aspectos polêmicos da Súmula Vinculante n.º 11
O uso de algemas na atividade policial sempre foi alvo de infindáveis debates, seja pelo constrangimento físico e moral impingidos ao acusado e o sensacionalismo com que a mídia procede em determinados casos, seja pela desnecessidade de se algemar quem não apresenta qualquer periculosidade, ou pelo fato de raramente os chamados “criminosos de colarinho branco” sofrerem esse tipo de constrangimento. Por tais razões, em agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº. 11, que prevê o uso de algemas apenas em casos excepcionais, responsabilizando civil e penalmente o agente que cometer arbitrariedades. Todavia, referida súmula recebeu inúmeras críticas, as quais serão abordadas no presente artigo, sob o enfoque dos princípios constitucionais e, em especial, do princípio da dignidade da pessoa humana, ressaltando, outrossim, a atuação da mídia, da Polícia, do Judiciário e do Ministério Público nessa questão.
Direito Processual Penal
1. Introdução De acordo com a Súmula Vinculante nº. 11, editada pelo Supremo Tribunal Federal em 13 de agosto de 2008, “só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. Tal súmula originou-se da necessidade de se coibir uma série de abusos cometidos pelo Estado na execução de prisões e na realização de atos envolvendo réus presos, além da falta de regulamentação do art. 199 da Lei de Execuções Penais, que determina que o emprego da algema seja regulamentado por decreto federal. Contudo, tendo em vista a abrangência e o teor de seu texto e, ainda, as circunstâncias em que se deu sua edição, algumas questões surgiram acerca de sua aplicação, como a segurança dos policiais envolvidos no ato de prisão, o uso de algemas nos tribunais, sua compatibilidade com o princípio da dignidade humana, a postura do Supremo Tribunal Federal, entre outras, as quais são objeto do presente artigo, que com base no método de abordagem dedutivo, busca analisar os principais aspectos polêmicos acerca do uso das algemas. A pesquisa desenvolveu-se através de levantamento bibliográfico, envolvendo livros jurídicos, revistas especializadas na área, artigos publicados na internet, assim como a legislação e jurisprudência existentes. O tema desperta a reflexão não apenas acerca dos princípios que informam o processo penal, mas também e, principalmente, de outros direitos fundamentais, como o direito à imagem e à integridade física. Coloca-se em foco o papel do Ministério Público, do Judiciário, da Polícia e da mídia na edição e aplicação da referida súmula. Os argumentos apresentados ao longo do texto fundamentam as conclusões da autora, que defende que o sucesso da intervenção mínima pressupõe, também, um mínimo de condições de aplicabilidade das normas, o que se obtém por meio de uma legislação técnica coerente, estruturação dos órgãos de jurisdição e aparelhamento dos mecanismos de execução das penas. 2. Aspectos Gerais das Súmulas Vinculantes Originária do latim Summula, a palavra súmula significa sumário, restrito, podendo ser definida como um enunciado objetivo, sintético e conciso. (CAPEZ, 2005). No âmbito dos Tribunais, a súmula é um resumo de todos os casos parecidos decididos da mesma maneira, que em regra, não possui caráter cogente, servindo apenas de orientação para as futuras decisões, a menos que passe a ter efeito vinculante, o que se tornou possível a partir da Emenda Constitucional nº. 45/04, a qual prevê, em seu art. 103-A, a possibilidade de uma súmula ter eficácia vinculante sobre decisões futuras, dispondo que: O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.   §1º – A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.   Ao atribuir-se efeito vinculante e não meramente facultativo, busca-se evitar que uma mesma norma seja interpretada de forma distinta para situações fáticas idênticas e com isso alcançar a celeridade processual. A súmula vinculante, todavia, atribui ao órgão jurisdicional de instância superior a tarefa de dizer o direito em tese, em caráter genérico e universal, atribuição para a qual nunca esteve autorizado constitucionalmente, carecendo de legitimação democrática e recaindo em perigoso desvio de sua missão de dizer o direito no caso concreto, compondo os conflitos de interesse na exata medida de suas realidades. Nestes termos, a súmula vinculante seria inconstitucional, pois, apesar de não excluir, constitui violação material de direito fundamental, pois esvazia o conteúdo jurídico do que está disposto no artigo 5º, XXXV e LIII. Além disso, definir com precisão a quantidade de decisões para que sejam essas consideradas reiteradas não é tarefa fácil, assim como também não e fácil definir quando estaria consolidada uma jurisprudência dominante. Desse modo, o bom senso e a razoabilidade devem guiar o intérprete, pois se não fosse assim, teria feito o legislador um sistema no qual toda e qualquer decisão do STF fosse vinculante. 3. A Súmula Vinculante nº 11 à luz dos princípios constitucionais fundamentais  Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os fundamentos da ordem jurídica, sendo um conjunto de bens e valores considerados bases de validade de todo o sistema jurídico. Segundo o Ministro Marco Aurélio de Melo, os princípios possuem uma tríplice função: a primeira delas, de natureza informativa, tem como alvo o legislador; a segunda, de cunho normativo, é voltada para a sociedade com um todo e, por último, a função interpretativa, a qual está endereçada para os operadores do Direito.          O Direito existe como criação do homem, como emanação do pensar e viver em sociedade, destinado a garantir proteção a determinados bens jurídicos como a vida, a liberdade, a integridade física e mental, a saúde e a honra. É, pois, essencial à condição do homem livre. Nesse diapasão, a Constituição de 1988 elenca, no rol de direitos individuais do seu art. 5º, importantes exigências que o Estado deve observar no desempenho de sua função punitiva, sob pena de desrespeitar tal condição, tais como garantias inerentes a: vedação em submeter qualquer pessoa a tratamento desumano ou degradante (inciso III), assegurando-se ao preso o respeito à integridade física e moral (inciso XLIX); observância do devido processo legal (inciso LIV) com todos os seus consectários, entre os quais o contraditório e a ampla defesa (inciso LV), o julgamento por autoridade competente (inciso LIII), a não admissibilidade de provas obtidas por meio ilícito (inciso LVI), a proibição de juízos ou tribunais de exceção (inciso XXXVII) e a consideração de que ninguém será reputado culpado senão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória (inciso LVII), importando esta última em pressupor que a segregação do acusado, antes da sentença irrecorrível, somente se legitima em situações proporcionais previstas em lei; legitimidade material do direito de punir, tais como a reserva legal da definição de crimes e cominação de penas (inciso XXXIX), a individualização destas na medida da culpabilidade do infrator (incisos XLV e XLVI), a proibição de determinadas sanções, tais como a pena capital, a prisão perpétua, os trabalhos forçados, o banimento e as penas cruéis (inciso XLVII), a movimentação da competência prisional (incisos LXI a LXVI e LXVIII); e) execução da pena (incisos XLVIII e L), entre outros. Vale, porém, ressaltar, que a própria Constituição Federal, em seu art. 144, prevê que “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio através da polícia (…)” e para consecução desses objetivos, muitas vezes é necessário o uso da força e de instrumentos de repressão, tais como as algemas. É cediço que as algemas constituem instrumento fundamental na atividade policial, já que fazem parte do conjunto mínimo de equipamentos de segurança que um policial deve ter ao exercer suas funções. Em vista disso, um relevante aspecto referente ao tema diz respeito à substituição das algemas pela escolta policial, haja vista que para cada preso algemado conduzido deve ser empregado, no mínimo, um policial militar, o que seria inviável tendo em vista a deficiência de pessoal dos órgãos policiais. Mas as críticas à súmula vinculante nº. 11 referem-se sobretudo ao fato de que o Supremo Tribunal Federal estaria “legislando”, desvirtuando-se de seu papel de garantidor da ordem constitucional e aplicador do jus puniendi àqueles que violam direitos fundamentais. O texto carregaria em si, portanto, o vício de inconstitucionalidade por quebra do princípio do pacto federativo e da regra da separação dos poderes, embora o STF estivesse legislando para proteger um direito humano fundamental, tendo em vista o descaso normativo em regulamentar a questão das algemas. Alguns estudiosos do assunto chegam a frisar que a inconstitucionalidade da Súmula n. º 11 verifica-se no trecho que diz: “(…) justificada a excepcionalidade por escrito“, posto que não existe lei em vigor no país que traga essa previsão, tendo o Supremo criado uma norma, inovado, estipulando sanção civil, administrativa e penal em caso de descumprimento. Entretanto, concorda-se que o guardião da Constituição não poderia ficar à espera da regulamentação federal que nunca ocorreu. Seria uma irresponsabilidade do STF se omitir ao julgar situações nos casos concretos que chegam à sua porta, uma vez que esse não deve ser o perfil do magistrado do século XXI. Por fim, outra crítica à súmula relaciona-se ao fato de que, a partir dela, o uso ilegal de algemas pelas autoridades que compõem o sistema de segurança pública provoca a invalidação do ato de prisão, fulminando-o de nulidade, ou seja, estar-se-ia presenteando o infrator com a liberdade pela falha dos agentes do Estado, juízes ou profissionais de segurança pública e, como se sabe, a prisão é ato vinculado e não discricionário e as hipóteses para sua revogação ou relaxamento encontram-se devidamente regradas pelas leis penais. Ressalte-se que antes da edição da Súmula Vinculante nº. 11, alguns diplomas legais, ainda que não regulassem totalmente a matéria, já traziam espécies de orientações a serem seguidas na utilização das algemas nas prisões de infratores e suspeitos, como veremos a seguir. 4. O uso de algemas no processo penal Dispõe o art. 199 da Lei de Execução Penal – Lei nº 7.210, de julho de 1984, que “O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”. No entanto até hoje não existe esse decreto federal que cuide da matéria. De qualquer modo, nosso ordenamento jurídico-penal contém alguns repositórios legais que prevêem o uso da força no ato de prisão e durante o processo. Por exemplo, o art. 284 do Código de Processo Penal preconiza que “não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”; o art. 292 diz que “se houver… resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência…”. O art. 301 do mesmo diploma legal também trata que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito“, ao passo que o art. 474 dispõe que “não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do Júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”. O Código Penal Militar também prevê, em seu art. 234: “O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas”. Saliente-se que tramita, atualmente, na Câmara dos Deputados, uma série de projetos de lei acerca do uso de algemas. Há, inclusive, um Projeto de Decreto Legislativo (PDC-853-2008) objetivando sustar a aplicação da Súmula Vinculante n.º 11. O PL 3889/2008 dispõe sobre o emprego de algemas na condução de presos e detidos, enquanto que o PL 3888/2008 altera a redação do inciso III do art. 13 e do art. 301 do CPP, sobre a utilização de algemas na condução do preso em mandados de prisão expedidos pelas autoridades judiciárias e nas prisões em flagrante delito. Outro Projeto de Lei que merece destaque é o 3746/2008, que libera o uso de algemas para os idosos, gestantes, presos e detidos que se apresentem voluntariamente e não apresentem indícios de fuga ou riscos à segurança. No Senado Federal, por sua vez, destaca-se o Projeto de Lei 185/2004, que regulamenta o emprego de algemas, sem distinção de fase, seja investigativa, processual ou de execução penal. Entretanto, embora não faltem projetos de lei sobre o tema, a morosidade das nossas Casas Legislativas não permitiu que nenhum destes fossem apreciados e convertidos em lei, daí porque o Supremo Tribunal antecipou-se a fim de regulamentar a matéria, como já exposto acima. 5. Considerações acerca do princípio da dignidade da pessoa humana Costuma-se dizer que a base de todos os princípios é o da dignidade da pessoa humana, entendida como o atributo imanente ao ser humano para exercício da liberdade e de direitos, constituindo-se um mínimo que todo ordenamento jurídico deve assegurar e que somente pode sofrer limitações quando ofender outros direitos fundamentais. Mesmo tendo violado as normas de convivência e de harmonia social e a integridade humana de outrem, o acusado também merece os cuidados do poder público competente, pois um dia retornará ao convívio social. É esse o papel ressocializador do direito penal, ou pelo menos deveria ser. É bem verdade que para colocar em prática o princípio da dignidade humana é preciso motivar as políticas públicas, de um lado diminuindo o avanço da criminalidade e, de outro, garantindo a reinserção social dos detentos. No que se refere à questão das algemas, esse princípio é constantemente violado, pois, ao se algemar-se um acusado desnecessariamente, os juízes da mídia e da sociedade o condenam antecipadamente, ou seja, atentam não apenas contra a dignidade humana, mas contra os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência. Pode-se dizer, então, que o conceito de dignidade humana abriga um conjunto de valores que não está restrito, unicamente, à defesa dos direitos individuais do homem, mas abarca uma série de direitos, liberdades, garantias e interesses que dizem respeito à vida humana, sejam esses direitos pessoais, sociais, políticos, culturais, ou econômicos, dele decorrendo outros importantes princípios penais, tais como o da legalidade, insignificância, adequação social, fragmentariedade, subsidiariedade e proporcionalidade. Destarte, um sistema penal humanitário inclui a implementação de atividade policial respeitosa, de um processo penal constitucional e de um sistema prisional digno. 6. A atuação da mídia, da Polícia e do Ministério Público acerca do uso de algemas A polêmica acerca da utilização indiscriminada de algemas pela polícia e o judiciário volta a ser tema de decisões judiciais e acaloradas discussões principalmente após a prisão de importantes nomes do cenário político brasileiro. O fato é que as algemas ora são vistas como símbolo de repressão e humilhação, ora como fundamentais na segurança tanto do conduzido quanto do condutor. O Estado atua com o chamado jus puniendi, ou seja, o direito que tem de punir condutas que são consideradas ilícitas. No entanto, a recente prisão de diversos acusados, pertencentes às mais altas classes da sociedade por suspeita de prática de crimes como lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, evasão de divisas, corrupção ativa, entre outros, recebeu ampla cobertura da mídia e causou sentimentos e manifestações diversos quanto à necessidade do uso da algemas. O principal argumento contrário à utilização de algemas em tais casos está no baixo risco de periculosidade e possibilidade de resistência à prisão ou tentativa de fuga, ao contrário do que ocorre com traficantes, seqüestradores, homicidas, etc. Tal argumento merece críticas, pois não se pode usar como critério a natureza do crime para se definir se há perigo de fuga ou à integridade física de outrem. Não se pode afirmar que um homicida sempre tenta fugir no ato de prisão, assim como também não há como saber se um criminoso do colarinho branco incontestavelmente se conformará com sua constrição, sem tentar adotar alguma medida violenta. Isso seria discriminação, ato abominado por nossa Carta Magna, reforçando o preconceito de classes. Mas as notícias sensacionalistas das infrações penais e a impetuosidade das primeiras investigações revertem à presunção de inocência para transformar o simples suspeito ou mero indiciado em criminoso, seja ele de que classe for. A imprensa, principalmente a mídia televisiva, costuma basear-se somente nas fontes iniciais, isto é, a polícia e o Ministério Público, não se interessando em analisar o lado do investigado, que mantém contra si a presunção de culpa. Cria-se, então, um juízo paralelo na sociedade, capaz de pressionar os órgãos jurisdicionais e decidir sobre as condutas alheias. Rotineiramente vimos Delegados de Polícia extrapolando nos comentários dados em entrevistas, comprometendo a respeitabilidade e confiabilidade no trabalho da polícia. Promotores de Justiça e Procuradores da República também costumam comentar na mídia sobre os fatos apurados, embora sejam agentes de controle externo da atividade judicial, que tem, entre os seus mais altos objetivos, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. O Ministério Público por vezes esquece que seu papel não é de mero acusador, mas de zelador dos direitos humanos. Com efeito, o uso indiscriminado e arbitrário de algemas é inadmissível em um Estado Democrático de Direito, pois tal instrumento deve restringir-se a conter pessoas que, efetivamente, ponham em risco a segurança alheia, seja patrimonial ou pessoal, ou a ação da justiça. Aliás, um dos motivos para a edição da Súmula Vinculante nº. 11, segundo o Presidente do STF, ministro Gilmar Mendes (apud DOTTI, 2008, p.26-27), era justamente evitar o uso de algemas para exposição pública do preso. “A Corte jamais validou esta prática, que viola a presunção da inocência e o princípio da dignidade humana“, afirmou. Segundo ele, em geral, a utilização de algemas já é feita com o propósito de violar claramente esses princípios. O objetivo é “algemar e colocar na TV“, afirmou. Assim, a Súmula Vinculante nº. 11 nasce não só para regulamentar o uso das algemas, como também para por fim ao sensacionalismo feito pela mídia quando uma prisão ou outro ato processual é realizado.   7. A aplicação da Súmula n.º 11 e a realidade jurisprudencial brasileira Antes da edição da Súmula Vinculante nº. 11 já se verificavam em nossa jurisprudência importantes decisões acerca do uso de algemas, das quais podemos destacar o HC 71.195 – 2ª Turma – Rel. Min. Francisco Rezek, j. 25.10.94, onde se decidiu que o emprego de algemas em plenário do Júri não constituiu constrangimento ilegal porque, no caso concreto, a medida se revelou imprescindível à ordem dos trabalhos e à segurança dos presentes, posto havia informações de que o réu pretendia agredir o Juiz-Presidente e o Promotor de Justiça; o RHC 56.465 (2ª Turma – Rel. Min. Cordeiro Guerra, j. 05.09.78), em que se entendeu que o uso de algemas em audiência para inquirição e testemunhas é justificado para se evitar a fuga do preso e preservar a segurança das testemunhas, inserindo-se a decisão no âmbito da condução pelo juiz dos trabalhos desenvolvidos na audiência; e o REsp n.º 571924 (2ª Turma – Rel. Min. Castro Meira, j. 24.10.2006), no qual o Superior Tribunal de Justiça isentou a União de pagar indenização por danos morais a um empresário que foi algemado pela Polícia Federal e depois foi absolvido das acusações de contrabando e descaminho, por entender que se demonstra razoável o uso de algemas, mesmo inexistindo resistência à prisão, quando existir tumulto que o justifique. Percebem-se decisões em que o uso de algemas é admitido inclusive contra menores infratores nos casos de resistência à prisão, desde que a sua conduta cause risco à integridade física dos executores da lei, consoante entendimento do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de Goiás, segundo o qual “Não há falar-se em falta de motivação ou nulidade processual, por ofensa aos princípios da não culpabilidade, ampla defesa e devido processo legal, se a decretação da internação provisória do paciente, ao qual é imputado atos infracionais, foi editada por autoridade competente e decorre da garantia da ordem pública e segurança do próprio adolescente, seja pela gravidade do ato infracional ou pela repercussão social, observados, portanto, requisitos impostos nos arts. 108, 122, 174 e 183 do Estatuto da Criança e Adolescente”. Analisando-se os precedentes do STF, bem como o que foi discutido na sessão em que se aprovou o texto da súmula vinculante nº. 11, tem-se que na verdade as preocupações maiores se relacionavam com a divulgação da imagem do réu algemado, principalmente na execução de prisões em flagrante e ordens de prisão preventiva ou temporária. A parte final da súmula sob análise prevê, inclusive, a responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade que usar arbitrariamente as algemas durante as prisões ou outros atos processuais. Administrativamente, o uso arbitrário de algemas configura uma infração passível de punição proporcional a gravidade, podendo, inclusive, acarretar a demissão do agente público. Civilmente, pode gerar um ilícito, capaz de gerar responsabilidade civil, dando ensejo a uma indenização hábil a reparar o dano físico e moral provocado ao preso. Penalmente, configura abuso de autoridade, regulado pela Lei n.º 4.898/65, que trata do direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, nos casos de abuso de autoridade, consistindo este em “submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei”. A matéria da súmula vinculante n.º 11 também foi enfrentada pelo STF no HC n.º 89.429/RO da 1.ª Turma, que teve como relatora a Ministra Carmen Lúcia, com a seguinte ementa:   HABEAS CORPUS. PENAL. USO DE ALGEMAS NO MOMENTO DA PRISÃO. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA EM FACE DA CONDUTA PASSIVA DO PACIENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PRECEDENTES. 1. O uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo. O emprego dessa medida tem como balizamento jurídico necessário os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Precedentes. 2. Habeas corpus concedido.   Todavia, a “gota d’água” para a elaboração da súmula vinculante ora comentada foi o HC 91.952 (Plenário). Rel. Min. Marco Aurélio – j. 07.08.08, em que se anulou um julgamento efetuado pelo Júri popular da cidade de Laranjal Paulista, em 2005, porque o réu, um pedreiro acusado de homicídio, ficou algemado durante a sessão de julgamento. O principal fundamento para a decisão foi a potencial influência da visão do réu algemado sobre os jurados, que, leigos que são, poderiam fazer um pré-julgamento e entender que o réu era culpado. Na ocasião, afirmou-se que não existiam dados concretos que pudessem indicar que, pelo perfil do acusado, houvesse risco aos presentes caso ele permanecesse em plenário sem algemas, razão pela qual se considerou violada sua dignidade humana. Desde então, a Suprema Corte firmou a compreensão de que o uso de algemas, por se tratar de medida coercitiva excepcional, é restrita aos casos de a) resistência à prisão, b) fundado receio de fuga ou c) perigo à integridade física do preso e/ou de terceiros, sob pena de responsabilização civil, disciplinar e penal do agente público coator, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. 8. Conclusão A Súmula Vinculante nº. 11 tem sido vista por uns como uma vitória do Estado Democrático de Direito sobre o Estado de Polícia. Por outros, como manifesta inconstitucionalidade. A verdade é que a falta de leis sobre o tema fez com que o Supremo Tribunal Federal decidisse “legislar” e criar regras a fim de combater o uso arbitrário e indiscriminado das algemas nas atividades policiais e no judiciário. Mas as críticas, como não poderia deixar de ser, acumulam-se, levantando discussões não apenas do ponto de vista constitucional e jurídico, mas do ponto de vista social. Sabe-se que o ato de prisão constitui-se um momento de tensão, não havendo como prever qual será a resposta de uma pessoa ao saber que será detida, nem evitar uma possível reação desesperada, o que pode levar a conseqüências piores. Nesse contexto, destacam-se os policiais, que devem cuidar de sua segurança e a dos detidos e ainda analisar as ações que possam ensejar o abuso de autoridade da condução destas mesmas pessoas. Ora, às vezes o uso de algemas é legítimo e necessário, lembrando que o ordenamento jurídico brasileiro permite o uso da força em situações que a requerem. O policial que não adota procedimentos de segurança põe em risco não apenas sua integridade física, mas também a de terceiros, ensejando, inclusive, a responsabilização do Estado por falta de cautela. Não se defende aqui o uso irrestrito de algemas, mas sim que estas devem ser usadas com a finalidade de prevenir, desestimular e coibir a reação do preso ou conduzido, através de sua imobilização e contenção, independentemente do enquadramento típico-penal da conduta censurada, pois a avaliação do estado anímico do réu-investigado é feita no ato da prisão e não só pelos fatos pretéritos cometidos. O que se critica é o abuso em relação ao uso de algemas, prisões, vexames e constrangimentos contra indivíduos suspeitos, que às vezes nem chegaram a ser indiciados. Assim, se não há risco de lesão ou fuga daquele que foi apreendido ou risco de agressão aos envolvidos na captura e transporte do preso, algemar alguém seria nada menos do que um ato simbólico de humilhação, cominando-lhe uma pena antecipada, desrespeitando os princípios constitucionais e, em especial, o da dignidade da pessoa humana. A intenção da súmula é, notoriamente, evitar a utilização das algemas nas prisões para os delinqüentes não habituais e menos perigosos, devendo ficar restrita aos casos graves, em que a retirada do delinqüente do meio social é medida necessária e urgente. Defende-se, pois, a harmonização entre as garantias constitucionais e a eficiente concretização das finalidades do Direito Penal, a fim de mudar a estereotipada visão de que o sistema carcerário brasileiro é  um dos piores do mundo devido à  patente violação dos direitos humanos. A edição de leis às quais não se consegue dar um mínimo de efetividade banaliza o direito penal e limita a sociedade ao pensamento de que a solução para a criminalidade está no fortalecimento das leis, quando na verdade se sabe que o problema é eminentemente social.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/o-uso-indiscriminado-de-algemas-aspectos-polemicos-da-sumula-vinculante-n-11/
Poder de polícia do Exército na faixa de fronteira da Amazônia brasileira
Este artigo tem a finalidade de demonstrar o alcance do Poder de Polícia conferido ao Exército Brasileiro, por intermédio da Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, alterada pela Lei Complementar nº 117, de 2 de setembro de 2004, no que tange aos seus aspectos práticos na região amazônica. Devemos levar em consideração que o território amazônico tem características que o tornam diferenciado do restante de nosso País, o que dificulta muito a implementação da supracitada lei, principalmente devido à ausência dos demais órgãos públicos e à dificuldade de locomoção no seu interior agravado às peculiaridades geográficas da área.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO Inicialmente devemos identificar a missão constitucional das Forças Armadas em nosso País, onde podemos observar ao longo de todas as nossas Constituições que a mesma variou muito pouco, ou praticamente nada, pois em todas elas ficou reservado às mesmas a Defesa da Pátria, dos Poderes Constitucionais e da Lei e da Ordem, conforme podemos observar abaixo: a) Constituição de 1824 “Art. 145. Todos os Brazileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independencia, e integridade do Imperio, e defende-lo dos seus inimigos externos, ou internos. Art. 148. Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente á Segurança, e defesa do Imperio”. b) Constituição de 1891 “Art 14 – As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis no interior. A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos e obrigada a sustentar as instituições constitucionais.” c) Constituição de 1934 “Art 162 – As forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, e, ordem e a lei.” d) Constituição de 1937 “Art 166 – Em caso de ameaça externa ou iminência de perturbações internas ou existências de concerto, plano ou conspiração, tendente a perturbar a paz pública ou pôr em perigo a estrutura das instituições, a segurança do Estado ou dos cidadãos, poderá o Presidente da República declarar em todo o território do Pais, ou na porção do território particularmente ameaçado, o estado de emergência. Desde que se torne necessário o emprego das forças armadas para a defesa do Estado, o Presidente da República declarará em todo o território nacional ou em parte dele, o estado de guerra.” e) Constituição de 1946 “Art 177 – Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.” f) Constituição de 1967 “Art 92 – As forças armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei. § 1º – Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os Poderes constituídos, a lei e a ordem.” g) Constituição de 1969 (na verdade, emenda constitucional nº 1, de 1º de outubro de 1969, que alterou toda a Constituição de 1967) “Art. 91. As Fôrças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos podêres constituídos, da lei e da ordem.” h) Constituição de 1988 “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” 2. PODER DE POLÍCIA NA FAIXA DE FRONTEIRA Como se pode verificar nos textos das diversas constituições que nortearam o ordenamento jurídico de nosso país, desde seus primórdios, observa-se que as missões constitucionais principais de nossas Forças Armadas sempre foram e ainda são a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei e da ordem. A Lei Complementar 97 de 1999, alterada pela Lei Complementar 117 de 2004, fazendo alusão ao texto constitucional e atribuindo caráter subsidiário ao emprego das Forças Armadas, em especial o Exército Brasileiro, na atividade de preservação de segurança pública, destinou à Força Terrestre, como atribuição subsidiária particular o poder de polícia na faixa de fronteira, demonstrando como deve atuar neste sentido, conforme pode-se observar no texto legal abaixo:  “Art. 17-A. Cabe ao Exército, além de outras ações pertinentes, como atribuições subsidiárias particulares: I – contribuir para a formulação e condução de políticas nacionais que digam respeito ao Poder Militar Terrestre; II – cooperar com órgãos públicos federais, estaduais e municipais e, excepcionalmente, com empresas privadas, na execução de obras e serviços de engenharia, sendo os recursos advindos do órgão solicitante; III – cooperar com órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional, no território nacional, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução; IV – atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, executando, dentre outras, as ações de: a) patrulhamento; b) revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves; e c) prisões em flagrante delito.” No que tange às alíneas a) e b) do inciso IV do Art 17-A da Lei Complementar 97 de 1999 não há dúvidas quanto à sua execução, porém no que diz respeito à alínea c) do mesmo inciso fica uma grande lacuna no tocante à sua execução, visto que as prisões em flagrante delito são prerrogativas de qualquer do povo, conforme podemos observar no Art. 301 do Código de Processo Penal que prevê que qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Fica evidente apenas que os militares passam de situação de poder realizar prisões em flagrante contra delitos transfronteiriços e ambientais para a situação de dever prender quem estiver cometendo qualquer destes delitos na faixa de fronteira. No que a Lei Complementar 97 de 99 não é clara é quanto à lavratura do Auto de Prisão de Flagrante Delito, uma vez que este ato é de competência das autoridades com atribuição de Polícia Judiciária, sendo os militares do Exército Brasileiro competentes para lavrar os autos de prisão em flagrante delito apenas no caso de crimes militares, ficando os demais crimes na esfera de competência da Polícia Civil Estadual ou da Polícia Federal, conforme as características do crime cometido. Em relação aos crimes transfronteiriços e ambientais, os crimes em sua maioria são de competência da Justiça Federal, sendo autoridade para a lavratura dos respectivos autos de prisão a Polícia Federal, que tem a missão constitucional de exercer a função de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras, conforme § 1º do Art 144 da Constituição Federal, que trata da segurança pública. “§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II – prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III – exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.” Portanto, existe uma limitação legal para a atuação do Exército Brasileiro, o que dificulta o trabalho desses militares no caso da lavratura de autos de prisão em flagrante delito, que é uma atividade típica de polícia judiciária e, por mais que a Lei Complementar 117 tenha atribuído ao Exército a competência de realizar prisões em flagrante para os crimes transfronteiriços e ambientais na faixa de fronteira, não pode fazê-lo em relação à lavratura do auto de prisão, visto que a Constituição atribuiu à Polícia Federal competência exclusiva para exercer as funções de polícia judiciária da União. 3. FAIXA DE FRONTEIRA Segundo o Art. 1º da Lei 6.634, de maio de 1979, que dispõe sobre a Faixa de Fronteira, é considerada área indispensável à Segurança Nacional a faixa interna de 150 Km (cento e cinqüenta quilômetros) de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional, que será designada como Faixa de Fronteira. A fronteira brasileira possui uma extensão de aproximadamente 16.866 km, sendo, na região amazônica, correspondente a 11.600 km, podendo-se chegar ao número de 1.740.000 km² de área a ser patrulhada somente nesta região. 4. PRINCIPAIS DIFICULDADES ENCONTRADAS NA REGIÃO AMAZÔNICA A implementação da Lei Complementar 97 de 99, no que tange ao poder de polícia destinado ao Exército Brasileiro, na região amazônica é dificultada por diversos fatores, dentre eles a imensidão do território amazônico aliado à ausência da maior parte dos poderes públicos nesta parte do Brasil. a) Ausência dos poderes públicos A Polícia Federal, no Estado do Amazonas, que é o maior Estado da Amazônia Brasileira, tem uma área de 1.570.745,680 km², vasta fronteira terrestre com a Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia, conta com a Superintendência Regional na cidade de Manaus e apenas uma delegacia em todo o Estado, situada na cidade de Tabatinga, ao passo que o Estado do Rio de Janeiro, com território de 43.969,054 km², portanto mais que 35 vezes menor que o Estado citado anteriormente e nenhuma fronteira terrestre com qualquer país possui, além da Superintendência Regional na cidade do Rio de Janeiro, mais sete delegacias, dispostas nas cidades de Angra dos Reis, Campos dos Goytacazes, Macaé, Niterói, Nova Iguaçu, Volta Redonda e Petrópolis. Na maioria dos Pelotões de Fronteira do Exército Brasileiro, os militares são a única presença do Estado em uma vasta área do território nacional, ficando sob sua atribuição as atividades destinadas a outros órgão públicos, dentre elas podemos destacar a saúde, educação, segurança, dentre outras. b) Dificuldade de locomoção na região amazônica Em relação à locomoção dentro da região amazônica verificamos o pequeno número de estradas existentes em nossa região, aliados ao péssimo estado de conservação em que se encontram a maioria das existentes, devido principalmente às características geográficas da região que praticamente impedem a interligação de todos os municípios dessa região. Fruto dessa dificuldade de transporte, podemos utilizar o exemplo de uma prisão em flagrante delito que ocorra na localidade de Estirão do Equador, Município de Atalaia do Norte, Estado do Amazonas, que está localizada na fronteira do Brasil com o Peru. Para que seja lavrado o auto de prisão de flagrante delito será necessário que o cidadão seja conduzido até a cidade de Tabatinga, onde existe a Delegacia de Polícia Federal mais próxima, para que o Delegado de Polícia Federal lavre o respectivo auto, caso entenda que é caso. Ocorre que, para que esta pessoa seja conduzida até Tabatinga será necessário apoio aéreo, ou então deslocamento por via fluvial, o que não durará menos de 48 horas. Tendo em vista que os meios aéreos são extremamente caros e que não existe previsão para o custeio de verbas para condução de elementos até a Polícia Federal para que sejam lavrados autos de prisão o que deverá ocorrer é o deslocamento fluvial. Com isso fica impossível o cumprimento do Art 306 do Código de Processo Penal. “Art. 306.  A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada. (Redação dada pela Lei nº 11.449, de 2007). § 1o  Dentro em 24h (vinte e quatro horas) depois da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.” 5. CONCLUSÃO Ao fim deste trabalho chega-se à conclusão de que o Exército Brasileiro recebeu o poder de polícia para atuar contra os crimes transfronteiriços e ambientais na faixa de fronteira, atuando por meio de ações preventivas e repressivas, podendo realizar uma série de atividades típicas de polícia, tais como realizar patrulhamentos, revistas de pessoas, veículos, embarcações e aeronaves. Contudo a atribuição de combate a esses crimes não foi transmitida para o Exército Brasileiro por parte da Polícia Federal, que continua constitucionalmente destinada a atuar como polícia de fronteira e com a competência de polícia judiciária exclusiva da União. Fica também claro que a atuação do Exército Brasileiro se torna muito dificultada em face da ausência dos demais órgãos governamentais nessa faixa do território nacional e principalmente devido às características geográficas do território que tornam o transporte de pessoas detidas muito demorado, acabando por inviabilizar o cumprimento do Código de Processo Penal no que tange à apresentação do preso em prazo não superior a 24 horas após a prisão.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/poder-de-policia-do-exercito-na-faixa-de-fronteira-da-amazonia-brasileira/
A reforma do CPP e o Código de Processo Penal Militar: Aplicação da absolvição sumária na Justiça Militar
O objetivo deste ensaio é evidenciar e discutir a aplicação da nova figura da absolvição sumária no âmbito da Justiça Militar brasileira. Essa discussão tem início com o advento da Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, incluída no rol daquelas que compõem a chamada reforma do processo penal, a qual fez surgir uma nova espécie de resolução antecipada do mérito no Código de Processo Penal — a absolvição sumária. Até então, existia um instituto semelhante no CPP, todavia com alcance restrito ao rito especial do tribunal do júri. Já a nova figura, a partir da edição da novel Lei 11.719/08, teve sua utilização ampliada para todos os outros procedimentos. Desse modo, cumpre verificar, e este é o ponto central deste trabalho, se esse recente instituto é aplicável ao processo penal militar, já que este se pauta no Código de Processo Penal Militar, ou seja, uma lei especial. Outrossim, essa nova absolvição sumária terá sua incidência, pondo fim ao processo logo no seu início, quando houver, dentre outras hipóteses, a manifesta existência de uma causa excludente da ilicitude do fato, por exemplo. Assim, já se pode vislumbrar a importância do mecanismo em tela, por tornar possível a extinção do processo criminal logo após o início da sua formação, interrompendo os seus danosos efeitos para o réu. Em relação a essa função também será dado um destaque especial.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO O processo penal militar brasileiro, tanto na esfera federal quanto na estadual, é dirigido pelas normas do Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969, Código de Processo Penal Militar. Isto é o que se depreende do seu art. 1º, o qual estabelece: “O processo penal militar reger-se-á pelas normas contidas neste código, assim em tempo de paz como em tempo de guerra, salvo legislação especial que lhe for estritamente aplicável”. A partir dessa premissa, convém examinar se a Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, que compõe, juntamente com as Leis 11.689 e 11.690, a denominada reforma processual penal, tem alguma aplicação no processo penal militar. A causa dessa discussão advém da redação do novo § 4º do art. 394 do Código de Processo Penal comum, inserido pela Lei nº 11.719/08. Esse dispositivo prevê a incidência de alguns dos artigos do CPP, mais precisamente dos arts. 395 a 398, mesmo nos procedimentos penais de primeiro grau que não sejam regulados por este Código. Contudo, observa-se que a questão transcende a mera previsão legal, principalmente quando se trata da absolvição sumária, que é o foco do estudo. Isto porque esse instituto tem por escopo pôr fim ao processo penal, nos casos em que haja subsídios para isso, logo no seu início. Por tais razões, conhecendo-se todos os dissabores que um processo criminal traz para o acusado, a absolvição sumária mostra-se como importante instrumento de garantia. Essa qualidade do mecanismo em apreço será aprofundada no decorrer desta explanação, evidenciando seu caráter garantista, de extrema importância em um Estado Democrático de Direito. Por sua vez, apresentar-se-á também a posição doutrinária sobre o assunto em foco. Consoante poderá ser percebido, ainda existem divergências, entre os estudiosos do tema, sobre a aplicabilidade ou não da absolvição sumária na Justiça Militar.      1 A nova Absolvição sumária: características do instituto A Lei nº 11.719/08, uma das legislações responsáveis pela chamada reforma processual penal de 2008, inaugurou um novo tipo de resolução antecipada do mérito no processo penal: a absolvição sumária. Na verdade, ampliou a utilização de um instituto semelhante já existente, só que de menor abrangência, antes restrito ao procedimento especial do júri. O anterior era previsto no art. 411 do CPP [hoje, passou a ser regido no art. 415]. A nova figura da absolvição sumária encontra-se na redação do atual art. 397 do Código de Processo Penal. Esse dispositivo elenca em seus quatro incisos as hipóteses em que o magistrado, se verificar alguma delas, deverá absolver sumariamente o acusado. São elas: a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; a evidência de que o fato narrado não constitui crime (fato atípico); a extinção da punibilidade do agente; a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente (exceto inimputabilidade). Em relação à última hipótese de absolvição sumária, qual seja, a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade, vale verificar o porquê da exceção da inimputabilidade do agente. Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches e Ronaldo Batista (2008, p. 340) explicam: “A razão é óbvia: sendo inimputável o agente (por doença mental, v. g.), há necessidade de que o processo seja regularmente instaurado, com a respectiva produção de prova em juízo e observância de todo o trâmite legal, que culminará ou com a absolvição própria do réu ou com a absolvição imprópria, assim entendida aquela que reconhece que o fato é típico, ilícito, mas não impõe pena, senão medida de segurança.” Dessa maneira, conforme precisa lição de Andrey Borges de Mendonça (2008, p. 275), “a nova sistemática, diversamente da anterior, permite ao juiz absolver o acusado se comprovada qualquer situação prevista no artigo em análise, especialmente em razão dos elementos trazidos pela defesa inicial”. Quanto a essa defesa inical, citada pelo autor, ela está presente, também a partir da Lei nº 11.719/08, nos arts. 396 e 396-A do CPP. Esses artigos estabelecem a apresentação de uma defesa escrita pelo acusado, depois de recebida  a denúncia, no prazo de dez dias. Segundo leciona Ivan Luís Marques da Silva (2008, p. 36-37): “Poderá a defesa argüir preliminares (como as exceções de incompetência, litispendência e coisa julgada) e alegar tudo o que interessar, ou para reforçar uma tese defensiva ou para fragilizar o alegado pela acusação na denúncia/queixa já regularmente recebida pelo magistrado.” Assim sendo, a partir da entrega da resposta escrita, logo após o recebimento da peça acusatória inicial, o magistrado, com base nessa defesa, poderá absolver sumariamente o acusado. Isto é, conforme ensinamento de Yordan Moreira Delgado e Werton Magalhães Costa (2009, p. 84), “se o juiz, ao ter o primeiro contato com a denúncia no procedimento ordinário, poderia tê-la rejeitado, mas a recebeu, poderá, neste segundo momento, tendo contato com a resposta escrita do acusado, absolvê-lo sumariamente […]”. E isso impedirá o desenrolar de todo um processo criminal que já poderia ter sido extinguido antes mesmo da sua formação. Em última análise, a Lei 11.719/08 dispôs expressamente, através da inclusão do § 4º no art. 394 do CPP, que alguns dos novos procedimentos seriam empregados também fora deste Código. Mais precisamente, esse novel parágrafo “estabelece que as disposições dos arts. 395 a 397 do CPP (o art. 398 foi revogado) aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados no CPP” (FEITOZA, 2008, p. 75). Logo, como a absolvição sumária está inserida no art. 397 do CPP, enquadra-se nessas regras e reclama sua aplicação em qualquer procedimento penal de primeiro grau. Neste momento, surge a discussão sobre a aplicabilidade da absolvição sumária no âmbito da Justiça Militar, sendo que a competência desta é, em regra, pautada nas normas do Código de Processo Penal Militar. Isso é o que será examinado a seguir. 2 Absolvição sumária e sua aplicação na justiça militar: enfrentamento da questão Com o advento da Lei nº 11.719/2008, sobreveio o seguinte questionamento: a absolvição sumária aplica-se na esfera da Justiça Militar? Posta assim a questão, ver-se-á que a mesma ainda não é pacífica entre os doutrinadores, o que demanda um estudo pormenorizado dessa nova espécie de resolução antecipada do mérito no processo penal e seus reflexos na Justiça Militar.      Assim, posicionando-se sobre a nova reforma do CPP e sua relação com a Justiça Militar, Célio Lobão (2009, p. 502) expõe: “[…] não se justifica a adoção, na Justiça Militar, das alterações do Código de Processo Penal constantes das referidas Leis 11.690 e 11.719, dentre as quais destacamos: a resposta por escrito da acusação (art. 396 do CPP); absolvição sumária (art. 397 do CPP); interrogatório do réu, após a produção de prova testemunhal (art. 531 do CPP). […] Não se justifica porque […] o art. 1º das duas leis citadas dispõe, claramente, que os artigos do Código de Processo Penal enumerados “passam a vigorar com a seguinte redação”, ou com “as seguintes alterações”. Portanto, “alterações” ou nova “redação” somente dos artigos do Código de Processo Penal citados expressamente nos dois diplomas legais, e não, igualmente, do Código de Processo Penal Militar.” Em que pese o entendimento do eminente autor, essa não parece ser a melhor interpretação. Realmente o art. 1º da Lei nº 11.719/08 explicita que a lei traz “nova redação” para os artigos do CPP ali indicados. Ora, acontece que justamente uma dessas novas redações, mais especificamente a do § 4º do art. 394 do CPP, dispôs expressamente que as regras dos arts. 395 a 398 devem ser utilizadas em todos os outros procedimentos de primeiro grau. E isso independentemente de serem regulados pelo Código de Processo Penal comum. Em conseqüência disso, a absolvição sumária, que está prevista no art. 397 do CPP (logo, entre os arts. 395 e 398) deve ser aplicada em qualquer procedimento de primeiro grau, inclusive naqueles estabelecidos pelo Código de Processo Penal Militar. Ademais, esse fenômeno não é novidade no nosso direito. A Lei nº 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, por exemplo, em seu art. 88, modificou a ação penal nos crimes de lesão corporal leve ou culposa. Nessas situações, a ação penal passou a ser pública condicionada à representação (antes era incondicionada) em todos os outros procedimentos penais. A exceção ficou apenas restrita à Justiça Militar, mas, nesse caso em especial, por vedação expressa do art. 90-A da própria Lei nº 9.099/95. Como se vê, uma lei específica trouxe um dispositivo aplicável a qualquer outro procedimento penal. Foi exatamente isto que ocorreu com a figura da absolvição sumária, só que, desta vez, sem nenhuma reserva quanto ao seu uso na Justiça Militar. Nesse sentido, Denilson Feitoza (2009, p. 1000-1001) leciona: “Pensamos que a absolvição sumária é aplicável a quaisquer processos penais, sejam comuns, eleitorais ou militares, tendo em vista a forma categórica e abrangente com que o art. 394, § 4º, do CPP afirmou sua aplicabilidade a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados no CPP […]. Nessa linha, qual seria o fator diferencial entre um réu no processo penal comum e outro no processo penal militar que justificaria que o primeiro pudesse ser protegido, via absolvição sumária, contra denúncias “manifestamente ilegais” (já que manifesta existência de causa excludente de ilicitude ou culpabilidade etc.), inclusive com o status de absolvido, enquanto o último não?” Além do mais, a questão não pode ficar limitada ao aspecto legal, ou melhor, à sua previsão em lei. Esse pode até ser o ponto de partida da discussão, mas não deve representar a sua delimitação. A absolvição sumária possui um caráter garantista em favor do acusado, quando este se acha manifestamente amparado por uma norma legal, tal como o estado de necessidade, v. g. Pois, se o magistrado já tem elementos suficientes para produzir uma cognição exauriente logo no início da ação penal, não tem motivos para aguardar todo o desenrolar do processo e só então proferir a decisão absolutória. Sobre esse aspecto, vale conferir as palavras de Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco (2009, p. 537): “Assim, não se afigura admissível o uso do processo penal como substitutivo de uma pena que se revela tecnicamente inaplicável ou a preservação de ações penais ou de investigações criminais cuja inviabilidade já se divisa de plano. Tem-se, nesses casos, flagrante ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.” Como se observa, a questão está intimamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana. De outra forma, submeter um indivíduo a um processo criminal desnecessário, seja na justiça comum ou militar, mostra-se algo flagrantemente ofensivo a esse princípio fundamental, que é um dos alicerces do Estado Democrático de Direito.   3 A relevância da absolvição sumária Ao tecer comentário acerca dos efeitos do tempo e do espaço durante a execução da pena privativa de liberdade, Ana Messuti (2003, p. 44) analisa que: “A qualidade do tempo que se vive durante a pena, por ser precisamente “o tempo da pena”, não pode ser a mesma daquele que vive livre de pena. Qualquer atividade que se realize durante esse tempo não será verdadeira atividade, estará impregnada do tempo e do espaço da pena. Ainda que aparentemente esteja em movimento, o sujeito da pena está imobilizado em determinado espaço, no qual transcorre um tempo diferente. E esta imobilidade poder-se-ia qualificar de espera”. Ocorre que aqueles que respondem a um processo criminal são afetados de igual forma por efeitos parecidos. No tempo em que perdura a ação penal, o acusado não vive, em toda sua plenitude, o seu direito à liberdade, pois sempre há o temor de vir a ser condenado ao término da ação penal. Essa dúvida somente será dissolvida por completo no momento da sentença. Porém, até lá, já se terá experimentado todas as agruras trazidas pelo enfrentamento, na condição de réu, a um processo penal, com todos os seus efeitos estigmatizantes. Justamente aí reside a grande importância do instituto da absolvição sumária. Isto é, em se evitar todos esses constrangimentos para um indivíduo que agiu nitidamente acobertado pela legítima defesa, por exemplo. Se existe a possibilidade de formação de um juízo de certeza sobre essa excludente logo no início do processo, não há razão em absolvê-lo somente após todo o trâmite do processo criminal. E isso vale, certamente, também para o processo penal militar, pois não existem justificativas plausíveis para um entendimento contrário. Ao tratar da resolução antecipada do mérito no processo penal, da qual é espécie a absolvição sumária, Nestor Távora (2009, p. 27) ressalta a importância desse mecanismo, in verbis: “O julgamento antecipado do mérito pode ser adequado a situações que imponham decisões absolutórias. A atual redação do art. 397 [dispositivo da absolvição sumária], do Código de Processo Penal, não merece reparos no ponto. No entanto, quando se está diante de julgamento antecipado que implique restrições às liberdades individuais, a visão instrumentalista deve sofrer restrições, pois o processo não se resume a simples meio de realização do direito penal [seja penal comum, seja penal militar], mas antes é fim, especialmente porque viabiliza rol de garantias constitucionais processuais penais”. Tendo em vista essa carga garantista é que o legislador ampliou a utilização da absolvição sumária para quaisquer procedimentos penais de primeiro grau, sem distinções. Modificação esta que evidentemente não excluiu o direito processual penal militar. E não poderia ser diferente, uma vez que aquele que é réu em um processo penal militar sofre das mesmas mazelas e estigmas enfrentados por quem é submetido a um processo penal comum. 4 conclusão Em suma, como foi observado até aqui, o nobre instituto da absolvição sumária passa a ter incidência também no processo penal militar. Tanto à luz do texto da nova reforma processual penal, quanto pela sua relevância como garantia processual intimamente ligada à própria liberdade do réu, a absolvição sumária não poderia ficar restrita ao âmbito da Justiça Criminal comum.    Afinal, como aduz Paula Bajer da Costa (2001, p. 14), “na medida em que todos são iguais perante a lei, todos os que tiverem praticado conduta típica, ilícita e culpável, deverão participar de processo penal”. Porém, “há justiça processual, também, quando os regramentos processuais são os mesmos para todos os acusados” (Id., 2001, p. 14). É certo que, em alguns momentos, o processo penal militar, devido às suas peculiaridades, propocionará um tratamento diferenciado para o acusado que nele figure. Entretanto, essas diferenças não poderão atingir negativamente os aspectos relacionados à efetivação da própria dignidade da pessoa humana. Não se pode esquecer que “no interior do processo aflora e pulsa a vida, há seres humanos que entram, saem e retornam ao banquete processual, em conexões internas e extraprocessuais” (GIACOMOLLI, 2008, P. 59). Em razão disso, a possibilidade de se absolver sumariamente o acusado, logo no princípio da ação penal, mostra-se — também no âmbito da Justiça Militar — como garantia inafastável do indivíduo. Ao contrário, havendo elementos probatórios suficientes, que permitam sustar o processo criminal antecipadamente, e não fazê-lo, postergando-o desnecessariamente, constitui uma nítida violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, e conseqüentemente, ao próprio Estado Democrático de Direito. .
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/a-reforma-do-cpp-e-o-codigo-de-processo-penal-militar-aplicacao-da-absolvicao-sumaria-na-justica-militar/
Considerações acerca dos maus antecedentes criminais
Esse artigo aborda o problema dos maus antecedentes criminais, e sua interpretação na doutrina jurídica e Tribunais, tentando demonstrar uma concepção em consonância com a Carta Magna de 1988 e com o corolário da presunção de inocência.
Direito Processual Penal
Introdução
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/consideracoes-acerca-dos-maus-antecedentes-criminais/
Jurisdição, processo e prova criminal
Com a proscrição da justiça pelas próprias mãos, o Estado avoca para si o monopólio quanto à solução dos conflitos sociais, passando a utilizar o processo como forma de proporcionar o amplo debate acerca do litígio deduzido perante o Poder Judiciário. Nesse contexto, avulta a importância da prova como instrumento peculiar tendente a influenciar o Estado-juiz na adoção da solução para cada caso. O tema encontra relevo no Direito Processual Penal, haja vista que este possui como foco o bem jurídico de maior importância para o ser humano após a vida, qual seja, a liberdade. Há a necessidade premente de maior investimento estatal na colheita da prova, ante o entrelaçamento indissociável entre jurisdição, processo e prova.
Direito Processual Penal
1 INTRODUÇÃO. NOÇÕES GERAIS SOBRE JURISDIÇÃO E PROCESSO Nem sempre os litígios foram resolvidos pelo Poder Judiciário, nos moldes em que modernamente se conhece. A justiça era exercida pelas próprias mãos e inexistia uma terceira pessoa imparcial para dirimir os conflitos surgidos entre as pessoas: imperava a lei do mais forte. A propósito, Grinover (2000, p. 21) esclarece que: “Nas fases primitivas da civilização dos povos, inexistia um Estado suficientemente forte para superar os ímpetos individualistas dos homens e impor o direito acima da vontade dos particulares; por isso, não só inexistia um órgão estatal que, com soberania e autoridade, garantisse o cumprimento do direito, como ainda não havia sequer as leis (normas gerais e abstratas impostas pelo Estado aos particulares). Assim, quem pretendesse alguma coisa que outrem o impedisse de obter haveria de, com sua própria força e na medida dela, tratar de conseguir, por si mesmo, a satisfação de sua pretensão.” Após um inicial progresso, cujas origens remontam ao Direito Romano, o Estado passa a permitir que um terceiro seja escolhido para dirimir os conflitos. Mais tarde, os contendores tinham que obrigatoriamente escolher esse terceiro e, por fim, o Estado avoca para si essa posição de terceiro. Surge, assim, o que se chama de jurisdição, sistema pelo qual o Estado monopoliza o poder de dizer o direito. Alguns tratadistas dizem que se trata ao mesmo tempo de um poder, um dever e uma função. Desta forma, o Estado passa a ter não apenas o poder, mas também o dever da administração da justiça quanto àqueles que batem às suas portas para dirimir os seus conflitos (Grinover, 2000). Discorrendo sobre as várias atividades do Estado, sendo a primeira a administrativa e a segunda a administrativa, Teodoro Júnior (2003, p. 5) realça que: “A terceira é a jurisdição, que incumbe ao Poder Judiciário, e que vem ser a missão pacificadora do Estado, exercida diante das situações litigiosas. Através dela, o Estado dá solução às lides ou litígios, que são os conflitos de interesse, caracterizados por pretensões resistidas, tendo como objetivo imediato a aplicação da lei ao caso concreto, e como missão mediata restabelecer a paz entre os particulares e, com isso, manter a da sociedade”. Por outro lado, essa jurisdição deve ser deflagrada através de outro direito, o de ação, que por sua vez se materializa por meio de uma série de atos coordenados através dos quais as partes dispõem de oportunidades para alegarem as suas razões, o que se chama de processo. O processo é o palco onde cada pessoa se utiliza das armas legalmente admitidas para dizer que tem direito à tutela jurisdicional ou para opor resistência a uma pretensão contra si intentada. Teodoro Júnior (2003, p. 5) ensina que a função jurisdicional não é deduzida de qualquer maneira, haja vista que: “Para cumprir essa tarefa, o Estado utiliza método próprio, que é o processo, que recebe a denominação de civil, penal, trabalhista, administrativo etc., conforme o ramo do direito material perante o qual se instaurou o conflito de interesses. Para regular esse método de composição de litígios, cria o Estado normas jurídicas que formam o direito processual, também denominado formal ou instrumental, por servir de forma ou instrumento de atuação da vontade concreta das leis de direito material ou substancial, que há de solucionar o conflito de interesses estabelecidos entre as partes, sob a forma de lide”.’ Pois bem. Chega-se à fase processual, onde imperam vários princípios, dentre eles o da ampla defesa e do devido processo legal, o da igualdade, o da imparcialidade, dentre muitos outros. No processo as partes devem deduzir suas razões e, para isso, podem se valer das provas, sendo estas imprescindíveis tanto para o autor, para exigir a tutela jurisdicional, como para o réu, na resistência à pretensão daquele. Mittermaier  (1997, p. 35) pontua que “[…] o processo por via de acusação, em sua natureza, constitui um verdadeiro combate entre dois adversários, cada um dos quais procura demonstrar a verdade de suas asserções, e assegurar-lhes o triunfo final.” 2 O TEMA REFERENTE ÀS PROVAS Capez (2002, p. 243) pontifica que “o tema referente à prova é o mais importante de toda a ciência processual, já que as provas constituem os olhos do processo, o alicerce sobre o qual se ergue toda a dialética processual”. No tema referente às provas vigora o princípio da liberdade da prova, corolário do princípio da verdade real, que permeia de forma especial o Direito Processual Penal. Isso porque o juiz deve buscar sempre a verdade dos fatos, não podendo contentar-se com a verdade puramente formal, ou seja, aquela trazida pelas partes ao processo. Entretanto, há certas restrições a essa liberdade das provas, como por exemplo, a prova do estado civil, exigida mediante forma certa, de acordo com o artigo 155 do Código de Processo Penal; a prova relativa às questões prejudiciais; crime falimentar; relativa ao segredo profissional, conforme previsto no artigo 207 do Código de Processo Penal; e também em relação à inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, vedação constitucional prevista no artigo 5º, LVI, da Constituição da República de 1988. Conclui-se, assim, que a prova, além de prevista em lei, há de ser permeada por valores morais e éticos, devendo respeitar os demais direitos do indivíduo, que não pode ficar à mercê da voracidade condenatória do Estado. Uma das finalidades do processo é buscar uma decisão justa e baseada na verdade dos fatos ou, pelo menos, o mais próximo possível deles. Segundo Tornaghi (1995, p. 265) a prova representa “o conjunto de atos praticados pelas partes, por terceiros (testemunhas, peritos etc.) e até pelo juiz, para averiguar a verdade e formar a convicção desse último (julgador)”. Sintetizando bem a importância da prova, Mirabete (2003, p. 256) dispõe que: “Para que o juiz declare a existência da responsabilidade criminal, e imponha sanção penal a uma determinada pessoa é necessário que adquira a certeza de que se foi cometido um ilícito penal e que seja ela a autora. Para isso deve convencer-se de que são verdadeiros determinados fatos, chegando à verdade quando a idéia que forma em sua mente se ajusta perfeitamente com a realidade dos fatos. Da apuração dessa verdade trata a instrução, fase do processo em que as partes procuram demonstrar o que objetivam, sobretudo para demonstrar ao juiz a veracidade ou a falsidade da imputação feita ao réu e das circunstâncias que possam influir no julgamento da responsabilidade e na individualização das penas”. Por meio da prova a parte interessada leva a efeito a reconstrução de fatos pretéritos ou mesmo atuais, como no caso da perícia, com a finalidade de influenciar o julgador no concernente à certeza de fatos alegados. Na dicção de Mittermaier (1997, p. 55), “[…] a condenação repousa sobre a certeza dos fatos, sobre a convicção que se gera na consciência do juiz. A soma dos motivos geradores dessa certeza chama-se prova.” Sem que o fato esteja devidamente provado não há como o juiz proferir um decreto condenatório. 3 PROVA CRIMINAL E DECISÃO JUSTA Em que pese o princípio do in dúbio pro reo, oportuno assentar que a decisão justa é aquela que condena o culpado e absolve o inocente, sendo este o anseio jurídico-social do processo. Malatesta (1995, p. 90) leciona que “[…] podemos considerar a prova, referindo-nos principalmente à certeza, única base legítima da condenação judicial. Considerando-a assim, a prova é a relação concreta entre a verdade objetiva e a certeza subjetiva”. Com tais considerações, observa-se que a prova possui o condão de influir decisivamente no convencimento do magistrado no que toca aos fatos deduzidos no processo, com reflexos no provimento a ser proferido, disto advindo a sua privilegiada posição no cenário processual. Segundo Marques (2000, p. 331), “objeto da prova, ou tema probandum, é a coisa, fato, acontecimento ou circunstância que deve ser demonstrada no processo”. E conclui dizendo que “como o juiz se presume instruído sobre o direito a aplicar, os atos instrutórios só se referem à prova das quaestiones facti“, exceção apenas para o direito estadual, municipal, consuetudinário ou alienígena, que deverá ser provado pela parte que o alegue. Já para Mirabete (2003, p. 257), “o objeto da prova abrange, além do fato criminoso, as circunstâncias objetivas e subjetivas que possam influir na imposição da resolução do caso”. Entretanto, importam apenas aquelas questões que sejam pertinentes e relevantes à solução da causa, excluindo-se todos aqueles que não tenham ligação com o que se está discutindo. Frise-se que, no processo penal, até mesmo os fatos incontroversos devem ser provados, já que o juiz não está obrigado a aceitar como verdadeiro aquilo que é admitido pelas partes, em homenagem ao princípio da busca da verdade material. Embora a prova possua como objeto os fatos ligados direta ou indiretamente ao caso penal, alguns destes fatos não precisam ser provados. É o que ocorre com as presunções legais, em que a lei determina uma presunção de existência ou de veracidade de um determinado fato. Sendo a presunção absoluta, a parte a quem interessar o fato estará dispensada de prová-lo; sendo relativa, a parte a quem o fato aproveita também estará dispensada de prová-lo, cabendo à parte contrária o ônus de desconstituir a presunção, fazendo prova contrária. No mesmo sentido, independe de prova o direito federal, vez que se presume, absolutamente, que o magistrado o conheça. Consoante ensino de Tourinho Filho (2002, p. 204 e ss), também não necessitam ser submetidos à prova os fatos notórios e os evidentes. “Ambos produzem no juiz o sentimento de certeza em torno da existência do fato”. Tornaghi (1995, p. 267), pontua que “[…] no penal o que se prova não são apenas as alegações; o procedimento de prova é realmente uma reconstituição do fato criminoso e dos que estão ligados ao crime por laços circunstanciais, alegados ou não”. Assim, todos os fatos alegados pelas partes, relevantes para a instrução do processo, devem ser objeto de prova, salvo as exceções legais. Observa-se, desta forma, a importância colossal da prova para que o juiz tenha condições de se desincumbir de sua missão quanto à entrega efetiva da prestação juridisdicional, pois sem provas não como se falar em decisão justa. Refrise-se que decisão justa, no Direito Criminal é aquela que condena o culpado e absolve o inocente, não havendo plausibilidade para se dizer que a decisão que inocenta por falta de provas seja justa.  Poder-se-ia até considerá-la “justa” no contexto de ser melhor um culpado solto que um inocente preso, conforme dito popular. Ao invés de justa seria a “decisão possível”. Inobstante, inaceitável a proposta de se trabalhar com distorções no aparelhamento investigatório estatal a tal ponto de se acolher tais posturas decisivas como efetivamente justas, com as considerações já esposadas. O Direito Processual Penal repele presunções e ilações contra o réu, não sendo possível condenar alguém sem que se tenha um suporte probatório firme e suficiente para tanto. Após as discussões sobre a jurisdição como poder-dever-função do Estado, da manifestação desta por meio do processo, palco de discussão e solução dos litígios, permeado por uma vasta gama de garantias, mormente no Direito Processual Penal, curial colocar em evidência o entrelaçamento indissociável de tais institutos, como forma de se alcançar a pacificação social.  O propósito do monopólio estatal quanto ao poder de dizer o direito é justamente o de evitar a justiça privada, aquela em que o mais forte, física, política ou economicamente, sempre levava vantagem sobre o seu adversário. O processo é inquestionavelmente o instituto de maior relevância em todo o arcabouço jurídico, podendo-se dizer sem medo de errar que, sem processo e garantias processuais, não há que se falar em justiça. Como já dito, sem prova o processo não logra alcançar satisfatoriamente o seu maior desiderato, qual seja, a decisão justa. Destarte, a jurisdição, o processo e  a prova convergem para a pacificação social, pois somente a decisão justa é capaz de alimentar a sociedade com a tão almejada justiça. 4 O INVESTIMENTO NA PROVA COMO FORMA DE CONSOLIDAÇÃO DA JURISDIÇÃO, DO PROCESSO E DA CREDIBILIDADE DOS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA As garantias do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da proscrição da prova ilícita, são o farol que ilumina uma sociedade livre e preparada para combater as mais execráveis formas de aviltamento do ser humano, como tão comumente ocorreu nos regimes arbitrários. As conquistas já alcançadas na seara processual penal só tendem a aumentar, de molde a pôr em relevo o ser humano enquanto principal personagem da sociedade, pois sem o homem o Direito seria totalmente despiciendo, inútil. Não se pode fechar os olhos, no entanto, para a situação de crescente aumento da criminalidade, máxime aquela praticada por grandes e bem montadas organizações criminosas, compostas até mesmo por agentes públicos que, ao invés de defenderem o direito e a justiça, são justamente os grandes mentores dos crimes chamados de “colarinho branco”. O que se observa com clareza solar é que, em que pese o entrelaçamento indissociável entre a jurisdição, o processo e a prova, esta não tem sido adequadamente contemplada pelos órgãos encarregados de sua colheita. É inquestionável que o indivíduo deve ter todos os seus direitos preservados durante a investigação criminal, pois em nome das “razões de Estado”, não se pode devassar brutalmente a vida de alguém a fim de que a justiça seja feita a todo e qualquer custo. Não se admitem violação de domicílio, agressões físicas e psicológicas, ameaças, torturas, dentre outras formas de aviltamento do ser humano, para que a prova seja colhida. Quando o Estado não investe adequadamente na investigação criminal, algumas situações ficam claramente demonstradas: 1 – Não se importa com o respeito aos direitos humanos, na medida em que por meio de sua omissão e leniência autoriza de forma tácita e velada a prática de execráveis humilhações contra o indivíduo. 2 – Coloca em xeque a atuação das Polícias Militar e Judiciária, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Isso porque a ausência de prova consistente no processo penal acaba por dar azo à absolvição do acusado, em que se pese ser este muitas vezes culpado, em homenagem à liberdade do indivíduo. Se o Estado não é capaz de investigar não está o indivíduo obrigado a “dar uma mãozinha” acusando a si próprio. A liberdade concedida a um criminoso não é algo tão simples quanto parece ser. É gerada uma dívida social muita grande. Um sentimento de impunidade e insegurança paira sobre a sociedade, que se vê refém diante da falência do aparelhamento estatal. O cidadão que paga seus impostos não vislumbra a contrapartida por parte dos órgãos encarregados da segurança. A resposta que se espera sofregamente não acontece. Ora, se apesar da atuação das polícias a prova não é satisfatoriamente colhida, o Ministério Público terá sérias dificuldades em ser exitoso quanto ao alcance de um decreto condenatório. De igual forma o juiz não poderá proferir uma sentença que corresponda aos anseios de justiça, porque malgrado saiba em seu íntimo que o acusado é culpado, não poderá, sem provas, condenar alguém. O descaso com a prova, como se observa, compromete os institutos processuais acima vistos, haja vista que a finalidade precípua do processo, qual seja, a pacificação social, não é nem de longe alcançada. Destarte, reverbere-se que os direitos e garantias devem ser reforçados sim, mas o Estado deve, outrossim, investir decisivamente na questão da colheita da prova, de molde a preservar a legitimidade e idoneidade dos institutos processuais, os quais se propõem a resolver os litígios sociais respeitando o indivíduo, mas também colocando na balança o direito à segurança, e também como forma de preservar os próprios direitos humanos. Em países em que o respeito aos direitos humanos tem avançado nota-se um maior investimento na questão investigatória, o que revela que a prova legítima e eficazmente obtida é o anseio comum do acusado e da sociedade. Desta, porque espera uma decisão segundo os ditames da justiça, e daquele porque deve ser respeito em sua integridade física e moral. Muito pouco produtivo será aumentar a quantidade de juízes, promotores, delegados, policiais nas ruas, bem como de leis, se o elo entre a jurisdição, o processo e prova não for reforçado. Pergunta-se: Se não houver investimento em investigação, haverá alguma resposta satisfatória em termos de segurança pública? Poderá o juiz condenar sem provas? Efetivamente a resposta só pode ser negativa. Quando a sociedade assente quanto à absolvição de um acusado vislumbra-se, na  verdade, que o cidadão assim o prefere porque tem medo de ser vítima de uma condenação injusta. Desta forma ganha relevo o dito popular de que “é melhor um bandido solto que o inocente na cadeia”. Porém, isso não corresponde ao anseio de justiça social, pois essa prática, qual seja, a de absolver um culpado por ineficiência da prova, trata-se de um arremedo de resposta de um Estado que não possui a resposta adequada. A criminalidade atual ganhou contornos e características bem diferentes daquela praticada tempos atrás. Ela ficou sofisticada, incrementou-se o uso de tecnologia de última geração: o crime ficou “organizado”. O criminoso de hoje não é mais o simples ladrão de galinha de outrora. Basta saber que o armamento utilizado pelos bandidos são bem mais modernos que aquele utilizado pelas nossas polícias. Enquanto aqueles se utilizavam de armas de última geração e alto poder de destruição, estas ainda trazem consigo os velhos revólveres calibre 38. E não é apenas em relação ao armamento, pois os serviços de inteligência do crime organizado são mais bem monitorados. Também não é inútil trazer à baila a informação de que “pagam melhores salários”. O dito popular é que “tem que fugir do flagrante”. Isso porque, fugindo do flagrante, o criminoso não pode ser preso, a não ser com posterior decretação de prisão temporária ou preventiva, o que dificulta sobremaneira o trabalho de investigação, já bastante limitado em logística. A polícia brasileira do século XXI ainda se vale da velha prova testemunhal que, tratando-se de prova muitas vezes insegura e vacilante, passou a ser também rara. Isso em função das ameaças de morte que o testemunhante pode sofrer, pois não se conta nos país, para piorar, com um serviço seguro de proteção para as testemunhas. Não é para ser diferente, pois ninguém quer arriscar a sua própria vida e de seus familiares, “mostrando a cara” para denunciar alguém pela prática de um crime qualquer. Cada pessoa tem que proteger a si própria, pois o Estado não cumpre tal mister, inerente à sua própria razão de existir. Assim, nem mesmo com a velha prova testemunhal pode-se contar muitas vezes. O que sói acontecer é que mesmo um crime tendo ocorrido perante uma multidão, ninguém sabe de nada, ninguém viu nada e ninguém fala nada. A jurisdição se revela por meio do processo e este precisa da prova para exercer seu papel de palco da realização da justiça. Tais institutos se reclamam mutuamente, de forma que sem que um esteja em pleno funcionamento o outro não consegue consequentemente atender aos reclamos da sociedade. 5 A TRILOGIA JURISDIÇÃO-PROCESSO-PROVA NO PROCESSO PENAL Essa trilogia jurisdição-processo-prova possui um especial relevo no Direito Processual Penal, tendo em vista que este instrumentaliza direitos inegociáveis. No Direito Processual Civil a grande maioria dos direitos instrumentalizados é de ordem privada, o que remete à possibilidade de serem renunciados. A prova, via de regra, deve ser produzida por quem alega e não podendo o autor provar não logrará êxito em satisfazer a sua pretensão contra o réu. Sendo o direito disponível, não traduzirá, em tese, maiores conseqüências sociais. Diferentemente ocorre na seara criminal, pois ao lidar com direitos indisponíveis, a não-satisfação da pretensão condenatória almejada ou o seu alcance inadequado reflete sérias e desastrosas conseqüências no concernente à segurança da sociedade. Como é cediço, o Direito Penal é a ultima ratio, ou seja, é a última medida  a ser tomada pelo Estado quando todos os outros meios de solução não foram suficientes e idôneos para a adequada proteção dos bem jurídicos tutelados. Inobstante, ressalte-se que o Direito Penal não é a panacéia para todos os males sociais. Quando um bem jurídico passa a ser penalmente tutelado é porque o Estado entendeu que os institutos até então responsáveis pela sua proteção não corresponderam aos anseios de justiça, havendo a necessidade de lançar mão da resposta mais dura imposta pelo Estado, qual seja, a de privar o indivíduo até mesmo de sua liberdade ambulatorial, caso necessário. É medida última a ser adotada, pelo que avulta a importância e a gravidade de seus institutos. 6 CONCLUSÃO Com essas considerações, reforçado fica o que se disse até agora acerca da necessidade da maior atenção do Estado quanto à investigação criminal, o que, decisivamente, traduz a postura de maior proteção aos direitos humanos, na em medida em que se lança mão de um aparelhamento eficaz idôneo para que instrumentalização da jurisdição por meio do processo tenha efetivamente condições de alcançar o seu desiderato de decisão justa e que atenda aos anseios de pacificação social. Por fim, algo fica bastante evidente: o tímido investimento logístico na questão investigatória coloca em xeque a jurisdição como poder-dever-função estatal na solução dos litígios criminais por meio do processo, autêntico e democrático palco de ampla defesa do cidadão. O investimento na prova reflete, seguramente, um Estado mais comprometido com a preservação dos direitos humanos, na medida em prefere gastar mais a permitir a violação dos direitos, ainda que de forma velada, e reforça o papel da jurisdição e do processo na busca do bem-estar jurídico-social de seus cidadãos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/jurisdicao-processo-e-prova-criminal/
As principais mudanças no tribunal do júri brasileiro trazidas pela Lei 11.689/08
O presente artigo tem o objetivo de apresentar as principais mudanças no Tribunal do Júri, advindas da Reforma Processual Penal da Lei 11.689/08. Vem tecer comentários acerca dos principais dispositivos relativos ao Tribunal do Júri, mais precisamente sobre a nova Lei em comento, de 09 de junho de 2008. [1]*
Direito Processual Penal
1 INTRODUÇÃO Primeiramente, há que se esclarecer que não é objetivo do presente artigo esgotar o tema. Tampouco tratar de todos os âmbitos tratados na nova lei. O artigo busca discutir as principais mudanças trazidas pela lei em tela, bem como discutir sua reforma e inovação. Tal inovação veio como desenvolvimento no sentido de torná-lo um procedimento mais rápido e eficaz, permitindo a aplicação da lei de uma maneira mais justa, valendo-se dos princípios da celeridade e da economia processual, diminuindo a morosidade no andamento das demandas processuais. A natureza da vertente metodológica deste trabalho é bibliográfica. Serão feitas considerações preliminares do Júri, com sua evolução histórica, e tal Instituto tem como pilar de sustentação a soberania do Tribunal, já que vem a garantir que a vontade dos jurados seja respeitada e, consequentemente, que prevaleça a vontade popular. Ainda serão apresentados quais princípios o regem. 2 HISTORICIDADE O Tribunal do Júri até os dias de hoje não possui uma origem inconteste. Há muitos que acreditam que sua origem vem da antiguidade com os judeus que saíram do Egito, aconselhados por Moisés. Encontrando embasamento histórico no livro chamado Pentateuco, livro este que é composto pelos cinco iniciais livros da Bíblia Cristã, neste tempo a lei vinculava o magistrado ao sacerdote, entretanto foi a primeira lei que criou a figura do que hoje conhecemos como jurados, cidadãos comuns nos julgamentos dos tribunais. O célebre doutrinador Guilherme de Souza Nucci (1999, p. 31), versa que o Tribunal do Júri tem origem na Palestina, advindo do Tribunal dos Vinte e Três, que acontecia nas vilas as quais a população excedesse as 120 (cento e vinte) famílias, em que os crimes julgados por este Tribunal eram punidos com a pena de morte. Há quem diga que a origem do Tribunal do Júri se deu na época clássica de Roma e Grécia, com os “judices jurati” e “diskatas”, respectivamente, também não podemos deixar de citar os “centeni comites” chamados assim entre os germânicos. Embasavam-se em um fundamento divino para a legitimidade deste órgão. Sob este fundamento há o julgamento de Jesus Cristo, lembrando o processo do júri atual. A maior parte da doutrina versa que o júri iniciou-se através de uma série de medidas dedicadas a lutar em desfavor dos ordálios (Juízo de Deus), que era qualquer tipo de prova ou meio pelo qual, segundo o direito germânico antigo, Deus socorreria o inocente. “Durante o governo do rei Henrique II (1154 – 1189) em que, em 1166, instituiu o Writ (ordem, mandado, intimação) chamado novel disseisin (novo esbulho possessório) pelo qual encarregava o sheriff de reunir doze homens da vizinhança para dizerem se o detentor de uma terra desapossou, efetivamente, o queixoso, eliminando, assim, um possível duelo judiciário praticado até aí”. (RANGEL: 2009, p. 540-541) Essa série de medidas acima referidas, que era feita por um órgão semelhante ao Ministério Público atual, começou a ser efetivada pela comunidade local quando havia crimes graves, como exemplo, homicídio, dando origem assim ao Grand Jury, composto de 23 jurados no condado, sendo então denominado de “júri de acusação”. Os jurados, que representavam a verdade advinda de Deus, eram da comunidade onde o crime ocorreu, decidindo de acordo com o que sabiam e o que se dizia, sem necessidade de motivação, tendo em vista que essa responsabilidade era de outros 12 homens de bem, escolhidos entre os vizinhos, resultando em um Petty jury (pequeno júri) que decidia se o acusado era guilty (culpado) ou innocent (inocente), independentemente de dizer a verdade. Na Inglaterra, após o ano de 1215, com a edição da Carta Magna pelo rei João Sem Terra, alastrou-se pela Europa, respingando nos Estados Unidos, adquirindo características mais modernas. (CHOUKR: 2002, p.5). Na Carta Magna da Inglaterra, o art. 48 versa que o julgamento deverá ser feito pelos seus pares, sendo ao contrário, ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdades. Nessa esteira, o Tribunal do Júri nasce com o escopo de retirar da mão do déspota o poder de decidir contrário aos interesses da sociedade da época, dando origem ao que hoje conhecemos como princípio do devido processo legal. A Carta Magna foi um acordo entre os nobres e a monarquia, em que quem julgaria os nobres seriam outros nobres, ou seja, julgamento pelos seus pares não se sujeitando ao Rei. O povo não teve participação alguma. Na França, com o objetivo de combater o autoritarismo dos juízes (magistrado) do antigo regime que se submetiam as invertidas da monarquia e das dinastias dos quais eram dependentes, o tribunal do júri surgiu como uma válvula de escape, posto que o mais apropriado seria que o julgamento fosse feito pela própria sociedade, sendo, consequentemente, mais justo já que não se vinculariam a monarquia nem a dinastia. (RANGEL: 2009, p. 543) No Brasil, o tribunal do júri surgiu na Lei de 18 d junho de 1822, antes da promulgação da independência (7 de setembro de 1822) e depois da primeira Constituição brasileira (25 de março de 1824) sob o domínio português e forte influencia inglesa. O Júri só julgava crime de imprensa e os jurados eram eleitos. A Constituição de 1824 transformou os jurados em integrantes do Poder Judiciário competente para atuar tanto no criminal como no cível decidindo os fatos e o Juiz aplicando a Lei. Em 1832, entrou em vigor o Código de Processo Criminal que fixou procedimentos para a aplicação do Código Criminal de 1830. Este Código nasceu no período Regencial do Brasil, período em que Dom Pedro I foi para a Inglaterra proteger o seu trono, ocupado pelo seu irmão chamado Dom Miguel, deixando aqui no Brasil, para substituí-lo, seu filho Pedro II de 5 anos de idade. Ademais, como era menor, o País foi regido por figuras políticas que governaram em nome do Imperado, entre 1831 a 1840, neste período deram maiores poderes ao juiz de paz. (FAUSTO: 1999, p. 163), Ainda no período Regencial, houve inúmeras batalhas em diversas partes do País, por exemplo, a Farroupilha no Rio Grande do Sul e a Balaiada no Maranhão, que culminaram na Lei 261, regulamentada pelo Decreto nº 120, de 1842, marcada pelo autoritarismo e centralização do Código de Processo Criminal do Império, acabando com o júri de acusação, ou grande júri. O júri sofria um grande golpe. Na primeira Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, o júri foi disposto na parte referente a cidadãos brasileiros e na secção da declaração dos direitos, deixando clara a manutenção do júri. A Constituição de 1934, já dispôs o júri no capítulo referente ao Poder Judiciário. A Constituição de 1937 se quer trouxe o Tribunal do Júri, mas já era de se esperar, tendo em vista o contexto em que surgiu, no Estado Novo, época da ditadura instituída por Getúlio Vargas. Tendo em vista que, “ditadura e júri não são bons amigos. Não convivem no mesmo ambiente político, pelo menos enquanto o júri for visto como uma instituição democrática”. (RANGEL: 2009, p. 555)  Entretanto, em 1938, foi promulgado o Decreto n° 167, regulando o júri, trazendo uma importante inovação, o veredicto dos jurados deixava de ser soberano. Em 1946, foi promulgada a nova Constituição que trouxe o instituto do júri à sua forma digna no governo de Gal. Eurico Gaspar Dutra que prometia redemocratizar o País, sendo este um dos primeiros passos. Em 1967, a Constituição sofreu uma grande reforma com a Emenda Constitucional nº 1/69, chamada por muitos de Nova Constituição em que mantinha o júri, com competência para julgar crimes dolosos contra a vida, mas diferente do que trazia a Constituição, antes da reforma, não fez menção à soberania do júri. Não há que deixar de ser falado no caso emblemático conhecido como a “Lei Fleury”. Sergio Fernando Paranhos Fleury, liderava um grupo chamado “Esquadrão da Morte”. Esse grupo era formado por policiais civis, que mexiam com tráfico de drogas e matavam sumariamente quem não os interessava mais ao grupo. Tudo isso protegido pelo regime militar que governava o Brasil. (SOUZA: 2000, p.305) Mas, por um corajoso promotor chamado Hélio Pereira Bicudo que investigou Fleury, e pela forte pressão internacional, o líder do “Esquadrão da Morte” foi preso, devido a lei da época determinar que quem fosse pronunciado deveria ter decretada a sua prisão preventiva. Entretanto, como no Brasil tudo tem jeito, pela forte influência que Fleury exercia no regime militar, foi encomendada uma lei ao congresso que dispunha que “o réu primário e com bons antecedentes permanecesse em liberdade em caso de pronúncia, e, se preso estivesse, solto seria”, e mais, “se o condenado tivesse bons antecedentes e fosse primário, permaneceria solto”, reformando o art. 408, § 2º e 504 do CPP, respectivamente. “Paralelamente a esse quadro, o Ato Institucional n 5, cassou a garantia doas magistrados, ou seja, no júri os magistrados presidiam a sessão desprovidos das garantias necessárias ao pleno desenvolvimento da prestação jurisdicional”. (RANGEL: 2009, p. 564) A atual Constituição Democrática de 1988, que marcou com as Diretas Já o fim do regime militar. Assim, o júri recebeu novos moldes, instituído pelo Código de Processo Penal, apresentando como garantias assecuratórias: “Art. 5, XXXVIII da CF/88 – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”; 3 PRINCÍPIOS REITORES DO TRIBUNAL DO JÚRI Princípio, é o momento em que algo se origina, é a causa primária ou o elemento predominante na constituição de um todo orgânico. (NUCCI: 2008, p. 43) A Constituição, mais precisamente em seu art. 5º, XXXVIII, enumera os princípios que regem o tribunal popular. A competência do Tribunal do Júri abarca os crimes dolosos contra a vida, não apenas o Homicídio, como também o Induzimento ao suicídio, Aborto e Infanticídio. Ainda, abarca os crimes mencionados tanto na modalidade consumada quanto na tentada. O latrocínio é crime contra o patrimônio com resultado morte, por isso não é julgado pelo Júri. É de enorme importância aqui, mencionarmos que qualquer animus que não seja o Animus Necandi (a vontade de matar) exclui a competência do Tribunal do Júri. A plenitude de defesa divide em técnica e autodefesa. A técnica é obrigatória e exercida por profissional habilitado, ao passo que a segunda é facultada ao imputado, que pode exercer o direito de silêncio ou apresentar sua versão dos fatos. (ALENCAR; TÁVORA: 2009, p. 675) O tribunal aqui tratado possui soberania dos veredictos, ou seja, suas decisões são soberanas, há a impossibilidade de uma decisão do júri ser substituída por outra sentença de órgão jurisdicional distinto, segundo preconiza o art. 593, § 3º, do Código de Processo Penal. Essa é uma garantia da ordem pública e da própria instituição. Os jurados devem permanecer incomunicáveis entre si e deve haver o sigilo das votações. O sigilo das votações gera certo debate, qual seja, se o mesmo é garantia fundamental do réu ou do jurado. Ao que parece mais sensato, essa garantia é do conselho dos sete, tendo em vista que os mesmos poderiam se sentir coagidos ao expor seus votos, tendo em vista que os jurados fazem parte da mesma comunidade em que o(s) acusado(s) vive(m). 4 CARACTERÍSTICAS O Tribunal do Júri tem como características principais: a heterogeneidade, horizontalidade, temporalidade e decisões por maioria de votos. O órgão é heterogêneo, teve origem na Constituição de 1988, onde o Tribunal do Júri teve confirmado seu local no Poder Judiciário. Sendo composto por um Juiz que preside a sessão e por vinte e cinco jurados (nova redação do art. 433 do CPP), dentre os quais sete formarão o Conselho de Sentença. Sendo que os jurados é quem vão determinar o julgamento dos fatos e o juiz o julgamento do direito. Importante destacar que no Tribunal do Júri a soberania só recai sobre os jurados e não sobre o juiz, ou seja, os fatos depois de julgados não poderão ser alterados, já a majoração ou diminuição da pena sim. Estando classificadas as decisões do órgão jurisdicional da seguinte forma: decisão do juiz de primeiro grau – subjetivas simples; decisões das turmas recursais – subjetivamente plúrimas, e; decisão do júri – subjetivamente complexas. O órgão é horizontal, leciona sobre a inexistência de hierarquia entre o juiz presidente. O órgão é temporário, não será um Conselho permanente, duradouro, posto que só funcionará em determinados período do ano, mas isso não é regra, tendo em vista que o grande número de crimes contra a vida que há, não é raro que em todos os meses tenha sessão do júri. As datas de sessão são regulamentadas pela lei de organizações judiciárias de cada estado. Vale mencionar, poderá ocorrer dois julgamento do júri no mesmo dia, desde que as partes concordem, art. 453 do CPP. E, por fim, suas decisões se caracterizam por ser por maioria de votos, aqui se entende por maioria de votos 4 votos a favor ou contra de cada quesito para decidir o julgamento, não é preciso a unanimidade. Tendo em vista ao princípio do sigilo da votação, a nova redação sobre o júri tocou num ponto sensível, em que dispôs que basta a resposta de mais de três jurados, a qualquer dos quesitos, em um determinado sentido, a fim de proteger os jurados, no caso de votos unânimes de possíveis retaliações. (art. 483, §§ 1º e 2º do CPP, Lei 11689/08) 5 MUDANÇAS RECENTES Devido a muitas críticas acerca da morosidade inserida neste âmbito, as reformas surgiram para acelerar o procedimento bifásico. A nosso ver, as mudanças guiam-se pelos princípios da celeridade e da economia processuais. De pronto, já explicitamos uma mudança, que é a redução da idade do jurado para 18 (dezoito) anos. Pensamos ser extremamente prejudicial, tanto para a defesa, quanto para o acusado, pior, à Instituição do Júri como um todo. No caso, o legislador, data venia, de forma equivocada seguiu o entendimento do âmbito civil. Só que não se trata de capacidade para os atos da vida civil, muito menos de imputabilidade penal. O Conselho de Sentença é julgador, recebe qualidade de Magistrado. O Magistrado Togado tem o dever de fundamentar suas decisões, e para presidir um júri deve ter idade mínima de 25 anos, sendo que passou por 5 anos numa faculdade de direito, e mais três anos de prática forense, para ganhar experiência e saber o peso do julgamento de um ser humano. Tendo em vista a inexperiência de uma pessoa com tão pouca idade, concordamos não ser adequado aceitar que um jurado leigo com apenas 18 anos possa julgar seu semelhante. Ademais, o legislador prossegue mencionando que o jurado deverá ser de idônea notoriedade. No entanto, uma pessoa de apenas 18 anos de idade só será inidônea, se já tiver alguma internação em abrigo para menores infratores ou em estabelecimento educacional. Não sendo assim, não há tempo para que se observe sua idoneidade, ou não. Contudo, há também o lado à favor dessa redução. A redução da idade mínima para os jurados, que, como mencionado, caiu de 21 para 18 anos deve aumentar o número de interessados, principalmente universitários. 5.1 Judicium accusationis A primeira fase do procedimento, judicium accusationis sofreu alterações relevantes. A exemplo disso os artigos 406 e seguintes do CPP, que, antes da Lei 11.689 /08, tratavam da decisão de pronúncia, impronúncia e absolvição sumária, são analisadas em novos procedimentos e dispositivos. Com a nova redação dos artigos 406 a 412, do Código de Processo Penal, todos os atos processuais foram reunidos em uma única audiência, demonstrando um grande avanço para a satisfação da comunidade, em atendimento ao princípio da razoável duração do processo. Essa fase será iniciada com a denúncia ou queixa subsidiária, podendo ser rejeitada ou não. O órgão da acusação poderá arrolar até 8 testemunhas. O prazo é contado a partir da realização da diligência, não da juntada aos autos do mandado (art. 406, § 1º, CP, Lei 11.689/08). O interrogatório é o ato derradeiro da instrução, após a produção de prova testemunhal, pericial e demais diligências, ou seja, antes dos debates orais finais. Na resposta, ao acusado será facultado arguir preliminarmente e declarar tudo o que for cabível para a sua defesa. Após o término da instrução probatória, passar-se-á à fase dos debates orais. Encerrados os debates orais, cabe ao juiz pronunciar-se imediatamente ou em 10 dias, sobre a admissibilidade da denúncia ou queixa. As quais podem ser de pronunciar, impronunciar, absolver sumariamente o acusado ou desclassificar a infração penal. De acordo com a nova redação, na fase preliminar contraditória, que vem antes do recebimento da denúncia, o juiz, no prazo de 90 dias, fará a oitiva de testemunhas, irá interrogar o acusado, determinará diligências e, por fim, decidirá se a peça será admissível ou não.  Mais uma vez, frise-se a celeridade como ponto visado pela reforma. (AVENA: 2009, p. 678) A doutrina denomina de juízo de admissibilidade da acusação caracterizado pelo contraditório. Note-se que o descumprimento injustificável desse prazo pela Justiça, caracteriza constrangimento ilegal, o que abre espaço para os remédios cabíveis. A Pronúncia, destacada no art. 413 da lei ora em comento, é a decisão do juízo singular que submete o processo à competência do Tribunal do Júri. Essa decisão é baseada em indícios de autoria ou participação e prova da materialidade, destaque-se, “existência do fato”. Ademais, a pronúncia visa à admissibilidade da pretensão acusatória, como bem explana o professor José Frederico Marques: “A pronúncia é uma decisão processual de cunho declaratório em que o Juiz proclama admissível a acusação e tornando imprescindível o julgamento do pronunciado pelo Tribunal do Júri.” (MARQUES: 1963, p. 71) Em decorrência do art. 472, parágrafo único da Lei 11.689/2008, em que “o jurado receberá cópias da pronúncia ou, se for o caso, das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação e do relatório do processo”, o magistrado deve ter muito cuidado ao motivar a pronúncia, ao passo que pode induzir o Conselho de Sentença de que os indícios que o levaram a tal são mais do que apenas indícios a serem comprovados. Portanto, o juiz deve declarar apenas o dispositivo legal em que julgar incorrer o acusado e mencionar as possíveis circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena. Determinando o fim da chamada eloquência acusatória. Ademais, durante os debates, as partes não podem fazer menção à decisão de pronúncia, ou seja, a decisão que julgou admissível a acusação. Contra esta sentença de pronúncia, continua a utilização do recurso em sentido estrito. Para efeitos de intimação da decisão de pronúncia, constava antigamente no CPP que o ato intimatório fosse sempre pessoal, sob pena de suspensão do processo (antiga redação dos art. 414 c/c 413, CPP). Atualmente essa intimação deverá ser feita de forma pessoal ao acusado, ao defensor nomeado e ao Ministério Público; e ao defensor constituído, ao querelante e ao assistente do Ministério Público, segundo o art. 370, § 1º, CPP (art. 420 e incisos). Em se tratando de réu solto, passa a ser admitida a intimação por edital, com o normal prosseguimento do feito, colocando fim à chamada crise de instância. (NASSIF: 2009, p. 62) 5.2 Judicium causae Esta fase é vinculada à decisão de pronúncia de acusado em crime doloso contra a vida, em outras palavras, somente se tiver sido precluído para o Ministério Público e para a defesa, sem ter sido interposto recurso em sentido estrito, ou, se apresentado recurso, após seu julgamento. Na absolvição sumária o artigo 415 e incisos da lei, ora em tela, amplia as suas hipóteses, determinando que “o juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando I) provada a inexistência do fato; II) provado não ser ele o autor; III) o fato não constituir crime; IV) demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime”. Contudo, o parágrafo único deste dispositivo fez uma ressalva. A chamada absolvição sumária imprópria. Que diz que não ocorrerá absolvição sumária com base no inciso IV (causa de isenção de pena ou de exclusão do crime), quando for hipótese de inimputabilidade do artigo 26, caput do CP, a não ser que seja a única defesa. A absolvição sumária traz benefícios para ambas as partes; à defesa porque encerra as acusações contra seu cliente, sem submetê-lo ao Plenário, e, para a acusação, pois não demandará esforço para que ao final nem consiga um resultado satisfatório. (SILVA: 2008, p. 98) Dessa forma, com a inovação processual trazida ao tribunal do júri, o acusado poderá alegar qualquer das excludentes elencadas no art. 396-A, e, se bem fundamentada, apresenta-se ao juiz a alternativa de findar o processo absolvendo o acusado sumariamente, isto é, antes da fase probatória na audiência de instrução e julgamento (art. 400 do CPP). Vale destacar que antes dessa reforma, como não havia um rol vasto como o do art. 415 do CPP (Lei 11.689/08), os operadores do direito utilizavam-se do remédio constitucional Habeas Corpus, pedindo o trancamento da ação penal por falta de justa causa para o seu prosseguimento. Ainda, a absolvição sumária do crime contra a vida julga o mérito da ação penal em momento antecipado. A denúncia é julgada improcedente e, por força da coisa julgada material formada, não pode ser iniciada demanda penal pelos mesmos fatos narrados na peça acusatória. (ALENCAR; TÁVORA: 2009, p. 688) Quanto ao recurso da absolvição sumária, tem-se que, com o advento da Lei 11.689/08, este deixou de ser o Recurso em Sentido Estrito, passando a ser o recurso de Apelação. A decisão de impronúncia, assim com a pronúncia, tem natureza formal, assumindo, porém, característica de sentença, já que avança na apreciação do mérito e equivale à discordância ao recurso de Apelação. “É decisão com força de definitiva”. (NASSIF: 2009, p. 67) O grande impacto trazido por esta mudança reside no fato de que sai a possibilidade do juízo de retratação para a pronúncia e impronúncia. Desta feita, não há que se falar em decidir contrariamente à primeira decisão, restando-lhe somente, realizar o primeiro juízo de admissibilidade recursal da apelação para averiguar se os pressupostos processuais foram cumpridos. Entretanto, acreditamos que para a absolvição sumária, por ser decisão definitiva, é compatível com o recurso de Apelação. Todavia, por não ter caráter de condenar nem de absolver, muito menos definitivo, entendemos que a sua vinculação ao recurso de Apelação foi equivocada. Outra importante modificação é acerca do desaforamento. O artigo 428 cria uma nova hipótese de aplicação do instituto, a não realização do julgamento em Plenário, nos 6 meses seguintes ao trânsito em julgado da decisão de pronúncia. O desaforamento também poderá ser determinado em razão do comprovado excesso de serviço, ocorrendo risco concreto de grave perturbação da ordem pública, dúvida séria sobre a imparcialidade do júri ou sobre à segurança pessoal do réu, se o julgamento não puder ser realizado no prazo de 6 meses contados do trânsito em julgado da decisão de pronúncia. Ocorrendo tal situação, o desaforamento será para a Comarca vizinha que esteja desobstruída. “Essas situações, quando efetivamente comprovadas, demonstram a necessidade de alteração do local de realização do julgamento, optando-se pelas localidades mais próximas onde não subsistam os mesmo motivos. Nesses pontos, a nova lei determina a preferência por comarca da mesma região. Mais importante do que a proximidade, no entanto, há de ser o critério da contaminação, já que, em alguns casos, a repercussão do fato irradia-se por toda a região, sendo caso de se desaforar para local onde não haja o reflexo da situação”. (MARQUES: 2009, p. 92) O libelo-crime acusatório tem muita importância historicamente para o direito processual penal brasileiro. Entretanto, com o advento das modificações inseridas pela Lei 11.689/08, este instituto foi extinto. Era uma espécie de petição inicial da segunda fase do júri, retratava a pronúncia. Por isso que foi extinto, considerado por muitos doutrinadores como um instituto dispensável, devido ser um espelho da pronúncia, em que era reproduzi-la por inteiro. O libelo também delimitava a dimensão da acusação, não podia se excedido seus limites. Sendo que apenas podia ser feito o libelo sob a “forma de articulado, vale dizer, os fatos deviam ser relatados parte por parte, a começar do fato principal, passando pelas qualificadoras, causas de aumento, e, se houvesse, circunstanciais agravantes”. (ALENCAR; TÁVORA: 2009, p. 695) O libelo-crime acusatório era o divisor de águas das duas fases do júri e quando preclusa o ponto de partida da segunda fase. Neste instituto, a apresentação da contrariedade ao libelo era facultativo, porém a intimação para o ato era obrigatório. Com a chegada da reforma a contrariedade foi substituída pelo requerimento de oitiva de testemunhas através da defesa, poderiam pleitear diligências e acostar documentos. Outra importante mudança trazida pela lei, diz respeito a alterações relativas às recusas, por parte da defesa e da acusação no que se refere à escolha dos jurados para compor o Conselho de Sentença, mais especificamente no que se refere à dupla recusa. Assim, com a busca incessante de celeridade, foram criadas novas formas de restringir a cisão de julgamentos, que acontecerá “se forem 2 (dois) ou mais os acusados, as recusas poderão ser feitas por um só defensor”, como dispõe o novo art. 469 do CPP. Em sendo dois os réus, abrem-se espaço para que os advogados combinem entre si as recusas, conduzindo à cisão do julgamento. Também será feita a cisão quando não houver mais jurados suficientes para compor o Conselho de Sentença, “a separação dos julgamentos somente correrá se, em razão das recusas, não for obtido o número mínimo de 7 (sete) jurados para compor o Conselho de Sentença”. Para evitar a cisão do julgamento, foi aumentado o número de jurados de 21 (vinte e um) para 25 (vinte e cinco), no termos do art. 433 do CPP. (art. 469, § 1º do CPP) O §2º determinada que “a separação dos julgamentos, será julgado em primeiro lugar o acusado a quem foi atribuída a autoria do fato ou, em caso de co-autoria, aplicar-se-á o critério de preferência disposto no art. 429 deste Código” (art. 469, §2º do CPP) Em detrimento desse dispositivo há divergência doutrinária a respeito de quem será julgado primeiro em caso de cisão do julgamento. Para Alencar e Távora (2009, p. 706) acreditam que primeiro será o acusado que estiver preso, com mais tempo nessa situação e, por último quem teve em seu processo a decisão e pronúncia já decretada. Por outro lado, Marques (2009, p. 121) primeiro será aquele que for imputado da prática de crime doloso contra vida em relação a um dos acusados. E, em crimes conexos, será dado prioritariamente ao julgamento do acusado de crime doloso contra a vida, tendo que autor é aquele que define a competência do Júri. Ademais, outra alteração que merece destaque é a consagração do sistema da cross examination, que trata da possibilidade de “reperguntas” diretamente às testemunhas, por parte da defesa e da acusação, sem a necessidade de aludir antes ao juiz. As perguntas são feitas diretamente pelas partes às testemunhas. Ensina o art. 473 da Lei, ipsis litteris: “Art. 473. Prestado o compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução plenária quando o juiz presidente, o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor do acusado tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido, se possível, e inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação. § 1º Para a inquirição das testemunhas arroladas pela defesa, o defensor do acusado formulará as perguntas antes do Ministério Público e do assistente, mantidos no mais a ordem e os critérios estabelecidos neste artigo. § 2º Os jurados poderão formular perguntas ao ofendido e às testemunhas, por intermédio do juiz presidente.” Contudo, o § 2º da norma em comento traz uma exceção: os jurados, por sua vez, não podem formular perguntas diretamente às testemunhas. Podemos concluir que com o advento da Lei 11.689/08 o nosso ordenamento adotou um sistema misto de inquirição de testemunhas, uma vez pela cross examination, quando se tratar de “reperguntas” do Ministério Público, outra pela da defesa (presidencialista) nas perguntas feitas pelos jurados. Outra questão que sofreu alteração foi a leitura de peças em Plenário. Não havia limitações, as partes podiam solicitar a leitura de quantas peças considerassem necessárias. A Lei 11.689/08 alterou isso; haverá a leitura apenas do que for considerado indispensável. A exemplo disso, as provas cautelares. Ainda, importante mudança trazida pela lei, diz respeito à extinção do Protesto por Novo Júri, que “tratava-se de recurso exclusivo da defesa, cujo objetivo era propiciar a realização de um novo julgamento quando a pena imposta, decorrente da condenação pelo Júri, fosse igual ou superior a 20 anos”, a realização um novo julgamento se dava porque a pena era considerada excessiva. (CUNHA; PINTO: 2008, p. 236) O art. 4º, da Lei em tela ficou destinado a revogar o capítulo do Código Processual Penal que dispunha sobre o protesto por novo júri. Era previsto nos artigos 607 e seguintes, do CPP, e era um recurso específico da defesa. Independentemente de uma fundamentação maior, o réu que tivesse sido submetido a júri popular, alcançando a condenação de, pelo menos, vinte anos de reclusão, só podia empregá-lo uma única vez. Pena essa que deve ser atribuída a apenas um crime. Se acaso o protesto fosse deferido, haveria um novo julgamento, e, mesmo que se obtivesse condenação igual ou superior a vinte anos, o réu não poderia interpor o Protesto por novo Júri novamente. Porém, quanto a essa segunda decisão, cabe Apelação. O principal fundamento para a extinção desse instituto é a morosidade processual. Contudo, sua extinção, apesar de ser defendida por diversos doutrinadores, inclusive Guilherme de Souza Nucci, foi massacrada por outros. Para esses, foi uma retroação abolir, pois o país estava no auge da democracia, e as duas partes tinham seus direitos. Já que o réu era a parte mais fraca, era garantido a ele protestar por um novo júri quando lhe fosse auferida pena gravosa pelo júri. A nosso ver, a extinção do Protesto por Novo Júri chegou em um momento muito oportuno. O Protesto por novo Júri não apenas representava uma ofensa aos princípios do contraditório, da economia processual, da igualdade entre as partes, e, sobretudo, da soberania dos veredictos dos jurados, como ultrapassava o direito que o réu tem de plena defesa. O Protesto por Novo Júri apenas satisfazia o acusado, que teria uma nova ocasião de ter sua causa analisada por um Conselho de Sentença. Como bem observado, não é esse o objetivo da Instituição do Júri. Ela pretende proporcionar seguridade a todos que necessitam de uma justiça eficaz, a sociedade como um todo. 6 CONCLUSÃO Por derradeiro, concluímos que o Tribunal do Júri, mesmo sendo a instituição julgadora mais democrática atualmente, além de atualizada e imprescindível para a sociedade, sempre necessitará de mudanças como essas, para que possa dar respostas as mais céleres possíveis a quem carece de Justiça. Ademais, a reforma vem trazendo diversos debates entre os mais diversos doutrinadores. Como mencionado, tratamos da discussão sobre a extinção do protesto por novo júri. Há quem acredite que acaba por cercear o direito de defesa do acusado, assim como há quem se posicione de modo contrário, logo, que sua extinção foi mais do que acertada, inclusive o nosso posicionamento. A reforma ocorrida no instituto aqui tratado trouxe maior celeridade, mas não nos parece ser vantajosos por acreditarmos que causará lesões ao contraditório e a plena defesa, tendo em vista que em casos de alta complexidade e ainda o julgamento de co-autores na mesma sessão. Celeridade não quer dizer eficácia. Essa reforma tem por objetivo fazer valer os princípios da celeridade e da economia processual, diminuindo a morosidade no andamento das demandas processuais.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/as-principais-mudancas-no-tribunal-do-juri-brasileiro-trazidas-pela-lei-11-689-08/
Justiça Restaurativa no Brasil: Conceito, críticas e vantagens de um modelo alternativo de resolução de conflitos
Este artigo analisa o conceito e as características da Justiça Restaurativa, apontando as suas vantagens em relação ao sistema de Justiça Criminal vigente e as dificuldades de sua implementação no ordenamento jurídico pátrio.
Direito Processual Penal
1 Introdução Ante o cometimento de um ilícito penal, surge para o Estado o poder-dever de punir aquele que viola o ordenamento jurídico e a paz social, retribuindo o mal causado com a comissão do delito com a aplicação de medidas extremas. Assim, a pena privativa de liberdade tornou-se prática constante em nosso atual sistema de justiça penal e é imposta como meio de resposta à infração penal e como medida apta a prevenir futuras condutas e ressocializar o infrator, o que, infelizmente, não acontece. É cediço que esse ideal ressocializador não se vislumbra e testemunhamos o fracasso do sistema de justiça penal vigente, uma vez que o sujeito ativo do crime, ao ser submetido a uma pena cerceadora de sua liberdade, é fruto de um processo de dessocialização que o torna propenso ao cometimento de outros delitos. O direito penal é, acima de tudo, uma garantia e a justiça penal organiza-se a partir de uma exigência: garantir uma coexistência pacífica entre os membros da sociedade. Entretanto, é dentro desse sistema de justiça que observamos as maiores atrocidades e insurgências contra os princípios fundamentais constitucionais, notadamente a liberdade e a dignidade da pessoa humana, atuando a pena de prisão como fator criminógeno.  O castigo e a violência punitiva como respostas à criminalidade apenas intensificam a própria violência que vitima os cidadãos. Ademais, é curial ressaltar que o modelo tradicional de justiça penal é eticamente inaceitável, uma vez que se pune o mal com outro mal. Assim, o Estado veda que seus cidadãos façam justiça com as próprias mãos, freando a vingança privada, mas aplica uma punição irracional e violenta em desprol dos violadores do Estatuto Repressivo. Face ao exposto, por que não pensarmos em um modelo alternativo de resolução do conflito surgido com o cometimento do ilícito penal? Se constatamos a inoperância do atual sistema de justiça penal, onde direitos constitucionais básicos são desrespeitados, eticamente inaceitável, inviabilizador da ressocialização do apenado, devemos procurar medidas alternativas ao atual modelo de justiça penal. O surgimento de um novo paradigma de justiça penal se faz imprescindível no sentido de buscarmos amenizar a fragilidade do atual e retificar as suas falhas, o que não é tarefa fácil. É nesse ideário que surge a Justiça Restaurativa como um novo modelo de solução de conflitos e cuja implantação não implica na supressão do modelo atual. 2 Justiça Restaurativa-conceito e críticas A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções dos traumas e perdas causados pelo crime. A denominação justiça restaurativa é atribuída a Albert Eglash, que, em 1977, escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution, publicado numa obra por Joe Hudson e Burt Gallaway, denominada “Restitution in Criminal Justice”. Eglash sustentou, no artigo, que havia três respostas ao crime – a retributiva, baseada na punição; a distributiva, focada na reeducação; e a restaurativa, cujo fundamento seria a reparação. A prática restaurativa tem como premissa maior reparar o mal causado pela prática do ilícito, que não é visto, a priori, como um fato jurídico contrário á norma positiva imposta pelo Estado, mas sim como um fato ofensivo à pessoa da vítima e que quebra o pacto de cidadania reinante na comunidade. Portanto, o crime, para a justiça restaurativa, não é apenas uma conduta típica e antijurídica que atenta contra bens e interesses penalmente tutelados, mas, antes disso, é uma violação nas relações entre infrator, a vítima e a comunidade, cumprindo, por isso, à Justiça Restaurativa identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa relação e do trauma causado e que deve ser restaurado. Imbuída desse mister de reparar o dano causado com a prática da infração, a Justiça Restaurativa se vale do diálogo entre as pessoas envolvidas no pacto de cidadania afetado com o surgimento do conflito, quais sejam, autor, vítima e em alguns casos a comunidade. Logo, é avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual socialmente terapêutico seja alcançado. Por centrar suas forças no diálogo, no envolvimento emocional das partes, na reaproximação das mesmas, é fundamental esclarecer que não há ênfase para a reparação material na Justiça Restaurativa. Dessa feita, a reparação do dano causado pelo ilícito pode ocorrer de diversas formas, seja moral, material ou simbólica. Como dito alhures, o ideal reparador é o fim almejado por esse meio alternativo de justiça e o consenso fruto desse processo dialético pode resultar em diferentes formas de reparação. Trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal e caracterizado pelo encontro e inclusão. A voluntariedade é absoluta, uma vez que os componentes da comunidade protagonistas desse modelo alternativo de justiça (autor e vítima) livremente optam por esse modelo democrático de resolução de conflito. A informalidade também é sua característica, malgrado relativa, distanciando-se do formalismo característico do vigente processo penal. O encontro é requisito indispensável para o desenvolvimento da técnica restaurativa, pois o escopo relacional, intrínsico a esse modelo alternativo, é a energia para se alcançar democraticamente uma solução para o caso concreto. Por tudo isso, é fácil entender porque a inclusão também é regra da prática restaurativa, uma vez que os cidadãos contribuem diretamente para o processo de pacificação social. Na justiça tradicional, ao revés, o Estado impõe a vontade da lei e o distanciamento dos envolvidos na relação litigiosa é latente, cabendo-lhes, apenas, um papel de meros coadjuvantes.   Dentre as diversas modalidades de Justiça Restaurativa podemos destacar a mediação (mediation), reuniões coletivas abertas à participação de pessoas da família e da comunidade (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles). Na mediação um terceiro, neutro, conduz as partes envolvidas no conflito para um diálogo sobre as origens e conseqüências do mesmo, de maneira que estas alcancem a solução ideal consistente num acordo restaurativo, onde ambas saiam satisfeitas e o pacto de cidadania, abalado com o cometimento da infração, seja restabelecido. Vê-se que o mediador é apenas um facilitador desse plano restaurativo e as partes envolvidas tomam as rédeas de todo o processo de restauração, através do diálogo livre e mediado apto a transformar o comportamento dos conflitantes e da sociedade em geral. Nas reuniões coletivas e círculos decisórios ocorre uma mediação ampliada, ou seja, o diálogo sobre as origens e conseqüências do delito com a conseqüente realização de um acordo restaurativo não ocorre em nível individual, mas de forma coletiva e integrada com a comunidade. O que observamos nas diferentes técnicas restaurativas é a aproximação dos envolvidos na relação conflituosa, resultando numa confidencialidade, uma vez que as emoções afloram e colaboram para o desfecho de um propósito restaurador mais eficaz e duradouro. Como prática comunitária, a Justiça Restaurativa é primitiva, remotando aos códigos de Hamurabi, Ur-Nammu e Lipit-Ishtar há cerca de dois mil anos antes de Cristo. Alguns países já vêm adotando experiências com a prática restaurativa, tais como a Nova Zelândia e o Canadá. Importante destacar que a implantação da prática restaurativa como método de solução de conflitos está ganhando força, havendo, inclusive, determinação expressa em documentos da ONU e União Européia no sentido de que a mesma seja aplicada em todos os países, não se esquecendo da Resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, de 2002, que traz os princípios básicos sobre Justiça Restaurativa. Seguindo essa recomendação das Nações Unidas, alguns países já a introduziram em sua legislação (Colômbia e Nova Zelândia) e a tendência é que esse quadro aumente. Já apontamos que o atual sistema de justiça penal, exclusivamente punitivo-retributivo, não contribui para a ressocialização do infrator; ao revés, dessocializa o agente ativo do fato típico, haja vista que direitos e garantias fundamentais do apenado não são respeitados durante a execução da pena restritiva de liberdade, tornando-se imperioso, a aplicação de práticas alternativas de pacificação social. Entrementes, a aplicação de medidas alternativas, notadamente a Justiça Restaurativa, encontra relutância para a sua aceitação, tanto em âmbito cultural como entre os estudiosos e operadores do direito. Na seara cultural, para que o desiderato da Justiça Restaurativa seja efetivamente implantado, faz-se necessário reavivar as idéias do favor libertatis, sacrificado com a aplicação contumaz e irracional da medida constritiva de liberdade. Ademais, é imperioso acolher a noção de subsidiariedade do direito penal, abrindo-se espaço para outros ramos do direito e outras formas de solução dos conflitos. Infelizmente, o direito penal não é visto como ultima ratio, sendo aplicado irrestritamente como o único instrumento de resolução de conflitos. Contudo, esse empecilho cultural é clarividente e mais intenso dentro do nosso Poder Judiciário. Como a justiça penal tradicional corresponde a uma imposição unilateral e verticalizada da norma positiva, impregnada de um formalismo inútil protagonizado pelos juízes togados em nossos pretórios, cuja pena de prisão é vista como manifestação de autoridade, há um rígido bloqueio por parte do Estado-Juiz em aplicar medidas alternativas. Afora a barreira cultural sobredita, podemos destacar críticas doutrinárias, notadamente aquelas que enfatizam o estímulo à vingança privada que pode resultar da aplicação desse modelo alternativo de solução de conflitos. Parte da doutrina contrária à sua incidência defende que a mesma implica num retrocesso, pois estar-se-ia abrindo mão da justiça imposta pelo Estado, cogente, imperativa, em favor de um sistema privatizado e vazio de garantias favorável à autotutela. 3 Justiça Restaurativa x Justiça Retributiva O presente trabalho não estaria completo se não fossem elencadas diferenças entre a Justiça Restaurativa e a Justiça Retributiva tradicional. Assim, podemos destacar que na Justiça Retributiva temos um conceito estritamente jurídico de crime, ou seja, é conceituado como violação da Lei Penal e monopólio estatal da Justiça Criminal; na Justiça Restaurativa, por sua vez, temos um conceito amplo de crime, sendo o mesmo o ato que afeta a vítima, o próprio autor e a comunidade causando-lhe uma variedade de danos, bem como uma Justiça Criminal participativa.  Em termos de procedimentos, destacamos o ritual solene e público da Justiça Retributiva, com indisponibilidade da ação penal, contencioso, contraditório, linguagem e procedimentos formais, autoridades e profissionais do Direito como atores principais, processo decisório a cargo de autoridades (policial, promotor, juiz e profissionais do Direito) contrapondo-se ao ritual informal e comunitário, com pessoas envolvidas, com oportunidade, voluntário e colaborativo, procedimento informal com confidencialidade, vítimas, infratores, pessoas da comunidade como atores principais, processo decisório compartilhado com as pessoas envolvidas (multidimensionalidade) típico da Justiça Restaurativa. No que diz respeito aos efeitos para a vítima, frise-se que na Justiça Retributiva há pouquíssima ou nenhuma consideração, ocupando lugar periférico e alienado no processo; na Justiça Restaurativa, ao revés, a vítima ocupa lugar de destaque, com voz ativa e controle sobre o que passa. Com relação ao infrator, na Justiça Retributiva este é considerado em suas faltas e sua má-formação e raramente tem participação; na Justiça Restaurativa, é visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e conseqüências do delito, interage com a vítima e com a comunidade, vê-se envolvido no processo, contribuindo para a decisão. 4 Justiça Restaurativa e aplicação no Direito Brasileiro A Justiça restaurativa primeiramente aflorou nos países que adotam o commom Law, isso porque em tais países o princípio da oportunidade inerente ao sistema de justiça é compatível com o ideal restaurativo. No caso do Brasil, porém, onde vigora o princípio da indisponibilidade da ação penal pública, não há essa abertura para a adoção de medidas alternativas. Contudo, malgrado haja esse entrave para a aplicação de métodos alternativos no âmbito processual penal, a nossa Carta Magna e a Lei 9099/95 avançaram no sentido de permitir a aplicação da justiça restaurativa, mesmo que não explicitamente, nas situações onde vigora o princípio da oportunidade. Assim é que nos crimes de ação penal de iniciativa privada, sendo disponível e inteiramente a critério do ofendido a provocação da prestação jurisdicional, é possível para as partes optarem pelo procedimento restaurativo e construírem outro caminho, que não o judicial, para lidar com o conflito. A lei 9099/95 prevê a composição civil (art.74 e parágrafo único), a transação penal (art.76) e a suspensão condicional do processo (art.89). Nos termos da citada lei, tanto na fase preliminar quanto durante o procedimento contencioso é possível a derivação para o processo restaurativo, sendo que, nos crimes de ação penal privada e pública condicionada, há a possibilidade de despenalização por extinção da punibilidade através da composição civil e, nos casos de ação penal pública, utilizando-se o encontro para, além de outros aspectos da solução do conflito, se discutir uma sugestão de pena alternativa adequada, no contexto do diálogo restaurativo. Disso resulta que a experiência restaurativa pode ser aplicada na conciliação e na transação penal, a partir do espaço de consenso por ela introduzido, que permite o diálogo restaurativo, inclusive ampliado para contemplar outros conteúdos – emocionais , por exemplo – trazidos pelas partes e que podem ser colocados. Em remate, é salutar esclarecer que também é possível, por força do art. 94, da Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso), o procedimento restaurativo nos crimes contra idosos, haja vista que o referido artigo prevê o procedimento da Lei 9099/95 para os crimes contra idosos cuja pena privativa de liberdade não ultrapasse 4 anos. 5 Conclusão    O debate acerca da introdução e aceitação da justiça restaurativa em nosso sistema de justiça criminal é ainda muito inexpressivo, tímido. Como já exposto, não são poucas as críticas, desconfianças, resistências para a sua implantação e consolidação definitiva, ainda mais em um país alçado à categoria de Estado Democrático de Direito, mas que, na prática, rasga a nossa Carta Magna. Não há legislação nacional expressa determinando a sua aplicação, malgrado possamos fazer uso da Lei 9099/95 para respaldar procedimentos restaurativos, numa tentativa comedida de abrir espaço para esse democrático e legítimo método alternativo de pacificação de litígios. Ademais, vale salientar que não advogamos a supressão total do atual sistema de justiça criminal. A prática restaurativa e o modelo retributivo podem coexistir, desde que o direito penal tradicional seja visto como ultima ratio, subsidiário aos métodos alternativos. Continuando, como a implementação da Justiça Restaurativa envolve gestão concernente à administração da Justiça, é também fundamental que as partes tenham o direito a um serviço eficiente (princípio constitucional da eficiência – art.37), com facilitadores realmente capacitados e responsáveis, com sensibilidade para conduzir seu trabalho, respeitando os princípios, valores e procedimentos do processo restaurativo, pois é uma garantia implícita dos participantes a um, digamos, devido processo legal restaurativo. Não podemos esquecer que todos os princípios e garantias fundamentais das partes envolvidas devem ser rigorosamente observados, tais como: a dignidade da pessoa humana, razoabilidade, proporcionalidade, adequação e interesse público. O certo é que apesar das vantagens que podem oferecer as práticas restaurativas, no sistema de justiça criminal elas devem ser implementadas com cautela e devem estar sempre sendo fiscalizadas e avaliadas. Logo, espera-se que a Justiça Restaurativa se desenvolva como produto de debates em fóruns apropriados, com ampla participação da sociedade para que seja concebida definitivamente no Brasil, onde é manifesta a falência do sistema de justiça criminal tradicional e o crescimento contumaz da violência e criminalidade. Concluímos que talvez seja possível a Justiça Restaurativa no Brasil, como oportunidade de adoção de uma justiça criminal informal, democrática, participativa e capaz de operar uma real transformação na vergonhosa realidade de nosso sistema, promovendo os direitos humanos, a cidadania, a dignidade e paz social esquecidos no atual sistema de justiça retributiva.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/justica-restaurativa-no-brasil-conceito-criticas-e-vantagens-de-um-modelo-alternativo-de-resolucao-de-conflitos/
A reforma do CPP e o Código de Processo Penal Militar: Aplicação da absolvição sumária na Justiça Militar
O objetivo deste ensaio é evidenciar e discutir a aplicação da nova figura da absolvição sumária no âmbito da Justiça Militar brasileira. Essa discussão tem início com o advento da Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, incluída no rol daquelas que compõem a chamada reforma do processo penal, a qual fez surgir uma nova espécie de resolução antecipada do mérito no Código de Processo Penal — a absolvição sumária. Até então, existia um instituto semelhante no CPP, todavia com alcance restrito ao rito especial do tribunal do júri. Já a nova figura, a partir da edição da novel Lei 11.719/08, teve sua utilização ampliada para todos os outros procedimentos. Desse modo, cumpre verificar, e este é o ponto central deste trabalho, se esse recente instituto é aplicável ao processo penal militar, já que este se pauta no Código de Processo Penal Militar, ou seja, uma lei especial. Outrossim, essa nova absolvição sumária terá sua incidência, pondo fim ao processo logo no seu início, quando houver, dentre outras hipóteses, a manifesta existência de uma causa excludente da ilicitude do fato, por exemplo. Assim, já se pode vislumbrar a importância do mecanismo em tela, por tornar possível a extinção do processo criminal logo após o início da sua formação, interrompendo os seus danosos efeitos para o réu. Em relação a essa função também será dado um destaque especial.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO O processo penal militar brasileiro, tanto na esfera federal quanto na estadual, é dirigido pelas normas do Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969, Código de Processo Penal Militar. Isto é o que se depreende do seu art. 1º, o qual estabelece: “O processo penal militar reger-se-á pelas normas contidas neste código, assim em tempo de paz como em tempo de guerra, salvo legislação especial que lhe for estritamente aplicável”. A partir dessa premissa, convém examinar se a Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, que compõe, juntamente com as Leis 11.689 e 11.690, a denominada reforma processual penal, tem alguma aplicação no processo penal militar. A causa dessa discussão advém da redação do novo § 4º do art. 394 do Código de Processo Penal comum, inserido pela Lei nº 11.719/08. Esse dispositivo prevê a incidência de alguns dos artigos do CPP, mais precisamente dos arts. 395 a 398, mesmo nos procedimentos penais de primeiro grau que não sejam regulados por este Código. Contudo, observa-se que a questão transcende a mera previsão legal, principalmente quando se trata da absolvição sumária, que é o foco do estudo. Isto porque esse instituto tem por escopo pôr fim ao processo penal, nos casos em que haja subsídios para isso, logo no seu início. Por tais razões, conhecendo-se todos os dissabores que um processo criminal traz para o acusado, a absolvição sumária mostra-se como importante instrumento de garantia. Essa qualidade do mecanismo em apreço será aprofundada no decorrer desta explanação, evidenciando seu caráter garantista, de extrema importância em um Estado Democrático de Direito. Por sua vez, apresentar-se-á também a posição doutrinária sobre o assunto em foco. Consoante poderá ser percebido, ainda existem divergências, entre os estudiosos do tema, sobre a aplicabilidade ou não da absolvição sumária na Justiça Militar.      1 A nova Absolvição sumária: características do instituto A Lei nº 11.719/08, uma das legislações responsáveis pela chamada reforma processual penal de 2008, inaugurou um novo tipo de resolução antecipada do mérito no processo penal: a absolvição sumária. Na verdade, ampliou a utilização de um instituto semelhante já existente, só que de menor abrangência, antes restrito ao procedimento especial do júri. O anterior era previsto no art. 411 do CPP [hoje, passou a ser regido no art. 415]. A nova figura da absolvição sumária encontra-se na redação do atual art. 397 do Código de Processo Penal. Esse dispositivo elenca em seus quatro incisos as hipóteses em que o magistrado, se verificar alguma delas, deverá absolver sumariamente o acusado. São elas: a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; a evidência de que o fato narrado não constitui crime (fato atípico); a extinção da punibilidade do agente; a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente (exceto inimputabilidade). Em relação à última hipótese de absolvição sumária, qual seja, a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade, vale verificar o porquê da exceção da inimputabilidade do agente. Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches e Ronaldo Batista (2008, p. 340) explicam: “A razão é óbvia: sendo inimputável o agente (por doença mental, v. g.), há necessidade de que o processo seja regularmente instaurado, com a respectiva produção de prova em juízo e observância de todo o trâmite legal, que culminará ou com a absolvição própria do réu ou com a absolvição imprópria, assim entendida aquela que reconhece que o fato é típico, ilícito, mas não impõe pena, senão medida de segurança.” Dessa maneira, conforme precisa lição de Andrey Borges de Mendonça (2008, p. 275), “a nova sistemática, diversamente da anterior, permite ao juiz absolver o acusado se comprovada qualquer situação prevista no artigo em análise, especialmente em razão dos elementos trazidos pela defesa inicial”. Quanto a essa defesa inical, citada pelo autor, ela está presente, também a partir da Lei nº 11.719/08, nos arts. 396 e 396-A do CPP. Esses artigos estabelecem a apresentação de uma defesa escrita pelo acusado, depois de recebida  a denúncia, no prazo de dez dias. Segundo leciona Ivan Luís Marques da Silva (2008, p. 36-37): “Poderá a defesa argüir preliminares (como as exceções de incompetência, litispendência e coisa julgada) e alegar tudo o que interessar, ou para reforçar uma tese defensiva ou para fragilizar o alegado pela acusação na denúncia/queixa já regularmente recebida pelo magistrado.” Assim sendo, a partir da entrega da resposta escrita, logo após o recebimento da peça acusatória inicial, o magistrado, com base nessa defesa, poderá absolver sumariamente o acusado. Isto é, conforme ensinamento de Yordan Moreira Delgado e Werton Magalhães Costa (2009, p. 84), “se o juiz, ao ter o primeiro contato com a denúncia no procedimento ordinário, poderia tê-la rejeitado, mas a recebeu, poderá, neste segundo momento, tendo contato com a resposta escrita do acusado, absolvê-lo sumariamente […]”. E isso impedirá o desenrolar de todo um processo criminal que já poderia ter sido extinguido antes mesmo da sua formação. Em última análise, a Lei 11.719/08 dispôs expressamente, através da inclusão do § 4º no art. 394 do CPP, que alguns dos novos procedimentos seriam empregados também fora deste Código. Mais precisamente, esse novel parágrafo “estabelece que as disposições dos arts. 395 a 397 do CPP (o art. 398 foi revogado) aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados no CPP” (FEITOZA, 2008, p. 75). Logo, como a absolvição sumária está inserida no art. 397 do CPP, enquadra-se nessas regras e reclama sua aplicação em qualquer procedimento penal de primeiro grau. Neste momento, surge a discussão sobre a aplicabilidade da absolvição sumária no âmbito da Justiça Militar, sendo que a competência desta é, em regra, pautada nas normas do Código de Processo Penal Militar. Isso é o que será examinado a seguir. 2 Absolvição sumária e sua aplicação na justiça militar: enfrentamento da questão Com o advento da Lei nº 11.719/2008, sobreveio o seguinte questionamento: a absolvição sumária aplica-se na esfera da Justiça Militar? Posta assim a questão, ver-se-á que a mesma ainda não é pacífica entre os doutrinadores, o que demanda um estudo pormenorizado dessa nova espécie de resolução antecipada do mérito no processo penal e seus reflexos na Justiça Militar.      Assim, posicionando-se sobre a nova reforma do CPP e sua relação com a Justiça Militar, Célio Lobão (2009, p. 502) expõe: “[…] não se justifica a adoção, na Justiça Militar, das alterações do Código de Processo Penal constantes das referidas Leis 11.690 e 11.719, dentre as quais destacamos: a resposta por escrito da acusação (art. 396 do CPP); absolvição sumária (art. 397 do CPP); interrogatório do réu, após a produção de prova testemunhal (art. 531 do CPP). […] Não se justifica porque […] o art. 1º das duas leis citadas dispõe, claramente, que os artigos do Código de Processo Penal enumerados “passam a vigorar com a seguinte redação”, ou com “as seguintes alterações”. Portanto, “alterações” ou nova “redação” somente dos artigos do Código de Processo Penal citados expressamente nos dois diplomas legais, e não, igualmente, do Código de Processo Penal Militar.” Em que pese o entendimento do eminente autor, essa não parece ser a melhor interpretação. Realmente o art. 1º da Lei nº 11.719/08 explicita que a lei traz “nova redação” para os artigos do CPP ali indicados. Ora, acontece que justamente uma dessas novas redações, mais especificamente a do § 4º do art. 394 do CPP, dispôs expressamente que as regras dos arts. 395 a 398 devem ser utilizadas em todos os outros procedimentos de primeiro grau. E isso independentemente de serem regulados pelo Código de Processo Penal comum. Em conseqüência disso, a absolvição sumária, que está prevista no art. 397 do CPP (logo, entre os arts. 395 e 398) deve ser aplicada em qualquer procedimento de primeiro grau, inclusive naqueles estabelecidos pelo Código de Processo Penal Militar. Ademais, esse fenômeno não é novidade no nosso direito. A Lei nº 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, por exemplo, em seu art. 88, modificou a ação penal nos crimes de lesão corporal leve ou culposa. Nessas situações, a ação penal passou a ser pública condicionada à representação (antes era incondicionada) em todos os outros procedimentos penais. A exceção ficou apenas restrita à Justiça Militar, mas, nesse caso em especial, por vedação expressa do art. 90-A da própria Lei nº 9.099/95. Como se vê, uma lei específica trouxe um dispositivo aplicável a qualquer outro procedimento penal. Foi exatamente isto que ocorreu com a figura da absolvição sumária, só que, desta vez, sem nenhuma reserva quanto ao seu uso na Justiça Militar. Nesse sentido, Denilson Feitoza (2009, p. 1000-1001) leciona: “Pensamos que a absolvição sumária é aplicável a quaisquer processos penais, sejam comuns, eleitorais ou militares, tendo em vista a forma categórica e abrangente com que o art. 394, § 4º, do CPP afirmou sua aplicabilidade a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados no CPP […]. Nessa linha, qual seria o fator diferencial entre um réu no processo penal comum e outro no processo penal militar que justificaria que o primeiro pudesse ser protegido, via absolvição sumária, contra denúncias “manifestamente ilegais” (já que manifesta existência de causa excludente de ilicitude ou culpabilidade etc.), inclusive com o status de absolvido, enquanto o último não?” Além do mais, a questão não pode ficar limitada ao aspecto legal, ou melhor, à sua previsão em lei. Esse pode até ser o ponto de partida da discussão, mas não deve representar a sua delimitação. A absolvição sumária possui um caráter garantista em favor do acusado, quando este se acha manifestamente amparado por uma norma legal, tal como o estado de necessidade, v. g. Pois, se o magistrado já tem elementos suficientes para produzir uma cognição exauriente logo no início da ação penal, não tem motivos para aguardar todo o desenrolar do processo e só então proferir a decisão absolutória. Sobre esse aspecto, vale conferir as palavras de Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco (2009, p. 537): “Assim, não se afigura admissível o uso do processo penal como substitutivo de uma pena que se revela tecnicamente inaplicável ou a preservação de ações penais ou de investigações criminais cuja inviabilidade já se divisa de plano. Tem-se, nesses casos, flagrante ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.” Como se observa, a questão está intimamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana. De outra forma, submeter um indivíduo a um processo criminal desnecessário, seja na justiça comum ou militar, mostra-se algo flagrantemente ofensivo a esse princípio fundamental, que é um dos alicerces do Estado Democrático de Direito.   3 A relevância da absolvição sumária Ao tecer comentário acerca dos efeitos do tempo e do espaço durante a execução da pena privativa de liberdade, Ana Messuti (2003, p. 44) analisa que: “A qualidade do tempo que se vive durante a pena, por ser precisamente “o tempo da pena”, não pode ser a mesma daquele que vive livre de pena. Qualquer atividade que se realize durante esse tempo não será verdadeira atividade, estará impregnada do tempo e do espaço da pena. Ainda que aparentemente esteja em movimento, o sujeito da pena está imobilizado em determinado espaço, no qual transcorre um tempo diferente. E esta imobilidade poder-se-ia qualificar de espera”. Ocorre que aqueles que respondem a um processo criminal são afetados de igual forma por efeitos parecidos. No tempo em que perdura a ação penal, o acusado não vive, em toda sua plenitude, o seu direito à liberdade, pois sempre há o temor de vir a ser condenado ao término da ação penal. Essa dúvida somente será dissolvida por completo no momento da sentença. Porém, até lá, já se terá experimentado todas as agruras trazidas pelo enfrentamento, na condição de réu, a um processo penal, com todos os seus efeitos estigmatizantes. Justamente aí reside a grande importância do instituto da absolvição sumária. Isto é, em se evitar todos esses constrangimentos para um indivíduo que agiu nitidamente acobertado pela legítima defesa, por exemplo. Se existe a possibilidade de formação de um juízo de certeza sobre essa excludente logo no início do processo, não há razão em absolvê-lo somente após todo o trâmite do processo criminal. E isso vale, certamente, também para o processo penal militar, pois não existem justificativas plausíveis para um entendimento contrário. Ao tratar da resolução antecipada do mérito no processo penal, da qual é espécie a absolvição sumária, Nestor Távora (2009, p. 27) ressalta a importância desse mecanismo, in verbis: “O julgamento antecipado do mérito pode ser adequado a situações que imponham decisões absolutórias. A atual redação do art. 397 [dispositivo da absolvição sumária], do Código de Processo Penal, não merece reparos no ponto. No entanto, quando se está diante de julgamento antecipado que implique restrições às liberdades individuais, a visão instrumentalista deve sofrer restrições, pois o processo não se resume a simples meio de realização do direito penal [seja penal comum, seja penal militar], mas antes é fim, especialmente porque viabiliza rol de garantias constitucionais processuais penais”. Tendo em vista essa carga garantista é que o legislador ampliou a utilização da absolvição sumária para quaisquer procedimentos penais de primeiro grau, sem distinções. Modificação esta que evidentemente não excluiu o direito processual penal militar. E não poderia ser diferente, uma vez que aquele que é réu em um processo penal militar sofre das mesmas mazelas e estigmas enfrentados por quem é submetido a um processo penal comum. 4 conclusão Em suma, como foi observado até aqui, o nobre instituto da absolvição sumária passa a ter incidência também no processo penal militar. Tanto à luz do texto da nova reforma processual penal, quanto pela sua relevância como garantia processual intimamente ligada à própria liberdade do réu, a absolvição sumária não poderia ficar restrita ao âmbito da Justiça Criminal comum.    Afinal, como aduz Paula Bajer da Costa (2001, p. 14), “na medida em que todos são iguais perante a lei, todos os que tiverem praticado conduta típica, ilícita e culpável, deverão participar de processo penal”. Porém, “há justiça processual, também, quando os regramentos processuais são os mesmos para todos os acusados” (Id., 2001, p. 14). É certo que, em alguns momentos, o processo penal militar, devido às suas peculiaridades, propocionará um tratamento diferenciado para o acusado que nele figure. Entretanto, essas diferenças não poderão atingir negativamente os aspectos relacionados à efetivação da própria dignidade da pessoa humana. Não se pode esquecer que “no interior do processo aflora e pulsa a vida, há seres humanos que entram, saem e retornam ao banquete processual, em conexões internas e extraprocessuais” (GIACOMOLLI, 2008, P. 59). Em razão disso, a possibilidade de se absolver sumariamente o acusado, logo no princípio da ação penal, mostra-se — também no âmbito da Justiça Militar — como garantia inafastável do indivíduo. Ao contrário, havendo elementos probatórios suficientes, que permitam sustar o processo criminal antecipadamente, e não fazê-lo, postergando-o desnecessariamente, constitui uma nítida violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, e conseqüentemente, ao próprio Estado Democrático de Direito. .
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-76/a-reforma-do-cpp-e-o-codigo-de-processo-penal-militar-aplicacao-da-absolvicao-sumaria-na-justica-militar/
A transação penal no ordenamento jurídico brasileiro: um enfoque da Constituição Federal/88 e da Lei dos Juizados Nº 9.099/95
O artigo que segue tem como tema o instituto introduzido na sistemática processualística penal, que envolve a negociação da pena. A escolha do tema é decorrente da tentativa de compreender essa forma de despenalizar na atualidade, sem discriminalizar. Penso que se a pena é mesmo um bem necessário, o Estado Democrático de Direito deve buscar aquela que seja suficientemente forte para proteger os bens jurídicos essenciais, sem atingir a dignidade humana, principalmente dos autores de crimes de menor potencial ofensivo. Ao ler os dispositivos legais que versam sobre tal assunto, percebe-se que há possibilidade – por meio da aplicação da alternativa para os casos cabíveis – de evitar estigmas desnecessários, vez que reconhecido é o direito de quem será apto a ser beneficiado com a formalização da proposta de transação. Ante ao exposto, é de extrema relevância à análise minuciosa deste tema, pois além de ter aplicabilidade recente, é polêmico, e capaz de proporcionar diferentes posicionamentos. Destarte, faz-se imprescindível a cognição de tal assunto, posto que é necessário maturidade e cabedal teórico para acreditar, finalmente, ou desmerecer um dos mais revolucionários institutos jurídicos da realidade. Ademais, é válida a percepção de que o diploma que criou a lei 9.099/95, conquanto tenha inegáveis virtudes e louváveis objetivos, principalmente no que concerne à transação penal, trouxe inúmeras dúvidas de caráter teórico e prático do referido instituto jurídico, pelo qual faz-se salutar a análise crítica dos dispositivos legais que versam sobre o tema.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO A transação penal, envolvendo forma de negociação da pena, é um instituto recente que se vem estruturando no mundo todo, atendendo aos ditames da moderna política de alternativas judiciais. A transação penal vem sendo apontada como uma das mais importantes formas de despenalizar, na atualidade, sem descriminalizar, aduzindo-se, entre outras razões, as de procurar reparar os danos e prejuízos sofridos pela vítima, ser mais econômica, evitar efeitos criminógenos da prisão, sustentando-se, inclusive, que a utilização da transação penal integra um verdadeiro e moderno modelo de justiça participativa e resolutiva.  Trata-se do emprego de uma pena não privativa de liberdade aplicada pelo juiz em sentença homologatória, que acolhe proposta preliminar do Ministério Público aceita pelo autor do fato, que concorda em submeter-se a uma pena alternativa, podendo ser restritiva de direito ou multa, nos casos em que não ultrapassem a barreira punitiva das infrações de menor potencial ofensivo, como forma de evitar o processo e seus efeitos deletérios. Vale dizer que o legislador pátrio instituiu a transação penal, tida como verdadeiro mitigador do princípio da obrigatoriedade da ação penal, visando permitir a realização da política criminal mais eficaz, objetivando evitar o assoberbamento desnecessário do Poder Judiciário com processos de menor complexidade, bem como a submissão do autor do fato às cerimônias degradantes promovidas no andamento processual, afastar a sensação de impunidade com a aplicação imediata de medidas não privativas de liberdade e barrar prisões cautelares descabíveis diante da situação atual do sistema carcerário brasileiro. A implantação desse instituto na sistemática penal brasileira gerou uma verdadeira resolução corpénica na estrutura da Justiça Criminal tão arraigada a dogmas que prevaleceram durante longo período da história jurídica, vez que implicou na extinção da punibilidade do fato típico e antijurídico. IMPORTÂNCIA DO TEMA A importância do tema decorre, por primeiro, do fato de ser a transação penal instituto previsto no art. 98, I da Constituição Federal e uma das finalidades da própria lei 9.099/95, devendo ser buscada sempre que possível, conforme se desprende do art. 2º do aludido sistema. De par com a relevância da transação penal, é certo, outrossim, que a possibilidade de descumprimento da proposta sequer foi ventilada no texto da Lei dos Juizados Especiais, adquirindo, pois, maior relevo determinados impasses. Considerando que o descumprimento do benefício legal concedido beira as raias da impunidade, é mister que se analise e se encontre uma solução de lege ferenda que não afronte garantias já consolidadas, mas que, ao mesmo tempo, não traga desprestígio à Justiça. CERNE DO PROBLEMA O diploma que criou os Juizados Especiais Criminais, Lei 9.099/95, conquanto tenha inegáveis virtudes e louváveis objetivos, trouxe, assim como ocorre com toda inovação legislativa, inúmeras dúvidas de caráter teórico e prático. A boa intenção do legislador, por certo, não foi capaz de evitar que diversas controvérsias surgissem no momento da aplicação da referida lei, uma vez que muitos dos seus dispositivos são carecedores de maior detalhamento, exigindo que a doutrina e a jurisprudência apresentem soluções, nem sempre satisfatórias, para diversas hipóteses.  Dentre todas as discussões, avulta, em modesto entendimento, a do descumprimento da transação penal. Daí, surgirem dúvidas acerca das conseqüências existentes no caso de fraude da lei e de como evitar que o autor do fato burle a lei, aceitando a proposta ministerial, mas não levando ao fim o acordo firmado. HIPÓTESE DE CONVERSÃO DA SANÇÃO IMPOSTA NA TRANSAÇÃO EM PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE O sistema dos Juizados Especiais Criminais é embasado em dois objetivos a orientarem o respectivo processo: reparação dos danos sofridos pela vítima e aplicação da pena não privativa de liberdade, consoante art. 62 da Lei 9.099/95. No que concerne ao segundo daqueles objetivos nos Juizados Especiais que norteiam a atividade processual, convém assentar que, apesar de se tratar de uma meta a ser alcançada, não se pode eliminar a possibilidade de que se imponha ao autor do fato processada por crime de menor potencial ofensivo uma sanção privativa de liberdade.  Partindo desse entendimento é que, inicialmente, considerou-se que, havendo o descumprimento dos termos da transação penal pelo autor do fato, dever-se-ia converter a sanção insculpida no acordo em pena privativa de liberdade. E assim, a maioria dos doutrinadores, que já se pronunciaram a esse respeito, sustentam que, em caso de descumprimento da transação penal pelo autor do fato, a solução será proceder com a conversão imediata da sanção pecuniária ou da reprimenda restritiva de direito em pena privativa de liberdade. É bem verdade que o baldrame dessa conversão automática encontra-se nos art. 44, §4º do Código Penal, art. 85 da própria Lei dos Juizados, bem como no art. 181, da Lei de Execução Penal.  Senão vejamos: – Código Penal: “Art. 44, caput: As penas restritivas de direito são autônomas e substituem s privativas de liberdade (…). §4º: A pena restritiva de direitos converte-se em pena privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificada da restrição imposta. (…)” -Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados) “Art. 85: Não efetuado o pagamento de multa, será feita a conversão em pena privativa de liberdade, ou restritiva de direitos, nos termos previstos em lei” -Lei 7.810/84 (Lei de Execução Penal) “Art. 181, caput: A pena restritiva de direitos será convertida em privativa de liberdade nas hipóteses e nas formas do art. 45 e seus incisos do Código Penal. (…)” Nada, entretanto, impede analisar a razão desse entendimento- sancionar o descumprimento da transação penal- ocorre, todavia, que a referida conversão, em bem verdade, não encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio. FALTA DE AMPARO LEGAL “Ab initio”, cumpre dizer que a conversão imediata da medida restritiva de direitos em pena privativa de liberdade viola flagrantemente direitos fundamentais como o contraditório e a ampla defesa. Ora, há de se entender que se o autor do fato descumpre a medida não pode ser preso, de imediato, vez que o reconhecimento de culpa e a condenação não foram objetos da transação penal. Logo, privar o autor do fato da liberdade sem o devido processo legal viola os princípios mais contemplados na Lei Fundamental. Assim sendo, só se poderia prosseguir com a aplicação de pena privativa de liberdade se o autor do fato fosse condenado em processo judicial do qual resulte o acolhimento da pretensão punitiva, gerando uma sentença condenatória, o que não é o caso do instituto jurídico sub examine. Certo é que não há que se aplicar o regime do Código Penal ao Juizado Especial, porquanto naquele as reprimendas restritivas de direito e multa são substitutivas, havendo, inicialmente, a condenação do Réu à pena privativa de liberdade que poderá ser substituída para uma das sanções supracitadas. Diferente, todavia, é o tratamento dispensado ao Juizado com aplicação de penas alternativas que são sempre autônomas. Dessa forma, defender a conversão da pena restritiva de direito, por exemplo, em pena privativa de liberdade, à luz do sistema implantado pela lei especial, representa, indubitavelmente, manifesto abuso, vez que se contraria as tendências do direito penal brasileiro. Além disso, deve-se destacar que há o risco de praticar-se uma injustiça ao converter a pena alternativa pecuniária, uma vez descumprida, em prisão, ao passo que aquele que não possui condições financeiras para transacionar multa, poderá ser preso caso não cumpra o ajuste. Assim, restará duplamente punido, ora pela realidade cambiante que o impossibilita de quitar com a responsabilidade assumida no acordo, ora pelos órgãos destinados à efetivação da “justiça”.  Ademais, cumpre dizer, que a referida conversão vai de encontro com a própria conseqüência do aceite dado pelo autor do fato à proposta da transação penal, pois ao aceitar a proposta o autor do fato não está admitindo autoria nem materialidade, mas tão-somente aceitando condições propostas pelo representante do Ministério Público, dentre as quais não está a privação da liberdade. Destarte, ao impor, em razão do descumprimento, a privação de liberdade, estar-se-ia aplicando uma pena sem processo, o que fere também os princípios constitucionais do devido processo legal e da presunção da inocência. Cumpre explicitar, ainda, que é firme o entendimento da jurisprudência no sentido da impossibilidade da conversão imediata do acordo firmado por meio da transação penal em pena privativa de liberdade, inclusive junto ao STF. Senão vejamos: “TRANSAÇÃO – JUIZADOS ESPECIAIS – PENA RESTRITIVA DE DIREITOS – CONVERSÃO – PENA PRIVATIVA DO EXERCÍCIO DA LIBERDADE- DESCABIMENTO. A transformação automática da pena restritiva de direitos, decorrente transação, em privativa do exercício da liberdade discrepa da garantia constitucional do devido processo legal. Impõe-se, uma vez descumprido o termo de transação, a declaração de insubsistência deste último, retornando-se ao estado anterior, dando-se oportunidade ao Ministério Público de vir a requerer a instauração de inquérito ou propor a ação penal, ofertando denúncia” (HC 79572/GO, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 22.02.2002.p.34).  “CONVERSÃO EM PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. DESCABIMENTO. A conversão da pena restritiva de direito (artigo 43 do Código Penal) em privativa de liberdade, sem o devido processo legal e sem defesa, caracteriza situação não permitida em nosso ordenamento constitucional, que assegura a qualquer cidadão a defesa em juízo, ou de não ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem a garantia da tramitação de um processo, segundo a forma estabelecida em lei. Recurso não conhecido”. (RE 268319/PR, Rel. Min. Ilmar Galvão. DJ 27.10.2000). “Habeas Corpus – Constrangimento ilegal – Ato de Juiz de Direito no âmbito de Juizado Especial Criminal – Incompetência do Supremo Tribunal Federal – Não conhecimento. TRANSAÇÃO PENAL DESCUMPRIDA – CONVERSÃO DE PENA RESTRITIVA DE DIREITOS EM PRIVATIVA DE LIBERDADE – OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO – Precedentes: RE no 268.320 e HC no 79.572. A jurisprudência do STF, favorável ao paciente, a celeridade deste remédio heróico e a ausência de precedente desta Corte quanto à questão da competência, recomendam a concessão da ordem. Habeas Corpus concedido de ofício.” (HC 80802/MS, Rel. Min. Ellen Grace, DJ 18.05.2001) Mister justificar a não aplicabilidade da Lei nº. 7.810/84, qual seja, de Execuções Penais- LEP-, uma vez que resta clarificado que a LEP somente se aplica às hipóteses de sentença condenatória transitada em julgado, condicionante que inexiste no instituto da transação penal, que produz sentença homologatória de acordo. Por fim, a Lei dos Juizados não prevê, em nenhum dos seus dispositivos, a possibilidade de substituição da penas alternativas para privativa de liberdade. Logo, tal medida representaria o rompimento do sistema tradicional do nulla poena sine judicio, como também possibilitaria a aplicação de pena sem a prévia discussão da questão de culpabilidade e responsabilidade civil. Não bastasse isso, cumpre dizer que a referida conversão é antipática à Lei 9.099/95, haja vista ter esta o condão de despenalizar condutas, prestigiando a aplicação de pena diversa à prisão. POSSÍVEIS ALTERNATIVAS A falibilidade, como se sabe, é intrínseca à condição humana. Com o legislador da Lei 9.099/95 não poderia ser diferente e não haveria possibilidade de se prever todos os desdobramentos das medidas despenalizadoras criadas. Diante de tudo quanto exposto, pode parecer que nenhuma conseqüência, então, advirá do descumprimento do acordo celebrado entre o autor do fato e o Ministério Público, já que não se lhe pode impor a conversão da pena de multa ou restritiva de direito em pena privativa de liberdade. Não se está ensejando induzir a disseminação de uma política de despenalização, mas, tão somente, utilizar, plenamente, as potencialidades dos novos institutos introduzidos pela Lei dos Juizados Especiais, sob pena de a Lei e a Justiça mais uma vez caírem em descrédito quanto à sua real aplicação. Certo é que existem alternativas possíveis que devem ser buscadas para não gerar impunidade ao autor do fato ilícito, a fim de que não se frustre a eficácia do sistema implantado pelos Juizados Especiais Criminais. Como já explicitado anteriormente um dos objetivos do Ministério Público, bem como, do autor do fato ao celebrarem o acordo penal é, precisamente, evitar a instauração da relação processual. Assim sendo, havendo o não cumprimento do acordo, uma das conseqüências será a insubsistência daquele ato, ensejando ao Ministério Público adotar, justamente, a providência que buscou evitar ao fazer, tão somente, o oferecimento de proposta alternativa de pena ao autor do fato: o oferecimento de denúncia e o efetivo exercício do “ius puniendi”. Obviamente, com o descumprimento da prestação pelo autor do fato, desfaz-se o acordo com conseqüente possibilidade de oferecimento de denúncia, requisição de diligências investigatórias ou a instauração de um inquérito policial, mediante a complexidade do caso. Não há, mediante essa alternativa apontada, que se falar em agravamento ou prejuízo ao autor do fato, haja vista que tal sanção de natureza processual apenas retorna à situação jurídica anterior à celebração do acordo. Ademais, na prática jurídica, ainda, outra possibilidade é concebida. Uma saída que não esbarra na imposição de uma pena sem processo e nem dá ensejo à absoluta impunidade de descumprimento da transação penal. Trata-se da homologação condicionada ao cumprimento do ajustado, em outras palavras, guarda-se o adimplemento do acordo pelo autor do fato para só então firma-se definitivamente a transação. Assim sendo, na hipótese de não-cumprimento dos termos da transação, os autos voltam ao Ministério Público para que ofereça a denúncia. Isto, porque o Enunciado 14 do Fórum Permanente dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Brasil estabelece que “não cabe oferecimento de denúncia após sentença homologatória, podendo constar da proposta da transação que sua homologação fica condicionada ao cumprimento do avençado”. Uma vez estabelecido isso, resta impedido o descumprimento ardiloso do ajustado entre as partes. A homologação da transação, postergada até o adimplemento do acordo, respeita os princípios constitucionais da presunção da inocência e do devido processo legal, fazendo justiça sem o uso de expedientes ao arrepio da lei. CONCLUSÃO A transação penal não tem por objetivo imediato deixar de punir o suposto autor de uma infração penal, mas sim a propositura de ação penal, evitando os efeitos deletérios resultantes. Em face da importância da transação penal, mister definir-se qual a conseqüência do descumprimento do acordo pelo autor do fato, já que a Lei 9.099/95, não trata, especificamente, do assunto. Incabível é a conversão automática da pena restritiva de direito ou de natureza pecuniária em pena privativa de liberdade, em face da nova sistemática penal. Logo, o condicionamento da homologação do acordo ao cumprimento dos termos transação penal, bem como o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público em caso de rescisão do acordo firmado, revelam-se como soluções afinadas com os postulados do Direito, vez que concilia a eficácia do instituto ao prestígio da Justiça.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-76/a-transacao-penal-no-ordenamento-juridico-brasileiro-um-enfoque-da-constituicao-federal-88-e-da-lei-dos-juizados-n-9-099-95/
O interrogatório por teleconferência no sistema processual brasileiro
O instrumento da teleconferência permite o atendimento da finalidade constitucional de ampla defesa e acesso do investigado, réu ou condenado ao seu advogado e ao Poder Judiciário e, com o aprimoramento de recursos tecnológicos, representa um claro avanço para o ordenamento jurídico pátrio que contribui com o aumento de segurança para os profissionais da área jurídica e policiais, redução do risco de fugas e preservação de direitos e garantias individuais.[1]
Direito Processual Penal
1. O INTERROGATÓRIO E SUA NATUREZA JURÍDICA A codificação processual brasileira, ao debruçar-se sobre a temática do interrogatório do acusado no capítulo concernente à prova, fez clara opção por considerá-lo como verdadeiro meio de prova, relegando a segundo plano a sua natureza de meio de autodefesa do réu (Francisco Campos, Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, item VII). Entretanto, é cediço que a corrente majoritária pátria dos doutrinadores defende que o interrogatório tem natureza jurídica híbrida, id est, é um meio de prova e também um meio de defesa. Alguns ainda revelam que se trata de meio de defesa e fonte de prova. Porém, parece que esses conceitos de meio e fonte, no direito brasileiro, estão entrelaçados e não merecem ser separados. Nesse diapasão, trata-se pois, de mero problema de conceituação. Aqueles que entendem mista a natureza jurídica afirmam que no momento em que o acusado oferece sua versão dos fatos, exercendo seu direito de defesa, ele é observado pelo juiz que pode colher outros elementos necessários para julgar sua responsabilidade e dosar a pena eventualmente aplicada. Como desdobramento de o interrogatório inserir-se também como meio de autodefesa, decorre o princípio de que nenhuma autoridade pode obrigar o indiciado ou acusado a fornecer prova para caracterizar a sua própria culpa, ou seja, fazer prova contra si mesmo, não podendo ele, por exemplo, ser obrigado a fornecer à autoridade policial padrões gráficos do seu próprio punho para exames grafotécnicos ou respirar em bafômetro para aferir embriaguez ao volante. Se não pode ser obrigado a confessar, não pode ser compelido a incriminar-se (no mesmo sentido: STF, HC 77.135/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 8-9-1998, Informativo do STF, n. 122, p. 1).  O insigne e brilhante mestre Guilherme de Souza Nucci entende ser mista a natureza jurídica do interrogatório, assim assevera: “… o direito ao silêncio é uma garantia individual do cidadão, que realmente acentuou o caráter de meio de defesa do interrogatório, mas sem retirar-lhe a força de ser um meio de prova, pois do mesmo modo que o réu pode calar-se, sem nenhuma conseqüência, pode abrir mão dessa garantia e, com isso, produzir prova (em seu favor ou contra). No mesmo sentido atua o fato de não haver intervenção das partes no interrogatório, dando realce ao seu caráter defensivo, embora sem excluir, repita-se, o aspecto de meio de prova”. O célebre processualista Hélio Tornaghi, apesar de considerar o interrogatório um meio de prova, em seu Curso de Processo Penal, diz que o interrogatório é instrumento de prova quando considerado pela lei fato probante e o é de defesa quando se entende que ele por si só nada evidencia, apenas faz referência ao tema probando. O festejado mestre e doutrinador Vicente Grecco Filho corrobora explanando o seguinte entendimento: “o entendimento mais aceito sobre a natureza do interrogatório é o de que é ele ato de defesa, porque pode nele esboçar-se a tese de defesa e é a oportunidade para o acusado apresentar sua versão dos fatos, mas é, também, ato de instrução, porque pode servir como prova”. Da Análise do direito comparado vislumbra-se que na legislação processual penal Portuguesa e Alemã o interrogatório é classificado como meio de prova e de defesa. O emérito Prof. Heráclito Mossim conclui sobre essa questão brilhantemente: “… independentemente da colocação topográfica o instituto do interrogatório no Código de Processo Penal, a verdade imutável verte no sentido de que o juiz pode com base nele decidir a lide, principalmente contra o réu quando ocorre a confissão. Ora, a confissão não é elemento estranho ao interrogatório, mas nele integrada, elevando-se quase sempre a elemento de prova capaz de permitir ao magistrado o acolhimento do pedido condenatório; da mesma forma que o está sua negativa quanto à prática delitiva. Portanto, sem qualquer dúvida, por mais remoto que seja o interrogatório, além de meio de defesa, constitui-se em considerável meio probatório”. 2. INTERROGATÓRIO: CONSIDERAÇÕES E CONCEITUAÇÃO Segundo o ilustre professor Fernando Capez, ao conceituar interrogatório assim o define: ”É o ato judicial no qual o juiz ouve o acusado sobre a imputação contra ele formulada. É ato privativo do juiz e personalíssimo do acusado, possibilitando a este último o exercício da sua defesa, da sua autodefesa”. É cediço que o Código de Processo Penal considera o interrogatório como meio de prova e a doutrina atribui-lhe também a natureza de meio de defesa. Destarte, interrogatório possui um caráter híbrido, haja à vista que é considerado tanto meio de prova, bem como ato de defesa (autodefesa). A processualística pátria dispõe que o acusado deve ser interrogado no curso do processo, a ausência do interrogatório gera nulidade (art. 564, III, e, do CPP). É precípuo destacar que existem momentos fixados pelo Código de Processo Penal, para realização do interrogatório, quais sejam: no inquérito policial (art. 6º, V);  no auto de prisão em flagrante (art. 304); logo após o recebimento da denúncia ou queixa e antes da defesa prévia (artes. 394 e 395); no plenário do júri (art. 465) e no Tribunal, em processos originais ou no curso da apelação (art.616). No que toca ao artigo 196 do Código de Processo Penal, este dispõe que: “A todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes.” Com fulcro nos princípios da verdade real e do impulso oficial, autoriza a lei que o juiz, mesmo de ofício, determine novo interrogatório do acusado que se possa mostrar relevante, diante de elementos trazidos aos autos durante a instrução, para formação da sua convicção a respeito da verdade dos fatos. As partes também poderão, desde que fundamentadas, requerer novo interrogatório. Ressalte-se, ainda que o interrogatório traz em seu bojo as seguintes características: é ato público, é ato personalíssimo, possui judicialidade e, finalmente, oralidade. O acusado em seu interrogatório deve ter a segurança e garantia de que não se praticará extorsão das confissões. Mesmo se o interrogatório for realizado no sistema prisional em que estiver o acusado preso, deve-se assegurar a publicidade do ato, salvo a exceção prevista no artigo 792, § 1º do CPP, isto é, quando da publicidade do ato puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação de ordem, o juiz, ou órgão colegiado poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes. É ato personalíssimo porque só o acusado pode ser interrogado. Possui judicialidade porque cabe ao juiz e só ele interrogar o acusado. Na oralidade, a palavra do acusado, circundada de sua atitude, pode dar ao juiz um elemento insubstituível por uma declaração escrita, despida dos elementos de valor psicológico que acompanham a declaração falada. Com o surgimento da lei nº. 10.792/03 que modificou a lei nº. 7.210/84 (Lei de Execução Penal) e o Decreto-Lei nº. 3.689/41 (Código de Processo Penal), o interrogatório passou por importantes alterações. O artigo 185 do Código de Processo Penal passou a ter a seguinte redação: Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado.  § 1º O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em que se encontrar, em sala própria, desde que garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.  §2º Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor. No que pertine a sistemática atualmente adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, após a introdução em nosso processo penal, da Lei 10.792/03, que modificou consideravelmente o artigo 185, do Código de Processo Penal, em que revela tratando-se de acusado preso, o seu interrogatório será realizado no estabelecimento prisional em que esse se encontrar, uma vez garantidas a segurança do juiz e auxiliares, bem como, a presença do defensor e a publicidade do ato. A contrario senso, quando não possível atender a tais preceitos, o ato volta a ser efetivado nos moldes das demais audiências, ou seja, no fórum, requisitando-se a apresentação do réu. Destarte, para muitos doutrinadores, que o escopo da lei ao determinar a realização do interrogatório no próprio presídio foi a de evitar o transporte de presos, muitas vezes custoso e com grande risco para a sociedade, ante as ações do crime organizado no sentido de libertar seus comparsas o que se coaduna com a vontade daqueles que defendem a possibilidade do interrogatório por teleconferência, vez que um de seus objetivos é exatamente o mesmo. Podem-se destacar também os que defendem posicionamento contrário aos supra, o que gera uma série de discursões sobre este tema tão controvertido, gerando uma celeuma de discursões no ordenamento jurídico pátrio. 3. O INTERROGATÓRIO VIRTUAL Múltiplas, são as expressões utilizadas pelos estudiosos do direito e juristas do nosso país ao se reportarem ao interrogatório realizado por meios tecnológicos, tais como: Interrogatório por videoconferência, tele – interrogatório, interrogatório on line, teleaudiência, interrogatório virtual, videoconferência. Desta feita, o interrogatório do réu por meio da teleconferência é a forma de produção eletrônica de ato processual mais combatida e criticada por grande parte da doutrina. Muitos doutrinadores apontam o conflito com a regra do art. 185, § 1º, do CPP, segundo a qual o interrogatório do acusado preso deve ser feito no estabelecimento prisional em que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Cabe aqui a explicação de como é realizado o tele interrogatório. Para o pleno funcionamento do sistema e a efetiva realização da audiência, são instalados televisores, câmeras e aparelhos telefônicos nas salas de audiência, nos fóruns e nas prisões. Ressalte-se que as transmissões e filmagens das audiências não são realizadas no interior do estabelecimento prisional, mas sim em salas reservadas próximas, para que seja possível a assistência por qualquer pessoa interessada. Com esses instrumentos tecnológicos, é possível captar o áudio e o vídeo da figura do réu, que estará obrigatoriamente acompanhado por advogado e por serventuários da Justiça, os quais, em tese, garantirão a integridade do ato. Na outra ponta do sistema estará o juiz, o promotor e mais um advogado. Como se vê, o réu preso conta com a assistência, no ato do interrogatório, de pelo menos dois advogados (um na sala do juiz e outro ao seu lado). Os modernos aparelhos de áudio e vídeo permitem a captação dos mínimos detalhes, das modificações na voz e das expressões corporais, e ainda podem ser repetidas inúmeras vezes, pois o ato é gravado em compact disc. Ademais, caso o advogado constituído esteja na sala de audiência, poderá utilizar o aparelho telefônico e assim ter uma conversa reservada e sigilosa com seu cliente. Vale registrar que, o escopo da referida lei ao determinar que a realização do interrogatório seja feita no próprio presídio foi o de evitar o transporte de presos, muitíssimo oneroso e com grande risco para a sociedade, perante as ações do crime organizado no que tange a libertação de seus comparsas. Nesse diapasão, o escopo do legiferante se harmoniza com a vontade daqueles que defendem a possibilidade do interrogatório virtual. 4. A EVOLUÇÃO DO INTERROGATÓRIO VIRTUAL NO MUNDO. Hodiernamente, várias nações inseriram em seus ordenamentos jurídicos dispositivos que contemplam a utilização de sistemas de teleconferência para a produção de provas judiciais, em ações penais. De regra, as disposições normativas referem-se à coleta de depoimentos de réus já condenados, que são interrogados à distância, com o uso de aparelhos de vídeo instalados nas dependências dos estabelecimentos prisionais, ou a utilização da teleconferência para a tomada de depoimentos de vítimas de crimes sexuais ou de vítimas e acusados sujeitos a medidas de proteção. A legislação processual dos Estados Unidos permite a utilização da teleconferência em ações penais, não só a normatização federal, mas também a de 50 estados-federados. Após o ano1983, passou-se a adotar o sistema de vídeo para inquirição e coleta de depoimentos de crianças e adolescentes vitimadas por abuso sexual, de modo a impedir o traumático confrontamento do ofendido com o ofensor, numa sala de audiência, por ocasião da acareação. No ano de 2000 em Bruxelas foi assinado o Tratado de Assistência Judicial em Matéria Penal, que autoriza a realização de audiências criminais para a ouvida de réus (mediante seu consentimento), testemunhas e peritos por sistemas de comunicação audiovisual à distância. A convenção aplica-se no espaço jurídico europeu, que hoje congrega vinte e cinco Estados-membros. Em 2003 o Reino Unido adotou a Lei Geral sobre Cooperação Internacional em Matéria Penal, que ampliou as hipóteses de coleta de provas por via remota, já previstas no art. 32 da Lei de Justiça Criminal e no art. 273 da Lei Processual Penal da Escócia. A nova regulamentação, mais abrangente, está em alguns dispositivos da Lei Geral de Cooperação Internacional em Matéria Penal e admite que testemunhas na Inglaterra, na Escócia, na Irlanda do Norte ou no País de Gales sejam ouvidas por áudio e teleconferência, por autoridades de outros países, e vice-versa. Nos países ibéricos a Processualística Penal admite que o juiz criminal, considerando razões de ordem pública, segurança ou utilidade, pode utilizar-se do sistema de teleconferência para a inquirição de acusados, testemunhas e peritos. Na nação espanhola, a Lei de Proteção a Testemunhas, a Lei Orgânica do Poder Judiciário bem como o Código de Processo Penal do país, admitem a tomada de depoimentos por teleconferência na jurisdição criminal, precipuamente para garantir que vítimas protegidas não sejam vistas e/ou ameaçadas pelos acusados. As várias inovações inseridas no ordenamento jurídico da Espanha para permitir a teleaudiência criminal decorreram da Lei Orgânica n. 13 de 2003, esta legislação reformou a Lei de Ajuizamento Criminal em matéria de prisão cautelar e introduziu a regulamentação do uso da teleconferência, reformando para este fim a Lei Orgânica do Poder Judiciário, ao incorporar um novo parágrafo, a um dispositivo desse mesmo diploma legal. O Código de Processo Penal Francês em seus dispositivos, introduzido pela Lei n. 1062 de 2001, dispõe sobre a utilização de meios de telecomunicação no curso do procedimento criminal, para a coleta de depoimentos de testemunhas, o interrogatório de acusados, a acareação de pessoas e a concretização de medidas de cooperação internacional. Na seara das Organizações das Nações Unidas (ONU), inquestionáveis são os benefícios que a adoção do sistema de teleconferência pode trazer para a produção de provas processuais penais em todo o mundo, especialmente para o combate à criminalidade internacional. A Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado internacional, que entrou em vigor em setembro de 2003, em seu art. 24, §2º, ‘b’, já previa a utilização de teleconferência. Em dezembro de 2003 na Convenção de Mérida, ou seja, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção previu a utilização da teleconferência para tomada de depoimentos de réus colaboradores, testemunhas e vítimas. Desta feita, esta convenção em vários dispositivos há previsão expressa do uso da teleconferência para coleta de depoimentos de réus colaboradores, vítimas, testemunhas e peritos, assim como para a produção de prova processual penal, em procedimentos de cooperação jurídica internacional. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional com sede em Haia, na Holanda, que julga crimes contra a humanidade, desde sua instalação vem admitindo a oitiva de testemunhas e peritos por teleconferência. 5. O INTERROGATÓRIO VIRTUAL NO BRASIL. Em que pese o ordenamento jurídico brasileiro ainda não dispor de expressa previsão do interrogatório realizado por meios eletrônicos no Código de Processo Penal, diploma este da década de 1940, o nosso ordenamento hodierno já prevê hipóteses de utilização desse sistema, tanto no nível infralegal (como é o caso das resoluções e portarias de tribunais), quanto no nível legal. Verbi gratia desta última espécie é o Decreto n. 5.015, de 12 de março de 2004, que introduziu no Brasil a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Internacional, que em seu art. 18, §18, e no art. 24, §2º, alínea ‘b’, desse tratado institui o uso de teleconferência, entre outras medidas destinadas à proteção de testemunhas e a facilitar a cooperação internacional para combate ao crime organizado. Ressalte-se que, uma vez que se trate de norma de caráter transnacional, após a aprovação do congresso e a expedição do decreto presidencial, ocorre o fenômeno da integração normativa no plano doméstico, passando a norma convencional a valer como lei federal ordinária no Brasil. Nesse diapasão, no âmbito das relações transnacionais, a República Federativa do Brasil se obrigou a instituir legislação nacional que permita às testemunhas e peritos depor “com recurso a meios técnicos de comunicação, como ligações de vídeo ou outros meios adequados”. Portanto, o Brasil em atendimento a obrigação contraída no plano internacional, deverá por meio da União legislar sobre a matéria, introduzindo o sistema de teleaudiência criminal no processo penal brasileiro, de modo a propiciar a inteira execução da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Internacional. Não obstante a forte oposição principalmente de associações de juízes, entre outras, são inúmeras as experiências, no Brasil e no exterior, de utilização válida e regular de sistemas de teleconferência no processo criminal. Uma das Côrtes de Justiça mais progressistas do país, qual seja, o T.R.F. da 4ª Região, regulamentou o interrogatório de réus por teleconferência. O procedimento foi previsto no artigo 276 do Provimento n. 5, em 2003, expedido pela Corregedoria-Geral. O pretório supracitado também tem realizado sessões por meio de teleconferência. As duas turmas criminais do tribunal, a 7ª e a 8ª, já se reuniram desta forma, em sessão conjunta.  Em 16 de outubro de 2003 ocorreu a primeira sessão virtual do TRF-4, sob a presidência da desembargadora federal Marga Inge Barth Tessler, com a presença da procuradora regional da República Carla Veríssimo de Carli, representando o Ministério Público Federal. Da região Sul do Brasil tem-se notícia de outra experiência bem sucedida, qual seja a utilização de teleconferência nas sustentações orais perante as Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais e na Turma de Uniformização de Jurisprudência (TUJ). A (TUJ Nacional), turma nacional de uniformização de jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, que funciona junto ao Conselho da Justiça Federal, em Brasília, também pode realizar sessões virtuais, assegurando-se o princípio da ampla publicidade. Cada um dos membros da Turma pode participar das reuniões sem necessidade de deslocamento, permitindo-se também a realização de sustentações orais a partir das sedes dos Tribunais Regionais Federais em cinco capitais do Brasil. A matéria está regulada nos arts. 3º e 25 da Resolução n. 330, de 5 de setembro de 2003, do Conselho da Justiça Federal, órgão com sede em Brasília. Todas essas medidas foram implementadas graças à previsão do arts. 8º, §2º, e 14, §3º, da Lei 10.259/01, que instituiu os Juizados Especiais Federais. Consoante, vislumbra-se que, mesmo não havendo ainda lei federal dispondo sobre o tema, são cada vez mais freqüentes e disseminados os casos de adoção do sistema da teleconferência para a produção de provas criminais, ainda antes da aprovação de uma lei processual específica. Em levantamento realizado em 2004, havia oito iniciativas legislativas tramitando no Poder Legislativo federal a respeito do tema. A principal delas é o projeto n. 1.233/99, do deputado Luiz Antônio Fleury, que possibilita o interrogatório e a audiência à distância, por meios telemáticos. A principal modificação proposta pelo projeto Fleury visa o art. 185 do CPP, cujo parágrafo único poderá passar a dispor que “Se o acusado estiver preso, o interrogatório e audiência poderão ser feitos a distancia, por meio telemático que forneça som e imagem ao vivo, bem como um canal reservado de comunicação entre o réu e seu defensor ou curador”. O art. 6º da Medida Provisória n. 28, de 4 de fevereiro de 2002, que dispunha sobre normas gerais de direito penitenciário e dava outras providências, teve exígüa existência. Essa normatização previa o uso de teleconferência no sistema prisional. Todavia, essa medida foi rejeitada pela Câmara dos Deputados em 17 de abril de 2002, em função do obstáculo formal previsto no art. 62, §1º, inciso I, ‘b’, da CF, que proíbe a edição de medidas provisórias sobre direito penal e processual penal. 6. A QUERELA DICUTIDA Em que pese estar sendo realizado o interrogatório virtual em alguns estados do nosso país, existe no mundo jurídico duas correntes: uma a favor do interrogatório realizado por meios eletrônicos e outra totalmente avessa à utilização desse sistema no processo brasileiro. Os adeptos ao interrogatório virtual apontam vantagens quanto a sua utilização, tais como: 1) diminuição dos gastos públicos, não necessitando o deslocamento de escoltas de policiais, carros, helicópteros e motos; 2) agilização no interrogatório, diminuindo a demanda da saída dos processos, e sanando o problema da falta de transporte para os presos serem conduzidos ao Fórum, fato que acontece com freqüência; 3) o problema da superlotação carcerária tende a ser minimizada na medida em que os processos serão agilizados; 4) diminuição de fugas de presos, devido ao não deslocamento do preso ao Fórum, conseqüentemente haverá uma segurança maior a população; 5) integridade de informação no interrogatório na medida em que a teleconferência é gravada em disquete ou CD-ROM e arquivada, sendo acompanhada por um assessor jurídico da penitenciária junto ao preso e um defensor juntamente com o juiz; etc. Corroborando com o posicionamento acima abordado o Doutor em direito penal, co-fundador e primeiro presidente do IBCCRIM, Luiz Flávio Gomes, em seu artigo “O Uso da videoconferência na Justiça”, afirma que: “Não vejo sinceramente nenhum mal na utilização de toda essa inovação tecnológica no âmbito da Justiça, ao contrário, isso constitui considerável avanço, que até pode combater a sua clássica morosidade[…]. […]Os interrogatórios em juízo são cada vez mais demorados. O alto custo do transporte dos presos. A insegurança que traz é patente. Incontáveis resgates acontecem justamente quando estão sendo transportados. Uma precatória para ouvi uma testemunha demora meses. A rogatória anos. Até quando a Justiça ficará excluída da modernidade comunicacional? […]A difusão da videoconferência na Justiça está fadada a evitar o envio de milhões de ofícios, de requisições, de precatórias, é dizer, economiza-se tempo, papel, serviço, dinheiro etc. Pode-se ouvir uma pessoa em qualquer ponto do país ou do planeta, sem necessidade do seu deslocamento. Eliminam-se riscos, seja para o preso( que pode ser atacado ou resgatado quando está sendo transportado), seja para a sociedade.” Desta feita, os que defendem a utilização do teleinterrogatório revelam que o mesmo não é um dos males do tempo. Ao contrário, vem acabar com burocracias e obstáculos ao andamento dos processos criminais. Vale ressaltar que a videoconferência se presta à ouvida de réus presos e de réus soltos, detidos na mesma ou em comarca diversa do distrito da culpa, ou residentes a longas distâncias do foro. É importante ainda mencionar que a corrente favorável revela que a mera mudança do procedimento de apresentação do réu ao juiz, especialmente nos casos em que estejam em julgamento presos perigosos, não elimina nenhuma garantia processual, nem ofende os ideais do Estado de Direito. Desta feita, basta que se adote um formato de teleconferência que permita aos sujeitos processuais o desempenho, à distância, de todos os atos e funções que seriam possíveis no caso de comparecimento físico. Assim também defendem que o interrogatório, não é nulificado simplesmente porque se optou por este ou por aquele modo de captação da mensagem. Desta feita, tanto pode o réu falar diante do juiz, e ter o seu depoimento transcrito a mão, em máquina de escrever ou em computador, quanto pode fazê-lo em audiência gravada in loco, ou em interrogatório transmitido remotamente por vídeo-link. O procedimento utilizado não contamina o ato. O que importa é que, em qualquer das hipóteses, se assegure ao acusado o direito de ser acompanhado por advogado e os direitos de falar e ser ouvido, de produzir e contrariar prova e o direito de permanecer em silêncio quando lhe convier. Também é importante mencionar que seus adeptos relatam que todas as formalidades dos artigos 185 a 196 do CPP são cumpridas. Todas as indagações dos artigos 187 a 190 podem ser feitas. Todos os direitos são respeitados, na substância e na essência. É sabido ainda que a presença virtual do acusado, em teleconferência, é uma presença real. O juiz o ouve e o vê. A inquirição é direta e a interação, recíproca. No que pertine ao aspecto temporal, o acusado e o seu julgador estão juntos, presentes na mesma unidade de tempo. A diferença entre ambos é somente quanto ao espaço. No entanto, os modernos métodos tecnológicos superam tal deslocamento, fazendo com que os efeitos e a finalidade das duas espécies de comparecimento judicial sejam plenamente equiparados. Os adeptos da corrente favorável mencionam que não há nulidade sem prejuízo. Esta é a regra do art. 563 do CPP: “Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa“. Desta feita, o art. 564, inciso III, alínea e, determina a nulidade do processo em caso de falta de interrogatório. Vale asseverar que: o que anula a ação penal é a falta do interrogatório, e não a sua realização por meios tecnológicos. Assim, não havendo qualquer justificativa, para proibir tal forma de interrogatório, em que o comparecimento continua a ocorrer, sendo o réu conduzido à presença virtual do juiz da causa, sem prejuízo do contraditório efetivo. É importante destacar que ainda no que pertine às nulidades, vale ressaltar que o art. 564, inciso IV, do CPP, dispõe que haverá nulidade “por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato”. O comparecimento físico do réu diante do juiz para ser interrogado não é uma formalidade substancial. Assim, a realização do teleinterrogatório não acarreta omissão de formalidade alguma, mas substituição de um procedimento por outro. A corrente contrária à realização de interrogatórios virtuais entende que: 1) o interrogatório virtual retira do preso ou acusado o contato físico, sendo fundamental tais características; 2) o interrogatório virtual não pode ser aplicado por falta de lei; 3) o interrogatório virtual fere princípios e garantias constitucionais, tais como o devido processo legal e a ampla defesa. O movimento de oposição ao interrogatório virtual tem como adeptos a  Associação Juízes para Democracia (AJD), o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), a Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (APESP), o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e outras entidades de âmbito estadual e nacional, inclusive órgãos públicos. O advogado criminalista, Luiz Flávio Borges D’Urso, em seu artigo “O interrogatório por teleconferência: uma desagradável Justiça virtual” expõe que o interrogatório virtual (teleconferência):  “revela-se perversa e desumana, afastando o acusado da única oportunidade que tem para falar ao seu julgador, trazendo frieza e impessoalidade a um interrogatório. […] O interrogatório é a grande oportunidade que tem o juiz para formar juízo a respeito do acusado, de sua personalidade, da sinceridade, de suas desculpas ou de sua confissão. […] Além disso, assevera que a tese não resiste há uma análise de constitucionalidade, porquanto nossa Carta Magna consagra a ampla defesa (art. 5º, LV, CF), bem como o Brasil subscreveu pactos internacionais, nos quais, entende-se que não há devido processo legal, se não houver apresentação do acusado ao juiz (Convenção Americana sobre Direitos Humanos).” 7. A JURISPRUDÊNCIA E O INTERROGATÓRIO VIRTUAL. As Côrtes Judiciais brasileiras têm emitido os seguintes entendimentos quanto à questão do interrogatório virtual:  “INTERROGATÓRIO JUDICIAL ON-LINE. Valor-Entendimento – O sistema de teleaudiência utilizado no interrogatório judicial é válido à medida que são garantidas visão, audição, comunicação reservada entre o réu e seu defensor e faculta, ainda, a gravação em compact disc, que será anexado aos autos para eventual consulta. Assim, respeita-se a garantia da ampla defesa, pois o acusado tem condições de dialogar com o julgador, podendo ser visto e ouvido, além de conversar com seu defensor em canal de áudio reservado.”(TACRM/SP – Apelação nº. 1.384.389/8 – São Paulo – 4ª Câmara – Relator: Ferraz de Arruda – 21.10.2003 – V.U., Voto nº. 11.088).  “Hábeas Corpus – Pretensão de se anular instrução realizada pelo sistema de ampla defesa por videoconferência – Alegação de violação dos princípios do  devido processo legal, contraditório – Nulidade inocorrente – violação não caracterizada porque mantido o contato visual e direto entre todas a partes e porque facultada a permanência de um defensor na sala de audiência e outro na sala especial onde o réu se encontra – Medida que, ademais acarreta celeridade na prestação jurisdicional e sensível redução de custos para o Estado-Ordem denegada”( Tribunal de Justiça de São Paulo, Hábeas Corpus nº. 428.580-3/8).  “Recurso de habeas corpus. Processo Penal. Interrogatório feito via sistema conferencia em real time. Inexistindo a demonstração de prejuízo, o ato reprochado não pode ser anulado, ex vi artigo 563 do CPP. Recurso desprovido” STJ, RHC 6272/SP, 5ª Turma, Rel. Ministro Félix Fischer, j. 3/4/97, impetrante Evaldo Aparecido dos Santos)  . Em 14 de setembro de 2004, ao analisar o recurso ordinário em Habeas Corpus 15.558/SP, impetrado em favor de Jair Facca Junior, a 5ª Turma do STJ decidiu, por unanimidade, que o uso do interrogatório on line em ação penal não acarreta cerceamento do direito de defesa, não havendo, portanto nulidade a sanar.  Na verdade o interrogatório on line não afeta as garantias dos presos. A presença virtual do preso, através da videoconferência, é real e interativa. As partes são vistas e ouvidas simultaneamente sem prejuízo nenhum de som ou imagem. O novo sistema de instrução evita os julgamentos à revelia e os fenômenos interligados aos atos processuais, tais como, a impossibilidade do deslocamento do acusado seja por doença ou condição financeira. O Supremo Pretório brasileiro (STF), em decisão de sua presidente, ministra Ellen Gracie, indeferiu liminar pretendida pela defesa de J.S.C., no Habeas Corpus (HC) 91758 para suspender seu julgamento por tráfico de entorpecentes, porque o interrogatório foi realizado por meio de videoconferência. O réu, acusado de tráfico de entorpecentes, teve seu interrogatório realizado pelo Tribunal de Justiça do estado de São Paulo (TJ-SP) sem a presença física do acusado, de conformidade com a Lei estadual nº. 11819/05, que permite a videoconferência para interrogar os acusados. A defesa sustentou a inconstitucionalidade formal e material da norma, porque o estado teria violado a repartição constitucional de competência legislativa, invadindo o rol reservado à União, bem como os princípios do devido processo legal, ampla defesa, contraditório, publicidade e igualdade?. Dessa forma requereu liminar ao STF contra o acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que negou o hábeas corpus lá impetrado. O STJ entendeu que a estipulação do sistema de videoconferência para interrogatório do réu não ofende as garantias constitucionais do réu, que conta com o auxílio de dois defensores, um na sala de audiência e outro no presídio. Ao indeferir a liminar, ponderou não se enxergar os requisitos necessários para a sua concessão, posto que os fundamentos do acórdão do STJ sobreponham-se àqueles lançados na petição inicial, além de existir precedente da Corte, em situação semelhante a este caso, no qual a liminar foi indeferida. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS O uso de métodos tecnológicos como o interrogatório telepresencial se constitui em um avanço no ordenamento jurídico brasileiro, visto que contribui para a desoneração do Estado e do contribuinte; o melhoramento da segurança pública e para o aumento da segurança dos profissionais da área jurídica; a redução do risco de fugas e, ainda, para a preservação de direitos e garantias fundamentais. A sociedade brasileira deve fundamentalmente ser informada de que, enquanto a criminalidade se especializa, se organiza, se articula, corrompe, mata e recorre a todo tipo de expediente ilegal, o Estado permanece estanque e obsoleto  na restrita observância do rigorismo legal e das formalidades. Portanto, diante de todos os argumentos trazidos à baila, pode-se concluir que a admissibilidade da prática do interrogatório por meio da teleconferência deve ser analisada segundo o caso concreto e garantidas as solenidades do ato, obedecendo-se o rito previsto na  codificação e na legislação extravagante, resguardando-se a ampla defesa do interrogando, com a presença de seu causídico. No porvir, mesmo quando existir um dispositivo legal que expressamente permita a utilização desse instrumento, far-se-á mister que os juízes e os tribunais se atenham às circunstâncias de cada caso, analisando se foram respeitados todos os direitos do interrogado, se houve oportunidade à ampla defesa, se este foi acompanhado de advogado, etc. A utilização da tecnologia, desta feita, deve ser visto apenas como um instrumento para um único desiderato,  qual seja, a efetiva pacificação social.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-76/o-interrogatorio-por-teleconferencia-no-sistema-processual-brasileiro/
O direito ao contraditório e ampla defesa na fase inquisitória do processo penal
O inquérito policial vem sendo tratado, comumente, como mera peça informativa, quando em verdade não é. A esmagadora maioria das ações penais promovidas pelo Ministério Público tem por base inquéritos policiais, presididos ou por Delegados de Polícia de carreira, ou por autoridade de Polícia Judiciária Militar, no caso específico de crimes militares, ou mesmo pelo próprio Ministério Público, no exercício dos poderes implícitos. Assim, a inclusão da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa, como direito de vistas dos autos e dos documentos por advogado do indiciado, após o indiciamento, não prejudica o resultado proveitoso das investigações, muito ao contrário, garante maior legitimidade às suas conclusões.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO. É de longa data a existência das instituições policiais. A própria sociedade e o Estado necessitam da existência de uma força policial para garantir o respeito à ordem e ao Estado Democrático de Direito. Trata-se na espécie, de uma força legitimada pelo próprio povo, com fim de sustentar a própria coerência da estrutura estatal e das relações sociais. Nesse sentido, Weber (citado por BOBBIO, 2000, p. 165), afirma “que a força física legítima é o fio condutor de ação do sistema político, aquilo que lhe confere a sua particular qualidade e importância e a sua coerência como sistema”. Dessa argumentação, extrai-se que apenas as autoridades políticas possuem o direito de utilizar a coerção e de exigir obediência com base nela, e que: não há grupo social organizado que tenha até agora podido consentir na desmonopolização do poder coativo, evento que significaria nada menos que o fim do Estado, e que, enquanto tal, constituiria um verdadeiro salto qualitativo para fora da história, no reino sem tempo de utopia (BOBBIO, 2000, p. 166). Assim, pode-se afirmar que o poder que o Estado detém para intervenção e controle social, de forma monopolizada, e que advém da soberania popular, é um poder legitimado pelo povo com fim de sustentar a própria coerência da estrutura estatal. E numa ordem democrática de direito, o órgão do Estado que exerce a força física necessária à manutenção do poder legitimado pela soberania popular, não poderia ser outro senão a Polícia. Dentre as inúmeras formas de atuação com o fim constitucional de preservação da ordem pública (art. 144, CF/88), encontra-se a atividade investigativa de polícia judiciária, principalmente com o mister de conduzir e realizar o Inquérito Policial. O inquérito policial, com tal denominação, surgiu na legislação pátria pela Lei n. 2.033 de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto-lei n. 4.824, de 28 de novembro de 1871. O texto legal definia no artigo 42, que: “O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito” (NUCCI, 2009, p. 70). Vale ressaltar, que o arquétipo construído em torno do inquérito, como das demais ações policiais, é de incumbir a instituição policial de funções que desde sua origem foram voltadas para restrições de direitos, no estado absolutista, para garantir a vontade do poder soberano, no democrático de direito, com fim último de manutenção da ordem pública e conservação dos interesses públicos e coletivos, aqui se inserindo a persecução do direito de punir do Estado. Assim sendo, talvez seja por tal motivo, que hoje, passados muitos anos de existência das forças policiais e da Polícia Judiciária, ainda é estranho falar-se em garantias constitucionais dos investigados na fase do inquérito policial, especialmente contraditório, ampla defesa e presunção de inocência. (ZACCARIOTTO, 1999). Por tanto, sempre é atual e merecedor a discussão e produção literária a respeito da incidência de tais princípios constitucionais na instrução processual como um todo, seja na fase inquisitorial, seja na fase processual, visando unicamente tornar nosso sistema penal adjetivo cada vez mais acusatório e menos inquisitório, para assim, implementar-se com maior intensidade os direitos fundamentais e um processo penal mais justo. 2. DO INQUERITO POLICIAL. A investigação policial, classificada em linha gerais como procedimento preparatório da ação penal, que deverá ser presidido por Autoridade Policial competente, seja Delegado de Polícia de carreira, conforme preceitua o artigo 144, § 4º da CF/88, tem por finalidade reunir elementos probatórios mínimos acerca de uma infração penal (materialidade e autoria delitiva) que possam justificar a propositura da ação penal competente. (TOURINHO FILHO, 2009). Em face de tal desiderato, o inquérito policial deve obrigatoriamente respeitar as liberdades e garantias fundamentais como expressões da dignidade da pessoa humana na busca de uma instrução processual justa, mesmo na fase inquisitorial em que se apresenta, vez a exigência do Estado Democrático de Direito de uma leitura constitucional do direito processual penal. (BALDAN, 2006) Como conseqüência dessa interpretação e do artigo 5o, inciso LV, da CF, o qual dispõe que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes”, é necessário o reconhecimento da paridade de armas entre acusação e defesa, equilibrando a balança da justiça na busca de uma responsabilização penal justa. Nesse sentido, são dignas de referência, as palavras do tão citado garantista LUIGI FERRAJOLI (2002, p. 39): “para que a disputa se desenvolva lealmente e com paridade de armas, é necessária, por outro lado, a perfeita igualdade entre as partes”, bem como “que a defesa seja dotada das mesmas capacidades e dos mesmos poderes da acusação”. O inquérito policial, como “meio de extirpar, logo de início, dúvidas frágeis, mentiras ardilosamente construídas para prejudicar alguém, evitando-se julgamentos indevidos de publicidade enganosa” (NUCCI. 2009, p. 71), está inserido, em nosso sistema processual penal como uma de suas fases, a inquisitória, compondo, ainda nas palavras de NUCCI, um sistema misto de características “inquisitórias garantistas” e acusatória por imposição constitucional. Ademais, partindo do princípio que o inquérito, por mais que se afirme os teóricos do direito, ser de natureza inquisitiva e não estar apto a corroborar no juízo de convencimento do julgador, tomando como norte jurisprudência de alguns tribunais, não se pode olvidar que por vezes, as provas e indícios documentados em inquérito, servem de subsídio na análise e juízo de formação da culpa na apuração de conduta delitiva, senão vejamos alguns desses julgados: Quando a lei fala em indícios de autoria, não faz menção ao momento em que foram os mesmos obtidos, se sob o crivo do contraditório ou antes deste, no inquérito policial. Não há qualquer impedimento em se pronunciar alguém com base em indícios obtidos em inquérito policial, até porque, poderá ele, em plenário, produzir provas em seu favor, sendo, assim respeitado o princípio da ampla defesa. (TJSP, RES 168.898-3, São Paulo, 4ª Câmara, Rel. Sinésio de Souza, 09.10.1995). A prova policial só é de ser arredada se totalmente desamparada por elementos judicializados, ou se contrariada ou desmentida por estes. Se assim não for, serve para embasar, junto com os demais seguimentos probatórios, juízo condenatório. (TJRS, Apelação nº 698.562.170-Santa Maria, 7ª Câmara, Rel. Luís Carlos Ávila de Carvalho Leite, 10.06.1999).  E, considerando tais hipóteses de utilização do corpo probatório produzido em inquérito para julgamento em 1º ou 2º graus, é que não se pode negar, em sentido lato, que se trata de procedimento a ser conduzido com garantia do contraditório e ampla defesa, mesmo que de forma mitigada, ou restrita às provas já documentadas, assim como vem entendendo o STF, como forma de evitar uma instrução processual arbitrária e desequilibrada com risco de prejuízo à defesa do acusado. Malgrado ser comum o operador do direito se referir ao inquérito policial como mera peça informativa, em verdade, está diante de um instrumento de produção de provas que contribui de forma importantíssima para o juízo de delibação do titular da ação penal, Ministério Público – destinatário dos autos do inquérito, bem como para o prévio convencimento e interpretação do magistrado acerca de como se deram os fatos e suas circunstâncias. Nesse mesmo sentido, são as lições de MARTA SAAD (apud FREITAS, 2009), ao tratar da relevância desse instrumento processual, os elementos constantes do inquérito policial “não se cuidam de elementos destinados, apenas, a noticiar, ou informar, mas de elementos fadados a convencer. Informação difere do conhecimento sobre algo, ou alguém”. Marta Saad, ainda assevera em conclusão que: O inquérito policial traz elementos que não apenas informam, mas de fato instruem, convencem, tais como as declarações de vítimas, os depoimentos das testemunhas, as declarações dos acusados, a acareação, o reconhecimento, o conteúdo de determinados documentos juntados aos autos, as perícias em geral (exames, vistorias e avaliações), a identificação dactiloscópica, o estudo da vida pregressa, a reconstituição do crime. Assim, não é senão em conseqüência do inquérito que se conserva alguém preso em flagrante: que a prisão preventiva será decretada, em qualquer fase dele, mediante representação da autoridade policial, quando houver prova da existência de crime e indícios suficientes da autoria, e como garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal; que à autoridade cumpre averiguar a vida pregressa do indiciado, resultando dessa providência, como é sabido, sensíveis repercussões na graduação da pena. (2004, p. 35) 3. DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. No que diz respeito à possibilidade de aplicação dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, durante o indiciamento em inquérito policial, é de fácil percepção que a doutrina pátria não tem criado discussões controvertidas, contudo, a realidade prática de se reconhecer tal direito ao indiciado em procedimento investigativo, dando acesso aos advogados às peças já documentadas, como direito de consulta dos autos e atendimento de pedidos de produção de provas, ainda é de pouca expressividade. O problema reside mais, na realidade, na própria admissão do direito ao contraditório pelos profissionais que laboram na área investigativa. E nesta discussão, existem aqueles contra e a favor da aplicação do contraditório ainda na fase de investigação policial. (FREITAS, 2009). Nas palavras de Marta Saad, que também escreve sobre o assunto: Para alguns operadores jurídicos que lidam diariamente com a investigação criminal, a admissão do contraditório nesse procedimento significaria uma burocratização exacerbada da investigação criminal, pois o investigado faria jus às garantias do acusado em processo criminal. Entendemos de maneira diversa. É perfeitamente possível a aplicação do contraditório, de forma mitigada, na fase inquisitorial, como adiante se verá. (2004, p. 26). É de conhecimento geral e pacificado pela doutrina pátria, que o destinatário principal do procedimento inquisitivo é o Ministério Público, titular da ação penal competente para o caso de apuração de infração penal, e que, nesta qualidade, é conferido ao membro do parquet, a prerrogativa de requisitar a instauração do inquérito policial, bem como acompanhá-lo ou mesmo conduzi-lo, como vem entendendo o STF, com base na teoria dos poderes implícitos, in verbis: Ponderou-se que a outorga de poderes explícitos, ao Ministério Público (CF, art. 129, I, VI, VII, VIII e IX), supõe que se reconheça, ainda que por implicitude, aos membros dessa instituição, a titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de medidas vocacionadas a conferir real efetividade às suas atribuições, permitindo, assim, que se confira efetividade aos fins constitucionalmente reconhecidos ao Ministério Público (teoria dos poderes implícitos). Não fora assim, e desde que adotada, na espécie, uma indevida perspectiva reducionista, esvaziar-se-iam, por completo, as atribuições constitucionais expressamente concedidas ao Ministério Público em sede de persecução penal, tanto em sua fase judicial quanto em seu momento pré-processual. Afastou-se, de outro lado, qualquer alegação de que o reconhecimento do poder investigatório do Ministério Público poderia frustrar, comprometer ou afetar a garantia do contraditório estabelecida em favor da pessoa investigada. Nesse sentido, salientou-se que, mesmo quando conduzida, unilateralmente, pelo Ministério Público, a investigação penal não legitimaria qualquer condenação criminal, se os elementos de convicção nela produzidos — porém não reproduzidos em juízo, sob a garantia do contraditório — fossem os únicos dados probatórios existentes contra a pessoa investigada, o que afastaria a objeção de que a investigação penal, quando realizada pelo Ministério Público, poderia comprometer o exercício do direito de defesa. Advertiu-se, por fim, que à semelhança do que se registra no inquérito policial, o procedimento investigatório instaurado pelo Ministério Público deverá conter todas as peças, termos de declarações ou depoimentos e laudos periciais que tenham sido coligidos e realizados no curso da investigação, não podendo o membro do parquet sonegar, selecionar ou deixar de juntar, aos autos, qualquer desses elementos de informação, cujo conteúdo, por se referir ao objeto da apuração penal, deve ser tornado acessível à pessoa sob investigação. (Informativo Nº 564. HC 89837/DF, rel. Min. Celso de Mello, 20.10.2009. (grifos nosso). Acertou o nosso Supremo Tribunal ao entender que o Ministério Público pode sim conduzir como executar procedimentos de investigação, pois seria contraditório aos poderes e prerrogativas conferidas pela Constituição Federal a negação. Mas, o que requintou de qualidade ímpar o julgamento do habeas corpus em referência, fora a garantia ao contraditório à pessoa sujeita à investigação, efetivando as garantias fundamentais da pessoa humana e equilibrando a relação processual penal. Em verdade, careceria de justiça, se o acesso ao inquérito policial fosse restringido tão somente ao membro de acusação, vez que nesta fase há produção probatória que não voltará a ser construída na fase de instrução processual, como é o caso de provas periciais ou antecipadas, quando apenas são submetidas ao contraditório diferido durante a judicialização dos autos do inquérito policial. Feito esse intróito, podemos conceituar o contraditório como a garantia de bilateralidade nos atos e termos do processo, com a possibilidade de contrariedade, ou seja, permitindo a implementação de esforço das partes na formação do livre convencimento do julgador. De acordo com Fernando da Costa Tourinho Filho, tendo em conta o princípio do contraditório: a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão superpartes, para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as provas, dar a cada um o que é seu. (2009, p. 22). Enquanto a garantia do contraditório é direcionado à regulação da relação processual, o direito à ampla defesa é princípio constitucional voltado ao indivíduo. O princípio da ampla defesa significa dizer que ao acusado “é reconhecido o direito de se valer de amplos e extensos métodos para se defender da imputação feita pela acusação”. (NUCCI, 2008, p. 40). Tal princípio encontra-se fundamentado no artigo 5º, inciso LV, da CF/88, no intuito de proteger o acusado em processo judicial ou administrativo contra a persecução arbitrária do Estado, que na relação processual sempre se apresenta com mais força e estrutura. Estas garantias conferidas pela Constituição ao indivíduo visam justamente compensar sua hipossuficiência na relação processual com o Estado acusador, buscando o equilíbrio. (LENZA, 2009). Nessa linha de pensamento, pode-se afirmar que o direito ao contraditório e ampla defesa, ainda na fase inquisitorial, não conspira contra o êxito das investigações, ao contrário, assegura maior legitimidade aos resultados do inquérito, e é exemplo de efetivação dos direitos fundamentais. Assim, a adoção dos princípios constitucionais em comento, mesmo que de forma mitigada, vez que se trata de um procedimento de características de origem inquisitiva e diversa do próprio processo judicial, em que o contraditório e ampla defesa alcançam maior plenitude, confere ao inquérito policial, natureza não de peça meramente informativa, como costumam pregar os operadores do direito, mas procedimento probatório de grande valor para instrução processual e construção dos juízos de culpabilidade e punibilidade do julgador, o qual na judicialização das provas já produzidas em inquérito, tenta se aproximar o máximo possível das verdades acerca dos fatos sob julgamento. De outro lado, não se pode olvidar da importância que assume a Autoridade Policial no encargo de presidir a fase investigativa busque preservar, no âmbito de suas atribuições, a garantia do devido processo legal, e dos princípios do contraditório e ampla defesa, potencializando o uso da disposição garantista contida no Art. 14, do Código de Processo Penal: “o ofendido, ou seu responsável legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”. O que fará com que nos autos do inquérito policial seja possível a colação de elementos de prova de interesse da defesa do indivíduo sujeito à investigação criminal. (TÁVORA, 2009). Em contraposição ao art. 16, do Código de Processo Penal, o qual prescreve: “o Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia”, que confere ao membro do parquet o poder de requisitar, como sinônimo de ordem, reconhecido pela doutrina majoritária, é necessário o fortalecimento do art. 14, com fim de equilibrar a relação processual entre a acusação e a defesa. A autoridade policial possui, portanto, no desenvolvimento de suas funções de Polícia Judiciária, o inequívoco compromisso democrático e ético de que em toda atividade investigativa que realize, com indiciamento de pessoas definidas e já intimadas da existência e andamento do inquérito, garanta, por respeito às garantias dos direitos fundamentais asseguradas na Constituição Federal, a faculdade do indiciado participar na construção das provas pré-processuais. Pois, o procedimento de inquérito tem um fim maior que é subsidiar a instrução de um processo e uma persecução penal justas. Como ressalva, é digno de referência, que o próprio Supremo Tribunal Federal entende que não configura cerceamento de defesa em inquérito policial quando a Autoridade Policial avalia inconvenientes o conhecimento prévio da diligência pelo indiciado ou seu defensor, vez a possibilidade de prejuízos ao procedimento investigatório e ao fim maior do interesse público, justiça social. O que se configura, aparentemente uma mitigação necessárias das garantias constitucionais aqui discutidas em face da natureza pré-processual do inquérito, o que não é o mesmo que negar toda a discussão acima aduzida. Tal hipótese se enquadra perfeitamente nos casos de interceptações telefônicas, autorizada pela própria Constituição no seu art. 5º, em conformidade com a disciplina legal atinente. Ora, não seria razoável que o indiciado tivesse conhecimento desse tipo de diligência antes ou no decorrer da produção probatória, perderia toda a razão de ser do instrumento legal de investigação aperfeiçoado para o combate de organizações criminosas e crimes do colarinho branco, em que a investigação se mostra mais difícil. (GOMES, 2004). Nesse sentido, é digno de transcrição o entendimento do ilustre  Ministro Sepúlveda Pertence, ao relatar o habeas corpus nº 82.354: EMENTA: I. Habeas corpus: cabimento: cerceamento de defesa no inquérito policial. 1. O cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação a pena privativa de liberdade ou na mensuração desta: a circunstância é bastante para admitir-se o habeas corpus a fim de fazer respeitar as prerrogativas da defesa e, indiretamente, obviar prejuízo que, do cerceamento delas, possa advir indevidamente à liberdade de locomoção do paciente. 2. Não importa que, neste caso, a impetração se dirija contra decisões que denegaram mandado de segurança requerido, com a mesma pretensão, não em favor do paciente, mas dos seus advogados constituídos: o mesmo constrangimento ao exercício da defesa pode substantivar violação à prerrogativa profissional do advogado – como tal, questionável mediante mandado de segurança – e ameaça, posto que mediata, à liberdade do indiciado – por isso legitimado a figurar como paciente no habeas corpus voltado a fazer cessar a restrição à atividade dos seus defensores. II. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial. 1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio. 2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade. 3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações. 4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório. 5. Habeas corpus deferido para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta aos autos do inquérito policial, antes da data designada para a sua inquirição. (STF, HC 82354/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, J. em 10/08/2004, Pub. 24.09.2004). Enfim, vale lembrar que o inquérito policial, além de ser meio preparatório para a propositura da ação penal, também é instrumento hábil a concluir sobre a existência ou não de crime ou de apurar os indícios de autoria que justificam o início do processo penal, podendo através dele o Ministério Público competente ou a própria Defesa provocarem judicialmente a absolvição sumária do acusado. É necessário ter em conta que a investigação realizada na fase pré-processual tem o fim útil de evitar a instauração de uma ação penal injusta, com violação dos critérios da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estricto) e da razoabilidade. (FEITOSA, 2008). Nessa linha de pensamento, os requerimentos de produção de provas por parte da defesa, nos termos do art. 14, do Código de Processo Penal, uma vez legítimos, em nada prejudica o inquérito policial, sendo que a sua aceitação ou rejeição devem ser feitas de forma motivada nos autos, a teor do quanto exigido pelo art. 93, inciso IX, da CF/88, principalmente, por se tratar de restrição de direitos do acusado. Para encerramento deste ponto e passar às considerações finais acerca do tema, merecem transcrição as palavras de José Pedro Zaccariotto, Delegado de Polícia Civil no Estado de São Paulo, que se posiciona da seguinte forma: O fundamento constitucional da obrigação de motivar está implícito tanto no artigo 1º, inciso II, da CF/88, que indica a cidadania como fundamento da República, quanto no parágrafo único desse preceptivo, segundo o qual todo poder emana do povo, como ainda no artigo 5º, XXXV, que assegura o direito à apreciação judicial nos casos de ameaça ou lesão de direito. É que o princípio da motivação é reclamado, quer como afirmação do direito político dos cidadãos ao esclarecimento do porquê das ações de quem gere negócios que lhes dizem respeito, por serem titulares últimos do poder, quer como direito individual a não se sujeitarem a decisões arbitrárias, pois só têm que se conformar às que foram ajustadas às leis. (1999) 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. A evolução e alcance da efetivação dos princípios do contraditório e ampla defesa já a partir da fase de inquérito, num sistema processual penal que ainda conserva características inquisitórias, como exemplo, a possibilidade de determinação ex oficio de diligências e medidas cautelares de restrição de liberdade pelo próprio juiz, que possui por ordem constitucional dever de imparcialidade no julgamento e condução processual, às vezes se mostra difícil na realidade prática, mesmo com o apoio de entendimento dos tribunais superiores, pois ainda está incutido no meio policial fortes tendências inquisitivas, fruto da formação e história das instituições policiais no país. Assim, a tarefa de buscar a verdade real ou processual, de forma proporcional e justa, desde a fase de inquérito é dever que se impõe aos profissionais que militam na atividade de polícia judiciária, os quais precisam amadurecer a sensibilidade e o respeito aos princípios garantistas explícitos ou implícitos na ordem constitucional vigente, em específico, os do contraditório e ampla defesa. O fato é que, conseguindo a Polícia Judiciária apresentar ao órgão jurisdicional competente um inquérito policial conduzido sob a égide das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, mesmo que relativizados em alguns casos, nas hipóteses argumentas no bojo do presente trabalho, haverá benefício não apenas às partes que compõem o processo, mas à própria sociedade na busca de uma condenação penal justa. Por fim, o que não pode ocorrer é uma involução no combate à criminalidade organizada com adoção de medidas arbitrárias como justificativa de alcançar a responsabilização penal a qualquer custo, apenas para efeito de resposta à sociedade. Não é isso que a sociedade democrática de direito almeja. Não se pode voltar ao tempo em que o processo criminal era inteiramente inquisitório. O povo moderno exige maior respeito às suas garantias constitucionais, e para acompanhar a evolução social, as instituições policiais necessitam também crescer e acompanhar esta evolução social, se adequando às exigências e garantias inerentes aos direitos do homem, positivadas constitucionalmente como direitos fundamentais.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-75/o-direito-ao-contraditorio-e-ampla-defesa-na-fase-inquisitoria-do-processo-penal/
Arquitetura preambular do processo judicial eletrônico
O homem civilizado já não consegue manter-se ativamente integrado à sociedade sem utilizar-se dos modernos meios de comunicação eletrônica. Seus hábitos diários mais comuns dependem necessariamente do uso da tecnologia da informação. Em vista disso, indaga-se, neste trabalho, se os procedimentos judiciais de resolução de conflitos sociais podem permanecer indefinidamente alheios ao emprego dos sistemas de informatização disponibilizados pela sociedade da informação. Respondendo que os meios eletrônicos são instrumentos de grande utilidade para se otimizar a Justiça, segue a exposição indicando as leis e regulamentos que já autorizam a substituição do processo de papel pelo processo digital. Nesse primeiro contato com a futura reformulação da praxe forense são indicados os novos pressupostos de autenticidade e de validade do processo digital. Aponta-se a rápida expansão dessa sistemática nos processos civil e trabalhista, bem como o recente ingresso da tecnologia na instrução do processo penal, tudo sem causar danos à garantia do devido processo legal.[1]
Direito Processual Penal
Resumo: O homem civilizado já não consegue manter-se ativamente integrado à sociedade sem utilizar-se dos modernos meios de comunicação eletrônica. Seus hábitos diários mais comuns dependem necessariamente do uso da tecnologia da informação. Em vista disso, indaga-se, neste trabalho, se os procedimentos judiciais de resolução de conflitos sociais podem permanecer indefinidamente alheios ao emprego dos sistemas de informatização disponibilizados pela sociedade da informação. Respondendo que os meios eletrônicos são instrumentos de grande utilidade para se otimizar a Justiça, segue a exposição indicando as leis e regulamentos que já autorizam a substituição do processo de papel pelo processo digital. Nesse primeiro contato com a futura reformulação da praxe forense são indicados os novos pressupostos de autenticidade e de validade do processo digital. Aponta-se a rápida expansão dessa sistemática nos processos civil e trabalhista, bem como o recente ingresso da tecnologia na instrução do processo penal, tudo sem causar danos à garantia do devido processo legal.[1]   Palavras-chave: Processo digital; computação forense; tecnologia da informação; videoconferência; processo penal e tecnologia. Abstract: The civilized man can no longer keep themselves actively integrated into society without using the modern electronic medias. Men daily habits depend necessarily on the use of the technology of information. In view of this, it is inquired in this paper, if the judicial procedures to resolute the social conflict can indefinitely remain not using the systems of computerization made available by the society of information. Answering that electronic media is an instrument of great utility to optimize Justice, this paper indicates the laws and regulations that already allow the replacement of the paper by the digital process. In this first contact with the future revision of the forensic custom is indicated the new conditions of authenticity and validity of the digital process. Note the rapid expansion of this systematic in civil and labor procedures, as well as the recent ingress of technology in the investigation of criminal proceeding, all without causing damages to the guarantee of due process of law. Keywords: Eletronic judicial process; digital process; the society of information; video conference; video interrogation. Sumário: 1. Infoera e justiça – 2. Primeiros passos rumo à informatização do processo judicial: 2.1 Assinatura eletrônica; 2.2 Assinatura digital e assinatura digitalizada; 2.3 Garantia de autenticidade da transmissão eletrônica; 2.4 Autoridade Certificadora da OAB; 2.5 Assinatura em cadastro do Judiciário – 3. Meios eletrônicos admitidos no processo penal: 3.1 Videoconferência; 3.2 Videodepoimento; 3.3 Carta precatória e  videoconferência; 3.4 Videointerrogatório – 4. Conclusão. 1. Infoera e justiça O Professor titular da área de Eletrônica do Departamento de Engenharia Elétrica da Escola Politécnica da USP, doutor João Antonio Zuffo, é um exímio analista das fantásticas maravilhas e dos inevitáveis problemas que podem resultar da chamada Infoera, ou “Era da Informação”. Sua explanação sobre a rápida consolidação da Infoera, na qual se nota claramente a imensa efervescência resultante das transformações determinadas por um nível de desemprego sem precedentes em âmbito mundial e pelas grandes transformações nas relações comerciais e sociais, é um convite irrecusável à nossa reflexão. No limiar deste milênio, o professor Zuffo, baseando-se em seus estudos aprofundados, vaticinou que o mundo virtual criado pela sociedade da informação, associado às enormes dívidas governamentais, estava acelerando uma desvinculação crescente entre o universo produtivo e o financeiro. Tal desvinculação começou a se desenvolver desde as Eras Industrial e Pós-Industrial. Entretanto, um conjunto de fatores (evolução da facilidade das comunicações e do endividamento governamental, política de abertura de mercados e liberalização do fluxo de capitais) motivou e acelerou a geração de instabilidades econômicas. Por força de mercados de ações supervalorizadas e negócios especulativos; da crescente valorização dos ativos intangíveis, baseados em conhecimento; da transferência extremamente rápida de recursos financeiros virtuais; e, ainda, da existência de mercados de títulos instáveis e altamente voláteis, criou-se um estado de coisas reconhecidamente oscilatório na área econômico-financeira. Não existindo mais a antiga vinculação rígida entre o capital financeiro e os recursos de investimentos necessários ao setor produtivo, a possibilidade de emergência de sucessivas crises tornou-se uma certeza. Em nível mundial, já dizia o mencionado autor, “vivencia-se uma verdadeira corrente da felicidade, geradora de lucros fáceis, que em qualquer momento pode ter seu sentido revertido transformando-se numa corrente viciosa de perdas e falências”. Hoje, apenas alguns anos após a publicação desses seus pensamentos, o prognóstico se tornou realidade. As consequências desse quadro são para nós imprevisíveis. É certo que muitas páginas ainda deverão ser escritas por filósofos, pensadores e escritores de escol para desenhar corretamente as causas e os efeitos do período histórico mundial que agora vivemos. Todavia, mantendo o apoio na explanação feita por Zuffo, podemos visualizar duas evidências caracterizadoras da Infoera. Resumidamente vamos destacar os dois lados dessa medalha.  De um lado menciona-se o forte impacto evolutivo da moderna tecnologia, ou seja, o lado que contempla as maravilhas que ela produz. A começar pela Internet e a Teia de Âmbito Mundial, sistemas interativos virtuais que se apóiam sobre a rede física de telecomunicações, que ao se somarem à rápida expansão da capacidade de processamento dos micros pessoais, se transformam nos principais agentes das mutações sociais que estamos vivenciando. Formulando hipóteses viáveis para o nosso mundo real, o mencionado autor imagina a sociedade que “emergirá do emprego em larga escala de sistemas de realidade virtual, hápticas ou tácteis, com o uso generalizado de sistemas de redes neurais, e de sistemas que utilizam algoritmos genéticos”. Já estão sendo anunciados, por exemplo, novos sistemas virtuais “interativos comandados por voz, que serão introduzidos com a terceira geração (3G) de telefonia móvel. Existe grande expectativa com o desenvolvimento do comércio móvel (M-Commerce). Num ritmo frenético estão sendo desenvolvidos novos servidores e logicionarias (software) para a teia, incluindo-se folheadores (browsers) sofisticados e ferramentas para a criação de sítios elaborados. Estamos nos aproximando, cada vez mais, do momento em que assistiremos a popularização de outros sistemas que utilizam técnicas de inteligência artificial na implementação de clones pessoais com perfil psicológico de seus donos, bem como de uso de avatares nos sistemas de teleconferências”. A persistir a velocidade na qual se executam esses progressos tecnológicos, em menos de duas décadas, não será tão simples distinguir o mundo real do virtual. Agora, o outro lado da medalha, que a nosso ver é mais preocupante. Para esse douto cientista, “o crescente uso dos computadores pessoais na criação de mundos virtuais e a intensa divulgação e vulgarização da violência pelos meios de comunicação estão gerando indivíduos alienados do universo físico, e, por isso, incapazes de distinguir a fantasia da realidade. A imensa acessibilidade aos meios de comunicações, notadamente impulsionada pelo fácil acesso à Internet, está possibilitando não só a criação de comunidades e associações virtuais humanitárias, e mesmo de entidades com finalidades comerciais legalmente constituídas, mas também a criação de sociedades virtuais criminosas, associações políticas virtuais de natureza radical e sociedades secretas, também virtuais. Além disso, o fácil acesso às comunicações irrestritas está permitindo a criação de partidos políticos constituídos de criminosos cuja influência e poder se irradiam mesmo dentro dos presídios, além da formação de grupos terroristas virtuais, envolvendo ações em todas as regiões do planeta. Desse modo, a vivência virtual tende cada vez mais a viciar o individuo no controle de realidades inexistentes e a afastar o infocidadão do mundo real. E tais condições são propícias para insensibilizar este infocidadão com relação à dor alheia e às tragédias humanas que ocorrem no dia-a-dia, no mundo real”. Desse ambiente social turbulento, destituído de valores humanos e espirituais, resulta uma desvalorização sem precedentes do ser humano e uma onda de crimes e massacres horrorosos.     Em vista dessas rápidas mudanças, estão se cristalizando: a inquietação crescente no mundo; a revolta popular incontida por meio do aumento da violência gratuita; e um espocar de tumultos sem causa e organização aparentes, mesmo em países considerados altamente civilizados e tradicionalmente estáveis. Por ora, os estudiosos desse fenômeno admitem a necessidade de se percorrer um trajeto turbulento e incerto até que se atinja um novo ponto de equilíbrio, e, a partir de então, todos poderão usufruir da nova estrutura social ditada pela Infoera. Afinal, a esperança que presentemente se tem é de que “tais mudanças sejam acompanhadas da melhor distribuição dos conhecimentos e das riquezas geradas, de tal sorte que o infocidadão possa usufruir uma qualidade de vida baseada em novos valores, sendo certo que a filosofia, as humanidades, as artes e a espiritualidade serão os cardinais da infovivência.”[2] Vislumbrando um cenário mundial tão complexo, no qual o Brasil está decisivamente incluído, começamos a pensar se é possível aceitar, que os mais variados escalões do Poder Público e do Poder Privado da Nação, possam ignorar a presença da Justiça na formulação dos ideais básicos que movem as etapas do desenvolvimento tecnológico e informacional. É claro que o sentimento de justiça está umbilicalmente centrado no pensamento filosófico, na preservação dos direitos humanitários e na própria espiritualidade escolhidos por um povo. Portanto, sob esta ótica, parece que os fundamentos basilares da ética e da justiça estão implicitamente presentes no moderno contexto tecnológico, fato que nos libera do comentário a respeito dos valores que lhe são inerentes. Tampouco pretendemos detalhar a imperiosa necessidade de se aparelhar adequadamente a estrutura ou de se efetivamente modernizar a “máquina” do Judiciário para corresponder às exigências ditadas pela sociedade da informação. Na verdade, o que nos move nesta empreitada é o propósito de colocar em destaque tão-somente algumas das recentes alterações legislativas, que guardam sim, efetiva sintonia com a realização de atos processuais praticados com o auxílio da moderna tecnologia da informação. Nunca deve ser esquecido que o exercício da função jurisdicional reflete o pronunciamento de uma parcela da soberania estatal, e que para declarar o direito, o Estado-Juiz deve se submeter obedientemente aos estreitos limites fixados pela lei. É dizer que o funcionamento do Judiciário está subordinado às regras processuais e aos procedimentos legais, os quais devem ser integralmente respeitados. Mas, esses procedimentos são obviamente sensíveis aos impactos políticos e econômicos que naturalmente cercam a sociedade em determinado momento de sua existência. Desse modo, para se atingir a tão sonhada otimização da Justiça (ou da prática forense), se torna necessário que os ritos procedimentais sejam constantemente adaptados e que se tornem sensíveis ao progresso cientifico contemporâneo para melhor adequar-se à realidade vivenciada na época de sua aplicação.   Por força de um conjunto de normas editadas pelo legislador nos últimos anos, claramente se demonstra, que está prevalecendo a vontade de se manter a justiça brasileira agregada ao vasto contexto de causas e efeitos proporcionados pela melhor utilização de novos meios tecnológicos. Frente à apontada dualidade refletida nos avanços e retrocessos dos quais emanam boa parcela dos conflitos sociais de nossa geração, a adoção de modelos eletrônicos de processo judicial passou a ser abertamente cobrada pela sociedade da informação. E já não se pode abrir mão desse avanço nas regras processuais para que o Estado-Juiz possa executar, com certo grau de eficiência, o seu devido papel na solução de litígios e na manutenção da paz social. 2. Primeiros passos rumo à informatização do processo judicial Partindo da premissa de que a atividade jurisdicional é naturalmente intrincada pelo acúmulo de normas, ritos, rotinas forenses e restrições garantistas, que visam proteger os consectários próprios da cláusula constitucional do devido processo legal, qualquer reforma na área processual, ainda que mínima, somente se consuma de forma lenta e jamais ao ritmo frenético da tecnologia da informação. Aliás, mesmo depois de autorizada pela lei, a aceitação da reforma nem sempre é imediata e geralmente sofre críticas severas dos operadores do Direito. Obviamente, não há atenuação desse quadro critico em relação ao processo eletrônico. Do ponto de vista da informatização do processo judicial, a reformulação dos meios procedimentais, até agora legalmente autorizada, não vai além de seus primeiros passos. O estágio atual do processo eletrônico foi precedido de uma fase embrionária, que teve sua origem em algumas unidades da Federação, nas quais se verificou uma boa dose de flexibilização do rigor formalístico que era imposto por superados sistemas de funcionamento. Pouco a pouco, diversos tribunais foram aderindo ao movimento reformador do Judiciário, de tal sorte que a desburocratização, simplificação e agilização no atendimento aos jurisdicionados pôde ser sentida em atos e serviços não atingidos pela solenidade formal, o que proporcionou grande economia de energia e de tempo. Seja para a administração pública seja para os interessados em geral, os ganhos obtidos em atividades de custo-benefício se tornaram positivamente nítidos. Exemplo disto ocorreu no campo das expedições de certidões judiciais em geral (cível, criminal, fiscal, trabalhista etc.) quando passaram a ser solicitadas e concedidas por via digital. Para além desse exemplo, muitas outras ações semelhantes foram determinadas pelos tribunais, porém, quase sempre restritas à modernização eletrônica da atividade administrativa dos órgãos do Judiciário. Faltava, na verdade, surgir uma lei que autorizasse a utilização de novos recursos eletrônicos na execução de sua atividade fim, isto é, no exercício da própria jurisdição. E essa carência foi, afinal, preenchida ao ser editada a Lei 11.419, de 19.12.2006, conhecida entre nós como Lei de Informatização do Processo Judicial. Pois é com base neste diploma legal e sem a pretensão de esgotar a análise do tema sobre o qual nos propusemos escrever, que nas linhas abaixo destacaremos alguns pontos que fundamentam a aurora da informatização da atividade jurisdicional brasileira.   Diga-se logo que o uso de meio eletrônico (ou seja, qualquer forma de armazenamento ou tráfego de documentos e arquivos digitais) é admitido: a) na tramitação de processos judiciais; b) na comunicação de atos; c) na transmissão de peças processuais. Esta última (transmissão eletrônica de peças processuais) corresponde à comunicação a distância feita com a utilização de redes, preferencialmente a rede mundial de computadores. Aplica-se tal autorização, proveniente da mencionada lei, indistintamente, aos processos civil, penal e trabalhista, bem como aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição. Daí o surgimento da regra mais consentânea com a informatização do processo judicial, a qual diz que todos os atos do processo podem ser produzidos, transmitidos, armazenados e assinados por meio eletrônico (§ 2º, art. 154, CPC). Como se sabe, o momento culminante da produção das provas se dá com a realização da audiência de instrução e julgamento. Por isso, a Lei de Informatização do Processo Judicial, ao introduzir o § 4.º no art. 457, CPC, também estabeleceu quais são as formalidades que devem ser cumpridas no termo da audiência de instrução e julgamento, determinando que, em caso de processo eletrônico, se observe o disposto nos §§ 2.º e 3.º do art. 169, do Código de Processo Civil. Vale dizer, quando se tratar de processo total ou parcialmente eletrônico, a audiência de instrução e julgamento pode ser produzida e armazenada de modo integralmente digital em arquivo eletrônico inviolável, na forma da lei, mediante registro em termo que será assinado digitalmente pelo juiz e pelo escrivão ou chefe de secretaria, bem como pelo Ministério Público e advogados das partes. Tudo com a ressalva de que eventuais contradições na transcrição deverão ser suscitadas oralmente durante o transcurso da própria audiência, devendo o juiz decidir de plano, registrando-se a decisão no termo.  No catálogo dos atos processuais que podem ser produzidos, transmitidos, armazenados e assinados por meio eletrônico, inclui-se a elaboração do mandato eletrônico. Admite-se que a procuração outorgada pela parte nomeando seu defensor seja assinada digitalmente com base em certificado emitido por Autoridade Certificadora credenciada. Outrossim, podem ser expedidas por meio eletrônico, desde que devidamente autenticadas pela assinatura eletrônica do magistrado, a carta de ordem, a carta precatória e a carta rogatória.    Para efeito de se comprovar a realização de ato processual eletrônico é de ser expedido o respectivo protocolo eletrônico pelo órgão receptor, contendo a indicação do dia e hora do seu envio ao sistema do Poder Judiciário. Tratando-se de petição eletrônica enviada para atender prazo processual, será considerada tempestiva se for transmitida até as 24 (vinte e quatro) horas do seu último dia. Na verificação da tempestividade do ato, considera-se como data da publicação, o primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização da informação no Diário da Justiça eletrônico. Inicia-se a contagem do prazo no primeiro dia útil que seguir ao considerado como data da publicação. Quando o processo for eletrônico, a distribuição da petição inicial e a juntada da contestação, dos recursos e das petições em geral, todos em formato digital, podem ser feitas diretamente pelos advogados públicos e privados, sem necessidade da intervenção do cartório ou secretaria judicial, situação em que a autuação deverá se dar de forma automática, fornecendo-se recibo eletrônico e protocolo. Observa-se desta rápida introdução que a realização formal do ato processual eletrônico deve ser submetida à nova sistemática procedimental. Ou seja, é preciso garantir a sua autenticidade e validade. Logo, exige-se a satisfação de determinados pressupostos inerentes à própria informatização do processo judicial. É sobre esses pressupostos de autenticidade e de validade do procedimento eletrônico que faremos alguns comentários a seguir. 2.1 Assinatura eletrônica Devemos inicialmente mencionar a imprescindibilidade da assinatura eletrônica. Para o envio de petições ou recursos e para a prática de atos processuais eletrônicos em geral, é indispensável a assinatura eletrônica. Logo, a validade de ato processual informatizado tem por pressuposto a autenticidade da assinatura eletrônica da autoridade ou da parte que o subscrever. Impõe destacar que a expressão “assinatura eletrônica” deve ser compreendida em seu sentido amplo, como gênero de todo método de identificação apropriado e confiável empregado na transmissão de dados eletrônicos. De acordo com o art. 1º, § 2º, III, da Lei 11.419/2006, a assinatura eletrônica inclui as seguintes formas de identificação inequívoca do signatário: “a) assinatura digital, baseada em certificado digital emitido por autoridade certificadora credenciada, na forma de lei específica; b) mediante cadastro de usuário no Poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos.” Convém preliminarmente esclarecer o que consta da parte final da alínea a acima, a fim de se lembrar que a expressão “na forma da lei específica” corresponde, neste caso, à Medida Provisória 2.200-2, de 24.08.2001. Em conformidade com o disposto no art. 1.º desta Medida Provisória, que ainda se encontra em vigor, foi criada a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), com as seguintes características: “Fica instituída a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras”. Sendo assim, a ICP-Brasil constitui-se de um conjunto de regras e normas, baseadas em padrões públicos internacionais, que são definidas por um comitê gestor composto por representantes do governo e da sociedade civil. Considera-se que por força dessa Medida Provisória implantou-se o Sistema Nacional de Certificação Digital no País, sendo resultante de um conjunto de técnicas, práticas e procedimentos que têm o objetivo de garantir a autenticidade, confidencialidade e integridade das informações contidas em documentos produzidos em forma eletrônica. Em sua estrutura hierárquica, pode-se dizer que a ICP-Brasil compõe-se de um grupo de autoridades certificadoras, que se submetem às diretrizes estabelecidas pelo Comitê Gestor, em todos os níveis da cadeia de certificação. No topo dessa estrutura de certificação figura a Autoridade Certificadora-Raiz (AC-Raiz). Seu órgão executor é o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), autarquia federal vinculada à Casa Civil da Presidência da República, cabendo-lhe executar as políticas de certificados e normas técnicas e operacionais aprovadas pelo Comitê Gestor da ICP-Brasil. Vale dizer, ao ITI foi atribuída a responsabilidade de credenciar empresas, tornando-as aptas a fornecer certificados padrão ICP-Brasil. 2.2         Assinatura digital e assinatura digitalizada Além de revelar-se o modelo de tecnologia mais reconhecido de assinatura eletrônica, a assinatura digital apresenta um elevado grau de segurança para as trocas de dados em redes abertas. Funciona como um “selo eletrônico”, que permite ao usuário a certificação dos dados enviados eletronicamente, verificando a sua origem (certificação) e a confirmação da integridade dos dados (é possível detectar se os dados foram alterados após a assinatura). Esta modalidade de assinatura eletrônica baseia-se em sistema criptográfico assimétrico composto de um algoritmo, por força do qual é gerado um par de chaves, sendo uma privada e outra pública. A verificação da autenticidade é levada a cabo por uma entidade certificadora que estabelece um sistema de confirmação tecnicamente seguro, garantindo que a comunicação foi efetivamente expedida por quem diz tê-la expedido. Para cada nova assinatura cria-se um novo par de chaves. A chave privada é codificada, instala-se no computador, no qual permanece guardada e deve ser usada apenas pelo seu proprietário. Sua utilização necessita de uma password (senha, contra-senha), sendo que o emissor assina com a chave privada enquanto o receptor verifica a autenticidade com a chave pública do emissor. Por este sistema, a confirmação da assinatura digital só se verifica quando a chave privada do remetente foi usada para assinar a mensagem, e quando a mensagem não foi alterada. Se esta operação não puder ser feita, o software vai identificar a verificação como falsa.[3] Parece proveitoso ressaltar, ainda, que a assinatura digital de que estamos falando não se confunde com a assinatura eletrônica sem certificação digital e nem com a assinatura digitalizada. Estas não são válidas para efeito de utilização na realização de atos processuais. É que a assinatura eletrônica sem certificação digital não possui a necessária credibilidade, pois se encontram ausentes as mencionadas características tecnológicas do certificado digital. Ou seja, a sua identificação se faz por meio de identificação pessoal (login) e uma senha. Vale dizer, os dados assinados eletronicamente com este recurso trafegam na rede sem criptografia e, por este motivo, podem ser interceptados e alterados sem deixar vestígio de qualquer adulteração. De outro lado, a assinatura digitalizada é um arquivo de imagem gerado a partir da digitalização de uma imagem contendo a assinatura grafotécnica, aposta primeiramente em um papel, ao contrário das assinaturas com e sem certificado digital, que são geradas originariamente no meio eletrônico. Logo, a assinatura digitalizada não é propriamente assinatura eletrônica.[4] No plano da autenticidade, os documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos com garantia da origem e de seu signatário, serão considerados originais para todos os efeitos legais. Por outro lado, os extratos digitais e os documentos digitalizados e juntados aos autos: pelos órgãos da Justiça e seus auxiliares; pelo Ministério Público e seus auxiliares; pelas procuradorias; pelas autoridades policiais; pelas repartições públicas em geral; e por advogados públicos e privados têm a mesma força probante dos originais, ressalvada a alegação motivada e fundamentada de adulteração antes ou durante o processo de digitalização (art. 11, § 1º, da Lei 11.419/2006).    2.3 Garantia de autenticidade da transmissão eletrônica Sabe-se que a certificação digital é a atividade de reconhecimento em meio eletrônico. Ela se caracteriza pelo estabelecimento de uma relação única, exclusiva e intransferível firmada entre o cliente e a autoridade certificadora (AC), tendo por base o uso de uma chave de criptografia. De acordo com diretrizes publicadas, a ICP-Brasil utiliza um processo de codificação e decodificação, que consiste na aplicação de modelo matemático de algoritmo criptográfico, baseado no conceito de chaves e executado por um programa de computador. Com a inserção da chave criptográfica, o arquivo enviado se torna ilegível, sendo necessário ter conhecimento do algoritmo de decifragem (a chave) para recuperação dos dados originais. Afirma-se, então, que a ICP-Brasil adota o padrão criptográfico assimétrico, o qual funciona a partir de complexos métodos matemáticos. Os algoritmos trabalham com duas chaves geradas simultaneamente utilizadas (uma pública e outra privada), respectivamente para cifrar e decifrar a informação. A chave privada fica em poder do proprietário do sistema, que terá exclusividade no seu uso. Já a chave pública poderá ser distribuída a todos aqueles com quem o proprietário precise manter uma comunicação segura ou identificada. Tais chaves são inseridas em pequenos programas de computador, que integram os editores normais de correio eletrônico e são postas em funcionamento mediante um simples clique do mouse no ícone respectivo. Infere-se que o certificado digital emitido pela AC credenciada pela ICP-Brasil, perfaz um documento de identidade eletrônica que armazena os dados pessoais de seu titular, associando essa identificação a uma chave pública. Noutras palavras, todo usuário que aderir ao sistema recebe duas chaves: uma pública e outra privada. A pública é de conhecimento de todas as pessoas e a privada deve ser mantida sob seu uso e conhecimento exclusivos. Na prática, a chave privada, quando utilizada para assinar documento eletrônico, faz incluir um código numérico no documento. Este código numérico corresponde à própria assinatura digital e consiste no resultado da aplicação de um algoritmo matemático ao texto do documento. Note-se que somente a chave pública relacionada à chave privada que criou o código numérico pode decifrá-lo. É dessa forma que se garante a origem do documento. Dito com outras palavras, o remetente usa a chave pública do destinatário (que consiste num programa gerador de um código de encriptação) para codificar (assinar) sua mensagem de dados; esta mensagem transita codificada até chegar ao seu destino (endereço eletrônico do destinatário); valendo-se de sua chave privada (uma espécie de contra-senha) o destinatário torna-se habilitado a decodificar a mensagem. Note-se que as informações contidas nos certificados digitais são acessíveis por meio da utilização da senha pessoal eleita pelo titular. Ademais, a Medida Provisória 2.200-2 (§ 1.º do art. 10), estabelece que as declarações de vontades expressas em documentos eletrônicos que se utilizam dos certificados qualificados e disponibilizados por meio da ICP-Brasil presumem-se verdadeiras em relação aos signatários, gozando da presunção de validade oponível erga omnes. Daí afirmar-se que o mecanismo tecnológico em questão concede a necessária segurança quanto à autoria e integridade do documento eletrônico, vinculando indissociavelmente a assinatura ao documento. Em caso de tentativa de modificação do documento eletrônico, o certificado digital detectará a violação e não lhe conferirá autenticidade. De acordo com esse traçado, a autoridade certificadora credenciada fornece meios para a criação das chaves, emite os certificados de assinatura, assegura a respectiva publicidade numa lista que possa ser consultada por qualquer interessado e presta outros serviços relativos a assinaturas digitais. Toda autoridade certificadora credenciada atua em nível imediatamente inferior à já mencionada AC-Raiz (ITI). Atribui-se à AC a responsabilidade de expedir, revogar e gerenciar os certificados digitais. É sua obrigação, ainda, elaborar, divulgar e fazer cumprir a política de segurança, a declaração de práticas de certificação e a política de certificados. Tais documentos atestam ao público o cumprimento obrigatório das diretrizes emanadas pela ICP-Brasil, especialmente no que se refere aos processos e práticas que estabelecem regras para emissão de certificados e exigências de segurança, garantidores da confiabilidade das operações da AC. Vale ressaltar que toda AC está sujeita à auditoria anual obrigatória. Vinculada à AC opera, obrigatoriamente, uma autoridade registradora (AR), que tem a incumbência de identificar e cadastrar usuários presencialmente, devendo submeter a solicitação de certificados àquela autoridade a que estiver subordinada. Concede-se o licenciamento para operar como AC ou AR a órgãos e entidades públicas, bem como a pessoas jurídicas de direito privado. As entidades prestadoras de serviço de certificação credenciadas se obrigam ao cumprimento de um conjunto de diretrizes de segurança definido pela ICP-Brasil. O objetivo principal é o de manter e preservar os instrumentos garantidores de segurança e de confiabilidade de todas as operações praticadas pela cadeia de certificação. Logo se vê que a principal função a ser executada pela AC é a de garantir a autenticidade da operação, certificando que uma chave pública ou um certificado digital pertence a uma determinada pessoa. De se notar que o certificado digital, também denominado identidade digital, pode ser adquirido por qualquer cidadão, empresa ou entidade diretamente de qualquer AC. São válidos os ensinamentos dados por Demócrito Reinaldo Filho,[5] para quem, na prática, “a verificação da autenticidade funciona mediante aplicativo de software incorporado ao computador do usuário”. De acordo com o juiz de Direito do Recife, “normalmente, o software que faz a verificação de um certificado digital possui algum mecanismo ou função para confiar em AC”. No seu exemplo esclarecedor, o programa utilizado para navegar na Internet (conhecido como browser) contém uma lista das AC em que confia. “Quando o usuário visitar o site do tribunal e for apresentado ao navegador um Certificado Digital, ele verificará a AC que emitiu o respectivo certificado; se a AC estiver na listagem de autoridades confiáveis, o navegador aceitará a identidade do site e exibirá a página da web. Não estando incluída na listagem, o navegador exibirá uma mensagem de aviso, perguntando ao usuário se deseja confiar na nova AC. Geralmente o programa navegador oferece opções para confiar permanente ou temporariamente na AC, ou não confiar. Portanto, o usuário tem o controle sobre quais AC deseja confiar, porém, o gerenciamento da confiança é feito pelo aplicativo de software (nesta hipótese, pelo navegador)”. Após termos mencionado alguns dados relativos à organização estrutural dos órgãos reguladores que garantem a autenticidade da assinatura eletrônica, podemos indagar: de que forma se viabiliza a confiabilidade do sistema e a autenticidade da assinatura digital do usuário no processo judicial eletrônico? Novamente é preciso aduzir que o primeiro passo para se obter a assinatura digital consiste na aquisição de um certificado digital, a ser expedido por uma das empresas credenciadas junto à ICP-Brasil. Qualquer empresa credenciada dessa natureza é conhecida como autoridade certificadora (AC), ou seja, aquela que presta serviços baseados no sistema de “criptografia de chaves públicas”, cuidando da geração, distribuição e gerenciamento das chaves públicas e dos certificados digitais. Sendo o usuário pessoa detentora de certificado digital, seu acesso ao procedimento judicial eletrônico estará garantido, desde que atenda às demais formalidades legais e regulamentares. Porém, em se tratando de usuário advogado regularmente inscrito na OAB, é mister atentar para as observações feitas no próximo subitem. Sem dúvida alguma, o sistema de informatização implementado pelo Poder Judiciário está em franco desenvolvimento. De se lembrar que, por força da Res. 41, de 11.09.2007, o próprio CNJ chamou para si o encargo de gerir a implementação do modelo de gestão e o estabelecimento das diretrizes e normas voltadas para a integração e unificação dos sítios eletrônicos, além de acompanhar, analisar e controlar a concessão dos domínios às instituições do Judiciário. Uma de suas providências resultou na modificação dos portais e sítios, localizados na Internet. É claro que a questão da segurança do sistema de informatização é uma preocupação constante. Nesse sentido, representantes do CNJ ressaltam que a iniciativa configura grande ganho para o Judiciário, especialmente no tocante à confiabilidade das informações nos portais. É que foi obtida junto ao Comitê Gestor de Internet no Brasil (CGI.BR), a aprovação da criação do domínio primário “.jus.br” no âmbito da Internet no Brasil, com a obrigatoriedade de agregar o sistema DNSSEC. Cuida-se de um padrão internacional, que amplia a tecnologia DNS e de um sistema de resolução de nomes mais seguro, que reduz o risco de manipulação de dados e furto de informações por terceiros. A operação do serviço de registro e de publicação de domínios “.jus.br” foi entregue ao CGI.BR com a finalidade deste tomar as providências necessárias por intermédio do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC-BR) (art. 3.º da Res. CNJ 41). Acrescenta-se que a padronização dos endereços eletrônicos do Judiciário foi objeto da Res. CNJ 45, de 18.12.2007. Com tal medida se pretende garantir a integração e a padronização dos nomes eletrônicos dos tribunais espalhados pelo território nacional, facilitando o acesso para a população. Encontrando-se o sistema do processo judicial eletrônico baseado na tecnologia de criptografia de chaves públicas, o que se pretende é coibir os ataques de hackers às páginas oficiais, como já aconteceu anteriormente nos portais do Tribunal Superior Eleitoral e Superior Tribunal de Justiça (STJ).[6] Lembremo-nos de que no âmbito da Justiça Federal, já está em operação a Autoridade Certificadora da Justiça (AC-JUS), devidamente reconhecida pelo ITI (autoridade-Raiz). Esta AC integra o Conselho da Justiça Federal (CJF), o STJ e os cinco Tribunais Regionais Federais do País. Também aderiram à esta AC o STF e outros tribunais superiores, sendo que já se iniciou o trabalho de distribuição de certificados e chaves para juízes federais e servidores. Trata-se da primeira AC do mundo criada e mantida pelo Poder Judiciário. É responsável pela implantação da certificação digital do Judiciário em todas as suas esferas. Desenvolve aplicações específicas para comunicação e troca de documentos, bem como adota políticas de certificação com validade legal, que viabilizam a implantação do processo judicial de informatização. Em São Paulo, o Tribunal de Justiça aderiu à Autoridade Certificadora Serasa (AC-Serasa), entidade credenciada e submetida ao padrão de ICP-Brasil. Entre julho e agosto de 2007, todos os magistrados da 1.ª Instância (1.680) e todos os desembargadores obtiveram a emissão da certificação digital.[7] No intuito de facilitar a disseminação e a massificação da certificação digital no Brasil, em reunião realizada em 29.10.2007, o Comitê Gestor da ICP-Brasil (Cotec), órgão vinculado ao ITI, que regula o funcionamento da Certificação Digital no Brasil, deliberou permitir a emissão de certificados digitais para a população brasileira pelos notários e registradores. A autoridade certificadora notarial (AC notarial) reunirá os notários brasileiros; já a autoridade certificadora brasileira de registro (ACBR) abrangerá os registradores públicos brasileiros (Registro Imobiliário, Registro Civil e Registro de Títulos e Documentos). Dessa forma, os cartórios previstos no art. 236 da Constituição Federal, podem solicitar e obter autorização para funcionar como “Instalações Técnicas”, formalmente vinculadas às suas respectivas autoridades de registro (AR) credenciadas, sendo os serventuários autorizados a atuar como agentes de registro. Para os efeitos regulares dessa atividade, considera-se “instalação técnica” o ambiente físico de uma AR, cujo funcionamento foi devidamente autorizado pelo ITI, onde serão realizadas as atividades de validação e verificação da solicitação de certificados. Tais serviços só poderão ser oferecidos pelas serventias que atenderem os requisitos necessários para obter a concessão e autorização de funcionamento junto ao Cotec, devendo, ainda, atender às determinações do Conselho Nacional de Justiça e da Corregedoria Nacional de Justiça, no tocante aos parâmetros jurídicos para a delegação desta nova atribuição aos notários e registradores.[8] 2.4. Autoridade certificadora da OAB Relativamente à prática de atos processuais por advogado, acrescente-se que a OAB defende a tese de que para essa finalidade somente deve ser admitido o certificado eletrônico expedido pela própria entidade, já que, por lei, lhe foi atribuída a competência exclusiva para promover a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados de toda a República Federativa do Brasil (art. 44, II, da Lei 8.960/94). A novidade é que a entidade já se encontra em condições de emitir o certificado eletrônico.      Em 05 de setembro de 2008, concedeu-se autorização para que a OAB passe a atuar como Autoridade Certificadora de segundo nível, vinculada à AC Certising de primeiro nível e detentora de nova plataforma criptográfica. Dessa forma, a OAB foi credenciada como AC na Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e, por força disto, a OAB poderá fornecer aos advogados de todo o país a assinatura digital para que atuem nos tribunais, fóruns e varas que adotem sistemas de processos judiciais informatizados.[9]  Segundo comunicado divulgado pela Comissão de Tecnologia da Informação do Conselho Federal da OAB, centenas de milhares de advogados inscritos e não suspensos de suas atividades terão de substituir sua carteira funcional. Essa substituição incluirá a confecção de nova carteira, contendo um chip que substituirá o polegar do advogado, permitindo que este faça a assinatura digital para realizar as práticas processuais. Outras novidades da carteira encontram-se na utilização do policarbonato, material mais resistente do que PVC, e na fotografia do profissional, outrora impressa e colorida, será gravada a laser, o que dará maior fidelidade à imagem. Reunindo tais informações, a carteira será acoplada a um leitor de cartão conectado ao computador e uma vez inserida a senha pelo advogado, suas petições poderão ser assinadas digitalmente e dessa forma remetidas eletrônica e diretamente aos tribunais, com a garantia de serem protegidas por um sistema criptografado, que dificultará a ação de eventuais fraudadores de mensagens, pois ações dessa natureza deixarão vestígios que poderão auxiliar na identificação de hackers.[10] Desta forma, tal como ocorre com a AC-JUS, com segurança e confiabilidade a AC-OAB pode autenticar as assinaturas digitais de todos os advogados regularmente inscritos na instituição. Aproveita dizer que no Estado de São Paulo, a AASP, entidade que em 2007 congregava mais de oitenta mil advogados, inaugurou, na sede da entidade, o funcionamento da Autoridade de Registro (AR-AASP) devidamente cadastrada na ICP-Brasil. A partir disso, tornou-se habilitada a atender, identificar e cadastrar os advogados associados, interessados em adquirir o certificado digital, documento essencial para se poder enviar aos tribunais as petições e recursos eletrônicos.[11] Também para a OAB, a questão da segurança é de primordial importância. A entidade se prepara para conceder a assinatura digital aos afiliados inscritos e pretende cumprir esta tarefa com total segurança. O sistema a ser adotado não foge à regra, ou seja, gera um par de chaves criptográficas, sendo uma pública e outra privada, e, por isso, a assinatura digital é o resultado de uma operação matemática baseada em dois parâmetros: um é o resumo matemático do documento que vai ser assinado (conhecido por Hash); e o outro é a chave privada. O resumo matemático do documento criptografado mais a chave privada dão conformidade à assinatura digital, que é própria e única. Quanto à autenticidade da assinatura digital a ser verificada no computador receptor, é preciso que este aparelho extraia do documento o resumo matemático (Hash),[12] e aplique a chave pública para obter a mesma assinatura do emissor. Argumenta-se, ainda, que o sistema assegura até mesmo a integridade do documento, isto é, se ele tiver sido alterado, ainda que minimamente (por exemplo, se tiver um espaço a mais), a seqüência matemática se apresentará modificada e a assinatura digital não será confirmada, ao contrário, será invalidada por não coincidir com o original.[13] Mesmo diante de todas essas garantias de segurança do sistema,[14] pondera-se que o modelo de confiabilidade montado para colocar em prática a informatização do processo judicial não pode ser considerado absolutamente indevassável. Por melhor que seja a técnica de criptografia instalada em qualquer sistema digital do mundo, sempre haverá um grão de vulnerabilidade em sua estrutura, capaz de ser descoberto e violado pelo hacker. E certamente sempre haverá o aprimoramento dos mecanismos de proteção para evitar prejuízo às partes e ao Estado-Juiz. Prevalece, no entanto, o entendimento no sentido de que o certificado digital é um documento eletrônico que oferece a oportunidade ao usuário de utilizar a assinatura digital, permitindo a troca de documentos, com autenticação, sigilo e integridade de conteúdo. 2.5. Assinatura em cadastro do Judiciário A análise se volta agora para o outro modelo de assinatura eletrônica de identificação inequívoca do signatário, isto é, aquele no qual a assinatura eletrônica se perfaz mediante cadastramento do usuário no Poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos (alínea b do inc. III do § 2.º do art. 1.º da Lei 11.419/2006). Primeiramente deve-se conciliar a interpretação da regra acima com outra também prevista na própria Lei de Informatização do Processo Judicial, que se apresenta nos seguintes termos: “O envio de petições e recursos, bem como a prática de atos processuais em geral, por meio eletrônico, serão admitidos mediante uso de assinatura eletrônica, sendo obrigatório o credenciamento prévio no Poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos” (art. 2.º, caput, da Lei 11.419/2006). Ora, se formos interpretar esse dispositivo ao pé da letra, a assinatura eletrônica somente poderá ser obtida pelo advogado mediante cadastramento junto ao Poder Judiciário, eis que obrigatório (é o que diz o texto, conflitando com a letra a do inc. III do § 2.º do art. 1.º da Lei 11.419/2006). Tal raciocínio conduziria à conclusão de que a assinatura eletrônica obtida em sua forma digital (letra a) seria inócua, para fins processuais, já que o credenciamento perante o Judiciário (letra b) constituiria sempre a forma obrigatória de obtenção.[15] Não é desta forma que pensamos. Quando ocorre conflito de normas expedidas pela mesma lei, a interpretação que se deve dar é aquela mais consentânea com a própria finalidade do diploma legal e desde que seja a menos onerosa para as partes. No caso, a Lei de Informatização do Processo Judicial tem por escopo simplificar a tramitação de processos e facilitar a comunicação de atos e a própria transmissão de peças processuais. Em vista disso, se a assinatura digital do advogado basear-se em certificado digital emitido por AC credenciada, torna-se desnecessário o credenciamento prévio no Poder Judiciário (prevalece o disposto na letra a em prejuízo da “obrigatoriedade” anotada na letra b). Preferimos pensar que o legislador quis encontrar uma saída coerente para o longo período de transição que o novo sistema demandará até concluir todas as etapas de implantação do processo judicial eletrônico na totalidade do território brasileiro. Devemos considerar, ainda, que mesmo durante a tramitação do projeto de lei que resultou na edição da Lei de Informatização do Processo Judicial, alguns tribunais e juízos já haviam implantado sistemas informatizados de processamento e acompanhamento de ações judiciais.[16] Daí por que o legislador preferiu optar pelas duas espécies de assinatura eletrônica, notadamente para não desautorizar as experiências tecnológicas já em funcionamento e bem-sucedidas.[17] Estando o sistema plenamente apto a produzir processos informatizados ou semi-informatizados e havendo indefinição do interessado quanto a obter o acesso ao sistema mediante a obtenção de assinatura digital autenticada por AC, a assinatura eletrônica (gênero) poderá ser obtida por via do credenciamento do usuário junto ao Tribunal. Tudo isto sem importar indevida interferência do Judiciário no controle da atividade profissional do operador do direito. Efetuado o credenciamento, bastará ao credenciado digitar o login e a sua senha para ter acesso ao sistema, que foi planejado para operar com segurança. Respeitamos o entendimento contrário manifestado por alguns dignos especialistas,[18] mas, a nosso ver, esse credenciamento tem finalidade certa, restrita, necessária no caso de impossibilidade de se obter a assinatura pela via digital. Ele não é desproporcional, e, com a devida vênia, nenhum prejuízo acarreta para a OAB e para os advogados, ressalvada, é claro, a opção pela obtenção da assinatura digital perante a AC-OAB, conforme anotamos no subitem anterior. [19] 3. Meios eletrônicos admitidos no processo penal Nas linhas acima tivemos oportunidade de destacar diversas modificações inseridas pela Lei 11.419/2006 no Código de Processo Civil. Tais providências impulsionaram com maior vigor a informatização do processo trabalhista e do próprio processo civil. Nessas áreas da Justiça começam a despontar pelo País as Varas Judiciais Digitais, bem como os Juizados Especiais Informatizados, suficientemente equipados para operacionalizar os processos eletrônicos, fato este que tem permitido a obtenção de excelentes resultados no oferecimento da prestação jurisdicional. Também se nota que os Tribunais Superiores (especialmente o STF e o STJ) já implementaram sistemas que permitem a tramitação de recursos interpostos contra decisões de Tribunais de Instâncias inferiores, bem como a propositura de ações de sua competência, tudo por meio de sistema eletrônico. Enquanto o sistema de peticionamento eletrônico se consolida nas áreas mais dinâmicas do Judiciário, na Justiças Estaduais, notadamente no âmbito da Justiça Penal, o progresso tem sido mais lento. Quanto ao processo penal, pode-se dizer que o legislador agiu inicialmente com exagerada timidez. A bem da verdade, a edição da mencionada Lei do Processo Judicial Informatizado, ao contrário do que foi feito em relação à lei processual civil, não provocou qualquer inovação ou modificação explicita de dispositivo do Código de Processo Penal. Esta cautela decorre do entendimento de que no embate existente entre o jus puniendi e o jus libertatis, presente em toda ação penal, o direito à liberdade sobressai como bem de inestimável valor para a humanidade. Daí o cuidado em se deixar para momento posterior a autorização que faculte a introdução de métodos eletrônicos. Mas eles também já começaram a penetrar no processo penal. Exemplo disto pode ser encontrado na norma que dispõe sobre a realização da audiência de instrução e julgamento, na qual se dá a concentração de atos pertinentes à produção das provas, mediante as quais, as partes procuram demonstrar a veracidade de suas alegações. Deu-se um importante passo rumo à admissão dos meios tecnológicos para a simplificação dos atos, pois, sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios e recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações. E no caso de registro por meio audiovisual, será encaminhado às partes cópia do registro original, sem necessidade de transcrição (art. 405, §§ 1º e 2º do CPP, com a redação dada pela Lei 11.719/2008). Destarte, estando tudo gravado, mesmo em caso de prova colhida pelo juízo deprecado, o julgador da causa, e o próprio tribunal, em caso de recurso, poderão rever todos os atos e provas com o apoio da tecnologia. Mais a mais, em seu aspecto formal, isto é, no tocante ao modo como podem ser os atos praticados, evidentes são os sinais de que o processo penal passa a ser moldado por uma nova legislação que o conduz inevitavelmente ao estágio de processo semi-informatizado. Papel relevante nessa moldagem é de ser atribuído à edição da Lei n. 11.900, de 08 de janeiro de 2009, que prevê a possibilidade de realização não apenas do interrogatório, mas também de outros atos processuais por sistema de videoconferência. Dessa forma, foram modificados e inseridos alguns dispositivos no Código de Processo Penal, a respeito do quais vamos aduzir alguns comentários nos subitens abaixo. 3.1 Videoconferência Define-se a videoconferência (ou teleconferência) como uma sessão de comunicação em vídeo entre duas ou mais pessoas geograficamente separadas. Trata-se de mais um meio tecnológico ligado à Internet, que já foi posto em prática por alguns tribunais brasileiros com o objetivo de otimizar a realização de atos processuais e também para facilitar a própria comunicação entre os seus órgãos. Consideramos que a convalidação do uso da videoconferência no processo penal foi selada com o surgimento da Lei de Informatização do Processo Judicial. Segundo dispõe este diploma, são válidos os atos processuais praticados por meio eletrônico, desde que tenham atingido sua finalidade e não tenha havido prejuízo para as partes (art. 19 da Lei 11.419/2006). Ora, a aplicação analógica e a interpretação extensiva (ambas autorizadas pelo art. 3º, CPP) são benéficas para se atingir os fins objetivados pelo processo penal e pela justiça penal. Assim, podemos afirmar que a combinação dessas normas dá fôlego às iniciativas processuais pioneiras adotadas pelos tribunais e varas criminais espalhados pelo País no tocante à utilização do sistema de videoconferência na realização de atos. É óbvio que para ser colocado em operação, interligando na rede a comunicação audiovisual entre as varas judiciais e edifícios externos, o sistema de audiência por videoconferência demanda necessariamente o uso de câmeras de vídeo, aparelhos de televisão, aparelhos telefônicos e computadores, além da adaptação de salas especiais apropriadas ao funcionamento dessa tecnologia. Parece relevante acrescentar que o sistema informatizado em análise não é uma iniciativa pioneira de nossos tribunais. Muitos países vêm regulamentando e autorizando a realização de atos processuais com o emprego de tecnologias audiovisuais, sempre com o intuito de facilitar a distribuição da Justiça e acelerar a resposta penal adequada para os criminosos. Por exemplo, nos EUA, desde 1983, está prevista a utilização do vídeo-link em matéria processual, tanto no âmbito federal quanto no estadual, sendo permitida a realização de depoimentos e interrogatórios com o fito de evitar o contato das vítimas com seus agressores, servindo a medida também para preservar a integridade dos acusados nos casos de grande repercussão social. Na Itália, primeiro país europeu a introduzir a utilização da videoconferência, convertendo-se no marco da atuação judicial contra a máfia, já em 1992, passou a admitir que as testemunhas prestassem seus depoimentos em lugares remotos e secretos, a fim de lhes garantir a segurança.[20] Atualmente emprega-se essa tecnologia para a oitiva de presos perigosos, em hipóteses estritamente definidas por sua legislação. Mais um exemplo: Lei italiana 11, de 07.01.1998, que trata da videoconferência (participação processual a distância), promulgada para reduzir o deslocamento de presos e obter economia processual. Giovanni Buonomo, ao discorrer sobre o processo telemático italiano, afirma que a tecnologia da informação (que permite ver por meio da videoconferência os sujeitos fisicamente distantes) constitui “instrumento de atuação dos valores da democracia ínsitos no contraditório entre as partes. E que esses valores são, em outros termos, o instrumento pelo qual se garante a eficiência do serviço judiciário, o diálogo do juiz com as partes, a oralidade das tratativas e a imediatidade de uma decisão colada na realidade social da qual o juiz é parte vivente”.[21] Ampliando a adoção dessa sistemática, a União Européia ratificou, em 2000, o Tratado de Assistência Judicial em matéria penal, o qual, em seu art. 10, criou a possibilidade de realização de atos processuais com a utilização de tecnologia audiovisual. Em França, por força da Lei de 15.11.2001, deu-se a reforma do Código de Processo Penal (art.706.71), estando previsto que, “quando as necessidades do inquérito ou da instrução o justifiquem, pode utilizar-se a videoconferência para a inquirição ou interrogatório de uma ou várias pessoas”. A própria lei dispõe que “estas disposições são igualmente aplicáveis para a execução simultânea, em um ponto do território da República e outro situado no exterior, de demanda de cooperação judicial internacional proveniente de autoridades judiciais estrangeiras ou de petições formuladas a autoridades judiciais francesas para execução no estrangeiro”. E a mesma lei ainda autoriza a utilização desta tecnologia para a proteção de determinadas testemunhas.[22] Igualmente no Reino Unido, por força da Lei Geral sobre Cooperação Internacional em matéria criminal, desde 2003 admite-se a coleta de depoimentos testemunhais por meio de videoconferência na Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e no País de Gales. Na Espanha, a Lei Orgânica do Poder Judiciário (art. 230) admite a tomada de depoimentos por videoconferência na jurisdição criminal, especialmente para a preservação de vítimas e testemunhas, a fim de que não sejam vistas e/ou ameaçadas pelos acusados. José De La Mata Amaya, estudioso dessa matéria, diz que a “Austrália, Canadá e a Índia, países caracterizados por suas dimensões geográficas extraordinárias, também implementaram o sistema como uma resposta ao seu próprio gigantismo geográfico, com inversão imprescindível para garantir o acesso a Justiça em comunidades remotas, ou para reduzir os custos do processo. E acrescenta que em outros casos, como em Singapura, a aposta integral nas novas tecnologias incorpora a videoconferência dentro de seus planos de modernização da justiça”.[23] Também está prevista a possibilidade da utilização da videoconferência no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em vigor no âmbito internacional desde 1.º.07.2002, e que teve seu texto aprovado pelo nosso Direito por meio do Dec. Legislativo 112/2002, sendo em seguida promulgado entre nós pelo Dec. Presidencial 4.388, de 25.09.2002. Nele está estabelecido que o Tribunal pode permitir que uma testemunha preste declarações oralmente ou por meio de gravação em vídeo ou áudio, sem que isto importe em prejuízo para os direitos do acusado e nem ser incompatíveis com eles (cf. arts. 68, n. 2, e 69, n. 2). Muitas são as evidências de que a utilização da videoconferência vem sendo validamente reconhecida no direito de nações estrangeiras. Além do quanto já foi anotado, não podemos olvidar que a ONU a inseriu em diversos documentos internacionais. É o que se verifica na Convenção da ONU contra a Corrupção, de dezembro de 2003, também chamada de Convenção de Mérida, que traz disposições sobre o sistema de videoconferência, em seus arts. 32, § 2.º, e 46, § 18. Igualmente na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, denominada Convenção de Palermo, está previsto o uso da videoconferência. Segundo dispõe o seu art. 18, n. 18, “quando houver necessidade de oitiva por autoridade judicial de uma pessoa de outro país, na qualidade de testemunha ou perito, poderá ser requerida sua audição por videoconferência.” E mais: nos termos desta Convenção, os países-partes podem acordar em que a audição seja conduzida por autoridade judicial do país requerente, assistida por outra do país requerido. Vale a pena ressaltar que essa Convenção de Palermo foi ratificada pelo Brasil, sendo desta forma introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Dec. 5.015, de 12.03.2004. Certo é que vários atos da instrução processual podem ser realizados pelo sistema de videoconferência, tais como: videodepoimento; vídeointerrogatório; vídeorreconhecimento; vídeossustentação da defesa perante tribunais. Nesta exposição vamos abordar os dois primeiros.[24]  3.2 Videodepoimento Há situações, plenamente justificáveis, em que se torna inviável a realização da audiência única contando com a presença, no mesmo dia, local e horário, de todos aqueles que devam participar da instrução do processo (tais como a vítima, testemunhas, perito, intérprete etc.).  É claro que a regra geral a ser aplicada é a de que o réu deve presenciar o depoimento da testemunha, do ofendido e das demais provas contra ele produzidas. Trata-se de respeitar o direito de confrontação, que se confere ao acusado na produção da prova oral (teoria do right of confrontation). Todavia, essa regra não é absoluta, tanto que o legislador assim a excepciona: “Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor”. Adotando esta medida, o juiz a fará constar do termo de audiência, assim como os motivos que a determinaram (art. 217, caput, e parágrafo único, c.c. o art. 185, § 2º, III, do CPP). Deduz-se então que o videodepoimento (da testemunha ou da vítima) poderá ser determinado desde que se coloque em risco o descobrimento da verdade mediante a possibilidade de o acusado causar: humilhação (vexame, afronta, ultraje); temor (medo);  ou sério constrangimento (coação). Deverá o juiz fundamentar sua decisão numa dessas hipóteses, com expressa referência aos motivos que a determinaram, sob pena de nulidade do ato. Mais ainda: o depoimento virtual poderá ser colhido quando a testemunha ou o ofendido estiver preso (§§ 8º e 9º do art. 185, CPP). Acrescenta-se que, antes mesmo da edição das Leis ns. 11.690/2008 e 11.900/2009 (ou seja, aquelas que introduziram as modificações previstas no art. 217 e nos parágrafos do artigo 185, CPP), a viabilidade da produção de prova oral por meio eletrônico já tinha sido textualmente admitida por alguns tribunais brasileiros. Vamos trazer, como exemplo, o Provimento COGE 74, de 11.01.2007, expedido pela Corregedoria-Geral da Justiça Federal da 3.ª Região, que autoriza os juízes federais, nos locais em que já se encontrem instalados os equipamentos próprios, a realizarem, pelo sistema de teleaudiência, a instrução penal (oitiva de testemunhas de acusação e defesa) de réus presos nos estabelecimentos prisionais Desembargador Adriano Marrey, localizado em Guarulhos, e na Penitenciária Cabo PM Marcelo Pires da Silva, sediada em Itaí, bem assim naqueles que vierem a ser integrados posteriormente. 3.3 Carta precatória e videoconferência Toda oitiva de testemunha que resida fora da jurisdição do juízo será colhida por carta precatória, nos termos do art. 222, §§ 1º e 2º, CPP. A forma tradicional de se realizar este ato (expedição de carta escrita em papel e enviada pelo Correio) deve ser futuramente abandonada, eis que também aqui se consumou o ingresso da tecnologia para fins de agilização da tomada de depoimento. Tal modificação foi ditada pela Lei n. 11.900/2009, que incluiu o § 3º no art. 222, CPP, e, especialmente no que toca à carta precatória, quando a testemunha morar fora da jurisdição do juiz, estabelece que a sua oitiva pode ser realizada por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real. Nesse caso, deve-se permitir a presença do defensor e a transmissão pode ser concretizada, inclusive, durante a realização da audiência de instrução e julgamento. Quanto às cartas rogatórias, deve-se considerar a determinação do legislador no sentido de que a expedição de tais documentos só pode ocorrer se for demonstrada previamente a sua imprescindibilidade, e em tal caso a parte requerente arcará com os custos de envio (art. 222-A, caput, CPP). Sem embargo dessa pronta liberação legal para a aplicação do sistema, o certo é que a sua implementação, no tocante ao envio e recebimento de cartas judiciais por meio eletrônico, pressupõe a disseminação da informatização tecnológica na estrutura dos mais diversos órgãos e instâncias da justiça penal. 3.4 Videointerrogatório Sem sombra de dúvida, o ato processual penal apoiado nos modernos sistemas de tecnologia da informação, que maior número de críticas doutrinárias recebeu até agora, é o vídeointerrogatório. Vamos traçar o resumo da problemática que se criou em torno do assunto. Recorde-se que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, inspirando-se na Lei Estadual 11.819/2005, autorizou a realização de interrogatórios por videoconferência. Essa sistemática passou a ser adotada em algumas Varas Criminais da Capital. Diante disso, respeitáveis autores se opuseram formando uma corrente doutrinária que apontou os seguintes empecilhos à aceitação do sistema de vídeointerrogatório: (1) desrespeito ao direito da ampla defesa; (2) descrédito à dignidade da pessoa humana; (3) descumprimento da cláusula do devido processo legal; (4) ofensa aos pactos e acordos internacionais; (5) restrição à publicidade dos atos processuais. Em contrapartida, outra corrente formada pelos defensores do videointerrogatório, além de negar a existência de inconstitucionalidade da lei ou de qualquer dos vícios acima apontados, sustentou a sua legitimidade e ainda descreveu uma série de benefícios proporcionados pelo sistema, tais como: (a) sua compatibilidade com o princípio constitucional da celeridade processual (art. 5.º, LXXVIII, CF); (b) o fato de o sistema atender, com perfeição, ao princípio da efetividade da jurisdição (art. 5.º, XXXV, CF); (c) existir pactos e acordos internacionais recentes admitindo a utilização da videoconferência na realização de atos processuais; (d) evitar o deslocamento de réus a grandes distâncias, economizando tempo e recursos materiais; (e) diminuir o risco de fuga ou resgate de criminosos perigosos; (f) propiciar maior segurança aos juízes, membros do Ministério Público, advogados, serventuários da Justiça, população e ao próprio detento; (g) liberar os policiais atuantes na condução de presos para a ação em outras missões de segurança pública e de investigação; (h) reduzir gastos utilizados na escolta e no transporte de presos. Levou-se a questão ao conhecimento dos Tribunais Superiores. No STJ, o videointerrogatório não foi de pronto considerado ilegal, sendo editadas algumas decisões confirmando a sua validade. Já no STF, após terem sido negadas algumas liminares, surgiu o julgado que anulou um processo “ante a falta de previsão legal para a realização do interrogatório por videoconferência”.[25]  Na sequência, também no STF, por maioria de votos, novamente declarou a rejeição do interrogatório pelo sistema de videoconferência, agora sob o fundamento de que a mencionada Lei Estadual 11.819/2005, padecia de vício de origem, já que compete privativamente à União legislar sobre direito processual (art. 22, I, da CF). [26] A respeito desta respeitável decisão, rogamos vênia para sustentar o nosso entendimento, no sentido de que o alegado vício de origem não existia, pois a regulamentação de que tratou referida lei estadual envolvia matéria de procedimento (ou seja, a forma como os atos podem ser praticados) e não de processo (matéria de fundo). E isto é permitido nos termos do art. 24, XI, da CF. De qualquer modo, hoje a situação é outra. Afinal, tais acontecimentos precipitaram a edição da mencionada Lei n. 11.900, de 08 de janeiro de 2009, por força da qual, o videointerrogatório passou a ser realidade em nosso ordenamento jurídico. Todavia, esta modalidade de interrogatório virtual é autorizada em caráter excepcional, podendo o juiz, em decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:  I – prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento; II – viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal; III – impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 do CPP; IV- responder a gravíssima questão de ordem pública (tudo conforme dispõe a atual redação do § 2º, incs. I, II, III, IV do art. 185, CPP). Se não houver fundamentação baseada em circunstâncias reais do caso concreto, o ato será declarado nulo. Em relação às condicionantes impostas, quanto às duas primeiras não há observações adicionais a fazer. Quanto à terceira, será necessário que o juiz tenha prévio conhecimento de que o réu influenciará no ânimo de testemunha ou da vítima, pois as partes devem ser intimadas com dez dias de antecedência da realização do ato (§3º, art. 185, CPP). E sobre a quarta e última dessas motivações, ou seja, existência de “gravíssima” questão de ordem pública, trata-se de situação que fica de certa forma submetida ao critério subjetivo do julgador, a quem caberá explicitar a situação que possa ser assim considerada.   Indo além, o legislador determina que sejam tomadas as cautelas que visam preservar o regular desenvolvimento do devido processo legal, a saber: 1) Antes de se iniciar o interrogatório por videoconferência, o preso poderá acompanhar, pelo mesmo sistema tecnológico, a realização de todos os atos da audiência única de instrução e julgamento de que tratam os arts. 400, 411 e 531 do CPP; 2) Em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor; se realizado por videoconferência, fica também garantido o acesso a canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que esteja no presídio e advogado presente na sala de audiência do Fórum, e entre este e o preso; 3) A sala reservada no estabelecimento prisional para a realização de atos processuais por sistema de videoconferência será fiscalizada pelos corregedores e pelo juiz de cada causa, como também pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil (tudo conforme consta dos §§ 4º, 5º e 6º do referido art. 185, CPP). Os requisitos e cautelas mencionados nos parágrafos acima serão aplicados, no que couber, na realização de outros atos processuais que dependam da participação de pessoa que esteja presa. Incluem-se neste rol: a acareação; o reconhecimento de pessoas e coisas; a inquirição de testemunha; a tomada de declarações do ofendido (é o que determina o § 8º, art. 185, CPP). Em tais hipóteses se garantirá o acompanhamento do ato processual pelo acusado e seu defensor (§ 9º, art. 185, CPP). De sorte que, com a edição da Lei 11.900/2009, desapareceu o aparente vício formal de constitucionalidade (inexistência de lei federal). Ademais, convém sublinhar que o modelo operacional do sistema de videoconferência adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, supera, em muito, as cautelas do devido processo legal exigidas pela recentíssima lei federal. Atende-se perfeitamente às exigências dos postulados da legítima defesa e do contraditório. O julgador tem plenas condições de comandar os sistemas eletrônicos disponibilizados para o ato, podendo captar visualmente todas as expressões faciais do depoente ou do réu, bem como os movimentos que ocorrerem na sala de audiência. Acobertada de legalidade e como se trata de matéria processual, em nosso entendimento, pode ser aplicada retroativamente naqueles processos em que os acusados foram interrogados desta forma, convalidando-se os atos, desde que não tenha ocorrido prejuízo a sua defesa. Acolhe-se o princípio da instrumentalidade das formas, que se inspira em regra processual basilar, segundo a qual, os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, preencherem a finalidade essencial (art. 572, II, CPP). Em razão disso e de tudo quanto foi dito acima, conclui-se que não se declara a nulidade de ato processual sem que ocorra prejuízo para a parte (art. 19 da Lei 11.419/2006, combinado com o art. 563, CPP); e muito menos se declara a nulidade de ato que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa (art. 566, CPP). Mantemos o nosso entendimento no sentido de que o interrogatório realizado com o emprego dessa moderna tecnologia é válido.  Não defendemos a sua utilização como regra geral e indiscriminada, pois o ideal é que o interrogatório seja realizado pessoalmente, na presença do juiz (como, aliás, determina o art. 185, caput, e § 1º, CPP). Mas, havendo justificativa, expressamente consignada pelo magistrado nos autos, não encontramos óbice que prejudique o pleno exercício da ampla defesa ou qualquer outro direito sagrado do réu. Sem embargo deste posicionamento, como ainda não estamos lidando com uma questão pacificada pela jurisprudência, certamente o STF será, em breve tempo, novamente provocado a se manifestar sobre os argumentos de inconstitucionalidade e nulidade supostamente impregnados na lei em foco, aliás já levantados, como vimos, pela corrente doutrinária contrária à implantação do videointerrogatório. A nossa esperança é a de que, para o bem da sociedade da informação, seja confirmada a constitucionalidade da Lei 11.900/2009, pois, reiterando o raciocínio já exposto, a legislação em espécie não fere a garantia do devido processo legal. 4. Conclusão Desta breve noção sobre o aproveitamento de sistemas tecnológicos no processo judicial em geral, podemos abstrair, que somente iniciamos a caminhada por uma estrada cujo percurso não está perfeitamente delimitado. A distância a ser percorrida na viagem com destino à informatização do processo ainda é uma incógnita para todos nós. O projeto arquitetônico do processo judicial eletrônico ainda se encontra em sua fase preambular de desenvolvimento. Só temos a certeza de que a sua utilização se tornará, em apenas alguns anos, o sistema padronizado e de acesso rotineiro nos pedidos de tutela jurisdicional. A nosso ver, o processo judicial “presencial” não irá desaparecer totalmente, notadamente na área penal, mas a informatização geral da maioria dos procedimentos judiciais parece ser inevitável. Ao finalizarmos este comentário, voltamos a mencionar o professor Zuffo. Em uma de suas crônicas futuristas (pós-Infoera), antecipando fatos e situações prováveis que ocorrerão no ano 2038, o ilustre cientista narra o seguinte acontecimento hipotético. “Naquele ano (2038), Gaspar havia assassinado um ser humano. E, mais ainda, havia permitido que toda informação contida no cérebro da vítima fosse destruída, tornando irrecuperável, mesmo no futuro, a reconstituição total dessa pessoa. O levantamento das condições em que o crime ocorrera e de suas motivações foi rápido, realizado por meio das declarações de Gaspar, das pistas e das provas encontradas, e por intermédio do perfil psicológico e características do DNA do réu. Simulações precisas permitiram a reconstituição detalhada do crime e mostravam minuciosamente, por meio de avatares, como esse ato violento fora executado. O julgamento também foi rápido. Os advogados de Gaspar, reais e virtuais, levantaram precedentes e criaram simulações alternativas por meio de variações dos parâmetros, porém a culpa do réu, nesse caso, estava cabalmente comprovada. Os jurados, embora brasileiros, encontravam-se em diferentes pontos do planeta. Todos eram humanos, pois ainda não se aceita que VANVs (VANV -Vida Artificial Neuronal Virtual) venham arbitrar questões humanas, por menores que sejam. O júri popular, em si, seguindo a tradição, é também agora colocado em isolamento, porém apenas durante algumas horas, enquanto tomam conhecimento do caso e de sua reconstituição virtual, trocam idéias e analisam situações alternativas emuladas por seus clones pessoais. Chegando à conclusão, a comunicam ao juiz, que emite a sentença. No caso de Gaspar, autor de um crime considerado hediondo, foi condenado a 25 anos de prisão virtual, cuja punição decorre de uma nova tecnologia prisional em que, por meio de uma pastilha implantada em comunicação com seu cérebro, faz com que o condenado veja-se permanentemente em uma cela individual, como se estivesse em uma prisão real. É proibida qualquer comunicação com o mundo externo, embora dependendo do tipo de condenação o presidiário possa ter acesso a programas televisivos não interativos, e a livros ou informações que possam enriquecer seu conhecimento cultural. Semanalmente existe direito ao tradicional banho de sol, agora virtual. Fisicamente, o preso pode estar em uma colônia prisional aberta, tomando sol diariamente e se alimentando bem, porém as informações que chegam ao seu cérebro são apenas aquelas ditadas pela sua sentença. Com isso, o preso vê-se sempre dentro de uma cela, com exercícios e banhos de sol semanais. Todos os demais presos que este sente e vê são na verdade avatares virtuais, com função precípua de recuperá-lo e educá-lo para a sociedade. Uma eventual agressão deste preso sobre um avatar, quer seja presidiário, quer seja guarda do presídio, coloca-o em uma cela solitária virtual. Presos mais perigosos, que poderiam ser libertados por seus comparsas, são colocados em órbita geoestacionária, com sistemas inerciais de gravidade artificial e sob a supervisão de Gaia. Há mais de dez anos não há nenhum caso de fuga, de revolta de presos ou de presos libertados à força de prisões virtuais, a não ser que sejam naturalmente integrados à sociedade.”[27] Obviamente não temos condições de saber se o professor Zuffo fez mais uma previsão certeira, tal qual aquela mencionada no principio desta exposição, quando anteviu a ocorrência da grave crise mundial que se abateu sobre os empregos em geral. De fato, a única certeza que agora temos é a de que o desenvolvimento tecnológico deve ser aproveitado plenamente pelo Estado em seus procedimentos e nas atividades de manutenção da segurança e da paz social. Claro que a tecnologia, por si, não resolverá todos os problemas, pois à sua frente, dominando a máquina, sempre estará o homem. Mas, a Justiça dela necessita utilizar em seus procedimentos para otimizar a prestação jurisdicional. Por derradeiro é preciso dizer, que no raio de atuação do futuro bacharel em Direito, seja qual for o ofício jurídico que vier exercer, deverá o profissional desta área demonstrar ser possuidor de plenos conhecimentos jurídico-legais, teóricos, práticos e jurisprudenciais, principalmente em relação àqueles que necessariamente envolvem a preservação das garantias públicas e os direitos fundamentais conquistados pela humanidade. Mas não é só. Será preciso demonstrar também que está tecnicamente preparado para dominar os procedimentos judiciais eletrônicos que forem implantados ao longo do tempo. Dessa realidade não será possível se afastar. Daí a atribuição relevante que desde hoje se entrega às Escolas Superiores da Magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, da Polícia, bem como às Faculdades de Direito. Todas as instituições educacionais e preparatórias da atividade técnico-jurídica devem proporcionar aos futuros operadores do Direito os melhores ensinamentos jurídicos, mas, também devem dar-lhes as condições necessárias para que possam compreender e amealhar os conhecimentos básicos necessários que os capacitem a exercer com desenvoltura e eficiência as atividades práticas em processos judiciais eletrônicos.   Referências bibliográficas ALMEIDA, José Raul Gavião de. O interrogatório à distância. Tese (Doutorado) –Faculdade de Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2000. (sob a orientação do Prof. Dr. Candido Rangel Dinamarco). ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Processo eletrônico e teoria geral do processo eletrônico. A informatização judicial no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. ARAS, Vladimir. Videoconferência no processo penal. Jus Navigandi, a. 9, n. 585, Teresina, 12.02.2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6311>. Acesso em: 13 ago. 2005. _______. O teleinterrogatório no Brasil, Revista Consulex, s. 1, 31.05.2003. ATHENIENSE, Alexandre. As controvérsias do peticionamento eletrônico após a Lei n. 11.419/2006. Migalhas de peso. <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=51565>. Acesso em: 07 jan. 2008. _______. Limites do monitoramento: tecnologia é para garantir segurança, e não para violar intimidade. DNT – O direito e as novas tecnologias. Disponível em: <http://www.dnt.adv.br>. Acesso em: 11 out. 2007. _______. Os desafios da informatização processual na justiça brasileira com a Lei 11.419/2006. Disponível em:  <http://www.migalhas.com.br/aspx?cod=36923>. Acesso em 22 mar. 2007. _______. Modalidades da assinatura digital. Blog – O Direito e as novas tecnologias. Disponível em http://feedblitz.com/r.asp?=1885&f=117749&u=5520636 (10.09.2008). BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A Lei Estadual n. 11.819, de 5/1/05, e o interrogatório por        videoconferência: primeiras impressões. Boletim IBCCrim, v. 12, n. 14, p. 2, mar. 2005. BARROS, Marco Antonio de. Tutela punitiva tecnológica. In: PAESANI, Liliana Minardi (Coord.). O direito na sociedade da informação. São Paulo: Atlas, 2007. _______; ROMÃO, César Eduardo Lavoura. Internet e videoconferência no processo penal. Revista CEJ, ano X, n. 32, p. 116-125, jan-mar. 2006. BICUDO, Tatiana Viggiani. Interrogatório por videoconferência – Um outro ponto de vista. Bol. IBCCrim, São Paulo, n. 179, p. 23, out. 2007. BOTELHO, Fernando Netto. Videoconferência na Justiça. Disponível em: http://sunweb-6.tjmg.gov.br/ejef/ead/mod/resource/view.php?id=103. Acesso em 13 jan. 2006. BRANCO, Tales Castelo. Parecer sobre interrogatório on line. Boletim IBCCrim. São Paulo, n. 124, mar. 2003. BRANDÃO, Edison Aparecido. Do interrogatório por videoconferência. Revista dos Tribunais, v. 87, n. 755, p. 504-506, set. 1998. _______. “É positivo o projeto de lei que autoriza o uso da videoconferência em interrogatórios? Sim: vítima do conservadorismo”. Folha de S. Paulo, Opinião A3, 22.11.2008. BRASIL. Ministério da Ciência e da Tecnologia. Sociedade da Informação no Brasil – Livro Verde. Brasília, setembro, 2000. BUONOMO, Giovanni. Processo telematico e firma digitale. Milano: Giuffrè, 2004. BUFFA, Francesco. Il processo civile telematico – La giustizia informatizzata. Milano: Giuffrè, 2002. CALMON, Petrônio. Comentários à lei de informatização do processo judicial. Rio de Janeiro: Forense, 2007. CARVALHO, Luiza de. Judiciário brasileiro terá em breve primeira esfera totalmente virtual. Disponível em <http://www.aasp.org.br/aasp/imprensa/clipping/cli_noticia.asp?idnot=3193> Clipping Eletrônico AASP Acesso em: 4.jun.2008. CASAGRANDE, Ary et al. Manifesto crítico a interrogatórios e audiências por videoconferência. Juízes para a Democracia, São Paulo, v. 6, fasc. 29, p. 6-7, jul.-set. 2007. CASTRO FERREIRA, Ana Amélia Menna Barreto de. Questões sobre o processo judicial informatizado. Disponível em Migalhas: pílulas de informação: <http://www.migalhas.com.br/aspx?cod=55582>. Acesso em: 11 mar. 2008. CATEB, Alexandre Bueno; CASTRO FERREIRA, Ana Amélia Menna Barreto de. Poder Judiciário: fragilidade da comunicação entre órgãos jurisdicionais. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br.cod=43306>. Acesso em: 09 ago. 2007. (Publicado originalmente no site da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes, do TJMG). CAVALHEIRO, Gelson Luiz da Silva. Interrogatório virtual: Justiça real? Disponível em: http://www.ufsm.br/direito/artigos/processo penal/interrogatório_virtual.htm Acesso em 11 out.2005. CLEMENTINO, Edilberto Barbosa. Processo judicial eletrônico. Curitiba: Juruá, 2007. COSTA, Marcos da; MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Duas óticas acerca da informatização dos processos judiciais. Disponível em: <htpp://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3228>. D’AGOSTINO, Rosanne. Informatização revoluciona Judiciário e também a sociedade. Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/noticia/43434.shtml>. Acesso em 16 out. 2007. DE LUCCA, Newton; e SIMÃO FILHO, Adalberto (Coords.). Direito e internet – Aspectos jurídicos relevantes. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005. DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. DÍAZ-SANTOS, Maria Rosário Diego; SANTOS, Marino Barbero (Coord.). Criminalidad, médios de comunicación y proceso penal. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2000. D’URSO, Flávia. A videoconferência na crise do constitucionalismo democrático. Boletim IBCCrim, São Paulo, v. 11, n. 129, p. 2, ago. 2003. D’URSO, Luiz Flávio Borges. O interrogatório por teleconferência: uma desagradável Justiça virtual. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, v. 3, n. 17, p. 42-44, dez. 2002/jan. 2003. FERNANDES, Antonio Scarance. A inconstitucionalidade da lei estadual sobre videoconferência. Bol. IBCCrim, São Paulo, ano 12, n. 147, fev. 2005. FRANÇA, Henrique de Azevedo Ferreira; QUEIROZ, Regis Magalhães Soares de. Assinatura digital e a cadeia de autoridades certificadoras. In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coords.). Direito e Internet – Aspectos jurídicos relevantes. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005. GOMES, Luiz Flávio. Era digital, justiça informatizada. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, ano III, n. 17, p. 40-41, dez 2002/jan. 2003. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Garantismo à paulista (a propósito da videoconferência). Bol. IBCCrim, São Paulo, ano 12, n. 147, p. 6, fev. 2005. IGNACIO, Laura. Desafio para 2008 é o foco no cidadão – Começou a funcionar o peticionamento eletrônico do TJSP. Gazeta Mercantil – Direito Corporativo, São Paulo, 10 set. 2007. A, p. 10 INVERNIZZI, Gabriela. OAB lança carteira com chip para assinatura digital. Revista Consultor Jurídico, 13 out. 2007. KAMINSKI, Omar. Judiciário teve de enfrentar desafio da tecnologia. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <http://conju.estadao.com.br/static/tex/62451?display_mode=print>. Acesso em: 20 dez. 2007. LOPES, Leopoldo Fernandes da Silva. Processo e procedimento judicial virtual – comentários à Lei 11.419/06 e suas importantes inovações. SAJ – Sistema de Automação da Justiça. Disponível em: <http://www.softplan.com.br/saj/artigos.do?id=16>. Acesso em: 14 set. 2007. MACHADO, Agapito. Juizados federais virtuais. Revista CEJ, Brasília, n. 31, p. 75-84, out.-dez. 2005. MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Direito e informática: uma abordagem jurídica sobre criptografia (A assinatura digital e a força probante de documentos eletrônicos). Rio de Janeiro: Forense, 2002. MARÇAL, Sérgio Pinheiro. A virtualização do Judiciário. Clipping Eletrônico. AASP. Disponível em: <http://www.aasp.org.br/aasp/imprensa/clipping/cli_noticia.asp?idnot=1295>. Acesso em: 21 ago. 2007. MARQUES, Ana Margarida; ANJOS, Mafalda; VAZ, Sónia Queiroz. 101 perguntas e respostas do direito da internet e da informática. Lisboa: Centro Atlântico, 2002. MATA AMAYA, José de la. La utilización de la videoconferência em las actuaciones judiciales. Actualidad Penal, Madrid, n. 47-48, p. 1267-1286, 16-19 dez. 2002. MENKE, Fabiano. Assinatura eletrônica no direito brasileiro. São Paulo: RT, 2005. MORAES, Maurício Zanoide de. Interrogatório: uma leitura constitucional. In: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 334-343. NALINI, Leandro. Videoconferência: bits de cidadania. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/cod=48291>. Acesso em: 06 nov. 2007. ______. Visão provinciana impede a evolução da videoconferência. Revista Consultor Jurídico. São Paulo, 16 ago. 2005. Disponível em <http://conjur.estadao.com.br/static/text/37119,1> NALINI, José Renato. A utopia da justiça virtual. In: VALLE, Regina Ribeiro do (Org.). E-dicas: o direito na sociedade da informação. São Paulo: Usina do Livro, 2005. NARANJO, Alfredo Muñoz. El acceso de los medios de comunicación audiovisuales a las salas de audiencia y derecho a la intimidad. In: SANTOS, Marino Barbero; DÍAZ-SANTOS, Maria Rosário Diego (Coord.). Criminalidad, médios de comunicación y proceso penal. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2000. OLIVEIRA, Alexandre Vidigal de. Processo virtual e morosidade real. Migalhas de peso. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/aspx?cod=56377>. Acesso em: 24 mar. 2008. OLIVEIRA, Edmundo. Direito penal do futuro. A prisão virtual. Rio de Janeiro: Forense, 2007. OPICE BLUM, Renato M. S.; BRUNO, Marcos Gomes Silva; ABRUSIO, Juliana Canha (Coords.). Manual de direito eletrônico e internet. São Paulo: Aduaneiras/Lex, 2007. _______. Questões atuais de direito eletrônico. Carta Forense, ano V, n. 45, fev. 2007. PEREIRA, Joel Timóteo Ramos. Compêndio jurídico da sociedade da informação. Lisboa: Quid Juris, 2004. PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. PINTO, Ronaldo Batista. Interrogatório on line ou virtual. Revista APMP em Reflexão,, São Paulo: APMP (Associação Paulista do Ministério Público), ano II, n. 16, p. 18-27, maio 2006. REINALDO FILHO, Demócrito. A exibição da prova eletrônica em juízo – Necessidade de alteração das  regras do processo civil? Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/aspx?/cod=31031>. Acesso em: 10 out. 2006. _______. A garantia de identificação das partes nos sistemas para transmissão de  peças processuais em meio eletrônico – O modelo da Lei 11.419/06. Disponível em:   <http://www.migalhas.com.br/aspx?cod=35826>. Acesso em: 23 fev. 2007. _______.Comunicação eletrônica de atos processuais na Lei 11.419/06. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/aspx?cod=38335>. Acesso em: 26 abr. 2007. _______. Responsabilidade por publicações na internet. Rio de Janeiro: Forense, 2005. SAMPAIO, Denis. Lei n. 4.554 de 02.06.05 – Mais uma aberração jurídica no estado do Rio de Janeiro: interrogatório por videoconferência. Bol. IBCCrim, São Paulo, ano 13, n. 154, p. 8, set. 2005. ZUFFO, João Antonio. Flagrantes da vida no futuro. São Paulo: Saraiva, 2007. ______.  A sociedade e a economia no novo milênio: os empregos e as empresas no turbulento  alvorecer          do século XXI, livro 2 – macroeconomia e empregos. Barueri, SP : Manole, 2003, p. 231 a 256.   Notas: [1] Obs.: Este artigo foi originariamente publicado pela Revista dos Tribunais, ISSN 0034-9275, Ano 98, Volume 889, Fasc. Penal, p. 427-460, novembro de 2009.  [2] Com algumas alterações que introduzimos no texto, grande parte desses parágrafos iniciais refletem explicitamente o pensamento do professor e cientista João Antonio Zuffo, conforme idéias expostas na obra: A sociedade e a economia no novo milênio: os empregos e as empresas no turbulento alvorecer do século XXI, livro 2 – macroeconomia e empregos. Barueri, SP : Manole, 2003, p. 231 a 256. [3] Seguimos neste trecho as explicações que nos pareceram mais didáticas, apresentadas por Ana Margarida Marques e outros, op. cit., p. 155-156. [4] Ver as orientações dadas por Alexandre Atheniense, em Modalidades de Assinatura Digital, op. cit. [5] Comunicação eletrônica de atos processuais na Lei 11.419/06. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/aspx?cod=38335>. Acesso em: 26 abr. 2007. [6] Internet do Judiciário passará de “.gov” para “.jus” a partir do dia 11.10.2007. Disponível em: <www.migalhas.com.br/mostra_noticia.aspx?cod=45702>. Acesso em: 20 set. 2007. [7] Informações colhidas no Clipping Eletrônico, AASP. Disponível em: <http://www.aasp.org.br/aasp/imprensa/clipping/cli_noticia.asp?idnot=1009>. Acesso em: 10 jul. 2007. [8] Ver reportagem: ICP-Brasil autoriza cartórios a emitirem certificados digitais, Jornal do Notário, informativo do Colégio Notarial do Brasil, São Paulo, n. 106, p. 12-13, out. 2007. [9] Informação colhida em: <http://www.dnt.adv.br>. Acesso em: 10 set. 2008. [10] Ver a reportagem: Certificação digital, Tribuna do Direito, p. 8, dez. 2007; e Gabriela Invernizzi, OAB lança carteira com chip para assinatura digital. Revista Consultor Jurídico, 13 out. 2007. [11] Composto por cartão inteligente e leitora, o certificado tem validade de três anos. Na época, O kit (cartão e leitora) podia ser adquirido pelos associados por R$ 125,00, sendo que no mercado o preço variava em torno de R$ 300,00 (reportagem: Entidade fornece certificado digital, Tribuna do Direito, p. 4, mar.2007). Ver, ainda: MARÇAL, Sérgio Pinheiro. Op. cit. [12] Identificadores da Chave Raiz do Conselho Federal da OAB: “SHA1:2276E329 8A35EE87 F44A 151381DB0E11 B8509A4D MD5:523C 2F81 F4EE B8F0 9A13 9006 4B17 F765” (Jornal do Advogado, n. 317, p. 16, maio 2007). [13] Colhemos estas informações da entrevista oferecida por Marcos da Costa, diretor-tesoureiro da OAB/SP, contida na reportagem: Saiba como funciona a assinatura digital, sem identificação de autor, Jornal do Advogado, n. 317, p. 16, maio 2007. [14] Anota-se que a política de segurança da informação na Administração Pública Federal foi implantada pelo Dec. 3.505, de 13.06.2000, que, no seu art. 6.º, criou o Comitê Gestor da Segurança da Informação. [15] Petrônio Calmon critica a “obrigatoriedade do credenciamento” e entende que “pela confusa redação da lei nova, a alínea b do inc. III do § 2.º do art. 1.º anula a alínea a, pois o art. 2.º exige o credenciamento prévio no Poder Judiciário” (op. cit., p. 65). [16] Por exemplo: Juizados Especiais Federais, que já vinham operando o sistema no e-Proc (plataforma de processo eletrônico). Outrossim, em setembro de 2007, o CNJ implantou o Sistema de Processo Eletrônico do Conselho Nacional de Justiça – E-CNJ, disponibilizando o acompanhamento eletrônico de seus processos. Até janeiro de 2009, haviam se cadastrado 1.990 advogados, 34 juízes e 20 partes (ver Clipping Eletrônico – AASP: Notícias do dia – Mais de 2 mil pessoas estão cadastradas no sistema de processo eletrônico do CNJ – disponível em http:/www.aasp.org.br/aasp/imprensa/clipping/cli_noticia.asp?idnot=4811, 10.02.2009. [17] Neste sentido também é o pensamento de: REINALDO FILHO, Demócrito. A garantia… cit. Ver em sentido contrário: ATHENIENSE, Alexandre. As controvérsias do peticionamento eletrônico após a Lei n. 11.419/2006. Migalhas de peso. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=51565>. Acesso em: 07 jan. 2008. Este considera “a modalidade de protocolo de petições valendo-se da autenticação do requerente apenas em senhas e sem o uso da certificação digital” temerária para garantir a integridade na transmissão dos dados. Em sua apreciação, isso “irá representar a possibilidade de sérias vulnerabilidades, pois não haverá meios capazes de aferição se os dados que foram enviados por meio eletrônico tenham sido interceptados e alterados sem deixar algum indício de fraude”, eis que se a petição vier a trafegar on-line, sem o uso da criptografia, estará sujeita a ser modificada sem deixar vestígios de que alguma alteração foi efetuada. [18] Entre outros, manifestaram-se contra o credenciamento: COSTA, Marcos da; MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Duas óticas acerca da informatização dos processos judiciais. Disponível em: <htpp://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3228>; CALMON, Petrônio. Op.cit.,p. 67-69. [19] Relativamente às anotações feitas nos subitens que integram o item n. 2, além das fontes já mencionadas, a maior parte consiste em síntese dos comentários que creditamos a: CASTRO FERREIRA, Ana Amélia Menna Barreto de. Poder Judiciário: fragilidade da comunicação entre órgãos jurisdicionais. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br.cod=43306>. Acesso em: 09 ago. 2007. (Publicado originalmente no site da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes, do TJMG.); CATEB, Alexandre Bueno; QUEIROZ, Regis Magalhães Soares de; FRANÇA, Henrique de Azevedo Ferreira. Assinatura digital e a cadeia de autoridades certificadoras. In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coords.) Direito e internet – Aspectos jurídicos relevantes. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005; REINALDO FILHO, Demócrito. A garantia de identificação das partes nos sistemas para transmissão de peças processuais em meio eletrônico – O modelo da Lei 11.419/06. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/aspx?cod=35826>. Acesso em: 23 fev. 2007. Também aproveitamos algumas idéias expostas em trabalho de nossa autoria, que teve circulação restrita no meio acadêmico, intitulado “Processo penal impulsionado pela tecnologia”, São Paulo, 2008. [20] Sobre esses dados a respeito da utilização da videoconferência, ver: AMAYA, José de la Mata. La utilización de la videoconferência en las actuaciones judiciales. Actualidad Penal, Madrid, n. 47-48, p. 1.267-1.286, 16 a 29 dez. 2002. [21] Processo telematico e firma digitale. Milano: Giuffrè, 2004. p. 89, tradução livre. [22] AMAYA, idem, ibidem, p. 1.269. [23] Idem, ibidem, p. 1.270. [24] Muito do que escrevemos nestes itens sobre a videoconferência deve ser considerado como reafirmação das idéias que adiantamos em trabalho elaborado em parceria com César Eduardo Lavoura Romão, intitulado “Internet e videoconferência no processo penal”, op. cit. [25] HC 88.914-0, relator Min. Cezar Peluso, 2ª T, v.u., 14.08.2007. [26] HC 90900, Pleno, julgado em 30.10.2008 [27] João Antonio Zuffo, Flagrantes da vida no futuro. Crônica: O condenado. São Paulo, Saraiva, 2007, p. 208-209.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-74/arquitetura-preambular-do-processo-judicial-eletronico/
Teleaudiência criminal: Primeiros registros de sua realização no Judiciário Paulista
Há quase cinco anos, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, abriu as portas e admitiu o ingresso da tecnologia no processo penal. Deu-se o primeiro e importante passo rumo ao acolhimento da videoconferência nas ações criminais. Essa providência pioneira foi aplaudida por alguns doutrinadores, mas também foi alvo de muitas críticas. Apesar disso, o sistema continua operante. Para se ter uma ideia mais apropriada sobre o assunto, neste trabalho, coloca-se em foco aspectos relevantes que cercam a utilização da videoconferência na celebração de um ato processual de natureza penal. Dados colhidos diretamente da fonte de sua produção indicam que o sistema paulista de teleaudiências, na área criminal, ainda se encontra em estágio embrionário, porém já apresenta resultados que podem ser vistos como alentadores sob a perspectiva da futura informatização da Justiça. [1]
Direito Processual Penal
1. Justiça criminal e tecnologia Faça um teste: olhe em qualquer direção, para qualquer lado, acima ou abaixo, e veja que logo encontrará um petrecho tecnológico em movimento ou disponível para uso. Seja qual for a área de atuação do ser humano – econômica, financeira, cultural, acadêmica, educacional, médica, científica, pública, privada, política, liberal -, a Internet passou a ser um instrumento indispensável de pesquisa e de comunicação.    O mundo em que vivemos está realmente amparado em bases ditadas pela tecnologia da informação. Para o leitor mais jovem, que não sofreu o impacto provocado pelo surgimento dos computadores ligados em rede, cujo fenômeno se iniciou na década de 90 e se intensificou no início deste milênio, essa observação soa irrelevante. É que a criança, o adolescente e o jovem desta era se encontram totalmente familiarizados com o videogame, iPhone, iPod, DVD, CD, notebook, webcams, palmtops, telefone celular móvel, fone de ouvido, câmera filmadora, microgavador, TV a cabo, TV digital etc. Também no Judiciário são sentidos os reflexos dessa radical transformação da sociedade. Principalmente nos Tribunais Superiores (STF, STJ, TST) e no Conselho Nacional de Justiça, nota-se que os recursos são protocolizados e os acompanhamentos de processos são realizados por meio de programas eletrônicos (exemplos: softwares eSTF e eSTJ). Só no STJ, em julho de 2009, computou-se a extraordinária marca de cem mil processos digitalizados, propiciando a devolução à origem dos autos em formato de papel. Enquanto isso, no Primeiro Grau de Jurisdição, verifica-se o incremento do processo digital nos processos da competência dos Juizados Especiais Cíveis, bem como nas ações trabalhistas. Comparada com esses setores do Judiciário brasileiro, pode-se dizer que a Justiça Criminal é a prima pobre, ou seja, aquela que ainda carece de investimentos em alta escala na sua estrutura para que possa atingir um nível de padrão de qualidade e de resultados minimamente aceitáveis. É verdade que os primeiros passos já foram dados, mas são ainda tímidos. Nas linhas que se seguem vamos esclarecer melhor esta assertiva.   2. Videoconferência no cotidiano do Judiciário A videoconferência, também conhecida como teleconferência, é uma sessão de comunicação em vídeo realizada entre duas ou mais pessoas que se encontram geograficamente separadas. Sua operacionalização depende de acesso ao sistema da Internet. Ao se manusear a teleconferência como instrumento de trabalho, na esfera judicial, pode se dizer que múltiplas são as opções que dela surgem, todas com a garantia de se obter excelentes resultados.   Por exemplo: a reunião virtual de consolidação da jurisprudência das turmas que compõem os Juizados Especiais Federais é uma sessão conjunta de órgãos do Judiciário, que rotineiramente pode ser iniciada e concluída por videoconferência, conforme autoriza a Lei 10.259/2001, art. 14, § 3º.  Noutro vértice, em um País como o nosso, que se notabiliza na América do Sul por sua extensão territorial comparável a de um continente, muito proveito se poderá tirar da telessustentação. Vale dizer, a sustentação oral do defensor ou do representante do Ministério Público, comumente feita perante os Tribunais Superiores sediados em Brasília, pode claramente ser cumprida por meio de participação dos debatedores em sistema de videoconferência.  Mais ainda: mesmo que se trate de processo em curso perante a Justiça Estadual, isto pode ser concretizado. Certamente chegará o tempo em que o defensor do apelante, advogado militante na comarca de Araçatuba, irá ao Fórum local para dali sustentar as suas teses em prol do recorrente, transmitindo-as diretamente pelo sistema de teleconferência aos desembargadores da Câmara, cujo Tribunal está situado na Capital do Estado de São Paulo. Quando este meio de comunicação virtual se estabelecer definitivamente entre o jurisdicionado e o Judiciário, ou seja, quando isto se tornar comum – e se tornará – o ganho de tempo e a economia de custos para as partes e para o próprio poder público deixarão de ser mera utopia. Para além desses exemplos, há outros atos processuais que já podem ser consumados por meio da utilização da videoconferência. No grande circulo formado pelo processo penal, têm cabimento atos como a teleaudiência, o videorreconhecimento de pessoas ou coisas, o videodepoimento da testemunha e da vítima, bem como o videointerrogatório do réu. Cada qual desses atos possuem determinadas peculiaridades e por isso serão objeto de comentários separados, os quais serão feitos mais adiante. 3. Pontos instalados de teleaudiência Antes de examinarmos tais atos à luz da legislação vigente, convém enfatizar que o “Sistema de Teleaudiências Criminais Paulista”, foi implantado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a partir de agosto de 2005, e seus pontos de comunicação encontram-se atualmente instalados nos seguintes locais: Presídios: I – Centro de Detenção Provisória – CDP, Guarulhos II; II – CDP Belém I; III – CDP Pinheiros I; IV – CDP Osasco I; V – Penitenciária de Presidente Venceslau; VI – Centro de Readaptação Penitenciária de Presidente Bernardes Fóruns: Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães (São Paulo – Capital): – Sala Compartilhada de Teleaudiências – 18ª Vara Criminal – 5ª Vara do Tribunal do Júri – Plenário 7 do Tribunal do Júri Interior do Estado de São Paulo: pontos interligados – Fórum de Presidente Bernardes – Fórum de Presidente Venceslau Amparado pelo mesmo sistema eletrônico encontra-se, ainda no Estado de São Paulo, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que desde a edição do Provimento da Corregedoria Geral 74, de 11.01.2007, possui acesso à videoconferência em pontos instalados nos seguintes locais: Fóruns Federais: – Salas compartilhadas de Audiências – I – Fórum Criminal Federal SP II – Fórum Federal de Guarulhos Presídios: – Penitenciária Desembargador Adriano Marrey – Guarulhos –  Penitenciária Cabo PM Marcelo Pires da Silva – Itaí. 4. Infraestrutura tecnológica e cautelas adicionais Vale a pena informar ao leitor que cada sala compartilhada de teleaudiência, ou cada ponto judicial de acesso à videoconferência, encontra-se estruturado com equipamentos eletrônicos complementares, e que sem o regular funcionamento destes não se realizam atos processuais dessa natureza que possam ser tidos como válidos. Deve ser aqui lembrado que dois monitores de 29 polegadas, contendo som estéreo, foram instalados nessas salas de audiências. Igualmente outros dois equipamentos, nas mesmas condições, encontram-se instalados na sala localizada na unidade prisional. Por este sistema torna-se absolutamente possível acompanhar as imagens do que está acontecendo, em tempo real, tanto na sala do fórum quanto da unidade prisional. O som é captado por microfones ambientais instalados na mesa ao redor da qual se sentam o juiz, promotor, advogados e testemunhas, sucedendo o mesmo na unidade prisional. Posicionam-se as câmeras acima dos monitores, mantendo-se sempre um (no caso, o réu) de frente para os outros e vice-versa. Ao preso a ser interrogado é de ser conferida a assistência efetiva durante toda a realização do ato, e o ideal é que isto seja feito com a participação de pelo menos dois advogados. Um permanece ao seu lado, nas dependências do presídio, e outro acompanha os trabalhos presididos pelo julgador, na própria sala de audiências. É preciso dizer que a duplicidade de advogados, um em cada local, deriva de exigência legal. Está prevista na segunda parte do §5º do art. 185, CPP, que assim reza: “se realizado [o interrogatório] por videoconferência, fica também garantido o acesso a canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do fórum, e entre este e o preso.” Quanto a isto cabe uma observação. Segundo informações que obtivemos no Fórum Ministro Mário Guimarães, essa providência – presença de defensor também no presídio – não vem sendo completamente atendida em boa parte dos processos criminais. Alega-se que a Defensoria Pública não tem quadro suficiente para dar assistência ao réu nos dois locais. Desse modo, quando o ato processual realiza-se por meio de videoconferência, no caso de ser o defensor constituído pelo acusado, ao próprio advogado incumbe garantir essa assistência pessoal no presídio, mediante auxílio de um outro profissional. Mas, se ao réu for nomeado defensor dativo, é claro que a Defensoria Pública poderá apontar essa falha no momento de sua ocorrência, sendo provável que gere a oportuna alegação de nulidade para ser reconhecida e declarada em grau recursal. Ressalte-se que a teleaudiência é um sistema tecnológico que permite ao defensor conversar e orientar o acusado por uma linha de telefone digital, direta e exclusiva. Garante-se, graças a adoção de um sistema de segurança apropriado, o sigilo desse contato. Cuida-se de uma linha criptografada não vinculada à rede pública de telefonia. Ao utilizar essa linha, o microfone na sala em que o réu se encontrar deve permanecer desligado. No momento desse contato o juiz deve solicitar a todos os presentes que se retirem momentaneamente da sala do fórum. Tudo isto é feito para se resguardar o direito de o réu manter entrevista prévia e reservada com o seu defensor, conforme determina a primeira parte do § 5º do art. 185, CPP (acrescentado pela Lei 11.900/2009). Importa salientar, ainda, que todos os atos da audiência permanecem sob o comando do juiz que a presidir. De sua própria mesa e de frente para o monitor, o juiz pode manusear o sistema de controle e tem condições de aproximar a fisionomia do acusado (zoom). Pode-se abrir, na tela, o maior ângulo possível da sala (geralmente 180 graus), sendo viável fazer um semicirculo virtual no ambiente. Da existência de outros componentes eletrônicos não se olvide, pois é permitida a gravação de todos os atos processuais que forem praticados durante a teleaudiência em DVD (ou em compact disc), providência esta que favorece a sua verificação pelo Tribunal ad quem em caso de interposição de recurso. Desse modo, as inquirições, requerimentos, alegações, debates e decisões filmadas podem ser repetidas diversas vezes. Além disso, a rede de computadores interliga o fórum à unidade prisional para que o documento (contendo o termo de depoimento, interrogatório, deliberação judicial etc.) seja impresso no presídio, assinado pelo preso e defensor, digitalizado e transmitido à sala de audiência, no fórum. Neste último local o documento é novamente impresso para colher-se a assinatura do juiz, do promotor e do outro defensor. Após as assinaturas, o documento é incorporado ao processo. Considere-se que para garantir a autenticidade do procedimento, o sistema de câmeras permite ao juiz constatar o momento em que o interrogando assina o termo, inclusive com a possibilidade de dar um close em sua mão. Duas câmeras são instaladas no fórum e na unidade prisional para a exibição de documentos e provas apresentadas. Qualquer irregularidade pode ser apontada pelas partes durante o curso dos trabalhos que integram a teleaudiência e registrada no termo de audiência para as providências cabíveis posteriores. 5. Algumas anotações sobre a videoconferência no direito estrangeiro Parece oportuno tecer alguns comentários sobre a utilização da videoconferência em processos criminais sob a égide de legislação estrangeira. Salvo melhor juízo, o pioneirismo de sua implantação deve ser atribuído aos Estados Unidos da América do Norte. Desde 1983, nos casos de grande repercussão social, admite-se a realização de depoimentos e interrogatórios por sistema eletrônico, a fim de se evitar o contato das vítimas com seus agressores. Coube à Itália implementar o sistema na luta desencadeada contra a Máfia, a partir de 1992. Atualmente os presos perigosos podem ser interrogados por videoconferência (lei italiana n. 11/1998). Relativamente à União Européia sabe-se que o Tratado de Assistência Judicial em matéria penal, foi ratificado em 2000, art. 10, acolhendo-se a realização de atos processuais com a utilização de tecnologia audiovisual. Na França, o CPP francês foi parcialmente reformado em 2001 (art. 706.71), e a partir de então passou a ser possível a utilização da videoconferência para inquirição de testemunhas ou interrogatório, quando as necessidades do inquérito ou da instrução justificarem. Prevalece, na Espanha, a Lei Orgânica do Poder Judiciário (art. 230), mediante a qual se admite a realização de teleaudiência para a preservação das vítimas e testemunhas. Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales aderiram à Lei Geral do Reino Unido sobre a Cooperação Internacional, sendo que, em matéria criminal, desde 2003, admite-se a tomada de depoimentos testemunhais por esse sistema. Também se tem conhecimento de que Chile, Argentina, Colômbia, Costa Rica, Portugal acolhem em suas legislações a utilização da videoconferência. A propósito, José De La Mata Amaya[2], diz que a “Austrália, Canadá, Índia, países caracterizados por suas dimensões geográficas extraordinárias, implementaram o sistema como uma resposta ao seu próprio gigantismo geográfico, com inversão imprescindível para garantir o acesso a Justiça em comunidades remotas, ou para reduzir os custos do processo.” No plano dos tratados internacionais celebrados por nações soberanas, deve-se mencionar a existência do Estatuto de Roma, responsável pela criação do Tribunal Penal Internacional, em atividade no cenário internacional desde 01.07.2002, e que entre nós teve seu texto aprovado por meio do Dec. Legislativo 112/2002, sendo em seguida promulgado por força do Dec. Presidencial n. 4.388, de 25.09.2002. Ficou estabelecido que o Tribunal pode permitir que uma testemunha preste declarações oralmente ou por meio de gravação em vídeo ou áudio, desde que isto não importe em prejuízo para os direitos do acusado e desde que não haja incompatibilidade com tais direitos (art. 68, n. 2 e art. 69, n. 2). Ademais, na Convenção da ONU contra a Corrupção, também chamada de Convenção de Mérida, de dezembro de 2003, aprovou-se a utilização da videoconferência, conforme se verifica de seus arts. 32, § 2º, e 46, § 18. Consolidando essa trajetória de afirmação do sistema, na Convenção das Nações Unidas contra o “Crime Organizado Transnacional”, também chamada de “Convenção de Palermo”, deu-se mais um passo relevante no sentido de se convalidar o uso da videoconferência. Consoante dispõe o seu art. 18, n. 18, quando houver necessidade de oitiva por autoridade judicial de uma pessoa de outro país, na qualidade de testemunha ou perito, poderá ser requerida sua audição por videoconferência. Importa destacar que essa Convenção foi ratificada pelo Brasil, sendo desta forma introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Dec. Presidencial n. 5.015, de 12.03.2004. 6. Teleaudiência e sua previsão legal no Direito pátrio    Após a ratificação legal da mencionada Convenção de Palermo, surge a Lei 11.419, de 19.12.2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial. A edição deste diploma gerou inúmeras alterações no Código de Processo Civil, possibilitando a realização, na prática, do processo judicial eletrônico. Sucede que ao estabelecer determinados procedimentos pertinentes à informatização do processo judicial, esta mesma lei, em seu art. 1º, § 1º, prescreveu também, e expressamente, a sua aplicação ao processo penal. Sem embargo dessa expressa referência, o certo é que a inexistência de norma explicita, no tocante à modificação do Código de Processo Penal, produziu simplesmente um vazio. Efetivamente nada se construiu em termos de informatização do processo criminal. Assim sendo, do ponto de vista da legislação federal, somente com o advento das Leis 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008, as quais produziram verdadeira reforma no Código de Processo Penal, é que, de fato, legitimou-se a realização da teleaudiência criminal e de outros atos cuja elaboração podem contar com o emprego da videoconferência. É sobre isto que vamos discorrer a partir de agora. 7. Teleaudiência e seu registro nos autos Comentaremos inicialmente o ato processual que se denomina teleaudiência. Em primeiro lugar, destaca-se a sua característica mais evidente, qual seja a de sua abrangência, pois na teleaudiência incorporam-se diversos atos processuais que podem ser realizados em seu viés concentrado, tais como videodepoimento, videorreconhecimento etc. No procedimento comum em geral, de acordo com as novas regras determinadas pelo legislador, “sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios e recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações.” (nova redação dada pela Lei 11.719/2008 ao § 1º do art. 405, CPP). Preocupou-se o legislador em simplificar o armazenamento dos registros inerentes à audiência, tanto que o § 2º do mesmo artigo, pontifica: “No caso de registro por meio audiovisual, será encaminhado às partes cópia do registro original, sem necessidade da transcrição”.    Todavia, mesmo diante da clareza da lei, alguns órgãos da mais Alta Corte do Judiciário Paulista, infelizmente, contribuem negativamente para a evolução do processo criminal semi-informatizado. Isto se afirma tendo em vista o recente Comunicado CGJ-TJSP n. 381, de 10.06.2009, mediante o qual o Corregedor Geral da Justiça “recomenda aos Juízes Criminais que, havendo registro por meio audiovisual na instrução de processo criminal, observem a necessidade de ser realizada a transcrição da prova assim colhida quando houver recurso da sentença.” Vale dizer, o trabalho de colheita de prova em audiência, que se pretendia simplificar com a garantia de se tornar mais seguro, volta a ser redobrado na medida em que se recomenda a manutenção do velho costume. De tal recomendação privilegia-se a reprodução dos atos em termos escritos, presos às anotações no papel, em detrimento de tudo aquilo que pode ser visualmente revisto pelos julgadores, sem risco de interferência humana de qualquer natureza. A nosso ver, a medida é um contrassenso. 8. Videodepoimento Tenha-se presente que a todo acusado deve ser conferido o direito de pessoalmente confrontar a prova produzida na ação penal. Entretanto, ocorrendo a hipótese em que se coloque em risco o descobrimento da verdade durante a instrução do processo, admite-se, no curso da realização da teleaudiência, que as testemunhas e a vítima possam prestar os depoimentos ou as declarações pelo sistema de videoconferência (teledepoimento ou videodepoimento). É mister que o juiz se convença de que a presença do réu poderá causar humilhação (vexame, afronta, ultraje), temor (medo) ou sério constrangimento (coação) à testemunha ou ao ofendido. Confirmada uma dessas situações, a inquirição é de ser feita por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará o juiz a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. Seja qual for o motivo que levar o juiz a tomar tal decisão, é de rigor a respectiva anotação no termo de audiência (art. 217 e parágrafo único, CPP, com a redação dada pela Lei 11.690/2008).    Segundo informações que obtivemos junto a funcionários responsáveis pela operacionalização da sala compartilhada de teleaudiências do Fórum Criminal localizado no bairro da Barra Funda, em São Paulo, a estrutura tecnológica do sistema implantado não é suficiente para atender ao expressivo volume de dezenas de audiências diárias, nas quais os réus são simplesmente retirados das salas enquanto se colhe a prova oral. Portanto, ainda não se encontra satisfatoriamente atendida a exigência da lei, a qual, ao permitir que o acusado acompanhe o desenrolar da audiência pelo sistema de videoconferência, sem dúvida alguma lhe proporciona melhores condições de confrontar a colheita de prova oral em audiência, notadamente se comparada àquela situação em que simplesmente é retirado da sala. 9. Depoimento virtual, acareação e reconhecimento de pessoa presa  Caso a realização de atos como inquirição de testemunha, tomada de declarações do ofendido, acareação ou reconhecimento de pessoas ou coisas dependam da participação de pessoa que esteja presa, o juiz poderá determinar que se utilize a videoconferência. Mas, deverá observar as condições exigidas para a realização do teleinterrogatório, conforme se anota adiante (§ 8º do art. 185, CPP, com a redação dada pela Lei 11.900/2009). Especificamente sobre o videorreconhecimento aproveita acrescentar um comentário suplementar. O acúmulo de investigações criminais propiciou, ao longo do tempo, o surgimento da praxe de se efetuar o reconhecimento fotográfico como forma de suprir a realização do reconhecimento pessoal, quando impossível a formalização deste último por qualquer circunstância. Sucede que a tecnologia moderna ultrapassa os limites da fotografia, de tal maneira que outros métodos de reconhecimento passaram a fazer parte das investigações realizadas pela Polícia. Desse modo, departamentos policiais tecnologicamente mais avançados vêm realizando o reconhecimento virtual, baseado em bancos de dados inseridos em arquivos de computador. Pois bem, no caso de reconhecimento de autor de delito, feito pelo sistema de videoconferência, por tratar-se de meio eletrônico que supera o conteúdo estático da fotografia, transmite-se, sem dúvida, maior segurança ao julgador. De outro vértice, o reconhecimento de supostos acusados, feitos por meio do sistema de videoconferência, busca suprir a necessidade emergencial da realização do ato quando vítimas e testemunhas tiverem dificuldades, ou não puderem, por motivo justificado, fazer o reconhecimento pessoal. Além do mais, a videoconferência pode facilitar o reconhecimento de objeto e se várias forem as pessoas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas (arts. 227 e 228, CPP). 10. Cartas eletrônicas e o princípio da identidade física do juiz Francamente útil se demonstra a utilização do sistema de teleaudiência no caso em que a testemunha ou a vítima residam fora da jurisdição do juízo criminal. A colheita dessa prova poderá ser realizada por meio de videoconferência ou por outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, sendo, é claro, permitida a presença de defensor. Essa providência pode ser realizada, inclusive, durante a realização da audiência de instrução e julgamento (art. 222, § 3º e art. 222-A, parágrafo único, CPP, com redação ditada pela Lei 11.900/2008). Nota-se que o videodepoimento substitui, com manifesta otimização do ato, a expedição formal da tradicional carta precatória de papel ou até mesmo de carta rogatória, se o depoente residir no exterior. É óbvio que a realização de um ato dessa natureza depende da expansão do sistema de videoconferência para outras comarcas do interior paulista (e do próprio território nacional), notadamente naquelas que abrigam maior contingente populacional. Hoje, de acordo com os pontos instalados na jurisdição bandeirante, a expedição de cartas precatórias para cumprimento no juízo deprecado pode ser evitada pela adoção do sistema de videoconferência nos seguintes Juízos Criminais: nos Fóruns Ministro Mário Guimarães e da Vara Criminal Federal (São Paulo – Capital); e nos Fóruns localizados no interior do Estado, isto é, em Presidente Bernardes, Presidente Venceslau e Juízo Federal de Guarulhos. Outro ponto notoriamente positivo para a adoção desse sistema tecnológico, consiste no fato de que a substituição da carta precatória de papel pelo videodepoimento atende integralmente ao cumprimento do princípio da identidade física do juiz, segundo o qual, o juiz que presidir a instrução deverá proferir a sentença (art. 399, § 2º, CPP, com redação determinada pela Lei 11.719/2008). Vale dizer, a prova pode ser colhida sem a necessária intervenção do juízo deprecado. 11. Videointerrogatório Chegamos ao ponto considerado mais controverso da utilização dessa tecnologia.  Com efeito, a celebração do interrogatório do acusado por meio do sistema de videoconferência levantou algumas questões que demandam serena reflexão. Mas, antes de examinarmos as circunstâncias que cercam o teleinterrogatório, é preciso ressaltar que o interrogatório do réu é um ato processual cuja consumação pode ser analisada sob diversos ângulos, os quais não podem ser desprendidos da análise global do sistema.  Tratando-se de acusado que está em liberdade, será qualificado e interrogado em juízo na presença de seu defensor, constituído ou nomeado. Portanto, seu interrogatório deve ser realizado na sede do juízo criminal. Por outro lado, se estiver preso, seu interrogatório será realizado, em sala própria, no estabelecimento em que estiver recolhido, desde que estejam garantidas a segurança do juiz, do membro do Ministério Público e dos auxiliares bem como a presença do defensor e a publicidade do ato. Logo, para o caso de réu preso, essa é a regra geral estabelecida pelo legislador, ou seja, ao menos pela letra da lei, estimula-se preferentemente o deslocamento do juiz, bem como do representante do MP, defensor e funcionários do Judiciário ao presídio. Em contrapartida, procura-se evitar o deslocamento do preso ao fórum criminal (art. 185, § 1º, com redação determinada pela Lei 11.900/2009). Quem dera fosse essa a realidade do cotidiano forense criminal. Mas não é! Desde a edição dessa regra, seus efeitos foram automaticamente neutralizados pela existência de outra norma, que também é recente. Tendo em vista a existência de circunstâncias mais favoráveis ao pleno exercício da ampla defesa, no que tange à realização da audiência de instrução e julgamento, o legislador estabeleceu a uniformização de preceitos do procedimento penal comum (ordinário, sumário e sumaríssimo). Desse modo, a audiência passou a exprimir uma concentração de atos pertinentes à produção de provas, reunindo-se a tomada de declarações do ofendido, a inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, além de eventuais esclarecimentos de peritos, acareações, reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado (art. 400, caput, CPP, com redação determinada pela Lei 11.719/2008). Depreende-se que por força dessa audiência única, a realização do interrogatório do acusado passou a constituir a última etapa da instrução do processo. Em vista disso, a pretendida regra geral, que visava o deslocamento do juiz ao presídio para ali consumar-se o interrogatório, deixa de produzir efeito prático. Como é fácil concluir, não existe a menor possibilidade de se realizar essa prolixa audiência nas dependências do presídio, contando com a presença de todos os sujeitos do processo que a ela devem comparecer. Por conseguinte, a regra geral que efetivamente está prevalecendo, no caso de réu preso, condiz com o seu traslado pelas autoridades até ao Fórum Criminal. Assim se faz para cumprir as requisições judiciais de réus presos, expedidas pelos juízes em geral. Dizendo com outras palavras, a providência que deveria ser determinada em caráter supletivo (requisição de comparecimento ao juízo), passa a ser ordenada de maneira contínua, provocando-se o deslocamento maciço dos presidiários e de suas escoltas (art. 185, § 7º, com redação dada pela Lei 11.900/2009).       Ainda integrando esse contexto pertinente ao interrogatório do acusado, timidamente se incluiu, no Código de Processo Penal (art. 185, § 2º), a possibilidade de se realizar o videointerrogatório ou teleinterrogatório, como forma de se evitar o deslocamento do preso ao juízo criminal competente. A bem da verdade é preciso reconhecer que essa providência pode ser judicialmente determinada em caráter excepcional, jamais de forma rotineira ou majoritária nas ações penais. Somente por meio de decisão do juiz, expressamente fundamentada nos autos, expedida ex officio, ou deferindo requerimento formulado pelas partes, poderá o interrogatório do réu preso ser realizado por sistema de videoconferência ou por meio de outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real. De rigor que a fundamentação do juiz se baseie na necessidade da utilização da videoconferência para atender a uma das seguintes finalidades: I – prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento; II – viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal; III – impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima; o seja poss que na ou da vr  circunsthaja relevante dificuldade para çIV – responder à gravíssima questão de ordem pública (art. 185, § 2º, I a IV, CPP). Certamente não basta que a fundamentação da decisão judicial se limite estritamente a copiar os dizeres de algum desses incisos. Impõe-se que o juiz explicite a situação concreta que se amolda ao permissivo legal e que efetivamente justifique a realização da teleaudiência ou do ato processual a ser concretizado por meio da videoconferência. 12. Legitimidade do teleinterrogatório Feitas tais ponderações, oportuno se torna indagar sobre a validade do teleinterrogatório. A pergunta se faz também ao leitor: você é contra ou a favor da utilização da videoconferência como meio de produção do interrogatório do acusado? Especialmente para aqueles que, em tese, se posicionam contrariamente à utilização da tecnologia em foco, nossa recomendação é uma só: antes de firmar definitivamente a sua rejeição ao sistema, procure assistir à realização de uma teleaudiência judicial para só então sedimentar a sua convicção a respeito do assunto. Entendemos que o teleinterrogatório, desde que cumpridas todas as formalidades legais e operacionais já descritas nesta exposição, consiste num ato processual que se reveste de total e irrestrita legitimidade. Sem embargo disto, em atenção ao leitor que pela primeira vez reserva um pouco de sua atenção para a análise deste tema, informa-se, em acréscimo, que na consecução de atos processuais, a utilização da videoconferência na colheita de prova oral foi aceita sem grande oposição das partes. Porém, em relação ao interrogatório do acusado, o sistema foi criticado pela OAB e por alguns doutrinadores. As críticas foram feitas antes de serem introduzidas as alterações no Código de Processo Penal, ocorridas em 2008, as quais  já foram comentadas nas linhas acima. Como já foi anotado, o “Sistema de Teleaudiências Criminais Paulista” do TJSP passou a ser operacionalizado em agosto de 2005. Seu funcionamento apoiava-se na Lei Estadual 11.819/2005, que estabelecia procedimentos judiciais destinados ao interrogatório e à audiência de réus presos mediante utilização da videoconferência. Essa lei, por não ter sido proposta por iniciativa da União, foi considerada inválida pelo STF[3], entendendo-se que ela feria o princípio constitucional do devido processo legal, já que em seu conteúdo se abordara matéria de direito processual e não simplesmente matéria de procedimento. Naquele período de grande debate sobre a validade ou não do teleinterrogatório duas correntes doutrinárias de formaram. Uma delas combatia a sua existência e apontava entre suas principais falhas o quanto segue: a) que a falta do contato do juiz com o réu fere o princípio da ampla defesa; b) que a ausência do acusado na audiência fere o princípio da confrontação das provas (princípio este que já mencionamos acima); c) que o sistema de videoconferência não respeita o princípio da dignidade humana; d) que a medida fere tratados internacionais; e) ante o fato de o réu encontrar-se na prisão, seu interrogatório realizado por meio de videoconferência desatende o princípio da publicidade dos atos processuais. Em sentido oposto, defendendo a manutenção do sistema de teleaudiências, inclusive para o caso de realização de interrogatório do acusado, outra corrente doutrinária sustenta que: a) O videointerrogatório não prejudica o exercício da ampla defesa, até porque a própria autodefesa pode ser plenamente desenvolvida em sistema de videoconferência, havendo a mesma possibilidade de manifestar-se livremente para o juiz que o interroga, em tempo real, de acordo com o seu interesse. b) Nesse sentido, repita-se, em tempo real, o juiz poderá colher todas as impressões necessárias para que possa firmar a sua convicção, seja diante do que registrar por audição, seja em razão do que apurar visualmente em relação às expressões corporais e faciais demonstradas pelo acusado. c) Ademais, tudo é evidentemente produzido na presença do advogado e do representante do Ministério Público, cabendo a estes apontar, no momento em que se realiza o ato, quais são as eventuais ilegalidades a fim de que sejam sanadas. d) Pode-se dizer que há consenso no sentido de se reconhecer que o sistema de videoconferência é compatível com o princípio constitucional da celeridade processual, mediante o qual se deve procurar julgar o processo criminal em tempo de razoável duração, sem causar maiores danos à sociedade e ao próprio acusado (art. 5º, LXXVIII, da CF). e) Consequentemente, a utilização da videoconferência na realização de audiências e interrogatórios deve ser vista como mais um instrumento que visa melhor atender ao princípio da efetividade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF). f) Noutro vértice, é evidente que o emprego da tecnologia potencializa a aplicação do princípio da publicidade. O videointerrogatório, a teleaudiência ou qualquer outro ato processual realizado por meio de videoconferência pode ser objeto de publicidade ainda maior do que permitem as limitações físicas de uma Vara Criminal. Se o juiz assim entender, os atos em espécie podem ser transmitidos em telões espalhados pela Comarca ou até mesmo pela Internet (art. 93, IX, CF). g) Não há mácula para o princípio do devido processo legal (5º, LIV, VF), eis que o sistema de videoconferência está agora autorizado por lei federal, consoante anotações que já fizemos ao longo deste trabalho. h) Também não prevalece o argumento no sentido de que se desrespeita compromisso assumido em convenção internacional, pois, como foi por nós assinalado, tratados mais recentes, como a Convenção de Palermo (Crime Organizado Transnacional), regularmente ratificados pelo Brasil, aprovam a utilização da videoconferência. i) Para além dos benefícios que produz durante a tramitação do processo criminal em Primeira Instância, também em grau superior produz efeitos positivos, eis que o sistema de videoconferência permite aos julgadores de 2ª Instância rever em detalhes os atos praticados durante a realização da teleaudiência, os quais se encontrem gravados em DVD. Somam-se a esses argumentos favoráveis à manutenção da videoconferência outros motivos de interesse da máquina estatal. Nesse sentido, defende-se a aceitação do sistema porque se previne o risco de fuga ou resgate de criminosos perigosos. Aduz-se, ainda, que ao se evitar o deslocamento do réu ao Juízo, se propicia maior segurança aos juízes, membros do MP, advogados, serventuários da Justiça, população e até mesmo ao próprio detento (diga-se, por oportuno, que ele pode preferir o videointerrogatório à viagem no camburão para ser interrogado no distante Fórum Criminal). Outrossim, com a desnecessidade de escolta, se libera os policiais atuantes na condução de presos para a ação em outras missões de segurança pública e de investigação, de tal modo que se reduz gastos, evitando-se o deslocamento de réus a grandes distâncias, economizando tempo e recursos materiais. 13. Alguns dados da utilização da videoconferência na prática Para encerrar esta exposição, anotaremos alguns dados estatísticos que colhemos pessoalmente no Fórum Criminal Min. Mário Guimarães (Barra Funda, São Paulo), durante a visita realizada em 05.08.2009. Já foi dito que o “Sistema de Teleaudiências Criminais Paulista”, foi implantado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a partir de agosto de 2005. Até o final do mês de julho de 2009, foram realizadas 3850 teleaudiências, assim distribuídas: Fóruns da Justiça Estadual: 3193; Fóruns da Justiça Federal: 657. Esse total de 3850 teleaudiências pode ser melhor compreendido no seguinte quadro: Nesse período, por meio de teleaudiência, foram efetivamente julgados 2866 processos. O quadro apresenta uma queda na utilização do sistema no presente exercício. As causas desse declínio são atribuídas, principalmente, à inclusão do interrogatório como ato derradeiro da audiência de instrução e julgamento; e à necessidade de o juiz ter de justificar a realização da teleaudiência, tendo por base uma das quatro finalidades estabelecidas no § 2º do art. 185, CPP, consoante já explicitamos. Diante do absurdo volume de processos criminais que aguardam julgamento da Justiça Paulista, pode-se dizer que os números apontados são extremamente tímidos. Todavia, se considerarmos todos os obstáculos até aqui opostos para a adoção do sistema regulado de videoconferência no processo penal, o que foi feito até agora não pode deixar de ser destacado. É verdade que o emprego da tecnologia, por si só, não protagoniza a tão sonhada otimização do Judiciário. É preciso que ocorra um choque de gestão, que seja capaz de modernizar a sistemática processual, e mais do que isso, é mister que os julgadores em geral, devidamente assessorados, estejam dispostos a utilizar a moderna tecnologia em prol do aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Resta a esperança depositada nas novas gerações de juízes que estão ingressando nos Tribunais do País, as quais já trazem consigo a experiência da juventude acostumada com a utilização da tecnologia da informação em suas relações jurídicas e sociais diárias. De qualquer modo, o que se espera é a confirmação de que a teleaudiência criminal, com todos os atos processuais que podem ser realizadas por meio de videoconferência, penetre em todos os Tribunais do País, até porque a utilização da tecnologia não pode ser impunemente desdenhada pela comunidade de juristas e operadores do Direito.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-74/teleaudiencia-criminal-primeiros-registros-de-sua-realizacao-no-judiciario-paulista/
Da libertação: Uma análise da sentença penal condenatória e seus reflexos na vida do acusado
As reflexões desse artigo encontram-se na análise técnica e jurídica acerca da libertação, face à sentença penal condenatória e seus reflexos na vida do acusado. Para tanto, este trabalho pretende trançar um panorama da questão, evidenciando aspectos jurídicos, que giram em torno do assunto. Tais informações são importantes, na medida em que serve como base para o aprendizado jurídico dos operadores do Direito. Logo, faz-se necessário um estudo das peculiaridades que o tema comporta.[1]
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO Este trabalho tem por escopo comentar, como também, apresentar, a libertação do acusado segundo a ótica de Francesco Carnelutti na sua Obra “As misérias do processo penal”, comparando-se ao direito processual penal contemporâneo no que pertine aos reflexos da sentença e o fim do processo para o acusado. Pois, sabe-se que tais abordagens constituirão um auxiliar na medida em que serve de base para despertar a consciência crítica nos acadêmicos de direito, para então compreendermos melhor o significado da palavra libertação e entendermos melhor acerca dos reflexos da sentença na vida do acusado. Assim, faz-se mister abordar alguns temas que são inerentes à matéria. Começando por uma abordagem da libertação segundo o Livro supramencionado, depois faz-se uma análise sobre a sentença e seus reflexos, fazendo-se por fim um paralelo uma análise da libertação do acusado com o fim do processo, no tocante a ritualística processual vigente, entre outras peculiaridades que serão tratadas no transcorrer deste trabalho. 2. DA LIBERTAÇÃO SOB A ÓTICA DE FRANCESCO CARNELUTTI Inicialmente, Carnelutti em sua obra, diz que para o encarcerado vem o dia da libertação quando o processo verdadeiramente termina, ressalta que esse dia chegará com certeza, nesse sentido deverás, a libertação está ao alcance de cada condenado. Posteriormente, o autor deixa um pouco de lado à faceta da libertação no sentido físico e passa a caminhar para o sentido espiritual. Assim, quando o pensamento se caminha para a prisão perpétua, isto quer dizer, que para o acusado o processo não tem fim, a condenação à prisão perpétua é a declaração que a ama do homem está perdida para sempre. A Magistratura Italiana tem declarado que à humanidade que para que um homem seja condenado por toda a vida, isto é, que a pena de reclusão, como a pena do inferno, não tinha jamais fim. Para os detentos não condenados a prisão perpétua pode ocorrer que o dia em que saiam vivos da prisão. Um terrível aspecto da condenação à reclusão, ainda que por um período breve, é que ninguém tem certeza que não vai morrer naquele período. Isto basta par dizer que o processo penal, o que não cessa com a condenação senão que segue com o cumprimento da pena, pode durar até a morte. A eventualidade da morte na prisão é o risco mais grave do encarceramento, porque o morrer priva o condenado da esperança do retorno ao convívio social, tal esperança é o oxigênio que alimenta o encarcerado. Privá-lo dela está na desumanidade da condenação por toda a vida, já que na prisão perpétua o condenado não tem sequer o consolo de contar os dias, e contar os dias é a vida do detento. Nesse sentido, é que Carnelutti diz que o processo, sim, com a saída da prisão está terminado. Mas a pena não, quero dizer o sofrimento e o castigo. Segundo ele, as condenações de longa duração ocasionam diversas dificuldades ao libertado do cárcere pelas mudanças dos costumes, pelas relações interrompidas, pelos ambientes modificados. Ao sair da prisão o preso acredita não ser mais um preso; mas as pessoas não, para elas ele sempre será detento, e é nessa formula que está à crueldade e o engano. A crueldade está no pensar que, se foi, deve continuar a ser, ou seja, a sociedade fixa cada um de nós ao passado. A fórmula do “ex” é sacrílega justamente por isto. Os homens continuam persuadidos de que como um seguirá sendo como foi. Se não faltasse a razão, não existiria a caridade. A caridade, essencialmente, é loucura. Certamente, ao retornar ao serviço um ex-ladrão no próprio estabelecimento ou na própria casa, é um risco, já que ele poderia não está curado, este é justamente o risco da caridade. As pessoas racionais procuram evitar os riscos. Assim um ex-ladrão fica sem trabalho, porque fica marcado na sua face. Carnelutti fala também sobre a figura do Estado, já que este é considerado um ser racional. Sabe-se que o Estado proclama como um dos princípios do regime democrático o de que o acusado não é considerado culpado até que não seja condenado com sentença definitiva. Assim, um funcionário público sob suspeita de ter se apropriado dos fundos do erário, é submetido a um processo penal. Pode acontecer de não ser verdade, pode também tratar-se de coisa pouca, pode ser, mas, entretanto, é suspenso do emprego e da remuneração até a sentença definitiva; a Constituição ainda o considera inocente, mas um inocente que não tem o direito de comprar um pão, o emprego está definitivamente perdido; para ele a saída da prisão é o princípio em vez do fim de um calvário. Desta forma, se o Estado se comporta assim, os cidadãos não têm razão em imitá-lo. Assim, a idéia do detento que vive os dias sonhando com a libertação, é nada mais do que um sonho; serão necessários muito poucos dias depois que as portas da penitenciaria se abrem para acordá-lo. As pessoas crêem que o processo penal termina com a condenação, mas não é verdade; as pessoas crêem que a pena termina com a saída da prisão, e não é verdade; as pessoas crêem que a prisão perpétua seja a única pena perpétua, e não é verdade. Finalizando, Carnlutti indaga: A pena, para não dizer sempre, em nove de cada dez casos não termina jamais. Quem pecou está perdido. Cristo perdoa, os homens, não. 3. DA SENTENÇA E SEUS REFLEXOS É notório após a análise da Obra “As misérias do processo Penal” que quando Carnelutti trata da libertação do acusado quis dizer os reflexos da sentença na vida deste. Tal fundamento se dá, posto que, para ele o processo perdura para toda a vida do homem, não acaba com a sentença, já que a sociedade sempre terá aquele réu com ex-condenado. Nesse sentido, entende Francesco Carnelutti que os reflexos da sentença são perpétuos para o condenado, mesmo para aquele que cumpri sua pena por pouco tempo. Infelizmente, essa é a realidade vivenciada nos dias atuais, dificilmente um ex-detento tomará o curso normal da sua vida, após ter sido condenando e cumprir sua pena. Como bem visto na obra supramencionada as pessoas, sobremaneira no Brasil, não acreditam na ressocialização do detento, e conseqüente retorno destes ao convívio social, sem que possua quaisquer resquícios de sua conduta delituosa, ou mesmo, com a devida certeza que este não voltará mais a delinqüir. O preconceito está arraigado em qualquer sociedade, pois faz parte do dever cautela que todos possuem, e consequentemente, se aquele que responde a processo já é considerado criminoso, imagine o detento que é condenado como culpado em sentença penal condenatória. Muito mais que o corpo, a pena fere a alma do homem, cada dia que este passa numa cela, privado de sua liberdade, jamais será esquecido por este, tais dias sempre farão parte dos pensamentos e do passado do réu, e o atemorizará por resto da sua vida. É nesse sentido, que a prisão perpétua é abominada, posto que, a esperança em um dia retornar para a sociedade é o que nutri o encarcerado para que resista até o final da sentença, o que não acontecerá com aquele que for condenando perpetuamente. Interessante ressaltar acerca do papel do Estado no pertine ao acusado, quando este faz parte do seu quadro de funcionários. Como bem dispôs Carnelutti, o preconceito com aquele que responde a processo penal é notório por parte do Estado, o qual prioriza o principio democrático da não-culpabilidade, onde o acusado é considerado inocente até a sentença definitiva. Infelizmente não é isso que acontece, já que aquele erário que está respondendo a processo administrativo, antes mesmo de proferido a sentença já é suspenso do emprego e da remuneração. Isso pode ser verificado diuturnamente, já que no Brasil, é requisito para tomar posse no cargo público não está respondendo a processo, ou não haver sido condenado em processo penal. É digno de nota que o cárcere, sobretudo, no Sistema prisional Brasileiro deixa a desejar, visto tratar os réus da forma degradante e desumana. Nesta feita, o detento que cumpri pena no Brasil, quando retorna ao convívio social jamais será o mesmo de quando entrou, os costumes são outros, os pensamentos mudam, e fica muito mais difícil retomar a vida que tinha, pior ainda, quando não há o apoio da sociedade e do Estado para tanto. 4. A LIBERTAÇÃO DO ACUSADO DO PROCESSO Há quem entenda que o simples fato do processo terminar, com ou sem condenação, o réu já está livre, ou seja, é um alívio para ele, visto os transtornos e aborrecimentos por que passa no transcorrer do processo, até o proferir da sentença penal condenatória ou absolutória. Logo, ficando livre dos aborrecimentos do processo, o que vier é lucro, isto é, a sentença já é uma conformação. Vários percalços são encontrados até o fim do processo penal, na ritualística processual brasileira, começando pela citação do réu até a sentença final, ou até futuros recursos a que faz jus o réu. Imaginemos o seguinte: o processo penal tem início quando o réu toma ciência de que está sendo acusado do cometimento de um crime, daí começa todo um transtorno, já que após a citação, terá o réu 10 dias para apresentar defesa, a qual deve ser feita por advogado ou defensor público, caso seja o réu pobre na forma da lei. Logo, além de perder tempo e dinheiro, caso tenha que constituir um causídico, há o constrangimento em saber que há uma denúncia, uma acusação contra você, correndo ainda o risco de ser futuramente condenado. Ter que comparecer em audiência, não poder ausentar-se da comarca sem noticiar ao Juízo perante o qual responde ao processo, se mudar o endereço deverá avisar, sob pena de ser considerado foragido da justiça, em fim, inúmeros são os percalços encontrados, que só terão fim quando o processo verdadeiramente acaba. Não acaba por ai, o processo criminal dura um certo tempo e o réu sempre tem que acompanhar seu prosseguimento, juntamente com seu advogado, logo, o que o réu mais deseja é livrar-se dessa obrigação e responsabilidade com a justiça. 5. CONCLUSÃO Fincadas as premissas acima aludidas, pôde ser concluído que a análise da libertação do acusado sob a ótica de Carnelutti face à sentença e seus reflexos na vida do acusado, mostrou-se de suma importância na medida em que contribuiu para o aprendizado dos acadêmicos e profissionais do Direito. Foi exposto no transcorrer do trabalho uma visão do capitulo da Libertação, na Obra “As misérias do processo Penal” de Francesco Carnelutti, enfocado, sobretudo na sentença e seus reflexos na visa do acusado, e a libertação deste quando o processo acaba. Assim, as pessoas crêem que o processo penal termina com a condenação e a pena termina com a saída da prisão, mas não é verdade, crêem, também, que a prisão perpétua seja a única pena perpétua, o que também não é verdade, ou seja, a pena não termina jamais, perdura até o final da vida, já que está fere, não apenas o corpo, mas a alma do homem, e sempre um ex-condenado será visto pela sociedade com ar de preconceito. Infelizmente, mesmo sendo contrário aos princípios constitucionais e a moral, hoje é o que prevalece no sentimento das pessoas e da sociedade.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-74/da-libertacao-uma-analise-da-sentenca-penal-condenatoria-e-seus-reflexos-na-vida-do-acusado/
O direito ao contraditório e ampla defesa na fase inquisitória do processo penal
O inquérito policial vem sendo tratado, comumente, como mera peça informativa, quando em verdade não é. A esmagadora maioria das ações penais promovidas pelo Ministério Público tem por base inquéritos policiais, presididos ou por Delegados de Polícia de carreira, ou por autoridade de Polícia Judiciária Militar, no caso específico de crimes militares, ou mesmo pelo próprio Ministério Público, no exercício dos poderes implícitos. Assim, a inclusão da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa, como direito de vistas dos autos e dos documentos por advogado do indiciado, após o indiciamento, não prejudica o resultado proveitoso das investigações, muito ao contrário, garante maior legitimidade às suas conclusões.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO. É de longa data a existência das instituições policiais. A própria sociedade e o Estado necessitam da existência de uma força policial para garantir o respeito à ordem e ao Estado Democrático de Direito. Trata-se na espécie, de uma força legitimada pelo próprio povo, com fim de sustentar a própria coerência da estrutura estatal e das relações sociais. Nesse sentido, Weber (citado por BOBBIO, 2000, p. 165), afirma “que a força física legítima é o fio condutor de ação do sistema político, aquilo que lhe confere a sua particular qualidade e importância e a sua coerência como sistema”. Dessa argumentação, extrai-se que apenas as autoridades políticas possuem o direito de utilizar a coerção e de exigir obediência com base nela, e que: “não há grupo social organizado que tenha até agora podido consentir na desmonopolização do poder coativo, evento que significaria nada menos que o fim do Estado, e que, enquanto tal, constituiria um verdadeiro salto qualitativo para fora da história, no reino sem tempo de utopia” (BOBBIO, 2000, p. 166). Assim, pode-se afirmar que o poder que o Estado detém para intervenção e controle social, de forma monopolizada, e que advém da soberania popular, é um poder legitimado pelo povo com fim de sustentar a própria coerência da estrutura estatal. E numa ordem democrática de direito, o órgão do Estado que exerce a força física necessária à manutenção do poder legitimado pela soberania popular, não poderia ser outro senão a Polícia. Dentre as inúmeras formas de atuação com o fim constitucional de preservação da ordem pública (art. 144, CF/88), encontra-se a atividade investigativa de polícia judiciária, principalmente com o mister de conduzir e realizar o Inquérito Policial. O inquérito policial, com tal denominação, surgiu na legislação pátria pela Lei n. 2.033 de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto-lei n. 4.824, de 28 de novembro de 1871. O texto legal definia no artigo 42, que: “O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito” (NUCCI, 2009, p. 70). Vale ressaltar, que o arquétipo construído em torno do inquérito, como das demais ações policiais, é de incumbir a instituição policial de funções que desde sua origem foram voltadas para restrições de direitos, no estado absolutista, para garantir a vontade do poder soberano, no democrático de direito, com fim último de manutenção da ordem pública e conservação dos interesses públicos e coletivos, aqui se inserindo a persecução do direito de punir do Estado. Assim sendo, talvez seja por tal motivo, que hoje, passados muitos anos de existência das forças policiais e da Polícia Judiciária, ainda é estranho falar-se em garantias constitucionais dos investigados na fase do inquérito policial, especialmente contraditório, ampla defesa e presunção de inocência. (ZACCARIOTTO, 1999). Por tanto, sempre é atual e merecedor a discussão e produção literária a respeito da incidência de tais princípios constitucionais na instrução processual como um todo, seja na fase inquisitorial, seja na fase processual, visando unicamente tornar nosso sistema penal adjetivo cada vez mais acusatório e menos inquisitório, para assim, implementar-se com maior intensidade os direitos fundamentais e um processo penal mais justo. 2. DO INQUERITO POLICIAL. A investigação policial, classificada em linha gerais como procedimento preparatório da ação penal, que deverá ser presidido por Autoridade Policial competente, seja Delegado de Polícia de carreira, conforme preceitua o artigo 144, § 4º da CF/88, tem por finalidade reunir elementos probatórios mínimos acerca de uma infração penal (materialidade e autoria delitiva) que possam justificar a propositura da ação penal competente. (TOURINHO FILHO, 2009). Em face de tal desiderato, o inquérito policial deve obrigatoriamente respeitar as liberdades e garantias fundamentais como expressões da dignidade da pessoa humana na busca de uma instrução processual justa, mesmo na fase inquisitorial em que se apresenta, vez a exigência do Estado Democrático de Direito de uma leitura constitucional do direito processual penal. (BALDAN, 2006) Como conseqüência dessa interpretação e do artigo 5o, inciso LV, da CF, o qual dispõe que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes”, é necessário o reconhecimento da paridade de armas entre acusação e defesa, equilibrando a balança da justiça na busca de uma responsabilização penal justa. Nesse sentido, são dignas de referência, as palavras do tão citado garantista LUIGI FERRAJOLI (2002, p. 39): “para que a disputa se desenvolva lealmente e com paridade de armas, é necessária, por outro lado, a perfeita igualdade entre as partes”, bem como “que a defesa seja dotada das mesmas capacidades e dos mesmos poderes da acusação”. O inquérito policial, como “meio de extirpar, logo de início, dúvidas frágeis, mentiras ardilosamente construídas para prejudicar alguém, evitando-se julgamentos indevidos de publicidade enganosa” (NUCCI. 2009, p. 71), está inserido, em nosso sistema processual penal como uma de suas fases, a inquisitória, compondo, ainda nas palavras de NUCCI, um sistema misto de características “inquisitórias garantistas” e acusatória por imposição constitucional. Ademais, partindo do princípio que o inquérito, por mais que se afirme os teóricos do direito, ser de natureza inquisitiva e não estar apto a corroborar no juízo de convencimento do julgador, tomando como norte jurisprudência de alguns tribunais, não se pode olvidar que por vezes, as provas e indícios documentados em inquérito, servem de subsídio na análise e juízo de formação da culpa na apuração de conduta delitiva, senão vejamos alguns desses julgados: “Quando a lei fala em indícios de autoria, não faz menção ao momento em que foram os mesmos obtidos, se sob o crivo do contraditório ou antes deste, no inquérito policial. Não há qualquer impedimento em se pronunciar alguém com base em indícios obtidos em inquérito policial, até porque, poderá ele, em plenário, produzir provas em seu favor, sendo, assim respeitado o princípio da ampla defesa.” (TJSP, RES 168.898-3, São Paulo, 4ª Câmara, Rel. Sinésio de Souza, 09.10.1995). “A prova policial só é de ser arredada se totalmente desamparada por elementos judicializados, ou se contrariada ou desmentida por estes. Se assim não for, serve para embasar, junto com os demais seguimentos probatórios, juízo condenatório.” (TJRS, Apelação nº 698.562.170-Santa Maria, 7ª Câmara, Rel. Luís Carlos Ávila de Carvalho Leite, 10.06.1999).  E, considerando tais hipóteses de utilização do corpo probatório produzido em inquérito para julgamento em 1º ou 2º graus, é que não se pode negar, em sentido lato, que se trata de procedimento a ser conduzido com garantia do contraditório e ampla defesa, mesmo que de forma mitigada, ou restrita às provas já documentadas, assim como vem entendendo o STF, como forma de evitar uma instrução processual arbitrária e desequilibrada com risco de prejuízo à defesa do acusado. Malgrado ser comum o operador do direito se referir ao inquérito policial como mera peça informativa, em verdade, está diante de um instrumento de produção de provas que contribui de forma importantíssima para o juízo de delibação do titular da ação penal, Ministério Público – destinatário dos autos do inquérito, bem como para o prévio convencimento e interpretação do magistrado acerca de como se deram os fatos e suas circunstâncias. Nesse mesmo sentido, são as lições de MARTA SAAD (apud FREITAS, 2009), ao tratar da relevância desse instrumento processual, os elementos constantes do inquérito policial “não se cuidam de elementos destinados, apenas, a noticiar, ou informar, mas de elementos fadados a convencer. Informação difere do conhecimento sobre algo, ou alguém”. Marta Saad, ainda assevera em conclusão que: “O inquérito policial traz elementos que não apenas informam, mas de fato instruem, convencem, tais como as declarações de vítimas, os depoimentos das testemunhas, as declarações dos acusados, a acareação, o reconhecimento, o conteúdo de determinados documentos juntados aos autos, as perícias em geral (exames, vistorias e avaliações), a identificação dactiloscópica, o estudo da vida pregressa, a reconstituição do crime. Assim, não é senão em conseqüência do inquérito que se conserva alguém preso em flagrante: que a prisão preventiva será decretada, em qualquer fase dele, mediante representação da autoridade policial, quando houver prova da existência de crime e indícios suficientes da autoria, e como garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal; que à autoridade cumpre averiguar a vida pregressa do indiciado, resultando dessa providência, como é sabido, sensíveis repercussões na graduação da pena”. (2004, p. 35) 3. DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. No que diz respeito à possibilidade de aplicação dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, durante o indiciamento em inquérito policial, é de fácil percepção que a doutrina pátria não tem criado discussões controvertidas, contudo, a realidade prática de se reconhecer tal direito ao indiciado em procedimento investigativo, dando acesso aos advogados às peças já documentadas, como direito de consulta dos autos e atendimento de pedidos de produção de provas, ainda é de pouca expressividade. O problema reside mais, na realidade, na própria admissão do direito ao contraditório pelos profissionais que laboram na área investigativa. E nesta discussão, existem aqueles contra e a favor da aplicação do contraditório ainda na fase de investigação policial. (FREITAS, 2009). Nas palavras de Marta Saad, que também escreve sobre o assunto: “Para alguns operadores jurídicos que lidam diariamente com a investigação criminal, a admissão do contraditório nesse procedimento significaria uma burocratização exacerbada da investigação criminal, pois o investigado faria jus às garantias do acusado em processo criminal. Entendemos de maneira diversa. É perfeitamente possível a aplicação do contraditório, de forma mitigada, na fase inquisitorial, como adiante se verá.” (2004, p. 26). É de conhecimento geral e pacificado pela doutrina pátria, que o destinatário principal do procedimento inquisitivo é o Ministério Público, titular da ação penal competente para o caso de apuração de infração penal, e que, nesta qualidade, é conferido ao membro do parquet, a prerrogativa de requisitar a instauração do inquérito policial, bem como acompanhá-lo ou mesmo conduzi-lo, como vem entendendo o STF, com base na teoria dos poderes implícitos, in verbis: “Ponderou-se que a outorga de poderes explícitos, ao Ministério Público (CF, art. 129, I, VI, VII, VIII e IX), supõe que se reconheça, ainda que por implicitude, aos membros dessa instituição, a titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de medidas vocacionadas a conferir real efetividade às suas atribuições, permitindo, assim, que se confira efetividade aos fins constitucionalmente reconhecidos ao Ministério Público (teoria dos poderes implícitos). Não fora assim, e desde que adotada, na espécie, uma indevida perspectiva reducionista, esvaziar-se-iam, por completo, as atribuições constitucionais expressamente concedidas ao Ministério Público em sede de persecução penal, tanto em sua fase judicial quanto em seu momento pré-processual. Afastou-se, de outro lado, qualquer alegação de que o reconhecimento do poder investigatório do Ministério Público poderia frustrar, comprometer ou afetar a garantia do contraditório estabelecida em favor da pessoa investigada. Nesse sentido, salientou-se que, mesmo quando conduzida, unilateralmente, pelo Ministério Público, a investigação penal não legitimaria qualquer condenação criminal, se os elementos de convicção nela produzidos — porém não reproduzidos em juízo, sob a garantia do contraditório — fossem os únicos dados probatórios existentes contra a pessoa investigada, o que afastaria a objeção de que a investigação penal, quando realizada pelo Ministério Público, poderia comprometer o exercício do direito de defesa. Advertiu-se, por fim, que à semelhança do que se registra no inquérito policial, o procedimento investigatório instaurado pelo Ministério Público deverá conter todas as peças, termos de declarações ou depoimentos e laudos periciais que tenham sido coligidos e realizados no curso da investigação, não podendo o membro do parquet sonegar, selecionar ou deixar de juntar, aos autos, qualquer desses elementos de informação, cujo conteúdo, por se referir ao objeto da apuração penal, deve ser tornado acessível à pessoa sob investigação.” (Informativo Nº 564. HC 89837/DF, rel. Min. Celso de Mello, 20.10.2009. (grifos nosso). Acertou o nosso Supremo Tribunal ao entender que o Ministério Público pode sim conduzir como executar procedimentos de investigação, pois seria contraditório aos poderes e prerrogativas conferidas pela Constituição Federal a negação. Mas, o que requintou de qualidade ímpar o julgamento do habeas corpus em referência, fora a garantia ao contraditório à pessoa sujeita à investigação, efetivando as garantias fundamentais da pessoa humana e equilibrando a relação processual penal. Em verdade, careceria de justiça, se o acesso ao inquérito policial fosse restringido tão somente ao membro de acusação, vez que nesta fase há produção probatória que não voltará a ser construída na fase de instrução processual, como é o caso de provas periciais ou antecipadas, quando apenas são submetidas ao contraditório diferido durante a judicialização dos autos do inquérito policial. Feito esse intróito, podemos conceituar o contraditório como a garantia de bilateralidade nos atos e termos do processo, com a possibilidade de contrariedade, ou seja, permitindo a implementação de esforço das partes na formação do livre convencimento do julgador. De acordo com Fernando da Costa Tourinho Filho, tendo em conta o princípio do contraditório: “a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão superpartes, para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as provas, dar a cada um o que é seu.” (2009, p. 22). Enquanto a garantia do contraditório é direcionado à regulação da relação processual, o direito à ampla defesa é princípio constitucional voltado ao indivíduo. O princípio da ampla defesa significa dizer que ao acusado “é reconhecido o direito de se valer de amplos e extensos métodos para se defender da imputação feita pela acusação”. (NUCCI, 2008, p. 40). Tal princípio encontra-se fundamentado no artigo 5º, inciso LV, da CF/88, no intuito de proteger o acusado em processo judicial ou administrativo contra a persecução arbitrária do Estado, que na relação processual sempre se apresenta com mais força e estrutura. Estas garantias conferidas pela Constituição ao indivíduo visam justamente compensar sua hipossuficiência na relação processual com o Estado acusador, buscando o equilíbrio. (LENZA, 2009). Nessa linha de pensamento, pode-se afirmar que o direito ao contraditório e ampla defesa, ainda na fase inquisitorial, não conspira contra o êxito das investigações, ao contrário, assegura maior legitimidade aos resultados do inquérito, e é exemplo de efetivação dos direitos fundamentais. Assim, a adoção dos princípios constitucionais em comento, mesmo que de forma mitigada, vez que se trata de um procedimento de características de origem inquisitiva e diversa do próprio processo judicial, em que o contraditório e ampla defesa alcançam maior plenitude, confere ao inquérito policial, natureza não de peça meramente informativa, como costumam pregar os operadores do direito, mas procedimento probatório de grande valor para instrução processual e construção dos juízos de culpabilidade e punibilidade do julgador, o qual na judicialização das provas já produzidas em inquérito, tenta se aproximar o máximo possível das verdades acerca dos fatos sob julgamento. De outro lado, não se pode olvidar da importância que assume a Autoridade Policial no encargo de presidir a fase investigativa busque preservar, no âmbito de suas atribuições, a garantia do devido processo legal, e dos princípios do contraditório e ampla defesa, potencializando o uso da disposição garantista contida no Art. 14, do Código de Processo Penal: “o ofendido, ou seu responsável legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”. O que fará com que nos autos do inquérito policial seja possível a colação de elementos de prova de interesse da defesa do indivíduo sujeito à investigação criminal. (TÁVORA, 2009). Em contraposição ao art. 16, do Código de Processo Penal, o qual prescreve: “o Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia”, que confere ao membro do parquet o poder de requisitar, como sinônimo de ordem, reconhecido pela doutrina majoritária, é necessário o fortalecimento do art. 14, com fim de equilibrar a relação processual entre a acusação e a defesa. A autoridade policial possui, portanto, no desenvolvimento de suas funções de Polícia Judiciária, o inequívoco compromisso democrático e ético de que em toda atividade investigativa que realize, com indiciamento de pessoas definidas e já intimadas da existência e andamento do inquérito, garanta, por respeito às garantias dos direitos fundamentais asseguradas na Constituição Federal, a faculdade do indiciado participar na construção das provas pré-processuais. Pois, o procedimento de inquérito tem um fim maior que é subsidiar a instrução de um processo e uma persecução penal justas. Como ressalva, é digno de referência, que o próprio Supremo Tribunal Federal entende que não configura cerceamento de defesa em inquérito policial quando a Autoridade Policial avalia inconvenientes o conhecimento prévio da diligência pelo indiciado ou seu defensor, vez a possibilidade de prejuízos ao procedimento investigatório e ao fim maior do interesse público, justiça social. O que se configura, aparentemente uma mitigação necessárias das garantias constitucionais aqui discutidas em face da natureza pré-processual do inquérito, o que não é o mesmo que negar toda a discussão acima aduzida. Tal hipótese se enquadra perfeitamente nos casos de interceptações telefônicas, autorizada pela própria Constituição no seu art. 5º, em conformidade com a disciplina legal atinente. Ora, não seria razoável que o indiciado tivesse conhecimento desse tipo de diligência antes ou no decorrer da produção probatória, perderia toda a razão de ser do instrumento legal de investigação aperfeiçoado para o combate de organizações criminosas e crimes do colarinho branco, em que a investigação se mostra mais difícil. (GOMES, 2004). Nesse sentido, é digno de transcrição o entendimento do ilustre  Ministro Sepúlveda Pertence, ao relatar o habeas corpus nº 82.354: “EMENTA: I. Habeas corpus: cabimento: cerceamento de defesa no inquérito policial. 1. O cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação a pena privativa de liberdade ou na mensuração desta: a circunstância é bastante para admitir-se o habeas corpus a fim de fazer respeitar as prerrogativas da defesa e, indiretamente, obviar prejuízo que, do cerceamento delas, possa advir indevidamente à liberdade de locomoção do paciente. 2. Não importa que, neste caso, a impetração se dirija contra decisões que denegaram mandado de segurança requerido, com a mesma pretensão, não em favor do paciente, mas dos seus advogados constituídos: o mesmo constrangimento ao exercício da defesa pode substantivar violação à prerrogativa profissional do advogado – como tal, questionável mediante mandado de segurança – e ameaça, posto que mediata, à liberdade do indiciado – por isso legitimado a figurar como paciente no habeas corpus voltado a fazer cessar a restrição à atividade dos seus defensores. II. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial. 1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio. 2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade. 3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações. 4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório. 5. Habeas corpus deferido para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta aos autos do inquérito policial, antes da data designada para a sua inquirição.” (STF, HC 82354/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, J. em 10/08/2004, Pub. 24.09.2004). Enfim, vale lembrar que o inquérito policial, além de ser meio preparatório para a propositura da ação penal, também é instrumento hábil a concluir sobre a existência ou não de crime ou de apurar os indícios de autoria que justificam o início do processo penal, podendo através dele o Ministério Público competente ou a própria Defesa provocarem judicialmente a absolvição sumária do acusado. É necessário ter em conta que a investigação realizada na fase pré-processual tem o fim útil de evitar a instauração de uma ação penal injusta, com violação dos critérios da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estricto) e da razoabilidade. (FEITOSA, 2008). Nessa linha de pensamento, os requerimentos de produção de provas por parte da defesa, nos termos do art. 14, do Código de Processo Penal, uma vez legítimos, em nada prejudica o inquérito policial, sendo que a sua aceitação ou rejeição devem ser feitas de forma motivada nos autos, a teor do quanto exigido pelo art. 93, inciso IX, da CF/88, principalmente, por se tratar de restrição de direitos do acusado. Para encerramento deste ponto e passar às considerações finais acerca do tema, merecem transcrição as palavras de José Pedro Zaccariotto, Delegado de Polícia Civil no Estado de São Paulo, que se posiciona da seguinte forma: “O fundamento constitucional da obrigação de motivar está implícito tanto no artigo 1º, inciso II, da CF/88, que indica a cidadania como fundamento da República, quanto no parágrafo único desse preceptivo, segundo o qual todo poder emana do povo, como ainda no artigo 5º, XXXV, que assegura o direito à apreciação judicial nos casos de ameaça ou lesão de direito. É que o princípio da motivação é reclamado, quer como afirmação do direito político dos cidadãos ao esclarecimento do porquê das ações de quem gere negócios que lhes dizem respeito, por serem titulares últimos do poder, quer como direito individual a não se sujeitarem a decisões arbitrárias, pois só têm que se conformar às que foram ajustadas às leis.” (1999) 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. A evolução e alcance da efetivação dos princípios do contraditório e ampla defesa já a partir da fase de inquérito, num sistema processual penal que ainda conserva características inquisitórias, como exemplo, a possibilidade de determinação ex oficio de diligências e medidas cautelares de restrição de liberdade pelo próprio juiz, que possui por ordem constitucional dever de imparcialidade no julgamento e condução processual, às vezes se mostra difícil na realidade prática, mesmo com o apoio de entendimento dos tribunais superiores, pois ainda está incutido no meio policial fortes tendências inquisitivas, fruto da formação e história das instituições policiais no país. Assim, a tarefa de buscar a verdade real ou processual, de forma proporcional e justa, desde a fase de inquérito é dever que se impõe aos profissionais que militam na atividade de polícia judiciária, os quais precisam amadurecer a sensibilidade e o respeito aos princípios garantistas explícitos ou implícitos na ordem constitucional vigente, em específico, os do contraditório e ampla defesa. O fato é que, conseguindo a Polícia Judiciária apresentar ao órgão jurisdicional competente um inquérito policial conduzido sob a égide das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, mesmo que relativizados em alguns casos, nas hipóteses argumentas no bojo do presente trabalho, haverá benefício não apenas às partes que compõem o processo, mas à própria sociedade na busca de uma condenação penal justa. Por fim, o que não pode ocorrer é uma involução no combate à criminalidade organizada com adoção de medidas arbitrárias como justificativa de alcançar a responsabilização penal a qualquer custo, apenas para efeito de resposta à sociedade. Não é isso que a sociedade democrática de direito almeja. Não se pode voltar ao tempo em que o processo criminal era inteiramente inquisitório. O povo moderno exige maior respeito às suas garantias constitucionais, e para acompanhar a evolução social, as instituições policiais necessitam também crescer e acompanhar esta evolução social, se adequando às exigências e garantias inerentes aos direitos do homem, positivadas constitucionalmente como direitos fundamentais.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-74/o-direito-ao-contraditorio-e-ampla-defesa-na-fase-inquisitoria-do-processo-penal-2/
Interceptação telefônica a luz do ordenamento jurídico brasileiro após o advento da Lei 9296/96
A Constituição Federal de 1988 previu a inviolabilidade das comunicações telefônicas, salvo nos casos de investigação de crimes e devidamente autorizada pelo juiz. Tal norma necessitava de regulamentação, a qual foi feita pela lei 9296/96. A partir do advento dessa lei, tornou-se possível a interceptação telefônica quando houver indícios de participação em crime punido com pena de reclusão e não houver outro meio de prova para se chegar a autoria e materialidade da infração. Parte da doutrina critica alguns dispositivos da lei, existindo inclusive uma Ação Direta de Inconstitucionalidade face ao artigo 5º, que possibilita a produção da prova determinada de ofício pelo juiz. Entretanto até a presente data a lei tem sido acolhida pelos Tribunais e as interceptações que obedecem seus dispositivos estão sendo consideradas provas válidas na persecução penal.
Direito Processual Penal
1.INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XII, trouxe a inviolabilidade das comunicações telegráficas de dados e das comunicações telefônicas, sendo possível, excepcionalmente, a interceptação da comunicação telefônica, mediante autorização judicial, quando se tratar de investigação criminal ou instrução processual penal, nos moldes estabelecidos em lei própria. De 1988 até 1996 a interceptação telefônica não era possível, já que não havia lei que regulamentava o citado inciso, sendo inclusive declarado não recepcionado pela Carta Magna o art. 57, II da Lei n.º 4117/62 (Código Brasileiro de telecomunicações) que versava sobre o tema. Com o advento da Lei 9296/1996, que regulamentou inciso XII do art.5º da CF/88, tornou-se possível a interceptação telefônica desde que realizadas dentro dos parâmetros e procedimentos desta lei. É claro que se tratando da violação de uma garantia fundamental, mesmo regulamentada por lei própria, é mister, a luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, do princípio do estado de inocência,  do respeito à intimidade e vida privada e  do devido processo legal, um juízo de proporcionalidade ante aos casos em que se pretenda a interceptação telefônica para que não seja suprimido o Estado Democrático de Direito. Conforme salienta Rodrigo C. R. Pinho[1], o indivíduo precisa ter segurança de que toda s as suas comunicações pessoais, tanto as feitas por cartas como as realizadas por telegramas ou telefonemas não serão interceptadas por outras pessoas. O mesmo autor, citando Ada Pellegrini Grinover, enfatiza a dúplice tutela do dispositivo constitucional em voga, quais sejam, a liberdade de manifestação do pensamento e do segredo como expressão do direito a intimidade das pessoas. Ante a sensibilidade do tema, se faz necessário a análise das autorizações trazidas pela lei 9296/96 para a realização do meio de prova em questão, para se compreender como devem se dar as interceptações, de forma a obedecer os princípios constitucionais, sem perder de vista a eficácia e efetividade da persecução penal. 2. CONCEITOS Antes de adentrarmos aos ditames da lei e as divergências aí existentes, é necessário conceituarmos, de acordo com maior parte da doutrina, as diferentes formas de violação às comunicações. As formas de captação de conversa de dividem em três: gravação clandestina, gravação ambiental e interceptação telefônica em sentido amplo, sendo esta dividida em interceptação telefônica em sentido estrito e escuta telefônica. A gravação clandestina ou gravação telefônica é aquela captação de conversa, via telefone, efetuada por um dos interlocutores, sem a ciência ou consentimento do outro. Esta hipótese não é alcançada pela lei 9296/96, vez que não é realizada por um terceiro estranho à conversa. Aqui não se verifica a figura criminosa do art.10[2] da Lei de Interceptações Telefônicas, mas a divulgação da gravação pode significar afronta ao inciso X do artigo 5º da Constituição Federal de 1988[3], e sujeitar o autor da gravação ao dever de reparação do dano no âmbito civil. A gravação ambiental, se diferencia das demais por que não se dá via telefone, mas por algum meio eletrônico capaz de gravar conversa ou imagem em determinado ambiente, de forma aberta, presencial. Aqui se discute a validade desta prova quando feita sem o consentimento dos interlocutores, pois violaria o direito a intimidade e a vida privada. É importante frisar que seria possível a gravação ambiental nos casos de legítima defesa, por exemplo, no crime de concussão, em que a vítima grava a exigência do autor do delito, com fito de se proteger do possível abuso cometido pelo servidor que poderia vir a prejudicar a vítima. Vale ressaltar, ainda, que a gravação ambiental poderá ser realizada se houver a devida autorização judicial e desde que se trate de investigação envolvendo organizações criminosas, conforme preceitua o art.2, inciso IV, da lei 9034/95, in verbis: “Art. 2o Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:” (Redação dada pela Lei nº 10.217, de 11.4.2001) A Interceptação telefônica em sentido estrito é a captação da conversa realizada por um terceiro, sem o conhecimento dos interlocutores, e a escuta telefônica é a captação da conversa, feita por um terceiro, com o consentimento de apenas um dos interlocutores. Essas formas de obtenção de prova são possíveis desde que obedeçam os preceitos da lei 9296/96. 3. NECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL Já na norma constitucional há a exigência de autorização judicial, entretanto a lei 9296/96 trouxe a expressão “juiz competente da ação principal”, ou seja, alargou a garantia constitucional, restringindo a autoridade judicial que pode autorizar a interceptação. Questiona-se acerca da licitude da prova determinada por um juiz, a princípio competente, mas que depois se declara incompetente para a condução do feito, por exemplo, se durante as investigações entendeu-se que a competência seria de um juiz federal, mas a posteriori verificou-se a necessidade de declinação da competência a um juiz estadual, seria válida a interceptação telefônica determinada pelo juiz federal? O Pretório Excelso, provocado a se manifestar sobre o tema decidiu, no hábeas corpus n.º 81260, que é lícita a prova autorizada por juiz que depois se declina incompetente, vejamos: “Interceptação telefônica: exigência de autorização do “juiz competente da ação principal” (L. 9296/96, art. 1º): inteligência. 1. Se se cuida de obter a autorização para a interceptação telefônica no curso de processo penal, não suscita dúvidas a regra de competência do art. 1º da L. 9296/96: só ao juiz da ação penal condenatória – e que dirige toda a instrução -, caberá deferir a medida cautelar incidente. 2. Quando, no entanto, a interceptação telefônica constituir medida cautelar preventiva, ainda no curso das investigações criminais , a mesma norma de competência há de ser entendida e aplicada com temperamentos, para não resultar em absurdos patentes: aí, o ponto de partida à determinação da competência para a ordem judicial de interceptação – não podendo ser o fato imputado, que só a denúncia, eventual e futura, precisará -, haverá de ser o fato suspeitado, objeto dos procedimentos investigatórios em curso. 3. Não induz à ilicitude da prova resultante da interceptação telefônica que a autorização provenha de Juiz Federal – aparentemente competente, à vista do objeto das investigações policiais em curso, ao tempo da decisão – que, posteriormente, se haja declarado incompetente , à vista do andamento delas.” Nesse sentido é o artigo 567 do Código de Processo Penal quando dita que a incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, ou seja, os atos de caráter probatório devem permanecer quando da remessa do processo ao juiz competente. Insta observar que a própria Constituição excepciona duas situações em que não é necessária a autorização judicial para a interceptação telefônica: no estado de defesa (art.136, §1º, I, c) e no estado de sítio (art.139, III). Atualmente se discute quanto a possibilidade de interceptação telefônica pelo Ministério Público, ou seja, adentra-se naquela discussão acerca da possibilidade de investigação pelo órgão ministerial. O alcance dessa celeuma extrapola os objetivos deste trabalho, uma vez, que a lei 9296/96 permite que o julgador autorize a interceptação telefônica após requerimento do Ministério Público, porém, ao que se retira da análise do sistema processual penal e constitucional de organização e distribuição de atribuições, a diligencia, como regra, compete à Polícia Civil. 3.1 – Autorização de interceptação telefônica por Comissão Parlamentar de Inquérito  A Constituição Federal, em seu artigo 58, §3º[4], outorga às comissões parlamentares de inquérito poderes investigatórios próprios das autoridades judiciais, entretanto deve-se entender esses poderes investigativos de forma restritiva, já que no ordenamento jurídico brasileiro existe a denominada reserva de jurisdição, que é a expressa previsão constitucional de competência exclusiva dos órgãos do Poder Judiciário. Alexandre de Moraes exemplifica com clareza solar o que foi dito acima: “Quando o texto constitucional prevê no art.5º,XI, a possibilidade de invasão domiciliar durante o dia, por determinação judicial, ou ainda, quando no art. 5º, XII, permite a interceptação telefônica, por ordem judicial, expressamente reservou a prática desses atos constritivos da liberdade individual aos órgãos do Poder Judiciário. Nessas hipóteses, as CPIs carecem de competência constitucional para a prática desses atos, devendo solicitar ao órgão jurisdicional competente”[5]. Portanto, às comissões não é dado o poder de determinar a interceptação telefônica, sob pena de nulidade da prova produzida e sua exclusão do processo. 4. INTERCEPTAÇÃO DO FLUXO DE COMUNICAÇÕES NO SISTEMA DE INFORMATICA E TELEMÁTICA. A Lei 9296/96, em seu artigo 1º, parágrafo único, estendeu sua aplicação às interceptações de fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática.  A Carta Magna permitiu apenas a violação das informações transmitidas via telefone, pois, expressamente atribuiu a possibilidade ao “último caso”, qual seja, os dados e comunicações telefônicas. Nesse sentido manifesta-se Ricardo Rabonese, citado por Rangel (2000, p.64): “É sabido que a veiculação em informática e telemática não somente veicula conversações, mas também dados sigilosos em sua maioria, e, neste caso em prol do próprio comando constitucional, preservar-se-ia o direito à intimidade do indivíduo”. Nota-se grande celeuma sobre o tema, tanto que quanto ao mérito o STF não deu seu pronunciamento final, mas indeferiu o pedido de medida cautelar para suspensão do citado dispositivo: “Ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafo único do art. 1º e art. 10 da Lei n. 9.296, de 24-7-1996. Alegação de ofensa aos incisos XII e LVI do art. 5º, da Constituição Federal, ao instituir a possibilidade de interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática. Relevantes os fundamentos da ação proposta. Inocorrência de periculum in mora a justificar a suspensão da vigência do dispositivo impugnado. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida. Medida cautelar indeferida.” (ADI 1.488-MC, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 7-11-96, DJ de 26-11-99) Não obstante a recomendação de interpretar-se restritivamente as normas constitucionais que limitam direitos, depreende-se da suso citada decisão que, por enquanto, admite-se a interceptação da comunicação de dados em sistemas de informática e telematica, até porque, são espécies da comunicação telefônica, vez que necessitam desse meio para se produzirem. Luiz Flávio Gomes[6], embora não entenda os fluxos de telemática e informática como espécies da comunicação telefonia, admite a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 1º: parágrafo único em questão é absolutamente legítimo, inquestionavelmente constitucional. Estão regidas pela Lei n.º 9296/96 tanto as comunicações telefônicas, como as comunicações telematicas (independentes da telefonia) . Portanto, vê-se que embora pareça claro no texto constitucional que a lei superveniente somente poderia tratar da interceptação telefônica, grande parte da doutrina e o Supremo Tribunal Federal considera constitucional o parágrafo único do artigo 1º, admitindo como lícita a violação de dados de telematica e informática nos moldes da lei 9296/92. 5- CABIMENTO DA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA A Lei 9296/96, em seu artigo 2º, traz as hipóteses em que não será admitida a interceptação telefônica. De maneira mais didática, citaremos, a contrario sensu da maneira trazida na lei, quais são os requisitos que permitem a produção da prova pela interceptação telefônica: quando houver indícios razoáveis da autoria e participação da infração penal; nos casos em que a prova não puder ser feita por outros modos, e se o fato investigado for punido com pena de reclusão. Além dos pressupostos legais há os pressupostos constitucionais, quais sejam; que a interceptação se dê em investigação criminal ou em instrução processual penal, ou seja, processo de natureza cível, trabalhista dentre outros não é possível a interceptação telefônica; e o outro requisito é a necessidade de autorização judicial, a qual já tratamos no item 2. Conforme sustenta Rangel (2000, p.67) as hipóteses em que a interceptação é possível, trazidas pela lei, deixaram de ser exceção e passaram a ser a regra, tendo conteúdo muito abstrato, deixando grande margem de discricionariedade ao julgador: “Conforme se observa, o referido dispositivo, não obstante já nos dois primeiros incisos propiciar um elevado e desaconselhável grau de discricionariedade ao Estado-Jurisdição para o deferimento deste tipo de prova, em seu inciso III consagra uma arbitrária inversão da natureza legal desta lei.” Não obstante a respeitada opinião do doutrinador acima citado, seguido por nomes como Antonio Magalhães Gomes Filho e Lenio Streck que entende desproporcional a interceptação em todo e qualquer crime punido com reclusão, o STF entende que com o advento da lei 9296/96, é perfeitamente possível a interceptação telefônica, ou seja, trata-se de um lei constitucional formal e materialmente. 5.1- Teoria do encontro fortuito de provas quanto ao fato investigado. Exige-se, para que se possa proceder a interceptação telefônica que o crime seja punido com pena de reclusão, entretanto, se ao investigar crime punido com reclusão obtém-se de forma fortuita provas de um crime punido com pena de detenção, correlato ao crime para o qual foi autorizada a interceptação, essas provas devem ser consideradas válidas, pois é impossível em escuta interceptada separar as conversas em razão dos fatos a serem apenados de forma mais grave ou mais branda. Nesse sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Ordinário e Hábeas Corpus n.º 13.274, RS (2002/0104866-6), relatado pelo Ministro Gilson Dipp em 10 de agosto de 2003, se segue: “XII. Se, no curso da escuta telefônica – deferida para a apuração de delitos punidos exclusivamente com reclusão – são descobertos outros crimes conexos com aqueles, punidos com detenção, não há porque excluí-los da denúncia, diante da possibilidade de existirem outras provas hábeis a embasar eventual condenação. XIII. Não se pode aceitar a precipitada exclusão desses crimes, pois cabe ao Juiz da causa, ao prolatar a sentença, avaliar a existência dessas provas e decidir sobre condenação, se for o caso, sob pena de configurar-se uma absolvição sumária do acusado, sem motivação para tanto.” 5.1.1 – Teoria do encontro fortuito de provas quanto ao autor do delito. Reza o parágrafo único do artigo 2º da lei ora analisada que “em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.” Percebe-se que a objetivo da norma, mais uma vez, é evitar abusos da autoridade, proteger a liberdade de comunicação do cidadão dando segurança de que sua intimidade está protegida. Ocorre que há situações em que se está investigando certa pessoa e por meio da interceptação descobre-se crime praticado por outra pessoa alheia aquela primeira investigação autorizada pela juiz da causa de maneira certa e determinada. Conforme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, quanto a possibilidade de aceitação da prova quando descobre-se fato criminoso punido com detenção, de forma fortuita, é também possível a utilização da prova contra aquele que não fora anteriormente especificado como objeto/sujeito da investigação. Corrobora com essa premissa o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que as garantias constitucionais não podem servir de escudo protetivo à prática de crimes. Outro argumento favorável à possibilidade da utilização da prova contra pessoa não identificada na autorização judicial é a parte final do artigo 2º da lei 9296/96, pois embora tenha sido descoberta prova contra pessoa não identificada, é manifestamente impossível especificá-la antes do conhecimento de que se trata de pessoa envolvida em crime. Aqui o Estado não pode deixar de exercer o direito de punir através do devido processo legal com base em formalidades, pois, vige no Processo Penal a busca pela verdade material. Portanto, não seria prova ilícita aquela interceptação autorizada para determinada pessoa diferente daquele futuro réu contra o qual se utilizará a prova, desde que tenha sido fortuitamente descoberto o delito e seu autor. 6. DECRETAÇÃO DE OFÍCIO DA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA O artigo 3º da lei 9296/96 reza: “A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz de ofício ou a requerimento: I – da autoridade policial, na investigação criminal;  II- do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução processual penal.” Quanto às possibilidades de decretação mediante provocação (da autoridade policial ou do Ministério Público) o legislador seguiu o sistema processual penal acusatório, porém, no que tange a possibilidade de decretação de ofício pelo juiz, vislumbra-se a figura de um juiz imparcial, pois se ele é o competente para a causa, conforme reza o artigo 1º, como pode sem provocação do órgão acusador ou do órgão investigador diligenciar no sentido de colher provas contra o indiciado? Tendo em vista o desrespeito ao sistema processual pátrio, foi ajuizada Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3450) pelo Procurador Geral da República face deste dispositivo, mas ainda não houve julgamento. Embora não se saiba qual será o resultado da ADI 3450, o STF já se pronunciou contrário à figura do juiz que produz provas de oficio quando julgou procedente a ADI 1.570-2, que questionava a possibilidade de realização de prova pessoalmente pelo juiz, prevista no artigo 3º da Lei 9034/1995. Isto posto, enquanto não é julgada a ADI 3450, está em vigor o referido artigo 3º da lei 9296/96, mas de acordo com o posicionamento majoritário da doutrina e o julgamento da ADI 1.570-2, provavelmente será declarado inconstitucional a parte que autoriza o juiz a determinar a interceptação telefônica de ofício. É relevante destacar que o novel artigo156[7] do Código de Processo Penal, trouxe em seu inciso I, a possibilidade de o juiz ordenar a produção de prova mesmo antes de iniciada a Ação Penal, ou seja, a figura do juiz inquisitor foi regulamentada pelo dispositivo em questão, fortalecendo, assim, a corrente que defende a constitucionalidade do artigo terceiro caput da lei 9296/96. 7. PRAZO PARA REALIZAÇÃO DA INTERCEPTAÇÃO A decisão do juiz que autoriza a interceptação deve ser fundamentada, indicando a maneira de execução e o prazo de realização da diligencia, que pode ser de até 15 dias, prorrogável por novos 15 dias, quantas vezes for necessário, desde que indispensável este meio de prova para a investigação. O artigo 5º, não traz quantas vezes pode ser renovada a diligencia, mas também não veda o número infinito de renovações, desde que cada autorização seja dada por apenas 15 dias. A Jurisprudência também não limita a quantidade de vezes, até porque as grandes operações investigativas podem durar dois ou três anos, e se não fosse possível à renovação da interceptação telefônica restariam prejudicas inúmeras ações da polícia que obtiveram êxito. Nesse diapasão vejamos o que decidiu o STF no Hábeas Corpus 83515/RS- Rio Grande do Sul, relatado pelo Ministro Nelson Jobim, em 16/09/2004, publicado em 04/03/2005: “É possível a prorrogação do prazo de autorização para a interceptação telefônica, mesmo que sucessivas, especialmente quando o fato é complexo a exigir investigação diferenciada e contínua. Não configuração de desrespeito ao art. 5º, caput, da L. 9.296/96.” Parte da doutrina critica a o número excessivo de renovações, argüindo que  estaria sendo atribuído um grande poder ao juiz, já que durante as primeiras interceptações, caso não houvesse encontrado provas de autoria e materialidade do crime, com certeza inúmeras situações íntimas já haveriam sido devassadas. Outro argumento para se criticar a indeterminação de prazo para realização desse meio de prova é o fato de que o próprio estado de defesa[8], que é uma situação extraordinária, transitória e que durante sua vigência pode-se violar algumas garantias constitucionais, tem prazo determinado de trinta dias prorrogáveis por mais um período de trinta dias, então não poderia a interceptação telefônica, realizada em momento de normalidade, ocorrer por período incerto. Entretanto tal argumento não pode prosperar pois o Estado de defesa é decretado pelo Presidente da República utilizando-se de um juízo político e sem a necessidade da ocorrência de nenhum crime; enquanto a interceptação telefônica é medida decretada por autoridade judiciária realizando um juízo jurídico e tem como pressuposto a prática de um crime punido com reclusão. 8. VIOLAÇÃO DE CONVERSA TELEFONICA COM ADVOGADO Devemos ressaltar que não há possibilidade da interceptação telefônica entre o cliente (investigado) e seu advogado, pois o sigilo profissional do advogado no exercício da profissão é inerente ao próprio princípio do devido processo legal e portanto inviolável. O Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB dispõe com clareza sobre o tema em seu artigo 7º, II, vejamos: “Art.7º São direitos do advogado; II- ter respeitada, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônica ou afins, salvo caso de busca e apreensão determinada por magistrado e acompanhada de representante da OAB”. (Grifo nosso) Portanto, se tratando de função essencial a justiça, as comunicações do advogado são invioláveis, mas, caso o advogado seja suspeito, e aí não estaria na figura de defensor, mas de co-autor ou partícipe da provável infração penal, nada impede a interceptação telefônica, pois o sigilo diz respeito aos atos de defesa próprios do exercício da profissão. 9. CONSIDERAÇÕES FINAIS São inúmeras as polemicas despertadas pela possibilidade de violação às comunicações telefônicas, entretanto o fato de haver lei regulamentando o tema já traz segurança jurídica aos jurisdicionados e também capacidade investigativa aos órgãos competentes. Ficou evidenciado que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça tem primado pela necessidade de se combater o crime, dando operabilidade a interceptação telefônica. Tal posicionamento jurisprudencial por vezes diverge da doutrina garantista que vê na lei 9296/96 falhas que a eivam de total inconstitucionalidade pois permite a quebra desarrazoada de alguns direitos e garantias constitucionais. Não se pode negar a existência de alguns pecadilhos na lei, mas, neste período em que o crime está cada vez mais organizado e o Estado cada vez mais caótico, há que se pesar, isto é, usar o princípio da proporcionalidade e admitir certas quebras de garantias com o fim de punir aqueles que violam os bens mais valiosos protegidos pela constituição e pela legislação penal, sem é claro adentrarmos em um direito processual de emergência ou simbólico( Direito penal de 3º velocidade ou direito penal do Inimigo). Admitir a interceptação telefônica é um anseio da sociedade, que não mais admite a impunidade ante a tantos acontecimentos estarrecedores protagonizados tanto pelos criminosos menos favorecidos, mas principalmente  pelos infratores mais abastados. Portanto, há que se pautar sob a proporcionalidade e razoabilidade e diante do caso concreto perceber que mais vale a punição do criminoso do que o risco de se violar a comunicação de um inocente.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-73/interceptacao-telefonica-a-luz-do-ordenamento-juridico-brasileiro-apos-o-advento-da-lei-9296-96/
O inquérito policial: Sigilo x mídia
O presente artigo tem o intuito de apresentar o uso do sigilo e da mídia nas investigações policiais. Afinal, apesar de o Inquérito Policial tratar-se de procedimento administrativo, cujo desenvolvimento se dá unilateralmente, não significa dizer que não devam ser resguardados, no seu desenrolar, os direitos fundamentais do investigado. E a maneira que o legislador encontrou para proteger esses direitos fundamentais foi aplicando a característica do sigilo ao inquérito policial, prevista no artigo 20 do Código de Processo Penal. No entanto, nos dias atuais, o sigilo está abalado pelo assédio desenfreado da imprensa sensacionalista, que utilizando meios ardilosos e até mesmo a vaidade de certos Delegados de Polícia, conseguem informações sobre as investigações criminais e as divulgam de forma irresponsável à população, proclamando o veredicto antes mesmo da produção de provas e da defesa dos acusados. Com a pesquisa conclui-se que a atitude, muitas vezes irresponsável, da mídia em divulgar informações sigilosas de Inquéritos Policiais prejudica inocentes. Sabendo que a censura é algo extremamente indesejável e repreensível para a imprensa, também a veiculação de notícias e opiniões antecipadas que tenham condão de destruir vidas e que não tenham embasamento técnico possui essas mesmas características.
Direito Processual Penal
1. Introdução O presente estudo, que possui como título O INQUERITO POLICIAL: SIGILO X MÍDIA será realizado a partir de uma pesquisa bibliográfica específica sobre o uso devido da norma. O inquérito policial trata-se de um procedimento administrativo e unilateral, onde não existe a aplicação do instituto do contraditório e da ampla defesa. No entanto, essa ausência de defesa do indiciado não autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que o assistem. Não podemos esquecer que o indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais. E uma das maneiras que o legislador encontrou para proteger esses direitos fundamentais foi aplicando a característica do sigilo ao inquérito policial, prevista no artigo 20 do Código de Processo Penal. Portanto, o inquérito policial será sigiloso. Sigilo esse que abrange à restrição à publicidade dos atos de investigação com relação às pessoas do povo e, a impossibilidade de o investigado tomar ciência das diligências realizadas e acompanhar os atos investigatórios a serem realizados. Contudo, nos dias atuais ocorre o uso indevido e indiscriminado de tais dados por parte dos profissionais envolvidos nos trabalhos relacionados às investigações. Levando-se em consideração o uso dessas informações por parte da mídia, percebe-se na maioria das vezes o uso inconveniente destas pela sua veiculação incorreta e indevida, e que ocasiona danos muitas vezes irreparáveis na vida social e no aspecto psicológico do indivíduo que se encontra indiciado. O que se persegue no presente estudo é apresentar o que seja o Inquérito Policial, bem como estudar aprofundadamente a característica do sigilo nas investigações policiais, e apresentar uma analise critica e minuciosa sobre a intervenção da mídia nessa fase pré-processual, que muitas vezes causa danos ao indiciado, por conta da veiculação de informações imprecisas. Para tanto, inicia-se o trabalho com o estudo do que seja Inquérito Policial. Após, passa-se à apresentação das suas características, competência e seu valor probatório. Ato contínuo será apresentado um breve relato do Inquérito Policial no Direito Comparado. Por fim, iniciam-se o estudo da característica do sigilo e o comportamento da mídia na divulgação de informações oriundas de Inquérito Policial. Como dito, esta pesquisa pretende apresentar o poder de influencia que a mídia, como meio de comunicação eficaz, pode provocar na sociedade e o dano moral e até físico que pode causar ao indicado. 2. INQUÉRITO POLICIAL O Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871, instituiu no Brasil o inquérito policial, estabelecendo a separação entre a polícia e o Poder Judiciário. O artigo 42 do referido diploma legal determinava que “o inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento do fato criminoso, de suas circunstâncias e dos seus autores e cúmplices”. 2.1 Noções Preliminares Por inquérito policial compreende-se o conjunto de diligências realizadas pela autoridade policial visando à obtenção de elementos que apontem a autoria e comprovem a materialidade dos crimes investigados, permitindo, assim, ao Ministério Público – nos delitos de ação penal pública – e ao ofendido – nos delitos de ação penal privada – o oferecimento da denúncia e da queixa-crime. Possui natureza administrativa, ao passo que é instaurado pela autoridade policial. Tratando-se de um procedimento inquisitorial, destinado, a angariar informações necessárias à elucidação de crimes, não há ampla defesa no seu curso. Igualmente, não há o que se falar-se em contraditório, salvo em relação ao inquérito objetivando a expulsão de estrangeiro, pois quanto a este, o Decreto 86.715/1981, regulamentando os dispositivos da Lei 6.815/1980 (Estatuto do Estrangeiro), estabeleceu uma sequência de etapas que, abrangendo a possibilidade de defesa, devem ser observadas visando a concretizar o ato de expulsão (artigos 102 a 105 do Decreto 86.715/1981). Considerando a ausência das garantias do contraditório e da ampla defesa, há muito vem a jurisprudência[1] compreendendo que o valor probante do inquérito policial é relativo, exigindo-se, então, que, como regra geral, as provas a ele incorporadas sejam renovadas ou ao menos confirmadas pelas provas judicialmente produzidas sob o manto do devido processo legal e dos demais princípios informadores do processo. Ressalva a esta necessidade de judicialização, porém, existe uma relação às provas técnicas que tenham sido realizadas no decorrer da sindicância policial, como é o caso das perícias destinadas à comprovação do vestígio deixado pela infração penal, as quais não exigem sua repetição em juízo como condição para que sejam valoradas pelo magistrado. Esta questão relativa ao valor relativo do inquérito, incapaz, em regra, de por si só formar o convencimento do magistrado quanto à responsabilização penal do imputado, com a edição da Lei 11.690/2008, foi expressamente incorporado à regulamentação do Código de Processo Penal, dispondo, agora, o artigo 155 que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Em brilhante decisão, o Ministro Relator CELSO DE MELLO do Supremo Tribunal Federal afirma o seguinte: “A unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que assistem ao indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto de investigações. O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial” (STF – HC 73271 – SP – 1ª T. – Re. Min. Celso de Mello – DJU 04.10.1996 – p. 37100) Desta forma, o que se conclui é que o inquérito policial, peça informativa, não pode servir com prova exclusiva para a condenação, aplicando assim o princípio constitucional inserto no artigo 5º, LVII, da CF/88[2]. Com relação à nulidade do processo criminal por vícios eventualmente constatados no inquérito policial, não há o que se falar. No caso de não serem observadas normas procedimentais estabelecidas para a realização das diligências que compõem o procedimento policial, a conseqüência será minimizar-se o já reduzido valor probante que, como referimos, é legalmente atribuído o precipitado expediente policial. Neste sentido, existem reiteradas decisões do Supremo Tribunal de Justiça[3], compreendendo que eventual nulidade do inquérito policial não contamina a ação penal superveniente, vez que aquele é mera peça informativa, produzida sem o crivo do contraditório. O entendimento majoritário é que o inquérito administrativo nunca é nulo. O renomado advogado FLÁVIO MEIRELLES MEDEIROS[4] defende: “O inquérito policial que contém irregularidades, no processo dos crimes que se inicia mediante denúncia, não acarreta nunca nulidade do processo. E por um motivo bastante simples: o inquérito nestes processos (iniciados por meio da denúncia) não é peça processual, e sim peça meramente informativa. Ora, não há de se falar em nulidade de processo devido a vícios de peças não processuais. O inquérito só é peça processual no processo das contravenções e dos crimes de lesões e homicídio culposo; neste caso, as nulidades do inquérito incidem sobre o processo”. Diante do exposto, o que se conclui é que os vícios ocorridos no inquérito policial não têm o condão de contaminar a ação penal. Além do mais, o inquérito policial não é imprescindível ao ajuizamento da ação penal. Na medida em que seu conteúdo é meramente informativo, se já dispuserem o Ministério Público ou o ofendido os elementos necessários ao oferecimento da denuncia ou queixa-crime, poderá ser dispensado o procedimento policial sem que isto importe qualquer irregularidade (artigos 39, §5º, e 46, §1º, do Código Processual Penal[5]). 2.2. Características São as seguintes características que informam o inquérito policial: 2.2.1 Procedimento escrito O inquérito policial destina-se imediatamente ao titular da ação penal (Ministério Público nas ações penais públicas e, em regra, o ofendido nas ações penais privadas) e mediatamente ao juiz. Portanto, para que o titular da ação penal possa formar sua convicção e para que o juiz exerça o controle da legalidade, bem como aproveite, para julgar, elementos colhidos na fase investigatória, deve o inquérito policial ser escrito. Não se pode olvidar que a adoção da forma escrita constitui, também, uma garantia do investigado. Apesar do inquérito policial ser peça informativa, é possível que, no decorrer, atinja-se a liberdade ou o patrimônio jurídico do investigado, seja pela necessidade de acesso a informação ordinariamente cobertas pelo sigilo, seja, mesmo, pela possibilidade de decretação de sua prisão ainda durante o inquérito. É no artigo 9, do CPP, que encontramos a determinação legal de que o inquérito policial deve ser escrito: “Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade”. 2.2.2. Instrumentalidade O inquérito policial tem caráter essencialmente instrumental. Sua finalidade é possibilitar a reunião de elementos de prova que reforcem e fundamentem as suspeitas acerca da prática de delito de natureza penal. Nesse sentido, o inquérito policial é um procedimento preparatório para eventual ajuizamento de ação penal. Além disso, o inquérito policial serve também como elemento de “filtragem” do sistema penal, ao prevenir a movimentação do Poder Judiciário para o processamento de fatos não esclarecidos ou de autoria ainda desconhecida. 2.2.3 Obrigatoriedade A obrigatoriedade do inquérito policial deve ser analisada sob dois aspectos: Uma vez oferecida a notitia criminis – ou seja, uma vez que a autoridade policial, por qualquer meio, tenha conhecimento da potencial prática de infração penal objeto de ação penal pública incondicionada, estará essa autoridade obrigada a instaurar, de ofício, inquérito policial para a sua investigação. A obrigatoriedade decorre da redação do artigo 5º do CPP, que determina o seguinte: “nos crimes de ação pública, o inquérito policial será iniciado”, não deixando margem, portanto, para a discricionariedade da autoridade policial. É indeclinável que a autoridade policial promova a capitulação do fato investigado e, conquanto tal capitulação seja provisória e não vincule o Ministério Público, faz-se necessária, seja para justificar a decisão inicial de instaurar o inquérito, seja ainda para a solução de questões incidentais relevantes ao procedimento. O delegado de polícia, por exemplo, pode conceder fiança nos casos de infrações apenadas com detenção ou prisão simples (art. 322, do CPP). É através da capitulação provisória que o delegado analisará a possibilidade de concessão de fiança. Além disso, uma vez instaurado, o inquérito policial não pode ser arquivado por iniciativa da autoridade policial. O artigo 17 do CPP[6] consagra a indisponibilidade do inquérito policial. Instaurado, deve o inquérito ser conduzido até seu encerramento, que se dará formalmente com a apresentação de um minucioso relatório final, da lavra da autoridade que o presidiu. É o que dispõe o artigo 10, §1º, do CPP[7]. Por outro lado, é certo que o exercício da ação penal não requer a previa conclusão – ou mesmo a prévia instauração – do inquérito policial. Poderá haver ação penal, pública ou privada, sem que tenha havido prévio inquérito policial. Essa facultatividade, se não encontra previsão legal expressa, pode ser deduzida da redação de diversos artigos do Código Processual Penal. Com efeito, o artigo 12 do referido diploma prevê que o inquérito policial deverá acompanhar a denuncia ou queixa “sempre que servir de base a uma ou a outra”. Prevêem-se, assim, por exclusão, situações em que o inquérito policial não servirá de base à denúncia ou à queixa. Ademais, o artigo 46, §1º, do CPP estabelece prazo para que o Ministério Público ofereça a denuncia no caso em que “dispensar o inquérito policial”. Também no artigo 39, §5º, do mesmo diploma legal, prevê-se hipótese em que “o órgão do Ministério Público dispensará o inquérito”, embora essa dispensa seja, no caso, condicionada à existência prévia de representação que permita, por seu conteúdo, o oferecimento da denúncia. Outro argumento a favor da tese da facultatividade é a idéia de que os órgãos do Ministério Público, em razão da independência funcional a eles atribuída pela Constituição Federal, art. 127, §1º, e pela Lei Complementar nº 75/93, artigo 4º têm liberdade para formar convicção acerca da ocorrência do crime (o chamado opinio delicti). Desse modo, não seria razoável exigir que o Ministério Público seja obrigado a requerer e acompanhar diligências em inquérito policial se entender que os elementos já existentes são suficientes para fundamentar o ajuizamento de ação penal. Ainda por força da independência funcional, o Ministério Público, recebendo os autos do inquérito policial, não fica vinculado às conclusões da autoridade policial acerca dos fatos apurados. Assim, mesmo que o delegado, uma vez encerrada a investigação, conclua pela prática de determinado crime, poderá o Ministério Público, à sua discricionariedade, oferecer denúncia pela prática de crime diverso. Não se exige, portanto, que a ação penal seja necessariamente embasada nos elementos obtidos com a elaboração do inquérito. A denúncia ou queixa poderão fundar-se em dados colhidos de outros procedimentos administrativos ou mesmo em documentos idôneos obtidos de formas diversas, respeitada apenas a necessária licitude dos meios pelos quais as provas serão recolhidas. O inquérito policial, portanto, é prescindível, na exata medida em que seu objetivo – apuração da ocorrência do crime e indícios do provável autor-, nas hipóteses referidas, foi alcançada. 2.2.4 Caráter meramente informativo O inquérito policial tem caráter meramente informativo. Conquanto tenha por finalidade última possibilitar a punição daqueles que infringem a ordem penal, não se presta, em si mesmo, como instrumento punitivo, uma vez que não é idôneo a provocar a manifestação jurisdicional. A pretensão punitiva pode apenas ser veiculada pela ação penal, que não pode ser exercida pela autoridade policial, como se viu. Os elementos de prova produzidos por meio do inquérito, portanto, servirão apenas para fundamentar a formação da convicção do órgão incumbido de exercer a ação penal (o Ministério Público, no mais das vezes) acerca da existência de crime. Exatamente por ser o inquérito policial peça meramente informativa, os vícios incorridos durante seu trâmite não contaminarão a ação penal ajuizada. As irregularidades presentes no inquérito não invalidam o processo, atingindo somente a eficácia do ato viciado. Assim, a título de exemplo, eventual vício na lavratura do auto de prisão em flagrante deverá tão-só redundar no relaxamento de prisão, e não na necessidade de que seja reconduzido o inquérito policial a partir desse ato. 2.2.5 Discricionariedade A autoridade policial tão tem o poder de arquivar o inquérito policial que presidir. Entretanto, a escolha das diligências investigatórias a serem realizadas no curso do inquérito é discricionária da autoridade. O delegado de polícia, assim, efetivamente conduzirá o trabalho investigatório, ordenando a realização das diligências que julgar necessárias à apuração da infração penal. O delegado de polícia deverá, no entanto, realizar as diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público (artigo 13, II, do CPP[8]). Não estará a autoridade policial, contudo, obrigada a realizar as diligências requeridas pelo indiciado, pelo ofendido ou pelo representante legal deste último (artigo 14, do CPP[9]). 2.2.6 Caráter inquisitivo O inquérito policial, como se viu, é procedimento meramente informativo, destinado à investigação de um fato possivelmente criminoso e à identificação de seu autor, com vistas à obtenção de elementos suficientes para a propositura de uma ação penal. Por isso, não integrando o processo penal em sentido estrito, conforme pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e Supremo Tribunal de Justiça, não está sujeito ao princípio do contraditório ou da ampla defesa. O suspeito ou indiciado apresenta-se apenas como objeto da atividade investigatória, resguardados, contudo, seus direitos e garantias individuais. Ademais, o artigo 5º, LV, da CF/88[10], que consagra os princípios do contraditório e da ampla defesa, refere-se aos “litigantes” e aos “acusados em geral”, não se podendo aplicá-los ao indiciado, uma vez que não há nessa fase investigativa acusação propriamente dita. Caso se entendesse em sentido diverso, isto é, pela possibilidade de aplicar tais princípios ao inquérito policial, uma série de possibilidades se afiguraria possível, tais como o direito de reperguntar as testemunhas, arguir suspeição do delegado de polícia, etc.  iniciada a ação penal, por intermédio do recebimento da petição inicial, nasce a figura do acusado, que, cientificado da ação penal, submeter-se-á ao devido processo legal, com a consequência observância dos princípios constitucionais informadores do direito processual penal. 2.2.7 Oficialidade Trata-se de investigação que deve ser realizada por autoridades e agentes integrantes dos quadros públicos, sendo vedada a delegação de atividade investigatória a particulares, inclusive por força da própria Constituição Federal, que prevê em seu artigo 144, §4º: “Art. 144 – A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: […] §4º – Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” 2.2.8 Sigilo O inquérito policial será sigiloso, nos termos do artigo 20 do Código de Processo Penal, recepcionado pela Constituição Federal. Em um capítulo específico, será explanada com profundidade a característica do sigilo que envolve o inquérito policial. 2.3 Início do Inquérito Policial O art. 5° do CPP contempla as formas de início do procedimento policial, as quais dependem, sobretudo, da natureza do crime a ser investigado. Assim: a) Crime de ação penal pública incondicionada. sendo esta a natureza do delito, o inquérito será iniciado: – Artigo 5º, I: de oficio pela autoridade policial, mediante a expedição de portaria, a qual, subscrita pelo delegado de polícia, conterá o objeto da investigação, circunstâncias conhecidas em tomo do fato a ser apurado (dia, horário, local etc.) e as diligências iniciais a serem realizadas. Tal instauração independe de provocação de interessados, devendo ser procedida sempre que tiver a autoridade ciência da ocorrência de um crime, não importando a forma de que se tenha revestido a notitia criminis (registro de ocorrência, notícia veiculada na imprensa etc.). Observe-se que o art. 5º, § 3º, do CPP[11] refere que qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito, sob pena de responsabilização disciplinar e, conforme o caso, até mesmo penal. – Artigo 5º, II: mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público ou a requerimento do ofendido ou seu representante legal. A requisição de instauração de inquérito pelo juiz ou pelo Ministério Público possui conotação de ordem, razão pela qual não pode ser descumprida pela autoridade policial, ainda que, no seu entender, seja descabida a investigação. Já o requerimento da vítima, opostamente, pelo sentido de solicitação, pode ser indeferido pelo delegado de polícia, por meio de despacho recorrível ao chefe de polícia (art. 5º, § 2.°, do CPP[12]). – Auto de prisão em flagrante: apesar de não mencionado, expressamente, no art. 5º do CPP, o auto de prisão em flagrante (APF) é forma inequívoca de instauração de inquérito policial, dispensando a portaria subscrita pelo delegado de polícia. Note-se que é equivocada a praxe adotada em algumas delegacias no sentido de não procederem à instauração do inquérito policial quando se tratar de hipótese de flagrância. Considerando que o auto de prisão em flagrante é procedimento célere, formalizando o mínimo de elementos de convicção, ainda que possa o Ministério Público, com base nele, oferecer denúncia, mesmo assim deverá o inquérito ser realizado pela autoridade policial, aprofundando as investigações iniciadas com o APF. b) Crime de ação penal pública condicionada à (ao): — Representação: prevê o art. 5°, § 4°, do CPP[13] que o inquérito policial, nesta ordem de delitos, não poderá ser iniciado sem a representação. Por representação compreende-se a manifestação pela qual a vítima ou seu representante legal autoriza o Estado a desenvolver as providências necessárias à investigação e apuração judicial dos crimes que a requerem. Prescinde de rigor formal, bastando que incorpore a inequívoca intenção em ver apurada a responsabilidade penal do autor da infração, e poderá ser oferecida tanto ao delegado de polícia como ao Ministério Público e ao próprio juiz de direito. Evidentemente, realizada de forma oral, será reduzida a termo (art. 39 do CPP[14]). — Requisição do juiz ou do Ministério Público: mesmo sendo crime de ação penal pública condicionada, poderá, eventualmente, ser o inquérito policial instaurado mediante requisição do juiz ou do Ministério Público, desde que a eles tenha sido dirigida, previamente, a representação da vítima ou de quem a represente, a qual deverá, inclusive, acompanhar o ofício requisitório. — Auto de prisão em flagrante: considerando que o APF é forma de início do inquérito policial e levando em conta a regra inserida no art. 5º, § 4° do CPP, deduz-se que a lavratura do flagrante nessa espécie de crime condiciona-se à existência prévia da representação ou que venha ela a ser apresentada antes do decurso do prazo do oferecimento da nota de culpa, sob pena de relaxamento da prisão.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-73/o-inquerito-policial-sigilo-x-midia/
O sistema de justiça conflitiva e as formas alternativas de resolução dos conflitos penais
Investiga o sistema de justiça conflitiva e as formas alternativas a esse sistema.
Direito Processual Penal
O sistema penal brasileiro passa por uma profunda crise. Tal diagnóstico é cantado em verso e prosa pela sociedade civil, pela mídia, pela comunidade jurídica e pelo próprio Estado. A sobrecarga de processos, a morosidade da Justiça, o modelo burocrático e o fetiche formalista do rito processual, o descaso com a efetividade do processo, a perplexidade decorrente da impunidade gerada pela prescrição são alguns dos aspectos que corroboram para este consenso. É preciso repensar o atual modelo, priorizando uma prestação jurisdicional consentânea com o modernismo que orienta, hoje, nosso direito constitucional. Não se pode falar efetivamente em neoconstitucionalismo, pós-positivismo, respeito à dignidade da pessoa humana e em Estado inserido no sistema internacional de direitos humanos, sem que antes se implemente um sistema penal comprometido com uma prestação jurisdicional efetiva, expedita e adequada. Luis Flavio Gomes1 leciona sobre os modelos de resolução dos conflitos penais existentes, conforme doutrina de GARCIA-PABLOS DE MOLINA e GOMES, L. F., Criminologia, 6. ed., São Paulo: RT, p. 398 e ss.): “(a) modelo dissuasório clássico, fundado na implacabilidade da resposta punitiva estatal, que seria suficiente para a reprovação e prevenção de futuros delitos. A pena contaria, portanto, com finalidade puramente retributiva. Neste Direito penal punitivista retributivista não haveria espaço para nenhuma outra finalidade à pena (ressocialização, reparação dos danos etc.). (…) (b) modelo ressocializador, que atribui à pena a finalidade (utilitária ou relativa) de ressocialização do infrator (prevenção especial positiva).(…) (c) modelo consensuado (ou consensual) de Justiça penal, fundado no acordo, no consenso, na transação, na conciliação, na mediação ou na negociação (plea bargaining). Dentro deste terceiro modelo (que se ancora no consenso) impõe-se distinguir dois sub-modelos bem diferenciados: (a) modelo pacificador ou restaurativo (Justiça restaurativa, que visa à pacificação interpessoal e social do conflito, reparação dos danos à vítima, satisfação das expectativas de paz social da comunidade etc.) e (b) modelo da Justiça criminal negociada (que tem por base a confissão do delito, assunção de culpabilidade, acordo sobre a quantidade da pena, incluindo a prisional, perda de bens, reparação dos danos, forma de execução da pena etc., ou seja, o plea bargaining). (…)Diante do que acaba de ser exposto, parece correto (e necessário) distinguir, no âmbito da Justiça criminal, atualmente, o “espaço de consenso” do “espaço de conflito”. Aquele resolve o conflito penal mediante conciliação, transação, acordo, mediação ou negociação. Este não admite qualquer forma de acordo, ou seja, exige o clássico devido processo penal (denúncia, processo, provas, ampla defesa, contraditório, sentença, duplo grau de jurisdição etc.). (…)”. A nós nos parece que o sistema conflitivo deve coexistir com o consensual, reservando-se ao primeiro a tutela jurisdicional que proteja os direitos indisponíveis dos indivíduos e da coletividade, vez que não compete aos jurisdicionados abrir mão (vida, liberdade, p.ex.). Ocorre que nem todos os bens jurídicos tutelados pelo direito penal são de tal índole, pelo que ante o atual cenário de abarrotamento do Judiciário brasileiro, necessário que se admita modelo que dê tratamento distinto às infrações penais menos graves. O sistema consensual, portanto, foi concebido para o deslinde das infrações de menor potencial ofensivo, onde “conciliação” e “mediação” exsurgem como técnicas concebidas ao alcance do desiderato de solução efetiva e célere de persecução de crime de pouca gravidade. Foi neste espírito que foi concebida a Lei 9.099/99 que possibilitou, em certa medida, a migração do “modelo” de justiça criminal conflitiva para o “modelo” de justiça criminal consensuada. Acerca do impacto da Lei da lei 9.099/95 em nosso sistema processual penal, extraímos da melhor doutrina2: Em sua aparente simplicidade a Lei 9.099/95 significa uma verdadeira revolução no sistema processual-penal brasileiro. Abrindo-se às tendências apontadas no início desta introdução, a lei não se contentou em importar soluções de outros ordenamentos, mas – conquanto por eles inspirado – cunhou um sistema próprio de Justiça penal consensual que não encontra paralelo no direito comparado.” Sobre a aplicação das ferramentas do modelo consensual no direito pátrio, leciona Luis Flavio Gomes3: “Se de um lado ainda não temos amplas iniciativas de mediação já desenvolvidas em nosso País, de outro, no que concerne à conciliação, a realidade é bem diferente. A lei dos juizados especiais criminais (Lei 9.099/95, art. 74) prevê a possibilidade de conciliação como resolução final do conflito (isso se dá nas infrações de menor potencial ofensivo e desde que a ação penal seja de iniciativa privada ou pública condicionada). Nesses casos, a conciliação (acordo) quanto à reparação dos danos significa renúncia ao direito de queixa ou de representação (extinguindo-se o ius puniendi). No modelo consensual adotado pela Lei 9.099/95 privilegia-se o juízo de oportunidade ou discricionariedade regrada, em que o Ministério Público pode, dentro de algumas situações, abrir mão da persecução do crime que compete ao Estado nas ações penais públicas incondicionadas ou condicionadas, quebrando-se a inflexibilidade do tradicional princípio da obrigatoriedade processual. De outra banda, franqueia-se a possibilidade de composição do conflito entre autor e “réu”, mediante consentimento do acusado, de forma a preservar sua autonomia de vontade.  Destaque-se, por oportuno, que no novo modelo rompe com a noção de necessidade de privação de liberdade para o sucesso da persecução penal, vez que a pena privativa de liberdade  é nefasta, embrutece e constitui forte fator criminógeno.           Procurador do Estado de Goiás, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP-LFG
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-73/o-sistema-de-justica-conflitiva-e-as-formas-alternativas-de-resolucao-dos-conflitos-penais/
As normas fundamentais e a utopia da busca da verdade real em matéria de direito processual penal
O presente trabalho tratará sobre as normas fundamentais, o instituto da prova e o principio da verdade real.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO. O Preâmbulo da Carta Fundamental do Brasil consagra como ideário da instituição de um Estado Democrático, o escopo precípuo de asseguramento do exercício dos direitos coletivos e individuais, somados à liberdade, ao bem estar, ao desenvolvimento, e ainda, à igualdade e à justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Elencados entre os princípios fundamentais embasadores do Estado de Direito, a Constituição Republicana brasileira de 1988 incluiu em seu artigo 1º, os da cidadania e da dignidade da pessoa humana, respectivamente em seus incisos I e III, como principais vetores dos Direitos Humanos. Por conta do conteúdo preambular constitucional e dos seus princípios fundantes, à toda evidência, as garantias e os direitos individuais e coletivos insculpidos na Constituição brasileira, estruturam um modelo normativo de direito de observância obrigatória por todos. É curial, que referido modelo normativo é extensivo a todos os ramos do universo jurídico, dentre eles, incluindo-se o Direito Processual (Penal e Civil), cujos institutos, atos e formas devem se enquadrar ao nominado garantismo constitucional. Como conseqüência do garantismo constitucional, há o balizamento da atividade persecutória e do direito-dever de punir estatais, na medida em que as normas constitucionais devem ser efetivadas, no que pertine ao acatamento dos direitos individuais do acusado. É cediço que, decorrentes dos princípios fundamentais da cidadania e da dignidade da pessoa humana, encontram-se dentre outros direitos conferidos ao acusado, o de ter tratamento humanizado, o de liberdade (nos seus vários aspectos), o da preservação da intimidade, o de respeito à integridade física e moral, etc., que não podem desmerecer a tutela legal. Cabe, entretanto salientar que, a tutela constitucional de aludidos direitos no âmbito do processo penal, interfere no instituto da “prova” no que atine a restrições quanto ao tempo, meios, etc., relativizando o princípio da “verdade real”, adotado pelo legislador infra-constitucional na livre apreciação da prova para supedanear a convicção do julgador. I – AS NORMAS FUNDAMENTAIS. 1.1 – Os Princípios. As Garantias. Os Direitos: Os Princípios. No atual Estado democrático de direito, diversas são as normas de natureza material e processual incrustadas nos ordenamentos constitucionais, como regras e princípioS relacionados respectivamente, aos deveres objetivos e aos direitos subjetivos. Em se tratando de direitos fundamentais, como esclarece J. J. Gomes Canotilho citando Robert Alexy, “… Regras… são normas que, verificados determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer excepção (direito definitivo)”[1]. Segundo o mesmo autor, “Princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de “tudo ou nada”; impõem a optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a “reserva do possível”, fáctica ou jurídica”[2]. Aproveitando-se ainda as lições do escoliasta mencionando no que tange às regras que consagram deveres objetivos “Uma norma vincula um sujeito em termos objectivos quando fundamenta deveres que não estão em relação com qualquer titular concreto”[3]. Por outro lado, no respeitante às normas que consagram direitos subjetivos, clarifica o mesmo autor: “Diz-se que uma norma garante um direito subjetivo quando o titular de um direito tem face ao seu destinatário, o “direito” a um determinado acto, e este último tem o dever de, perante o primeiro, praticar esse acto. O direito subjetivo consagrado por uma norma de direito fundamental, reconduz-se, assim, a uma relação trilateral entre o titular, o destinatário e o objecto do direito…”[4] No sistema normativo constitucional brasileiro as normas concernentes aos deveres objetivos e aos direitos subjetivos foram previstas no Título II, sob a rubrica “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, de forma detalhada e explícita, cabendo ressaltar que a forma implícita também foi adotada como ressumbra do parágrafo 2º do artigo 5º da Carta Constitucional de 1988. As Garantias. No conglomerado das normas fundamentais encontram-se insertas as garantias, cujo escopo primordial é a viabilização dos direitos, exprimindo a segurança destes. Acerca das garantias, insta trazer à liça a exposição de José Alfredo de Oliveira Baracho[5]: “As proclamações de direito dependem de instrumentos hábeis que as tornem eficazes. A própria palavra garantia é usada como sinônimo de proteção jurídico-política …”. Enfatiza o professor que, “Fix-Zamudio, relaciona “garantias constitucionais’ com os direitos do homem. Esclarece que a expressão “garantias constitucionais’ tem sido utilizada no direito latino-americano como sinônimo de direitos do homem, consagrados na Constituição.” [6] Paulo Bonavides, após vaticinar que “há garantia sempre que se está diante de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve afastar, pontua que, as dificuldades surgem quando a expressão é trasladada para a esfera político e jurídica, havendo confusão conceitual entre doutrinadores que costumam usar o vocábulo como sinônimo de direito.” [7] Explica o constitucionalista que, “há dois pólos ao redor dos quais giram as garantias, as declarações e os direitos desde o berço em que se formaram: o indivíduo e a liberdade. A estes, um terceiro pólo se acrescentou no século XX: a instituição …”. Impende acentuar que a garantia funciona como verdadeira caução de um direito, de molde a assegurar seu exercício, uso ou fruição, sendo portanto evidente que com o mesmo não se confunde, considerando sua própria finalidade. Sobre as garantias constitucionais, Rui Barbosa, citado por Paulo Bonavides, profetizou que “uma coisa são garantias constitucionais, outra coisa os direitos, de que estas garantias traduzem, em parte, a condição de segurança política e judicial”, definindo-as como “as solenidades tutelares, de que a lei circunda alguns desses direitos contra os abusos do poder.” [8] Após discorrer sobre as acepções lata e estrita do que sejam as garantias da própria Constituição, as garantias constitucionais dos direitos subjetivos e as garantias institucionais, o autor[9] ensaia sua conceituação de garantia constitucional, concluindo-a nos seguintes termos: “A garantia constitucional é uma garantia que disciplina e tutela o exercício dos direitos fundamentais, ao mesmo passo que rege, com proteção adequada, nos limites da Constituição, o funcionamento de todas as instituições existentes no Estado.” Ainda no que tange às garantias constitucionais, Carlos Sanches Viamonte, lembrado por Paulo Bonavides, após assinalar que somente merece o nome de garantia ‘a proteção prática da liberdade levada ao máximo de sua eficácia”, é enfático ao afirmar que a “garantia é a instituição críada em favor do indivíduo, para que, armado com ela, possa ter ao seu alcance imediato o meio de fazer efetivo qualquer dos direitos individuais que constituem em conjunto a liberdade civil e política.” [10] Segundo se infere das diversas conceituações trazidas à lume, as garantias constitucionais, como normas fundamentais funcionam como um arcabouço, uma moldura, sob cuja égide postam-se os direitos. Os Direitos. Amparados pelas disposições assecuratórias trazidas pelas garantias constitucionais, os direitos fundamentais aninham-se na Constituição como disposições declaratórias subjetivas, que podem ser exercitadas juridicamente. No escólio do jurista lusitano J. J. Gomes Canotilho, “As expressões “direito do homem” e “direitos fundamentais” são freqüentemente utilizadas como sinônimas …”. [11] Entretanto, o mesmo constitucionalista levando em conta a origem e significado das mesmas, as distingue dando-lhes as conceituações: “… direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão, jusnaturalista-universalistas); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana, e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.” [12] Consoante alhures enfocado, os direitos fundamentais como direitos subjetivos, recebem segurança e ganham eficácia pelas garantias. Contudo, é importante destacar-se as funções de aludidos direitos. As funções dos direitos fundamentais, nas sábias palavras do autor acima indicado são que estes “… cumprem a função de direitos de defesa, dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).” [13] Convém frisar que, a Carta Constitucional brasileira atual, em cujo universo gravitam os princípios, as garantias e os direitos como normas fundamentais, no que diz respeito a estes últimos, é incontestável que conferiu-lhes a dupla perspectiva, tanto no plano jurídico objetivo como no subjetivo. 1.1.1 – Na Constituição brasileira: As normas fundamentais insculpidas na vigente Constituição englobando além dos princípios, as garantias e os direitos, são indubitavelmente, por conseguinte, o sustentáculo do Direito Processual penal (e civil) e de outros. Com efeito, o direito processual como um dos ramos do Direito Público, assenta suas bases na Constituição. E é nesse esteio que muitos institutos encontram seu nascedouro, razão pela qual há uniformidade na doutrina em nominar o feixe de normas e princípios processuais inseridos na Carta Federal, de direito processual constitucional. O Direito Processual penal, sem sombra de dúvida, é em seu cerne fundamentalmente constitucional, haja vista as inúmeras garantias e direitos individuais que estão previstos na Constituição, não se podendo olvidar ainda dos vários princípios gerais que o informam e orientam. Inseridos no rol das normas fundamentais, dentre os princípios gerais norteadores do direito processual penal inseridos na Constituição Brasileira de 1988, podem-se destacar: a) da imparcialidade do juiz (arts. 5º, inc. XXXVII c/c 95 e parágrafo único); b) da igualdade (art. 5º, caput); c) do juiz competente (art. 5º, inc. LIII); d) do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inc. LV); e) da oficialidade da ação penal (art. 5º, inc. LIV, interpretado a contrario sensu); f) da persuasão racional do juiz ou livre convencimento motivado (art. 93, inc. IX); g) da publicidade (arts. 5º, inc. LX e 93, inc. IX); h) da economia processual (arts. 24, inc. X e 98, inc. I c/c art. 5º, inc. XXXV); i) do duplo grau de jurisdição (arts. 93, inc. III; 102, inc. II; 105, inc. II; 108, inc. II). A título ilustrativo menciona-se que como desdobramentos dos princípios processuais constitucionais, outros há embutidos no Código de Processo Penal, a saber: a) do sistema acusatório (arts. 24; 28 e 30); b) da indisponibilidade da ação penal nos ilícitos de ação pública (arts. 5º; 17; 24; 28 e 576); c) da livre investigação das provas e da verdade material (arts. 28; 197; 386, VI e 440) d) do impulso oficial, como regra (art. 156, incs. I e II); e) da oralidade relativa englobando os princípios da concentração (parágrafo 1º do art. 400, arts. 403 e 404), da imediação (arts. 394 e segs., e 531), da identidade física ou vinculação do juiz (art. 399, § 2º); f) da instrumentalidade das formas (arts.. 566 e 567). No regime das normas fundamentais, as garantias emergentes das disposições contidas nos incisos do artigo 5º da Constituição tutelam tanto os direitos como a jurisdição, enfeixando-se dentre outras nas seguintes: “II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal; XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção; XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu; XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; LVIII – o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei; LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem; LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; LXII – a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança; LXVIII – conceder-se-á “habeas-corpus” sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder; LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por “habeas-corpus” ou “habeas-data”, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público; LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados; LXXII – conceder-se-á “habeas-data”: a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;” Como se pode constatar, a Constituição brasileira é abastada em termos de garantias, não estando o seu elenco esgotado no artigo 5º e incisos referenciados, considerando que também os diplomas legislativos ordinários, notadamente os processuais, prevêem garantias afiançando os direitos. Integrados no seio das normas fundamentais e assegurados pelas garantias, exsurgem os direitos na Constituição cidadã de 1988, dispostos em inúmeros incisos do artigo 5º, sendo de suma importância trazer alguns à colação: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente; XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento; XXII – é garantido o direito de propriedade; XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII – são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas; XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido; XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis; XLVIII – a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; L – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação; LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; LXXV – o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;” A respeito dos direitos constitucionais, Juan Carlos Rébora citado por Paulo Bonavides, pontifica que “o fracasso da garantia não significa a inexistência do direito; suspensão de garantias não pode significar supressão de direitos.” [14] É forçoso enfatizar que, como os direitos representam determinados bens as normas fundamentais que os consagram têm cunho declaratório; donde se inferir que os mesmos se eficacizam pelas garantias, ingressando na esfera jurídica do indivíduo. 1.1.2 – Nos Tratados e Convenções internacionais. Hodiernamente num Estado democrático de direito, nenhum indivíduo pode ser considerado despido de qualquer direito, ainda quando tenha cometido um ilícito penal, pois como pessoa humana é-lhe assegurada a dignidade de cidadão, com amparo nos “Direitos Humanos” fundamentais. Fernando Barcellos de Almeida[15] elucida que, os Direitos Humanos podem ser conceituados como “… as ressalvas e restrições ao poder político ou as imposições a este, expressas em declarações, dispositivos legais e mecanismos privados e públicos, destinados a fazer respeitar e concretizar as condições de vida que possibilitem a todo ser humano manter e desenvolver suas qualidades peculiares de inteligência, dignidade e consciência e, permitir a satisfação de suas necessidades materiais e espirituais”. Seguramente, a dignidade de cidadão emanada dos Direitos Humanos fundamentais universais reconhecidos como elementos estruturais do cosmopolita “Direito das Gentes”, é concretizada em textos jurídicos de Tratados e Convenções Internacionais valendo salientar que, mesmos aqueles países que não os hajam ratificado e nem incluem direitos fundamentais em seus ordenamentos constitucionais, estarão desobrigados de observá-los.. Acerca da obrigatoriedade da observância de padrões elementares de direitos humanos por países não ratificantes de Tratados Internacionais, informa Heiner Bielefeldt que: “O conflito estabelecido na Carta das Nações Unidas ao determinar, de um lado, a “observação geral dos direitos humanos e das liberdades básicas para todos” (Art. 1, item 3 da Carta) e, por outro, de proibir a ingerência em assuntos internos dos países (Art. 2, item 7 da Carta) foi agora solucionado pela interpretação de que determinados direitos humanos básicos, cuja abrangência permanece, em verdade, bastante discutível, não podem ser considerados assunto interno exclusivo de cada nação. Esses direitos do ponto de vista jurídico, não integram apenas a soberania de uma nação, que os reconhece ou garante por vontade soberana, mas sim, ultrapassam as fronteiras da soberania de cada Estado, como assunto da comunidade universal das nações (cf. Buergenthal entre outros 1985, p. 117).”[16] As normas fundamentais, nas quais se inserem os direitos e garantias processuais constitucionalmente estatuídas, são também previstas em Tratados e Convenções Internacionais, os quais por imposição constitucional, têm seus textos incorporados ao sistema jurídico nacional passando a integrá-lo, desde que o Brasil os tenha ratificado, conforme explicita o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição brasileira em vigor. A Constituição Federal de 1988, pela Emenda n.º 45, de 8 de dezembro de 2004, acrescentou ao artigo 5º, o parágrafo 3º, o qual equipara às emendas constitucionais, os Tratados e Convenções internacionais sobre direitos humanos, desde que tenha havido aprovação por cada uma das Casas do Congresso Nacional pela maioria qualificada de 3/5 (três quintos) dos parlamentares de cada uma delas. Com aludido dispositivo constitucional, o legislador brasileiro visou incluir Tratados e Convenções internacionais sobre direitos humanos no ordenamento jurídico como legislação constitucional interna hierarquicamente superior às leis ordinárias, inclusive em matéria penal e processual, colocando destarte o Estado como protetor dos direitos fundamentais do acusado, por meio da subsunção das normas nacionais às internacionais. Dentre os Tratados e Convenções sobre direitos humanos, aos quais o Brasil aderiu e que foram aprovados pelo Congresso Nacional por Decreto pode-se citar: a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) adotada no âmbito dos Estados Americanos em 22.11.1969, entrando em vigor internacional em 18.7.1978, sendo aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n.º 27, de 25.9.1992 e promulgado pelo Decreto n.º 678 de 6.11.1992; a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, adotada pela Resolução n.º 39/45 da Assembléia das Nações Unidas em 10.12.1984, sendo aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n.º 4, de 23.5.1989 e promulgada pelo Decreto n.º 40, de 15.2.1991. Em relação ao instituto da prova, tanto a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como a Convenção contra a Tortura, Tratamentos e penas cruéis, desumanos e degradantes, equiparadas ao patamar de emendas constitucionais, estatuem a subordinação da prova ao respeito aos direitos de integridade física, psíquica e moral, de liberdade e segurança pessoais, de presunção de inocência, de julgamento em prazo razoável, etc.. Proíbem a obtenção de informações e confissões por meios ilegítimos, e que ocasionem sofrimentos físicos e/ou mentais, reconhecendo a primeira Convenção inclusive como protegidos, outros direitos e liberdades emanadas dos processos estabelecidos em seus artigos 69 e 70.  “CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE OS DIREITOS HUMANOS Artigo 5º – Direito à integridade pessoal 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano Artigo 7º – Direito à liberdade pessoal 2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas. 3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários. 4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da detenção e notificada, sem demora, da acusação ou das acusações formuladas contra ela. 5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. 6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competentes, a fim de que decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados-partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competentes, a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa.” “CONVENÇÃO CONTRA A TORTURA E OUTRAS PENAS OU TRATAMENTOS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES Adotada e aberta à assinatura, ratificação e adesão pela resolução n.º 39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 10 de Dezembro de 1984. Entrada em vigor na ordem internacional: 26 de Junho de 1987, em conformidade com o artigo 27.º, n.º 1. PARTE I Artigo 1.º 1. Para os fins da presente Convenção, o termo «tortura significa qualquer ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de, nomeadamente, obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissões, a punir por um ato que ela ou uma terceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha cometido, intimidar ou pressionar essa ou uma terceira pessoa, ou por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminação, desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos por um agente público ou qualquer outra pessoa agindo a título oficial, a sua instigação ou com o seu consentimento expresso ou tácito. Este termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente de sanções legítimas, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionados. 2. O presente artigo não prejudica a aplicação de qualquer instrumento internacional ou lei nacional que contenha ou possa vir a conter disposições de âmbito mais vasto.” Incluso nesse contexto dos Direitos Humanos universais, e aderidos em sua plenitude pelo legislador constituinte brasileiro aprioristicamente nos Títulos I e II da Carta Federativa de 1988, como, Princípios, Direitos e Garantias Fundamentais e, recentemente, por meio da recepção de Tratados e Convenções, o sistema da livre investigação da prova e o princípio da verdade real, passaram a informar sobremaneira a liberdade individual do acusado, eis que esbarram na ordem jurídica “justa”. Na seqüência abordar-se-á o instituto da prova. II – O INSTITUTO DA PROVA. 2.1 – Generalidades: Conceito. Objeto. Ônus e meios de prova. Conceito: O vocábulo “prova”, como esclarece Antônio de Plácido e Silva[17] “Do latim, proba, de probare (demonstrar, reconhecer, formar juízo de), … consiste pois, na demonstração da existência ou da veracidade daquilo que se alega como fundamento do direito que se defende ou se contesta”. Segundo John Gilissen, “A prova é, … o conjunto de processos por meio dos quais se tenta convencer aquele que deve dizer o direito de que teve lugar (ou não) um certo facto, ou ainda de que uma afirmação corresponde à verdade ou deve ser tida como se lhe correspondesse.”[18] É notório que, no campo do direito processual, a prova é entendida como os “meios” previstos ou permitidos pela lei com o escopo de tornar efetiva a referida demonstração, ou sejam o “conjunto de instrumentos, modos e formas” que objetivam a concretização de uma certeza”. Objeto da prova: Para o Código Civil Português, “As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.”[19] Objeto da prova, na lição de Julio Fabbrini Mirabete, “é o que se deve demonstrar, ou seja, aquilo sobre o que o juiz deve adquirir o conhecimento necessário para resolver o litígio. Abrange, portanto, não só o fato criminosos e sua autoria, como todas as circunstâncias objetivas e subjetivas que possam influir na responsabilidade penal e na fixação da pena …”[20] Assevera John Gilissen, que “…É sobretudo no domínio penal que a prova desempenha e sempre desempenhou um papel capital: um homem não será julgado culpado e condenado a não ser que a prova da infracção que lhe é imputada tenha sido produzida.” [21]  Como acentuado pela doutrina, são também objeto de prova no processo penal, ao contrário do processo civil, que a dispensa, os fatos incontroversos (art. 334, inc. do CPC). Ao reverso, independem de prova no processo penal, os fatos evidentes e os notórios, assim como as presunções (v. g., arts. 27; 28, inc. II, do CP)  É pacífico que, somente os fatos relevantes para o julgamento da causa podem ser objeto de prova, excluindo-se os irrelevantes e os impertinentes que não tenham relação com a mesma. Ônus: Quanto às alegações e o ônus de prová-las, as questões a respeito da existência ou da inexistência de fatos são dirimidas pelas provas a serem produzidas, dividindo-se no âmbito do processo civil o ônus entre autor e réu, consoante explicitado no artigo 333, incisos I e II respectivamente, cabendo àquele a prova do fato constitutivo de seu direito, e a este último a incumbência de provar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito daquele. Na ensancha, cabe fixar que, quanto ao ônus probatório no processo civil embora vigore como regra, o princípio dispositivo incumbindo aos interessados a iniciativa e disponibilidade da produção das provas, por exceção, o órgão judicial de ofício, determinará as que forem necessárias à instrução do feito, conforme ditado pela norma do artigo 130 do Código Processo Civil. Nessa linha de raciocínio, no processo civil há relações jurídicas, nas quais o interesse público prepondera sobre o privado, e conseqüentemente o princípio dispositivo cede seu lugar ao da iniciativa da prova por órgão estatal (juiz), nas lides decorrentes de direitos, de Família, de Menores, de Idosos, nas causas em que há interesse público evidenciado, pela qualidade das partes figurando entes públicos, etc. Nestes casos, o julgador não está adstrito para formar o seu convencimento tão só com as provas carreadas pelos interessados, ao inverso, tem a iniciativa quanto à produção de provas necessárias ao deslinde da causa. Já na esfera processual penal, consoante a redação do artigo 156, incisos I e II do Código de Processo Penal, incumbe a quem fizer a alegação dos fatos o ônus de prová-la, sendo facultado ao juiz ex-officio antes de iniciada a ação penal, determinar a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida. Pode também no curso da instrução ou antes de proferir a sentença, determinar de ofício diligências a fim de esclarecer dúvida sobre ponto relevante, objetivando, formar seu convencimento pela livre apreciação da prova. No caso, o juiz decide pelo sistema que se nominou de verdade real (ou material). Cumpre, entretanto, destacar que, em sendo unos o poder estatal e a jurisdição, e públicos tanto o direito processual civil quanto o penal, por via de conseqüência os sistemas da verdade formal e material começaram a se mesclar em ambos os ramos do Direito, por conta da publicização processual e dos princípios, garantias e, direitos fundamentais individuais e coletivos. Meios: No que pertine à produção e meios de provas, no ordenamento jurídico processual brasileiro o artigo 332 do Código de Processo Civil expressa que todos os meios legais, desde que moralmente legítimos e, ainda que não especificados, são considerados hábeis para a prova da veracidade dos fatos que embasam a ação ou a defesa. Na mesma linha do disposto no Caderno processual civil, extrai-se da mens legis do artigo 155 do Diploma processual penal, que a regra, é a adoção de todos os meios legais e morais para a prova da verdade dos fatos, com exceção ao que concerne ao “estado das pessoas”, a cujo respeito somente serão admissíveis os meios de provas estabelecidos na lei civil. Não se pode, todavia, olvidar que embora haja, em princípio, liberdade quanto à admissibilidade de quaisquer meios de provas, referida liberdade é coarctada pelas normas fundamentais, as quais são traduzidos pelos princípios, garantias e direitos individuais e coletivos, que foram sufragados na Carta Constitucional de 1988. 2.2 – Apreciação da prova. Sistemas. É curial que, para julgar e motivar sua decisão em qualquer causa ou processo, o juiz, necessariamente terá que basear-se nas provas produzidas, apreciando-as e valorando-as com inteira liberdade para formar seu convencimento. Inobstante no círculo do processo civil, por exceção, o juiz tenha a faculdade e o dever de tomar a iniciativa na produção de provas (v.g., arts. 130; 342; 418, incs. I e II; 437; 440), em regra, em se tratando de direitos disponíveis, pelo princípio dispositivo, julga satisfazendo-se com a verdade formal, que consiste em escorar sua decisão no que resulta como verdadeiro pelas provas apresentadas nos autos, pelas partes interessadas. Cabe assentar, por outro lado, que, sem embargo de no processo civil, a verdade formal ser adotada como regra, esta não é absoluta, pois o critério para a apreciação das provas pelo juiz é instituído pelo artigo 131 do Código de processo Civil, e como textualiza o processualista Moacyr Amaral Santos, “…o juiz brasileiro é livre na apreciação dos elementos de prova, no sentido de que deve pesar as provas colhidas, apreciá-las e submetê-las aos rigores do seu raciocínio esclarecido e desapaixonado, e formar convicção, quanto à verdade daí surgida, ao abrigo de qualquer constrangimento moral … Mas a sua liberdade na formação da convicção não vai ao arbítrio, pois deverá exercê-la com respeito a condições que a lei lhe impõe” [22]. Expressa o artigo 131 do CPC, que “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegadas pelas partes; mas deverá indicar, na decisão, os motivos que lhe formaram o convencimento” (grifos nossos). O expositor indicado após transcrever o artigo 366 do mesmo pergaminho legal, assevera que o texto do artigo 131 condiciona a liberdade do julgador e, que há limitações ao livre convencimento do mesmo, o qual não poderá dispensar as regras legais quanto à forma e a prova dos atos jurídicos. Enfatiza que as limitações decorrem da imperativadade do artigo 366, listando dentre outras normas do Código Civil referentes as formas dos atos jurídicos (arts. 108 e 215; 109; 219 e 220), à prova dos atos jurídicos (arts. 216 a 218; 221; 224; 227 e 228) e do próprio Código de Processo Civil (arts. 343, § 2º; 350 e 351; 364 e ss.; 401). Quanto às presunções legais (art. 334, inc. IV do CPC) e, ainda as regras de experiência (art. 335 do CPC). Pontualiza o autor, que “a decisão judicial ao ter que ser motivada pelo que preceitua a parte final do artigo 131, leva à conclusão que o Código de Processo Civil se filia ao sistema da persuasão racional”[23]. No habitat do processo penal, face ao interesse estatal na prevenção geral e repressão dos delitos, sempre vigiu a regra da livre investigação de provas para o descobrimento da verdade real (ou material) pelo julgador, a fim de formar seu convencimento e fundamentar sua decisão. Só excepcionalmente, pode se valer da verdade formal para decidir, e isto quando não houver provas que demonstrem a verdade real quanto aos fatos. A respeito da apreciação das provas no processo penal, cumpre transcrever parcialmente o item VII da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, in expressis: “… nem é prefixada uma hierarquia de provas; na livre apreciação destas, o juiz formará honesta e lealmente, a sua convicção. A própria confissão do acusado não constitui, fatalmente, prova plena de sua culpabilidade. Todas as provas são relativas; nenhuma delas terá ex vi legis, valor decisivo ou necessariamente maior prestígio que outra. Se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é menos certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, através delas, a verdade material […]. O juiz está livre de preconceitos legais na aferição das provas, mas não pode abstrair-se ou alhear-se a seu conteúdo. Não estará dispensado de motivar sua sentença. E precisamente nisto reside a suficiente garantia do direito das partes e do interesse social…” Conforme explanam Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Candido Rangel Dinamarco, “… o processo civil hoje, não é mais eminentemente dispositivo …; e o processo penal, por sua vez transformando-se de inquisitivo em acusatório, não deixou completamente à margem uma parcela de dispositividade das provas. Impera, … tanto no campo processual penal como no campo processual civil, o princípio da livre investigação das provas, embora com doses maiores de dispositividade no processo civil[24]. No sistema processual penal vigente da livre convicção motivada, a averiguação judicial dos fatos objeto da imputação, visando a apropinquação de uma “certeza”, é feita pelo aferimento do conteúdo de todas as provas investigadas, carreadas e produzidas nos autos do processo. É apodítico que, na ação penal tendo a prova por finalidade esclarecer a verdade, acerca de fato delituoso imputável ao acusado como cidadão integrante da coletividade, não é admissível que a busca desta verdade se faça à margem da ordem jurídica justa. Neste trilhamento, a prova como diretriz à formulação de juízo revestido de probabilidade de certeza, deve subsumir-se e adequar-se à Constituição e ao sistema normativo infraconstitucional, residindo nesse aspecto a garantia dos direitos dos cidadãos e o interesse social. Em assim sendo, o princípio da verdade real no processo penal, sofre inúmeras restrições impostas pelo ordenamento jurídico constitucional e ordinário, em prestígio às liberdades individuais agasalhadas, no conceito de “justiça justa”, que impõem limites à prova sob vários aspectos. Em prosseguimento, enfocar-se-á às restrições a prova e o princípio da verdade real. III – AS RESTRIÇÕES À PROVA E O PRINCÍPIO DA VERDADE REAL. A expressão verdade real é redundante, haja vista que “verdade” e “verdadeiro” já exprimem o que é real, autêntico, exato, fiel, legítimo. O princípio da verdade real, no processo penal, significa a liberdade de prova, no sentido de que, em havendo o interesse público na apuração do fato delituoso e na justa aplicação da lei, não estando o julgador diante da verdade pré-estabelecida pelos protagonistas daquele, vê-se compelido a proceder à busca da mesma por meio das provas, em uma reconstrução histórica. Para Ada Pellegrini Grinover, “… o termo “verdade material” há de ser tomado em um duplo sentido: de um lado, no sentido da verdade subtraída à influência que as partes, por seu comportamento processual, queiram exercer sobre ela; de outro lado, no sentido de uma verdade que, não sendo “absoluta” ou “ontológica”, há de ser antes de tudo uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo preço; uma verdade, isto é, processualmente válida”[25]. É axiomático que, na procura da verdade real, a atividade processual probatória segue um procedimento ordenado consistente em indicação (ou proposição), admissão e produção das provas, culminando com a etapa de valoração das mesmas. Contudo, a liberdade desta investigação objetivando alcançar-se a verdade, é relativa, visto que há restrições à prova de diversas ordens, destacando-se dentre as mais importantes às atinentes, ao tempo e à licitude (ou liceidade) e à legitimidade. 3.1 – A prova no tempo. Indubitavelmente o tempo é o fator influenciador na busca da verdade real, causando dificuldades à persecutio estatal e retardando a prestação jurisdicional. Para solucionar tal problema, o legislador constitucional pela Emenda nº 45 de 8 de dezembro de 2004, acrescentou o inciso LXXVII ao artigo 5º da Constituição vigente, consignando como direito do cidadão a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Sem sombra de dúvida, aludido direito que enlaça-se com o do devido processo legal, ancora-se na garantia do acesso à justiça, pressuposto que exsurge dos princípios reitores do Preâmbulo da Carta Constitucional, instituidora de valores sociais, plurais e despedidos de preconceitos. É notório que, no turbilhão cotidiano forense, a morosidade na marcha processual sempre pôs em xeque a aplicação do princípio da verdade real, com vias ao alcance de uma “certeza” pela livre investigação das provas, ante a influência do tempo na apuração dos fatos e na veracidade dos mesmos. É de se acentuar, que a norma fundamental de naipe processual, que garante a razoável duração do processo, exige do juiz impulsionamento do mesmo a caminho da decisão definitiva, com o escopo de esgotar a função jurisdicional. Por conseguinte, as partes envolvidas no processo têm o dever de cumprir os atos processuais nos prazos e formas estabelecidos pela lei. A respeito da influência do tempo em matéria de liberdade da prova, alerta Fernando da Costa Tourinho Filho, que “… se órgão da acusação ou o querelante não arrolar testemunhas quando da oferta da denúncia ou queixa nos termos do art. 41 do CPP, não mais poderá fazê-lo. Diga-se o mesmo a respeito da Defesa, se deixar de aproveitar a oportunidade de que trata o art. 396-A do CPP. É bem verdade que, nesses casos, bem pode o juiz fazer suas as testemunhas arroladas serodiamente … Outras vezes a lei impede que se produza determinada prova em certa fase procedimental – é o que ocorre nos processos de crime da competência do júri: durante o julgamento em plenário, não será permitida a leitura de documento ou a exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de 3 (três) dias úteis, dando-se ciência a outra parte (art. 479).”[26] À toda evidência o acesso à justiça açambarca a celeridade processual, decorrendo esta do sistema normativo garantista constitucional extensível à totalidade dos cidadãos, inclusive àqueles que estão sob o jugo do jus persenqüendi estatal, figurando como sujeitos ativos em ações penais. Neste compasso, ante o direito-garantia da razoável duração do processo, sem embargo da busca da verdade real na averiguação livre das provas para ultimar a convicção do julgador, a ação penal não pode prescindir da necessária celeridade. Esta porém, só se efetivará em havendo a atuação do Direito e observância da lei, quanto aos prazos, às formas, meios, aplicação, etc., dos atos processuais. 3.2 – Liceidade e legitimidade da prova Em se tratando da liceidade e legitimidade das provas, as lícitas e as legítimas são admissíveis para comprovar a veracidade dos fatos. Ao reverso, as ilícitas e as ilegítimas, que são as obtidas e introduzidas nos autos do processo com afronta respectivamente, às normas fundamentais, materiais e processuais, não podem ser aceitas como prova da verdade. Tanto a Constituição brasileira como o Código de Processo Penal usam o adjetivo “ilícitos” (para os meios de obtenção de provas) e “ilícita” (para as provas), em se tratando de inadmissibilidade de provas. Consoante Antonio Plácido e Silva, “Ilícito vem do latim illicitus, e em seu sentido próprio quer exprimir o que é proibido ou vedado por lei. Ilícito, pois, vem qualificar, em matéria jurídica, todo o fato ou ato que importe numa violação ao direito ou em dano causado a outrem, provenha do dolo ou se funde na culpa.”[27] A inadmissibilidade das provas tanto decorre dos meios ilícitos pelos quais as mesmas são obtidas, conforme preconiza a norma constitucional do artigo 5º, inciso LVI, como da obtenção de provas com violação a normas constitucionais ou legais (materiais ou processuais), e ainda as provas derivadas das ilícitas quando restar evidenciado a relação de causa e efeito entre aquelas (derivadas) e estas (ilícitas) que lhe serviram de fonte, conforme se extrai da redação do artigo 157 e parágrafo 1º do Código de Processo Penal. Sobre meios ilícitos de obtenção de provas, a Constituição de Portugal em seu artigo 32, os menciona com a seguinte redação: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade físicas ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.” O Código de Processo Penal relaciona os seguintes meios de prova: a) Exame de Corpo de delito e das perícias em geral (arts. 159 a 184); b) Do interrogatório do acusado (arts. 185 a 196); c) Da confissão (arts. 197 a 200); d) Das perguntas ao ofendido (art. 201 e §§ 1º a 6º); e) Das testemunhas (arts. 202 a 225); f) Do reconhecimento de pessoas e coisas (arts. 226 a 228); g) Da acareação (arts. 229 e 230) h) Dos documentos (arts. 231 a 238); i) Dos indícios (art. 239); j) Da busca e apreensão (arts. 240 a 250) Perícias. Como meios de provas, consistem as perícias em exames efetivados por perito oficial ou pessoas com habilitação técnica, para a comprovação da verdade sobre determinado fato ou circunstância atinente ao mesmo. Pela nova redação do artigo 159 e seus parágrafos do C.P.P., dada pela Lei n.º 11.690 de 9.6.2008, o exame de corpo de delito e as perícias em geral, serão realizadas apenas por um perito oficial com curso superior, e somente na falta deste, por duas pessoas com curso superior na área específica relacionada com a natureza do exame, sendo que apenas estas prestam compromisso. Às partes é facultado a formulação de quesitos ao(s) peritos(s) e a indicação de assistentes técnicos, sendo-lhes permitido, outrossim, solicitar a oitiva do expert para esclarecimentos e respostas aos quesitos, podendo estas serem apresentadas em laudo complementar. Em sendo a perícia complexa, açambarcando mais de uma área de conhecimento, cabível a designação de mais de um perito oficial pelo juiz, possibilitando-se por outro turno, a indicação de mais de um assitente técnico pelas partes. Insta destacar, que nos ilícitos penais que deixam vestígios, a prova pericial é de extrema importância quanto à existência da materialidade, cabendo frisar que, diferentemente do sistema anterior que permitia ao juiz, em caso de divergência entre os peritos oficiais (eram em número de dois) nomear um terceiro perito, agora pode determinar que o perito preste esclarecimentos ou complemente o laudo apresentado. A prova pericial sofre restrições na medida em que for impertinente e desnecessária ao esclarecimento da verdade (art. 184 do C.P.P). Será ilícita e inadmissível a prova pericial, se no laudo o perito fizer afirmações falsas ou omitir. Consoante o magistério de Francisco Muñoz Conde, em se tratando das diversas categorias de provas periciais, mormente as tipagem de DNA, toxicológicas, psiquiátricas, de balística, etc., a provável conclusividade das mesmas se subsume à “qualidade” e prestigio do profissional que a realizar; salientando outrossim, que há provas periciais que vinculam o juiz. No que tange às perícias psiquiátricas em prováveis enfermos mentais, lembra o escritor que a valoração das mesmas, quando os resultados são contraditórios e discutíveis, apresenta dificuldades, não se podendo falar em verdade real, isto porque em se cuidando de imputabilidade e inimputabilidade perquire-se até que ponto os Tribunais tendem a aferi-las por critérios normativos e técnicos ou, por critérios subjetivos. O mesmo pode ocorrer com as perícias de toxidade, por não restarem identificadas com grau de certeza sua causa. Infere-se que, se as provas periciais forem inconcludentes, contraditórias, duvidosas, ou mesmo se não se realizarem, não está o julgador autorizado a valer-se de convicções próprias para tirar conclusões ou ainda substituí-las, ao argumento de alcançar a verdade real. Interrogatório. O interrogatório é ato processual por meio do qual se procura obter dados a respeito do acusado e também informações e esclarecimentos sobre a imputação que lhe é feita. Seguindo a esteira da Lei n.º 9.099 de 26.9.1995, o Cód. de Proc. Penal com as modificações introduzidas pelas Leis ns. 11.689 de 9.6.2008, 11.690 de 9.6.2008 e 11.719 de 20.6.2008, tanto nos procedimentos comum ordinário e sumário, bem como no do Júri, transferiu o interrogatório do acusado para a fase final da instrução, após a oitiva de todas as pessoas (ofendido, testemunhas, peritos, etc.). Há entendimento de que o interrogatório em vez de prova, passou a constituir exclusivamente um meio de defesa a ser exercitado pelo acusado (auto-defesa) ou por seu Defensor (defesa-técnica) após tomarem conhecimento de todas as provas já produzidas, até porque nos termos do artigo 186 e parágrafo único do Cód. Proc. Penal, o acusado pode exercer o direito de permanecer calado e não responder às perguntas que lhe forem formuladas, não induzindo seu silêncio qualquer confissão ou prejuízo à sua defesa. E mais, poderão as partes formular perguntas ao acusado, se forem pertinentes e relevantes (art. 188 do C.P.P.), em atenção ao contraditório e a ampla defesa. O interrogatório pode ser feito mais de uma vez, de ofício ou mediante pedido fundamentado de qualquer das partes, se necessários esclarecimentos sobre fatos. (art. 196 do C.P.P.) Confissão. A confissão do acusado pode dar-se tanto na fase policial (art. 6º, inc. V e 199 do C.P.P.), como na judicial (art. 190 do C.P.P.), e, resultar de interrogatório (art. 190 do C.P.P.) ou de ato espontâneo, podendo ser total ou parcial, devendo incidir sobre o fato imputado àquele. Para ser aceita como meio de prova a confissão deve reunir os requisitos de clareza (não pode conter palavras com duplo sentido que possam gerar dúvidas), verossimilhança (deve denotar veracidade), certeza (resultante de fatos evidenciados), uniformidade (exige-se coerência no todo), expressa (deve existir a intenção de confessar), pessoal (não pode ser feita por procurador mesmo com poderes especiais), liberdade e espontaneidade (sem provocação ou coerção). O critério valorativo da confissão é o mesmo adotado para a apreciação dos demais meios de prova, devendo ser confrontada com estas, verificando o julgador a compatibilidade e concordância entre as mesmas (art. 197 do C.P.P.). A divisibilidade da confissão é admissível, bem como sua retratabilidade é aceita, ficando o livre convencimento do juiz adstrito ao exame da prova conjuntamente. Cumpre salientar, que nenhum acusado pode ser compelido a confessar e a auto acusar-se. Se o fez mediante ameaça, tortura, coação, etc., a mesma não pode ser considerada, eis que não é suficiente para afastar a presunção de inocência. Perguntas ao Ofendido. O ofendido, sempre que possível será ouvido e perguntado sobre as circunstâncias da infração, sobre a autoria ou presunção desta e as provas que possa indicar, podendo ser conduzido se deixar de comparecer injustificadamente. A Lei n.º 11.690 de 9.6.2008, que modificou o Cód. Proc. Penal, procurou dar especial relevância à pessoa do ofendido, conferindo-lhe os direitos, de ser comunicado sobre diversos atos processuais (ingresso e saída do acusado da prisão, designação de data para audiência, informação da sentença, etc.), bem como de manter-se em local reservado e separado antes do início da audiência. Poderá ainda o ofendido ser encaminhado para atendimento multidisciplinar, nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, às expensas do ofensor ou do Estado, sendo-lhe assegurado ademais, a preservação da intimidade, vida privada, honra, imagem, e inclusive segredo de justiça no que tange a seus dados, depoimentos, etc. para evitar sua exposição na imprensa. A prova consistente em perguntas ao ofendido está sujeitas às restrições do artigo 212 do Cód. de Proc. Penal e à preservação de seus direitos constitucionais individuais (art. 209, § 6º do C.P.P). Testemunhas. No processo penal, a prova testemunhal reveste-se de extrema relevância para esclarecimento dos fatos e suas circunstâncias. Dentre as espécies de testemunhas (numéricas, referidas e informantes), as primeiras tem seu número máximo fixado pela lei de acordo com o tipo de procedimento, sendo compromissadas para prestarem depoimento sobre o que souberem, enquanto as segundas não há limite quanto ao número das mesmas, que podem ou não prestar compromisso, e que depõem sobre fato ou circunstância que tenha originado a necessidade de seus depoimentos. Já as informantes, mencionadas nos artigos 206 e 208 do Código de Processo Penal, não prestam compromisso. Em regra, qualquer pessoa pode ser testemunha (art. 202 do CPP) ressalvando-se as proibidas de depor em razão de função, ministério, ofício ou profissão (art. 207 do CPP), as quais se desobrigadas pela parte interessada, podem testemunhar. Em razão de vínculo de parentesco, a testemunha embora possa se eximir de depor, se a prova dos fatos e suas circunstâncias não puder ser obtida de outro modo, não poderão escusar-se de prestar declarações. Há restrições quanto à prova testemunhal, no que for excessivo, impertinente ou protelatório (art. 81, § 1º da Lei nº 9.099, de 26.9.1995) e, quanto às perguntas que possam induzir a resposta, as sem relação com a causa e as repetitivas (art. 212 do CPP). Será ilícita e inadmissível a prova testemunhal, devendo ser desconsiderada se a testemunhas fizer afirmação falsa, ou negar os fatos, ou ainda calar a verdade dos mesmos, caso em que incidirá a testemunha, seja numerária, informante ou referida, no delito previsto no artigo 342 do Código Penal, haja vista que o compromisso não integra o elemento do tipo penal, e o dever com a verdade é imperativo e extensivo a todos. Segundo o escólio de F. Muñoz Conde, “De todos estes elementos de prova o mais difícil e complexo e de valor mais duvidoso a respeito da conclusão é a prova testemunhal. As declarações das testemunhas presenciais dos fatos são ao menos contraditórias; e mais, são as próprias testemunhas que com suas declarações deformam consciente ou inconscientemente a realidade […] … a valoração do Tribunal pode ser muito mais subjetiva e basear-se em critérios puramente intuitivos, na simpatia ou antipatia que lhe desperte a testemunha, e, em última instância, na credibilidade do mesmo aos olhos de cada um dos membros do Tribunal que valore seu testemunho …”[28] Por conseguinte pode-se asseverar, que em se tratando de prova testemunhal, há dificuldade do julgador em saber a verdade real ante a subjetividade, com que as testemunhas prestam declarações, tanto que existe a possibilidade das mesmas serem reperguntadas ou acareadas. Declaração de co-réu: Quanto a valoração da declaração de co-réu, conforme explana Francisco Muñoz Conde, “ A maioria dos autores consideram que a mesma não é provas, e que em todo o caso, não pode ser considerada ao mesmo nível que a prova testemunhal, pelas seguintes razões: 1º – nenhum acusado está obrigado a fazer declarações contra si mesmo. Se o faz não podendo negar sua participação, é para inculpar os outros, senão para buscar alguma vantagem, ou por ressentimento, etc. 2º – o co-réu porque não tem obrigações de prestar declarações, não pode ser acusado de falso testemunho, pois não presta compromisso não tendo obrigações de dizer a verdade.”[29] É notório que em um processo criminal em que haja vários acusados, não é raro que um co-réu para afastar sua responsabilidade ou mesmo diminuí-la, atribua a culpa a outro ou outros acusados, imputando-lhes sua própria culpabilidade. Neste caso, não há que se cogitar de valoração de tais declarações, haja vista que as mesmas não gozam do prestígio de prova. Alerta o autor mencionado que, “Há também a prática policial e judicial freqüentes de aproveitar estas tendências inatas do acusado à delação, inclusive fomentando-a com ameaças, dádivas ou promessas de qualquer tipo para conseguir condenação que sem a delação do co-acusado, dificilmente poderiam conseguir.” [30] No que concerne às declarações de co-réu como meio de prova para fins de condenação, indaga o escoliasta: “Pode constituir a declaração inculpatória do co-imputado uma prova e basear-se nela exclusivamente uma condenação?”[31] Paula Diaz Pita, citada por Muñoz Conde, conclui que “dentro de certos limites e com algumas reservas, pode outorgar-se-lhe as declarações inculpatórias dos co-imputados o caráter de prova, se bem que seria conveniente que fossem corroboradas por outras provas.” [32] Entretanto, o jurista tem posição diversa, crendo que, “ … dar-lhe valor probatório a declaração de co-imputado em si mesma supõe abrir a porta a violação do direito fundamental à presunção de inocência e a práticas que podem converter o processo penal em uma autêntica fonte de chantagens, acordos interessados entre alguns acusados, a Polícia e o Ministério Público com conseguintes retiradas das acusação contra uns para conseguir a incriminação (e condenação de outros). Nada bom para o Estado de Direito … A declaração do co-imputado não é em si mesma considerada uma verdadeira e autêntica prova de culpa.” [33] Reconhecimento de pessoas e coisas. O reconhecimento de pessoas como prova no processo penal obedecerá ao estabelecido no artigo 266 do Código de Processo Penal, tendo o legislador o rodeado de cautelas de modo a preservar tanto a pessoa que irá proceder ao reconhecimento, como a pessoa que será reconhecida, devendo aquela antes do ato de reconhecimento descrevê-la. Além do mais, a pessoa a ser reconhecida deverá ser postada juntamente com outras com as quais possua semelhança, a fim de evitar-se influências e sugestões. Em havendo receio de intimidação, por parte da pessoa que irá fazer o reconhecimento, deverá haver por parte da autoridade a providência no sentido de que esta não seja vista pela pessoa a ser reconhecida. No que concerne ao reconhecimento de coisas, o procedimento é semelhante conforme estatuem os artigos 227 e 228 do mesmo pergaminho processual, com descrição anterior do objeto, a colocação deste no meio de outros semelhantes. Em havendo o reconhecimento, o auto do mesmo será lavrado de forma pormenorizada. O reconhecimento de pessoas ou coisas que não for feito com observância das normas processuais, é ineficaz não sendo admitido para fins de prova. Acareação. A acareação, segundo Julio Fabbrini Mirabete “é o ato processual … destinado a obter a convencimento do juiz sobre a verdade de algum fato em que as declarações … forem divergentes”[34]. Para Chaparède, citado pelo autor referido, “há uma tendência inata da testemunha diminuir o fator tempo e as dimensões das coisas, a desprezar o insólito e o contingente, concluindo, afinal, que na vida judiciária há evidentes fontes de erros na prestação do testemunho, mesmo nos casos de boa-fé sem qualquer fator estranho de pressão. Não há no testemunho, observa ele, a precisão e a objetividade de um instrumento físico ou mecânico, ocorrendo freqüentemente erros comuns de percepção de cores, de tempo e de distância e até o mesmo de sons” [35]. Acrescenta o autor, “Isso sem falar na mendacidade que freqüentemente vicia o depoimento, estimulada por interesses pessoais ou sugestão ou ainda por sentimentos vários como amor, amizade, ódio, inveja, etc” [36]. Como se extrai do art. 229 do CPP e enfatizado pelo mesmo autor, os pressupostos da Acareação são dois: a) que as pessoas a serem acareadas já tenham prestado suas declarações sobre os mesmo fatos e circunstâncias; e b) que haja divergências, ou seja, existam contradições ou versões distintas sobre o fato ou circunstâncias que interessem ao processo. Visando ademais a acareação tanto no inquérito policial (art. 6º, inc. VI do CPP) como na instrução criminal (art. 229 do CPP), na medida do possível, obter harmonia entres as declarações das acareadas com as explicações dos pontos desarmônicos para por fim às divergências, já que se manifestou a jurisprudência pátria, que “Mesmo havendo divergências sérias, porém, a acareação não é providência obrigatória na instrução da causa, mas medida sujeita ao prudente arbítrio do juiz.” (RT 284/494; 436/39). Quanto ao valor da acareação, o autor acima citado[37] secundado por Damásio Evangelista de Jesus[38] são enfáticos no sentido de que só excepcionalmente a acareação soluciona as divergências nas declarações dos acareados, pois estes comumente confirmam suas declarações anteriores. Indícios. O Código de Processo Penal define o que é indício no artigo 239: “Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. Nos termos da lei, a premissa menor, ou fato indiciário, é uma circunstância conhecida e provada. A premissa maior é um princípio de razão ou regra de experiência. A conclusão, que é a comparação entre a premissa maior e a premissa menor, por indução (ou dedução) Conceituando “indícios”, Julio Fabbrini Mirabete discorre que: “Na prova indireta, a representação do fato a provar se faz através da construção lógica ; esta é que revela o fato ou circunstância.Provas indiretas são presunções e os indícios …Nos termos da lei , a premissa menor, ou fato indiciário , é uma circunstância conhecida e provada(…).A premissa maior é um principio de razão ou regra de experiência que no exemplo é a de que todo aquele que é encontrado logo após o crime , junto ao cadáver, com a arma assassina e os objetos da vítima , é provavelmente o autor do crime.A conclusão , que é a comparação entre a premissa maior e a premissa menor por indução (ou dedução) é a de que…provavelmente o autor do crime.”[39] Quanto ao valor probatório dos indícios teoriza o mesmo autor, que “…não havendo princípios inflexíveis sobre o valor da prova indiciaria no processo.Nossa lei não se atem a qualquer classificação , embora pro vezes aluda ao valor da prova indiciária , como quando se refere a indícios “suficiente”… (art. 134) …(arts.311/312) etc … …Diante do sistema da livre convição do juiz (art.157), encampado pelo Código, a prova indiciária também chamada circunstancial tem o mesmo valor das provas diretas , como se atesta na Exposição de Motivos, em que se afirma não haver hierarquia de provas por não existir necessariamente maior ou menor prestígio de uma com relação a outra …” [40] No mesmo sentido de que a aceitação, a validade dos indícios como prova para embasar um decreto condenatório têm que harmonizar-se com o principio do livre convencimento do Juiz, confira-se a jurisprudência: RT 718/394; 430/380; RJDTACRIM : 5/169;7/149; 5/137; 15/133; JTACRESP: 51/422; 56/265 e 312; 58/253; 38/167; 43/23; 50/183 e 200; 53/291; 61/301; 73/400; 61/309; 46/326; 49/21. Documentos. Por documentos, o Cód. Proc. Penal em seu artigo 232, expressa que são considerados quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares. Quanto à apresentação de documentos no processo, em regra é cabível em qualquer fase, havendo porém ressalva ditada nos casos expressos em lei, consoante dispõe a norma do artigo 231 da lei processual penal. São admissíveis no processo, as fotocópias de documentos, desde que autenticadas (art. 232, § ún. do C.P.P.), os documentos em língua estrangeira traduzidos por tradutor público ou pessoa idônea nomeada pelo juiz (art. 236 do C.P.P.), as públicas-formas, quando conferidas com o original em presença da autoridade (art. 237 do C.P.P.). No tocante a prova documental, há que se fazer ressalva em casos de falsificação da mesma, que em sendo constatada por exame pericial, será inadmitida como prova. Merecem atenção especial como meio de prova as cartas, isto porque a inviolabilidade da correspondência é ao mesmo tempo garantia e direito constitucional, incluindo-se no termo correspondência não somente as cartas, mas os telegramas, mensagens, etc., só se restringindo aludida inviolabilidade excepcionalmente por determinação judicial (art. 5º, inc. XII da C.R.F.B.) e na hipótese de estado de defesa (art. 136, §1º, inc. I, ‘b’ e ‘c’ da C.R.F.B.). As restrições se justificam face às razões e interesses de ordens pública e social que sobrepujam a razão e o interesse particular. Ademais, o legislador infraconstitucional criminalizou a violação de correspondência (arts. 151 e 152 do C.P.), não constituindo infração penal a exibição em juízo pra a defesa de direito, mesmo sem consentimento do signatário (parágrafo único do art. 233 do C.P.P.). Afastadas as restrições constitucionais e as exceções legais, as correspondências que forem obtidas por meios interceptivos, criminosos, ilícitos e ilegítimos não são admissíveis como prova (C.R.F.B., art. 5º, inc. LVI; arts. 157 e §§ 1º a 3º; e 233 do C.P.P.). Busca e Apreensão A busca e apreensão, tanto pode ser pessoal, como domiciliar. O Código de Processo Penal em seu artigo 240, prevê expressamente os casos em que são cabíveis a busca domiciliar (§1º, ‘a’ a ‘h’) e a pessoal (§2º c/c §1º, ‘b’ a ‘f’ e ‘h’). A busca só poderá ser efetivada mediante mandado judicial que observará os requisitos do artigo 243 e incisos I a III do Cód. de Proc. Penal, só havendo dispensa do mesmo se a autoridade proceder a busca pessoalmente. Em se tratando de documento que se encontre em poder do acusado e se destine à sua defesa o legislador só permitiu a busca se o mesmo constituir elemento de corpo de delito (art. 243, §2º do C.P.P). No que concerne à busca domiciliar, sua execução é cercada de restrições tendo em vista a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio (C.R.F.B., art. 5º, inc. XI), somando-se ainda que a lei penal considera crime sua violação (art. 150 do C.P.). Todavia, em sendo realizada em consonância com os ditames insertos no artigo 245 do Cód. de Proc. Penal, não há violação à normas constitucionais e penal, devendo a busca ser realizada de dia, e excepcionalmente à noite com o consentimento do morador. Se ausentes os moradores, a busca será efetuada mediante a intimação de qualquer vizinho, se houver e estiver presente, para assistir a diligência (art. 245, §4º do C.P.P.). No atinente à busca pessoal, insta acrescentar que a mesma dispensará mandado nos casos itemizados no artigo 244 do Cód. de Proc. Penal (prisão; suspeita de posse de arma proibida, papéis ou objetos que constituem corpo de delito; busca determinada no curso da busca domiciliar (art. 244 c/c art. 243, inc. I, última parte)), sendo que a busca pessoal em mulher só poderá ser feita por outra mulher, senão ocasionar retardamento ou prejuízo da diligência (art. 249 do C.P.P.) dispositivo que atende a razões de ordem social e especial condição do sexo feminino. 3.2.1 – Síntese conclusiva. Apesar de vigorantes no direito e no processo em matéria de provas, princípios, sistemas e critérios objetivando a investigação da verdade, e a conseqüente apreciação e valoração daquelas pelo órgão julgador, não se pode negar que por conta das normas fundamentais garantidoras de direitos e liberdades, os mesmos têm aplicação relativa. Dentro deste enredo, pode-se dizer que modernamente no processo penal, a verdade real (ou material) é utópica, não se podendo esquecer que o julgador cada vez mais se vê compelido a edificar sua convicção com base em uma verdade “processual”, cabendo a propósito as seguintes sínteses conclusivas: a) não são admissíveis no processo, provas ilícitas nem as derivadas destas obtidas com violação às normas constitucionais, às legais, ou às internacionais, devendo as mesmas serem desentranhadas dos autos; b) não são admissíveis no processo, provas que forem obtidas com violação a direitos fundamentais, que acarretem constrangimento, ou que ofendam a dignidade do acusado (p. ex.: crueldade, tortura, narcoanálise, detector de mentiras, soro da verdade, estupefacientes), etc.; c) na valoração da prova objetivando a busca da verdade real, há dificuldades em estabelecê-la, considerando a subjetividade dos indivíduos implicados em um processo penal, bem como a veracidade das declarações do acusado, co-acusados, testemunhas, etc.; d) nenhuma prova isoladamente pode ser valorada como absoluta para fins de condenação, haja vista a necessidade do julgador chegar ao convencimento acima de qualquer dúvida razoável da responsabilidade do acusado, quanto ao fato que lhe é imputado; e) determinado o arquivamento do inquérito policial pelo juiz a requerimento do órgão de acusação, sem novas provas (lícitas) é incabível o desarquivamento do mesmo, para nova denúncia ou queixa; f) há exceções à regra do princípio, de que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer, face à nova redação do art. 156 e incisos I e II do Código de Processo Penal, que faculta ao juiz antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação, e a proporcionalidade, e ainda, a realização de diligências no curso da instrução ou antes de sentenciar para dirimir dúvidas; g) o julgador não pode fundamentar sua decisão apenas com os elementos de informação colhidos na investigação do inquérito sem o crivo do contraditório, com ressalvas às provas cautelares não repetíveis e as antecipadas, sendo a valoração daqueles relativo e adstritos à livre apreciação judicial; h) a identificação datiloscópica do acusado, só se tornará imprescindível quando inexistir identificação civil ou em havendo esta, houver dúvida razoável quanto à sua identidade e veracidade desta; i) a confissão do acusado na fase de inquérito ou em juízo, sendo admissível a retratação, deve ser valorada em conjunto com outras provas produzidas, sob o crivo do contraditório e em sede judicial; j) o interrogatório sempre que possível, deve ser pessoal e feito pelo juiz da instrução, este mais apto para avaliar o valor da confissão, se houver; l) como impera no processo penal constitucional, o princípio da igualdade de tratamento, deve haver estrita obediências aos atos, formas e prazos processuais, além da faculdade igualitária na proposição, admissão e produção de provas; m) adotou-se com a reforma do Código de Processo Penal, o princípio da identidade física ou vinculação do juiz ao processo, como conseqüência da livre apreciação da prova e da convicção, visando propiciar melhor condição para que o julgador possa motivar sua decisão. Em conclusão, nem toda prova é útil para a descoberta da verdade, mas somente aquela agasalhada pelo direito em vigor e não excluída a priori por nenhuma norma legal, seja ela constitucional, material, processual ou ainda internacional. IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS. O moderno sistema acusatório no processo penal, fruto de paulatina evolução histórica, não importa em afastar do Estado o controle social do intolerável, nem tampouco o interesse deste em conhecer a verdade dos fatos delituosos, para que possa dar satisfações à sociedade por meio da jurisdição. È evidente, entretanto, que o conhecimento desta verdade não pode ser haurido a qualquer preço, e à custa de provas ilícitas e ilegítimas que não se coadunam com o Estado democrático social e de direito e que alijem a tutela estatal das liberdades individuais. Como corolário da estrutura estatal brasileira, o princípio da verdade real na livre investigação das provas, deve ser interpretado consentaneamente com as normas fundamentais consagradoras dos Direitos Humanos, sejam elas nacionais ou internacionais. Por conta desta interpretação, as restrições à liberdade de provas, decorrentes dos princípios, garantias e direitos emanados das normas constitucionais, internacionais (Tratados e Convenções) e infra-constitucionais (materiais e processuais), limitam a proposição, a admissão, a produção e a valoração das provas. Em prestígio aos direitos fundamentais, o princípio da verdade real oriundo da liberdade de provas, submetido que está às restrições mencionadas, encontra-se podado em suas arestas de efetivar investigação histórica dos fatos de forma ilimitada, abusiva e arbitrária. Por conseguinte, a comprovação da verdade “real” por intermédio da investigação histórica probatória para fins práticos, está longe da aproximação de uma certeza absoluta, quanto aos fatos e circunstâncias que o envolvam, circunscrevendo-se a uma certeza provável. Para o julgador vinculado à lei e adstrito ao princípio da livre convicção motivada, resta construir seu convencimento com provas lícitas, produzidas, apresentadas, limitadas e formatadas em consonância com as normas constitucionais, legais e internacionais. Destarte, para uma provável condenação, o que se pode ter é uma verdade “processual”, qual seja, a verdade que permite comprovação válida por provas lícitas, e que de forma concreta resta demonstrada nos autos. Entretanto, sem provas suficientes para prolatar um édito condenatório, o julgador, na dúvida e em homenagem às normas fundamentais, curva-se a estas para decidir pela absolvição ante a presunção de inocência. Finalizando, cabe fazer-se menção ao adágio de autoria de Paul Van Christynen, citado na obra de John Gilissen: “Melius est nocentem relinquere impunitum quam innocentum condemnare”. (melhor será deixar um culpado sem punição do que condenar um inocente)[41]
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-73/as-normas-fundamentais-e-a-utopia-da-busca-da-verdade-real-em-materia-de-direito-processual-penal/
Retratação na Lei Maria da Penha: A busca pela preservação da harmonia familiar
As reflexões desse artigo encontram-se na análise técnica e jurídica acerca da retratação e o direito de seu exercício, que é tratada na Lei n°11.340, mais conhecida por “Lei Maria da Penha”. Para tanto, este trabalho pretende trançar um panorama da questão, evidenciando aspectos sociais e, sobretudo legais, tendo em vista que, a prática da violência contra a mulher está arraigada na sociedade brasileira. O que torna seu estudo de suma importância para os operadores do Direito.[1]
Direito Processual Penal
1 INTRODUÇÃO Este trabalho tem por escopo comentar, como também, apresentar, alguns dispositivos contidos na Lei Maria da Penha, que adveio acima de tudo, a fim de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Tal diagnóstico se faz necessário, tendo em vista a dimensão do problema no país. Entretanto, o enfoque maior deste artigo, é explanar acerca do Direito de retratação, disposto na referida lei, que dá a ofendida a condição de retirar a queixa ora oferecida em desfavor do agressor, que quase sempre é seu próprio companheiro. Situação esta, que é vista todos os dias nas delegacias e Fóruns do País, pois na maioria dos casos a retratação da representação é feita pela mulher com o intuito de preservar a harmonia existente no seio da família. O que torna o seu estudo imprescindível para a compreensão desta realidade vivida por muitos brasileiros. Assim, faz-se mister abordar alguns temas que são inerentes á matéria. Começando pela promulgação da Lei n°11.340, conhecida como “Lei Maria da Penha”, como também, a representação nas ações penais públicas condicionadas, o exercício do direito de retratação, entre outras peculiaridades que serão tratadas no transcorrer deste trabalho. 2 LEI MARIA DA PENHA A lei n°11.340, de sete de agosto de 2006, mais conhecida por “Lei Maria da Penha”, entrou em vigor no Ordenamento jurídico pouco antes das eleições presidenciais ocorridas em 2006. É nesse sentido, que diuturnamente fala-se que a mesma adveio por motivos meramente políticos, ou seja, teria sido elaborada com o intuito de angariar votos para a reeleição do candidato Lula à Presidência da República. Em contrapartida, há os que acreditam que o aparecimento da referida lei fora motivada pela necessidade de preservação dos direitos fundamentais da mulher, que constantemente vem sofrendo abusos físicos e mentais no ambiente doméstico. Vale-se ressaltar, qual o motivo que levou a lei a ser “batizada” com essa denominação, pelo qual, passará a ser conhecida. Ocorre que, no dia 29 de maio de 1983, na cidade de Fortaleza, no Estado do Ceará, a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, enquanto dormia, foi atingida por um tiro de espingarda desferido pelo seu então marido, o economista Marco Antonio Heredia Viveiros, colombiano de origem e naturalizado brasileiro. Porém, as agressões não se limitaram àquele dia, passada pouco mais de uma semana, a vítima sofreu mais um ataque do marido quando se banhava, recebendo uma descarga elétrica, que segundo autor não seria capaz de produzir qualquer lesão. Todos os atentados foram premeditados pelo seu companheiro, entretanto, nega-se quanto à autoria do primeiro ataque. Só em 31 de outubro de 1986 o réu foi então pronunciado e em 4 de maio de 1991 foi levado a júri e condenado. Apelou a decisão, suscitando nulidade decorrente de falha na elaboração dos quesitos. Foi então submetido a novo julgamento, mo dia 15 de março de 1996, quando restou condenado a pena de dez anos e seis meses de prisão. Seguiu-se novo apelo deste último julgamento, bem como recurso dirigido aos tribunais superiores; certo que, apenas em setembro de 2002, foi o autor finalmente preso.   O Estado brasileiro reconhece finalmente, por meio da Lei Maria da Penha, que a violência doméstica e familiar não é um assunto privado, mas uma questão de ordem pública, que exige para sua solução e enfrentamento, a adoção de medidas integradas de prevenção entre os diferentes níveis de governo federal, estadual e municipal, bem como entre as diversas áreas de atuação social, em conjunto com as ações não-governamentais. (art. 8º, inc. I). 3 INOVAÇÕES ADVINDAS COM A NOVA LEI A Lei Maria da Penha é resultado de longas discussões e intensos trabalhos dos movimentos de mulheres não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Logo, se faz de suma importância explanar acerca das mudanças estabelecidas por essa Lei, e necessário que todas as pessoas, não apenas as mulheres tenham conhecimento de seu conteúdo, para assim, cobrar das autoridades envolvidas em suas disposições, o seu efetivo cumprimento. Pode-se dizer que a referida Lei deu um passo fundamental para assegurar à mulher o direito à sua integridade física, psíquica, sexual e moral, a qual se mostra verdadeiro instrumento de defesa e proteção. A violência doméstica e familiar contra a mulher é considerada uma das formas de violação dos direitos humanos, (art. 6º). Quanto a conceito de violência doméstica contra a mulher, pode-se dizer que a aplicação da nova lei somente cabe quando o sujeito passivo for do sexo feminino (ofendida: mulher), sendo que o autor do fato (da violência) poderá ser do sexo masculino ou feminino. Porém, aqui houve uma importante inovação, com o reconhecimento legal das relações homossexuais, já que a violência doméstica contra a mulher independe de sua orientação sexual, (art. 5º, parágrafo único). Várias são as formas de violência perpetradas contra a mulher pode ser praticada: física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral (art. 7º) Com a Lei Maria da Penha retiram-se da Lei 9099/95(Lei dos Juizados Especiais) os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, considerada, até então, crimes de menor potencial ofensivo, devolvendo para a autoridade policial a prerrogativa investigatória. Assim, ao tomar conhecimento do fato, a autoridade policial deverá instaurar inquérito policial, realizando as diligências necessárias para a apuração do fato (ouvir a ofendida, colher a representação, ouvir as testemunhas, ouvir e qualificar o agressor, providenciar os laudos periciais necessários, etc), (art. 12 e incisos). Em detrimento da nova Lei, dependendo do crime e de suas circunstâncias, a autoridade policial poderá efetuar a prisão em flagrante, bem como solicitar ao juiz a decretação de prisão preventiva do agressor, (art. 20 e 42). A Lei Maria da Penha também determinou a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal para processar e julgar causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, podendo, portanto, tomar decisões tanto a respeito do crime cometido quanto aos fatos relacionados às questões de família, (art. 14). Houve algumas alterações processuais que interessam a ofendida, nos crimes que exigem a manifestação de vontade expressa da mesma (representação) para haver ação penal contra o agressor, a renúncia da ofendida a essa representação somente será admitida na presença do juiz, (art. 16). A aplicação de penas de pagamentos de multa ou de cesta básica foi terminantemente proibida pela nova lei, (art. 17). Vale-se ressaltar, que as causas que envolvem a violência doméstica e familiar contra a mulher contam com direito de preferência, devendo o juiz dar prioridade a essas causas, de modo a terem um andamento mais rápido, (art. 33, parágrafo único). Um dos maiores avanços representados pela nova Lei é exatamente à parte que diz respeito às medidas cautelares e protetivas de urgência, que poderão ser aplicadas pelo juiz sempre que constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. É bom lembrar que a própria ofendida pode solicitar a concessão das medidas protetivas de urgência, não sendo obrigatório que esteja acompanhada de advogado (a). 4 REPRESENTAÇÃO NA LEI MARIA DA PENHA No Direito Penal, encontram-se crimes que são de ação penal privada, outros que são de ação penal pública e ainda os de ação penal condicionada à representação. Nos crimes de ação penal privada, somente a ofendida ou seu representante legal, por meio de advogado(a), pode dar início à ação penal mediante o oferecimento da queixa-crime. Como exemplo, tem-se os crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação) e algumas situações nos crimes contra os costumes (estupro, atentado violento ao pudor).Nos crimes de ação penal pública, o Ministério Público é quem promove a ação, independentemente da vontade da ofendida. Como exemplo, cita-se os crimes contra a vida (tentativa de homicídio, aborto provocado por terceiro) e também os crimes de lesões corporais. Neste ponto, é necessário destacar que com a Lei Maria da Penha, as lesões corporais leves não mais necessitam de representação da ofendida e não existe a possibilidade de renúncia ou desistência por parte dela. Nos crimes de ação penal condicionada à representação, o Ministério Público somente pode dar início à ação penal se houver a expressa manifestação de vontade da ofendida nesse sentido (representação). É o que ocorre, por exemplo, com o crime de ameaça, entre outros. Devemos recordar que para esses casos, a Lei Maria da Penha dispôs que a renúncia da ofendida em representar contra o agressor (vulgarmente conhecida como “retirada da queixa”) somente pode ocorrer na presença do juiz, e só caberá antes do oferecimento da denúncia. 5 RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO Sabe-se que a renúncia significa abdicação do exercício de um direito, porém, o legislador utiliza a terminologia retratação da representação para referir-se ao ato da vítima (ou de seu representante legal) reconsiderar o pedido-autorização antes externado (pois não se renúncia um direito já exercido)   A lei estabelece que a retratação à representação da vítima apenas será admissível se feita perante o juízo, consoante dispõe o art. 16 da referida Lei. Assim, as retratações feitas em delegacia não terão qualquer efeito se não forem feitas em juízo. Se a vítima não comparecer em juízo, poderá o Ministério Público dar continuidade ao processo penal. Esta alteração é importante, pois assegura que a vítima terá um contato pessoal com o Juiz e o Ministério Público, especializados no trato da violência doméstica, que poderão, ao invés de incentivar a desistência, conscientizar a vítima sobre a necessidade de levar o processo adiante, especialmente para possibilitar ao autor do fato ou à própria vítima submissão a acompanhamento multidisciplinar, como instrumento de prevenção a futuras agressões. A importância da retratação em juízo se dá com o intuito de verificar se a ofendida está sofrendo algum tipo de pressão, tendo em vista que sua decisão deve ser voluntária e espontânea. Em muitas situações, após sofrer inúmeros atos de violência, a vítima se retrata da representação e foge para local incerto; nesta situação, se a vítima não comparecer em juízo para confirmar a retratação à representação e houver prova suficiente da prática do delito será possível o ajuizamento da ação penal. Na maioria das vezes, as vítimas de violência doméstica retiram a representação oferecida contra o agressor a fim de preservar a harmonia familiar. Tal possibilidade vem prevista na Lei Maria da Penha, e deve receber atenção especial do Ministério público e Juiz. Ambos têm o poder de analisar se a atitude da vítima é espontânea. O objetivo maior da retratação, que deve ocorrer em audiência marcada para esse fim, é permitir a restauração dos laços familiares. Logo, o papel do juiz e dever do Ministério Público não é apenas homologar o pedido da vítima, mas sim perquirir, efetivamente, por todos os meios, a motivação do pedido da mesma. Embora seja uma faculdade da vítima voltar atrás na sua representação, a lei impõe um momento processual para isso: deve acontecer antes do oferecimento da denúncia. Tem como escopo este limite fiscalizar a vontade da ofendida, evitando que a retratação aconteça por ingerência e força do agressor. Ocorre que, está faculdade não esta condicionada a qualquer tipo de violência. Apenas, em caso de lesão corporal leve, poderá a vítima se retratar da representação feita. O mesmo não acontece se a lesão for grave ou houver tentativa de homicídio, pois, para essas situações, a ação criminal é incondicionada, o que independe da vontade da vítima em continuar ou não com o processo. Importante considerar ainda que, conforme o entendimento de desembargadores, o magistrado deve recusar a retratação caso exista alguma dúvida quanto á vontade real da mulher agredida quando resolve se retratar. Reiteração da violência doméstica e familiar, maus antecedentes criminais do agressor, seriedade e gravidade das circunstâncias inseridas no momento da violência são indicadores desfavoráveis à retratação. 6 CONCLUSÃO Em suma, com base nos pressupostos anteriormente citados, não há dúvidas de que a Lei Maria da Penha trouxe a tona instrumentos importantes para uma postura pró-ativa do Estado perante o problema da violência perpetrada contra a mulher, dando-lhe instrumentos de atuação mais eficientes para a realização da justiça em seu significado mais profundo, não apenas como aplicação cega de regras, mas como forma de mudança social em prol da emancipação do ser humano em sua completude. É nesse sentido, que a retratação da retratação, disposto na referida Lei, revela-se como meio da vítima, com o intuito de preservar a harmonia familiar, desistir de processar o agressor. Observa-se, outrossim, que a retratação deve ser ato espontâneo da vítima ou de quem legitimado legalmente , não sendo esta coagida a fazer o que não deseja. Logo, com o advento da Lei Maria da Penha, a ofendida só terá a oportunidade de se retratar na presença das autoridades competentes, e este ato deve se dá antes do oferecimento da denúncia, caso o crime seja de ação penal pública condicionada a representação. O estudo referido tema mostrou-se de suma relevância para a compreensão do assunto, pelo fato deste ser comumente vivido por muitas brasileiras diuturnamente.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-73/retratacao-na-lei-maria-da-penha-a-busca-pela-preservacao-da-harmonia-familiar/
Breves dizeres sobre “as” reformas do CPP
de efeito, o artigo definido que compõe o título deste redigido está adrede pluralizado. Afinal, um “conjunto” de leis vieram à tona, com o intuito de modernizar o nosso Codex adjetivo de cunho penal, sendo que, ainda, uma nova reforma processual penal já se constitui em um porvir amplamente anunciado. Breves, pois, e também despretensiosos, serão os comentários desta obra. Em suma, deseja-se focar com desapego os essenciais mecanismos já modificados e anunciar o que está ainda por ser modificado; tudo isso mais como uma singela reminiscência, antes que pareceres comemorativos ou inovadores.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO Desejo deixar o mais hialino possível na mente do estudioso que o presente escrito não tem por base efetivar um profundo estudo sobre as reformas que impactaram o Codex adjetivo processual pátrio, até porque isso seria inviável, haja vista a complexidade de novidades trazidas à baila por meio de um conjunto de leis onde cada uma, por si só, promoveu múltiplas inserções nos ritos já tão obsoletos que nos serviam. Outrossim, almejo transparecer meu intuito precípuo em haver elaborado este escrito no sentido de relembrar, de forma perfunctória e panorâmica, todo aquele conjunto de novidades advindas com o tríduo legal composto pelas leis 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008, mantendo-se o mais remotos possíveis comentários de perfil aprofundado. O NOVO PROCEDIMENTO DO TRIBUNAL DO JÚRI Este recordatório é, em verdade, uma simples fixação, pois, recordando-se do procedimento a ponto de descrevê-lo precisamente, sem espaço para comentários demorados, é possível angariar-se uma melhor visão sobre o todo e fixarem-se suas partes como se fosse visualizado um verdadeiro fluxograma. A gênese do novo esquema processual, é claro, tem como fulcro a Lei 11.689/2008. Veja-se: Em suma: o procedimento começa, quando há o recebimento da denúncia ou da queixa. Apresentam-se, então, as preliminares, documentos, provas, etc., assim como um número máximo de oito testemunhas. Em dez dias, deve vir a resposta preliminar. Segue, em cinco dias, a contrarresposta da acusação. Exsurge a audiência de instrução. Esta começa com a declaração do ofendido (vítima), se possível. Após, há as testemunhas de acusação, passando-se para as testemunhas de defesa. Peritos, se necessário, manifestar-se-ão. Virão as acareações, se necessárias; bem como eventuais reconhecimentos. Passa-se à declaração do acusado; às alegações finais da acusação, isto sendo orais e em vinte minutos; alegações finais da defesa, também orais e em um interregno de vinte minutos, e, por fim, a decisão do juiz a qual pode ser oral ou escrita. Neste exato ponto, se ele entender que há prova da materialidade e indícios suficientes da autoria, haverá a pronúncia; se houver falta de indícios de autoria e de materialidade, para o magistrado tornar-se convencido, este impronunciará o réu. Também poderá ocorrer que se prove ser o fato inexistente, ou que se prove não ser o réu o autor. Também poderá se provar que o fato não constitui infração penal, ou que haja uma causa de isenção de pena ou de exclusão do crime. Nesses últimos casos, haverá absolvição sumária. Frise-se que tanto na impronúncia como na absolvição sumária, há a possibilidade de apelação. Se a apelação for procedente, teremos, então, a pronúncia. Se esta for improcedente, haverá o arquivamento, sendo que poderá, em tese, haver uma nova denúncia, caso hajam novas provas. Lembre-se que no caso de pronúncia caberá recurso em sentido estrito. Se este for procedente, teremos também uma hipótese de arquivamento. Muito bem, ultrapassada a primeira fase, entramos agora em uma segunda fase onde as partes devem juntar documentos, requer diligências e arrolar até cinco testemunhas. Após, o juiz ordenará as diligências necessárias e elaborará um relatório do caso. Virá à tona, após tudo isso, o plenário. Teremos, bem assim, a formação do conselho de sentença com sete jurados. Se possível, o ofendido (vítima) exporá sua declaração. Seguem-se as testemunhas de acusação. Após, as testemunhas de defesa, sendo que o defensor deverá perguntar antes. A marcha prossegue com os peritos, acareações, reconhecimentos e leitura de peças. Empós, haverá o interrogatório do acusado e os debates orais; depois a réplica e a tréplica logo em seguida. O juiz passará à leitura dos quesitos, haverá a votação na sala secreta e virá à tona, finalmente, a sentença.    Pois bem. Esboçado o novo esquema do Júri de uma forma geral, vale a pena agora relembrar pelo menos um ponto polêmico advindo com a Lei 11.689/2008 e que foi prontamente dirimido pelo Superior Tribunal de Justiça. Refiro-me à questão do Protesto por Novo Júri. Assim, lembremos que o referido Tribunal Superior posicionou-se no sentido de que, se o acórdão fosse publicado antes da vigência da Lei supradita que, em seu art. 4.º, revogou expressamente o Capítulo IV do Título II do Livro III, do Código de Processo Penal, extinguindo o instituto em comento, subsistiria o direito à sua interposição; caso o acórdão fosse publicado após a entrada em vigor do novo regramento legal, seria impossível a subsistência do direito de invocá-lo.[1] Por outro lado, cabe frisar que a nova sistemática legal possui um caráter eminentemente processual, reivindicando sua aplicação imediata. Coadunada com o princípio da celeridade que, por sua vez, instrumentaliza e torna efetiva a prestação jurisdicional, ela traz-nos interessantes mecanismos. Um deles é a alteração que diz respeito à fase do judicium acusationis, também chamado de sumário de culpa.[2] Foram alterados os artigos 406 a 416 do Codex adjetivo processual. Assim, essa fase será substituída por uma etapa preliminar de cunho contraditório, o que em verdade é uma tendência do processo penal brasileiro, tudo em sintonia com o conjunto das recentes alterações dos ritos sumário e ordinário. Referida etapa, de efeito, comporta o prazo para encerramento num montante de noventa dias. Fica com isso muito clara, portanto, a intenção do legislador em impor celeridade ao processo penal brasileiro. O NOVO PROCEDIMENTO ORDINÁRIO Com base na Lei 11.719/2008, temos significativas modificações no rito ordinário, ocasião em que ele passa a apresentar o seguinte esquema gráfico: Oferece-se a denúncia ou a queixa. Poderá haver rejeição e consequente arquivamento. Se isso ocorrer, teríamos a hipótese de recurso em sentido estrito. Caso haja recebimento, teremos a citação. Esta pode ser pessoal, por meio de edital ou com hora certa. A defesa apresentará resposta à acusação no prazo de dez dias. Com base no art. 397 do CPP, o juiz poderá proceder à absolvição sumária. Na hipótese de não absolver, exsurgirá a audiência de instrução e julgamento. Primeiramente ouve-se o ofendido (vítima), seguindo-se as testemunhas de acusação e de defesa em um número máximo de oito. Se necessário, ouvem-se os peritos, efetivam-se acareações e reconhecimento. Segue o interrogatório do acusado. Pode ocorrer que novas diligências tornem-se necessárias. Teremos então o fim da audiência e a realização das diligências, com alegações finais da acusação na forma escrita e em um prazo de cinco dias, seguindo as alegações finais da defesa obedecendo a mesma formalidade e o mesmo prazo. Vem à tona a sentença. Agora, se com o interrogatório não for interrompida a audiência, para realização de novas diligências, seguirão as alegações da acusação na forma oral e em um prazo de vinte minutos, seguindo-se as alegações da defesa também na forma oral e no mesmo prazo, com a derradeira, é claro, sentença judicial. Dentro deste novo panorama processual, alguns pontos merecem um maior destaque como, v.g., a incongruência do legislador ao esquecer as disposições contidas na Lei 11.690/08 relativas à prova. Ora, mais uma vez, somente o Poder Judiciário, para compatibilizar o que, em princípio, parece incompatível. Referida incompatibilidade ocorre com o fato de que os artigos 399, caput, e 400, caput, ambos do CPP, determinam que no rito ordinário do processo comum seja marcada audiência de instrução e julgamento em um lapso temporal de até 60 (sessenta) dias após a decisão que denegar a absolvição sumária. Por sua vez, o artigo 396-A do CPP estipula que a produção de provas seja pleiteada pela defesa na sua resposta à acusação. Portanto, veja-se bem, seria inviável abrir-se vista às partes para que apresentassem quesitos, indicassem assistentes, analisassem os quesitos, deferidos ou não deferidos, expedisse-se ofício instruído com todas aquelas peças necessárias à realização da perícia, aguardasse-se por um prazo razoável, a realização do exame, seguindo-se a confecção de laudo oficial, submissão do resultado às partes, novos questionamentos, sobrevinda de laudo dos assistentes técnicos, esclarecimentos adicionais, vistas às partes, enfim, tudo em 50 (cinquenta) dias ininterruptos, consoante o art. 159, § 5º, do CPP. Ademais, não se olvide que o prazo seria de 20 (vinte) dias no rito sumário! Outro ponto da mesma forma periclitante refere-se ao momento do recebimento da denúncia, tanto no rito ordinário quanto no rito sumário. O que intriga é que os artigos 396 e 399, todos do CPP, preveem instantes processuais distintos para tanto. Haveria, destarte, tríplice solução para essa incógnita. Em uma primeira hipótese, o recebimento deveria vir tão-somente na fase do art. 396 do CPP, porquanto seria em referida fase que o juiz efetivamente recebe o procedimento, analisa sua viabilidade e, sendo admissível, vem a citar o réu, para estabelecer a relação processual. Em uma segunda hipótese, teríamos o recebimento apenas na fase prevista no art. 399 do CPP, já que o magistrado passaria então a dispor de mais elementos, a fim de admitir ou rejeitar a denúncia com a apresentação, por parte do acusado, dos seus particulares argumentos. Por fim, como solução derradeira do impasse, teríamos uma hipótese de interpretação gramatical pura, ocasião em que haveria “dois” recebimentos da denúncia. Como o leitor já deve haver percebido, a operação ideal adviria na fase prevista no art. 396 do CPP. A razão? Muito simples: parece patente que houve omissão legislativa na redação do art. 399 do CPP. Referido dispositivo padece em não avisar que a aplicação do seu comando só deveria ocorrer, quando “não fosse o caso de absolvição sumária”. EMENDATIO LIBELLI e MUTATIO LIBELLI Passemos, agora, apenas para complementar este singelo raciocínio sedimentado em um simplicíssimo recordatório sobre as modificações processuais sofridas pelo nosso CPP, a mencionar algo, ainda que sucinto, sobre os importantíssimos institutos referidos na epígrafe deste capítulo. Em verdade, toda essa modificação festejada tem sua raiz no modelo de código Ibero-Americano.[3] Lembre-se, ainda, que os institutos supraditos estão intimamente ligados com o princípio da correlação entre acusação e sentença, onde o juiz deve permanecer inerte e o acusado deve ter ciência plena acerca do que se imputa a ele.   De substancial, quanto à emendatio, nada foi modificado em relação à possibilidade de corrigenda a ser efetivada pelo juiz no que tange à tipificação do episódio. Como sempre, o que importa são os fatos e não a classificação jurídica (jura novit curia). Com efeito, a proibição de mudança factual agora expressa no caput do art. 383 do CPP[4] sempre foi compreendida sem dissonância no mundo jurídico. Com relação à inserção dos parágrafos primeiro e segundo ao artigo em comento, onde aquele abre margem à suspensão do processo, quando a pena da nova classificação assim o permitir, e este determina a remessa dos autos ao juízo competente ante à nova classificação, também nada de novo trouxe-nos o legislador, porquanto isso sempre foi muito bem praticado pela magistratura. Verdade mesmo é que modificação, na acepção da palavra, somente ocorreu com a mutatio libelli, já que agora é obrigatório o aditamento da denúncia, independentemente de a nova classificação impor, ou não, diminuição ou aumento da pena. Antes da reforma imprimida pela Lei 11.719/2008, o art. 384 do CPP previa que a denúncia somente seria aditada pelo Ministério Público na hipótese de a nova classificação jurídica resultar em uma pena mais grave. Por meio de referida sistemática, o juiz poderia condenar uma pessoa por crime diversamente previsto na lei, sem necessidade de aditamento, o que inarredavelmente violava o direito à ampla defesa. Atualmente, o aditamento faz-se imperioso sempre, prestigiando-se a titularidade exclusiva da ação penal pública ao Ministério Público. Outra mudança relevante refere-se à exclusão dos vocábulos “explícita ou implicitamente” do caput do art. 384 do CPP[5], já que assim foi afastada, derradeiramente, a possibilidade de admitir-se acusação implícita, o que afrontaria o princípio da ampla defesa. INOVAÇÕES VINDOURAS Pois além “das” reformas pontuais já levadas a efeito, houve um anteprojeto de reforma plena do CPP elaborado por uma comissão de juristas criada em julho de 2008, isso após aprovação, em Plenário do Senado, de requerimento do Senador Renato Casagrande. Referida Comissão, criada por intermédio do Requerimento nº 227, de 2008, de iniciativa do Senador suprarreferido, viu como Presidente a pessoa de Garibaldi Alves Filho, conjuntura em que foram designados destacados profissionais e estudiosos do direito processual, a fim de laborar no feito, tudo sem se deixar de lado a imprescindível participação efetiva das instituições que ordinariamente lidam com a matéria, tais como a Magistratura, o Ministério Público, a Polícia Judiciária e a Advocacia. Ocorre que o nosso Código de Processo Penal é datado de outubro de 1941, editado por decreto-lei em pleno Estado Novo. Não obstante haja ele sofrido várias alterações pontuais, tais como as contidas nas leis 11.689, 11.690 e 11.719, todas de junho de 2008, carece ele de uma reforma mais abrangente. Com efeito, após a Constituição de 1988, que tanto auxiliou na oxigenação da interpretação das normas de processo penal por parte dos tribunais, o parlamento brasileiro ainda não teve a oportunidade de se dedicar à reforma integral do referido estatuto, única maneira de coaduná-lo com o novel paradigma constitucional instituído já há mais de duas décadas. Assim, enormes desafios anunciam-se a frente e o projeto de reforma do Código de Processo Penal, hoje uma realidade, inova ao criar o juiz das garantias, para conferir maior isenção ao juiz que dará a sentença. Também inova ao estabelecer uma série de direitos ao acusado e à vítima, como o de não serem submetidos à exposição dos meios de comunicação. Este ponto, aliás, é uma benção e um ponto final aos abusos que costumam ser cometidos justamente por aqueles que deveriam ser os primeiros a observar as leis e a Constituição, como o Ministério Público e as polícias brasileiras, os quais, sobrepondo a vaidade ao interesse público, arrasam, aniquilam e definitivamente terminam com a imagem de pessoas investigadas e/ou presas preventivamente, lançando-as na imprensa, procurando ostentar quão diligentes e eficazes são referidas instituições e seus integrantes, sendo que, após terminar todo aquele circo sarcástico assediado pelos holofotes da mídia, os investigados e/ou denunciados acabam sendo, muitas vezes, absolvidos com um derradeiro trânsito em julgado de uma sentença absolutória. Por fim, vale dizer que, com 682 artigos, o projeto em tela também permite uma maior aproximação da Polícia com o Ministério Público, propõe uma série de medidas cautelares destinadas a substituir a prisão preventiva e abre espaço também para a conciliação entre as partes. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se viu francamente neste modesto trabalho, foram traçadas, de forma geral, quais novidades advieram ao ordenamento jurídico nacional com as leis 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008. Mais do que uma análise contundente acerca de um ou de outro tema específico, inclinou-se o presente achado a estabelecer linhas gerais sobre o novo conjunto normativo. Após esquadrinhar os procedimentos modificados descrevendo-os como em um gráfico, pontuou-se um ou outro tema que obteve repercussão no mundo acadêmico. Ainda mais, atentou-se em anunciar o que ainda está a caminho, ou seja, um novo e a tanto tempo almejado código de processo penal coadunado com as diretrizes constitucionais traçadas no ano de 1988. Dessa arte, muito distinto de uma nova e interessante tese jurídica a respeito da temática em epígrafe, mais serviu este escrito como um singelo recordatório sobre o assunto versado.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-73/breves-dizeres-sobre-as-reformas-do-cpp/
Utilização dos delegados de polícia como instrumento de conciliação do Juizado Especial Criminal
O presente estudo procura defender a viabilidade jurídico-social do Projeto de Lei Federal nº 5.117/09, em tramitação no Congresso Nacional, que intenciona modificar alguns artigos da Lei nº 9.099/95, conhecida como Lei dos Juizados Especiais, procurando inserir os delegados de polícia como mais um instrumento de conciliação dos delitos ditos de menor potencial ofensivo. Estes crimes de menor complexidade, quando cometidos, devem ser processados seguindo o rito sumaríssimo, que prevê, antes do início da ação penal, uma fase de tentativa de acordo (composição dos danos). Para realização deste acordo, que na ação penal de natureza pública condicionada e privada, levam à extinção da punibilidade, têm-se os Juizados Especiais Criminais (JECRIM) como responsáveis. Contudo, nem todas as comarcas possuem esta estrutura à disposição, deixando a população destes locais prejudicadas e os cartórios judiciais abarrotados de processos. Este problema acaba comprometendo todo o espírito que norteia a Lei nº 9.099/95, pois seus princípios não conseguem ser alcançados. É neste contexto que nasce a idéia de aumentar o rol de legitimados para realizar esta fase pré-processual de tentativa de conciliação, permitindo que os delegados também possam fazê-las, baseado em dois motivos principais: i) porque os delegados são operadores do Direito, com formação jurídica obrigatória, facilitando na busca de uma solução coerente e justa para as partes; ii) porque a intenção da Lei nº 9.099/95 é justamente facilitar e dar celeridade aos processos, através da simplicidade de ações, o que pode ser conquistado com esta mudança.[1]
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO A presente pesquisa buscará ao longo dos seus capítulos demonstrar que o agente estatal incumbido constitucionalmente da função de investigação criminal, delegado de polícia, como operador do direito que efetivamente é, poderá ser utilizado como mais um instrumento de auxilio à Justiça na resolução dos conflitos penais, atuando na fase pré-processual como um conciliador dos crimes classificados como de menor potencial ofensivo. A Lei federal de n° 9.099, nascida oficialmente para o mundo jurídico em 1995, surgiu da necessidade de regulamentar e dar aplicabilidade à norma constitucional de eficácia limitada presente no artigo 98, inciso I, da Constituição Federal recém promulgada, que trata da criação de Juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação. Para tanto, esta norma trouxe à baila, de forma inovadora, diversos institutos jurídicos até então quase que inutilizados, como forma a dar cumprimento aos princípios básicos da celeridade, informalidade, simplicidade, oralidade, dentre outros, que animavam e alicerçavam o seu espírito. No que tange à matéria criminal disposta nesta legislação, o principal avanço e mudança foi a implantação de uma nova mentalidade de resolução pacífica dos conflitos, bem como a criação de medidas despenalizadoras para os infratores dos crimes de sua competência. Como estes, compreendem-se os delitos que possuem pena máxima em abstrato de até dois anos (menor potencial ofensivo), bem como as contravenções penais, os quais, uma vez cometidos, levam o infrator a responder pelo rito sumaríssimo, iniciando-se o procedimento com a feitura de um Termo circunstanciado de ocorrência (TCO) e partindo até a sentença. É justamente com base nesta legislação especial, e, sobretudo, no cometimento dos crimes ditos de menor potencial ofensivo, com a fase pré-processual de composição dos danos, que iremos nos apegar mais firmemente neste trabalho monográfico, demonstrando as utilidades que uma possível mudança na Lei n° 9.099/95, incluindo os delegados de polícia como mais um instrumento de conciliação dos delitos, através do Projeto de Lei n° 5.117/09, de autoria do deputado federal e desembargador aposentado pelo estado de São Paulo, Régis de Oliveira, poderia trazer para o bem-estar geral da população e melhoria da Justiça. Com o fim de verificar a eficiência da proposição do estudo, demonstra-se, no decorrer dos capítulos seguintes, a importância da instituição da Polícia Judiciária, que, como se sabe, realiza serviços de segurança pública, exercendo funções de polícia investigativa, apurando as infrações penais, realizando policiamento especializado e administrativo, sempre primando pela preservação da paz social, respeitando os direitos humanos, e promovendo o aprimoramento técnico e a otimização de seus quadros, na busca constante da excelência na qualidade de atendimento ao público e redução da criminalidade, tendo à frente os delegados de polícia. Pela proposta de alteração legislativa em tramitação no Congresso Nacional, PL nº 5.117/09, as atividades de conciliações preliminares previstas na Lei n° 9.099/95, e hoje possíveis de serem realizadas até por conciliadores (pessoas sem formação jurídica obrigatória), poderiam também ser estendidas aos delegados de polícia, que atuariam como mais um contribuinte da Justiça. Esta nova forma de conciliação (acordo dos danos) seria tentada já em um primeiro momento (pré-processual), quando as partes envolvidas nas práticas de delitos de menor potencial ofensivo se dirigem até a delegacia para formalização do correspondente termo. Posteriormente, caso o acordo orquestrado pelo delegado alcançasse êxito, seria imediatamente submetido à apreciação do Ministério Público e do Poder Judiciário, para só então, obter efeitos jurídicos, representando uma importante contribuição jurídico-social da Polícia, para amenizar a lacuna existente entre o ideal que norteou a elaboração da Lei nº. 9.099/95 e a realidade da sua aplicação no que tange aos princípios da celeridade e economia processual. Para alcançar este objetivo seriam necessárias pontuais alterações apenas na Lei n° 9.099/95, adaptando-a a este novo contexto de ampliação dos legitimados para conduzir a conciliação.  Observa-se, portanto, que a finalidade do projeto é simplificar, tornar mais rápido e diminuir o custo do processo criminal, para uma melhor prestação jurisdicional, consoante estabelece a própria Lei nº. 9.099/1995. Cumpre-se, assim, os objetivos e princípios que norteiam os Juizados Especiais, observando os critérios de oralidade, informalidade, economia processual e celeridade. O que contrasta com a importância desta mudança legislativa ora defendida, é a simplicidade de ser implantada, caso venha a ser aprovada, pois seria de reduzido custo para os cofres públicos, já que os recursos humanos e materiais já estão disponíveis (delegados e delegacias). Por outro lado, são inúmeros os benefícios desta medida, entre eles, podemos destacar os ganhos para a sociedade provenientes da melhoria da qualidade de atendimento; o aumento da auto-estima dos profissionais delegados, envolvidos nas conciliações, pois teriam reconhecida a importância de sua nova função, com mais respeito da população; a celeridade e economia processual que nortearão todo o trâmite dos TCO´s (termos circunstanciados) nos fóruns, cujos cartórios reduziriam significativamente o volume dos feitos relativos aos delitos de menor potencial ofensivo, dentre outros que indiretamente ocorreriam. Por todo o exposto, tal alteração, uma vez aprovada, poderá gerar, inegavelmente, maior velocidade na prestação jurisdicional, reduzindo a sensação de impunidade, com reflexos diretos na diminuição da criminalidade. Para alcançar tal desiderato, optar-se-á neste estudo por utilizar a natureza da vertente metodológica qualitativa, pois assim se torna mais conveniente à análise crítica do problema proposto, observando sempre as legislações que regem a matéria, bem como as possíveis mudanças em seus textos, realizando uma comparação entre a lei em vigor e a alteração proposta, buscando uma concretização de melhorias para o sistema jurídico criminal brasileiro. O método de abordagem a ser utilizado será o dialético, sendo uma maneira de inquirição da realidade pelo estudo da contradição, que por sua natureza, está inseparavelmente ligado ao fenômeno da mudança dialética que ocorre constantemente na natureza e na sociedade. Esta evolução será demonstrada no decorrer do estudo, destacando-se a viabilidade jurídica, financeira e social da alteração legislativa. No que concerne ao método jurídico de interpretação, este trabalho utilizou o estudo sociológico, haja vista partir da idéia de que o direito é um fenômeno cultural e humano que está em constante desenvolvimento e de que a transformação das leis deve seguir as necessidades e os anseios sociais. Da mesma sorte, no sentido de enfrentar de forma mais eficiente o tema, o presente trabalho se respaldará em obras e materiais já elaborados, principalmente livros e artigos científicos publicados na internet. Além destes instrumentos mencionados, utilizará a legislação vigente em nosso ordenamento, bem como de projetos de lei ainda em discussão, caracterizando-se, portanto, no que concerne aos procedimentos técnicos utilizados, como pesquisa essencialmente bibliográfica. A técnica de pesquisa a ser seguida será a documentação indireta, pois o levantamento de dados baseia-se em documentos pré-existentes, levantados de variadas fontes de informação. Serão, portanto, dois tipos de dados utilizados para este estudo: os dados primários ou originais, que serão obtidos através da legislação vigente, doutrinadores e profissionais da área jurídica; e os dados secundários, que terão origem de materiais informativos já disponíveis, tais como livros, monografias, artigos, revistas especializadas, portais eletrônicos, periódicos, dissertações, publicações, dentre outras fontes que subsidiem o objeto da pesquisa. Toda a metodologia descrita facilitará a composição de uma monografia que será organizada em três capítulos. O primeiro tratando do objeto principal do presente estudo de uma forma geral, discorrendo acerca dos Juizados Especiais Criminais, seus princípios, sua formação, seus avanços dentro do sistema jurídico, bem como os pontos que ainda necessitam ser modificados, visando uma melhor aplicabilidade dos seus institutos. No segundo capítulo, tem-se a demonstração da Polícia Judiciária como elemento de segurança pública, analisando as suas funções, composição, bem como, de forma mais específica, a atuação dos seus dirigentes, os delegados de polícia, tudo isto dentro de uma visão atual de transformação da instituição, que vem sendo observada, sobretudo, após a Constituição Federal de 1988. Por fim, como desfecho do objeto de estudo, tem-se o capítulo final defendendo a viabilidade jurídica, financeira e social da alteração na Lei nº 9.099/95, através do Projeto de Lei nº 5.117/09, incluindo os delegados de polícia como conciliadores dos crimes de menor potencial ofensivo, sendo, desta sorte, mais um instrumento à disposição da população na busca pela resolução pacífica dos conflitos, sempre com o zelo de observar um contexto constitucional que assegure o amplo respeito aos princípios da separação dos poderes, bem como das intransponíveis reservas jurisdicionais. 2 Lei Federal nº 9.099/95 Para classificação das infrações penais, conforme nos ensina Alexandre Magno Fernandes Moreira (2009), para o direito pátrio, crime é o gênero, do qual são espécies as infrações de menor, médio ou maior potencial ofensivo. Continua o autor afirmando que por crime de maior potencial ofensivo, podem-se colocar aqueles em que a pena máxima considerada em abstrato cominada seja superior a dois anos, e a pena mínima superior a um ano. As infrações de potencial ofensivo médio, por sua vez, são aquelas cuja pena máxima seja superior a dois anos e pena mínima de até um ano. Neste caso o acusado já terá direito ao benefício da suspensão condicional do processo, conforme art. 89 da Lei nº 9.099/95, a ser exercido no momento do oferecimento da denúncia.  Por fim, têm-se as infrações de menor potencial ofensivo, que são aquelas que causam menores danos à sociedade e, em geral, são de natureza privada. Abrangem os crimes e também as contravenções que possuírem pena máxima abstrata de até dois anos. Em regra, nestes casos, entra em ação a Lei nº 9.099/95, trazendo seus diversos institutos que terão a finalidade precípua de não aplicar ao infrator a pena de privação de liberdade, afastando-lhe o sofrimento e desgaste social de uma prisão. É justamente com base nesta legislação especial, bem como, no cometimento dos crimes ditos de menor potencial ofensivo que iremos nos apegar mais firmemente no presente estudo, demonstrando as utilidades que uma possível mudança na lei, incluindo os delegados de polícia como mais um instrumento de conciliação dos delitos, poderia trazer para o bem-estar geral da população. 2.1. Intenção legislativa A lei federal de nº 9.099, nascida oficialmente para o mundo jurídico em 1995, teve seu embrião originado muito antes. Começou a tramitar no Congresso Nacional ainda no ano de 1989, com a intenção de regulamentar e dar aplicabilidade à norma constitucional de eficácia limitada presente no artigo 98, inciso I, da Constituição Federal (In: PLANALTO, 2009) recém promulgada, que assim dispunha:  “Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.” Segundo apontamentos realizados em artigo publicado pelo Professor João Protásio Farias Domingues (2009), foram propostos diversos projetos de lei disciplinando a matéria, em especial os projetos dos Deputados federais: Jorge Arbage; Manoel Moreira; Daso Coimbra; Gonzaga Patriota; Michel Temer e Nelson Jobim. Ao passarem pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, apenas os projetos dos deputados Michel Temer e Nelson Jobim foram considerados constitucionais ou juridicamente aptos a se tornarem uma lei de tamanha importância e magnitude. O Projeto de Jobim, de 12/9/89, foi, segundo sua sucinta exposição de motivos extraída do trabalho do professor DOMINGUES (2009) acima referido, fruto de um grande trabalho do Ministro do STJ, Dr. Rui Rosado de Aguiar Júnior, que liderou um Grupo de Estudos organizados na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e abrangeu, no mesmo Projeto, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Dividia-se em 87 artigos distribuídos em cinco capítulos: Disposições Gerais; Dos Juizados Especiais Cíveis; Dos Juizados Especiais Criminais; Da Transação Penal; e Das Disposições finais. Os capítulos segundo e terceiro são subdivididos em várias seções e apresentam, de forma inovadora, a nível nacional, a regulamentação total do art. 98, I, da Constituição Federal de 1988, sendo precursor neste sentido. Já o Projeto do jurista e deputado Michel Temer foi, conforme sua detalhada exposição de motivos elaborada em 16/2/89, fruto de estudos realizados por diversos e eminentes juristas paulistas, com a contribuição destacada e indispensável, na fase revisional, de Ada Pellegrini Grinover, da Universidade de São Paulo (USP). O projeto abordava apenas os Juizados Especiais Criminais e sua estrutura interna apresentava um total de 36 artigos, divididos em três títulos: Disposições Gerais; Do processo perante os Juizados Especiais; e Disposições Finais e Transitórias. O título segundo fora subdividido em cinco Capítulos (Da Competência e dos Atos Processuais, Da Fase Preliminar, Do Procedimento Sumaríssimo, Da execução e Das Despesas Processuais). Para concluir a fase da Câmara dos Deputados, segue o Professor João Protásio Domingues (2009) comentando que os projetos destacados foram emendados de forma a justapor o projeto do deputado Michel Temer (parte criminal) dentro do Projeto de Nelson Jobim (parte civil), indo em seguida para discussão e votação no Senado Federal, já no ano de 1990. Apenas em 26 de setembro de 1995, enfim, a Lei Federal nº 9.099 foi sancionada e publicada, determinando a instalação dentro do prazo de seis meses dos juizados especiais cíveis e criminais. A nova lei pode ser considerada um verdadeiro divisor de águas do Poder Judiciário brasileiro, haja vista ter inovado na forma de pensar e de construir a Justiça, trazendo ao mundo jurídico diversos institutos até então inexistentes. Nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Neto e Joel Dias Júnior (2002, p. 44): “introduziu-se no mundo jurídico um novo sistema, ou ainda melhor, um microssistema de natureza instrumental de criação constitucional obrigatória – o que não se confunde com a facultatividade ou obrigatoriedade de jurisdição – destinado à rápida e efetiva atuação do direito voltado à satisfação dos jurisdicionados e à pacificação social”.  Seguem os autores aduzindo que a nova legislação veio na esteira do sucesso implementado pela antiga Lei nº 7.244/84 que instituiu pela primeira vez em nosso país os chamados juizados cíveis de pequenas causas, os quais, embora não tenham trazido todos os frutos esperados, já mostraram uma importante evolução de conceitos.   É apenas com a nova legislação, todavia, bem mais elaborada e ampliada, que os anseios de uma Justiça mais célere e informal se concretizam quase que em sua totalidade, levando enfim à população brasileira uma jurisdição inovadora e efetiva. Como bem frisou, em trabalho publicado, o Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, José Fernandes Filho (2004): “O objetivo do processo, agora, é a conciliação ou a transação, buscando-se, sempre, o acordo ou o consentimento das partes. Orienta-se ele pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. Aqui não há, em princípio, vencedor ou vencido, mas conciliados”. É esta nova concepção de justiça, inspirada em diversos conceitos e princípios modernos, que alimenta o espírito da Lei Federal nº 9.099/95, levando ótimas expectativas a toda população, sobretudo àquela parcela mais necessitada, que ansiava por uma tutela jurisdicional realmente simples, que pudesse ser rápida, barata e confiável. Salienta ainda o Desembargador José Fernandes Filho (2004) que: “Sobre rodas, itinerante, de trânsito, do consumidor, ou do meio ambiente, em barcos nas inóspitas regiões da Amazonas, os Juizados Especiais resistem, faça chuva ou sopre o vento. A criatividade mágica da legião silenciosa que os opera muito tem feito para resgatar a cidadania dos excluídos.       De qualquer forma, outra, hoje, parece ser a face do Judiciário no País, graças à prática dos Juizados Especiais. Milhares e milhares de casos são solucionados rapidamente, na presença do Juiz, de forma simplificada. A despeito da chamada demanda reprimida e da criminalidade de bagatela, o certo é que os excluídos da jurisdição têm, agora,  voz e voto”. Para tanto, foram incorporadas aos dispositivos da lei as idéias advindas dos princípios básicos da oralidade, informalidade, simplicidade, economia processual, imediação, concentração de atos, identidade física do juiz, e celeridade. Todos estes, de alguma forma, ajudaram a concretizar e dar sustentação a esta nova forma de fazer a Justiça. 2.2 Princípios basilares Nas lições do professor das lições preliminares e fundamentais do Direito, ou Jurisprudência (forma como denominava a Ciência Jurídica), Miguel Reale (1999, p. 60), os princípios são: “verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade. Às vezes, também se denominam princípios, certas proposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes de validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus pressupostos necessários”. Em nosso ordenamento jurídico, encontramos princípios explícitos e implícitos. Como bem afirma o jurista Ferrara citado por Rothenburg (2001, p. 54) “o direito não é só o conteúdo imediato das disposições expressas, mas também, o conteúdo virtual de normas não expressas, porém incitas no sistema”. Caminhando neste sentido, sustenta Rudolf Von Jhering (apud, OLIVEIRA, 1999, p. 11): “O direito existe para se realizar. A realização é a vida e a verdade do direito, é o próprio direito. O que não se traduz em realidade, o que está apenas na lei, apenas no papel, é um direito meramente aparente, nada mais do que palavras vazias. Pelo contrário, o que se realiza como direito é direito, mesmo quando não se encontre na lei e, ainda que, o povo e a ciência dele não tenham tomado consciência”. É fundamental ressaltar que os princípios implícitos são tão importantes quanto os explícitos e formam, juntos com estes, verdadeiras normas jurídicas (normas-princípios), não existindo uma hierarquia. A aplicação de um não exclui o uso do outro.  Dentre os princípios aplicados aos Juizados Especiais, pode-se destacar na obra dos juristas Fernando da Costa Tourinho Neto e Joel Figueira Júnior (2002), pela sua aplicabilidade e importância ao longo de toda a legislação, quer seja utilizados de forma explícita, quer seja implícita, os seguintes: I) Oralidade: Pelo princípio da oralidade extrai-se que no âmbito dos juizados especiais deve haver uma predominância anunciada da palavra oral sobre a escrita. O jurista Chiovenda (1969, p. 50-55), a respeito da oralidade, diz que ela se resolve com a aplicação das seguintes diretrizes: “a) prevalência da palavra como meio de expressão combinada com o uso de meios escritos de preparação e de documentação; b) imediação da relação entre o juiz e as pessoas cujas declarações deva apreciar; c) identidade das pessoas físicas que constituem o juiz durante a condução da causa; d) concentração do conhecimento da causa num único período (debate) a desenvolver-se numa audiência ou em poucas; e) irrecorribilidade das interlocutórias em separado.” Com a utilização destes enunciados, segundo Chiovenda (1969), seria capaz de se atingir uma efetiva oralidade que fosse capaz de possibilitar o andamento natural de um processo, sem trazer-lhe embaraços ou dificuldades. O legislador, neste ponto, foi atencioso e acertado, tendo o zelo de trazer vários dispositivos que se coadunam com estes enunciados, como, por exemplo, o artigo 65, § 3º, que dispõe que apenas os atos exclusivamente essenciais serão objeto de registro escrito. Em outros artigos da Lei nº 9.099/95 também se verifica a incidência da oralidade como prevalência frente à palavra escrita, podendo ser citados os artigos 74, 80, 81, dentre outros que contribuem com a celeridade do feito. II) Informalidade Este, por sua vez, seria o desapego a algumas formalidades processuais. O rito sumaríssimo, disciplinado pela Lei 9.099/95, não precisaria integralmente seguir burocracias ou formalidades desnecessárias, somente utilizando-se daquelas realmente indispensáveis ao andamento processual. Deve-se ter em vista, contudo, a proporcionalidade e razoabilidade para aplicação deste princípio da informalidade, pois há atos que inevitavelmente deverão ser formalizados ou seguir um procedimento mais rígido para ser atingido. No ensinamento dos mestres Tourinho Neto e Joel Figueira Júnior (2002, p. 68): “isso não quer dizer que o tratamento seja íntimo, é preciso que seja um pouco cerimonioso. Senhor e senhora este deve ser o tratamento usado. Uma formalidade cordial”. Vislumbra-se, assim, que nesta prática da informalidade é preciso, o que não é nada fácil, encontrar um meio-termo entre o informal e a simplicidade possível, com a formalidade e burocracia necessárias. III) Simplicidade Aliado ao princípio da informalidade tem-se nos Juizados Especiais cíveis e criminais, a utilização da simplicidade como elemento informador. Este rito, portanto, deve obrigatoriamente ser simples, ou seja, natural e espontâneo. IV) Economia processual Deve-se procurar a todo instante, no procedimento sumaríssimo, a economia do processo. Isto significa, em outras palavras, utilizar os menores recursos possíveis para se atingir a finalidade desejável. Esta economia passa por uma série de fatores que não só os financeiros. As fases e os atos processuais também devem ser economizados. É com base neste ideal que se busca atingir, no âmbito do juizado especial criminal, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação da pena não privativa de liberdade, previstas no artigo 62, da Lei nº 9099/95, como forma de minorar as conseqüências do cometimento destes fatos, evitando utilizar medidas excessivamente pesadas para pequenos casos. V) Imediação: Continuam os autores citados, neste ponto, mostrando existir a aproximação entre as partes que compõem o processo, destacando o juiz, o autor, o réu e até mesmo as testemunhas e servidores da justiça. Estes devem possuir uma relação de imediatidade, para assim proporcionar um maior contato entre as partes e o magistrado, presidente do processo. Atinge-se um maior grau de sensibilidade para que o julgador possa se concatenar o mais possível com a verdade real. Decorrente diretamente deste princípio situa-se a norma que dispõe que apenas o juiz que participou da audiência é que pode julgar o feito. Aproxima-se, desta sorte, com o princípio da identidade física do juiz (TOURINHO NETO & JÚNIOR, 2002). VI) Concentração de atos: Os atos processuais no procedimento sumaríssimo devem ser preferencialmente concentrados, isto é, realizados uns próximos aos outros, se possível até mesmo numa mesma audiência. É o que se chama de audiência única e concentrada, onde nela ocorrem desde a tentativa de conciliação até a prolação da sentença. Tem que se ter cuidado, todavia, em não atropelar atos importantes e fundamentais para o devido processo legal em nome apenas da concentração. Como bem destaca Pedro Henrique Demercian, citado na obra de Fernando Costa Neto e Joel Dias Figueira Júnior (2002, p. 70): “nem sempre se pode concentrar numa única audiência todos os atos de instrução. O direito à prova deve ser resguardado, incumbindo ao magistrado, sempre atento, às regras garantidoras do contraditório e da ampla defesa, além do indeclinável bom senso, indeferir as provas que demonstrem inequívoco caráter procrastinatório ou que não guardem qualquer relação com o objeto do processo”. Mais uma vez faz-se necessária a observação à proporcionalidade e ao bom senso na utilização desta diretriz, devendo o operador do Direito ter o devido cuidado em saber concentrar o maior número de atos possível na mesma audiência, sem comprometer os direitos de defesa do indivíduo. VII) Identidade física do juiz: Como já destacado acima, e seguindo ensin amentos da jurista Elisa Maria Rudge Ramos (2009), pela identidade física do juiz fica estabelecido que o magistrado que participou da audiência, que colheu os elementos do processo (provas, etc.) deve ser o mesmo que irá sentenciar, evitando-se assim que um julgador sem contato anterior com aquele determinado caso, não conhecendo os seus pormenores, entre apenas no final para decidi-lo. Logicamente, este princípio diretriz também comporta exceções, como, por exemplo, nas hipóteses de aposentadoria do magistrado que participou da instrução; remoção do mesmo para outra Vara; dentre outras excepcionalidades que podem ocorrer. Neste sentido, sentença destacada em artigo publicado por Elisa Maria Rudge Ramos (2009), proferida pelo juiz Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, no Tribunal Regional Federal, 2ª região, ponderando que: “O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor”. Esta idéia de identidade física nos casos do Juizado Especial é por demais importante, sobretudo por colocar em efetividade os demais princípios já citados como o da oralidade, concentração dos atos e imediatidade. Tanto a oralidade, como também a imediação se tornam quase que impraticáveis quando não temos os diversos atos processuais praticados por um mesmo juiz. Este julgador, atento aos mais detalhados fatos ocorridos durante a marcha processual, possui a capacidade de aplicar com exatidão o direito. Tal conceito se amplia e cresce de importância no processo criminal, após a reforma do Código de Processo Penal ocorrida em 2008, Lei n° 11.719, onde o magistrado, diante da envergadura da decisão que irá pronunciar, deve estar ainda mais estritamente ligado aos fatos e atos ocorridos nos autos, devendo sempre que possível ser o mesmo da instrução (artigo 399, §2°, CPP). VIII) Celeridade: Nos últimos anos tem-se falado muito na Justiça brasileira da chamada celeridade processual. Este tema, em 2004, ganhou força de princípio constitucional, através da Emenda Constitucional de nº 45, a chamada reforma do Judiciário. A idéia de celeridade decorre da premente necessidade que possui a sociedade hodierna de ver seus pleitos sendo atendidos dentro de um período razoável de duração. Contudo, em busca da celeridade não se pode atropelar diversos aspectos fundamentais para o regular e completo desenvolvimento do processo. Na incessante busca da celeridade processual, deve existir uma compatibilização com a qualidade da prestação jurisdicional, aplicada acima de tudo com a segurança jurídica (REIS, 2008). A simplificação dos ritos procedimentais, portanto, e a restrição aos recursos possíveis para determinadas causas, como é o caso dos Juizados Especiais, bem como outros atos que intencionam conferir celeridade à tramitação do feito, não podem caminhar para uma diminuição na qualificação da jurisdição, muito menos violar os sagrados direito à ampla defesa, e ao contraditório. Consoante explana Tourinho Neto & Joel Dias (2002), é preciso ter em mente que as causas submetidas aos procedimentos mais céleres, como é o caso do sumário (comum) ou sumaríssimo (de competência dos Juizados Especiais), não constituem causas de secundária importância ou segunda classe, cujo processamento e julgamento sejam menos relevantes que os demais. Sua menor valoração econômica, desta feita, não importa necessariamente uma instrução e julgamento apressados, sem os devidos zelos e cuidados. Pressa em lugar nenhum, e mais ainda na Justiça, pode se confundir com velocidade. É fundamental harmonizar os valores da celeridade processual com aqueles que regem a qualidade da prestação jurisdicional, pois só assim é capaz de se atingir uma verdadeira segurança jurídica.  2.3 Conquistas alcançadas e avanços necessários Como já traçado em linhas gerais acima, a Lei Federal nº 9.099/95, inovou o sistema processual e material penal e civil brasileiro, ao estabelecer novas diretrizes e conceitos de jurisdição para determinados pleitos judiciais menos complexos. Neste estudo, vamos nos ater mais aos chamados Juizados Especiais Criminais (JECRIM´s), já que assim se faz necessário para se alcançar os objetivos permeados. Os dispositivos legais dos Juizados especiais criminais estão dispostos a partir do capítulo III, artigo 60 e seguintes, da legislação supracitada. Nestes artigos estão expostos todas as regras e disciplinamento do procedimento sumaríssimo, sendo aplicada a legislação ordinária apenas na hipótese de lacunas. Um dos principais artigos deste capítulo destinado ao procedimento especial criminal foi modificado mais recentemente pela Lei nº 11.313/06 (In: PLANALTO, 2006), e reza o seguinte: “Art. 60.  O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência”. Nota-se que neste primeiro momento o legislador cuidou de logo estabelecer a formação dos Juizados Especiais Criminais, que são compostos por juízes togados ou togados e leigos e a devida competência para julgamento e execução, voltada para os crimes ditos de menor potencial ofensivo. Conforme já apontado acima, em capítulo antecedente, os crimes de menor potencial ofensivo passaram a ser conceituados no ordenamento pátrio pelo artigo 61 da legislação estudada, que originalmente assim dispunha: “Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.” Ou seja, inicialmente só era considerado crime de menor potencial ofensivo aqueles cuja pena não ultrapassasse 1 (um) ano, abarcando pouquíssimos crimes da nossa legislação. Posteriormente, no entanto, mais precisamente em 12 de julho de 2001, foi sancionada, e publicada no dia seguinte, a Lei Federal nº 10.259, que veio disciplinar os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, agora no âmbito da Justiça Federal. Analisando os dispositivos deste novel diploma legal, percebe-se que apesar de o legislador ter limitado o seu alcance às ações e aos processos de competência da Justiça Federal, a nova lei iria trazer substanciais alterações na própria Lei nº 9.099/95, aplicada aos Juizados estaduais, sobretudo no tema referente ao conceito de infração de menor potencial ofensivo, pois não seria coerente que o sistema penal convivesse com duas regras tratando do mesmo tema com disposições diversas, uma entendendo que a infração de menor potencial teria pena de até 2 (dois) anos, e a outra de até 1 (um) ano. Conforme leciona o Promotor de Justiça Danni Sales Silva (2001), com o advento da Lei nº 10.259/01, com efeito, houve um expressivo alargamento do conceito de crimes de menor potencial ofensivo, abrangendo, também, os crimes cuja pena máxima cominada não fosse superior a 2 (dois) anos e aqueles apenados alternativamente com multa. A partir de então, vale a regra de que para o rito dos Juizados Especiais, estaduais ou federais, serão levados os crimes definidos como contravenção, bem como as infrações penais que tenham pena máxima de privação de liberdade de 2 (dois) anos, independente de haver procedimento específico para aquele crime. Embora não seja objeto do presente estudo, cabe ressaltar que com o advento da Lei nº 10.741/03, Estatuto do Idoso, já existiam doutrinadores que entendiam ter ocorrido mais um alargamento do conceito de crime de menor potencial ofensivo, abrangendo então os crimes com até 04 (quatro) anos de privação de liberdade. Essa postura seria alterada porque o Estatuto do Idoso, em seu artigo 94, dispôs que aos crimes previstos nesta lei cuja pena privativa de liberdade não ultrapassasse 04 (quatro) anos, seria aplicado o rito da Lei nº 9.099/95. Volta-se, então, para o mesmo raciocínio utilizado quando do surgimento da Lei dos JECRIM´s federais, ou seja, numa visão sistêmica não pode ser dado tratamento diverso a fatos graduados com penas iguais, pois do contrário, segundo os adeptos desta corrente, estaria sendo infringido diversos princípios constitucionais, sobretudo o da igualdade, dando margem a discussões e polêmicas jurídicas. Neste sentido, trabalho publicado pelo professor Thiago André Pierobom de Ávila (2004). Para dirimir de uma vez por todas essa celeuma, adveio a Lei nº 11.313/06, desta feita alterando a própria Lei nº 9.099/95, em seu artigo 61, e harmonizando-a com a regra geral dos crimes de menor potencial ofensivo até 02 anos, encerrando estes embates.  A lei (In: Planalto, 2006) hoje se encontra assim redigida: “Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.” (grifos nosso). Superada esta discussão, vê-se que a intenção do constituinte de 1988 de criar um sistema que realmente fosse mais célere e mais efetivo para a jurisdição de menor complexidade, sobretudo para as matérias de natureza criminal, parece ter sido atingida. Todavia, muito ainda falta a ser conquistado. Melhorias ainda precisam ser implantadas neste sistema, como, por exemplo, o alargamento do acesso por parte das pessoas realmente necessitadas, os chamados pobres na forma da lei, que ainda não podem utilizar os juizados especiais. Como afirma categoricamente o jurista André Macedo de Oliveira (2001): “É notório que o Judiciário brasileiro enfrenta uma grande crise. Apesar do imenso rol de garantias constitucionais, ainda permanece no tecido social a falta de acesso à justiça. A democracia não está garantida com a transição de poder. O estado de direito, como garantidor dos direitos fundamentais, volta a ser apenas uma referência ritual. O problema não está só no agente político juiz. A estrutura do sistema está contaminada pela burocracia. A nova lei dos juizados especiais federais chegará para ser aplicada num sistema burocratizado e velho. Os novos juizados precisam, sobretudo, de idéias e mentalidades novas. Lei nova, mentalidade e ações novas.” (grifos nosso). Este seria um dos principais problemas atuais. Do que adianta ter a estrutura montada, os juízes leigos e togados trabalhando, os processos sendo julgados, se esta oportunidade não pode ser oferecida a todos os cidadãos? Muitas comarcas, segundo dados obtidos no Portal eletrônico da Defensoria Pública (2009), não possuem sequer Defensoria Pública constituída (como é o caso de Goiás, Santa Catarina e Paraná), e os estados que possuem são muito mal aparelhados, deixando a instituição impossibilitada de oferecer um bom serviço para aqueles que não podem constituir e pagar um advogado. Ressalte-se, por oportuno, que na Justiça Criminal é obrigatória a presença do advogado habilitado, não existindo a figura das causas que não exigem capacidade postulatória, como ocorre no cível até 20 salários mínimos. Esta falta de advogados públicos para defender os necessitados, os pobres na forma da lei, acaba deixando o sistema inteiro deficitário, maculando as boas e louváveis intenções da nossa Carta Maior de organizar e criar um procedimento mais democrático e mais célere, como os juizados especiais. Por outro lado, conforme se pronunciou o juiz Flávio Dino de Castro e Costa (2003), há uma necessidade urgente de mudança e reestruturação dos juizados especiais em geral. Atualmente, o número de processos distribuídos nestes juizados já é, em média, 120% maior que o registrado nas varas comuns.  Em sua avaliação feita à época do pronunciamento, o projeto que cria 183 novas varas especiais em tramitação na Câmara dos Deputados não será suficiente: “O ideal seria que todas essas 183 varas fossem destinadas aos juizados especiais e ainda assim, será necessário especializar outras varas comuns, aumentar o número de juízes e servidores, além de estudar alternativas que possam contribuir para garantir o atendimento dessa nova demanda.” (COSTA, 2003). No que tange mais especificamente aos Juizados Especiais Criminais a realidade não é diferente. Ainda existem diversas comarcas e seções judiciárias do país, principalmente no interior dos estados, que não possuem sequer a estrutura dos JECRIM´s montada. Não há nestas cidades juízes conciliadores, tampouco juízes leigos. Tudo se concentra não mãos do magistrado togado, que tem que ser uma espécie de “faz-tudo” dos processos. Não bastasse o acúmulo natural de processos que uma Vara Criminal possui, estes magistrados precisam ainda aplicar as disposições da Lei nº 9.099/95 quando se tratar de cometimento de crime de menor potencial ofensivo, precisando receber o Termo Circunstanciado de ocorrência (doravante TCO), avaliá-lo, chamar as partes para tentativa de composição dos danos cíveis, dar oportunidade para oferecimento de transação, enfim, realizar todos os atos processuais e procedimentais que poderiam muito bem ser realizados por um juiz leigo ou, até mesmo, o conciliador. Esta falta de estrutura, vale lembrar, não compromete apenas o rito sumaríssimo. Ao ter que reservar seu precioso tempo a fim de resolver problemas de competência dos Juizados Especiais Criminais, os magistrados acabam acumulando os processos ordinários, os quais geralmente necessitam de um maior prazo para serem decididos, haja vista a complexidade das suas causas.  O sistema sumaríssimo, desta feita, só poderá cumprir sua missão constitucional quando todos os cidadãos tiverem efetivamente ao seu dispor esta estrutura, possibilitando a utilização dos institutos pertinentes ao rito sumaríssimo, pois conforme leciona o já citado autor André Macedo de Oliveira (2001): “Diante do atual cenário e num clima de reforma do judiciário, temos que nos direcionar para a realidade. Os Juizados Especiais Federais serão responsáveis pela rápida resposta da justiça aos cidadãos. Será uma nova cara para a Justiça Federal. O maior beneficiado será o cidadão. No entanto, essa modernização ainda não é suficiente. A mudança das normas, em si, não transforma o sistema jurídico. A renovação das idéias dos seus integrantes, principalmente dos juízes e até dos serventuários de Justiça. O escopo dos Juizados tem que ser outro, diferentemente do modo burocrático da Justiça Federal. A celeridade, oralidade, transação, dentre outros, deverão direcionar os trabalhos dos Juizados.” É por isto que um dos grandes desafios atuais do Poder Judiciário brasileiro deve ser a ampliação destes juizados especiais, tanto em âmbito federal, quanto estadual, levando-os aos mais distantes rincões deste país, pois nestes locais também existem lides e, conseqüentemente, necessidade de se fazer justiça. 3. Importante papel da conciliação O moderno instrumento da conciliação vem sendo ampliativamente utilizado pelos sistemas jurídicos de todos os países, colaborando sobremaneira com uma nova visão de justiça que vem sendo implantada em nossa sociedade. Dentro da visão da jurista e conselheira do CNJ, Andréa Prachá (2008), em artigo publicado no Portal do Conselho Nacional de Justiça, a idéia central é a de que a melhor forma de se resolver um conflito de interesses é na base do acordo. As duas partes, portanto, perderiam alguma coisa em nome da pacificação da lide, ganhando, por outro lado, em tempo e sensação de justiça. Percebe-se que a conciliação dentro do processo é utilizada justamente quando as partes não conseguem alcançar previamente um acordo natural, necessitando buscar auxílio do Judiciário para resolver aquele conflito, sendo o juiz, neste caso, uma espécie de harmonizador dos interesses opostos, levando para as partes um meio-termo satisfatório e justo para ambos. Este ideal de conciliação é constantemente incentivado e aplaudido pelo Conselho Nacional de Justiça, que o coloca sempre como uma das prioridades de atuação, pois traz à sociedade uma verdadeira cultura de paz, de aproximação e resolução pacífica de lides. O emitente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso (2007), falando sobre o tema em entrevista dada, já teve oportunidade de manifestar que: “Sempre trabalhei no sentido da conciliação, já que não se trata apenas de pôr fim a um conflito exclusivamente jurídico, pois esses escondem outros tipos de conflitos interpessoais, de conseqüência e alcance mais amplo, com repercussão na sociedade, na família, nos grupos sociais. Esses conflitos geram situações que repercutem na formação de crianças e, portanto, no próprio processo de formação de cidadãos. Na conciliação, diferentemente das sentenças judiciais que sempre deixam mágoas e ressentimentos, há a promoção de soluções consensuais que são mais eficazes sob todos os pontos de vista. Ainda que os cônjuges, as partes, as pessoas sejam obrigadas a abrir mão de alguma coisa, sem o que é difícil conciliar, elas mesmas põem fim a um litígio, promovendo uma tranqüilidade pessoal, a situação social de calma, com uma grande vantagem para a sociedade, pois permite que não se multipliquem causas cujo processo iria envolver mais dificuldades em processar outras causas inevitáveis”. Mostra-se, assim, que os operadores da Ciência Jurídica no Brasil já vêm entendendo cada vez mais o quanto é importante utilizar o instrumento da conciliação, colocando-o, em muitas oportunidades, como ocorre nos Juizados Especiais, como prioridade de atuação para resolução do conflito. Como bem afirmou o já citado Ministro Peluso (2007), com a conciliação se ganha de todos os lados: as partes que saem com um sentimento de tranqüilidade pessoal por terem resolvido um conflito; o Poder Judiciário que terá mais tempo para se dedicar aos problemas realmente inevitáveis; e, sobretudo, a própria sociedade. Continua lecionando o ministro que, com efeito, sabe-se que a jurisdição é uma atividade de caráter substitutivo, onde o Estado, através do Poder Judiciário, dirime o litígio, substituindo a vontade das partes pela sua própria vontade. Desta sorte, do ponto de vista prático dos efeitos jurídicos, na grande maioria das vezes, ao invés de eliminar o conflito subjetivo entre as partes, o Estado acaba o ampliando, pois a sentença faz gerar maior rivalidade entre vencedor e vencido. Além do mais, prossegue o ministro, o vencido na lide dificilmente se convence de que realmente não possuía direito a ser reconhecido pelo Estado, creditando a responsabilidade da sua derrota nas mãos do juiz, fomentando o desrespeito e o descrédito no Poder Judiciário. Na conciliação, por sua vez, não existem vencedores, tampouco perdedores. São as partes que constroem a solução para os próprios problemas, tornando-se responsáveis diretamente pelas obrigações e compromissos que assumem perante o juiz, ampliando a capacidade de relacionamento social e cultura de paz dos indivíduos. Nessa construção, há que se destacar o papel imprescindível do juiz (leigo, conciliador ou togado) que cumpre sua missão de pacificar e harmonizar verdadeiramente o conflito, buscando para tanto apoio em outros ramos da ciência humana, com destaque para a psicologia e a sociologia.   3.1 A busca histórica de soluções simples à justiça De acordo com estudos realizados pelo juiz Ricardo de Araújo Barreto (2006), nos sistemas jurídicos alienígenas encontram-se inúmeros países que se utilizam do instrumento da conciliação como forma pacífica, célere e mais informal para a resolução dos conflitos, tornando desnecessário o início de todo um processo judicial, com todas as inconveniências já citadas que ele traz consigo. Deste trabalho, extrai-se que: “Em 1934 adota o Estado de Nova Iorque, as SMALL CLAIMS COURTS, cujo objetivo era julgar feitos até U$ 50,00 e cuja evolução redundou num sistema simplificado de medidas de estímulo às partes em direção ao acordo, firmado perante conciliadores experientes que, até certo ponto, antecipavam o sentido da decisão de mérito em casos similares àqueles, sem que tivesse atuado o Sistema Judiciário propriamente dito, dando um real significado à palavra pragmatismo” (BARRETO, 2006, p. 296). O percurso histórico da conciliação, nas linhas abaixo, terá por base o estudo do professor supracitado. A Inglaterra do século XI, já iniciava a busca por soluções simples para fazer justiça, sobretudo, neste primeiro momento, aplicado em matérias cíveis, iniciativa seguida pela Áustria que, em 1873, acolheu o sistema. Na Alemanha, em 1965, foi criado o “Stuttgarter Moddel”, tendo como fundamentos: a simplicidade, informalidade, oralidade, especialização, concentração e ativa participação do Juiz dentro da relação processual. Existe também hoje em dia na Alemanha, um artigo na Lei Processual Penal que prevê a não aplicação da pena privativa de liberdade aos acusados dos chamados crimes de pequeno potencial. Experiências semelhantes foram realizadas pelo Japão, México, Argentina, Itália e Portugal, todas trazendo resultados positivos na resolução de conflitos. Em Portugal, há um sistema de conciliação, onde estão presentes juízes leigos e juízes de paz. Já na França, há o “Juges de Proximité’’, que se aplica a todas as pequenas causas e contravenções penais, sendo uma espécie de Juizados especiais existentes no Brasil, onde metade da jurisdição é por eles exercida, tendo grande importância para o sistema judiciário francês. Já no Brasil, conforme apontamentos históricos elaborados por Marina Nunes Vieira (2006), a evolução da conciliação como resolução dos conflitos foi marcada por diversas idas e vindas, avanços e regressos, sendo considerado, de certa forma, como uma prática nova no nosso sistema. Prossegue o estudo aduzindo que, com a Constituição do Império de 1824, a idéia da conciliação esteve taxativamente presente no art. 161, já tendo desta vez um caráter mais aplicativo, ao proclamar que “Sem se fazer constar que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará processo algum”. Segundo a autora, na segunda metade do século XIX, contudo, a conciliação começou a ser colocada de lado, sendo completamente esquecida pelo Código de Processo Civil de 1939. Apenas em 1974, com o advento do Código de Processo Civil daquele ano, é que tivemos realmente ressuscitada a filosofia da conciliação, tendo retornado ao nosso ordenamento graças principalmente aos seguintes motivos: sobrecarga de processos em nossos tribunais; complexidade da estrutura da Justiça Comum, com limitado acesso da população em geral à Justiça; despesas elevadíssimas com os processos judiciais; solução rápida para os litígios; decisões bem aceitas pelas partes; e, por fim, uma alternativa de pacificação social. No que se refere mais especificamente à Justiça Criminal, de acordo com a obra do autor João Francisco de Assis (2005, p.15): “O processo penal na sua formulação clássica teve como marca registrada o conflito entre o acusador e o acusado, pretendendo a imposição da pena e o réu, que buscava ver reconhecida a sua inocência. Por força dos princípios da legalidade e da indisponibilidade do processo, não se vislumbrava qualquer espaço para o consenso”. A justiça penal consensual, portanto, baseada na resolução pacífica dos conflitos, teve dificuldades em sua origem, sendo bastante remota e ainda embrionária sua utilização no Brasil. Hoje em dia, o instituto da conciliação está previsto em diversas leis, sendo especialmente aplicado no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais – Lei nº 9099/95; Instituto da Arbitragem – Lei nº 9307/96; Juízes de Paz – Lei Complementar nº 59, de 18/01/2001; e no Código de Processo Civil, que coloca como verdadeiro dever do Juiz a tentativa de conciliação das partes, a qualquer tempo, em seu artigo 125, IV; dentre outras legislações e normas que trazem este instrumento como forma de solução dos conflitos. Por fim, o dia 23 de agosto de 2006 também pode ser considerado um marco fundamental para a conciliação no Brasil, pois foi lançado nesta data oficialmente, pela então Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ, ministra Ellen Gracie, o projeto intitulado “Movimento pela Conciliação”. Trata-se de uma parceria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com órgãos do Judiciário, Ordem dos Advogados de Brasil (OAB) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), além de magistrados, entidades sociais, universidades, escolas da magistratura e outros setores da vida civil que objetivam com este movimento criar juízos informais de conciliação, organizados pelas comarcas e distritos, onde uma pessoa da própria comunidade age como conciliador no intuito de resolver conflitos que dificilmente chegariam aos fóruns, ou muitas vezes resolver os processos que já estejam em tramitação. Segundo apontamentos colhidos no próprio Portal do Conselho Nacional de Justiça, o dia 8 de dezembro foi dedicado à mobilização do Dia Nacional pela Conciliação. A primeira Semana Nacional pela Conciliação ocorreu no ano de 2007, de 03 a 08 de dezembro. Mais de três mil magistrados e 20 mil servidores e colaboradores se empenharam e mais de 300 mil pessoas foram atendidas. Este foi mais um degrau alcançado pelos defensores da conciliação rumo a um Poder Judiciário mais eficaz e de maior credibilidade perante a sociedade que começa a ver seus problemas realmente resolvidos, e o que é melhor, com as suas diretas participações. 3.2. Natureza jurídica e eficácia da conciliação Conforme leciona o processualista, Humberto Theodoro Júnior (2008, p. 49): “Como método de solucionar litígios convém lembrar que, embora o principal, o processo não é o único, visto que, em determinados casos e circunstâncias, permite, a ordem jurídica, a autocomposição (transação entre as próprias partes) e a autotutela (legítima defesa ou desforço imediato)”. Não obstante a doutrina ainda não esteja sedimentada neste tema, nota-se pela análise do instituto, que tem a conciliação, como espécie do gênero autocomposição, uma natureza jurídica própria de direito privado, posto que privilegia a autonomia negocial das partes envolvidas, tendo apenas um agente estatal para fazer esta harmonização de interesses, formalizada através da sentença homologatória, criando um título executável. Trata-se de uma alternativa facultativa para composição de conflitos dada pelo Estado aos interessados que estejam dispostos a conversar e chegar a um consenso salutar para as duas partes, sendo, por isto, instituto de direito privado, não havendo que se falar em obrigatoriedade. Caso uma das partes não deseje transigir, poderá tranquilamente prosseguir com o processamento, aguardando a pronunciação estatal para ver o seu pleito atendido ou não, consoante o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, artigo 5º, inciso XXXV, CF. Poderá, contudo, a transação entre as partes, ter efeito de natureza pública penal, no caso de extinguir a punibilidade das ações públicas condicionadas à representação e nas privadas. Neste contexto, leciona João Francisco de Assis (2005, p.59) que: “A composição civil dos danos celebrada entre o acusado e a vítima, além de formar um título executivo líquido e certo, pode ter efeito penal, no caso de ação penal privada ou condicionada à representação. Nesses casos, o acordo civil, depois de homologado pelo juiz, acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação, sendo que esta renúncia implica a extinção da punibilidade da infração perpetrada”. Continua o autor aduzindo que com esta possibilidade de composição preliminar dos danos foi rompida uma clássica orientação legislativa de impedir que no processo criminal pudesse ser já solucionado também a matéria cível, isto é, a reparação do dano. Neste contexto, a conciliação no âmbito criminal assume uma natureza jurídica de medida despenalizadora, visto que, consoante se vê na citação acima, leva inevitavelmente, nas condições apontadas, à extinção da punibilidade, livrando o autor do fato de qualquer efeito processual. Pelo exposto, tem a composição dos danos no Direito Criminal uma natureza jurídica híbrida ou mista, assumindo um caráter ora cível, ora penal. É medida alternativa à pena tradicional (ASSIS, 2005). A aproximação do Judiciário com a sociedade vem aumentando significativamente nos últimos anos, impulsionada, sobretudo, pelo aumento no grau de conhecimento dos direitos dos cidadãos, resultado, principalmente, da Constituição Federal de 1988. Milhares de processos novos chegam todos os anos aos Tribunais, atingindo hoje um número assustador de cerca de 68 milhões de processos distribuídos pelo país, das mais variadas origens, segundo dados do próprio Conselho Nacional de Justiça (2009).  O número de juízes e a estrutura funcional das varas, nem de longe acompanham estas mudanças, ficando para trás ante ao espantoso aumento dos litígios existentes. Em reportagem realizada pelo programa televisivo da Rede Globo, Jornal Nacional, e disposta no portal eletrônico de notícias da Globo, G1 (2009), a juíza Maria da Conceição da Silva Santos resume bem a situação atual da Justiça do seu estado, Piauí, da seguinte forma: “Nós encontramos a Justiça inviabilizada. Podemos citar o exemplo das varas criminais. Nelas, nós temos processos de antes de 2000 que ainda estavam pendentes de audiência”, afirma.  Continua comentando que a realidade era tão dura que era preciso marcar audiências preliminares, entregar intimações, tirar processos das gavetas, dar sentenças e respostas para os cidadãos, enfim, era preciso fazer simplesmente a Justiça funcionar. “Parecia uma tarefa quase impossível. Mas, de alguma maneira, era preciso começar. Juízes e técnicos judiciários enviados pelo CNJ começaram a arrumar a casa, a fazer uma faxina de verdade”. Para enfrentar esta crescente demanda gerada pela excessiva jurisdicionalização dos conflitos, que se repete em todos os estados do país, começou a se desenhar no Brasil uma nova idéia de se fazer justiça, surgida no próprio Poder Judiciário, a chamada composição dos litígios pela conciliação. Não era mais possível a persistência na prática do modelo existente de delegar a um terceiro a capacidade de resolver conflitos (PRACHÁ, 2008). Neste sentido, bastava uma simples estrutura montada, um ambiente adequado e pessoas capacitadas para intermediar e harmonizar a solução melhor para as partes. Sem maiores gastos, ou complicações, sem necessidade de construção de prédios, nem contratação de pessoal especializado. Foi assim, portanto, a partir da definição do Movimento pela Conciliação como política nacional, sob a coordenação permanente do CNJ, e com a participação de todos os profissionais e partes, que o país começou a conviver com uma verdadeira e profunda mudança de mentalidade, assimilando cada vez mais a cultura da pacificação social e do diálogo. Ao longo de 2008, o CNJ dedicou-se com bastante intensidade à formação profissional de juízes conciliadores. Mutirões foram realizados em todos os Estados do país e, a título de exemplo prático, com apenas um grupo de trabalho criado junto à autarquia federal INSS – Instituto Nacional da Seguridade Social, mais de 100 mil processos já foram resolvidos*. Nos países mais desenvolvidos, onde a cultura da conciliação já é assimilada com mais naturalidade, o índice de acordos já chega à casa dos 70%. No Brasil, contudo, esse número ainda caminha entre 30%, mas já se tem observado elogiáveis avanços**. Processos de família, sistema habitacional, desapropriações, previdência, despejos, entre outros, são algumas das matérias onde a conciliação tem se mostrado uma via satisfatória de solução de conflitos, evitando que causas de menor complexidade cheguem desnecessariamente ao Poder Judiciário. Como bem salientou a citada juíza e membro do CNJ, Andréa Pachá (2008) “uma Justiça mais rápida, acessível e efetiva é o que o Judiciário quer e o que a sociedade merece”. 3.3. A conciliação nos Juizados Especiais Criminais Consoante já explicitado, quando ocorre o cometimento de qualquer dos crimes de competência definida para os Juizados Especiais, tem o Estado a incumbência de processá-los e julgá-los dentro dos ditames da Lei nº 9.099/95. Os Juizados Especiais Criminais (JECRIM) nasceram sob a ótica de uma justiça penal moderna, de caráter consensual, tendo como finalidade precípua a agilização da solução dos conflitos surgidos na média e baixa criminalidade (crimes de menor potencial ofensivo). Deve neste caso ser fornecido pelo Estado uma resposta jurisdicional rápida, útil e adequada, prevenindo estes tipos de delito de pouca reprovabilidade social (ASSIS, 2005). A competência de processamento pelo JECRIM possui caráter absoluto, já que é classificada em razão da matéria (crime de potencial mínimo), e, ainda por cima, de natureza constitucional. Para tal, e seguindo as diretrizes da individualização da pena e do tratamento desigual a circunstâncias desiguais, preferiu o legislador colocar os infratores destes delitos em posição privilegiada frente ao jus puniendi estatal, havendo nestes casos um declarado abrandamento dos princípios processuais penais da obrigatoriedade e da indisponibilidade (ASSIS, 2005). Pelo princípio da obrigatoriedade, conforme nos ensina Nestor Távora e Rosmar Antonni (2009), tem-se que os órgãos competentes para a persecução penal devem obrigatoriamente atuar quando verificarem o cometimento de um crime, sendo isto válido para a fase administrativa (policial) e judiciária (processo). Isto ocorre porque estes agentes têm o compromisso legal de atuar, não cabendo falar em juízo de oportunidade. “Assim, o delegado de polícia e o promotor de justiça, como regra, estão obrigados a agir, não podendo exercer juízo de conveniência quanto ao início da persecução” (TÁVORA & ANTONNI, 2009, p. 52). Ressalte-se que esta regra geral da obrigatoriedade é aplicada aos crimes de ação pública, uma vez que aos de ação privada, nos quais a titularidade cabe ao ofendido, vigora o princípio oposto, o da oportunidade de iniciar ou não uma ação penal. No caso do princípio da indisponibilidade, também há uma mitigação de sua aplicação quando do cometimento de um fato descrito como crime de menor potencial ofensivo. Este princípio é decorrente da obrigatoriedade e dispõe que uma vez iniciado o inquérito policial ou mesmo o processo penal, este deve prosseguir até o seu fim, atingindo o seu objetivo, mesmo que seja pelo reconhecimento da inocência do indiciado ou acusado. Os órgãos estatais, portanto, não podem dispor de uma ação penal. Caso entendam, após a instrução probatória, que o réu não cometeu o delito, ou este não existiu, devem manifestar-se ao final pela absolvição do acusado. Tais princípios, contudo, são válidos plenamente apenas para os crimes dos ritos comum ordinário e sumário. Nos crimes contemplados pela lei como de menor potencial ofensivo, há uma mitigação ou restrição da aplicação destes dispositivos, pois o que norteia este procedimento é o caráter despenalizador e socializante. A lei privilegia o status libertatis, colocando a privação de liberdade realmente como última alternativa, procurando evitar a todo momento que os efeitos estigmatizantes do encarceramento possam atingir o acusado. Neste sentido, o professor João Francisco (2005, p.50) comenta que: “O fracasso da pena de prisão, da forma como é executada atualmente, principalmente se se tratar de pena de curta duração, é um dos fundamentos para adoção de soluções consensuais alternativas que evitam o encarceramento. É a opção pela despenalizacao e descarcerização como o fez a Lei n° 9.099/95. Além disso, necessário ainda é considerar, conforme Ada Pellegrini Grinover, a ilegitimidade da prisão no “moderno” Estado de Direito Democrático e Social, pois, além de não ser neutra, ela é altamente dessocializadora e perigosa. O fato não é novo. O que existe de novo nas prisões, neste novo milênio, é o nível de crueldade e de risco que fazem parte de seu cotidiano, pois penas proibidas formalmente pela nossa Constituição (art. 5°, XLVII, penas cruéis, trabalhos forçados, pena de morte, via AIDS, etc.), estão presentes, vergonhosamente, no dia a dia dos nossos estabelecimentos prisionais”.   Neste contexto, a Lei dos Juizados Especiais Criminais já se inicia procurando a conciliação entre as partes (composição dos danos), como forma de evitar o processo. Caso não alcançado, parte-se ainda para um segundo momento, previsto no artigo 76, que traz a oportunidade da transação penal, ou seja, a submissão do acusado a uma medida substitutiva da pena, geralmente uma prestação de serviços à comunidade, proposta pelo representante do Ministério Público, a ser aplicada antes mesmo de iniciado o processo. Caso a medida seja aceita, a ação não será sequer iniciada, sendo por isto uma exceção ao princípio da obrigatoriedade. Já o artigo 89, da Lei supracitada, mitigando o princípio da indisponibilidade, retrata a suspensão condicional do processo, aplicada aos crimes cuja pena mínima em abstrato não ultrapasse 1 (um) ano e o acusado preencha os demais requisitos previstos em lei. Quando presentes, o promotor de justiça ao oferecer a denúncia propõe a medida suspensiva, pelo prazo de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. Ao final, caso o réu tenha cumprido integralmente o prazo definido, sem revogação, é declarada extinta a punibilidade. Mostra-se, assim, as diversas oportunidades que possui o acusado de evitar o processamento ou a medida penalizadora, sendo este o espírito que orienta toda a lei. 3.4. Procedimento nos Juizados Especiais Criminais Ao se deparar com um fato de cunho criminoso e competência dos JECRIM´s, deve o delegado de polícia, em regra o primeiro agente do Estado que conhece o delito, lavrar o chamado Termo Circunstanciado de Ocorrência – TCO, peça utilizada em substituição ao inquérito na hipótese de ocorrência destes específicos delitos. Esta é a fase preliminar do procedimento. Citando mais uma vez o Professor Nestor Távora (2009, p.101), temos que: “O legislador, visando imprimir celeridade, prevê como regra, no art. 69, a substituição do inquérito policial pela confecção do termo circunstanciado de ocorrência (TCO), que é uma peça despida de rigor formal, contendo breve e sucinta narrativa que descreve sumamente os fatos e indica os envolvidos e eventuais testemunhas, devendo ser remetido, incontinenti, aos Juizados Especiais Criminais.” Nem sempre, todavia, é possível a realização do termo circunstanciado, posto que alguns crimes, mesmo que considerados de menor potencial ofensivo, são de difícil elucidação, tendo autoria desconhecida ou alta complexidade, bem como quando existe crime conexo, hipóteses nas quais, deve o delegado proceder o inquérito de forma excepcional e fundamentada. O termo circunstanciado deve conter o registro do fato ocorrido (normalmente relatado pela vítima); a identificação da vítima (com suas qualificações e endereço completo, para futura intimação); bem como identificação do suposto autor do delito, acusado (de preferência com endereço também para ser localizado). Eventualmente, pode ser necessária a feitura do exame de corpo de delito, nos casos de crimes materiais. Ao final, o delegado toma o compromisso do autuado de comparecimento ao JECRIM em dia e horário predeterminados. Tem esta fase inicial, portanto, a incumbência de apurar os indícios de autoria e a materialidade do delito, ainda que de forma superficial, facilitando para que o Poder Judiciário possa atuar com precisão. Resta lembrar, por fim, que na ocorrência de um destes crimes, realizado o TCO e assinado pelo infrator acusado, que se comprometa a comparecer a todos os atos processuais quando notificado, não cabe a prisão em flagrante, devendo o delegado garantir sua liberdade provisória, sem necessidade de fiança. Neste sentido, parágrafo único do artigo 69.   Finalizado o TCO, é este encaminhado ao Poder Judiciário que realiza, através dos Juizados Especiais Criminais, todo o procedimento previsto, começando com uma audiência de tentativa de conciliação. É a segunda fase do procedimento sumaríssimo.   Nesta audiência, primeiramente, tem-se a tentativa de composição dos danos cíveis entre as partes (ofendido e acusado), nos moldes dos artigos 72 e 73 da Lei nº 9.099/95. No caso dos crimes de ação privada e pública condicionada à representação, uma vez alcançada a composição dos danos (conciliação), já extingue neste momento a punibilidade do acusado, não chegando a iniciar o processo. Necessário ressaltar que esta primeira conciliação dos danos, conforme orienta o artigo 73, parágrafo único, e artigo 74 da lei em comento, pode ser realizada por um juiz conciliador, que será um auxiliar da Justiça, recrutado na forma das leis locais, preferencialmente entre bacharéis em direito. Isto ocorre para que os conciliadores sejam pessoas com um conhecimento jurídico básico que possam realmente auxiliar o trabalho de aproximação das partes e busca de soluções plausíveis para o caso. Geralmente, os JECRIM´s utilizam estudantes do último ano do curso de Direito para procederem estas audiências. Em trabalho divulgado no Portal Direito e Justiça (2007), intitulado “Conciliador não é juiz”, há clara distinção entre conciliadores e os chamados juízes leigos. Ambos são auxiliares da Justiça, porém os primeiros não precisam ser necessariamente bacharéis em direito, exigência para os segundos, que devem ser advogados com mais de 5 (cinco) anos de experiência. No dizer de Silvio Roberto Matos Euzébio (1997): “O Conciliador é o Auxiliar do Juiz encarregado de promover, nos casos permitidos, a aproximação das partes interessadas (o imputado autor do fato ou representante legal e vítima), e realizar acordo mediante o consenso entre ambas. Para realização da sua função pratica ato processual de conciliação, a qual não pode ser confundida com Audiência, inclusive Preliminar. Como auxiliar do Juízo o Conciliador não preside Audiência, realiza em realidade atos processuais objetivos de conciliação dos interessados.” Fica claro, por fim, que o conciliador é um auxiliar da Justiça, não integrando, portanto, o Poder Judiciário, não necessitando nem mesmo de formação jurídica, sendo apenas um contribuinte ou colaborador da jurisdição. Alcançado o acordo de composição dos danos (morais e / ou materiais) será este lavrado e homologado pelo magistrado competente, tendo força de título executivo judicial. Tal decisão é irrecorrível, posto que foi construída pelas próprias partes.  In verbis, o que reza a lei (In: PLANALTO, 1995): “Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente. Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação.” Caso não seja possível o acordo, parte-se para um segundo momento desta segunda fase, no qual o ofendido exerce o direito de representação verbal, formalizando sua intenção de processar o acusado, artigo 75 da Lei nº 9.099/95. O representante do Ministério Público, então, tem a oportunidade de oferecer a transação penal, na qual, conforme já explicado acima, é proposta uma medida alternativa de cumprimento de pena restritiva de direitos ou multas, sendo tudo especificado na proposta. Cabe lembrar que esta proposta de transação só poderá ser oferecida, nos moldes do artigo 76, §2º, da Lei nº 9.099/95. Este dispositivo impõe uma série de condições impeditivas. Existindo alguma delas, o representante do parquet fica impedido de assim proceder. Sendo possível e aceita a transação é esta avaliada pelo magistrado que aplicará em sentença a pena restritiva de direitos ou multa imposta. Vale sublinhar que este cumprimento de transação não importa em reincidência para o acusado, permanecendo com sua primariedade (artigo 76, §4º). Se mesmo assim o indiciado insistir no processamento, não aceitando nenhuma destas medidas, é enfim iniciado o processo criminal propriamente dito, com oferecimento da denúncia ou da queixa-crime, que poderão ser ofertadas de forma oral (artigo 77 e seus parágrafos). Ao contrário do que ocorre no rito comum, o recebimento da acusação só será realizado na audiência seguinte, de instrução e julgamento. Ainda assim, cabe a aplicação do “sursis processual” para o réu que deseje ver sua ação condicionalmente suspensa pelo período de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que presentes todos os requisitos objetivos e subjetivos exigidos pela lei, conforme preceitua o artigo 89 do diploma dos JECRIM´s. Quando não for possível ou não aceita nenhuma destas possibilidades de “fugir” do processo criminal, o magistrado marca a audiência de instrução e julgamento e já cita o acusado, para, enfim, analisar o mérito do caso e imputar, se assim entender, uma pena ao agora réu. Fica evidente, pelo exposto, a cristalina intenção da Lei nº 9.099/95 de possibilitar ao acusado diversas formas de não responder a um processo criminal, dando todas as oportunidades para que ele não venha a sofrer as fortes conseqüências de uma ação e tampouco de uma pena, demonstrando todo o caráter descarcerizador e socializante deste rito. Por fim, resta evidenciar a importância que tem a primeira parte desta fase do procedimento para a efetividade da Justiça, sobretudo no que se refere aos crimes de ação privada ou pública condicionada, quando as partes têm a oportunidade de resolverem tudo na base do diálogo, através da composição dos danos (conciliação), já extinguindo de imediato a punibilidade. Para fixar ainda mais a relevância deste momento processual e incentivá-lo, o legislador ainda cuidou de considerá-lo irrecorrível, sendo um título judicial que já pode ser prontamente executado. Por estes motivos, tem a Justiça brasileira dado cada vez mais atenção a esta prática, conforme já explanado alhures, existindo um verdadeiro movimento em prol da conciliação liderado pelo Conselho Nacional de Justiça. Contudo, nota-se na prática que este movimento ainda precisa ser ampliado, pois ainda não é suficientemente aplicado. Devem-se abrir novas oportunidades de tentativa de composição dos danos (conciliação) entre as partes, o que enseja pontuais mudanças de caráter postural e legislativo. Uma delas já está em tramitação no Congresso Nacional, através do Projeto de Lei de nº 5.117/09 (ver anexo A), que visa possibilitar que a composição preliminar dos conflitos decorrentes dos crimes de menor potencial ofensivo seja procedida já inicialmente pelos delegados de polícia (atuando como conciliadores). Para tanto serão necessárias algumas alterações na própria Lei nº 9.099/95, ampliando o rol de legitimados para realizar esta conciliação. 4. Polícia Judiciária A Constituição da República Federativa Brasileira de 1988, conhecida como a Carta Cidadã por ter inovado em diversos aspectos do sistema jurídico que vivemos ao institucionalizar os direitos fundamentais como cláusulas pétreas, trouxe ao povo brasileiro uma série de garantias e liberdades até então inexistentes. Sabe-se que uma sociedade moderna, organizada e que se propõe civilizada, deve ter concomitante aos direitos, uma série de deveres a serem observados por todos que desejam viver harmonicamente. Para isto é que nasceu a necessidade do Direito como um sistema de regras integralizadas e coercitivas, que teriam a capacidade de levar justiça ao seu povo, ou seja, fazê-los atingir a paz social, o estado do bem-estar, através justamente da restrição de alguns direitos de liberdade individual (REALE, 2002). Quando um cidadão contraria uma destas regras jurídicas escolhidas pelo sistema (critério político) como penal, nascendo para o Estado o jus puniendi, tem-se a existência de um crime, para o qual foi atribuído ao Poder Executivo, através das suas polícias judiciárias, federal e civil (estadual), a função da persecução criminal. Podemos dizer, desta sorte, que cabe a estas instituições o dever de apurar qualquer ato indiciariamente criminoso, colhendo todas as informações possíveis acerca da materialidade do delito (existência fática do objeto do crime), bem como do seu provável autor. 4.1 Função e atributos constitucionais A atuação das polícias judiciárias está disposta tanto nas normas de natureza constitucional, art. 144 e seus parágrafos, como legal, através do Código de Processo Penal, que assim, respectivamente, dispõem (In: Planalto, 2009): “Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:[…] § 4º – às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” (grifos nosso) Na mesma esteira, o Código de Processo Penal reza que: “Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.” Segundo Granzotto (2007), resta evidente, portanto, a intenção do sistema jurídico criminal brasileiro de especificar uma instituição que terá caráter exclusivo (em regra) na busca e investigação dos crimes, atuando repressivamente e dando suporte indispensável para formação da opinio delict por parte do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal. Desta sorte, atinge-se o que, a nosso ver, o constituinte de 1988 intencionou, ou seja, um equilíbrio entre as instituições punitivas, cada uma possuindo um papel predeterminado, o que é fundamental para o Estado Democrático de Direito. Assim, à Polícia judiciária cabe o início da persecução criminal, realizando as investigações no calor do fato ocorrido, de forma autônoma e independente de qualquer Poder (até mesmo do Executivo que lhe mantém), com o objetivo de revelar apenas a verdade dos fatos, não importando se o suposto autor será condenado ou absolvido. Em seguida, o autor continua aduzindo que os autos são repassados, através do Inquérito Policial, ao Poder Judiciário, que o encaminha ao titular da ação penal, membro do Ministério Público, tendo a função de denunciar o suposto autor, iniciando a ação penal, caso entenda que assim é cabível. Por fim, completando esta tripartição constitucional de incriminação, tem o magistrado a missão de julgar o caso, analisando todas as circunstâncias já apontadas nos autos, tanto levantados pelo delegado na fase investigatória, quanto pelo MP na fase acusatória, formando assim uma opinião completa e fundamentada do delito. Acredita-se que a Constituição Federal ao estabelecer essa separação de funções na incriminação dos delinqüentes, procurou justamente estabelecer um equilíbrio de forças, obedecendo ao devido processo legal brasileiro e seguindo as diretrizes e princípios democráticos mais fundamentais. Dentro deste importante contexto, é justamente a Polícia Judiciária que seria aquela encarregada de auxiliar a justiça, cuidando de todos os elementos preparatórios à lide penal de uma forma integral e sistemática. Ela é responsável, portanto, sob a presidência do delegado de polícia de carreira, agente político do estado com formação jurídica obrigatória, por apurar as infrações penais e sua respectiva autoria. Para tal mister, conta com um corpo de servidores de diversas áreas do conhecimento que darão um suporte técnico na busca incessante pela elucidação dos delitos, possuindo, segundo a Lei Orgânica da Polícia Civil da Paraíba (Lei Complementar nº 85/2008), que segue uma base nacional: Peritos criminais, Auxiliares de perito, Perito médico-legal, Perito odonto-legal, Perito químico-legal, Papiloscopista, Necrotomista, Escrivão, Agentes e Motoristas, dentre outros cargos que o Estatuto de cada instituição pode contemplar. 4.2 Inquérito policial e TCO Conforme Tourinho Filho (2003), o instrumento básico de atuação dos delegados de polícia no seu labor diário é o chamado Inquérito Policial, que é o documento oficial no qual é formalizado o conjunto de diligências realizadas na apuração do crime, determinando sua materialidade e os indícios de sua autoria. Embora colabore com o Poder Judiciário, na medida em que auxilia na acusação e julgamento, dando suporte probatório, o inquérito policial tem natureza administrativa, possuindo as características de ser: discricionário, escrito, sigiloso, oficial, oficioso, indisponível, inquisitivo, autoritário e dispensável, conforme depreende-se dos artigos correspondentes do Código de Processo Penal. Vale destacar, ademais, que, segundo Távora e Alencar (2009) o inquérito também possui a importante função de embasar requisições de medidas cautelares em geral, como prisões provisórias e pedidos de interceptações telefônicas, por exemplo. Tais medidas são requisitadas ao magistrado que analisa sua viabilidade de acordo com os elementos probatórios disponíveis, em sua maioria no próprio inquérito. Nesta linha, percebe-se que sendo o inquérito policial mal formulado e gerenciado, poderá distorcer a realidade dos fatos e levar ao conhecimento da Justiça uma visão equivocada do ocorrido, ocasionando muitas vezes prisão de inocentes e / ou soltura de criminosos. Para sua feitura são dispostos alguns prazos a serem cumpridos pela autoridade policial, determinados pelo próprio Código de Processo Penal, que dispõe: “Art. 10.  O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela.” Em regra, desta feita, os prazos aplicados são 10 dias (indiciado preso) ou 30 dias (solto) para que esta fase inicial seja concluída o mais brevemente possível. Existem, entretanto, alguns prazos especiais para conclusão do inquérito, em leis extravagantes, como a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) que traz o prazo de 30 dias (preso) ou 90 dias (indiciado livre); crimes federais que aplicam 15 ou 30 dias; dentre outras leis que trazem seus próprios prazos de conclusão deste procedimento administrativo. Para encerrar esta fase é realizado e anexado ao inquérito um detalhado relatório informando tudo o que foi apurado, propiciando, assim, o início da fase posterior, a ação penal. Esta é a regra geral de procedimento das autoridades policiais quando se deparam com um delito. Contudo, quando se tratar de delitos ditos de menor potencial ofensivo, ou mesmo de contravenções, conforme determina a Lei nº 9.099/95, o procedimento de apuração é diverso. Neste caso será feito, em substituição ao inquérito, um TCO. O termo circunstanciado de ocorrência veio justamente colaborar com o espírito dos Juizados Especiais criminais, abreviando este procedimento de caráter administrativo, sobretudo no que se refere à celeridade e informalidade do ato (GRANZOTTO, 2008). Conceitua-se, conforme leciona o Professor Paulo Rangel (2003, p.166) como sendo um: “registro de ocorrência minucioso, detalhado onde se qualificam as pessoas envolvidas – autor(es) do(s) fato(s), vítima(s) e testemunha(s); faz-se um resumo de suas versões; menciona-se data, horário e local do fato; descrevem-se os objetos usados no crime (apreendidos ou não); colhe-se assinatura das pessoas envolvidas; quando a lei determinar, expõe-se a representação do ofendido e demais dados necessários a uma perfeita adequação típica do fato pelo Ministério público.” Deve este termo de ocorrência ser elaborado pela autoridade policial competente, neste sentido o artigo 69 da Lei nº 9.099/95, que na visão de boa parte da doutrina e jurisprudência só poderá ser confeccionado pelo Delegado de polícia, não se ampliando aos policiais militares ou outros agentes de segurança leigos na Ciência Criminal. Neste sentido, vejamos como se posiciona Cabette (2007): “Em termos jurídicos o principal óbice é de natureza constitucional. O Termo Circunstanciado é realmente um procedimento simplificado, mas nem por isso deixa de ser ato de polícia judiciária. Ora, tal função é constitucionalmente reservada às Polícias Civis, sob a presidência de Delegados de Polícia de Carreira, Bacharéis em Direito (artigo 144, § 4º, CF) e, em termos semelhantes, à Polícia Federal, também chefiada por Bacharéis em Direito, Delegados de Polícia Federais” (artigo 144, § 1º, IV, CF). Esta formalidade mínima é necessária ser observada, mesmo se tratando de procedimento sumaríssimo, para que falhas jurídicas possam ser evitadas, ensejando posteriores ações de indenização por responsabilidade estatal, como ocorre, por exemplo, na prisão ilegal ou arbitrária. Os princípios da informalidade e simplicidade, norteadores da Lei n° 9.099/99, não podem ser encarados de modo absoluto, posto que acima deles, de ordem constitucional, encontra-se o devido processo legal (lato senso). Elaborado o termo, deve a autoridade encaminhá-lo imediatamente aos Juizados Especiais Criminais para início da fase processual, sempre respeitando todos os atos especiais previstos para este rito, iniciando com a tentativa de conciliação e partindo até a sentença (se necessária). 4.3 Delegado de polícia Consoante explanado anteriormente, de acordo com o Código de Processo Penal e a Constituição Federal, é o delegado de polícia o agente do estado considerado autoridade policial, sendo responsável pela apuração dos delitos. Este profissional irá presidir as investigações, determinando os atos necessários para atingir a finalidade de desvendar o fato, até então, apenas em tese, criminoso. É, portanto, o primeiro elemento do Estado que se depara com o evento, colhendo os fatos no fervor do acontecimento, relatando tudo detalhadamente e tendo o cuidado de zelar pelas provas materiais do delito, sobretudo as que não puderem ser repetidas, pois conforme estatui o artigo 155, após a reforma do Código de Processo Penal de 2008, as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas poderão exclusivamente embasar uma decisão judicial. Conforme nos ensina Geraldo Amaral Toledo Neto (2003), o delegado de polícia, pela sua própria formação acadêmica, possui juízo jurídico valorativo dos fatos, podendo ou não iniciar os atos de investigação (indiciamento), prender em flagrante, ou requisitar algumas medidas judiciais, sempre avaliando no caso concreto a chamada justa causa para atuar. Na esteira do doutrinador Julio Fabbrini Mirabete (1997, p. 86): “Tendo o conhecimento da existência de um crime que se apura mediante ação penal pública, a Autoridade Policial deve instaurar o competente Inquérito Policial. O Inquérito não deve ser instaurado, entretanto, na hipótese de fato atípico, no caso de estar já extinta a punibilidade, na hipótese de ser a autoridade incompetente para a instauração e quando não forem fornecidos os elementos indispensáveis para se proceder às investigações.” (grifos nosso) Deve, portanto, atuar avaliando juridicamente os acontecimentos, sempre com bom senso e proporcionalidade, avaliando todos os requisitos do crime, com vistas ao bem estar e segurança da população. Dentro desta visão de colocar os delegados como operadores do Direito, o professor universitário Mário Leite de Barros Filho (2009), em trabalho publicado na internet, mostra que no decorrer da história os delegados de polícia exerceram funções jurídicas mais diretas, tendo isto sofrido uma imensa diminuição com a Constituição de 1988. Dentre estas atividades de natureza jurídica que já foram exercidas pelos delegados de polícia se destacam: – A possibilidade de presidir a instrução das provas nos processos sumários, das contravenções e lesões corporais e homicídios culposos, por força do artigo 531, do Código de Processo Penal e da Lei nº. 4.611, de 2 de abril de 1965; – O poder de concessão de mandado de busca e apreensão domiciliar, previsto no artigo 241, do Código de Processo Penal. Com a Constituição Federal de 1988, continua explanando o citado autor, estas atribuições jurídicas foram suprimidas dos delegados de polícia, como forma de ampliar os direitos e garantias dos cidadãos recém saídos de um Estado de ditadura militar. Se por um lado o efeito gerado pela Carta Cidadã foi positivo, por ter ampliado o rol de direitos fundamentais do cidadão, tornando mais segura e limitada a investigação e atuação policial, por outro foi negativa, na medida em que não reservou a estes profissionais uma atuação jurídica mais precisa e determinada, ajudando até mesmo numa prestação mais célere da Justiça, como ocorria, por exemplo, com a possibilidade de o delegado presidir a instrução das provas nos processos sumários, relativos às contravenções penais e aos crimes de menor gravidade. Diante deste ideal de recuperar o caráter jurídico das atividades dos delegados, sempre em concerto com a Constituição Federal, inserindo-os como agentes contribuintes (e não pertencentes) do Poder Judiciário, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei de n° 5.117/09, de autoria do Deputado Régis de Oliveira, pretendendo alterar a redação dos artigos 60, 69, 73 e 74, da Lei nº. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, possibilitando a composição preliminar dos conflitos decorrentes dos crimes de menor potencial ofensivo pelos delegados de polícia. Nas palavras de Cloves Rodrigues da Costa (2009), em texto publicado acerca da Polícia Comunitária, discorrendo sobre o Projeto de Lei em tramitação: “O exercício da prática de Polícia Judiciária Comunitária, mediante conciliações preliminares, promovidas pelo Delegado de Polícia entre as partes envolvidas nas práticas de delitos de menor potencial ofensivo, formalizando o correspondente termo, que será submetido a apreciação do Ministério Público e do Poder Judiciário, trata-se de uma importante contribuição jurídico-social da Polícia Civil, para amenizar a lacuna existente entre o ideal que norteou a elaboração da Lei nº 9.099/95 e a realidade da sua aplicação no que tange aos princípios da celeridade e economia processual”. A Polícia Comunitária é, na visão do mesmo autor supracitado, “uma filosofia que transcende a dicotomia do modelo policial existente no Brasil”. Surgiu, então, como uma evolução do modelo de polícia profissional conhecido, com o objetivo claro de prevenção, trabalhando com a inteligência para agregar os povos e pacificar os conflitos, encontrando soluções (acordos). Busca-se sempre uma melhor qualidade de vida para a comunidade que dela ativamente participa. Esta prática de polícia comunitária é ainda mais possivelmente aplicável diante da nova realidade de renovação dos quadros de delegados de polícia (federal e estadual), que vem ocorrendo através dos últimos concursos públicos. Em reportagem publicada pela Revista Veja (2009), intitulada “Os delegados do século XXI”, fica evidente esta mudança de perfil destes profissionais, o que é salutar para a sociedade. De acordo com a revista: “Antes de assumirem a função, os aprovados passam quatro meses na Academia de Polícia (Acadepol), onde têm aulas, entre outras disciplinas, de direitos humanos e defesa pessoal. “O enfoque da formação é voltado para a inteligência policial”, afirma Sérgio Lomba, que dirigia a Acadepol do Rio de Janeiro no período de formação dessa turma. Na Acadepol, aprendem a atirar com revólveres e pistolas, escopetas de calibre 12 e fuzis AR-15 e M-16. Boa parte dos aprovados é de recém-formados que fazem concursos públicos em busca de um emprego estável e bem remunerado. “Apostamos nessa capacidade técnica aliada à vocação, que alguns têm e outros podem adquirir”, explica o chefe de polícia. O salário inicial de um delegado é de 7 900 reais”. Estes novos profissionais, prossegue o texto, chegam com a mentalidade mais aberta e voltada ao lado social, tendo mais facilidade de conversar com a população e resolver efetivamente os problemas. Nota-se, pelo exposto, que essa atuação comunitária da Polícia, mais especificamente através dos delegados como conciliadores, com a mudança legislativa objeto deste estudo, auxiliaria na redução do crescente volume de feitos dos cartórios dos fóruns dos JECRIM´s, refletindo de forma direta sobre a tempestividade da prestação jurisdicional, resgatando o sentimento subjetivo de segurança por parte da sociedade, e, sobretudo, a sensação de realização da justiça. 5. A utilização dos delegados como mais um instrumento de conciliação 5.1 Projeto de Lei Federal nº 5.117/09 O projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, sob o n° 5.117/09, de autoria do Doutor em Direito pela PUC-SP, desembargador aposentado e Deputado Federal pelo estado de São Paulo, Régis de Oliveira, intenciona alterar a redação dos artigos 60, 69, 73 e 74, da Lei nº. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, possibilitando a composição preliminar dos conflitos decorrentes dos crimes de menor potencial ofensivo pelos delegados de polícia. Estabelece o projeto que o delegado de polícia, após tomar conhecimento dos fatos criminosos de menor potencial ofensivo ocorridos, terá atribuição para formalizar a ocorrência nos autos, lavrando, em seguida, termo circunstanciado de ocorrência (TCO) acerca do evento, e tentará, imediatamente, a composição (conciliação) do conflito, evitando que alguns casos seguissem desnecessariamente para os Juizados Especiais Criminais. Quando restasse bem sucedida a iniciativa conciliadora da autoridade policial, encontrando um acordo entre as partes, a composição dos danos seria reduzida a termo e assinada pelas partes envolvidas no conflito criminoso. Posteriormente, será encaminhado ao Poder Judiciário o termo de composição do conflito (ver anexo A), passando pela análise e ratificação do representante do Ministério Público, sendo, ao final, homologado pelo douto juiz. Vale sublinhar que a homologação do termo de composição do conflito pelo Poder Judiciário possui eficácia de título executório, sendo sentença irrecorrível, podendo já de pronto ser executado no juízo cível competente, sem necessidade de processo cognitivo. Ademais, a proposta em discussão estabelece que a composição do conflito realizada pelo delegado de polícia, nos delitos de menor potencial ofensivo, descritos como de ação penal privada, ou de ação penal pública condicionada à representação, depois de homologada pelo juiz, acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação, nos moldes do atual artigo 74, parágrafo único da Lei n° 9.099/95. O projeto segue, portanto, a linha defendida e pretendida pelo legislador ao criar os Juizados Especiais Criminais, auxiliando na luta incansável de alcançar todos os seus objetivos, levando uma resposta jurisdicional mais célere e efetiva à população. Encontra-se, atualmente, na fase de tramitação nas Comissões da Câmara dos Deputados, vez que foi proposto ainda neste período legislativo, estando em caráter conclusivo, não necessitando, portanto, ser analisado pelo plenário. Caso seja aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, já segue para análise do Senado, conforme apontamentos extraídos do Portal de acompanhamento de projetos de lei do Congresso Nacional (2009). 5.2 Viabilidade jurídica e financeira da alteração Conforme dispõe a ementa original, o Projeto de Lei n° 5.117/09 (anexo A): “Altera a redação dos artigos 60, 69, 73 e 74, da Lei nº. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, possibilitando a composição preliminar dos conflitos decorrentes dos crimes de menor potencial ofensivo pelos delegados de polícia”.  Portanto, o impacto legislativo seria a alteração de apenas quatro artigos existentes na Lei Federal n° 9.099/99, ampliando o rol de legitimados para realizar a conciliação nos crimes dos Juizados Especiais Criminais, incluindo os delegados de polícia nesta função. O artigo 60, desta feita, passaria a ter a seguinte redação: “Art. 60 – O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados, togados e leigos e delegados de polícia, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. § 1º – Cabe ao delegado de polícia, com atribuição para formalizar a ocorrência, a composição preliminar do conflito decorrente dos crimes de menor potencial ofensivo. § 2º – Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis”. A primeira intenção do projeto, como se vê, era realmente modificar a estrutura organizacional dos Juizados Especiais, incluindo os delegados de polícia como pertencentes a este quadro de servidores. Por este motivo, segundo texto publicado no Portal da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL (2009), o projeto de lei recebeu algumas críticas nesta fase de proposição, em audiência pública realizada pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados. Os críticos da matéria apontavam que ela feria a Constituição Federal ao atribuir à polícia judiciária, pertencente ao Poder Executivo, tarefas do Judiciário, sendo alterados por via ordinária, em vez de PEC (Projeto de emenda), papéis constitucionalmente previstos.   O artigo 144 da Constituição atribui à polícia judiciária a função de apurar as infrações, e o projeto em análise conferia uma atribuição completamente afastada dessa previsão. “Além desse, outro óbice é a própria estrutura do juizado, que inclui juízes togados ou togados e leigos”, explicou na Audiência pública acima referida o promotor de Justiça do estado do Rio de Janeiro, Leonardo Araújo Marques. Aceitando as críticas pertinentes desta audiência, os defensores do projeto encontraram, com a ajuda da OAB, uma solução que realmente parece ser juridicamente mais acertada. O relator da matéria, Deputado João Campos, decidiu emendar o Projeto de Lei, acatando a proposta defendida pelo secretário-geral-adjunto do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Alberto Zacharias Toron, que dispõe que a Lei dos Juizados Especiais n° 9.099/95, não impede a atuação de delegados como conciliadores nas infrações menores. Conforme explicou, essa lei define os conciliadores como auxiliares da Justiça, recrutados preferencialmente entre bacharéis em Direito. A idéia sensata, portanto, é deixar bem claro no Projeto a forma de atuação dos delegados como conciliadores, não alterando, nem restringindo nada da atual composição dos Juizados Especiais, apenas ampliando o rol de legitimados para a composição dos danos, abrangendo, ao lado dos conciliadores e leigos, os delegados. Garante-se, assim, o objetivo do autor do projeto de agilizar a solução das pequenas infrações, e ao mesmo tempo preserva todas as disposições legais e constitucionais existentes, pois não altera a estrutura dos Juizados Especiais, nem tão pouco insere os delegados de polícia nos quadros do Poder Judiciário. Com esta emenda ao Projeto originalmente proposto não seria mais necessária a alteração do artigo 60 e seus parágrafos, objeto das críticas recebidas, passando apenas a alterar os artigos 69, 73 e 74 da Lei n° 9.099/95. Desta feita, o artigo 69 após a alteração ficaria assim redigido: “Art. 69 – A autoridade policial, após tomar conhecimento da ocorrência, lavrará termo circunstanciado sobre os fatos e tentará a composição do conflito decorrente dos crimes de menor potencial ofensivo. § 1º – Na hipótese de restar infrutífera a tentativa de composição preliminar, o delegado de polícia encaminhará ao Juizado o termo circunstanciado elaborado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. § 2º – Ao autor do fato que, após a lavratura do termo e a tentativa de composição do conflito, for encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.” Nota-se que seria acrescentada uma etapa preliminar na atuação hoje concedida aos delegados, que seria a tentativa da conciliação, a ser realizada antes de encaminhar o Termo circunstanciado aos Juizados Especiais e requisitar os exames periciais necessários. Caso alcançassem o acordo, os delegados substituiriam o Termo de ocorrência e os exames eventualmente necessários, por um simples Termo de Composição Preliminar (ver anexo B), enviando-o para análise e posterior homologação da autoridade judicial, sempre ouvindo o representante do Parquet. Já que a legislação dos Juizados Especiais (rito sumaríssimo) permite hoje em dia que o acordo entre as partes, composição dos danos, seja realizada por conciliadores, pessoas que, conforme já explanado, não possuem obrigatoriamente conhecimento jurídico, muito mais permitiria, com uma eventual alteração do seu texto, que os delegados, bacharéis em Direito e com atuação direta com os crimes e com a população, pudessem também realizar esta fase pré-processual. Resta evidenciar, no mesmo sentido, que a tentativa de conciliação é um ato pré-processual, isto é, vem antes mesmo de haver autor e réu, já que o processo ainda não foi sequer iniciado. Trata-se, portanto, de um ato que possui natureza muito mais administrativa do que jurisdicional. Por este motivo, não haveria transgressão das normas constitucionais que garantem a independência dos Poderes, caso fosse realizada pelo Poder Executivo (delegados de polícia) esta primeira tentativa de acordo, pois a mesma só ganharia força jurídica com a conseqüente análise e homologação do Poder Judiciário (detentor exclusivo do poder jurisdicional). Existiria apenas, repita-se, uma contribuição ou ajuda entre os poderes, ambos imbuídos do mesmo objetivo, qual seja, a paz social conquistada através da pacificação e solução amigável dos conflitos. No que se refere à viabilidade financeira desta mudança legislativa, tem-se que a mesma também se verifica facilmente, tendo em vista que os recursos materiais e humanos necessários já estão, em boa parte, disponíveis. Os materiais seriam os locais para realização destas conciliações, ou seja, as delegacias, que embora não possuam ainda uma estrutura satisfatória, existem em praticamente todas as cidades do país. Necessitariam, portanto, inevitavelmente, de uma melhoria estrutural dos seus prédios, garantindo ambientes minimamente agradáveis para possibilitar a boa conversa e o acordo. Os recursos humanos seriam os delegados, que passariam a atuar também como conciliadores, já que em grande parte dos delitos de menor potencial ofensivo ocorridos, a população o procura para registrar um Boletim de Ocorrência (BO) ou mesmo realizar uma notícia crime ou representação contra o acusado. Seria o delegado, portanto, nas palavras do deputado Regis de Oliveira, autor do projeto de lei, “um mediador nato de conflitos”, pela sua própria atuação diária junto à comunidade. Segundo o desembargador Nelson Calandra, Presidente da Associação Paulista de Magistrados, em texto publicado pela jornalista Fabiana Schiavon (2009) da Revista eletrônica Consultor Jurídico: “os juízes estão receptivos à idéia. Os delegados só precisarão se empenhar no texto do relatório, retratando bem os fatos firmados. Eles estão devidamente preparados para a função, já que vivenciam casos todos os dias”. Vislumbra-se, pelo exposto, que o projeto se mostra acessível de ser implantado rapidamente, necessitando de algumas pontuais mudanças na lei, nas estruturas das delegacias, bem como no aperfeiçoamento dos profissionais delegados, que passariam por cursos de capacitação na prática conciliatória. Sua implementação, tendo em vista a importância social da mudança, bem como os resultados que podem ser alcançados, trazendo respostas mais rápidas e efetivas da Justiça criminal à população, possui um baixo custo econômico, sendo, portanto, viável também sob este ângulo de observação. 5.3 Importância social da mudança A importância social da mudança na Lei n° 9.099/95, objetivando ampliar o rol de legitimados a efetivar a prática conciliatória, conforme já destacamos, contrasta fortemente com a simplicidade de sua concretização. A sociedade, assustada com a crescente onda da violência e da criminalidade, cada vez mais clama por justiça. Esta, por sua vez, deve ser cada vez mais célere e efetiva, acompanhando e punindo os infratores na proporção exata da lei. Alguns crimes, no entanto, por diversos fatores de causalidade, acabam ficando sem punição, passando para a sociedade um sentimento de injustiça e fracasso do Poder Judiciário. Um destes fatores que contribuem para esta sensação é a extinção da punibilidade pelo instituto da prescrição, que decorre justamente pela inércia de atuação do Estado frente aos delitos, deixando transcorrer o tempo legalmente previsto para punição do acusado. A prescrição está prevista no artigo 107 do Código Penal, e nas palavras de Rogério Greco (2006, p. 781): “É uma das situações em que o Estado, em virtude do decurso de certo espaço de tempo, perde o seu jus puniendi. Embora exista alguma controvérsia doutrinária, como frisamos anteriormente, entendemos que com a prescrição existe uma perda do direito de punir, e não uma renúncia ao direito de punir por parte do Estado. O Estado pode renunciar ao seu exclusivo jus puniendi quando concede, por exemplo, a anistia, a graça e o indulto. Nessas hipóteses, embora podendo levar a efeito o seu direito de punir, o Estado dele abre mão, ao contrário do que ocorre com a prescrição, quando, mesmo querendo, não poderá exercê-lo”.   Como a prescrição tem por parâmetro a pena cominada ou aplicada, muitas das vezes ela acaba ocorrendo nos crimes ditos de menor potencial ofensivo, já que estes possuem sanções que não excedem os dois anos. Desta sorte, quando tais delitos não são processados em tempo razoável, acabam escoando na prescrição, extinguindo a punibilidade do agente infrator. Uma das formas de interromper o prazo prescricional, segundo o próprio Código Penal aduz em seu artigo 117, é o recebimento da denúncia ou da queixa, o que ocorre, no caso dos crimes de menor potencial ofensivo, apenas depois de ser realizada a audiência de conciliação. Como hoje em dia nem sempre estas audiências são realizadas rapidamente, sobretudo nas cidades que não possuem uma estrutura de Juizado Especial criada, estes delitos acabam sendo deixados de lado, ficando um longo período sem andamento processual. Com a aprovação do Projeto de Lei nº 5.117/09, o recebimento da denúncia ou da queixa tenderia a ocorrer em um lapso temporal muito mais reduzido, pois haveria uma ampliação do rol de legitimados para tentar a conciliação, agilizando esta fase pré-processual e, por conseqüência, acelerando o próprio processo (caso este necessite ser iniciado com o recebimento da peça acusatória, interrompendo a prescrição). Outro ponto social importante da mudança proposta é que ela segue uma perspectiva atual de privilegiar a vítima no processo penal, sendo este um dos objetivos principais de criação dos Juizados Especiais Criminais, com a reparação imediata dos danos sofridos. Fazendo uma interpretação sistemática da Lei nº 9.099/95, observa-se que ela sempre que possível, ao optar pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivou a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade. Evidencia-se, pois, que a reparação dos danos sofridos (composição civil) deve ser sempre priorizada e ocorrer de forma célere, o que efetivamente será buscada pela alteração defendida. Por derradeiro, ressalte-se que o Projeto de Lei nº 5.117/09, além de ir ao encontro de todos os princípios informadores dos Juizados Especiais Criminais, também contempla a filosofia atual existente no Brasil da prática de Polícia Comunitária, tão defendida pela política nacional de segurança pública do Governo Federal. Conforme texto extraído do Portal do Ministério da Justiça (2007): “Polícia Comunitária é uma filosofia e uma estratégia organizacional fundamentadas, principalmente, numa parceria entre a população e as instituições de segurança pública e defesa social. Baseia-se na premissa de que tanto as instituições estatais, quanto à população local, devem trabalhar juntas para identificar, priorizar e resolver problemas que afetam a segurança pública, tais como o crime, o medo do crime, a exclusão e a desigualdade social que acentuam os problemas relativos à criminalidade e dificultam o propósito de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos”. (grifos nosso) A idéia, portanto, é melhorar a qualidade de vida do cidadão, através de políticas voltadas não apenas ao combate da violência pela violência, mas, sobretudo, pela utilização do diálogo, da parceria e da organização. Isto é alcançado através de dois pilares básicos na atuação das instituições responsáveis: i) a identificação e resolução de problemas de defesa social com a participação da comunidade; ii) a prevenção criminal. Segue salientando o Portal do Ministério da Justiça que esses pilares gravitam em torno de um elemento central, que é a parceria com a comunidade, retroalimentando todo o processo para melhorar a qualidade de vida da própria comunidade. Outro ponto relevante e defendido na filosofia da Polícia Comunitária, que é abraçado também no Projeto de Lei pretendido, é a busca constante pela redução dos danos sofridos pela vítima como forma de atuação preventiva e pacífica nos conflitos. Neste sentido, segue o texto afirmando: “As estratégias da filosofia de polícia comunitária têm um caráter preferencialmente preventivo. Mas, além disso, estas estratégias visam não apenas reduzir o número de crimes, mas também reduzir o dano da vítima e da comunidade e modificar os fatores ambientais e comportamentais”. (grifos nossos) Fica claro pelo exposto que há uma grande aproximação da prática de polícia comunitária com os anseios atuais da sociedade, que necessita e clama cada vez mais por segurança pública e justiça, sendo uma das armas para se combater este mal que vem assolando o Brasil. Por outro lado, o Projeto de alteração da Lei nº 9.099/95, contempla também os ideais de atuação do Poder Judiciário, mais especificamente através dos Juizados Especiais, ao contribuir com sua celeridade e aperfeiçoamento, procurando uma atuação harmoniosa e cooperativa entre os Poderes da República, todos congraçados em um mesmo objetivo de prestação jurisdicional mais efetiva. Como bem leciona o professor Tourinho Filho (2000, p.81): “Se a Justiça emana do povo, nada mais salutar que entregar-lhe essa parcela de poder. E, as vezes, as pessoas do povo, desconhecedoras do texto legal, têm mais habilidade para encontrar uma solução ou saída para determinadas situações. O Juiz, sempre preso à tessitura da lei, já não teria tanta liberdade. Ou para usar o jargão popular: faltar-lhe-ia ‘ jogo de cintura’… Assim, teremos um sistema político bem participativo, permitindo-se aos cidadãos integrar-se direta e pessoalmente em um dos três poderes em que se triparte a soberania nacional. A participação popular na administração da Justiça é por demais benéfica, pois o estranho às lides forenses tem muito mais liberdade de agir,. De sugerir composição, o que, muitas vezes, faltaria àquele acostumado a seguir os ditames da lei”. Observa-se, desta forma, que a aprovação da mudança legislativa pretendida, trará diversos e consideráveis avanços sociais, envolvendo uma nova postura cultural e mentalidade de resolução de conflitos, baseada na simplicidade, no acordo e no bom senso, com atuação direta de todos os Poderes objetivando o mesmo fim, o que certamente contribuirá sobremaneira na melhoria de vida da população brasileira. Considerações finais No capítulo inicial, o estudo propôs demonstrar que a Lei Federal nº 9.099/95 inovou o sistema jurídico brasileiro ao trazer diversos princípios e institutos que visavam dar celeridade e simplicidade aos feitos judiciais, dando eficácia plena ao dispositivo contido no artigo 98, I, da Constituição Federal. Através dos princípios da oralidade, concentração dos atos, economia processual, imediação, identidade física do juiz, dentre outros, os Juizados Especiais procuraram dar um tratamento jurídico diferenciado a estes feitos, alcançando resultados expressivos e ganhando a confiança da sociedade. No que se refere mais especificamente ao âmbito criminal, uma das principais alterações conquistadas pela Lei nº 9.099/95 foi a busca pela conciliação (composição dos danos) como forma de resolver já imediatamente o conflito, extinguindo a punibilidade nos casos de crimes de ação privada e pública condicionada. Assim, uma vez ocorrido um delito cuja pena máxima em abstrato seja de até dois anos (crimes de menor potencial ofensivo), nasce para o Estado um “jus puniendi mitigado”, uma vez que o rito sumaríssimo, ao qual o infrator será submetido, trará diversas formas de escapar do processo penal, como a composição dos danos, a transação e o sursis processual. Nota-se, assim, que o principal objetivo dos Juizados Especiais Criminais não é a prisão do acusado, mas sim a resolução do conflito, procurando uma forma de satisfazer o ofendido e, ao mesmo tempo, não deixar aquela infração impune, já que isso poderia levar a uma reincidência generalizada. Neste contexto, um dos principais atos será a composição dos danos cíveis prevista nos artigos 73 e 74 da legislação referida, que poderá ser feita por um juiz conciliador, sendo este considerado um auxiliar da Justiça, não necessitando obrigatoriamente ter formação jurídica. Alcançada a conciliação o processo não é sequer inicializado, pois a homologação pelo magistrado levará à extinção da punibilidade, sendo esta considerada sentença irrecorrível. Demonstra-se, assim, a celeridade e economia que esta fase prévia poderá trazer à justiça criminal e às partes. Contudo, algumas comarcas, sobretudo localizadas em cidades menores, ainda não possuem uma estrutura de Juizados Especiais montada, o que dificulta sobremaneira a aplicação destes institutos, já que tudo fica sob responsabilidade do juiz togado, geralmente já sobrecarregado de processos ordinários e complexos a serem resolvidos. É neste sentido que cresce de importância a aprovação do Projeto de Lei nº 5.117/09, em tramitação no Congresso Nacional, que almeja ampliar o rol de legitimados competentes para realizar esta fase pré-processual da conciliação, inserindo os delegados de polícia, posto que poderá gerar um crescimento no número de processos solucionados previamente. No que se refere à viabilidade jurídica da mudança, ficou claro no decorrer do trabalho que ela está presente, na medida em que a alteração proposta não irá invadir a competência constitucional de nenhum dos Poderes, pois o que se pretende é apenas colocar os delegados como mais um instrumento de apoio, ou seja, um auxiliar dos JECRIM´s, e não um membro do Poder Judiciário. O delegado, portanto, terá sua atuação de conciliador totalmente submissa à análise dos magistrados, até porque exclusivamente este poderá homologar o acordo e solucionar efetivamente a lide (poder jurisdicional), ou mesmo decidir desconsiderar toda aquela conciliação tentada pela autoridade policial e realizar uma nova. Os ganhos sociais também são incontáveis, vez que teremos uma maior efetividade dos institutos contidos na Lei Federal nº 9.099/95, sobretudo a conciliação, ensejando à população que hoje não tem acesso aos JECRIM´s, uma oportunidade de resolver seus conflitos mais rapidamente. Por outro lado, a alteração irá, por via reflexa, aproximar à polícia da comunidade, seguindo as diretrizes da filosofia chamada de polícia comunitária, incentivada pelo Governo Federal através do Ministério da Justiça como forma de combater a criminalidade numa parceria entre a população e as instituições oficiais. Portanto, o objetivo principal do trabalho é demonstrar que os delegados de polícia, como operadores do Direito que já o são, teriam condições de participar do procedimento criminal sumaríssimo, atuando como conciliadores na fase pré-processual, e dando sua parcela de contribuição na construção de uma Justiça mais célere e eficaz. Os resultados obtidos com a presente pesquisa foram inestimáveis para ampliação do conhecimento jurídico e social, uma vez que pôde-se constatar os avanços que a Lei Federal nº 9.099/95 trouxe ao sistema jurídico brasileiro, mas também os fatores que ainda precisam ser melhorados, como, por exemplo, o aumento da acessibilidade, já que muitas cidades não possuem esta estrutura à disposição. Este fato leva-nos a acreditar que é possível uma continuidade na pesquisa para posteriores trabalhos, sobretudo se o Projeto de Lei nº 5.117/09, abordado neste estudo, for aprovado e transformado em lei, podendo, desta feita, ser analisado os seus reais e práticos resultados. Por fim, almeja-se ter sido alcançado os objetivos previstos inicialmente, demonstrando que existe pertinência na aprovação deste Projeto, modificando a Lei nº 9.099/95, contribuindo na melhoria constante do ordenamento jurídico brasileiro, através de ações harmônicas e simplificadas dos Poderes da República, imbuídos com o mesmo fim de prestigiar e melhorar a qualidade de vida da sociedade que tanto clama por justiça.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-72/utilizacao-dos-delegados-de-policia-como-instrumento-de-conciliacao-do-juizado-especial-criminal/
Juizados Especiais Criminais e a necessidade de exame de insanidade mental do acusado
O presente artigo busca expor a problemática que ocorre no cotidiano forense dos Juizados Especiais Criminais, quando há a necessidade de realização de perícia/exame de insanidade mental em um acusado/noticiado, no intuito de fornecer elementos para a formação de opinião dos operadores do direito submetidos a casos práticos envolvendo a matéria.  Os Juizados Criminais, regulamentados pela Lei Federal nº. 9.099/95, são regidos pelos princípios da celeridade processual e da simplicidade, que não se coadunam com o procedimento necessário para a realização do incidente de insanidade mental.  Serão abordados os princípios que regem os Juizados Criminais, as hipóteses de complexidade que determinam o deslocamento de sua competência para a Justiça Criminal Comum, bem como o procedimento envolvendo o incidente de exame de insanidade mental. Ultrapassados os objetivos preliminares, serão analisados os principais posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca da competência dos Juizados Criminais quando sobrevem a necessidade de realização do referido incidente.
Direito Processual Penal
1. INTRODUÇÃO A Constituição Federal da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, em seu artigo 98, inciso I, determinou a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Visando a efetividade de tal norma constitucional, foi promulgada a Lei Federal n. 9.099/95, que traçou como princípios norteadores dos Juizados a simplicidade e a celeridade processual, dentre outros. No cotidiano forense dos Juizados Especiais Criminais, há hipóteses em que se torna imperiosa a realização de perícia visando conhecer a imputabilidade do noticiado / réu. Neste sentido, surge a problemática: o âmbito célere dos Juizados Criminais permitiria a realização do incidente de exame de insanidade mental, procedimento este considerado como demorado e complexo, que determina a suspensão do processo, a necessidade de nomeação de curador e o encaminhamento do acusado à equipe psiquiátrica responsável? 2.  PRINCÍPIOS NORTEADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. Todo o sistema normativo possui como seu alicerce, uma base principiológica. O professor Celso Antônio Bandeira de Mello[1] apresenta, brilhantemente, o conceito de princípio: “é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”. (grifos nossos). Os princípios constituem valiosíssimos suportes para dirimir eventuais dúvidas do aplicador do Direito, quanto à interpretação de determinados dispositivos que permitam mais de um entendimento. Os Juizados Especiais Criminais são regidos pelos princípios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, a teor do que dispõe o artigo 62, da Lei Federal n.º 9.099/95, in verbis: “Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.” (grifos nossos). Referidos princípios são mandamentos nucleares / basilares dos Juizados Especiais Criminais. Note-se, que a redação do artigo supramencionado omitiu o princípio da simplicidade, como norteador dos Juizados Criminais. Contudo, o artigo 2º, da Lei Federal n.º 9.099/95[2], indica, ainda, como princípio dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais a simplicidade. Conforme se depreende do artigo 77, parágrafo 2º, da Lei Federal n.º 9.099/95, não compete aos Juizados Especiais Criminais conciliar, processar, julgar ou executar causas de maior complexidade, devendo o juiz proceder na forma do que dispõe o artigo 66, parágrafo único (remeter os autos à Vara Criminal Comum, declinando de sua competência). Senão, vejamos as regras insculpidas nos mencionados artigos: “Art. 77. omissis § 2º Se a complexidade ou circunstâncias do caso não permitirem a formulação da denúncia, o Ministério Público poderá requerer ao Juiz o encaminhamento das peças existentes, na forma do parágrafo único do art. 66 desta Lei. (grifos nossos) Art. 66. A citação será pessoal e far-se-á no próprio Juizado, sempre que possível, ou por mandado. Parágrafo único. Não encontrado o acusado para ser citado, o Juiz encaminhará as peças existentes ao Juízo comum para adoção do procedimento previsto em lei.” (grifos nossos). De tal sorte, não cabendo aos Juizados Criminais o processamento de causas que apresentem maior complexidade, o princípio da simplicidade também se faz presente nos Juizados Especiais Criminais, em que pese a omissão da redação dada pelo artigo 62. 3.  A COMPLEXIDADE NOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS Como já mencionado no presente trabalho, os Juizados Criminais adotam os princípios da celeridade e da simplicidade em seu rito processual. De tal sorte, havendo complexidade no desenvolvimento de seu procedimento, o magistrado atuante perante o JECrim, observando o disposto no artigo 77, parágrafo 2º, da Lei 9.099/95, deverá, declinando de sua competência para apreciação dos autos, remetê-los à Justiça Comum. Acerca do tema complexidade, importante é a lição de Bitencourt[3]: “Pela referência vaga do texto legal, a complexidade pode decorrer da forma da execução do fato, da quantidade de pessoas envolvidas, como os arrastões, linchamentos, invasões, etc., ou simplesmente da dificuldade probatória, ou seja, quando demandar maiores investigações, tratar-se de autoria ignorada ou incerta, exigir prova pericial etc.” Tal complexidade pode se dar, por exemplo, nos seguintes casos: a) conexão entre crimes; b) concurso de agentes; c) perícia demorada; d) exame de insanidade do autor dos fatos. Cumpre-nos ressaltar que, o posterior afastamento da complexidade da causa, não implica no restabelecimento da competência dos Juizados Especiais Criminais. 4.  O EXAME DE INSANIDADE MENTAL. No que tange ao exame de insanidade mental, este é conceituado pela doutrina como medida incidental, instaurada para apurar a higidez mental do acusado, averiguando-se sua inimputabilidade ou semi-imputabilidade, a teor do que dispõe o artigo 26, do Código Penal[4]. Ora, a instauração de tal incidente justifica-se, tendo-se em vista que, no ordenamento jurídico brasileiro, não é possível a condenação e a execução de pena contra um inimputável (para os inimputáveis, o correto seria a sentença absolutória imprópria, que impõe medida de segurança). Neste sentido, a valiosíssima lição do Professor Nucci[5]: “(…) O inimputável é capaz de cometer um injusto penal, isto é, algo não permitido pelo ordenamento (fato típico e antijurídico), mas não merece ser socialmente reprovado, por ausência de capacidade de entendimento do ilícito ou de determinação de agir conforme esse entendimento. Cabe-lhe, ao invés da pena, típica sanção penal aplicável aos criminosos, a medida de segurança, espécie de sanção voltada à cura e ao tratamento. O semi-imputável, por sua vez, por ter entendimento parcial do injusto cometido, preenche os requisitos para sofrer juízo de culpabilidade, merecendo, pois, ser condenado e receber pena, apesar de reduzida. Excepcionalmente, pode também, como já afirmado, receber medida de segurança, se for melhor para a sua recuperação”. (grifos nossos). A instauração do procedimento incidental ora dissertado pode ser requerida, de ofício, pelo magistrado, ou a requerimento do membro do Parquet, defensor, curador, ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado. Referido exame poderá ser ordenado, ainda, em sede de inquérito policial, por meio de representação da autoridade policial ao juiz competente. Saliente-se que, em todos os casos mencionados, é o magistrado quem defere o pleito da instauração do incidente. Em fase recursal, não se faz cabível a instauração do mencionado incidente. No entanto, insta-nos ressalvar que, para a instauração da medida incidental, devem existir elementos no tocante à dúvida acerca da imputabilidade do acusado (de sua capacidade de entender e autodeterminar-se pela regra penal). É dizer que, não basta um simples requerimento da parte suscitando a necessidade do teste de insanidade. Sobre o tema, trago à baila, lição de Guilherme de Souza Nucci[6]: “(…) é preciso que a dúvida a respeito da insanidade mental do acusado ou indiciado seja razoável, demonstrativa de efetivo comprometimento da capacidade de entender o ilícito ou determinar-se conforme esse entendimento. Crimes graves, réus reincidentes ou com antecedentes, ausência de motivo para o cometimento da infração, narrativas genéricas de testemunhas sobre a insanidade do réu, entre outras situações correlatas, não são motivos suficientes para a instauração do incidente”. (grifos nossos). De tal sorte, imprescindível demonstrar que o acusado possui ou possuía, à época dos fatos, limitação total ou parcial da sua capacidade de discernimento. Neste diapasão, colaciono a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná: “CORREIÇÃO PARCIAL – Homicídio qualificado – Indeferimento de incidente de insanidade mental – Admissibilidade, vez que inexiste dúvida acerca da integridade mental do acusado – Inteligência do artigo 149 do Código de Processo Penal – Postulação indeferida.”[7] (grifos nossos).  “CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. ROUBO QUALIFICADO PELO EMPREGO DE ARMA DE FOGO. CONDENAÇÃO. RECURSO DO RÉU. PLEITO DE NULIDADE POR CERCEAMENTO DE DEFESA DEVIDO O INDEFERIMENTO DO INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL. NEGADO. Necessidade da dúvida razoável quanto à higidez mental do acusado. Requerimento absolutório por falta de prova da autoria. Improcedente. Autoria e materialidade devidamente comprovadas no bojo da instrução criminal. Pena de multa corretamente aplicada e em conformidade com a legislação penal. Recurso improvido”.[8] (grifos nossos). De idêntico raciocínio é o entendimento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça: “HABEAS CORPUS – PROCESSUAL PENAL – EXAME DE INSANIDADE MENTAL – INDEFERIMENTO – INOCORRÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. O exame de insanidade mental, que visa à demonstração da higidez psíquica daquele que se diz perturbado mental, tem sua realização condicionada, no caso concreto, à discricionariedade do juiz do processo, que estabelece um juízo de necessidade da realização, ou não, do referido exame. – In casu, além de inexistirem indícios geradores de dúvida sobre a integridade mental do réu ao tempo do fato, a fase recursal não é o momento adequado para se instaurar tal incidente. – Ordem denegada”.[9] (grifos nossos). 5.  INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL NOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. DESLOCAMENTO DA COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA COMPLEXIDADE. Realizada uma breve abordagem acerca da medida incidental de insanidade mental do acusado, adentramos novamente ao âmbito célere dos Juizados Criminais com o seguinte questionamento: é possível a instauração do referido incidente nos Juizados Especiais Criminais? A doutrina e a jurisprudência majoritárias preceituam que não há como processar provável inimputável perante o Juizado Criminal, por absoluta incompatibilidade com os princípios ditados pela Lei Federal n.º 9.099/95. Ora, a instauração do exame de insanidade mental não se coaduna com os princípios da informalidade, celeridade e simplicidade, norteadores dos procedimentos em curso perante o Juizado Especial, aos quais se refere o artigo 62, da Lei n.º 9.099/95. O referido incidente irradia imediatas consequências como: a suspensão do processo, a necessidade de nomeação de curador e o encaminhamento do acusado à equipe expert responsável. Trata-se de procedimento demorado e complexo, tendo-se em vista que possui como objetivo, atestar se o noticiado/réu está com suas faculdades mentais dentro da normalidade. Desta feita, a necessidade de realização de perícia complexa, conforme pacífico entendimento doutrinário, afasta/desloca a competência do Juizado para conhecimento dos fatos, independentemente da pena aplicada ao delito, visto que torna a questão incompatível com a natureza dos casos afetos ao JECrim, de natureza mais célere, cujo o procedimento previsto não admite maiores delongas em perícias ou diligências, ou até mesmo aplicação e acompanhamento de eventuais medidas de segurança. Veja-se, que assim dispõe o artigo 77, § 2º, da Lei Federal n.º 9.099/95: “Art. 77, § 2º – Se a complexidade ou circunstâncias do caso não permitirem a formulação da denúncia, o Ministério Público poderá requerer ao juiz o encaminhamento das peças existentes, na forma do parágrafo único do artigo 66 desta Lei.” (grifos nossos). Neste sentido, colaciono os ensinamentos da doutrina processualista penal pátria, que subsidiam, de forma plena, a impossibilidade de realização de incidente de insanidade mental perante os Juizados: “(…) Serão eventualmente os casos em que se exige perícia complexa e demorada, de delitos de trânsito que envolvam vários veículos e diversas pessoas, de concurso de vários agentes, alguns não prontamente identificados, de concurso de crimes, de necessidade de exame de insanidade mental do agente, de diversidade de vítimas, de crimes praticados em tempo e lugares diversos etc. Nessas hipóteses, por determinação expressa da lei, deve ele requerer ao juiz que se faça a remessa dos autos ao juízo comum, na forma do art. 66, parágrafo único. Neste, será dada vista ao Ministério Público que oficie perante o juízo comum para que proceda como de direito.”[10] (grifos nossos) “(…) Complexidade do objeto da acusação (§ 2º). Pode ocorrer que o fato, pela sua complexidade (exs: exigência de perícia complicada, exame de insanidade mental do autor do fato etc.) ou circunstâncias (exs: concurso de elevado número de pessoas, diversas vítimas, crimes praticados em tempo e lugares diversos etc.) requeira melhor investigação e prova. Nesse caso, o Ministério Público requererá o encaminhamento do feito ao Juízo Comum, nos termos do art. 66, parágrafo único, desta Lei.”[11] (grifos nossos) “Como já foi observado, o procedimento sumaríssimo da Lei 9.099/95 somente é aplicável às hipóteses em que as circunstâncias do caso permitirem o imediato oferecimento da denúncia oral. Havendo complexidade ou necessidade de novas diligências, as peças devem ser encaminhadas ao juízo comum competente para a espécie, para adoção do rito previsto no CPP. A expressão poderá utilizada pelo texto em questão não significa que se trate de simples faculdade do MP, mas de imperativo legal: ou há oferecimento de denúncia oral ou, não sendo isso possível, o encaminhamento se fará automaticamente”.[12] (grifos nossos) Como se não bastasse a pacífica posição doutrinária a respeito da perda de competência pelos Juizados Criminais, em função da necessidade de realização de incidente de insanidade mental, sobre o assunto, merecem destaque os seguintes precedentes jurisprudenciais: “CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. Mostrando-se indispensável a realização de exame de insanidade mental do réu, a competência para a procedimentalização da causa é do Juízo Comum, porquanto o incidente em tela não se coaduna com os princípios que regem o juizado Especial Criminal (oralidade, informalidade, economia e celeridade processual). CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. IMPROCEDENTE.”[13] (grifos nossos). “CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PERTURBAÇÃO DA TRANQUILIDADE. INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO COMUM. PRECEDENTES DA CORTE. Sendo imprescindível para o deslinde do feito o exame de sanidade mental do acusado, desloca-se a competência para o juízo comum, uma vez que o processo não estará mais subordinado aos critérios de oralidade, informalidade e celeridade, que são princípios norteadores do Juizado Especial Criminal, conforme art. 62, da Lei n.º 9.099/95. CONFLITO DE COMPETÊNCIA JULGADO IMPROCEDENTE.”[14] (grifos nossos) “CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL E JUIZADO COMUM. IMPUTADA PRÁTICA DE AMEAÇA E VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. NECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL, TORNANDO A CAUSA DEMORADA E COMPLEXA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. Os juizados especiais criminais caracterizam-se pela oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, como dispõe o art. 62 da Lei n° 9.099/95, objetivando, continua referido artigo sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade. A tais princípios, acrescenta-se, além de outros, o da concentração, como decorre do art. 81 e seus parágrafos da mesma Lei n° 9.099/95. Daí, que a impossibilidade de localizar o acusado (art. 66, parág. único) ou a complexidade do caso (art. 77, § 2°) devolve a competência para o processo e julgamento da causa à justiça comum, onde seguirá o rito procedimental adequado. No caso de necessidade de instauração de incidente de insanidade mental, procedimento complexo e demorado, com a suspensão do processo, com a obrigatoriedade de nomeação de curador ao réu e com seu encaminhamento ao Instituto Psiquiátrico Forense, não pode a ação penal ser instaurada ou ter continuidade no juizado especial.”[15] (grifos nossos). “CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUIZADO ESPECIAL E JUÍZO COMUM. INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL. COMPETÊNCIA DESLOCADA AO JUÍZO COMUM, DIANTE DA COMPLEXIDADE DO EXAME. AFRONTA AOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO JUIZADO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO PARA AS PARTES. CONFLITO NEGATIVO PROCEDENTE. 1. A necessidade de instauração de incidente de insanidade mental do acusado desloca a competência do Juizado Especial para o Juízo Comum, pois a complexidade do exame vai de encontro aos princípios da oralidade, informalidade, economia e celeridade processual, esculpidos no art. 62, da Lei n.º 9.099/95. 2. A remessa dos autos ao Juízo Comum, não acarretará qualquer prejuízo às partes, que terão maior amplitude no exercício de suas faculdades processuais.”[16] (grifos nossos). De idêntico raciocínio, é o entendimento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça. “CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL PENAL. REMESSA DOS AUTOS DO JUIZADO ESPECIAL PARA A JUSTIÇA COMUM, DIANTE DA COMPLEXIDADE DA CAUSA, APÓS OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. 1. Ação penal instaurada perante Juizado Especial Criminal com posterior remessa dos autos ao Juízo Comum pela necessidade de realização de procedimento de maior complexidade. 2. Embora a Lei nº 9.099/95 estabeleça que a complexidade do feito deve ser considerada antes do oferecimento da denúncia, havendo complexidade da causa incompatível com o rito dos Juizados Especiais, ainda assim deve ser a competência para processar e julgar o feito deslocada para o Juízo Comum, sob pena de não se alcançar a finalidade e os princípios norteadores da lei que rege os Juizados Especiais. 3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 4ª Vara Criminal de Juiz de Fora – MG, o suscitante”.[17] De tal sorte, havendo necessidade de instauração de incidente de insanidade mental em Termo Circunstanciado ou Ação Penal que esteja em trâmite perante o JECrim, imperiosa é a declinação da competência do magistrado, e a consequente remessa à Justiça Criminal Comum, para o devido processamento e julgamento. 6. CONCLUSÃO De fato, os Juizados Especiais Criminais possuem competência absoluta para conciliar, processar, julgar e executar as infrações penais de menor potencial ofensivo (contravenções independentemente de pena, bem como crimes cuja reprimenda máxima cominada abstratamente seja igual ou inferior a 2 anos, cumulados ou não com multa), excetuando-se as hipóteses em que há o deslocamento da competência. Tal deslocamento ocorre, por exemplo, nos casos em que o réu não é encontrado para ser citado, nos casos em que há complexidade (necessidade de exame de insanidade mental, grande número de acusados), conexão e continência de infrações de menor potencial ofensivo com delitos comuns. Analisando as posições doutrinárias e jurisprudenciais supramencionadas, depreende-se que o incidente de insanidade mental é procedimento deveras complexo e demorado, que não se coaduna com os princípios norteadores dos Juizados. Assim, havendo necessidade de realização de exame de insanidade mental de noticiado/denunciado nos Juizados Especiais Criminais, forçosa é a aplicação do artigo 77, parágrafo 2, da Lei Federal n. 9.099/95, devendo o membro do Parquet requerer ao magistrado o declínio da competência, em virtude da complexidade, e a consequente remessa dos autos a Vara Criminal Comum.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-72/juizados-especiais-criminais-e-a-necessidade-de-exame-de-insanidade-mental-do-acusado/
Leis nos 12.015/09 e 12.033/09 e seus reflexos na titularidade da ação penal
Com o presente trabalho, que não deixa de ser acadêmico, apresentamos pontos de partida para muitas das dúvidas sobre o direito intertemporal pela aplicação da nova sistemática penal e processual penal, trazida à baila pelas leis nos 12.015/09 e 12.033/09, tendo em vista que as novas legislações não trazem capítulo especial sobre as regras de transição como, por exemplo, expressamente determinado pela Lei nº. 9.099/95. Assim, analisamos os efeitos das normas, para então concluirmos se deveriam ou não terem incidência retroativa, com observância das consequências decorrente desse reconhecimento, além de pautarmos essa interpretação, não em questões de índole pessoal, mas no sistema jurídico brasileiro decorrente da ordem constitucional.
Direito Processual Penal
1.LEIS Nos 12.015/09 e 12.033/09 E SEUS REFLEXOS NA TITULARIDADE DA AÇÃO PENAL Este artigo acadêmico trata dos reflexos de direito materiais, quanto à inovação sobre a titularidade da ação penal, inseridos pela vigência das Leis nos. 12.015/2009 e 12.033/2009, esta modificando a ação no crime de injúria racial (art. 140, §3º c/c art. 145, parágrafo único do CP[1]) e aquela alterando também o Código Penal Brasileiro, em especial no que hoje se denomina de crimes contra a dignidade sexual. Sem a pretensão de exaurir o assunto, pretende-se uma análise sistemática do assunto. Na antiga redação do art. 225 do Código Penal, a regra era a ação penal exclusivamente privada para os crimes contra a liberdade sexual e de corrupção de menores. Assim dispunha: “Art. 225 – Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa. § 1º – Procede-se, entretanto, mediante ação pública: I – se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família; II – se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador. § 2º – No caso do nº. I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende de representação.” Com a superveniência da lei federal nº. 12.015/09, em vigor desde 10/08/2009, a qual modificou todo o Título VI da Parte Especial do Código Penal, foi estabelecida nova redação ao art. 225, parágrafo único, para prescrever que: “Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação. Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.” Hoje, quando a vítima for menor de 18 anos ou pessoa vulnerável, a ação penal será pública incondicionada e, nos demais casos, ela será pública condicionada à representação. Vale dizer, anteriormente à vigência desta lei (ou seja, antes de 10/08/2009) a ação era exclusivamente privada, com legitimidade exclusiva da vítima ou de seu representante legal para deflagrar o a persecução penal. Com a novel lei, a ação penal passa a ser pública e, portanto, de titularidade, em regra, do Ministério Público. O mesmo se sucedeu com a lei nº. 12.033/09 de 29 de setembro de 2009, a qual atribuiu ação pública ao crime de injúria racial (art. 145 do CP com redação dada por esta lei, que entrou em vigência no dia 30/09/2009). A problemática é: com o advento das novas leis (12.015/09 e 12.033/09), quanto à fatos anteriores à sua vigência, havendo ação penal ou não, aplica-se ou não a nova lei penal? O Ministério Público assume ou não a titularidade das ações penais, prosseguindo-se com aquelas em curso ou iniciando-as por meio de denúncia? Para elucidar os pontos emblemáticos, deve-se lembrar que normas processuais têm aplicação imediata aos processos que estejam em curso, haja vista que não influenciarão no poder punitivo do Estado, mas sim, vêm a lume somente para ditar procedimentos e regulamentar os atos processuais. Em linhas gerais, são instrumentos de aplicabilidade do direito material, este na maioria das vezes – mas não exclusivamente – prescrito no Código Penal (quando matéria criminal) – assim como, nem toda norma no Código de Processo Penal é norma processual. As normas de direito material, por seu turno, são aquelas que influenciam no poder punitivo do Estado, ou seja, poderão criar, ampliar, reduzir ou extinguir o poder de punir do Estado em relação ao destinatário da norma. Vale dizer, são normas de direito material, independente de onde estejam inseridas (CPP ou CP), aquelas que afetam, de qualquer modo, o jus puniendi do Estado. A decadência (art. 38 do CPP[2]), a perempção (art. 60 CPP), a renúncia do direito de queixa (arts. 49 e 50 do CPP[3]) e o perdão do ofendido (Art. 107, IX, CP[4]) são causas de extinção da punibilidade. Nessa lógica, normas que afastam a aplicação desses institutos, típicos na ação penal privada, com aplicação também aceita pela doutrina e jurisprudência em ação penal pública condicionada à representação[5], têm nítidos efeitos materiais. A decadência ocorre quando o representante do ofendido ou ele próprio deixa de oferecer representação ou queixa crime, no prazo de 6 (seis) meses do conhecimento da autoria do delito. A perempção é fenômeno processual que se dá exclusivamente nos termos do art. 60 do Código de Processo Penal, ou seja, somente nas ações penais exclusivamente privadas – não ocorrendo em ações penais pública – por se tratar de desídia do querelante: “Art. 60. Nos casos em que somente se procede mediante queixa, considerar-se-á perempta a ação penal: I – quando, iniciada esta, o querelante deixar de promover o andamento do processo durante 30 dias seguidos; II – quando, falecendo o querelante, ou sobrevindo sua incapacidade, não comparecer em juízo, para prosseguir no processo, dentro do prazo de 60 (sessenta) dias, qualquer das pessoas a quem couber fazê-lo, ressalvado o disposto no art. 36; III – quando o querelante deixar de comparecer, sem motivo justificado, a qualquer ato do processo a que deva estar presente, ou deixar de formular o pedido de condenação nas alegações finais; IV – quando, sendo o querelante pessoa jurídica, esta se extinguir sem deixar sucessor.” A renúncia do direito de queixa ou representação dar-se-á quando, antes de iniciar a persecução penal, o ofendido declara, expressamente, a vontade de não deflagrar o processo penal. O perdão do ofendido, decorrente do princípio da disponibilidade da ação penal exclusivamente privada, é o ato pelo qual, iniciada a ação penal privada, o ofendido ou seu representante legal desiste do seu prosseguimento seja por qualquer motivo. É uma causa extintiva da punibilidade prevista no Art. 107, V, 2ª figura, do Código Penal[6]. Ressalta-se que esse perdão pode se dar de forma expressa ou tácita, consoante o §1º do art. 106 do Código Penal: “Art. 106 – O perdão, no processo ou fora dele, expresso ou tácito: (…) § 1º – Perdão tácito é o que resulta da prática de ato incompatível com a vontade de prosseguir na ação”. Distingue-se da renúncia, por ser posterior ao início da ação penal, já que esta só será possível antes desse início. Acerca do conteúdo processual ou material de uma lei, Fernando Capez[7], diz que é: “de caráter penal toda norma que criar, ampliar, reduzir ou extinguir a pretensão punitiva estatal, tornando mais intensa ou branda sua satisfação (…) Convém notar que, mesmo no caso de normas que parecem ser processuais e estão previstas na legislação processual, se a conseqüência for a extinção da punibilidade, a sua natureza será penal. Assim, tome-se com exemplo o art. 60, I, do CPP, que prevê a pena de perempção ao querelante que deixar o processo paralisado por 30 dias seguidos. Aparentemente, tudo indica trata-se de regra processual: trata-se de prazo para dar andamento a processo, além do que a perempção é sanção processual. A norma, entretanto, é penal, pois o efeito da perempção consiste na extinção da punibilidade”. Nos dizeres de Luiz Flávio Gomes[8]: “Na hipótese em que ela [norma] afete algum direito fundamental do acusado, pode-se dizer que possui conteúdo material. E toda norma de conteúdo material é irretroativa… É penal toda regra que se relacione com o ius punitionis, reforçando ou reduzindo os direitos penais subjetivos do condenado”. A alteração legislativa introduzida pelas leis federais nos. 12.015/09 e 12.033/09, ao retirar a legitimidade do ofendido ou de seu representante legal para fatos ocorridos a partir de sua vigência (10/08/09 e 30/09/09, respectivamente), acabou por subtrair a possibilidade de ocorrência de perempção, e em alguns casos até mesmo de decadência, renúncia e perdão do ofendido, tendo em vista que os crimes, antes, eram de ação penal privada. É dizer, excluiu-se a expectativa de o acusado ter extinguido a sua punibilidade por um desses institutos. Trata-se de lei com efeitos materiais gravosos e, portanto, irretroativa. Assim nessa mesma linha de pensamento, dispõe Guilherme de Souza Nucci, na obra Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009[9]: “Quanto à ação penal (art. 225), cuida-se de norma processual penal material, ou seja, a sua aplicação provoca efeitos penais. Submete-se, pois, ao princípio geral da retroatividade benéfica (…) As ações que estiverem em andamento (ou findas), promovidas pela vítima, por queixa, podem continuar seu rumo, sem qualquer obstáculo. Nesse prisma, o fato de, a partir da Lei 12.015/2009, a legitimidade ter-se transmitido ao Ministério Público não afasta a anterior legitimidade do ofendido. Sob tal prisma, o lado processual da novel lei traz beneficio ao acusado. A este se torna mais favorável ser a ação privada, pois, conforme a fase, poderia haver perdão, por exemplo, com reflexo material, consistente na extinção da punibilidade. Logo, mantém-se a vítima no pólo passivo. Caso esteja o inquérito em andamento, ilustrando, por estupro ocorrido com grave ameaça contra maior de 18 anos, pensamos deva continuar a ser a ação privada, aplicando-se a lei anterior, pois mais benéfica. Afinal, assim ocorrendo, pode haver renúncia, perdão, decadência etc., com extinção da punibilidade.” Mesma problemática também foi enfrentada com o advento da Lei nº. 11. 106/05, especificamente, na parte que revogou os incisos VII e VIII do art. 107 do CP, que tratava de causas de extinção da punibilidade pelo casamento em crimes contra os costumes. Gerou-se dúvida quanto à aplicabilidade imediata ou não desta norma a fatos típicos ocorridos antes da vigência da respectiva lei. A questão foi enfrentada pelo STF, concluindo-se o Pretório Excelso pela irretroatividade da norma, traduzido na seguinte ementa: “HABEAS CORPUS” – CRIME CONTRA OS COSTUMES – DELITO DE ESTUPRO PRESUMIDO – CASAMENTO DO AGENTE COM A VÍTIMA – FATO DELITUOSO QUE OCORREU EM MOMENTO ANTERIOR AO DA REVOGAÇÃO, PELA LEI Nº 11.106/2005, DO INCISO VII DO ART. 107 DO CÓDIGO PENAL, QUE DEFINIA O “SUBSEQUENS MATRIMONIUM” COMO CAUSA EXTINTIVA DE PUNIBILIDADE – “NOVATIO LEGIS IN PEJUS” – IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE APLICAR, AO CASO, ESSE NOVO DIPLOMA LEGISLATIVO (“LEX GRAVIOR”) – ULTRATIVIDADE, NA ESPÉCIE, DA “LEX MITIOR” (CP, ART. 107, VII, NA REDAÇÃO ANTERIOR AO ADVENTO DA LEI Nº 11.106/2005) – NECESSÁRIA APLICABILIDADE DA NORMA PENAL BENÉFICA (QUE POSSUI FORÇA NORMATIVA RESIDUAL) AO FATO DELITUOSO COMETIDO NO PERÍODO DE VIGÊNCIA TEMPORAL DA LEI REVOGADA – EFICÁCIA ULTRATIVA DA “LEX MITIOR”, POR EFEITO DO QUE IMPÕE O ART. 5º, INCISO XL, DA CONSTITUIÇÃO (RTJ 140/514 – RTJ 151/525 – RTJ 186/252, v.g.) – INCIDÊNCIA, NA ESPÉCIE, DA CAUSA EXTINTIVA DA PUNIBILIDADE PREVISTA NO ART. 107, INCISO VII, DO CÓDIGO PENAL, NA REDAÇÃO ANTERIOR À EDIÇÃO DA LEI Nº 11.106/2005 (“LEX GRAVIOR”) – “HABEAS CORPUS” DEFERIDO. – O sistema constitucional brasileiro impede que se apliquem leis penais supervenientes mais gravosas, como aquelas que afastam a incidência de causas extintivas da punibilidade sobre fatos delituosos cometidos em momento anterior ao da edição da “lex gravior”. A eficácia ultrativa da norma penal mais benéfica – sob cuja égide foi praticado o fato delituoso – deve prevalecer por efeito do que prescreve o art. 5º, XL, da Constituição, sempre que, ocorrendo sucessão de leis penais no tempo, constatar-se que o diploma legislativo anterior qualificava-se como estatuto legal mais favorável ao agente. Doutrina. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. – A derrogação do inciso VII do art. 107 do Código Penal não tem – nem pode ter – o efeito de prejudicar, em tema de extinção da punibilidade, aqueles a quem se atribuiu a prática de crime cometido no período abrangido pela norma penal benéfica. A cláusula de extinção da punibilidade, por afetar a pretensão punitiva do Estado, qualifica-se como norma penal de caráter material, aplicando-se, em conseqüência, quando mais favorável, aos delitos cometidos sob o domínio de sua vigência temporal, ainda que já tenha sido revogada pela superveniente edição de uma “lex gravior”, a Lei nº 11.106/2005, no caso. (STF, HC 90140 / GO, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, Data de Julgamento:  11/03/2008, DJe 17-10-2008). Dessa forma, a regra sobre a retroatividade e ultratividade benéficas da norma, como já verificado no aresto, é definida pelo inciso XL do art. 5º da Constituição Federal: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Assim, verificamos que estas normas (modificadora da titularidade da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e de corrupção de menores, além de estender aos crimes sexuais contra vulnerável, também, em relação ao crime de injúria racial) não podem retroagir por expressa determinação da Constituição, uma vez que têm caráter penal material e por serem prejudiciais ao réu, ou seja, novatio legis in pejus. Além de, impossibilitarem-lhe de ser beneficiado pela perempção, e em alguns casos até mesmo de decadência, renúncia e perdão do ofendido, já que nos ditames das novas leis a ação será pública incondicionada ou condicionada à representação, sem nenhuma possibilidade de proceder-se por queixa, a qual impossibilita esses benefícios ao réu, além de ser-lhe mais gravosa. Contudo, os revogados artigos 145 e 225 do Código Penal terão ultratividade e deverão ser, portanto, norma de regência a continuar a regular a titularidade da ação penal para condutas que ocorreram na época de sua vigência (haja ou não ação penal em curso), ou seja, antes de 10/08/2009 (data de vigência da lei nº. 12.015/09) e 30/09/2009 (data de vigência da lei nº. 12.033/09). Trata-se de aplicabilidade de lex mitior, ou seja, da lei mais favorável aos acusados. Entender contrariamente, seria adotar a retroatividade de lei mais gravosa (lex gravior), em franco prejuízo às garantias fundamentais do acusado previstas na Constituição Federal. Nesse diapasão, configura-se um ônus ao querelante que move ação penal exclusivamente privada em desfavor de alguém, continuar a comparecer a todos os atos do processo a que deva estar presente (art. 60 do CPP). Caso contrário incorrerá em perempção[10], consoante o já exposto. E mais. O Ministério Público, submisso ao princípio da legalidade, não pode assumir, a pretexto de estar legitimado por autorização literal das novas redações dos artigos 145 e 225 do Código Penal, à ação penal privada em curso. Quanto aos inquéritos e aos autos de informações sobre fatos típicos acontecidos antes da vigência das leis mais gravosas, deve-se ter o mesmo procedimento. Na seara das ações penais iniciadas de acordo com o enunciado da súmula nº. 608[11] do STF, entendemos que elas continuam seus trâmites legais, por não perder seus efeitos em virtude da nova lei (12.015/2009), tendo em vista toda a fundamentação das decisões que levaram à edição desse preceito sumular. Não obstante, encontra-se o pensamento de Nucci[12]: “O primeiro efeito é a suspensão do andamento das ações penais conduzidas pelo Ministério Público, por consequência da aplicação da Súmula 608 do STF, que hoje não mais pode subsistir. A ação era de natureza privada, segundo o antigo art. 225. O STF interpretou ser de natureza pública incondicionada, nos casos de estupro com violência real, fundado em política criminal. O advento da Lei 12.015/09, aplicando-se o princípio da legalidade, afirma, categoricamente, ser a ação pública condicionada à representação. Logo, deve o magistrado, nesses, casos, determinar a intimação da vítima, a fim de colher, de imediato (não há novo prazo de seis meses para tanto) a sua manifestação. Se pretender a continuidade da ação penal, conduzida pelo MP, deve formalizar a representação – ou simplesmente demonstrar assentimento, que pode, inclusive, ser obtido tacitamente”. Fazemos uma crítica a este posicionamento colacionado acima. Se a parte deve ser intimada para, imediatamente, proceder à representação, estará desrespeitando o princípio da legalidade, da taxatividade, do mandado de certeza, o qual prevê o prazo de 6 (seis) meses de decadência do direito de representação (art. 38, “caput”[13]). A nova lei 12.015/2009 não fez nenhuma ressalva expressa de que deveria ser intimada a vítima para ratificar persecução penal iniciada pelo Ministério Público, por força da súmula nº. 608 do STF. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei (art. 5º, II da Constituição da República). É de se lembrar que o silêncio não pode ser interpretado contra o réu. Em retrospecto legislativo, observa-se que quando o legislador pretende comunicar a vítima para dar continuidade à persecução penal, o fará expressamente, como ocorreu da edição da Lei nº. 9.099/95. A persecução do crime de lesão corporal dolosa leve e a culposa tinham ação penal pública incondicionada. Com advento de tal lei (Juizados Especiais Criminais), a persecução passou a ser pública condicionada à representação (art. 88 da Lei nº. 9.099/95[14]). É de se lembrar que o legislador, à época, teve o cuidado de mandar intimar o ofendido, para que, querendo, oferecesse representação – nova condição de procedibilidade para os crimes de lesões corporais leve e culposas –, sob pena de decair do direito (art. 91 da Lei nº. 9.099/95[15]). A lei nº. 12.015/2009 não alberga a conduta de mandar intimar a vítima para suprir eventual requisito processual. Além do que, efetuar uma representação tardiamente, ou seja, depois de anos do conhecimento da autoria seria, às escâncaras, uma odiosa ilegalidade. Seria o mesmo que chancelar como letra morta as disposições dos artigos 38 do CPP e 103 do CP, acerca do prazo decadencial da representação do ofendido ou seu representante legal, o que é inconcebível. Seria o mesmo que impedir os acusados de terem os benefícios do instituto da decadência. Onde a lei não ressalva, não cabe ao interprete fazê-lo. Logo, não deve ser intimada a vítima para prosseguimento da ação penal já iniciada pelo Ministério Público nos termos da súmula nº. 608 STF, mas sim, o processo continuar seu rito como de ação penal pública incondicionada. Entretanto, sabe-se que a representação, segundo o STF, não exige rigor formal[16]. Assim, caso haja nos autos de ação penal demonstração inequívoca da vontade de prosseguir com a demanda criminal, evidentemente deve entender suprida tal condição de procedibilidade. Agora, se não há comprovação de um mínimo de demonstração de interesse na persecução penal, especialmente nos casos em que, à época, partiu de provocação exclusiva do Ministério Público[17], a nova lei não veio para declarar, com efeitos ex tunc, a decadência do direito de representação, nem mesmo para determinar a intimação para que se procedesse a representação tardia, uma vez que não fez, expressamente, ressalva alguma quanto a isso. Para as ações penais iniciadas pelo Ministério Público com base na Súmula nº. 608 STF, em virtude de lesões corporais leves, não havendo comprovação de deflagração inicial da demanda pelo ofendido[18] ou representante legal (registro de ocorrência policial, depoimento em inquérito onde houve iniciativa, termo de comparecimento, por exemplo, na promotoria de justiça para registrar ocorrido, etc), deve-se entender que a lei nova é mais benéfica e imperativa faz-se a aplicação do instituto da decadência, extinguindo-se ações penais que foram iniciadas pelo Ministério Publico com base no entendimento sumular. Hoje não há mais dúvidas, todas as ações penais para os crimes contra a dignidade sexual são públicas, ora condicionadas à representação, ora incondicionadas. É certo que esses crimes com evento lesão grave e morte têm grandes repercussões, todavia esse resultado que agrava a pena é culposo e não doloso. Assim, quando ocorre lesão grave ou morte, vê-se que esses resultados agravadores da pena, são circunstâncias que, por si mesmos, são crimes e deverão ser perseguidos por ação penal de natureza pública incondicionada (art. 101, CP)[19]. Logo, nesses casos as ações penais já iniciadas e que tenha esses resultados devem prosseguir normalmente com o Ministério Público no pólo ativo processual e sem exigência de representação, logicamente. Seria irrazoável, também, exigir representação nesses casos, posto que bens valorosos estejam em jogo: vida, integridade física e saúde. Todavia, nos casos em que a violência real consistir em lesão corporal leve, é que deve o juiz declarar extinta as ações penais em curso em face da decadência do direito de representação, desde que não havido representação formal ou sem esse rigor, posto que esse resultado (lesão leve), também, é crime perseguido por ação penal pública condicionada à representação, o que faz retroagir os efeitos mais benéficos da nova redação do artigo 225 do Código Penal. Essa concretização legislativa sobre a ação penal no crime de estupro com lesão corporal leve já era discutida na doutrina, especialmente com o advento da Lei nº. 9.099/95. Deve ver-se que a súmula nº. 608 STF – no caso de lesão leve – para alguns doutrinadores[20] já estava superada com a vigência do art. 88 da Lei nº. 9.099/95. A súmula nº. 608 do STF continua, pois, em pleno vigor, se o crime contra dignidade sexual é praticado mediante violência real e que esta circunstância seja, por si só, crime de ação penal pública incondicionada[21], o que inocorrerá se a violência real consistir em lesão corporal leve. Vale citar que a Procuradoria Geral da República propôs em 17 de setembro de 2009 a ADI 4301, pedindo ao Supremo Tribunal Federal a declaração de inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 225 do CP, com a redação dada pela Lei nº. 12.015/2009, para que seja excepcionado da incidência deste artigo o crime de estupro praticado com violência grave ou com resultado morte. Lembrando-se que o deferimento desta ação, irá restabelecer o conteúdo da súmula nº. 608/STF, embora com fundamentos não tão distintos (proporcionalidade, razoabilidade, dignidade da pessoa humana, valorização elemento vida, proibição da proteção deficiente, integridade física e saúde). Curiosamente, pediu-se a declaração de inconstitucionalidade do artigo 225 tão-só nos casos de violência grave e morte. Assim, o próprio Procurador-Geral da República confirma que é razoável que a ação penal nos crimes dessa natureza onde ocorreu lesão corporal leve deve obedecer, logicamente, aos ditames da novel lei: exige-se representação – art. 225. Cumpre, também, ressaltar, exemplo de norma de natureza puramente processual trazida pela nova lei que inseriu o art. 234-B ao Código Penal: “os processos em que se apuram crimes definidos neste Título correrão em segredo de justiça”. Tal dispositivo, agora sim, é norma de natureza processual, em virtude de não influenciar no poder punitivo do Estado, como exemplo causa extintiva da punibilidade. Portanto, passível de aplicação imediata, consoante o art. 2º do Código de Processo Penal[22]. Assim, deverá todo magistrado revestir a persecução penal dos crimes definidos no Título VI do Código Penal do manto da discrição, ou seja, a ação penal deverá correr em segredo de justiça, não acessível a terceiros. 2.CONSIDERAÇÕES FINAIS Antes as considerações explicitadas, respondemos aos questionamentos por nós propostos nos termos seguintes: 2.1. Às ações penais privadas em curso ante da vigência das leis nos. 12.015/09 e 12.033/09, não se aplicam as regras atuais de titularidade de ação penal, pois lex gravior é irretroativa, porque excluiu benefícios da extinção da punibilidade decorrentes da perempção, e em alguns casos até mesmo de decadência, renúncia e perdão do ofendido. Trata-se de lei de feitos material. Deve-se dar ultratividade às normas revogadas dos artigos 145 e 225 do Código Penal aos casos que ocorreram sob sua vigência. 2.2. O Ministério Público, em relação a fatos ocorridos antes da vigência das leis nos. 12.015/09 (10.08.09) e 12.033/09 (30.09.09), não deve assumir a ação penal privada em curso, porque submisso ao princípio da legalidade a que está sujeito a administração pública (Art. 37, CF). O querelante não está desincumbido, portanto, do ônus de comparecer a todos os atos processuais que exige a sua presença, sob pena de ser declarada perempta sua ação penal privada. 2.3. Quanto a sumula nº. 608 STF, entendemos que ela continua aplicável, posto que ao que parece é inconstitucional a exigência de representação nos crimes de dignidade sexual quando ocorre morte ou lesão grave. Convém ressaltar que o STF não concedeu liminar na ADI 4301, o que confirma, ainda, a vigência do artigo 225 com nova redação pela lei nº. 12.015/09, cabendo, difusamente, a cada magistrado exercer tal controle, até final decisão e modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Entretanto, nos casos de violência real consistente em lesão leve, deve-se manter a regra atual do artigo 225 do Código Penal, posto ser regra mais benéfica, proporcional e razoável. É de se lembrar que a ADI 4301, DE 17/09/09, corrobora nosso pensamento quanto à mesma aplicação da regra do art. 88 da Lei nº. 9.099/95 a esses casos, devendo-se extinguir todas as ações penais iniciadas pelo Ministério Público com resultado de lesão leve, salvo pretérita representação (seja formal ou não), posto que inaplicável a intimação do ofendido para, querendo, dê prosseguimento à ação penal já iniciada, à míngua de falta de dispositivo legal,
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-71/leis-nos-12-015-09-e-12-033-09-e-seus-reflexos-na-titularidade-da-acao-penal/
Discurso e Sabedoria: Observações Sobre a Narrativa e a “Verdade” no Processo Penal
O artigo faz um breve levantamento comparativo entre o discurso narrativo presente na obra de Walter Benjamim “O Narrador: observações sobre a obra de Nicolai Leskov” e a pretensão de verdade no processo penal que Aury Lopes Jr. leciona em sua obra “Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional”, para chegar a conclusão de que tal pretensão nada mais é do que consequência do esvaziamento da sabedoria dos discursos como um todo ao longo do tempo.[1]
Direito Processual Penal
Resumo: O artigo faz um breve levantamento comparativo entre o discurso narrativo presente na obra de Walter Benjamim “O Narrador: observações sobre a obra de Nicolai Leskov” e a pretensão de verdade no processo penal que Aury Lopes Jr. leciona em sua obra “Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional”, para chegar a conclusão de que tal pretensão nada mais é do que consequência do esvaziamento da sabedoria dos discursos como um todo ao longo do tempo.[1] Os dias atuais revelam uma realidade que a cada dia se firma como sendo a grande característica desse período: a velocidade do passar do tempo. Os acontecimentos do cotidiano já não têm mais espaço na memória nem tampouco na experiência daqueles que as vivenciam, o que demonstra um verdadeiro desperdício de sabedoria. Mais. Verificamos nos dias atuais uma verdadeira morte da transmissão dessa sabedoria, que os antigos tanto se valiam para procurar minimizar o sofrimento de uma escolha errada de seus descendentes. Ainda, pode-se dizer que o discurso narrativo, enquanto processo de transmissão de saber, está hoje substituído pela velocidade da transmissão de informações, onde pessoas conectadas – e com totais possibilidades de efetuarem trocas de experiência – procuram saber o mais rápido possível o que se passa do outro lado do mundo, sem se darem conta do que ocorre bem abaixo de seus narizes, ou mesmo dentro de si mesmo. O tempo não perdoa aqueles que erram: uma escolha pode mudar completamente a vida de uma pessoa, haja vista a tal velocidade. Mas errar é da natureza do Homem. O que lamentamos é a perda do valor da sabedoria transmitida artesanalmente no dia-dia, através dos conselhos, das histórias e das experiências. A “morte” da sabedoria – o lado épico da verdade, segundo BENJAMIN [2], se dá fundamentalmente pela difusão da informação através da evolução da imprensa. A sapiente tradição oral perde o seu valor frente à tecnologia, veloz e perspicaz. O discurso romântico se dissemina facilmente pelo jornalismo, onde pessoas desprovidas de experiência de vida buscam, solitariamente, um “final feliz” para suas pobres vidas. A arrogância da burguesia também contribui para um rechaço da experiência daqueles “pobres” velhos contadores de histórias repetidas. Nesse contexto, a judicialização de questões mundanas enfrenta dificuldade de encontrar um sentido finalístico. Mais precisamente no Direito Processual Penal – onde o que está em jogo é o inquestionável valor da liberdade – vislumbra-se uma problemática ainda mais intrigante, no tangente à utilização da sabedoria adquirida pela experiência prática: a pretensão de alcance da verdade que o mesmo se propõe. Embora exista o debate sobre a pretensão de verdade do processo penal – sobretudo na obra de LOPES JR.[3] encontramos substancial levantamento sobre este tema – nos parece claro que a pretensão de verdade seria, num primeiro momento, apenas a de verdade “processual”, já que a verdade real só existe no presente, e o crime (enquanto fato histórico que é) não tem respaldo de realidade enquanto tal. Ademais, a verdade, seja a real ou a processual, segundo LOPES JR. seria excessivamente valorizada na seara processualista, de forma que sua relativização para uma dimensão contingencial – e não estruturante – do processo se faz urgente[4], na medida em que não podemos admitir as provas processuais como sendo pontes que levam à verdade, como se a mesma fosse algo suscetível de transmissão objetiva, tal e qual a veloz informação alimenta as mentes dos homens de hoje em dia com dados inúteis, em detrimento do saber dos mais antigos. O referido autor relata que a verdade foi historicamente utilizada como artifício inquisitório de busca de revelação dos fatos investigados e de justificativa para os abusos do Estado Totalitário, tais como a tortura para obtenção da confissão de crimes, por exemplo. [5] Atualmente, não vislumbramos a possibilidade da atribuição de um absolutismo a qualquer tipo de prova, mesmo a testemunhal ou confessional, haja vista o quadro de romantismo informativo que tomou conta dos discursos humanos nos últimos tempos. As partes ou testemunhas de um processo acusatório se comportam como informantes: suas declarações aspiram a uma verificação imediata, que antes de tudo sejam compreensíveis em si mesmas e plausíveis.[6] E assim o sendo, sua amplitude fica restrita, face às inúmeras possibilidades que um fato real pode proporcionar, tais como interpretações, pontos de vista, preferências pessoais, etc. Seus discursos são meramente transmissores de informação, jamais podendo ter um caráter de verdade, qualquer que seja. Ademais, importante destacar a figura do juiz enquanto observador da produção de provas no processo penal. Segundo o militado por LOPES JR., a gestão das provas no processo penal está inteiramente a cargo das partes, sendo o juiz um mero expectador[7]. Isso impede que o mesmo tenha uma postura positiva no sentido de produzir alguma prova, mesmo que com o intuito de alcançar a bendita verdade. Ele deve abster-se quanto à produção de provas, ficando seu mister restrito apenas à seleção e eleição de hipóteses plausíveis, calcado no material probatório apresentado. A captura psíquica do convencimento do juiz se dá por esta função persuasiva das provas, que habilita o mesmo a legitimar o poder contido em sua sentença. [8] Visto isso, é fundamental para a justiça e legitimidade da sentença, sob o ponto de vista ético-jurídico, que o juiz não tenha um discurso romântico. Ou seja: que não procure uma realização pessoal, um sentido de vida, ou ainda um “final feliz” para a história contada pelas partes no processo. O romance contém um perigoso alento ao próprio destino de seus leitores, e que não tem espaço no processo-história da vida real de pessoas humanas. Ele é a esperança de aquecimento de suas vidas geladas com a “morte” descrita na história.[9] Destarte, a mencionada sabedoria presente no discurso narrativo deveria compor aquilo que, concordando com LOPES JR., entendemos ser o ideal para processo penal moderno: o abandono da ânsia pela verdade e o reconhecimento da existência de meras hipóteses para a solução dos casos penais. Pois é esta a sabedoria transmitida no discurso de tantos outros autores de fora da área jurídica que tem dado grande contribuição para a abertura de dogmas tão fechados que encontramos no mundo do Direito, tais como O Olho e o espírito, de MERLEAU-PONTY [10] e As estruturas o Imaginário, de DURAN[11], utilizados por LOPES JR. na maioria de suas obras. Pois o grande mérito da narrativa está no seu senso prático. Sua dimensão utilitária visa a evitar explicações, fazendo uma sóbria concisão despida de análise psicológica, o que facilita a sua memorização. Esta renúncia a sutilezas psíquicas é o ponto-chave para a assimilação da própria experiência: o sujeito certamente cederá a inclinação de repassar esta experiência adiante um dia. [12] A narrativa não se preocupa em transmitir uma informação detalhada e precisa. Ela mergulha na vida de quem narra a história e extrai aquilo que realmente interessa: a sabedoria.[13] E o lado épico da verdade trata-se justamente desse extrato, ou seja, daquele saber adquirido que permite ao sujeito passivo da narrativa a possibilidade (e não certeza ou verdade) de acerto na sua decisão. Entendemos que aqui se insere a grande questão levantada neste artigo: até que podemos aceitar a imposição de uma verdade no processo, se o mundo exterior a ele se prende em informações fúteis e desprovidas de sapiência. Se os valores da sociedade atual não permitem atribuir uma adequada valoração a um saber consolidado, por que é que se está a ir atrás de uma “verdade” no processo, seja ela qual for? O Estado não tem o direito de errar como os humanos. Portanto, não deveria desperdiçar sabedoria ao buscar tal verdade. Ao invés disso, necessita-se de uma revalorização do discurso narrativo e da transmissão da sabedoria, sobretudo no processo penal. Afinal, a “verdade” que tanto se busca, e que transcende o tempo, está contida apenas na sabedoria. A verdade, portanto, é um dado real. No entanto, a sua transmissão subjetiva e concisa só é possível através da sabedoria. E esta por sua vez só se transmite pelo discurso narrativo.   Notas: [1] Textos-base: O Narrador: observações sobre a obra de Nicolai Leskov, de Walter Benjamim; Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, de Aury Lopes Jr. [2] BENJAMIN, Walter. O Narrador: observações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, pág. 200. [3] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 4ª Edição, Volume I. Ed. Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2009, pág. 549. [4] LOPES JR., pág 561. [5] LOPES JR., pág 550. [6] BENJAMIN, pág. 205. [7] Não adentraremos no mérito da questão da distribuição de cargas e assunção de risco no processo penal, já que não é o foco central do artigo. O autor refere que nesta espécie de processo o que se deve proceder é uma entrega de carga probatória totalmente nas mãos da acusação, tendo a defesa uma mera assunção de riscos ao não apresentar provas, haja vista o postulado da Presunção de Inocência consagrado pela Constituição Federal Brasileira (LOPES JR., pág. 530) [8] LOPES JR., pag. 519. [9] BENJAMIN, pág. 219. [10] LOPES JR. comparou em sua obra a testemunha do processo penal com o pintor que MERLEAU-PONTY afirmou não ser hábil a totalizar uma pintura inteiramente realizada, “por faltar ao olho condições de ver o mundo e faltam ao quadro condições de representar o mundo”. (apud LOPES JR., pág. 556). [11] O mesmo autor traz na já referida obra jurídica o acréscimo que DURAN traz ao afirmar que “a fantasia/criação faz com que o narrador preencha os espaços em branco deixados na memória com as experiências verdadeiras, mas decorrentes de outros acontecimentos. A imaginação colore a memória com outros resíduos. É o clássico exemplo do cubo: podemos ver duas, no máximo três faces. O cubo só é real no imaginário, pois somente assim se conhece as seis faces. Não há duvida de que a imaginação não forma imagens, mas deforma as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção. Isso, sem considerar a intenção de deturpar, pois parte da premissa da “boa testemunha”, o que é uma ilusão.” (apud LOPES JR., pág. 556). [12] BENJAMIN, pág. 207. [13] BENJAMIN, pág. 208. Perito Criminal Oficial. Bacharel em Direito. Pós-Graduado em Administração Pública e em Processo Penal. Mestre em Ciências Criminais
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-71/discurso-e-sabedoria-observacoes-sobre-a-narrativa-e-a-verdade-no-processo-penal/
Reformas processuais penais em debate: a disciplina da atividade probatória e o ideal político da Lei n. 11.690/2008
O presente artigo visa a analisar a reforma parcial do Código de Processo Penal brasileiro efetivada pela Lei n. 11.690/2008 e o discurso político de manutenção/modificação da cultura processualística pátria. Através do estudo crítico da nova redação dos artigos 155, 156 e 157, procura-se evidenciar os resquícios inquisitivos constantes do discurso de celeridade processual e sua desconformidade com a Carta Política nacional.
Direito Processual Penal
1. Introdução. A grande questão da processualística legislativa moderna diz respeito à relação entre norma e cultura[1]. Em termos claros, questiona-se se uma norma jurídica (em sentido amplo) é capaz de fomentar uma determinada forma de agir, de modificar (ou manter) uma cultura estabelecida ou, diferentemente, é exatamente a modificação cultural que exige a adaptação legislativa no período contemporâneo. O sistema penal, estruturado sobre o princípio da legalidade – dogma do Estado de direito – não fica imune à discussão. Por certo, um Direito Penal meramente fático (cultura pré e extranormativa) seria totalmente reprovável, tirânico, haja vista o Estado, historicamente, exceder-se na senda repressiva discricionária. Por outro lado, um Direito Penal legislativo desapegado de sua função de limitação dos abusos estatais e de proteção do status dignitatis restaria inegavelmente ilegítimo (norma jurídica criando cultura incongruente, acarretando um ordenamento jurídico penal desarrazoado[2]) e iria de encontro aos necessários fins humanísticos de proteção do hipossuficiente na execução do jus puniendi. Entretanto, é através do Processo Penal – sistema formal de garantias do acusado – que se verifica a maior relação entre produção legislativa e desenvolvimento de uma cultura de valorização do indivíduo enquanto tal (individualismo[3] garantista/democrático) ou do indivíduo em prol da sociedade em que está inserido (segmento da interpretação organicista[4] do Estado). A primeira, de viés acusatório, na qual os acusados são sujeitos de direito e partes na dialeticidade processual; a segunda, de viés inquisitivo, na qual os acusados são simples objetos de investigação/acusação. Na atualidade jurídico-legislativa brasileira, o tema ganha em importância em decorrência das recentes reformas do Código de Processo Penal (Leis n. 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008), que alteraram o rito do Tribunal do Júri, a disciplina da atividade probatória, da suspensão do processo, da emendatio libelli, da mutatio libelli e do procedimento comum (ordinário e sumário). A discussão, aqui, gira em torno da concepção processualística adotada pelo Legislador brasileiro: seguiu ele a cultura inquisitiva herdada pelo vigente diploma processual[5] ou utilizou-se da norma jurídica para introduzir na cultura política-social brasileira os postulados expressos na Constituição de 1988? Nos termos propostos inicialmente: a roupagem pós-reforma assumida pela legislação processual penal brasileira representa uma ratificação do pensamento até então vigente (norma mantendo cultura) ou, contrariamente, expõe um novo ideal processual condizente com um Estado realmente (e não pretensamente) democrático e garantidor dos direitos fundamentais (norma transformando cultura – ao menos em nível nacional)? Visando a debater esses aspectos, das reformas pontuais acima referidas, optou-se pela análise da nova disciplina da atividade probatória, pois esta sintetiza de forma cristalina o ideal cartesiano/linear que parece ter vinculado os redatores do texto final[6]. Assim, neste trabalho, analisar-se-ão as modificações constantes dos artigos 155, 156 e 157 do Código de Processo Penal brasileiro. 2. Artigo 155: livre convicção inquisitória. Com a reforma processual penal levada a efeito pela Lei n. 11.690/2008, o artigo 155 do Código de Processo Penal Brasileiro passou a contar com a seguinte redação[7]: “Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. O dispositivo em comento manteve o princípio da livre apreciação da prova, já incorporado ao ordenamento brasileiro através da antiga redação do artigo 157 do Código Processual. Entretanto, uma vez mais, e agora de modo expresso, equivocou-se o Legislador quanto à natureza do instituto. Com efeito, o princípio da livre convicção do juiz nasceu dentro do modelo processual acusatório, em coerência com outros princípios reciprocamente interdependentes (não presunção legal de culpabilidade, na presença de tipos de prova abstratamente previstos em lei; presunção de inocência; ônus de prova para condenação a cargo da acusação; questionabilidade de qualquer prova – evidenciando a dúvida como hábito profissional do julgador; contraditório entre as partes; separação pura entre acusação e juiz, etc)[8], como alternativa democrática à autoritária sistemática de provas legais. Entretanto, o período pós-Revolução Francesa (com a noção de Direito como “ciência” da certeza e da completude) proporcionou a inserção deste modelo de “apreciação livre” no interior do sistema inquisitivo, o qual se fundamenta na busca da verdade absoluta. Surgem, assim, os denominados “sistemas mistos”: uma parte introdutória inquisitiva (secreta e sumária) e uma segunda etapa pretensamente acusatória, sustentada nos elementos produzidos com ausência total de dialeticidade[9]. Nos ensinamentos do professor italiano: “Compreende-se que tal ‘monstro, nascido do acoplamento do processo inquisitivo e do acusatório’, tenha somado os defeitos de um e de outro, comprometendo de fato o único valor comum a ambos: a obrigação de o juiz decidir juxta alligata atque probata, que caracteriza tanto o processo puramente inquisitivo, no qual é necessária a prova legal, quanto o processo acusatório, em que o juiz é passivo diante da atividade probatória das partes e está a ela vinculado”[10]. No atual panorama brasileiro, pós-reforma processual parcial, o equívoco legislativo toma corpo de manobra política em prol de um utilitarismo processual[11]. Isso porque, após a nova redação do dispositivo acima transcrito reafirmar as bases da livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial[12], expressou a possibilidade de utilização do material pré-processual (inquisitório) como reforço – ou auxílio – decisório[13]. Ao inserir a expressão “exclusivamente” na atual redação do artigo 155, o Legislador brasileiro optou por um modelo essencialmente inquisitivo (neste particular, fugindo um pouco do modelo retratado por Ferrajoli, de caráter misto). Isso porque se baseia em uma apreciação da prova com livre convicção judicial (motivada! mas, é bom frisar, a abertura retórica na motivação judicial é ampla) aberta ao material amplo, seletivo, estigmatizante, sigiloso, administrativo, “informativo” etc, do inquérito policial, o que, em última análise, apresenta-se ainda mais autoritário e arbitrário que o modelo de prova legal – própria e naturalmente inquisitivo. A título de reforço, convém frisar, ainda, que a processualística penal, como cediço, se fundamenta na pretensa busca “da” verdade real. Necessário obtemperar, entretanto, que uma vez instrumentalizado pela técnica indutiva, o máximo que se alcançará com o processo (na decisão final) é a explicitação de uma hipótese explicativa (para o fato investigado) de natureza provável. Conforme Ferrajoli: “Diferentemente da dedução, que sempre é tautológica, a verdade das premissas da indução não implica jamais a verdade da conclusão, pois, se as premissas são verdadeiras, não há qualquer necessidade lógica, senão apenas uma relevante probabilidade, de que a conclusão seja verdadeira (e nenhuma contradição ou impossibilidade, senão apenas uma relevante improbabilidade de que seja falsa)”[14]. Na atual sociedade complexa[15], de interação de fatores indeterminados, de intensa conflituosidade entre sistema e entorno, com maior evidência se apresenta a falência do discurso da verdade substancial. O exame do nexo de causalidade indica, apenas, uma possibilidade quanto à relação entre uma ação imputada, a culpabilidade de um sujeito (investigado/acusado) e o conjunto de fatos observados[16]. Assim sendo, o processo não é, em absoluto, expressão da realidade, quiçá de pretensa verdade. Ao que parece, a inserção da expressão “exclusivamente” no artigo sob comento quer estancar a abertura sistêmica à proteção de direitos e garantias fundamentais preconizada pela Carta Política e, conseqüentemente, sufragar o entendimento do processo penal como instrumento de “conhecimento”[17], produtor de saberes e indutor de verdades fabricadas e úteis. Nesse sentido, pertinente a crítica, em forma de questionamento, de Aury Lopes Junior: “quem precisa ‘cotejar’ e invocar o inquérito policial, quando a prova judicializada é suficiente?”[18]. Percebe-se que o Legislador, explicitamente, procurou deixar aberta a porta para o arbítrio[19], facultando ao julgador a remição aos atos de investigação, ausente de contraditório e completamente antidemocrático. Este ideal legislativo é próprio de um modelo cultural que preconiza a sobreposição do discurso jurídico em relação à discussão política, ainda com uma agravante: a centralização do julgador – livre – como produtor de saberes irrefutáveis, o que se verifica na postura redacional do artigo sob análise, dos dispositivos a seguir abordados e do sistema penal nacional pátrio como um todo. 3. Artigo 156 O art. 156 do Código de Processo Penal, por sua vez, passou a dispor[20]: “Art. 156 – A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I- ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.” No caput, o Legislador tratou da distribuição do ônus da prova no processo penal e estabeleceu, como na redação anterior, que o encargo incumbe àquele que alegar o fato. Ao interpretar este dispositivo, doutrina e jurisprudência majoritárias defendem que, no processo penal, entrega-se ao acusador a prova dos fatos constitutivos e ao réu a prova de sua inocência se aduzir fatos extintivos, modificativos ou impeditivos. Este entendimento deve sofrer alterações. Isso porque a nova redação do art. 386, VI, do Código de Processo Penal[21] determina que o ônus da defesa é impróprio em relação às causas que excluem o crime ou isentam de pena, pois basta para a absolvição que haja fundada dúvida sobre sua existência[22]. É imprescindível, contudo, reconhecer que a alteração do art. 386, VI, do CPP restou aquém do necessário e não está de acordo com o sistema acusatório. Isso porque, como bem observa Aury Lopes Júnior, a partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nesta desconstrução[23]. E esta desoneração do acusado não vai, ressalta-se, de encontro à literalidade caput do art. 156. Este dispositivo determina que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”; e é imprescindível reconhecer que a primeira (e principal) alegação feita é aquela que consta na exordial acusatória. Neste contexto, cabe ao Acusador o ônus total e intransferível de provar a existência do delito, demonstrando a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação.[24] Nos incisos da nova redação do art. 156, o Legislador consagrou, mais uma vez, a possibilidade de determinação de diligências de ofício pela autoridade judicial. Mais, permitiu a produção antecipada de provas, mesmo antes de iniciada a ação penal. Quando da vigência da antiga redação do art. 156, parte da doutrina já denunciava, acertadamente, a inconstitucionalidade da atribuição de poderes instrutórios ao juiz.  Isso porque essa concessão externa a adoção do princípio inquisitivo, o qual funda o sistema inquisitório, e representa uma quebra da igualdade, do contraditório e da própria estrutura dialética do processo[25]. Mais, como bem observa Jacinto Miranda Coutinho, na estrutura inquisitória, há uma fusão das funções de acusador e juiz e a conseqüente confusão entre o que seriam métodos para acusar e métodos para julgar. “O juiz, senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato privilegiando o mecanismo ‘natural’ do pensamento da civilização ocidental que é a lógica dedutiva, a qual deixa ao inquisidor a escolha da premissa maior, razão por que pode decidir antes e, depois, buscar quiçá obsessivamente a prova necessária para justificar a decisão.”[26] Fulmina-se, assim, a principal garantia da jurisdição, qual seja, a imparcialidade do julgador[27].  A nova redação, conforme referido, mantém o juiz num papel ativo na produção probatória e vai além, pois possibilita a produção de provas antes do início da ação penal. Em outras palavras, possibilita a atuação do magistrado quando sequer há ação penal instaurada ou acusação formal. Se a redação anterior já violava o sistema acusatório e a Carta da República, a nova é ainda mais afrontosa, pois possibilita que o magistrado se antecipe à formação do opinio delicti do titular da ação penal e usurpe atribuições que são constitucionalmente asseguradas ao Ministério Público na ação penal pública[28]. Em suma, parece que o Legislador não enfrentou adequadamente o delicado tema dos limites probatórios do juiz na esfera penal. O dispositivo analisado é inconstitucional e inválido e não deve ser aplicado pelos operadores do direito, sob pena de retrocesso inquisitório. 4. Artigo 157: o regramento das provas ilícitas. Por seu turno, assim dispõe a nova redação do artigo 157 do diploma processual penal pátrio[29]: “Art. 157.  São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais[30].  § 1o  São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.  § 2o  Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. § 3o  Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente[31]. § 4o  (VETADO).” Com efeito, o Legislador brasileiro, atento ao anacronismo da legislação processual penal pátria, entendeu disciplinar o disposto no artigo 5º, LVI[32], da Constituição Federal, expondo, em sede infraconstitucional, o debate acerca das provas ilícitas e de suas derivadas (teoria dos frutos da árvore envenenada[33]) no pretenso[34] processo penal acusatório. Entretanto, o artigo 157 acima transcrito, embora se revista de garantia fundamental, em verdade – ao utilizar-se de redação não minimamente taxativa, determinada – expõe as diretrizes de um processo penal seletivo e inquisitório[35]. Em virtude da vagueza dos “conceitos” de fonte independente e de nexo de causalidade (artigo 157, §1º e 2º, CPPB), certamente a casuística estigmatizante que caracteriza o sistema penal brasileiro vai dar azo a interpretações cambiantes, por óbvio tendo por base a classe social do acusado, a boa técnica do defensor contratado, o trabalho (louvável, mas com estrutura precária) da Defensoria Pública, etc. Questiona-se: como ficarão as questões da causalidade tênue entre prova ilícita e derivada(s)? Em um legítimo processo penal democrático, elas deveriam ser rechaçadas, mas não há dúvidas de que será o caso concreto (e suas circunstâncias) que conduzirá à resposta; ou melhor, o status do réu vinculará a decisão[36]. Mas, por ora, essa questão (ao menos neste trabalho tópico) é tangencial. Pretende-se focar algo mais complexo, sistêmico, estrutural, que bem demonstra a intenção legislativa de manutenção de um status quo: a situação do juiz da instrução que manteve contato com a prova ilícita desentranhada[37]. É certo que sua decisão não poderá a ela reportar-se. Mas, com a manutenção (de duvidosa constitucionalidade) da inquisitória possibilidade de o juiz produzir prova de ofício (artigo 156, I e II, CPPB), não vai ele buscar, ex oficio, elementos para suprir (fundamentar) sua pré-concepção condenatória (reforçada pela prova ilícita produzida)? Não vai o julgador, com amparo legal (artigo 155, CPPB), buscar fundamentos nos atos pré-processuais (inquérito policial), cujos elementos de informação constam dos autos do processo, embora produzidos com ausência de dialeticidade? Por razões como tais que não se pode concordar com o veto presidencial ao parágrafo quarto[38] do artigo sob comento. Segundo a redação original do parágrafo citado, o juiz que conhecesse do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderia proferir a sentença ou o acórdão. A mensagem de veto esclarece a intenção legislativa (e o ideal sistêmico adotado – ou, se se quiser, mantido): “O objetivo primordial da reforma processual penal consubstanciada, dentre outros, no presente projeto de lei, é imprimir celeridade e simplicidade ao desfecho do processo e assegurar a prestação jurisdicional em condições adequadas. O referido dispositivo [parágrafo quarto, vetado] vai de encontro a tal movimento, uma vez que pode causar transtornos razoáveis ao andamento processual, ao obrigar que o juiz que fez toda a instrução processual deva ser, eventualmente, substituído por outro que nem sequer conhece o caso. Ademais, quando o processo não mais se encontra em primeira instância, a sua redistribuição não atende necessariamente ao que propõe o dispositivo, eis que mesmo que o magistrado conhecedor da prova inadmissível seja afastado da relatoria da matéria, poderá ter que proferir seu voto em razão da obrigatoriedade da decisão coligada”. Ao que parece, acabou-se excluindo um dos pontos positivos do projeto de lei. De que vale disciplinar a temática das provas ilícitas, dando uma roupagem garantista (embora com uma redação traiçoeira), explicitando sua inadmissibilidade, e continuar permitindo a permanência do julgador, que com ela manteve contato direto, na condução do processo? Na doutrina de Aury Lopes Júnior: “A desconsideração de que se opera uma grave contaminação psicológica (consciente ou inconsciente) do julgador faz com que a discussão seja ainda mais reducionista. Esse conjunto de fatores psicológicos que afetam o ato de julgar deveria merecer atenção muito maior por parte dos juristas, especialmente dos tribunais, cuja postura até agora tem-se pautado por uma visão positivista, cartesiana até, na medida em que separa emoção e razão, […] , o que se revela absolutamente equivocado no atual nível de evolução do processo[39].” Não se pode negar que com o advento da noção de complexidade sistêmica todos os fatores sociais estão interligados. O processo penal não foge a essa sistemática. Acreditar que o juiz que manteve contato direto com uma prova ilicitamente produzida (e oportunamente desentranhada) vai julgar exclusivamente com base na razão é enxergar o processo de forma poética, desapegada da realidade. Se mesmo com o afastamento do julgador originário não se consegue superar os prejuízos que uma prova ilícita causa ao acusado (é inegável que o novo julgador também não se encontrará no ápice de sua imparcialidade!), que dirá de sua manutenção na condução do processo. A declaração de sua suspeição[40] é fator de justiça, por ser a medida menos afrontosa à dignidade processual. Por razões como tais, nos termos propostos por Lopes Júnior, “não basta anular o processo e desentranhar a prova ilícita: deve-se substituir o juiz do processo, na medida em que sua permanência representa um imenso prejuízo, que decorre dos pré-juízos (sequer é pré-julgamento, mas julgamento completo!) que ele fez”[41]. Nem se argumente que a identidade física do juiz impediria tal proposição, uma vez ser a imparcialidade do julgador dogma do Estado Democrático de Direito, devendo sobrepor-se (cristalinamente) à nova redação do artigo 399, §2º, CPPB[42]. Ademais, a própria máxima da identidade física do juiz e o anseio por celeridade processual (fundamento último da reforma processual penal e razão de veto do §4º, do artigo 157, CPPB) são mecanismos de proteção do cidadão acusado em processo penal, não podendo servir de obstáculo à própria efetivação de suas garantias fundamentais[43]. Por isso, advoga-se pelo reconhecimento (ex oficio, inclusive) da suspeição do magistrado nessas situações, devendo-se substituir por outro e imparcial julgador (na medida do possível!), de acordo com as regras de organização judiciária, elevando-se o respeito ao réu (hipossuficiente na relação acusatória estatal) e a dignidade da justiça como um todo. 5. Conclusão. Toda mudança cultural requer choque estrutural. A evolução ao processo penal brasileiro ideal (ou o mais próximo dele) só seria possível, em tese, com a redação de um novo diploma legal, totalmente desapegado das raízes inquisitivas que dão sustentação ao modelo pátrio. A reforma processual efetivada, por ser parcial, dificilmente alterará a sistemática antigarantista reinante, mantendo um abismo entre a abertura sistêmica-humanística da Constituição Federal e a prática forense com base infraconstitucional. No presente texto, ao abordar a nova disciplina da atividade probatória no Código de Processo Penal, objetivou-se – através de um ponto de vista crítico, mas delimitador de uma visão interpretativa – analisar o que se encontra de extradiscursivo no interesse legislativo de atualização da legislação nacional. De forma direta, procurou-se abordar as falhas ou lacunas (conscientes ou inconscientes) da Lei n. 11.690/2008, mais especificamente em uma abordagem da nova redação dos artigos 155, 156 e 157 do CPPB[44], e a manutenção do princípio inquisitivo na colheita do material probatório; agora, sob o manto utilitário da celeridade processual. Não se pretende, com o texto (obviamente), estancar a discussão; nem mesmo fazer terra arrasada sobre o material produzido, até porque não há como negar a evolução em alguns pontos determinados, oportunamente analisados. O que se critica – isto sim de forma efusiva – é a tentativa de manipulação da coletividade (ou manipulação efetiva) através do discurso repressivo, utilizando-se para tanto o Processo Penal, sob o rótulo de garantia social. O processo penal, frisa-se, não é garantia social. Ou melhor, não é instrumento próprio para garantia e estabilização social. Trata-se, em verdade, de um mecanismo de garantia individual em prol da presunção de inocência e, em última análise, da dignidade humana, refletindo indiretamente (aí sim) nas relações sociais, como freio ao anseio punitivo estatal. Espera-se que a presente, limitada e pontual reforma sirva de ponto de partida para uma verdadeira discussão política, em prejuízo das também limitadas discussões jurídicas. Parece necessário um choque estrutural capaz de alterar a dogmática contemporânea, introduzindo no processo penal positivado elementos de política criminal que identifiquem este ramo jurídico como garantia formal e não como instrumento da sistêmica seleção social, aproximando-se, verdadeiramente, dos ideais democráticos que devem nortear a produção normativa e impulsionar a almejada transformação cultural.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-70/reformas-processuais-penais-em-debate-a-disciplina-da-atividade-probatoria-e-o-ideal-politico-da-lei-n-11-690-2008/
Breve abordagem histórica sobre a lei dos Juizados Especiais Criminais
O presente trabalho apresenta algumas informações a respeito do surgimento da Lei no 9.099/95, especificamente sobre os Juizados Especiais Criminais. Colaciona-se também alguns trechos que revelam o pensamento jusfilosófico do Marquês de Beccaria, com o intuito de evidenciar que a Lei no 9.099/95, ao contrário de ser uma “revolução” na doutrina do Direito Processual Penal brasileiro, trata-se mais de uma relegitimação de um Direito Penal ultrapassado, de matriz iluminista, que se mostra ineficaz em relação à resolução de conflitos intersubjetivos. Elabora-se uma crítica ao termo “despenalização” utilizado por alguns dogmáticos e conclui-se que a referida lei permite uma maior eficiência estatal no exercício do seu monopólio da violência (ius puniendi). [1]
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO O presente ensaio tem por intento apresentar uma breve abordagem a respeito do surgimento da Lei no 9.099/95, especificamente a que deu origem aos chamados Juizados Especiais Criminais, uma vez que estes foram criados para aplacar uma crise institucional do Poder Judiciário na efetivação do ius puniendi em relação às contravenções penais e crimes de menor gravidade, como já estava sendo discutido durante a elaboração da Constituição de 1988, e não como uma adequação do discurso jurídico-penal brasileiro a um programa de “despenalização”, como comumente afirmado por vários dogmáticos que tratam do assunto. Ao que tudo indica, ocorreu uma readaptação do discurso jurídico penal brasileiro, do final do século XX, ao discurso jusracionalista do Marquês de Beccaria da segunda metade do século XVIII, como será visto adiante. 1. Inspiração legislativa para o surgimento dos Juizados Especiais Criminais Inicialmente salienta-se que a questão contemporânea sobre o acesso à justiça é, sobretudo, um assunto pertinente ao Direito Processual, visto que este aponta os diversos tipos de procedimentos que devem ser adotados na instância formal do Estado de Direito para a resolução de seus conflitos intersubjetivos, tanto na área do Direito Público quanto do Direito Privado. Certamente que pouco serve às pessoas um Ordenamento Jurídico ornamentado de declarações de Direitos, nos moldes da teoria do iluminismo jusracionalista e da técnica juspositivista, se não existirem estruturas estatais capazes de garantir a eficiência das leis nos casos concretos. Diante da necessidade de se reestruturar a prestação jurisdicional no Brasil, durante a década de 80, do século XX, o Legislador brasileiro editou a Lei no 7.244 de 07 de novembro de 1984[2], criando os “Juizados Especiais de Pequenas Causas”, com competência para as causas cíveis de valor não superior a 20 (vinte) salários-mínimos[3] e orientados pelos princípios instituídos no artigo 2o, que prescrevia: “O processo, perante o Juizado Especial de Pequenas Causas, orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando sempre que possível a conciliação das partes.” A mencionada lei foi considerada um sucesso total, sendo aplaudida, especialmente pelos magistrados, que viram milhares de causas (cíveis) serem resolvidas por intermédio da conciliação entre as partes e “desafogando” muitos cartórios judiciais pela forma célere e eficaz de resolução dos conflitos através do consenso entre as partes.[4] Parecia que o Legislador brasileiro – orientado pela Ciência Jurídica – havia descoberto que uma das formas mais eficazes de resolução dos conflitos é permitir o consenso direito entre as partes. E isso através das leis! Faltava, todavia, levar os princípios da informalidade e do consenso para a esfera do Processo Penal; e isso ocorreu com a promulgação da Lei no 9.099, de 16 de setembro de 1995.[5]  Comentou o Desembargador do Estado de São Paulo, Antônio Carlos Viana dos Santos, durante um ciclo de palestras em 1995, que foi na Associação Paulista de Magistrados “[…] que nasceu a origem da Lei 9.099, por volta de 85/86, enquanto ainda se desenvolvia o processo legislativo constituinte.”[6] Michel Temer, Deputado Constituinte e autor do Projeto original da Lei 9.099/95, parece confirmar essa origem dos Juizados Especiais Criminais: “Como surgiu a lei federal? Em 1989, logo após editada a Constituição de 1988, eu cuidei de reunir aqui em São Paulo vários juízes, promotores, tive o concurso da profa. Ada Pellegrini Grinover, que me auxiliou muito nessa tarefa, e acabamos formalizando um projeto que instituía ou que definia as chamadas causas de menor potencial ofensivo. Portanto, disciplinei com meu projeto (fui o veículo desse projeto) o chamado Juizado Especial Penal.”[7] De fato, com a promulgação da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, institui-se que: “Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; […].”  Nota-se que a Lei de 1984, que dispunha sobre os Juizados Especiais de Pequenas Causas, tinha competência para as ações cíveis, mas, com o advento da Constituição Federal de 1988, havia a previsão para a criação de juizados especiais para tratar de infrações penais de menor potencial ofensivo. Restou a pergunta: O que é uma “infração penal de menor potencial ofensivo”? 2. O surgimento dos Juizados Especiais Criminais Passados praticamente sete anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, sancionou a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, que “dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências.” Esta Lei, do artigo 1o ao 59 dispõe sobre o procedimento civil e do artigo 60 ao 92 dispõe sobre o procedimento criminal. Nas disposições gerais da parte criminal, na época de sua publicação, merecem destaque os artigos 60 e 61, in verbis: “Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por Juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo. Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.” Como revelou Michel Temer sobre a competência dos Juizados Especiais Criminais: “Ao definir quais seriam essas causas, dissemos que contravenções penais seriam atribuíveis a esse Juizado Penal, aquelas questões que envolvessem apenação até um ano de pena seriam julgadas pelo Juizado Penal.”[8] Assim, o Legislador de 1995 definiu que “menor potencial ofensivo” seria a infração para a qual a Lei Penal prevê uma aplicação de “pena” privativa de liberdade (prisão simples ou detenção) e/ou multa, sendo consideradas, para tanto, todas as contravenções penais e dezenas de crimes previstos no Código Penal e Leis extravagantes. Merece nota o fato que, se o objetivo do legislador brasileiro fosse resolver os conflitos intersubjetivos entre as pessoas e não aplicar as sanções advindas de uma legislação penal, deveria o Poder Legislativo reduzir amplamente o rol das infrações penais. Todavia, não foi isso que aconteceu, pois não ocorreram alterações nos tipos penais[9], mas tão somente uma flexibilização em determinados princípios do Direito Processual, objetivando a celeridade processual e aplicação de penas não privativas de liberdade aos infratores, representando uma tão propalada revolução[10] no Processo Penal. Os princípios que regem o Juizado Especial Criminal estão previstos no artigo 62: “Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.” Com tal dispositivo processual, tem-se a impressão de que a vítima foi “redescoberta” pelo legislador do final do século XX, e surgiram vários elogios para a inovação dada pela Lei no 9.099/95, visto que a tradicional pena privativa de liberdade para os infratores da lei penal estaria proscrita e a inovação legislativa permitiria a extinção da punibilidade por intermédio do consenso entre as partes envolvidas em um conflito criminal. Não podemos olvidar, todavia, que em se tratando de Direito Penal a vítima constante é o próprio Estado, que teve as sua lei penal violada.[11] Nesse sentido, já havia anunciado o iluminista Marquês de Beccaria, em sua famosa obra Dos delitos e das penas: “Com efeito, no caso de um delito, há duas partes: o soberano, que afirma que o contrato social foi violado, e o acusado, que nega essa violação. É preciso, pois, que haja entre ambos um terceiro que decida a contestação. Êsse terceiro é o magistrado, cujas sentenças devem ser sem apêlo e que deve simplesmente pronunciar se há um delito ou se não há”.[12] Tal postulado jusfilosófico encontra respaldo no artigo 100, caput, do Código Penal brasileiro, sendo que a grande maioria das infrações penal de nosso Ordenamento Jurídico-penal é de ação penal pública incondicionada, ou seja, com a Lei dos Juizados Especiais Criminais o Estado se “redescobriu” como vítima de infrações de menor potencial ofensivo. Nessa perspectiva, como o infrator das leis continua sendo a pessoa que viola uma norma penal soberanamente editada pelo Estado, percebe-se que a grande inovação da Lei dos Juizados Especiais Criminais foi permitir a informalidade para o início do ius persequendi[13] para efetivar com maior celeridade o ius puniendi.  O fato é que o Poder Judiciário pôde, a partir da referida Lei, formalizar e punir pequenas infrações que o Estado há tanto tempo vinha desprezando por falta de estrutura. A estratégia legislativa inaugurada pela Lei no 9.099/95, neste ponto, também parece encontrar orientação jusfilosófica na obra Dos delitos e das penas: “Às vezes, a gente se abstém de punir um delito pouco importante, quando o ofendido perdoa. É um ato de benevolência, mas um ato contrário ao bem público. Um particular pode bem não exigir a reparação do mal que se lhe fêz; mas o perdão que êle concede não pode destruir a necessidade do exemplo. O Direito de punir não pertence a nenhum cidadão em particular; pertence às leis, que são o órgão da vontade de todos. Um cidadão ofendido pode renunciar à sua porção dêsse direito, mas não tem nenhum poder sôbre a dos outros.[sic]”[14] Nesse sentido, interessante comparar tal pensamento do Marquês de Beccaria com as palavras do magistrado Marco Antônio Marques da Silva,  que durante um ciclo de palestras realizadas em São Paulo, alguns meses após a promulgação da Lei no 9.099/95, salientou: “Então, sem dúvida, estamos em face de um novo Direito Penal. Volto a insistir, ainda que com o princípio da autoridade mitigado, a autonomia da vontade reduzida é um começo. Talvez seja um começo para toda uma reforma do Direito Penal que cria a verdadeira ressocialização.” […] “Se pudéssemos fazer uma comparação, eu diria que com a mudança dos costumes fomos perdoando aqueles pecados veniais, os pecados pequeninos, aqueles do dia-a-dia que não precisariam de uma grande penitência, e depois chegamos às portas até de permitirmos pecados mortais. Eu diria que no campo criminal foi assim, nos fomos desprezando as pequenas infrações, aquelas que aconteciam todo dia mas também não faziam tanto mal à gente. […] Eu acho que é isso que os juizados vêm trazer para nós: a intenção de uma mudança, de tomada de posição, uma prestação jurisdicional mais rápida, mais imediata, algo que não nos traz de novo a via crucis que nós temos no processo penal.”[15] Por sua vez, no mesmo evento, o então membro do Ministério Público e Deputado Estadual paulista Dráusio Barreto exprimiu: “Não há dúvida alguma que os Juizados Especiais, tanto no cível quanto o criminal, trazem um conteúdo revolucionário, no bom sentido, para a nossa justiça, justiça que há muito tempo vem sendo criticada, justiça que sofre por parte da opinião pública, por parte da sociedade, um desgaste intenso na sensação de que ela não se materializa, que não acontece, de que é morosa, de que não é acessível, de que não é igualitária, de que ela trata os iguais de forma desigual. Essa lei federal, a 9.099, seguramente traz esse conteúdo de levar a justiça à nossa sociedade, especialmente à parcela mais carente do nosso povo, que não tem nenhum contato com nossa justiça. Ouvimos dizer de justiça gratuita no nosso país e no nosso Estado, mas sabemos que as coisas na prática não são bem assim, sabemos da dificuldade da nossa população em ter qualquer questão sua submetida ao Judiciário, a ausência de advogados, a ausência de procedimentos mais dinâmicos. E tudo isso, seguramente, pode tornar-se uma nova realidade através do funcionamento desses Juizados Especiais”.[16] Diante de tais opiniões, pode-se perceber que a Lei dos Juizados Especiais Criminais foi apresentada à sociedade como sendo uma inovação avançada em relação ao Direito Penal contemporâneo. Entretanto, se comparadas tais opiniões com o discurso do Marquês de Beccaria, do século XVIII, pode-se afirmar que ocorreu uma relegitimação do Direito Penal – simbólico e ultrapassado[17] –, permitindo ao Poder Judiciário formalizar e punir os “delitos de menor potencial ofensivo”, que historicamente escapavam à jurisdição do Estado constituindo a “cifra negra da delinqüência”[18]. Deveras, a inspiração para a criação dos Juizados Especiais Criminais parece ter sido a estrutura precária do Poder Judiciário, e não uma consciência do legislador de que o Direito Penal contemporâneo deve adequar-se ao princípio da intervenção mínima. Nas palavras de Michel Temer: “Eu começo, portanto, dizendo aos amigos um pouco a respeito da origem dos chamados Juizados Especiais, tanto cíveis para julgamento das causas cíveis de menor complexidade. Diz o Art. 98 da Constituição, quanto aos Juizados Penais para julgamento, diz a Constituição, das causas penais de menor potencial ofensivo. Apenas para rememorar, quero dizer que durante a Constituinte de 88 havia uma grande preocupação com a chamada morosidade do Poder Judiciário, havia uma preocupação extraordinária em fazer do Poder Judiciário um poder mais rápido, mais veloz, mais ágil. O que era buscado como exemplo naquela oportunidade era a experiência dos chamados Juizados de Pequenas Causas criados em nível infraconstitucional, em nível legal. E ao lado dos Juizados de Pequenas Causas também os chamados Juizados Informais de Conciliação. Criaram-se, paralelamente aos Juizados de Pequenas Causas, esses juizados que visavam única e simplesmente à conciliação entre partes envolvidas num conflito de natureza civil. Este exemplo foi levado para a Constituinte com o objetivo de criar alguns instrumentos na Constituição que tornassem mais ágil a prestação jurisdicional.” [sic] [19] A Lei no 9.099/95, portanto, surgiu com a necessidade de se “desafogar” o Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, aprimorar o poder simbólico do ius puniendi pelo Estado, isto é, ampliar de maneira sutil e discursiva a capacidade institucional de aplicação de sanções formais, inclusive em conflitos penais de menor potencial ofensivo, efetivando, de maneira simplificada e mais célere, o controle seletivo da sociedade de maneira paternalística; e não com o intuito amplamente declarado de se evitar a aplicação de pena privativa de liberdade ou “humanizar” o Direito Penal, que continua intacto. 3. Aspectos controvertidos da Lei dos Juizados Especiais Criminais Cumpre verificar que parte da dogmática processual penal brasileira afirma que a Lei no 9.099/95 promoveu uma “despenalização” no Direito Penal. Nesse sentido, Ada Pellegrini Grinover e outros, ao comentar a lei em questão, salientam: “O Poder político (Legislativo e Executivo), dando uma reviravolta na sua clássica política criminal fundada na crença dissuasória da pena severa (déterrance), corajosa e auspiciosamente, está disposto a testar uma nova via reativa ao delito de pequena e média gravidade, pondo em prática um dos mais avançados programas de ‘despenalização’ do mundo (que não se confunde com ‘descriminalização’)”[20] Com a devida vênia aos autores supra referidos, parece inadequado falar-se em “despenalização” em relação à Lei no 9.099/95, pois esta tão somente preconiza a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade pela aplicação imediata de pena de multa ou outras penas restritivas de liberdade[21]; isto é, a capacidade do Estado aplicar uma “pena” efetiva aumentou consideravelmente e, por isso, não há que se falar em não aplicação de sanção penal (despenalização). Não se descura, todavia, que a “reparação dos danos sofridos pelas vítimas” (artigo 74); a “transação penal” (artigo 76); a “aplicação de pena não privativa de liberdade” (artigo 62); a “suspensão (condicional) do processo” (artigo 89); e a exigência de representação nos crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa (artigo 88 da Lei no 9.099/95 c/c artigo 129, caput e § 6o, do Código Penal) – tornando-os crimes de ação penal pública condicionada à representação do ofendido –, podem ser considerados como um avanço no sentido de evitar a aplicação e execução de pena privativa de liberdade; mas não podem ser confundidos com “despenalização”, pois o legislador não alterou as leis penais, tanto que o critério de competência para o Juizado Especial Criminal é o quantum de pena previsto em cada tipo prescrito no Ordenamento Jurídico. Quanto à questão da “informalidade”, nota-se que, mesmo em se tratando da possibilidade de conciliação entre o infrator (autor do fato) e a vítima, na forma dos artigos 72 e 74 da Lei no 9.099/95, esse tipo de resolução dos conflitos entre as partes não pode, em hipótese alguma, ser considerada “informal”. Ao revés, com a flexibilização dos procedimentos pertinentes ao Processo Penal o que ocorre é uma possibilidade de extinção do ius puniendi com base nos princípios incólumes da ação penal, previstos no artigo 100, caput e parágrafos, do Código Penal; mas não a instituição de resolução de conflitos de maneira informal. Ademais, sobre a formalidade no processo penal, salientam Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco: “No processo penal, não há possibilidade de conciliação fora do processo. Mesmo para a transação anterior ao oferecimento da denúncia, facultada pelo art. 72 e ss. da lei n. 9.099/95, haverá sempre necessidade de controle jurisdicional: trata-se de conciliação extraprocessual por natureza, mas endoprocessual pelo momento em que pode ser efetivada (audiência preliminar).”[22] Mesmo na fase da Transação Penal (artigo 76 da Lei no 9.099/95), onde o Ministério Público pode propor uma pena não privativa de liberdade ao suposto autor do fato, como alternativa ao dever/poder de promover a ação penal pública (artigo 129, inciso I, da Constituição Federal), evidentemente o Estado teve por objetivo aumentar a sua capacidade de aplicar uma punição formal através de um “procedimento informal” ao infrator de suas normas penais[23]; em especial nas condutas de menor potencial ofensivo, que correspondem aos fatos mais frequentes que ocorrem no cotidiano das pessoas e que, por falta de estrutura do próprio Estado, constituíam a “cifra negra da criminalidade”. Nesse sentido, Maria Lúcia Karam expõe: “No Brasil, não muito depois da criação dos juizados especiais criminais, já se percebia esta “economia” funcional ao agigantamento do sistema penal. Em matéria publicada na imprensa em 1997, registrava-se que a criação dos juizados especiais criminais havia aumentado significativamente a imposição de penas alternativas no país, mas não implicara redução da população carcerária. Um dos entrevistados, embora entusiasta do suposto caráter liberalizante do Lei 9.099/95, reconhecia que as punições haviam aumentado sobre uma população de infratores, que antes não recebia punição efetiva. Era a constatação, no Brasil, no pouco tempo de aplicação da então nova lei, do que Pavarini menciona como “ampliação da rede de controle penal, para inclusão na área da criminalização secundária do que, de fato, antes lhe escapava”.”[24] Os métodos informais de resolução de conflitos penais entre os próprios envolvidos na infração penal, que antes da Lei no 9.099/95 fugiam da esfera de vigilância do Estado e muitas vezes eram obtidos através de acordos fora do Poder Judiciário – inclusive dentro das Delegacias, onde autoridades e agentes policias admoestavam as partes para não entrarem na aventura de uma ação penal e faziam acordos “informais” entre as pessoas –, ganharam um ambiente estatal formal para efetivar, de maneira célere, o Direito Penal construído historicamente como um instrumento de centralização política e controle de cada indivíduo para torná-lo um súdito/cidadão obediente ao discurso oficial do Estado soberano.[25] Ainda, motivado pela necessidade de demonstrar maior eficiência estatal por intermédio do controle de um maior número de infrações penais, o Poder Legislativo, por intermédio da Emenda Constitucional no 22, de 19 de março de 1999, acrescentou ao artigo 98, da Constituição Federal de 1988, o parágrafo único: “Art. 98. […] Parágrafo único. Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal.” Assim, permitido Constituição, o Poder Legislativo editou a Lei no 10.259, de 12 de julho de 2001, aumentando a competência dos Juizados Especiais Criminais (inclusive no âmbito estadual), como pode ser observado no seguinte artigo: “Art. 2o Compete ao Juizado Especial Federal processar e julgar os efeitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo. Parágrafo único: Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, ou multa.” Com tal estratégia, o Estado flexibilizou ainda mais a sua capacidade de aplicar penas de maneira “informal” e célere aos infratores, oferecendo o “benefício” de uma pena não privativa de liberdade em troca da submissão do suposto autor dos fatos a uma pena mais indulgente; ressaltando-se sempre que as infrações penais que possibilitam a extinção do processo entre os próprios envolvidos no conflito penal – ação penal privada e ação penal pública condicionada à representação do ofendido – são de porcentagem extremamente reduzida em comparação às infrações que são submetidas diretamente ao Ministério Público para a aplicação de pena imediata não privativa de liberdade, como dispõe a Lei dos Juizados Especiais Criminais. Embora a Lei no 10.259/01 fosse amplamente aplicada – por analogia – nos Juizados Especiais Criminais na esfera da Justiça Estadual, em 28 de junho de 2006 foi editada a Lei no 11.313, que estabeleceu definitivamente a competência dos Juizados Especiais Criminais no Brasil, sendo que qualquer infração penal cuja pena não seja superior a 2 (dois) anos de pena privativa de liberdade ou multa, são entendidos como delitos de “menor potencial ofensivo”. Tal estratégia evidentemente indica a preocupação estatal em punir mais e melhor as condutas criminosas menos graves e, como já salientava Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria no século XVIII: “Como os homens não se entregam, a princípio, aos maiores crimes, a maior parte dos que assistem ao suplício de um celerado, acusado de algum crime monstruoso, não experimentam nenhum sentimento de terror ao verem um castigo que jamais imaginam poder merecer. Ao contrário, a punição pública dos pequenos delitos mais comuns causar-lhes-á na alma uma impressão salutar que os afastará de grandes crimes, desviando-os primeiro dos que o são menos.”[26] CONCLUSÃO Enfim, com o presente ensaio, pode-se notar que embora tenham se passado mais de dois séculos da famosa obra Dos delitos e das penas, do Marquês de Beccaria, ao que tudo indica o Direito Penal e Processual Penal continuarão reproduzindo o saber jusracionalista iluminista legalista e centralizador, pois, ao contrário de se tentar resolver os conflitos intersubjetivos das pessoas e pacificar a sociedade do século XXI, o Estado continua tentando capilarizar cada vez mais seu poder simbólico na sociedade, mesmo que para isso tenha que continuar impondo a todos os indivíduos uma legislação penal pautada em “informalidade” e “celeridade” para aprimorar e alargar o exercício do monopólio da violência (ius puniendi).
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-70/breve-abordagem-historica-sobre-a-lei-dos-juizados-especiais-criminais/
A inconstitucionalidade da Lei do Abate
Aborda a constitucionalidade da Lei do Abate no que tange às medidas extremas adotadas pelo Decreto n. 5.144, de 16 de julho de 2004. Nessa esteira, a autorização para destruição de aeronaves suspeitas de tráfico de entorpecentes, que não atendam aos procedimentos elencados na referida lei, constitui verdadeira afronta aos princípios basilares de nossa Carta Magna. A Lei do Abate, portanto, como expressão máxima da “Teoria do Direito Penal do Inimigo” (Jakobs) deve ser expurgada de nosso ordenamento jurídico, por se tratar de norma absolutamente inconstitucional.
Direito Processual Penal
Resumo: Aborda a constitucionalidade da Lei do Abate no que tange às medidas extremas adotadas pelo Decreto n. 5.144, de 16 de julho de 2004. Nessa esteira, a autorização para destruição de aeronaves suspeitas de tráfico de entorpecentes, que não atendam aos procedimentos elencados na referida lei, constitui verdadeira afronta aos princípios basilares de nossa Carta Magna. A Lei do Abate, portanto, como expressão máxima da “Teoria do Direito Penal do Inimigo” (Jakobs) deve ser expurgada de nosso ordenamento jurídico, por se tratar de norma absolutamente inconstitucional. Palavras-chave: Inconstitucionalidade, princípios constitucionais, abate, aeronaves, inimigo. A questão da constitucionalidade da norma que permite o abate de aeronaves (art. 4º do Decreto n. 5.144, de 16 de julho de 2004) é matéria há muito tempo discutida entre as diversas classes da população. Embora existam aqueles que defendam a aplicação da referida lei, não resta dúvida de que a norma é flagrantemente inconstitucional, uma vez que vai de encontro aos princípios basilares de nossa Carta Magna. O art. 4º do Decreto n. 5.144, de 16 de julho de 2004, assim dispõe: a aeronave suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins que não atenda aos procedimentos coercitivos descritos no art. 3º será classificada como aeronave hostil e estará sujeita à medida de destruição. Pela leitura do dispositivo, claramente percebemos que a lei autoriza a destruição de aeronaves suspeitas de tráfico de drogas ilícitas que não atendam aos procedimentos coercitivos elencados no seu art. 3º (medidas de averiguação, intervenção e persuasão). Cumpre ressaltar que, conforme art. 5º do mesmo texto, a medida de destruição consiste no disparo de tiros, realizados pela aeronave de interceptação, com a finalidade de provocar danos e impedir o prosseguimento do vôo da aeronave hostil. Os adeptos da corrente que legitima a “Lei do Abate”, assim popularmente conhecida, fazem parte do grupo de seguidores da tese do Direito Penal do Inimigo, desenvolvida por Günther Jakobs a partir de 1985. Para Jakobs, o autor de crimes mais graves, que afetam bens jurídicos mais relevantes, deve ser tratado como inimigo pelo Estado, não devendo contar com os mesmos direitos do cidadão. O “inimigo”, dessa maneira, não é considerado pessoa, uma vez que não se comporta como cidadão, não merecendo ser tratado como tal. Essa ideologia, como máxima expressão do punitivismo a todo custo, autoriza a aplicação de penas mais severas aos conceituados como inimigos, não recaindo sobre eles as garantias constitucionais, penais e processuais penais de nosso Estado Democrático de Direito. A impunidade e a comoção popular ao combate de crimes são certamente os argumentos impulsionadores modernos de tal teoria. Assim explica o Adel El Tasse: “Uma preocupação especial surge nos momentos de grande comoção social, como atualmente vivido na América Latina, com o império funcional do discurso da impunidade, pois há uma tendência a que as pessoas conduzam-se ao irracionalismo total e atuem tão qual avestruz escondendo-se atrás de aumentos desnecessários da sanção penal e do sacrifício de garantias e direitos fundamentais, para que os problemas efetivos da sociedade que levam à sua conflituosidade não sejam enfrentados.” (TASSE, 2009, p. 71) Com isso, não é difícil percebermos que a Lei do Abate constitui pura manifestação da teoria do Direito Penal do Inimigo, na medida em que permite a destruição de aeronaves e, obviamente, de seus passageiros, sem que sejam observadas as regras primordiais do nosso ordenamento jurídico, permitindo um Direito Penal contrário à Constituição, na medida em que se mitigam garantias, combatendo, sumariamente, perigos e não exatamente exteriorizações de condutas. Entretanto, quais são os principais preceitos e garantias constitucionais violados com a aplicação do Decreto em discussão? Para os seguidores da corrente que defende a inconstitucionalidade da Lei do Abate (garantistas e minimalistas, expressões de Luigi Ferrajoli, Eugênio Raul Zaffaroni, dentre outros), posição corretamente adotada, a destruição de aeronaves fere, em primeiro lugar, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, fundamento do Estado Democrático de Direito constante no art. 1º da nossa Carta Magna. O valor da dignidade, como princípio precursor dos demais, pode ser entendido como o absoluto respeito aos direitos fundamentais, assegurando-se condições dignas de existência para todos[1]. Ora, se a Constituição de 1988 prima pelas condições dignas de existência para todos, as medidas adotadas pela norma que autoriza o abate são incompatíveis com o direito à vida e à integridade física garantida ao cidadão. A destruição de aeronaves nada mais é, pois, que a introdução da pena de morte em nosso país, expressamente vedada pelo art. 5º, XLVII da CF[2]. Ademais, a aplicação de qualquer pena, sem que haja o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), o contraditório e a ampla defesa (CF, art. 5º, LV), é medida sumária e, portanto, proibida em nosso sistema. Para que o Estado possa aplicar medida punitiva, necessária se faz a instauração de um processo, como meio de proteção do indivíduo aos abusos do poder estatal. Uma vez iniciado o processo, ou até mesmo antes dele, o acusado terá sua chance de defender-se, evitando erros e injustiças que a aplicação sumária de pena pode acarretar. É dizer que a destruição de aeronaves hostis que não atendam aos procedimentos coercitivos elencados do art. 3º constitui verdadeira afronta às garantias individuais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, dando margem também a equívocos irreparáveis, uma vez que o bem jurídico posto em jogo é a vida. Como se não bastasse, além dos fundamentos e garantias acima descritos, a Lei do Abate ainda viola o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII). De acordo com esse princípio, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O abate, aqui, mais uma vez vai de encontro ao sistema constitucional, quando presume a culpa, adotando medidas extremas e desproporcionais, enquanto, na verdade, deveria presumir a inocência dos supostos envolvidos em tráfico de entorpecentes. Portanto, não nos resta dúvida de que a Lei do Abate deve ser declarada totalmente inconstitucional, por tratar-se de regra contrária aos princípios e fundamentos de nosso Estado, constituindo expressão máxima da teoria arcaica e regressiva do Direito Penal do Inimigo.   Referências: JACKOBS, Günther, CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do Inimigo. Trad. CALLEGARI, André Luis, GIACOMOLLI, Nereu José. Livraria do Advogado, 2005. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 3. ed. 2008. PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais, 8. ed. Ver. E atual. São Paulo: Saraiva, 2008. (Coleção sinopses jurídicas; v. 17). TASSE, Adel El. O que é impunidade. Curitiba: Juruá, 2009. Notas: [1] PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais, 8. ed. Ver. E atual. São Paulo: Saraiva, 2008. (Coleção sinopses jurídicas; v. 17), p. 65. [2] A pena de morte só é permitida em caso de guerra declarada. Pós-graduando em Ciências Penais Latu Sensu pela Rede de Ensino LFG, Advogado
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-70/a-inconstitucionalidade-da-lei-do-abate/
A obrigatoriedade do teste do “bafômetro” em face da Lei 11.705/08: Uma análise crítica
O presente trabalho de graduação tem por objetivo o estudo e a análise das discussões sobre as seguintes questões: a classificação do crime de embriaguez ao volante; a (não)obrigatoriedade do teste do etilômetro (bafômetro) e a (in) constitucionalidade das penalidades e medidas administrativas aplicadas aos que se negam a realizar o teste do “bafômetro”. Através da bibliografia divergente utilizada na elaboração desse trabalho, concordamos com a corrente que classifica o crime de embriaguez ao volante, previsto no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, como um crime de perigo abstrato. Com o advento da “Lei Seca”, o legislador suprimiu desse artigo a exigência de expor a dano potencial a incolumidade de outrem. Portanto, para a configuração do crime, basta que o condutor esteja dirigindo seu veículo com concentração de álcool igual ou superior a 6 (seis) decigramas por litro de sangue, não sendo necessária a comprovação de que alguém foi exposto a algum perigo, pois este é presumido através do comportamento delituoso do condutor que se encontra sob a influência de álcool. Quanto à questão da (não)obrigatoriedade do teste do “bafômetro” e a conseqüente (in)constitucionalidade das penalidades e medidas administrativas advindas da recusa deste, também sobressaem as divergências de pensamentos. Em momento algum de nosso trabalho deixaremos de reconhecer que os direitos individuais fundamentais devem ser respeitados e reconhecidos pelo Poder Público, mas mostraremos que esses direitos, quando em aparente conflito com outros direitos também constitucionalmente protegidos, porém coletivos e públicos, podem sofrer certa limitação, através do princípio da Ponderação, de forma a se harmonizar com os interesses e os bens coletivamente relevantes e igualmente protegidos. Em virtude disso, temos, de um lado, os direitos individuais do condutor e, de outro, os direitos individuais e coletivos da população em geral, tais como o direito à vida e à segurança pública, que são afrontados quando o motorista ingere bebida alcoólica e em seguida assume a direção de um veículo. Com base nos princípios da Legalidade e da Ponderação buscaremos dar o embasamento legal e necessário, a fim de demonstrar que é lícito às autoridades fiscalizatórias utilizarem o teste do “bafômetro” como instrumento de prevenção às tragédias ocorridas no trânsito brasileiro, de forma que o condutor abordado não possa se recusar ao teste de alcoolemia por meio do etilômetro sem sofrer as devidas sanções.[1]
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO No decorrer das últimas décadas, o trânsito brasileiro vem sendo palco de inúmeras tragédias. O crescente número de acidentes colaborou diretamente para levar nosso País a figurar entre os campeões mundiais de mortes no trânsito. As estatísticas estimam que ocorram entre 30 mil e 45 mil mortes por ano, das quais 70% teriam o envolvimento do fator álcool. Além disso, seriam aproximadamente 377 mil feridos por ano. Os números são assustadores, porém são o reflexo da realidade brasileira. A Lei de Trânsito anterior, Lei 5.108/66 (CNT), regulamentada pelo Decreto 62.127/68, pelo desuso e pela omissão de suas normas que não previam qualquer espécie de crime aos condutores de veículos, já não exercia o poder de limitação ao comportamento do condutor, que, a todo o momento, desrespeitava os ordenamentos legais, pois não havia por parte das autoridades constituídas uma ação efetiva de repressão. Esse fato colaborou, somente, para aumentar o sentimento público de impunidade e estimular o cometimento de infrações. Preocupado com essa situação, o legislador pátrio instituiu o novo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), através da Lei n.º 9.503 de 22 de setembro de 1997. O CTB foi concebido com o intuito de tentar resolver, ou pelo menos minimizar, a problemática da associação do consumo de bebida alcoólica à direção de veículo automotor. Apesar do rigor de suas normas, o CTB não obteve os resultados almejados e a mortalidade no trânsito brasileiro continuou a crescer. A perspectiva de diminuição das tragédias não se concretizou e coube ao legislador promover alterações na legislação de trânsito brasileira.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/a-obrigatoriedade-do-teste-do-bafometro-em-face-da-lei-11-705-08-uma-analise-critica/
Medidas protetivas da Lei Maria da Penha: aplicação analógica a meninos e homens
É possível aplicar as medidas protetivas da Lei Maria da Penha a situações nela não previstas, mediante recurso à analogia? O artigo discute essa possibilidade sob o prisma teórico.
Direito Processual Penal
Resumo: É possível aplicar as medidas protetivas da Lei Maria da Penha a situações nela não previstas, mediante recurso à analogia? O artigo discute essa possibilidade sob o prisma teórico.  Palavras-chave: Direito Processual Penal; Lei Maria da Penha; Medidas Protetivas; Medidas Cautelares. Abstract: Is it possible to apply the provisional measures concerning domestic violence against women to other risky situations, based on analogy? The article examines the topic by a theoretical perspective. Keywords: Criminal Procedural Law; Brazilian Domestic Violence Act; Provisional Measures. Sumário: 1 Lei Maria da Penha; 2 Medidas cautelares na legislação comum e na Lei Maria da Penha; 3 Possibilidade de analogia; 4 Palavras finais; Bibliografia. 1.Lei Maria da Penha[1]. A necessidade de que nós mulheres sejamos protegidas contra a violência perpetrada no âmbito das relações afeto, domésticas e familiares, é reconhecida por todas as sociedades evoluídas no mundo atual. Mais de 180 países aderiram à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, elaborada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Plenamente adotada pelo Brasil em 1994[2], a Convenção diz em seu preâmbulo: “a participação máxima da mulher, em igualdade de condições com o homem, em todos os campos, é indispensável para o desenvolvimento pleno e completo de um país, para o bem-estar do mundo e para a causa da paz”. No artigo 2º, os países comprometem-se a seguir uma “política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher” e, especialmente, a “adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou derrogar […] usos e práticas que constituam discriminação contra a mulher”. A título de esclarecimento, a expressão “discriminação contra a mulher” assume significado amplíssimo na convenção, abarcando, em síntese, toda restrição fundada no gênero que prejudique o gozo de direitos humanos pela mulher, em igualdade de condições com o homem (art. 1º[3]). Nesse sentido, a submissão da mulher à violência doméstica ou familiar, com a complacência das autoridades públicas, é, às escâncaras, uma forma de discriminação.    Os países do nosso continente firmaram, ainda, em Belém do Pará, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, promulgada no Brasil pelo Decreto 1.973, de 1º de agosto de 1996. Diz seu art. 3º: “Toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto no âmbito público, como no privado”, enquanto o art. 4º especifica certos direitos da mulher: direito a que se respeite sua vida; direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral; direito a que se respeite a dignidade inerente a sua pessoa. No preâmbulo, os países signatários assim justificaram a necessidade de afirmar tais direitos: a “violência em que vivem muitas mulheres da América, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, é uma situação generalizada”. Além disso, reconheceram ter a “responsabilidade histórica de fazer frente a esta situação para procurar soluções positivas”.  Realmente, os números são alarmantes, como se lê na Exposição de Motivos da Lei 11.340/06[4]: “[…] Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar – PNAD do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, no final da década de 1980, constatou que 63% das agressões físicas contra as mulheres acontecem nos espaços domésticos e são praticadas por pessoas com relações pessoais e afetivas com as vítimas. A Fundação Perseu Abramo, em pesquisa realizada em 2001, por meio do Núcleo de Opinião Pública, investigou mulheres sobre diversos temas envolvendo a condição da mulher, conforme transcrito abaixo: “A projeção da taxa de espancamento (11%) para o universo investigado (61,5 milhões) indica que pelo menos 6,8 milhões, dentre as brasileiras vivas, já foram espancadas ao menos uma vez. Considerando-se que entre as que admitiram ter sido espancadas, 31% declararam que a última vez em que isso ocorreu foi no período dos 12 meses anteriores, projeta-se cerca de, no mínimo, 2,1 milhões de mulheres espancadas por ano no país (ou em 2001, pois não se sabe se estariam aumentando ou diminuindo), 175 mil/mês, 5,8 mil/dia, 243/hora ou 4/minuto – uma a cada 15 segundos.” O Brasil elaborou recentemente a Lei Maria da Penha, para proteger as mulheres da violência doméstica e familiar. O diploma legal elege expressamente esse propósito, referindo, no preâmbulo, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Aliás, o próprio nome pelo qual se tornou conhecida a Lei 11.340/2006 —Lei Maria da Penha— revela seu fim precípuo. Em 29 de maio de 1983, a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de tentativa de homicídio praticada por seu marido Marco Antônio Heredia Viveiros, economista, que disparou contra ela durante o sono. A agressão deixou a vítima paraplégica. Duas semanas depois de voltar do hospital, Maria da Penha sofreu novo atentado contra sua vida: o marido tentou eletrocutá-la enquanto ela se banhava, após o que se divorciaram. Entre a prática dessa dupla tentativa de homicídio e a prisão do criminoso, transcorreram 19 anos e 6 meses. Em razão da demora, o Brasil foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que chegou às seguintes conclusões no Relatório nº 54, de 2001[5]: “3. Que o Estado tomou algumas medidas destinadas a reduzir o alcance da violência doméstica e a tolerância estatal da mesma, embora essas medidas ainda não tenham conseguido reduzir consideravelmente o padrão de tolerância estatal, particularmente em virtude da falta de efetividade da ação policial e judicial no Brasil, com respeito à violência contra a mulher. 4. Que o Estado violou os direitos e o cumprimento de seus deveres, por seus próprios atos omissivos e tolerantes da violação infligida.” Para solucionar os problemas identificados, a Lei Maria da Penha trouxe, inter alia, um novo rol de medidas cautelares a serem decretadas no curso da investigação ou processo penal, algumas das quais conversíveis em prisão preventiva, se necessário. A conversão, vale notar, é possível mesmo em delitos que, em regra, não autorizam a preventiva, como ameaça, vias de fato, lesões corporais e crimes contra a honra, geralmente punidos com detenção[6]. Embora a Lei Maria da Penha se destine, histórica e textualmente, às meninas e mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar, será possível a aplicação analógica das medidas protetivas nela previstas a meninos e homens? 2.Medidas cautelares na legislação comum e na Lei Maria da Penha. No processo penal, as mais conhecidas cautelares são as prisões provisórias, entre as quais a preventiva serve como paradigma (art. 312 do CPP[7]). Todavia, a preventiva restringe-se tradicionalmente aos crimes dolosos punidos com reclusão, excluídas as contravenções e alcançados os crimes punidos com detenção somente quando o investigado ou acusado é vadio, de identidade duvidosa ou reincidente em crime doloso (art. 313 do CPP[8]). Fora as prisões e a liberdade provisórias, de feição pessoal, o Código de Processo Penal disciplina cautelares incidentes sobre bens, como o arresto, o sequestro, a hipoteca legal e a busca e apreensão. Na experiência brasileira (e certamente na de outros países), o regime cautelar comum revelou-se insuficiente para conter a violência doméstica e familiar, muitas vezes praticada mediante reiteradas lesões corporais ou agressões verbais punidas com detenção. Em acréscimo, a vítima pode depender economicamente do agressor, com ele mantendo laços civis, o que torna a prisão cautelar, desacompanhada de providências civis, como a referente aos alimentos provisórios, um ônus excessivo, induzindo-a a manter em segredo os abusos e a tolerá-los.     Para atender a essas especificidades, a Lei Maria da Penha inovou o elenco de medidas cautelares e conferiu poderes adicionais ao juiz criminal nos delitos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher (arts. 22, 23 e 24): “Art. 22 – Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III – proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.[…] Art. 23 – Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV – determinar a separação de corpos. Art. 24 – Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. […]” Finalmente, a Lei Maria da Penha dotou as medidas protetivas penais e a alimentícia de especial eficácia ao prever a decretação da prisão preventiva para garantir sua execução. Um breve esclarecimento: entre as cautelares listadas, algumas possuem natureza penal, enquanto outras são de natureza civil[9]. Somente as primeiras, além daquela do art. 22, V (alimentos provisórios), podem ensejar a preventiva do art. 313, IV, do Código de Processo Penal, cuja extensão a todas as cautelares civis seria desarrazoada e, nos casos do art. 24, I, II e IV, equivaleria até mesmo a alargar o campo da prisão civil por dívida, restrito ao devedor de alimentos, por força de norma de estatura supralegal (art. 7º, item 7[10], do Pacto de São José da Costa Rica). Além de diferir do regime cautelar do Código de Processo Penal, o regime traçado na Lei 11.340/2006 não encontra similar em outros estatutos protetivos, como o das crianças e adolescentes (Lei 8.069/1990) e o dos idosos (Lei 10.741/2003). Constata-se, portanto, verdadeira lacuna quanto às vítimas de violência doméstica e familiar do sexo masculino. 3. Possibilidade de analogia. A analogia é o método de autointegração do direito pelo qual, no julgamento do caso concreto, a lacuna legislativa é preenchida com a mesma resposta dada pelo legislador a uma situação específica que, embora não seja aquela sob exame, com ela se identifique em essência. Para operar-se a analogia, são pressupostos: (1) omissão legislativa; (2) identidade de razões entre a situação prevista e a imprevista. “Por mais previdente que seja o legislador”, ensina Tornaghi, “é possível que não haja regulado algo que devia regular”. Será necessário, então, superar a omissão, pois, prossegue o autor, “a lei pode ser lacunosa mas o Direito não”[11].  No processo penal, a analogia é admitida expressamente no art. 3º do codex: “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.” Como esclarece Frederico Marques, o Código de Processo Penal foi claro, “para evitar que se procurasse impor, no domínio do processo, a série de restrições pertinentes ao Direito Penal sobre a analogia”[12]. A Lei 11.340/2006, como vimos, não estende seu regime cautelar a meninos e homens submetidos a violência doméstica e familiar, dirigindo-se a meninas e mulheres. Em acréscimo, outros estatutos protetivos, como o das crianças e adolescentes ou o dos idosos, não preveem nada semelhante. Embora o art. 130[13] do Estatuto da Criança e do Adolescente até admita, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum, não se tem aí uma providência penal, mas civil, a ser determinada pelo juiz da infância e juventude, como resulta da leitura casada do dispositivo citado com o art. 146[14]. Tampouco se encontra, na Lei 8.069/1990, permissão de prisão preventiva, mesmo quando necessária para a execução da ordem de afastamento. Portanto, a legislação brasileira contempla um regime cautelar penal para meninas e mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, mas silencia em relação a meninos e homens. Identificada a lacuna, haverá identidade de razões na situação de umas e de outros a demandar a analogia? Sim. Nem se alegue que a Lei Maria da Penha se destina às pessoas do sexo feminino —um argumento estéril, quando não se discute sua aplicação direta, pura e simples, aos meninos e homens, mas sim a aplicação analógica. Como lembra Reale, “o pressuposto do processo analógico é a existência reconhecida de uma lacuna na lei”[15]. Alcançasse a Lei Maria da Penha todas as pessoas, indistintamente, seria despiciendo até mesmo invocar a analogia. Se o pai é denunciado por praticar reiterados maus tratos contra sua filha de 7 anos, o juiz criminal ou, se houver, do juizado da mulher poderá cautelarmente ordenar-lhe que deixe a residência familiar, pague alimentos provisórios e se afaste da ofendida, com isso pondo fim à sucessão de ilícitos. Há, para tanto, lei expressa: art. 22, I, III, a, e V, da Lei 11.340/2006. E, se a violência for praticada contra menino, nas mesmas condições, o juiz do juizado especial criminal poderá conceder as mesmas medidas cautelares, pois, apesar do vazio legislativo, a posição de ambas as vítimas é essencialmente igual. Considerações semelhantes merecem ser tecidas a respeito do idoso submetido à violência psicológica praticada por seu filho, mantenedor e proprietário do lar comum, que diariamente o ameaça de morte e injuria. Assim como a idosa nessa situação, fará jus às medidas protetivas da Lei Maria da Penha. Tanto é possível que meninos e homens sejam vítimas, que, em alguns países, as leis repressivas da violência doméstica são neutras diante do gênero. Seriam os homens neozelandeses susceptíveis desse tipo de violência, mas os brasileiros não? Quem poderá convencer o menino vítima de abusos sexuais praticados pelo pai de que não merece a mesma tutela da irmã, em iguais condições, por ser brasileiro e do sexo masculino? Na verdade, a “desigualdade concreta e real entre o ser humano homem e o ser humano mulher”[16], invocada por Pacelli para negar às pessoas do sexo masculino o pálio da Lei Maria da Penha, somente é concreta e real em termos gerais e amplos, na comparação entre grandes grupos populacionais, não passando de um mito nas relações intersubjetivas individualizadas. Até mesmo a “desigualdade física”, considerada “de todo relevante” pelo autor, pode, no caso concreto, ser desmentida, seja porque o homem é uma criança ou um idoso, seja porque a fulana é mais forte do que o fulano. Afinal, quantos homens brasileiros se creem mais fortes do que a taekwondista londrina Natália Falavigna? No mais, a agressão psicológica, sexual, patrimonial e moral não pressupõe o recurso à força muscular do agressor, e pode caracterizar a violência doméstica e familiar.     O legislador legisla para todos; o juiz julga para a maria e o joão. Que diferença faz, para o joão, ser mais disseminada a violência doméstica e familiar contra a mulher, se ele está sendo perseguido por maria, que, descontente com o fim do casamento, ameaça queimá-lo vivo e destruir-lhe os bens, tendo já incendiado seu carro? 4 Palavras finais. É bastante disseminada no Brasil a violência doméstica e familiar contra a mulher, o que deve ser considerado na formulação de políticas públicas, justificando, por exemplo, a implantação de delegacias e juizados especializados. De fato, o ambiente de delegacias e juizados criminais comuns, onde predominam profissionais do sexo masculino, comumente despreparados para lidar com a violência doméstica, mostra-se intimidador para as vítimas mulheres. Afasta-se, portanto, a analogia para defender “a delegacia e o juizado do homem”, porque inexiste identidade de razões: o ambiente masculino não é intimidador para as vítimas homens. Por outro lado, em casos concretos e individualizados, meninos e homens podem ser submetidos a agressões no contexto doméstico, familiar ou afetivo, hipótese em que precisam, tanto quanto as “marias da penha”, de tutela efetiva do Judiciário e fazem jus ao sistema cautelar da Lei 11.340/2006. Cabe, agora, a analogia, porque há identidade de razões. Para ilustrar nosso ponto de vista, digamos que um novo tipo de vírus deflagre uma epidemia e 90% das vítimas sejam mulheres. Nesse contexto, as políticas públicas deverão ser orientadas prioritariamente ao público feminino —alvo preferencial do vírus—, mas não se poderá recusar aos homens contaminados, embora em menor número, o medicamento adequado. Da mesma forma, a violência em casa e nas relações afetivas atinge, em maior proporção, as meninas e mulheres, o que justifica a criação de um juizado da mulher (feiamente denominado pela lei de “juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher”) e a edição de um estatuto protetivo específico. No entanto, caso um menino ou homem padeça do mesmo mal, não fará nenhum sentido negar-lhe as medidas protetivas adequadas. Tudo depende de, no caso concreto, encontrar-se ele em alguma das situações descritas no art. 7º[17] da Lei Maria da Penha.     Ubi eadem ratio, ibi idem jus.   Bibliografia. CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), comentada artigo por artigo. 2ª ed. Rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007. MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. v. I. 2ª ed. Campinas: Millennium, 2000. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 12ª ed. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2009. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. ROSA, Brunna. Saindo da invisibilidade. In: Fórum, 56, nov. 2007. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/EdicaoNoticiaIntegra.asp?id_artigo=1401>. Acesso em: 10 set. 2009. SANTO, Iane Garcia do Espirito. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 35, 01 dez. 2006. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_ id=1521. Acesso em: 10 set. 2009. TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. v. I. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991.   Notas: [1] A autora agradece o amigo e promotor de justiça Rafael Pureza, que gentilmente leu e comentou este artigo. [2] A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, foi assinada pelo Brasil, em Nova York, no dia 31 de março de 1981, com reservas aos seus artigos 15, parágrafo 4º, e 16, parágrafo 1º, alíneas a, c, g e h, referentes à igualdade no casamento. Com essas restrições, a convenção foi promulgada pelo Decreto 89.460, de 20 de março de 1984. Todavia, em 20 de dezembro de 1994, após deliberação do Congresso Nacional, o Brasil retirou as reservas mencionadas, o que levou à edição do Decreto 4.377, de 13 de setembro de 2002, atualmente em vigor. O Brasil aderiu também ao Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (promulgado pelo Decreto 4.316, de 30 de julho de 2002), que passou a viger no Brasil em 28 de setembro de 2002, com a previsão de um mecanismo para conferir maior efetividade à convenção. Segundo os arts. 1º e 2º do protocolo, indivíduos ou grupos, sob a jurisdição do Brasil, podem comunicar ao Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (ONU) a violação a quaisquer direitos previstos na convenção, desde que esgotados os recursos internos. [3] “Para os fins da presente Convenção, a expressão ‘discriminação contra a mulher’ significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.” [4] Disponível em: <http://200.130.7.5/spmu/legislacao/projeto_lei/expo_motivos.htm>. Acesso em: 10 set. 2009. [5] Informações e transcrição disponíveis em: <http://www.cladem.org/portugues/regionais/litigio_ internacional/CAS2-relatorio54.ASP>. Acesso em: 10 set. 2009. Sobre o lapso entre as agressões e a prisão: ROSA, Brunna. Saindo da invisibilidade. In: Fórum, 56, nov. 2007. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/EdicaoNoticiaIntegra.asp?id_artigo=1401>. Acesso em: 10 set. 2009. [6] Excepcionalmente a pena pode ser de reclusão, como acontece com a injúria consistente “na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência” (art. 140, par. 3º, do CP) e nas lesões corporais graves ou gravíssimas (art. 129, pars. 1º e 2º, do CP). [7] “A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova de existência do crime e indícios suficientes da autoria.” [8] “Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos: I – punidos com reclusão; II – punidos com detenção quando se apurar que o indiciado é vadio ou, havendo dúvida sobre sua identidade, não fornecer ou não indicar elementos para esclarecê-la; III – se o réu tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no parágrafo único do artigo 46 do Código Penal; IV – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.” [9] Não há extravagância alguma na concentração de competências criminais e cíveis no juízo criminal, coisa que o Código de Processo Penal também faz, por exemplo, ao determinar que o juiz fixe o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração na sentença condenatória (art. 387, IV, do CPP). Quanto ao juizado da mulher, será um juízo criminal especializado, assim como o é a vara de execução penal, servindo para ele o mesmo comentário.   [10] “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandatos de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.” [11] TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. v. I. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 26. [12] MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. v. I. 2ª ed. Campinas: Millennium, 2000. p. 41. [13] “Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.” [14] “A autoridade a que se refere esta Lei é o Juiz da Infância e da Juventude, ou o Juiz que exerce essa função, na forma da Lei de Organização Judiciária local.” [15] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 300. [16] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 12ª ed. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2009. p. 691. [17] “São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.” Promotora de Justiça – MG. Doutora em direito internacional – UERJ
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/medidas-protetivas-da-lei-maria-da-penha-aplicacao-analogica-a-meninos-e-homens/
Breves considerações sobre a garantia da fundamentação judicial: O mito da neutralidade. Requisitos e Vícios da Decisão
O objeto de estudo é o dever de fundamentação das decisões judiciais, calcando-se tal dever em verdadeira garantia expressa na Constituição Federal (art. 93, IX). Demonstrou-se que é por meio da motivação que se torna viável a análise de várias outras garantias fundamentais atreladas ao devido processo legal. Mostrou-se, também, que a motivação do magistrado não é somente um discurso pautado pela racionalidade, como se houvesse uma fórmula matemática para tanto. É dotada de racionalidade e de certa subjetividade, pois a emoção também integra “decisium” judicial, devendo reconhecer-se que, consciente ou inconscientemente, aspectos psicológicos do julgador compõem a motivação. Por derradeiro, demonstrou-se que, se não observados os requisitos da motivação, se estará diante de uma nulidade absoluta que macula indelevelmente o devido processo legal.
Direito Processual Penal
1. A FUNDAMENTAÇÃO ENQUANTO GARANTIA: O CONTROLE DA RACIONALIDADE E DA SUBJETIVIDADE DAS DECISÕES O dever de fundamentação das decisões judiciais transcende a uma garantia técnica, representando, antes e acima disso, o resultado de determinada concepção sobre o exercício do poder estatal. Isso porque é através da motivação que é possível avaliar a atividade jurisdicional, verificando-se as escolhas e seleções feitas pelo julgador, a observância de regras do contraditório e as circunstâncias factuais que formaram a “verdade” do juiz.[1] Nesse contexto, a fundamentação não interessa apenas às partes, que podem verificar se suas razões foram objeto de análise pelo julgador, mas também ao magistrado, que demonstra a sua atuação, e à sociedade, a qual verifica como está sendo distribuída a justiça.[2] Assim, com a motivação, asseguram-se objetivos políticos, como a participação popular, a legalidade, a previsibilidade do conteúdo das decisões jurídicas, a separação dos poderes e a proteção dos direitos fundamentais.[3] Enfim, “a fundamentação é de rigor”.[4] E, nas palavras de Tourinho Filho, a sentença sem motivação é uma não-sentença.[5] Nessa senda, parece acertada a posição Luigi Ferrajoli no sentido de que a motivação tem valor “endoprocessual” e “extraprocessual”. Mais, não é exagerada sua afirmação de que a motivação pode ser considerada como o principal parâmetro de legitimação interna, ou jurídica, e externa, ou democrática, da função judiciária.[6] Ao abordar que a fundamentação é uma garantia extraprocessual, Ferrajoli refere-se à publicidade. E é inegável que ambas – fundamentação e publicidade – estão umbilicalmente ligadas. Há, nas palavras de Gomes Filho, uma “[…] relação de instrumentalidade recíproca, que decorre do objetivo comum de possibilitar a comunicação entre a atividade processual e o ambiente social.”[7] A fundamentação e a publicidade estão expressamente consagradas na Constituição e reafirmadas na legislação infraconstitucional.  No que tange à publicidade, está prevista, com expressa ressalva para situações de interesse público, entre os direitos e garantias fundamentais nos arts. 5°, LX, c/c 37, “caput”, c/c art, 93, IX da Constituição Federal e no art. 792 do Código de Processo Penal. Nesse contexto, no processo penal brasileiro, a regra é a publicidade absoluta. E nem poderia ser diferente, pois, em um Estado que se diz Democrático de Direito, não há espaço para o mistério. Nas palavras de Paulo Rangel, deve-se rejeitar o poder que oculta e não se tolerar o poder que se oculta, consagrando-se a publicidade dos atos e das atividades estatais.[8],[9] No que concerne à fundamentação, está prevista no art. 93, IX, da Constituição e no art. 382, III, do Código de Processo Penal. Só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder e, principalmente, se houve a observância das regras do devido processo legal.[10] O processo, como se sabe, destina-se a comprovar se um determinado ato humano realmente ocorreu. Trata-se de uma atividade recognitiva: “A um juiz com jurisdição que não sabe, mas que precisa saber, dá-se a missão (mais preciso seria dizer Poder, com o peso que o substantivo tem) de dizer o direito no caso concreto, com o escopo (da sua parte) pacificador […].”[11] Mais:[12] “[…] intermedeia, do seu conhecimento do caso concreto (notio; cognitio) à sentença (não esquecer, jamais, que, do latim, a palavra decorre de sentire, gerúndio sentiendo, só para que se não pense em ‘máquinas judicantes’), um conjunto de atos preordenados a um fim. Ora, tais atos (e o radical continua latino e em actio), tomando em conta aquele escopo, têm, por evidente, o fim de sanar a ignorância, razão pela qual se vai falar em instrução (do latim instructione) […]” Em outras palavras, o “saber”- enquanto obtenção de um conhecimento – sobre o fato é o fim a que se destina o processo, o qual deve ser um instrumento eficaz para a sua obtenção. Daí a imprescindibilidade da motivação judicial, ressaltada por Lopes Júnior:[13] “[…] a motivação serve para o controle da racionalidade da decisão judicial. Não se trata de gastar folhas e folhas para demonstrar erudição jurídica (e jurisprudencial) ou discutir obviedades. O mais importe é explicar o porquê da decisão, o que levou a tal conclusão sobre a autoria e a materialidade. A motivação sobre a matéria fática demonstra o ‘saber’ que legitima o ‘poder’, pois a pena somente pode ser imposta a quem – racionalmente – pode ser considerado autor do fato criminoso imputado”. Juntamente ao controle da racionalidade das decisões judiciais, é necessário observar o controle da subjetividade. Durante período da história do pensamento moderno – mais precisamente durante o Estado Liberal – buscou-se um tipo de saber isento de qualquer imperfeição humana. Defendeu-se a idéia de que o homem, enquanto sujeito cognoscente, poderia anular-se completamente nas relações de conhecimento: o sujeito limitar-se-ia a captar o objeto.[14],[15] Buscava-se uma verdade absoluta, que só poderia ser alcançada através de um juiz mito (Deus), capaz de ser neutro. Enfim, nesta concepção, tinha-se o juiz enquanto um órgão neutro e imparcial que, por não ter interesse direto no caso, tutelaria a igualdade das partes no processo, atingindo a pacificação de conflitos de interesses e a justiça.[16] A partir do século XX, quando a Física Clássica – baseada na idéia de continuidade – cede lugar à Física Quântica -calcada na descontinuidade-, surge uma nova visão de mundo que rompeu o conhecimento até então existente. Nesta nova concepção, não se fala em objetividade pura e nem em verdades absolutas: passa-se a admitir a existência de espaços entre o parcial e o imparcial e certeza e incerteza.[17]    Sobre esta nova visão de mundo, Pozzebon ressalta:      “Este novo conhecimento, com tal dimensão, que  alterou toda uma visão de mundo, não pode mais ficar afastado do Direito e da forma de encarar as decisões judiciais. Assim, a decisão não é fruto de razão ou o da subjetividade, mas de razão e subjetividade, simultaneamente. O juiz não é parcial ou imparcial, mas parcial e imparcial. A decisão não é ‘verdadeira’ ou falsa, mas ‘verdadeira’ e falsa. È tudo isso. É humana”.[18] Assim, hoje, reconhece-se que não existe racionalidade independentemente de sentimento, da subjetividade.[19] Não existe racionalidade sem sentimento, emoção, daí a importância da subjetividade e de todo o “sentire” no ato decisório e da necessidade de assumir que a “decisum” é um ato de crença, de fé (abandono da verdade pela impossibilidade).[20],[21] E este “sentire” implica, essencialmente, a atividade (s)eletiva do juiz, que deverá, na dimensão probatória, eleger entre teses apresentadas (acusatória e defensiva) qual delas irá acolher. Já no plano jurídico, decidirá o “significado válido da norma”.[22] E lhe cumprirá deixar clara que opções foram feitas, possibilitando, reitera-se, às partes e à sociedade o conhecimento de suas decisões. E, como bem lembra Fabrício Pozzebon, este dever de fundamentar tem três importantes faces no Estado Democrático e Social de Direito. São elas:[23] “[…] a) uma garantia de defesa contra eventuais abusos do poder estatal, uma vez que o julgador deverá explicitar os motivos que o levaram a decidir daquela forma (é um ponto de partida), além de possibilitar a interposição do recurso cabível; b) a materialização do direito subjetivo à prestação jurisdicional por parte do Estado, após um procedimento marcado por garantias, as quais deverão estar traduzidas na fundamentação; e c) dever do Estado prestá-la, assim como a educação, saúde, segurança, em primeiro e segundo graus de jurisdição, devendo o juiz atuar materialmente no sentido de sua efetivação (juiz ativo do Estado Democrático e Social de Direito), sempre sob pena de configuração de nulidade expressamente prevista no texto constitucional.” Por derradeiro, insta referir que é adequada a posição do autor, no sentido de que a fundamentação judicial é – mesmo sem estar prevista no rol do art. 5° da Constituição[24] – uma garantia fundamental. Mais, trata-se da “garantia das garantias”, “garantia-mãe”, ponto de partida para análise do respeito a todos os demais direitos constitucionais do acusado[25]. 2 REQUISITOS DA MOTIVAÇÃO: DOS ASPECTOS OBJETIVOS À EMOÇÃO Importante salientar que há determinados requisitos para que uma motivação judicial seja considerada idônea, inclusive para assegurar a função de garantia fundamental que possui o dever de fundamentação de todo o provimento jurisdicional (art. 93, inc. IX, CF/88). Para tanto, é possível identificar como requisitos da motivação alguns aspectos fundamentais como integridade, correlação, dialeticidade e racionalidade.[26]      A integridade pode ser concebida como um inerente imperativo do próprio mandamento constitucional do art. 93, inc. IX, da CF/88, o qual estabelece que todos “os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade […]”, isto é dizer que todo e qualquer provimento jurisdicional deve ser sempre justificado.[27]      O requisito da correlação é entendido como a exigência de que os elementos que servem de base para a decisão estejam no processo, não podendo o julgador valer-se de elementos “extra” autos para justificar sua decisão, sob pena de indelével mácula ao princípio do devido processo legal.[28] Assim, os elementos de convicção que levam à motivação devem obrigatoriamente se encontrar no processo judicial. Por seu turno, o imperativo da dialeticidade deve ser analisado a partir da idéia de contraditório no processo[29], uma vez que tudo aquilo que for contra-argumentado pela parte deverá ser levado em consideração na decisão judicial, ou seja, deverá o julgador observar não só os argumentos, mas também os contra-argumentos da (s) parte (s) para balizar sua decisão. Daí que: “[…] é evidente que o discurso justificativo dessa mesma decisão não pode ser algo semelhante a um monólogo, em que são apresentados argumentos de autoridade, mas, ao contrário, deve possuir um caráter dialógico capaz de dar conta da real consideração de todos os dados trazidos à discussão da causa pelos interessados no provimento”.[30] 2.1 A RACIONALIDADE E A EMOÇÃO NA MOTIVAÇÃO JUDICIAL Outro requisito importante e fundamental para a motivação das decisões é a questão da racionalidade, entendida como um discurso coerente, harmônico e não-contraditório. Este aspecto merece especial destaque, pois se tornam essenciais algumas ponderações sobre a árdua tarefa de julgar e prolatar decisões no dia-dia dos julgadores, especialmente para dar atenção a um ponto fundamental da atividade jurisdicional: a razão e a emoção na motivação. Inegavelmente, partindo-se da idéia de que o dever constitucional de fundamentação das decisões é uma garantia fundamental, mister se faz reafirmar – mais uma vez – que a motivação do julgador não é um ato pura e simplesmente racional, mas sim, um ato dotado de certa subjetividade. Em outras palavras, é certo que toda decisão judicial é fruto (ou deveria ser, ao menos) de uma racionalidade. Contudo, há de se reconhecer que, na motivação, há uma carga de sentimentos que se alia à racionalidade.[31] Assim, o julgador, ao formar seu convencimento daquilo que está nos autos, irá formular mentalmente um juízo de valoração – juízo crítico – acerca de algo sobre o qual irá decidir e buscará na motivação argumentos para justificar sua própria decisão. E, como não poderia ser diferente, na formação desse juízo de valoração, há influência de vários fatores, até mesmo psicológicos.[32] Dessa forma, a motivação, aquilo que leva o julgador a fundamentar sua decisão, não é fruto apenas de certa dose de racionalidade, mas também influenciada, consciente ou inconscientemente, por aspectos psicológicos, o que, então, permite reconhecer que não há decisão judicial em que não haja racionalidade e emoção na motivação. E essa afirmação, ressalta-se, não coloca em risco a ciência do Direito, pautada na análise das leis, princípios, normas e regras de forma abstrata. Nesse sentido, colaciona-se trecho de Lídia Almeida Prado: “[…] a emoção dos juízes na prolação das sentenças não significa propor o drástico abandono da racionalidade no direito, mas a um uso equilibrado dela. […] A sentença, embora baseada no conhecimento jurídico, é uma decisão como outra qualquer. Como ponderei, do mesmo modo que ocorre em outras áreas do saber, muito devagar surgem no Direito os indícios de uma valorização da emoção no ato de julgar, sem ser desconsiderada a racionalidade.”[33] 3 OS VÍCIOS DA MOTIVAÇÃO E A SANÇÃO DE NULIDADE Uma vez não observados os requisitos anteriores acerca da motivação, é possível que haja a configuração de determinados vícios na decisão judicial que afetem a garantia fundamental elencada no art. 93, inc. IX, da CF/88, bem como o próprio princípio constitucional do “due process of Law”. Um dos vícios que representa, indubitavelmente, maior violação aos referidos comandos constitucionais é a inexistência de motivação, ou seja, a total ausência de argumentos justificativos adotados pelo julgador quando da tomada de uma decisão.[34] Isso se dá, por exemplo, quando o juiz apenas se utiliza da reprodução de texto legal para justificar sua decisão ou, até mesmo, a consagrada expressão em muitos julgados: “para evitar tautologia”. Também é possível identificar casos de motivação incompleta, em desacordo com o requisito da integridade, quando não justificados alguns pontos da decisão judicial. Esse vício de motivação ocorrerá, nas palavras de Gomes Filho, “[…] sempre que no seu texto não se apresentem justificadas as variadas escolhas que são necessárias para se chegar à conclusão, segundo as características estruturais do provimento examinado.”[35] Ademais, a motivação pode ser incompleta por não abranger todos os argumentos e contra-argumentos existentes no processo, ou seja: “O não-atendimento desse imperativo constitui vício de particular gravidade, pois o silêncio do discurso justificativo quanto às provas e alegações das partes revela não só a falta de uma adequada cognição, mas, sobretudo a violação de um princípio natural do processo. […] Assim, é mais correto e adequado entender que a exigência de dialeticidade da motivação diz respeito às atividades defensivas que objetivam efetivamente provocar a decisão sobre uma questão pertinente à discussão da causa e que resultam, portanto, na ampliação da atividade cognitiva judicial”.[36] Ainda, para que a decisão judicial seja idônea e devidamente fundamentada, deverá o julgador observar que sua motivação deverá partir sempre dos elementos acostados ao processo, devendo haver correlação, portanto, entre os elementos justificadores da decisão e os existentes nos autos. É fundamental que a motivação seja fruto de uma racionalidade e consista em um discurso harmônico, coerente e não-contraditório que possa justificar a decisão tomada. Assim, o que se pretende evitar são incompatibilidades, incongruências, no discurso justificativo do julgador, como, por exemplo, casos em que o juiz reconhece a atipicidade da conduta, mas absolve o acusado por insuficiência de provas; juiz que discorre sobre posicionamento tido como correto, mas aplica tese oposta.[37] Já em relação aos aspectos subjetivos – psicológicos – que afetam a decisão judicial, é possível sim que, em determinados casos, haja vício de motivação. É nesse sentido que o Código de Processo Penal prevê as causas de suspeição e de impedimento (artigos 252 e 254). Contudo, ainda que de difícil percepção dos aspectos subjetivos (sentimentais / psicológicos) do julgador quando da prolação de sua decisão, tal caso de vício de motivação não é somente decorrente do impedimento ou suspeição do julgador, podendo, de acordo com o caso concreto, verificar-se pelo próprio teor da decisão. Isso acaba se coadunando com a própria definição de sentença, senão vejamos: “A palavra sentença origina-se do latim ‘sententia’, cuja raiz é ‘sentire’, sentir. Daí a associação com ‘sentimento’. Ou seja, até do ponto de vista etimológico, a sentença está mais relacionada com sentimento e vontade, do que com cognição e razão. Na realidade, ambos os momentos estão presentes, pois a atividade decisional envolve não só a cognição e razão, mas também implica a necessidade de fazer escolhas – e aí o papel do sentimento e da vontade está presente, quer disso se tenha consciência ou não”.[38] Diante desses requisitos da motivação que, se não observados, constituem verdadeiro vício de motivação e, por conseguinte, afetam a justificação do ato decisório, é inegável que serão violados preceitos constitucionais, especialmente o princípio do devido processo legal. Ademais, o próprio artigo 93, inc. IX, da CF/88 estabelece a “pena” de nulidade para a decisão que não é devidamente fundamentada. Deve-se, ainda, ter em conta que a nulidade mencionada é absoluta, a qual poderá ser declarada de ofício pelos Tribunais, sem que haja necessidade de argüição pelas partes. Mais, pode ser declarada a qualquer tempo, pois não preclui, e não é necessário (ou, ao menos, não deveria ser) fazer prova do prejuízo, eis que este é evidente. A mácula ao princípio constitucional do devido processo legal e ao próprio art. 93, inc. IX, da CF/88, por si só, já justifica a configuração de nulidade absoluta quando houver o reconhecimento de algum dos vícios da motivação. É isso que ensina Gomes Filho: “A nulidade no caso é absoluta, pois o ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, não pode dar lugar à nulidade relativa, uma vez que as garantias processuais-constitucionais, mesmo quando aparentemente postas em benefício da parte, visam em primeiro lugar ao interesse público na condução do processo segundo as regras do devido processo legal.”[39] Portanto, de acordo com as razões expostas e com fundamento constitucional, tem-se que a sanção prevista para os casos de vícios de motivação deve ser entendida –  sempre e em qualquer hipótese – como nulidade absoluta.  A fundamentação, reitera-se, é “garantia-mãe”, ponto de partida para análise do respeito a todos os demais direitos constitucionais, sendo inadmissível conceder tratamento leniente à sua ausência ou à sua deficiência.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/breves-consideracoes-sobre-a-garantia-da-fundamentacao-judicial-o-mito-da-neutralidade-requisitos-e-vicios-da-decisao/
Adequação da prisão temporária ao princípio constitucional da presunção de inocência
O presente artigo pretende demonstrar que o instituto da prisão temporária é compatível com o princípio constitucional da presunção de inocência, apesar de parecer, a primeira vista, que prender alguém antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória viola a Constituição Federal. Através da análise dos pontos de conflito apresentados tanto por aqueles que defendem a constitucionalidade da prisão temporária quanto pelos que sustentam sua inconstitucionalidade, será possível constatar que esse instituto, há quase vinte anos presente em nossa legislação, pode ser plenamente compatível com o princípio da presunção de inocência, desde que interpretado à luz do princípio da proporcionalidade.
Direito Processual Penal
Resumo: O presente artigo pretende demonstrar que o instituto da prisão temporária é compatível com o princípio constitucional da presunção de inocência, apesar de parecer, a primeira vista, que prender alguém antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória viola a Constituição Federal. Através da análise dos pontos de conflito apresentados tanto por aqueles que defendem a constitucionalidade da prisão temporária quanto pelos que sustentam sua inconstitucionalidade, será possível constatar que esse instituto, há quase vinte anos presente em nossa legislação, pode ser plenamente compatível com o princípio da presunção de inocência, desde que interpretado à luz do princípio da proporcionalidade. Palavras-chave: Penal – Processo – Prisão temporária – Presunção de inocência – Proporcionalidade. Abstract: The present article intend to demonstrate that temporary prison is compatible to the constitutional principle of presumption of innocence, despite opinion that arresting someone before of res judicata judgement of criminal sentence violates the Federal Constitution. Through analysis of points of conflict presented as by who defend the constitutionality of the temporary prison as who consider its unconstitutionality, we can see that this institute, with almost twenty years in our legislation, can be fully compatible with the principle of presumption of innocence, since interpreted in accordance with the principle of proportionality. Keywords: Criminal – Process – Temporary prison – Presumption of innocence – Proportionality. Sumário: 1. Introdução – 2. Prisão temporária: 2.1. Conceito; 2.2. Histórico; 2.3. Fundamentos – 3. Princípio da presunção de inocência – 4. A prisão temporária e o princípio da presunção de inocência: 4.1. Fundamentos pela inconstitucionalidade da prisão temporária; 4.2. Fundamentos pela constitucionalidade da prisão temporária – 5. Adequação da prisão temporária ao princípio da presunção de inocência através do princípio da proporcionalidade – 6. Conclusão – 7. Bibliografia. 1. Introdução Em uma sociedade submetida aos ditames de uma constituição que expressamente prevê que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória – princípio da presunção de inocência – e que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei, o estudo das prisões cautelares, dentre as quais a prisão temporária, mostra-se por demais importante. A consagração ao direito à liberdade está presente desde a Carta Magna inglesa de 1215, que dispunha o seguinte: “nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra”. Esse mesmo direito esteve presente nas primeiras constituições do século XVIII e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que estabeleceu que “ninguém deve ser acusado, preso nem detido senão em casos determinados pela lei segundo as formas que ela prescreveu”, e ainda que “todo homem é presumidamente inocente até que tenha sido declarado culpado”, sendo essa a primeira referência histórica ao princípio da presunção de inocência. As constituições posteriores a esses marcos históricos sempre prezaram por elevar a princípios básicos, garantias fundamentais dos cidadãos, o direito à liberdade e o princípio da presunção de inocência. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, fruto de amplos debates na Organização das Nações Unidas (ONU), proclamou que “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. Além de constar da Constitucional Federal brasileira, a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica, incorporada ao nosso ordenamento jurídico com a edição do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, expressamente dispõe que “ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados-Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas” e que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. Por essas razões, a constrição da liberdade do cidadão sempre foi tomada como medida extrema, como exceção, e rigidamente circunscrita aos ditames legalmente expressos, seja simplesmente em razão da consagração daquele direito, seja por conta do princípio da presunção de inocência. Sob esse aspecto, as prisões cautelares sempre geraram amplos debates e discussões, o que não é diferente com a prisão temporária, desde a sua inclusão em nosso ordenamento jurídico no ano de 1989. Isso porque nas prisões cautelares prende-se o cidadão antes de uma sentença penal condenatória definitiva declarando-o culpado. Assim, no entendimento de alguns, o instituto da prisão temporária ousou ao desafiar os ditames da Constituição Federal, permitindo que o cidadão fosse preso durante as investigações policiais, violando, assim, o princípio da presunção de inocência. No entanto, para outros, a própria Constituição previu a possibilidade de prisão mesmo antes da sentença penal condenatória, ao excepcionar as prisões decorrentes de flagrante delito e as baseadas em ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, que seriam os casos da prisão temporária e da prisão preventiva. Com isso, construiu-se na doutrina entendimentos considerando a prisão temporária inconstitucional, ao mesmo tempo em que defensores do referido instituto formularam teorias pela sua constitucionalidade, sendo esse inclusive o entendimento da jurisprudência, surgindo um intenso debate entre as duas correntes, discussão essa que se alonga até os dias de hoje e que analisa a prisão temporária sob os seus mais diferentes aspectos. Dessa forma, faz-se necessário compreender esse debate e estudar as teorias acerca da constitucionalidade da prisão temporária, em especial sua adequação com o princípio constitucional da presunção de inocência. 2. Prisão Temporária 2.1 Conceito Em linhas gerais, a prisão temporária é uma prisão cautelar de natureza processual que restringe a liberdade de locomoção do indiciado por tempo determinado, a fim de possibilitar as investigações acerca de determinados crimes considerados graves. Só pode ser decretada pela autoridade judicial e em face de representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, por um prazo de cinco ou trinta dias, dependendo do crime, prazo esse que pode ser prorrogado uma única vez em caso de comprovada e extrema necessidade. Possuindo natureza cautelar, a prisão temporária tem como objetivo resguardar o processo de conhecimento ou de execução, pois, se não for decretada, privando o acusado de sua liberdade, mesmo sem sentença definitiva, quando esta for proferida, já não mais será possível a aplicação da lei penal. Dessa forma, o caráter de urgência e necessidade informa a prisão temporária. Como toda prisão cautelar, a prisão temporária se reveste das seguintes características: I) jurisdicionalidade, só podendo ser decretada por autoridade judicial competente, já que se trata de medida de restrição a direitos consagrados na Constituição Federal; II) acessoriedade, devendo seguir a sorte da medida principal, sendo dela dependente; III) instrumentalidade, servindo de instrumento para se atingir uma medida principal; IV) provisoriedade, durando enquanto estiverem presentes os seus requisitos autorizadores; V) homogeneidade, devendo ser proporcional a um eventual resultado favorável ao pedido do acusador, não sendo admissível que a restrição à liberdade do acusado seja mais severa do que a sanção que será aplicada caso o pedido seja julgado procedente. 2.2. Histórico A prisão temporária foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro no ano de 1989, com a edição da Medida Provisória nº 111, de 24 de novembro daquele ano, convertida posteriormente na Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989. Tal instituto também existe em diversos outros países, como Portugal, Espanha, França, Itália e Estados Unidos. Na França, por exemplo, tem-se o chamado contrôle judiciaire, instituído em 1970, em que se estabelecem limitações à liberdade individual que variam de acordo com a gravidade da infração e a personalidade do sujeito, como por exemplo não sair dos limites territoriais estabelecidos pelo Juiz, não freqüentar determinados lugares, atender às intimações para os atos do processo, abster-se de se encontrar com determinadas pessoas, dentre outros. O descumprimento dessas obrigações pelo acusado pode implicar sua prisão temporária. Ainda naquele país existe a denominada la garde à vue, que é uma rápida privação da liberdade individual decretada pela própria polícia judiciária, que pode durar de 24 a 96 horas, dependendo do crime praticado. A exposição de motivos da Lei nº 7.960, de 1989, bem demonstra o seu objetivo: “o clima de pânico que se estabelece em nossas cidades, a certeza da impunidade que campeia célere na consciência de nosso povo, formando novos criminosos, exigem medidas firmes e decididas, entre elas a da prisão temporária”. A Lei nº 7.960, de 1989, pode, portanto, ser entendida como produto da comoção social decorrente do aumento da criminalidade e da agressão aos bens jurídicos da comunidade, pois surgiu do movimento da chamada “doutrina da lei e ordem”, que procurava o endurecimento das penas e das medidas que assegurassem o cumprimento destas, bem como a conseqüente efetivação do próprio processo penal. Buscava-se dar uma satisfação à sociedade, estabelecendo uma maior punição aos que desobedecessem às regras impostas. Outro fruto dessa fase histórica e que demonstra essa preocupação em impor medidas penais mais severas é a lei dos crimes hediondos – Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, promulgada meses depois da Lei nº 7.960, de 1989. Alguns entendem que com a introdução da prisão temporária em nosso ordenamento jurídico foi recriada a famigerada prisão para averiguação, medida que não logrou êxito em ser implantada durante o governo do Presidente Costa e Silva, em pleno regime de exceção no final dos anos 60 do século passado. Infelizmente, apesar de não formalmente instituída, essa medida de privação da liberdade dos cidadãos era praticada pelas autoridades policiais naquela época, o que demonstra a completa incompatibilidade daquele regime com o Estado Democrático de Direito vivido nos dias de hoje. 2.3. Fundamentos Conforme exposto, o instituto da prisão temporária encontra-se disciplinado pela Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989. O referido dispositivo prevê que caberá a prisão temporária quando ela for imprescindível para as investigações do inquérito policial (art. 1º, inciso I); quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade (art. 1º, inciso II); e quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: homicídio doloso, sequestro ou cárcere privado, roubo, extorsão, extorsão mediante sequestro, estupro, atentado violanto ao pudor, epidemia com resultado morte, envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte, quadrilha ou bando, genocídio, tráfico de drogas e crimes contra o sistema financeiro (art. 1º, inciso III). O § 4º do art. 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, dispõe ainda que “a prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade”. Os crimes previstos no referido art. 2º são os crimes hediondos (homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II,, III, IV e V); latrocínio (art. 157, § 3º, in fine); extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º); extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e §§ 1º, 2º e 3º); estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º); falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput, e § 1º, § 1º A, § 1º B, com redação dada pela Lei nº 9.677, de 2 de julho de 1998); genocídio (arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado)), o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (art. 12 da Lei nº 6.368, de 1976) e o terrorismo. Também é cabível a prisão temporária no caso da prática do crime de tortura (Lei nº 9.455, de 1997, e art. 233 da Lei nº 8.069, de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente). Observa-se, portanto, que a prisão temporária fundamenta-se nas situações previstas no art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, quais sejam: imprescindibilidade da medida para as investigações do inquérito policial; indiciado que não possui residência fixa ou não fornece dados necessários ao esclarecimento de sua identidade; e fundadas razões de autoria ou participação do indiciado nos crimes previstos no inciso III do referido artigo ou da Lei nº 8.072, de 1990. Nesse ponto, existem quatro posições a respeito da aplicação da prisão temporária, conforme enumera Fernando Capez[1]. Para Tourinho Filho e Julio Mirabete, é cabível a prisão temporária em qualquer das três situações previstas em lei, ou seja, os requisitos são alternativos. Já Antonio Scarance Fernandes defende que a prisão temporária só pode ser decretada se estiverem presentes as três situações, sendo os requisitos cumulativos. Damásio Evangelista de Jesus, Antonio Magalhães Gomes Filho e Paulo Rangel afirmam que a prisão temporária só pode ser decretada naqueles crimes apontados pela lei, ou seja, os que estão elencados no inciso III do artigo 1º da Lei nº 7.960, de 1989, sendo que, além disso, devem concorrer qualquer uma das duas situações previstas nos incisos I e II daquele artigo. Por fim, para Vicente Greco Filho, a prisão pode ser decretada em qualquer das situações legais previstas nos três incisos do art. 1º da Lei 7.960, de 1989, desde que com ela concorram os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva previstos no art. 312 do Código de Processo Penal, quais sejam: para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, sempre que existam provas da existência do crime e indícios suficientes de autoria. Prevalece a terceira posição, ou seja, que a prisão temporária apenas pode ser decretada quando houver fundadas razões de autoria ou participação nos crimes elencados no inciso III do artigo 1º da Lei nº 7.960, de 1989, ou na Lei nº 8.072, de 1990, e exista ao menos um dos dois requisitos evidenciadores do periculum libertatis – imprescindibilidade da prisão para as investigações do inquérito policial – inciso I – ou se o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade – inciso II. Essa interpretação é a mais correta, pois, decretando-se a prisão temporária somente porque o inciso I do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, foi preenchido, significaria possibilitar a prisão para qualquer delito, inclusive os de menor potencial ofensivo, desde que fosse imprescindível para as investigações, o que se mostra desproporcional. Do mesmo modo, decretar a prisão temporária unicamente porque o indiciado não possui residência fixa ou não fornece elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade, conforme descrito no inciso II do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, em qualquer delito, mostra-se despropositado, sendo o mais acertado a combinação do inciso I ou do inciso II com o inciso III, que enumera os diversos crimes em que cabe a prisão temporária, bem como no caso dos crimes previstos na Lei nº 8.072, de 1990. Analisando mais detidamente o inciso I do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, verifica-se que quando a lei diz que caberá a prisão temporária quando for imprescindível para as investigações do inquérito policial, quer dizer que, no caso do indiciado permanecer em liberdade, poderá criar eventuais entraves que impeçam se possa esclarecer devidamente o fato criminoso, suas circunstâncias e sua autoria. Somente com a demonstração de que, sem a prisão, é impossível ou improvável que se leve a cabo as investigações, com o esclarecimento dos fatos, será possível a decretação da prisão temporária. No caso do inciso II do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, a prisão temporária do indiciado que não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade se justifica para possibilitar o bom andamento do inquérito policial, que ficaria prejudicado em razão do desaparecimento do indiciado, difícil de ser localizado por não possuir residência determinada ou por não se conhecer sua verdadeira identidade. Com relação ao inciso III do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, convém destacar que a norma exige apenas fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado em um dos crimes que especifica. Isso significa que não é necessária a prova cabal, definitiva, da autoria ou da participação. Isso é bastante criticado, inclusive por Tourinho Filho, que afirma que “…na prisão temporária não se exige nem a prova da existência do crime nem os indícios suficientes de autoria…”[2], sendo tais elementos o fumus comissi delicti da prisão cautelar. Julio Mirabete também destaca que “ (…) há evidentes impropriedades técnicas no dispositivo. Em primeiro lugar, não é a lei penal que prevê quais as provas admissíveis em juízo. Em segundo era desnecessário referir-se à prova para a decretação da medida já que ‘fundadas razões’ evidentemente só existem com base na prova colhida no inquérito policial (…)”[3]. Como toda prisão cautelar, a prisão temporária somente pode ser decretada quando presentes o fumus boni iuris (fumus comissi delicti), que se concretiza no processo penal condenatório pela verificação da presença de elementos indicadores da existência do crime e da autoria, e o periculum in mora (periculum libertatis), ou seja, o perigo, o risco de que, com a demora no julgamento, possa o acusado, solto, impedir a correta solução da causa ou a aplicação da sanção punitiva. O fumus comissi delicti está presente no inciso III, quando exige fundadas razões de autoria ou participação do indiciado nos crimes ali relacionados, bem como no § 4º do art. 2º da Lei nº 8.072, de 1990. Segundo Antônio Scarance Fernandes, “as fundadas razões serão aferidas diante de elementos concretos, objetivos, que permitam uma avaliação positiva do juiz a respeito da autoria ou participação do indiciado”[4]. Já o periculum libertatis está presente nos incisos I e II. O primeiro prevê a prisão para o êxito da investigação, a fim de assegurar o resultado futuro do processo diante do risco de não serem obtidos elementos necessários para a demonstração do crime ou da autoria. O segundo permite a prisão do indiciado que não possui residência fixa ou não fornece os elementos necessários para esclarecer sua identidade porque, no caso de fuga ou desaparecimento, dificilmente ele seria encontrado, com claro prejuízo para a futura instrução criminal ou para a aplicação da lei penal, conforme já descrito. Da leitura dos crimes enumerados no inciso III do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989, bem como na Lei nº 8.072, de 1990, observa-se que a gravidade e a repulsa social que provocam aqueles crimes justificam a prisão temporária. Pode-se erroneamente concluir daí que a prisão pode ser aplicada como medida destinada a apaziguar o clamor público e a indignação social diante da gravidade dos crimes ali previstos, apesar da lei não exigir que tais situações estejam presentes no caso particular. Importante ressaltar, contudo, que a gravidade do delito, por si só, não autoriza a decretação da prisão temporária, sendo necessário que estejam presentes os requisitos do art. 1º da Lei nº 7.960, de 1989. O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 13.669-RJ[5], confirmou esse entendimento, como pode ser constatado da leitura da ementa do referido julgado: “PROCESSO PENAL – PRISÃO TEMPORÁRIA – ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA – AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO – CONFIGURAÇÃO. – A decisão que decreta a prisão temporária, lastreando-se apenas na gravidade do delito, encontra-se sem a devida fundamentação. Tal medida é de natureza excepcional e deve conter elementos concretos que ensejem sua adoção. – Ordem concedida para que seja revogada a prisão temporária decretada.” A prisão temporária somente pode ser decretada pelo Juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, segundo o art. 2º da Lei nº 7.960, de 1989. Daí destaca-se a necessidade de despacho fundamentado da autoridade judicial, motivando convenientemente a decisão ao apreciar os fundamentos de fato e de direito do pedido formulado. Convém destacar que a sumariedade da cognição não se confunde com o arbítrio. Como a lei se contenta, conforme adiante será explicitado, com mero juízo de probabilidade com relação ao fumus boni iuris, o mesmo não acontece relativamente ao periculum in mora, que deve obrigatoriamente resultar de avaliação mais aprofundada acerca das circunstâncias que apontam para a necessidade da medida excepcional. E essa efetividade da cognição judicial, conforme ensina Antônio Magalhães Gomes Filho, “…só pode ser constatada por meio da motivação do provimento, garantia de caráter instrumental em relação a todos os demais preceitos que devem ser obedecidos”[6]. A ausência da fundamentação na decisão que aprecie a prisão temporária levará à nulidade absoluta do provimento jurisdicional, pois haverá não apenas a violação à Lei nº 7.960, de 1989, mas também à Constituição Federal, que exige tal formalidade no art. 5º, LXI, e no art 93, IX, para garantia do direito de liberdade. O professor Antônio Magalhães Gomes Filho continua dizendo que “é através da fundamentação que se expressam os aspectos mais importantes considerados pelo julgador ao longo do caminho percorrido até a conclusão última, representando, por isso, o ponto de referência para a verificação da justiça, imparcialidade, atendimento às prescrições legais e efetivo exame das questões suscitadas pelos interessados no pronunciamento judicial”[7]. É indispensável, com relação ao fumus boni iuris, que o magistrado demonstre a tipicidade do fato e sua existência, indicando as provas em que se apóia a sua convicção, além de sopesar os indícios de autoria, esclarecendo os motivos de seu convencimento. Quanto ao periculum libertatis, a fundamentação deve trazer, explicitamente, os fatos que levaram à necessidade da adoção da medida de prisão, sendo que a mera repetição das palavras contidas na lei ou meras suposições não são suficientes diante da gravidade e do caráter excepcional da medida. O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RHC 11.992-RJ[8], asseverou a necessidade de fundamentação na decisão que decreta a prisão provisória. O referido julgado possui a seguinte ementa: “PENAL. PROCESSUAL. TENTATIVA DE ROUBO. PRISÃO PROVISÓRIA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. 1. Para a decretação da prisão provisória, sob o argumento de imprescindibilidade para as investigações do inquérito, impõe-se a efetiva demonstração do periculum libertatis, mediante a exposição de motivos concretos, sendo insuficiente para tanto meras conjecturas. 2. Recurso Ordinário provido, para revogar o decreto de prisão provisória contra o paciente, por ausência de fundamentação.” Assim, conclui-se que, ao indicar os fundamentos fáticos e jurídicos que fundamentam sua decisão, a autoridade judicial deve explicitar a existência dos pressupostos que caracterizam a existência de um crime sujeito ao encarceramento temporário objeto da decisão e a existência de fundadas razões de autoria ou participação do indiciado naquele crime, bem como deve indicar a necessidade concreta da medida cautelar, ou seja, o periculum libertatis, traduzido na imprescindibilidade da prisão para as investigações do inquérito policial ou no fato do indiciado não ter residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade. 3. Princípio da presunção de inocência A primeira referência histórica ao princípio da presunção de inocência data de 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fazendo parte, posteriormente, de todas as constituições modernas. O art. 9º da referida declaração dispôs o seguinte: “todo homem é considerado inocente, até ao momento em que, reconhecido como culpado, se julgar indispensável a sua prisão: todo o rigor desnecessário, empregado para a efetuar, deve ser severamente reprimido pela lei”. Antes disso, Cesare Beccaria já preconizava que “um homem não pode ser chamado de réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada”[9]. Posteriormente, a Organizações das Nações Unidas (ONU) proclamou tal princípio em 1948, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, e a Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1969, na Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica, sendo esta última incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 678, de 1992. O princípio da presunção de inocência está intimamente ligado ao sistema acusatório, que proporcionou ao acusado mais dignidade e maior respeito à sua liberdade de locomoção, já que no sistema inquisitório anteriormente adotado o acusado era desprovido de qualquer garantia e considerado presumidamente culpado. Segundo o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Assim está formulado o princípio da presunção de inocência em nosso ordenamento jurídico. Convém destacar que com relação ao referido princípio surgiram duas orientações principais sobre a extensão do seu alcance. A primeira, mais restritiva, vinculava o princípio apenas ao ônus de prova, ou seja, ostentando o réu o status de inocente até a decisão final, impõe-se à acusação o ônus de demonstrar os fatos imputados a ele, ou seja, não é o acusado que deve demonstrar sua inocência, mas o acusador que deve provar sua culpa. A segundo orientação, mais ampla, liga o princípio não apenas ao ônus de prova mas também à prisão. Assim, como o réu só pode ser considerado culpado após a sentença penal condenatória transitada em julgado, qualquer prisão antes disso não pode configurar antecipação da pena, apenas se justificando quando possuir natureza cautelar, ou seja, nas palavras de Antônio Scarance Fernandes, “…qualquer prisão durante o processo, para não haver ofensa ao princípio da presunção de inocência, deve ter natureza cautelar e não pode significar antecipação de pena, pois esta, necessariamente, deve decorrer de sentença condenatória transitada em julgado”[10]. Modernamente, entende-se que esse princípio desdobra-se em três aspectos: no momento da instrução processual, como presunção legal relativa de não-culpabilidade, invertendo-se o ônus da prova; no momento da avaliação da prova, valorando-se em favor do acusado quando houver dúvida; e no curso do processo penal, como paradigma de tratamento do imputado, especialmente no que concerne à análise da necessidade da prisão processual. Considera-se que o que existe não é uma presunção de inocência, mas sim um estado de inocência, um estado jurídico no qual o acusado é inocente até que seja declarado culpado por uma sentença transitada em julgado. Por essa razão, alguns o chamam de princípio da não-culpabilidade ou da desconsideração prévia da culpabilidade, de aplicação mais restrita do que o princípio da presunção de inocência, que, assim, não poderia ser considerado de forma absoluta, mas sim relativa. A própria Constituição Federal não presume a inocência, mas sim declara que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ou seja, que o acusado é inocente durante o desenvolvimento do processo e seu estado só se modifica por uma sentença final que o declare culpado. Por essa razão, preconiza Julio Mirabete: “ (…) não se impede que, de maneira mais ou menos intensa, seja reforçada a presunção de culpabilidade com os elementos probatórios colhidos nos autos de modo a justificar medidas coercitivas contra o acusado (…)”[11]. Do princípio da presunção de inocência, portanto, pode-se concluir que: a restrição à liberdade do acusado antes da sentença definitiva só deve ser admitida a título de medida cautelar, de necessidade ou conveniência segundo a lei processual; o réu não tem o dever de provar sua inocência, pois cabe ao acusador provar a sua culpa; e para condenar o acusado o juiz deve ter a convicção de que é ele o responsável pelo delito, convicção essa formada pelas provas levadas ao processo, bastando, para absolvê-lo, a dúvida a respeito de sua culpa (in dubio pro reo). O princípio da presunção de inocência nada mais representa, nas palavras de Tourinho Filho “…que o coroamento do due process of law (…)”[12]. Ele se fundamenta no reconhecimento dos princípios do direito natural como base da sociedade, que aliados à soberania do povo e ao culto da liberdade, constituem os elementos essenciais da democracia. Somente assegurando-se ao acusado o respeito aos seus direitos e dando-lhe a garantia de não ser tratado como culpado antes da condenação definitiva, têm-se as condições mínimas para um processo justo e civilizado. Assim, observa-se que a presunção de inocência emerge ao mesmo tempo no processo penal como uma regra de juízo e como uma regra de tratamento: regra de juízo (regra probatória) porque os indícios de autoria ou participação deverão ser fortes o suficiente para amparar a medida cautelar restritiva de liberdade (fumus boni iuris); e regra de tratamento do acusado porque não perderá o indiciado suas garantias processuais penais, nem se prestará a prisão cautelar a finalidades retributivas antecipando a pena definitiva. Tais limites infranqueáveis se impõem a todos, tanto à Polícia Judiciária quanto ao Poder Judiciário. Ao funcionar como regra que disciplina a atividade probatória, nos ensina Rogério Schietti, “…a presunção de não-culpabilidade preserva a liberdade e a inocência do acusado contra juízos baseados em mera probabilidade, determinando que somente a certeza pode lastrear uma condenação. Além disso, não se impõe ao acusado a prova da sua inocência, pois é ao órgão acusador que se atribui o ônus de provar a culpa daquele a quem imputa a prática da infração penal”[13]. Assim, impõe-se ao acusador o ônus de comprovar as afirmações formuladas contra o acusado, sob pena de, havendo qualquer dúvida acerca da prova, decidir-se a favor da defesa (in dubio pro reo). O órgão acusador afirma a existência de um fato criminoso e atribui sua autoria ao acusado, mas deverá comprovar segundo as regras do devido processo legal, que essas afirmações encontram respaldo em provas consistentes, submetidas ao contraditório, a fim de não restar dúvida sobre os fatos atribuídos ao acusado. Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 73.338-RJ[14], asseverou o seguinte: “(…) A exigência de comprovação plena dos elementos que dão suporte à acusação penal recai por inteiro, e com exclusividade, sobre o Ministério Público. Essa imposição do ônus processual concernente à demonstração da ocorrência do ilícito penal reflete, na realidade, e dentro de nosso sistema positivo, uma expressiva garantia jurídica que tutela e protege o próprio estado de liberdade que se reconhece às pessoas em geral. (…)Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência….” Como regra de tratamento, continua Rogério Schietti, “…o princípio da presunção de inocência exige que o acusado seja tratado com respeito à sua pessoa e à sua dignidade e que não seja equiparado àquele sobre quem já pesa uma condenação definitiva (…)”[15]. Isso significa que o acusado só pode ser preso diante de uma imperiosa necessidade, devidamente justificada, e apoiada em critérios legais. Só assim legitima-se a prisão cautelar. 4. A prisão temporária e o princípio da presunção de inocência Para alguns, a prisão temporária contrasta com a tendência doutrinária moderna de que não se deve possibilitar o recolhimento à prisão do autor da infração penal antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Se o réu não pode ser considerado culpado enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória, por que prendê-lo antes da sentença penal definitiva? Dessa forma, a prisão temporária pode parecer contraditória com o princípio da presunção de inocência, até porque vários fundamentos são levantados sustentando esse entendimento. No entanto, a maioria dos doutrinadores e a jurisprudência pátria sinalizam no sentido da constitucionalidade do referido instituto, entendo que ele é perfeitamente compatível com os princípios constitucionais. 4.1. Fundamentos pela inconstitucionalidade da prisão temporária Os argumentos contrários à constitucionalidade da prisão temporária frente ao princípio da presunção de inocência são muitos e partem de importantes doutrinadores do direito processual penal. Sustenta Tourinho Filho que “a constituição, que é a Lei Maior, proclama que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Se não é considerado culpado, por que exigir a sua prisão antecipadamente? (…)”[16]. As leis tem que se adequar à Carta Política, sob pena de estarem elas sobrepondo-se à Constituição, numa inversão de valores que afronta qualquer raciocínio lógico-jurídico. O princípio da presunção de inocência, que com a Constituição Federal de 1988 foi elevado à categoria de dogma constitucional, foi fruto, segundo Tourinho Filho, “…de insopitável anseio libertário da nação brasileira. E, em razão desse princípio, toda e qualquer prisão deve revestir-se de natureza cautelar. Observe-se que a prisão preventiva se baseia, precisamente, em uma presunção concreta de culpabilidade (…)”[17]. Sem essa cautelaridade, não teria sentido nem fundamento. Ainda discorrendo sobre a aplicação do princípio da presunção de inocência às prisões cautelares, assim sustenta aquele mestre: “(…) Quando ocorre uma prisão em flagrante, e não estando presente qualquer das circunstâncias que autorizam a decretação da prisão preventiva, o indiciado tem o direito de ficar em liberdade, nos termos do parágrafo único do art. 310 do CPP; se o cidadão cometeu um crime inafiançável, mas não foi preso em flagrante, sua prisão preventiva somente poderá ser decretada se for necessária, e a lei diz quando ela se torna necessária: se o agente está perturbando a ordem pública ou a ordem econômica, se está criando obstáculo à instrução criminal, ou se está pretendendo subtrair-se da eventual aplicação da lei penal. Ausentes tais circunstâncias, não poderá ser preso preventivamente. Note-se que, em rigor, nem se pode admitir possa a prisão preventiva ser decretada em todas aquelas hipóteses, a não ser quando indispensável para impedir a fuga ou para impedir que a instrução criminal seja obstaculizada. E se for condenado? Pela mesma razão, se for condenado por sentença não transitada em julgado, sua prisão provisória, ou o seu antecipado cumprimento de pena, só se justifica se ele estiver dando sinais de que pretende subtrair-se à aplicação da lei penal. Senão, não.”[18] Se não for dada tal interpretação ao princípio da presunção de inocência, estar-se-á admitindo a existência de palavras inúteis no texto constitucional. O professor Tourinho Filho, continuando sua crítica à prisão temporária, afirma que: “Para que serviria, então, proclamar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”? Trata-se, a toda evidência (para que não haja ultraje ao legislador constituinte), de um direito do cidadão. E direito fundamental, posto que inserido no art. 5º da Lei Maior. Direito a quê? Direito de ver respeitada a sua liberdade ambulatória. Direito de não sofrer qualquer medida constritiva de liberdade, a não ser nos casos estritamente necessários, ditados por evidente cautela. Direito de não sofrer a punição antecipadamente. Esse o real sentido da expressão ‘presunção de inocência’. (…)”[19] O professor afirma também que a prisão temporária contraria o princípio da presunção de inocência, sustentando que “(…) ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de uma sentença condenatória. Embora seja certo que a prisão provisória não é dirigida aos considerados culpados, não é menos certo que ela só se justifica em casos de real necessidade, como é a hipótese da preventiva. Que necessidade terá o Poder Público de decretar a prisão temporária? (…)”[20]. O referido doutrinador continua sua crítica, agora com relação aos fundamentos que autorizam a prisão temporária: “A exigência de fundadas razões quanto à autoria ou participação é necessariamente imprescindível, visto não existir cautelaridade sem esse requisito. O periculum in mora, ou libertatis, consistirá na circunstância de ser a medida “imprescindível às investigações policiais”, tenha ou não o indiciado residência fixa, crie ou não crie embaraços à colheita de dados para estabelecer sua identidade, ou, finalmente, ainda que não imprescindível às investigações, ‘se o indiciado não tiver residência fixa’ ou ‘não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade’.”[21] Para Tourinho Filho, a prisão temporária não poderia ser considerada uma espécie de prisão cautelar e, por isso, não estaria autorizada pela Constituição Federal. Isso porque, para considerar-se medida cautelar, a prisão deve estar sustentada no fumus boni iuris e no periculum in mora, que não são identificados nesta espécie de prisão. Analisando o fumus boni iuris, sustenta o renomado professor o seguinte: “A fumaça do bom direito é, pois, necessariamente indispensável. Não se trata de prova da existência de um direito, mas da sua aparência. Na cautelar há um juízo de probabilidade e que se justifica ante a impossibilidade de o homem conhecer a certeza absoluta. Na hipótese em exame, onde estará o fumus boni iuris? Responda-se com o próprio texto legal: ‘nas fundadas razões baseadas em qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado’ na prática de um daqueles crimes elencados no inc. III do art. 1º da citada lei. (…) Já na prisão temporária não se exige nem a prova da existência do crime nem os indícios suficientes de autoria. Bastam, apenas, fundadas razões com base em qualquer prova. Ora, fundadas razões são razões sérias, importantes, que denotam gravidade. E, ao que parece, nenhuma autoridade, por mais perspicaz que seja, poderá vislumbrar “fundadas razões” em face de um testemunho infantil, de uma declaração da suposta vítima, de um simples indício. (…) Para nós, as fundadas razões devem ser idôneas, sérias, sob pena de se transformar a prisão temporária em instrumento de perseguição e tortura. A lei, sobre ser malfeita, conduz a abusos que afetam o status dignitatis e o status libertatis. É de supor que a materialidade do fato esteja provada. Do contrário, a medida, já violenta, nem teria mais qualificação. (...)”[22] Com relação ao periculum in mora, segundo requisito da prisão cautelar, assim aduz aquele processualista: “(…) Não obstante se diga ser possível a decretação da prisão temporária havendo fundadas razões para se supor seja o indiciado autor ou partícipe, com base em qualquer prova admitida na legislação processual penal, desde que ele não tenha residência fica ou não forneça elementos necessários para o esclarecimento da sua identidade, indaga-se: se a prisão não é imprescindível às investigações, por que o encarceramento por 5 dias do indiciado sem residência fixa? Se a prisão não é imprescindível às investigações policiais, por que a prisão por 5 dias daquele que ‘não forneceu elementos necessários ao esclarecimento da sua identidade’? (…)”[23] Na mesma linha, Luiz Flávio Gomes, observa que: “… o eixo, a base, o fundamento de todas as prisões cautelares no Brasil residem naqueles requisitos da prisão preventiva. Quando presentes, pode o Juiz fundamentadamente decretar qualquer prisão cautelar; quando ausentes, ainda que se trate de reincidente ou de quem não tenha bons antecedentes, ou de crime hediondo ou de tráfico, não pode ser decretada a prisão antes do trânsito em julgado da decisão.”[24] De fato, para não se ofender ao princípio da presunção de inocência, se faz necessária a presença do fumus boni juris (fumus comissi delicti) e do periculum in mora (periculum libertatis), autorizadores da prisão cautelar. Assim, apenas se preservam as garantias constitucionais quando se identificam os requisitos da prisão preventiva na prisão temporária. Ora, então por que não decretar a prisão preventiva ao invés da temporária? Simples. Porque na temporária não há fumus boni iuris, que é exigido na preventiva. Dessa forma, prende-se temporariamente porque não se pode prender preventivamente, ferindo-se a Constituição Federal. Não se exige nem a prova da existência do crime, nem indícios suficientes de autoria – fumus boni iuris, apenas fundadas razões baseadas em qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação, pois se existisse o fumus boni iuris seria possível a decretação da Prisão Preventiva. Também com relação ao periculum libertatis, convém ressaltar que ele se constitui na circunstância de ser a medida imprescindível às investigações policiais, tenha ou não o indiciado residência fixa, crie ou não embaraços à colheita de dados para esclarecer sua identidade, ou, ainda que não imprescindível às investigações, se o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade. No entanto, sustentam os que se mostram contrários à prisão temporária, mostra-se descabida tal situação, pois, se a prisão não for imprescindível para as investigações, não haverá necessidade de se prender alguém só porque não possui residência fixa ou não há elementos para esclarecer sua identidade, ainda que tenha praticado um crime grave, pois nesse caso estar-se-ia prendendo em razão da gravidade do crime e não pela imprescindibilidade às investigações. Paulo Rangel, outro crítico da prisão temporária, também afirma que o instituto é inconstitucional, aduzindo para tanto o seguinte: “…no Estado Democrático de Direito não se pode permitir que o Estado lance mão da prisão para investigar, ou seja, primeiro prende, depois investiga para saber se o indiciado, efetivamente, é o autor do delito. Trata-se de medida de constrição de liberdade do suspeito que, não havendo elementos suficientes de sua conduta nos autos do inquérito policial, é preso para que esses elementos sejam encontrados. Percebam que se houvesse elementos de convicção suficientes, o inquérito estaria concluído e o Ministério Público poderia oferecer denúncia, iniciando a ação penal e, se necessário fosse, requereria a prisão preventiva. Contudo, como não há, o Estado prende, por sua incompetência, para investigar se o indiciado é ou não autor do fato (…).”[25] Continuando sua crítica à prisão temporária, Paulo Rangel sustenta que o acusado somente pode ser preso se houver necessidade, caracterizada pela existência dos elementos de convicção quanto ao periculum libertatis e fundamentos que evidenciem o fumus comissi delicti, afirmando ainda que “prisão não pode ser uma satisfação à sociedade, por mais grave que seja o crime, mas sim uma necessidade para se assegurar o curso do processo. No caso da temporária é para assegurar que se realize uma investigação sobre o fato, dizem, praticado pelo apontado suspeito, o que, por si só, é inadmissível. Prender um suspeito para investigar se é ele, é barbárie. Só na ditadura e, portanto, no Estado de exceção”[26]. Por fim, o professor fluminense critica ainda o excesso de prisões cautelares, sustentando que: “…não podemos confundir prisão cautelar com política pública séria de combate à violência, ou seja, nada tem a ver com a prisão cautelar os altos índices de violência urbana que assolam nosso País. Se há roubo, homicídios, estupros, etc, ocorrendo nas grandes metrópoles, deve o Estado adotar as medidas necessárias para conter essa onda de violência e não culparmos o Judiciário que não lançou mão de uma medida cautelar para contê-la. Uma coisa é a certeza de que nas ruas não há polícia, outra, bem diferente, é, em decorrência disso, haver necessidade de, no curso do processo, o réu ser preso. Não é a prisão cautelar que vai resolver o problema da violência nas ruas, mas sim a adoção de políticas públicas sérias de combate à violência pelo Executivo. O Judiciário não pode substituir a ação do Executivo. Polícia nas ruas, garantindo nossa segurança, é problema do Executivo. Prisão cautelar, para assegurar o curso do processo penal justo, é medida a ser adotada pelo Judiciário.”[27] Some-se a esses fundamentos o fato do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ter decidido, em sessão plenária de 6 de novembro de 2007, considerar inconstitucional a Lei nº 7.960, de 1989, autorizando a Diretoria do Conselho Federal da entidade a adotar todas as medidas políticas e judiciais cabíveis a fim de retirar do ordenamento jurídico o referido dispositivo. Entendeu a OAB que essa modalidade de prisão tem sido utilizada principalmente com o intuito de pressionar psicologicamente a pessoa investigada, convertendo-se em verdadeira coação moral, voltada a denegrir a imagem da pessoa e arrancar a prova que se deseja do indiciado. Questiona a OAB que se já existe a prisão preventiva, por que se necessita da prisão temporária de vários dias? Entre os motivos que levaram a OAB a tal posicionamento, está o fato de que a referida lei fere a garantia prevista no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, que prevê que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Há quem sustente que a prisão temporária é constitucional porque há previsão legal assecuratória do êxito da persecução criminal durante a fase do inquérito policial, já que a prisão emana de ordem escrita e fundamentada de autoridade judicial, nos termos da Constituição Federal. No entanto, no sistema penal brasileiro o status libertatis é o preceito a seguir, sendo a prisão cautelar a exceção. É nesse sentido que a Carta Magna impõe o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Os fundamentos de todas as prisões cautelares residem nos requisitos da prisão preventiva elencados no art. 312 do Código de Processo Penal: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal. Assim, observa-se que a Lei nº 7.960, de 1989, veio preencher uma lacuna não alcançada pela prisão preventiva, o que ofenderia ao princípio constitucional da presunção de inocência. Além disso, como anteriormente destacado, a prisão temporária mostra-se dispensável porque os seus requisitos se igualam aos da prisão preventiva. Como ela não pode estar alicerçada em suposições, se existir algum fato concreto que se aplique a prisão preventiva e não a temporária. Caso contrário, banalizam-se as restrições cautelares de liberdade, sendo um instituo penal excepcional transformado em regra, subvertendo-se, dessa forma, o sistema penal. 4.2. Fundamentos pela constitucionalidade da prisão temporária O princípio da presunção de inocência confirma a excepcionalidade e a necessidade das medidas cautelares de prisão, pois os indivíduos nascem livrem, somente podendo ser levados à prisão quando realmente for útil à instrução criminal e à ordem pública, razão pela qual se torna indispensável que o acusador evidencie a necessidade dessa prisão. Sendo a liberdade do cidadão um dos dogmas do Estado Democrático de Direito, é natural que a constituição fixe determinadas regras fundamentais com relação à prisão, seja ela de qualquer natureza, já que restringir o direito à liberdade é medida extraordinária, que, se adotada, deve sempre estar subordinada a parâmetros de legalidade estrita. Com relação às prisões cautelares, essas exigências tornam-se muito mais rigorosas, em razão do princípio da presunção de inocência, pois a antecipação do resultado do processo significa providência excepcional e que não deve ser confundida com a punição, só sendo justificada naquelas situações de extrema necessidade. Por essa razão, a Constituição Federal submeteu todas as formas de prisão cautelar à apreciação de autoridade judicial, quer de forma preventiva ou não. Além disso, a apreciação do juiz deve ser devidamente fundamentada, exigência básica de todo e qualquer provimento jurisdicional relacionado à restrição antecipada do direito de liberdade do cidadão. Conforme ensina Antônio Magalhães Gomes Filho, “…somente através da declaração expressa dos motivos da decisão será possível reconstituir o caminho percorrido pelo magistrado para a decretação da medida extrema, aferindo-se, assim, o atendimento das prescrições legais e o efetivo exame das questões suscitadas pelos interessados no provimento”[28]. Assim, um dos principais aspectos a ser considerado a fim de adequar a prisão temporária ao princípio da presunção de inocência e não considerá-la inconstitucional é exatamente a fundamentação da decisão que decreta a medida cautelar, pois é ali que a autoridade judicial vai explicitar os motivos da prisão diante da existência dos seus pressupostos autorizadores, quais sejam, o fumus comissi delicti e o periculum libertatis. Além disso, a prisão cautelar não viola o princípio de presunção de inocência porque a própria Constituição Federal admite a prisão provisória nos casos de flagrante e crimes inafiançáveis e autoriza o legislador a proibir a liberdade provisória. Observa-se, no entanto, que a prisão provisória só deve ser decretada com base no poder geral de cautela do juiz, isto é, desde que necessária para uma eficiente prestação jurisdicional. Segundo Fernando Capez, “sem preencher os requisitos gerais de tutela cautelar (fumus boni iuris e periculum in mora), sem necessidade para o processo, sem caráter instrumental, a prisão provisória não seria nada mais do que uma execução da pena privativa de liberdade antes da condenação transitada em julgado, e, isto sim, violaria o princípio da presunção de inocência”[29]. Nessa mesma linha, Luiz Flávio Gomes afirma que: “…a prisão cautelar não atrita de forma irremediável com a presunção de inocência. Há, em verdade, uma conveniência harmonizável entre ambas desde que a medida de cautela preserve o seu caráter de excepcionalidade e não perca a sua qualidade instrumental. A prisão cautelar não pode, por isso, decorrer de mero automatismo legal, mas deve estar sempre subordinada à sua necessidade concreta, real, efetiva, traduzida pelo fumus boni iuris e o periculum in mora.”[30] O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o HC 7.655-GO[31], afirmou que “a prisão provisória, de natureza processual, medida que implica sacrifício à liberdade individual, deve ser concebida com cautela, em face do princípio constitucional da inocência presumida, impondo-se, por isso, que a mesma tenha por base motivos concretos, susceptíveis de autorizar a medida constritiva de liberdade”. O próprio Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já editou o enunciado de súmula nº 9, segundo o qual a prisão processual não viola o princípio do estado de inocência. Julio Mirabete, ao estudar o princípio da presunção de inocência, que ele denomina estado de inocência, ressalta o seguinte: “(…) De uns tempos para cá, passou-se a questionar tal princípio que, levado às últimas conseqüências, não permitiria qualquer medida coativa contra o acusado, nem mesmo a prisão provisória ou o próprio processo. Por que admitir-se um processo penal contra alguém presumidamente inocente? Além disso, se o princípio trata de uma presunção absoluta (juris et de jure) a sentença irrecorrível não a pode eliminar; se trata de uma presunção relativa (juris tantum), seria ela destruída pelas provas colhidas durante a instrução criminal antes da própria decisão definitiva.”[32] O Supremo Tribunal Federal, através de sua Segunda Turma, ao julgar, em 26 de junho de 2001, o HC 80.719-SP, da relatoria do Ministro Celso de Mello, consolidou o entendimento de que as prisões cautelares não violam o princípio da presunção de inocência. O referido julgado, publicado no Diário de Justiça do dia 28 de setembro de 2001, possui a seguinte ementa: “HABEAS CORPUS – CRIME HEDIONDO – ALEGADA OCORRÊNCIA DE CLAMOR PÚBLICO – TEMOR DE FUGA DO RÉU – DECRETAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA – RAZÕES DE NECESSIDADE INOCORRENTES – INADMISSIBILIDADE DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE – PEDIDO DEFERIDO. A PRISÃO PREVENTIVA CONSTITUI MEDIDA CAUTELAR DE NATUREZA EXCEPCIONAL. – A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade. A prisão preventiva, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício suficiente de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. A PRISÃO PREVENTIVA – ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR – NÃO TEM POR OBJETIVO INFLIGIR PUNIÇÃO ANTECIPADA AO INDICIADO OU AO RÉU. – A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. O CLAMOR PÚBLICO, AINDA QUE SE TRATE DE CRIME HEDIONDO, NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE. – O estado de comoção social e de eventual indignação popular, motivado pela repercussão da prática da infração penal, não pode justificar, só por si, a decretação da prisão cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e grave aniquilação do postulado fundamental da liberdade. O clamor público – precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão processual (CPP, art. 312) – não se qualifica como fator de legitimação da privação cautelar da liberdade do indiciado ou do réu, não sendo lícito pretender-se, nessa matéria, por incabível, a aplicação analógica do que se contém no art. 323, V, do CPP, que concerne, exclusivamente, ao tema da fiança criminal. Precedentes. – A acusação penal por crime hediondo não justifica, só por si, a privação cautelar da liberdade do indiciado ou do réu. A PRESERVAÇÃO DA CREDIBILIDADE DAS INSTITUIÇÕES E DA ORDEM PÚBLICA NÃO CONSUBSTANCIA, SÓ POR SI, CIRCUNSTÂNCIA AUTORIZADORA DA PRISÃO CAUTELAR. – Não se reveste de idoneidade jurídica, para efeito de justificação do ato excepcional de privação cautelar da liberdade individual, a alegação de que o réu, por dispor de privilegiada condição econômico-financeira, deveria ser mantido na prisão, em nome da credibilidade das instituições e da preservação da ordem pública. ABANDONO DO DISTRITO DA CULPA PARA EVITAR SITUAÇÃO DE FLAGRÂNCIA – DESCABIMENTO DA PRISÃO PREVENTIVA. – Não cabe prisão preventiva pelo só fato de o agente – movido pelo impulso natural da liberdade – ausentar-se do distrito da culpa, em ordem a evitar, com esse gesto, a caracterização da situação de flagrância. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, NO CASO, DA NECESSIDADE CONCRETA DE DECRETAR-SE A PRISÃO PREVENTIVA DO PACIENTE. – Sem que se caracterize situação de real necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência da prisão preventiva. DISCURSOS DE CARÁTER AUTORITÁRIO NÃO PODEM JAMAIS SUBJUGAR O PRINCÍPIO DA LIBERDADE. – A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário.” Observa-se, portanto, que a prisão temporária deve ter caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade e sempre através de uma decisão judicial suficientemente motivada, nunca se confundindo com a prisão-pena imposta no final do processo. Quanto a esse ponto, importante relembrar que a prisão cautelar encontra seu fundamento exatamente no direito que o Estado tem de exigir do indivíduo certos sacrifícios, inclusive restringir sua liberdade, visando ao bem comum da coletividade. 5. Adequação da prisão temporária ao princípio da presunção de inocência através do princípio da proporcionalidade Identificado o conflito existente entre os que consideram a prisão temporária constitucional e aqueles que sustentam sua inconstitucionalidade, busca-se agora uma forma de compatibilizar aquele instituto com o princípio da presunção de inocência. De início, cumpre assinalar que, analisando a questão sob um ângulo meramente lógico-jurídico, não faz sentido afirmar que o acusado é inocente se o processo só foi instaurado exatamente porque se reuniram provas ou ao menos indícios de sua responsabilidade, a ser esclarecida na instrução criminal. Se os indícios são fonte de presunções, logo, existindo indícios de que o acusado praticou determinado delito, é de se presumir sua culpa, pois, caso contrário, estaria caracterizada uma contradição lógica. Por essa razão, o princípio da presunção de inocência deve ser entendido como uma presunção de natureza política e não somente jurídica ou até mesmo lógica. Considerar alguém não-culpado significa presumi-lo inocente. Porém, apenas dizer que não se considera alguém culpado não tem outro significado senão o de negar qualquer presunção de culpabilidade em seu desfavor. Observa-se, assim, que a exclusão do juízo de culpabilidade não impõe, necessariamente, a inclusão do juízo de inocência. A prisão temporária, portanto, não pode ser vista como reconhecimento antecipado de culpa, pois o juízo que se faz ao decretá-la é de periculosidade e não de culpabilidade. Para que o Estado atinja o fim precípuo de sua atuação, que é o bem comum, pode exigir dos cidadãos certos sacrifícios, sendo um deles a privação de sua liberdade antes da sentença definitiva, desde que haja extrema e comprovada necessidade para tanto. Observa-se que o mesmo texto constitucional excepciona o princípio da presunção de inocência quando cuida dos casos de prisão em flagrante ou por ordem de autoridade judiciária competente (art. 5º, inciso LXI). A privação da liberdade de forma provisória ainda no curso do inquérito policial também pode se afigurar legítima e constitucional, desde que encontre amparo nos interesses superiores da coletividade, no bem comum a ser preservado. Faz parte, portanto, das restrições a direitos individuais que ao Estado é lícito adotar quando sua finalidade primária é a tutela do interesse público. Assim, compreende-se que, havendo periculum libertatis, com risco efetivo de frustração da aquisição de provas causada pelo suposto infrator, o direito à liberdade do cidadão deve ceder frente ao interesse punitivo do corpo social. Se este cidadão ameaçado em sua liberdade tem em seu desfavor elementos probatórios que o indiquem como provável autor ou partícipe daquelas infrações referidas no inciso III do art. 1º da lei 7.960, de 1989, ou na Lei nº 8.072, de 1990 (fumus comissi delicti), não havendo à disposição da autoridade outros meios de prova aptos a impulsionar as investigações, havendo recusa do imputado em fornecer elementos de sua identificação e residência, esta prisão, em tese, é constitucional. Tudo deve levar em conta a razoabilidade, a proporcionalidade entre sacrificar-se o direito à liberdade de um indivíduo em prol de toda a sociedade, desde que essa privação seja necessária e adequada. Dessa forma, constata-se que a perfeita adequação do instituto da prisão temporária com o princípio constitucional da presunção de inocência apenas se fará se esse cotejo for feito à luz do princípio da proporcionalidade, ou da razoabilidade. Rogério Schietti afirma que “a noção de proporcionalidade das medidas cautelares e, em particular, das que interferem na liberdade do indivíduo é de extrema importância para a própria possibilidade de convivência dessas medidas com a presunção de não-culpabilidade, não sendo raras as vozes que apontam a incompatibilidade desses institutos”[33]. A idéia de proporcionalidade esteve sempre presente no direito, como um princípio que obrigaria o operador a buscar o justo equilíbrio entre os interesses em conflito. Desenvolvido na Alemanha, baseado em pensamentos jusnaturalistas e iluministas, o princípio da proporcionalidade preconiza que a limitação da liberdade individual só se justifica para a concretização de interesses coletivos superiores, buscando-se, através dele, o justo equilíbrio entre interesses em conflito. No ordenamento jurídico brasileiro, ele complementa o princípio da reserva legal e reafirma o Estado de Direito, podendo ser entendido como uma garantia especial, exigindo-se que toda intervenção na esfera dos direitos fundamentais se dê apenas por necessidade, de forma adequada e na justa medida, segundo lição de Suzana Toledo de Barros[34]. Apesar de não ser regra a positivação expressa do princípio da proporcionalidade nos ordenamentos jurídicos constitucionais ou processuais, estando presente apenas, por exemplo, nos Códigos de Processo Penal da Itália, de 1988, e de Portugal, de 1987, esse fato nunca foi obstáculo a que se aceitasse a existência desse princípio e o aplicasse diante dos casos concretos. O Ministro Gilmar Mendes ensina que “a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade”[35]. Modernamente, o princípio da proporcionalidade deve ser entendido através da identificação de seus três elementos: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. A adequação, também conhecida como pertinência, aptidão ou idoneidade, deve indicar se determinada medida tomada pelo Poder Público representa o meio certo para a concretização de um fim de interesse público, se existe adequação entre o meio e o fim colimado pelo Estado. Essa adequação, que será verificada empiricamente, deve ser avaliada de forma objetiva – adequação qualitativa ou quantitativa, e de forma subjetiva – ligada à idoneidade em face do sujeito passivo, como nos ensina Antonio Scarance Fernandes. A medida, continua o ilustre professor, deve “…ostentar qualidade essencial que a habilite a alcançar o fim pretendido (adequação qualitativa), a sua duração ou intensidade deve ser condizente com a sua finalidade (adequação quantitativa) e deve a medida ser dirigida a um indivíduo sobre o qual incidam as circunstâncias exigíveis para ser atuada (adequação subjetiva)”[36]. Assim, a medida cautelar só se legitima quando for capaz de produzir o resultado esperado, quando se mostrar eficaz, adequada, idônea para proteger o direito que se encontra ameaçado na situação concreta. Não se permitirá, portanto, um ataque ao direito do indivíduo se o meio utilizado não se mostrar adequado à obtenção do resultado pretendido. O segundo elemento é o da necessidade – ou da intervenção mínima, da subsidiariedade, da alternativa menos gravosa, da indispensabilidade ou da proibição de excesso, segundo o qual a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja. Se existem outros meios de alcançar o objetivo pretendido pelo Poder Público, devem ser utilizados os menos gravosos para os cidadãos, os que menos restringirem a esfera dos seus direitos individuais. Com o objetivo de se impor uma restrição a um direito individual, apresentam-se várias possibilidades de atuação ao Estado, devendo ser escolhida por ele a menos gravosa, não sendo razoável optar por aquela que imponha maiores restrições à obtenção do resultado pretendido, desprezando-se outras que, do mesmo modo, também alcançariam aquele mesmo resultado, porém de maneira menos danosa. Na análise da eficácia da medida não se deve ter em mira o meio mais eficaz, mas o meio suficientemente eficaz, pois nem sempre a medida mais gravosa assegura com maior intensidade o atingimento da medida mais benigna à consecução do fim pretendido. Segundo Antonio Scarance Fernandes, “a verificação da adequação é feita de maneira excludente, pois, caso se constate que o meio não serve para atingir o fim, a sua utilização deve ser repelida e afastada. A análise da necessidade, quantitativa ou qualitativa, contudo, é feita mediante juízo positivo, por meio do qual se indica, entre os vários meios adequados para atingir um fim, o mais adequado”[37]. Isso significa que a medida cautelar, além de ser adequada para atingir o fim esperado, deve ser a alternativa menos gravosa ao sujeito passivo dentre as expressamente previstas na lei. Por fim, o terceiro elemento é a proporcionalidade em sentido estrito, segundo o qual a escolha do Poder Público em sua atuação deve recair sobre o meio que, no caso específico, leve mais em conta os interesses em jogo, ou seja, da constatação, entre os valores em conflito, qual deve prevalecer. Essa escolha deve guardar proporcionalidade entre o bem que se objetiva proteger e o sacrifício da liberdade humana, ou seja, deve haver uma relação justa e adequada entre os benefícios obtidos com a medida e os meios empregados para levá-la a termo. Haverá a observância ao princípio da proporcionalidade se predominar, dentre os valores em conflito no caso concreto, o de maior relevância, evitando-se, dessa forma, que sejam impostas restrições descabidas a direitos individuais se comparadas com o objetivo a ser alcançado. Assim, segundo lição de Rogério Schietti, “…somente se mostrará legítima a prisão cautelar quando o sacrifício da liberdade do acusado for razoável (ante os juízos de idoneidade e necessidade da cautela), e proporcional (em termos comparativos) à gravidade do crime e às respectivas sanções que previsivelmente venham a ser impostas ao sujeito passivo da medida”[38]. Essa exigência objetiva impedir que o acusado, submetido a uma prisão cautelar, sofra um mal maior do que a própria sanção penal que poderá vir no final do processo, ou seja, que a coerção processual resulte mais gravosa que a prisão-pena. Dessa forma, segundo ensina Rogério Schietti, deve-se “..,evitar a prisão ante tempus para delitos considerados leves, que não cominem pena privativa de liberdade ou para aquelas situações em que, em avaliação racional, não se espera a efetiva imposição dessa modalidade de sanção. Outrossim, a custódia cautelar deve cessar quando já tenha transcorrido o tempo equivalente à pena estimada para o caso concreto”[39]. O mestre Antonio Scarance Fernandes[40] destaca ainda que, no caso das prisões cautelares, além dos três requisitos que ele chama de intrínsecos (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), são exigidos dois requisitos extrínsecos, quais sejam: a judicialidade e a motivação, ou seja, a necessidade de que as medidas restritivas de direitos sejam impostas por uma autoridade judicial e sempre mediante decisão motivada, fundamentada. Dessa forma, se a prisão de um indivíduo é um meio que o Estado utiliza para a investigação dos delitos, é claro que esta prisão deve atender ao princípio da proporcionalidade no caso concreto. Necessário se faz aferir se esta prisão é o meio investigatório idôneo para a instrução do inquérito (adequação), se é o meio menos gravoso de que dispõe autoridade para conduzir suas investigações (necessidade) e se no conjunto dos interesses em jogo esta prisão é a medida proporcional a atender fins de interesse público (proporcionalidade em sentido estrito). Além disso, a medida deve ser decretada por um juiz e mediante decisão devidamente fundamentada. Uma resposta negativa a estas indagações inquina de inconstitucionalidade a prisão temporária, por se afigurar medida excessiva, injustificável, não se adequando ao princípio da proporcionalidade. Em sua obra, Antônio Scarance Fernandes dedica um título à difícil busca da proporcionalidade entre a segurança social e a liberdade individual, tarefa árdua do juiz, no qual aduz o seguinte: “Como visto, no tratamento da prisão e da liberdade, a legislação elaborada logo após a Constituição foi, em regra, rigorosa…Tudo além do que poderia ser considerado o balanceamento necessário entre a segurança social e a liberdade individual, justamente quando a Constituição Federal acenava para a necessidade de ser atingido o ponto de equilíbrio, aumentando a proteção individual da liberdade principalmente com a consagração do princípio da presunção de inocência. A doutrina, em boa parte, não aceitou esse caminho legislativo. Procurou dar à Constituição exegese no sentido de não ser possível nenhuma prisão que não tenha natureza cautelar instrumental ou final… A jurisprudência, com algumas exceções, andou no mesmo sentido do legislador, mostrando-se também rigorosa ao interpretar os dispositivos legais atinentes à prisão e à liberdade: afirmou a constitucionalidade da legislação nova restritiva e não admitiu influência na legislação anterior dos novos princípios constitucionais garantidores. Assim, entendeu-se que o princípio da presunção de inocência não impediria as espécies de prisão até então admitidas… São manifestações legislativas e jurisprudenciais reveladoras de descrença injustificável em relação ao juiz, retirando-lhe o poder de, em cada caso, verificar a necessidade da prisão. Contudo, nota-se mudança na orientação dos Tribunais Superiores. (…) Não é fácil atingir o ponto justo e equilibrado, mas a regra deve ser a preservação da liberdade, só se admitindo a prisão se cautelar e quando estritamente necessária. A meta é produzir uma legislação que sirva eficazmente para combate a determinados delitos graves ou à criminalidade organizada, e que, ao mesmo tempo, preserve as garantias essenciais de um processo justo.”[41] Apesar de difícil a tarefa do juiz em buscar a devida proporção entre a segurança da coletividade e a liberdade do indivíduo, ele não pode abrir mão de tão poderoso instrumento. Conforme ensina Luiz Roberto Barroso, para preservar o ato normativo, a razoabilidade ou proporcionalidade “…oferece uma alternativa de atuação construtiva do judiciário para a produção do melhor resultado, ainda quando este não seja o único possível ou mesmo aquele que mais obviamente resultaria da aplicação acrítica da lei”[42]. Daí advém a importância do juiz criminal garantista, apto a realizar o direito no caso concreto. Somente assim, aplicando-se os princípios constitucionais que regem o processo penal, preserva-se o texto da lei, dando-lhe interpretação compatível com a Constituição Federal. A privação da liberdade de forma provisória, portanto, ainda no curso da investigação policial, pode se configurar legítima e constitucional, desde que encontre amparo nos interesses superiores de proteção à coletividade, no bem comum a ser preservado. É lícito ao Estado, de forma excepcional, restringir direitos individuais quando sua finalidade primária é a tutela do interesse público, conforme explicitado na própria Constituição Federal. Assim, entende-se que, existindo periculum libertatis, com risco efetivo de frustração na obtenção de provas causada pelo acusado, o seu direito de liberdade deve ceder ao interesse punitivo do corpo social. Se este cidadão, ameaçado em sua liberdade, tem em seu desfavor elementos probatórios que o apontem como provável autor ou partícipe das infrações referidas no inciso III do art. 1º da lei 7.960, de 1989, ou na Lei nº 8.072, de 1990 (fumus comissi delicti), não havendo à disposição da autoridade outros meios de prova aptos a impulsionar as investigações ou não possuindo o acusado residência fixa ou se recusando a fornecer elementos para sua identificação, a prisão temporária é, em tese, constitucional, devendo o decreto de prisão estar suficientemente fundamentado pela competente autoridade judicial, a fim de demonstrar a real necessidade da medida. 6. Conclusão Em um Estado Democrático de Direito, submetido a uma constituição que eleva a dogma a proteção à liberdade individual e declara expressamente que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, toda e qualquer restrição a esse direito fundamental deve ser sempre interpretada o mais restritivamente possível. No entanto, essa mesma constituição prevê a possibilidade de prisão cautelar, desde que em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judicial competente. Como interpretar tais comandos constitucionais e, além disso, incluir no ordenamento jurídico pátrio uma outra espécie de prisão, denominada temporária, que a primeira vista parece inconstitucional por colidir com certos princípios esculpidos na Carta Magna? Essa proteção que é dada ao direito do cidadão deve ser sempre preservada, defendida, pois foi conquistada com muito esforço, ao longo de vários anos e consolidada no tempo, permanecendo forte enquanto os regimes ditatoriais que surgiram em seu caminho foram ruindo. O direito à liberdade, consagrado desde a Carta Magna inglesa, no longínquo ano de 1215, foi se aperfeiçoando, gerando outros direitos também consagrados, em especial o direito de não ser considerado culpado antes de uma sentença penal definitiva, o que gerou o princípio da presunção de inocência, fruto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Importante destacar mais uma vez que a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica, incorporado ao nosso ordenamento jurídico no ano de 1992, expressamente também prevê tanto a proteção ao direito à liberdade quanto o princípio da presunção de inocência. Desde a proclamação desses importantes marcos jurídicos, buscar um equilíbrio entre preservar os direitos fundamentais, como a liberdade, e a defesa da coletividade, sempre foi tarefa das mais árduas. E é exatamente nesse difícil exercício de ponderação que pode-se encontrar o instituto da prisão temporária em contraposição com o princípio da presunção de inocência. A tarefa não é das mais fáceis, como pôde ser comprovado pela leitura de diversos doutrinadores que se posicionam tanto pela constitucionalidade quanto pela inconstitucionalidade do instituto, apesar da pacificação da questão perante o Supremo Tribunal Federal. Sendo assim, a única maneira encontrada de se fazer a perfeita adequação do instituto da prisão temporária com o princípio constitucional da presunção de inocência, objetivo desta pesquisa, foi interpretá-lo segundo outro princípio, o da proporcionalidade, ou da razoabilidade. Prender um acusado antes da sentença penal condenatória definitiva, restringindo seu direito à liberdade, só é possível desde que essa privação seja adequada, necessária e proporcional, visando o bem comum de toda a sociedade. Adequada porque a medida a ser adotada pelo Poder Público deve representar o meio idôneo para se alcançar o objetivo pretendido; necessária porque se exige que essa medida, dentre aquelas que se apresentam possíveis, seja a menos gravosa ao indivíduo; e proporcional porque a opção escolhida pelo Estado deve buscar a proporcionalidade entre o bem que se pretende proteger com aquela medida e o sacrifício da liberdade individual que será feita por ela. Graças ao princípio da proporcionalidade, pautado pelos seus três subprincípios, podem conviver o instituto da prisão temporária e o princípio da presunção de inocência, sempre relembrando que no caso das prisões cautelares também devem ser observadas mais duas exigências: a decretação da prisão deve ser feita por autoridade judicial e através de uma decisão devidamente fundamentada, que exponha com clareza os motivos que levaram à decretação daquela medida. O princípio da proporcionalidade, aliás, deve pautar não só a atuação do Estado no caso de prisões cautelares, mas também todo e qualquer ato que signifique restrições de direitos individuais. Aliás, o que é o princípio da proporcionalidade senão bom senso? Direito é bom senso, já ensinam os professores nos primeiros anos do estudo do direito. Através da proporcionalidade, ou da razoabilidade, pode-se medir exatamente a medida necessária à aplicação da lei ao caso concreto, ou seja, a atividade jurisdicional do Estado deve sempre se pautar por esse princípio para oferecer à sociedade o que ela procura e exige desse mesmo Estado: justiça. Só dessa forma, sacrificando-se direitos individuais em prol da coletividade, será possível uma perfeita e harmônica convivência entre os membros da sociedade, exercendo o Estado seu papel de garantir o bem comum. Essa atuação do Poder Público, no entanto, somente se mostrará legitima quando feita de acordo com os ditames da lei e da constituição e sempre, no caso específico da restrição de direitos fundamentais, feita segundo o princípio da proporcionalidade, ou da razoabilidade. Pode-se concluir, portanto, que a prisão temporária só deve ser decretada de modo excepcional, para atender a situações particularmente graves, contra os que legitimamente sejam suspeitos de ter praticado um crime (fumus comissi delicti) e existam razões fortes para se acreditar na ocorrência de perigo de fuga ou obstrução do curso da investigação criminal (periculum libertatis), devendo a autoridade judicial levar em consideração as particularidades do caso concreto e indicar o mais precisamente possível as razões da decretação da prisão (motivação). Além disso, a prisão não deve ser ordenada se a privação da liberdade não se mostrar adequada, necessária e proporcional. Dessa forma, constata-se que não é legítima a prisão anterior à condenação transitada em julgado senão por exigências cautelares indeclináveis de natureza instrumental ou final, sempre com observância ao princípio da proporcionalidade, sob pena de violação ao princípio constitucional da presunção de inocência e, conseqüentemente, ao devido processo legal. O próprio mestre Cesare Beccaria, um defensor do direito à liberdade e do tratamento digno aos acusados em geral, já preconizava, no século XVIII, que “sendo a privação da liberdade uma pena, não pode preceder a sentença senão quando o reclamar a necessidade”[43]. Quão clara se mostra a lição de Beccaria, mais de duzentos anos depois, quando lida sob a ótica do princípio da proporcionalidade, o que prova a perfeita harmonia entre discursos tão distantes no tempo mas tão próximos na essência, na compreensão do direito. Tratar o acusado como não-culpado, ou presumir sua inocência, significa, portanto, não tratá-lo como se condenado definitivamente fosse, sem que isso, todavia, signifique a completa impossibilidade de se impor certas restrições aos seus direitos individuais, inclusive a prisão temporária, desde que tal medida se mostre necessária diante do caso concreto, pois só assim a prisão estará em conformidade com a Constituição Federal e com todos os seus princípios aplicáveis ao processo penal, dentre os quais o princípio da presunção de inocência.   Bibliografia BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. BARROSO, Luiz Roberto. José Ronald Cavalcante Soares (Coordenador). Princípio da Razoabilidade e da Proporcionalidade. Estudos de Direito Constitucional em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: LTR, 2001. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Milão: Giuffrè, 1973. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002. CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão Cautelar. 1ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 5ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. GOMES, Luiz Flávio. Direito de Apelar em Liberdade. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. ­_______ Revista Jurídica. n. 189. Porto Alegre: Síntese, 1994. GOMES FILHO, Antonio Magalhães et al. As Nulidades no Processo Penal. 6ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. MENDES, Gilmar Ferreira et al. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 8ª edição. São Paulo: Atlas, 1998. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 8ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 23ª edição. Volume 3. São Paulo: Saraiva, 2001.   Notas: [1] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 243-244. [2] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo Penal. 24ª ed. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 468. [3] Mirabete, Julio Fabbrini. Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 1998. p. 393. [4] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 336. [5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 13.669-RJ. Relator: Min. Jorge Scartezzini. Brasília, DF, 19 de abril de 2001. Diário de Justiça da União, 20 ago. 2001. [6] GOMES FILHO, Antonio Magalhães et al. As Nulidades no Processo Penal. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 290. [7] GOMES FILHO, Antonio Magalhães et al. Op. cit. p. 290. [8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus nº 11.992-RJ. Relator: Min. Edson Vidigal. Brasília, DF, 5 de fevereiro de 2002. Diário de Justiça da União, 18 mar. 2002. [9] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Milão: Giuffrè, 1973. p. 39. [10] FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 328. [11] Mirabete, Julio Fabbrini. Op. cit. p. 42. [12] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 61. [13] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 69-70. [14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 73.338-RJ. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, DF, 13 de agosto de 1996. Diário de Justiça da União, 19 dez. 1996. [15] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Op. cit. p. 70. [16] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 64. [17] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 67. [18] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 67-68. [19] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 69. [20] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 465. [21] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 467. [22] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 467-468. [23] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Op. cit. p. 468. [24] GOMES, Luiz Flávio. Revista Jurídica. 189. Porto Alegre: Síntese, 1994. p. 74. [25] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. p. 643-644. [26] RANGEL, Paulo. Op. cit. p. 644. [27] RANGEL, Paulo. Op. cit. p. 581. [28] GOMES FILHO, Antonio Magalhães et al. Op. cit. p. 279. [29] CAPEZ, Fernando. Op. cit. p. 238. [30] GOMES, Luiz Flávio. Direito de Apelar em Liberdade. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 49. [31] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 7.655-GO. Relator: Min. Vicente Leal. Brasília, DF, 15 de outubro de 1998. Diário de Justiça da União, 23 nov. 1998. [32] MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. cit. p. 41. [33] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Op. cit. p. 94. [34] BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. [35] MENDES, Gilmar Ferreira et al. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 250. [36] FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 58. [37] FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 59. [38] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Op. cit. p. 99. [39] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Op. cit. p. 100. [40] FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 58. [41] FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 364-365. [42] BARROSO, Luiz Roberto. José Ronald Cavalcante Soares (Coordenador). Princípio da Razoabilidade e da Proporcionalidade. Estudos de Direito Constitucional em homanagem a Paulo Bonavides. São Paulo: LTR, 2001. p. 342. [43] BECCARIA, Cesare. Op. cit. p. 69. Procurador do Banco Central do Brasil em Brasília-DF, Assessor Jurídico da Coordenação-Geral de Processos de Consultoria Bancária e de Normas da Procuradoria-Geral do Banco Central, Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília-UNICEUB e Especialista em Direito, Estado e Constituição.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/adequacao-da-prisao-temporaria-ao-principio-constitucional-da-presuncao-de-inocencia/
A persecução criminal no ordenamento jurídico brasileiro
O presente artigo disserta sobre a persecução penal no Brasil, analisando inicialmente as formas de solução de conflitos surgidos no seio da sociedade, passando pela hipótese abstrata prevista na legislação e sua concretização, dando início à chamada pretensão punitiva estatal e, consequentemente à persecução penal. Para tanto, busca firmar conceitos como a natureza jurídica do procedimento investigativo e suas principais características, através de revisão bibliográfica simples.
Direito Processual Penal
Resumo: O presente artigo disserta sobre a persecução penal no Brasil, analisando inicialmente as formas de solução de conflitos surgidos no seio da sociedade, passando pela hipótese abstrata prevista na legislação e sua concretização, dando início à chamada pretensão punitiva estatal e, consequentemente à persecução penal. Para tanto, busca firmar conceitos como a natureza jurídica do procedimento investigativo e suas principais características, através de revisão bibliográfica simples. Sumário. 1. Da Persecução Penal. 1.1 Direito e sociedade. 1.2 Da evolução da administração da justiça. 1.3 Da norma abstrata e impessoal à concretização de seus efeitos secundários.1.4 Da pretensão punitiva. 1.5 Da necessidade do processo penal. 1.6 Da terminologia conferida a fase pré-processual de investigação. 1.7 Natureza jurídica do procedimento investigativo. 1.7.1 Procedimento administrativo pré-processual. 1.7.2 Procedimento judicial pré-processual. 1 DA PERSECUÇÃO PENAL: CONCEITOS GERAIS 1.1 Direito e sociedade O homem não consegue viver senão em sociedade. Embora a dificuldade técnica na conceituação de sociedade, preferimos, grosso modo, caracterizá-la como organizações de pessoas reunidas na busca de satisfação de interesses próprios e coletivos. Modernamente, predomina no universo jurídico o entendimento de que não há sociedade sem direito. Com efeito, tal assertiva é largamente aceita em virtude da função predominante do direito nas sociedades contemporâneas, qual seja a função ordenadora, tanto que, em posição extremada, disserta Nader (1995, p.31) “Direito e Sociedade são entidades congênitas e se pressupõem. O Direito não tem existência em si próprio. Ele existe na sociedade”. Deste modo, é comum na doutrina pátria a indicação do direito como uma das formas mais eficientes de controle social, esse entendido como o conjunto de mecanismos de que a própria sociedade dispõe para solução de conflitos, imposição de valores morais e todo o necessário para a possibilidade de existência de uma coletividade. Nesse diapasão, fácil imaginar que se cada membro de um agrupamento social fizesse o que bem quisesse e entendesse, recorrente seria a invasão da esfera de liberdade individual pelos demais integrantes do agrupamento, ou, ainda, por parte do ente estatal. Assim, fácil a visualização de que incumbe ao ordenamento jurídico harmonizar as relações sociais visando à continuidade da vida em sociedade, à defesa das liberdades individuais, em suma, ao bem estar geral da coletividade. 1.2 Da evolução da administração da justiça Nos primórdios do desenvolvimento da civilização dos povos, não há como falar em um Estado forte o suficiente para impor, de forma cogente, normas jurídicas. Nessa esteira, Cintra, Dinamarco e Grinover asseveram (2003, p.21) “não só inexistia um órgão estatal que, com soberania e autoridade, garantisse o cumprimento do direito, como não havia sequer as leis”. Por conseguinte, quem desejasse algo que outrem o impedisse de obter, seja como forma de relação negocial ou pessoal, haveria de buscar por si só, com seus esforços e na medida de seu poder, a satisfação de seus interesses sem qualquer mecanismo de freio ou limitação nessa atividade, sendo que a própria repressão aos atos criminosos se fazia em regime de vingança privada. Assim, inicialmente a solução dos conflitos aponta pela reação direta e pessoal do próprio interessado, sendo este, na visão de Ovídio Baptista (2006, p.34) inegavelmente o primeiro ímpeto do homem, havendo o que o autor chama de solução direta entre os conflitantes, sem participação de um terceiro na composição. Este sistema precário, de certa forma impensável no conceito moderno de Estado, é usualmente chamado de auto-tutela. Em verdade, realizava seu desejo aquele que tivesse força ou poder para tanto, com ações completamente desvinculadas, objetivamente, dos ideais de justiça. De outra banda, importante ressaltar a existência no ordenamento pátrio contemporâneo de casos esparsos de reconhecimento legal da auto-tutela, como nos esforços para cessação de turbação ou esbulho da posse, ou ainda, na seara penal, da excludente da ilicitude legítima defesa. Outra forma de composição dos litígios praticado nos sistemas primitivos, ainda permitido e até estimulado, é o chamado de auto-composição, através do qual um dos interessados abriria mão do bem disputado, submeter-se-ia à vontade do outro, ou, ainda, no caso de concessão recíproca, sendo  esses concernentes, respectivamente, à desistência, submissão e transação. Esta forma de resolução, no entanto, é desprovida de garantia de cumprimento senão pelo uso da própria força do interessado, persistindo, assim, os inconvenientes de sua adoção. É nesse diapasão que Cintra, Dinamarco e Grinover aduzem (2003, p.21) que: “Quando, pouco a pouco, os indivíduos foram-se apercebendo dos males desse sistema, eles começaram a preferir, ao invés da solução parcial de seus conflitos […], uma solução amigável e imparcial através de árbitros, pessoas de sua confiança mútua em quem as partes se louvam para que se resolvam os conflitos.” Essas funções arbitrais eram confiadas, em geral, aos anciãos e aos representantes de associações religiosas ou ligadas às divindades, sendo, de qualquer sorte, desprovida da imposição das decisões que hoje caracterizam a atividade jurisdicional. Portanto, gradativamente, e ressaltemos que de forma não linear e lado a lado com a afirmação do ente Estatal, consolidou-se a solução dos conflitos de forma quase exclusiva pelo Estado, havendo verdadeira proibição do exercício da auto-tutela pelo chamado monopólio da jurisdição estatal. Por conseguinte, se apenas o Estado administra a justiça, por meio do Poder Judiciário, elementar que em havendo lesão de direito do cidadão, estando este impossibilitado de fazê-lo valer pelo uso da força, pode dirigir-se ao Estado, reclamando a prestação jurisdicional e, conseqüentemente, o respeito aos seus interesses. Hodiernamente, a realização dessa tarefa definida como jurisdição é obtida pelo processo, definido com clareza por Tourinho Filho (2005, p.7) como forma de composição de litígios, havendo sucessão de atos coordenados visando à chamada composição da lide, estando completa quando o Estado-Juiz, depois de sopesar o obtido na instrução, ditar sua resolução forçosamente. 1.3 Da norma abstrata e impessoal à concretização de seus efeitos secundários No desempenho da atividade jurisdicional, o Estado regula as relações jurídicas ou intersubjetivas, partindo da premissa de um dos pilares básicos das funções estatais, qual seja a atividade legislativa. Desse modo, poder-se-ia afirmar que são estabelecidas normas jurídicas, fundadas no senso comum, regendo as mais variadas relações que necessitam de proteção ou reconhecimento estatal, definindo o lícito ou o ilícito, atribuindo direitos, poderes, deveres, faculdades, consistindo, segundo Cintra, Dinamarco e Grinover (2003, p. 18), em: “normas de caráter genérico e abstrato, ditadas aprioristicamente, sem destinação particular a nenhuma pessoa e a nenhuma situação concreta; são verdadeiros tipos, ou modelos de conduta (desejada ou reprovada), acompanhados ordinariamente dos efeitos que seguirão à ocorrência de fatos que se adaptem às previsões”. Deste modo, são estabelecidas regras que regulamentam a convivência entre as pessoas e as relações destas com o próprio Estado. Nesse diapasão, Mirabete leciona que (2005, p.25) “Esse conjunto de normas, denominado direito objetivo, exterioriza a vontade do Estado quanto à regulamentação das relações sociais, entre indivíduos, entre organismos do Estado e entre uns e outros.” Em momento posterior à edição das normas jurídicas, atividade estatal representada pela função legiferante, o Estado, através da Jurisdição, busca a realização prática destas normas em caso de conflitos entre pessoas ou órgãos, declarando, segundo própria orientação contida no ordenamento, qual o preceito pertinente ao caso concreto, desenvolvendo medidas visando a efetivação de tais preceitos. Nessa órbita é que para Cintra, Dinamarco e Grinover (2003, p.38) “a jurisdição é considerada uma longa manus da legislação, no sentido de que ela tem, entre outras finalidades, a de assegurar a prevalência do direito positivo do país”. Dessa atribuição valorativa da conduta, exposta na classificação em legalidade ou ilegalidade da ação, surge a definição do ilícito, que consiste, concorde Nader (1995, p.397) “na conduta humana violadora da ordem jurídica”. Em outras palavras, resulta que o lícito é um comportamento que está autorizado ou não vedado pelo ordenamento jurídico. Portanto, grosso modo, os atos jurídicos dividem-se em lícitos ou ilícitos . Os definidos como lícitos são os atos aos quais a lei defere os efeitos almejados pelo agente, e, se praticados em conformidade com as normas jurídicas, produzem efeitos jurídicos voluntários. Já os ilícitos, por serem praticados em desacordo com o prescrito no ordenamento jurídico, produzem efeitos jurídicos involuntários, impostos pelo próprio ordenamento jurídico. De outra banda, embora o ato ilícito ontologicamente tenha entendimento único, pode ter seus efeitos atribuídos pela norma penal ou civil. Portanto, conceitualmente, o ilícito penal ou o ilícito civil recebem a mesma definição, divergindo, entretanto, no atinente aos chamados efeitos involuntários produzidos em conformidade com a gravidade do ocorrido. Não obstante quem se afaste do imperativo das regras jurídicas fique submetido à coação estatal pelo descumprimento de seus deveres, tornar-se-iam inócuas tais normas se não estabelecessem sanções para aqueles que as desobedecessem, pondo em risco a finalidade de ordenação almejada. Por conseguinte, a sujeição de todos às normas estabelecidas pelo ordenamento jurídico somente pode ser obtida com a “cominação, aplicação e execução das sanções previstas para as transgressões cometidas, denominadas ilícitos jurídicos” (Mirabete, 2005, p.26). Inicialmente, essas sanções são o ressarcimento dos danos e prejuízos causados pela conduta proibida, residindo, neste ínterim, a distinção entre o ilícito penal e o ilícito civil. O direito civil, embora a existência de compartimentos não patrimoniais, é eminentemente patrimonial, no que resulta dizer, segundo Venosa (2005, p.572) que “Quando se fala na existência do ato ilícito no campo privado, o que se tem em vista é exclusivamente a reparação do dano, a recomposição patrimonial”. Assim, quando se condena o agente ao pagamento de indenização, objetiva-se o reequilíbrio patrimonial, desestabilizado pela conduta do causador do dano. Inobstante tal assertiva, ocorre que, por vezes, tais sanções se mostram insuficientes para coibir determinados ilícitos, pois há certos deveres que, por sua transcendência social e pela própria valoração atribuída pelo agrupamento social, devem ser reforçadas com outras normas, destinadas a fazer possível a convivência dos indivíduos em sociedade, sendo correta, então, a afirmação de que em caso de transgressão desses deveres, a exigência de sanção do ilícito transcende a esfera jurídica do interesse particular para afetar a própria comunidade social e política. Daí decorre a função de tutela jurídica do chamado direito penal, porque sua função precípua consiste na proteção dos bens jurídicos mais elevados, assim considerados aqueles aos quais o grupamento social, através do ordenamento jurídico, alçou a categoria de ilícito penal. Resumidamente, quando falamos em ilícito penal temos de ter em mente que, se tal conduta foi tipificada em seara penal significa que a consciência coletiva entende tal bem jurídico como dos mais importantes do ser humano, como a vida e a integridade física dos cidadãos. Tal entendimento vem exposto no chamado princípio da intervenção mínima, que é assim descrito por Jesus (2003, p.10): “Procurando restringir ou impedir o arbítrio do legislador, no sentido de evitar a definição desnecessária de crimes e a imposição de penas injustas, desumanas ou cruéis, a criação de tipos delituosos deve obedecer à imprescindibilidade, só devendo intervir o Estado, por intermédio do Direito Penal, quando os outros ramos do Direito não conseguirem prevenir a conduta ilícita.” Ora, como já dissemos, se o ilícito penal é aquele que viola bem jurídico elevado ao topo da hierarquia de valores, fácil compreender que este não mais afeta apenas a vítima ou o ofendido, mas sim toda a coletividade. Nesse diapasão, cumpre destacar a visão de Tourinho Filho (2005, p.9): “Dos bens ou interesses tutelados pelo Estado (por meio das normas), uns existem cuja violação afeta sobremodo as condições de vida em sociedade. O direito à vida, à honra, à integridade física são exemplos. Tais bens e muitos outros são tutelados pelas normas penais, e sua violação é o que se chama ilícito penal ou infração penal. O ilícito penal atenta, pois, contra os bens mais caros e importantes de quantos possua o homem, e, por isso mesmo, os mais importantes da vida social.” E é este ilícito penal, entendido como a transgressão de um tipo penal anteriormente definido, que nos interessa neste trabalho. Na ocorrência de um ato ilícito elevado à categoria de norma penal, surge em toda a coletividade um anseio de aplicação de uma sanção estabelecida conforme a gravidade do bem jurídico violado, baseado, também, nos próprios valores estabelecidos pelo grupamento social. Como já tivemos oportunidade de manifestar, o Estado prevê, através de lei, quais são os fatos que constituem infrações penais, e comina, também, as sanções correspondentes criando o que a doutrina conceitua como o direito penal objetivo. A título elucidativo, interessante destacar a visão de Basileu Garcia (apud Mirabete, 2005, p.26) que o conceitua como o “conjunto de normas jurídicas que o Estado estabelece para combater o crime, através de penas e medidas de segurança.” Por sua vez, tais normas distinguem-se das normas morais, religiosas e consuetudinárias, na medida em que se tornam cogentes, emitindo imperativos sob pena de uma sanção concreta. Ante o exposto, se o Estado avocou para si o monopólio da distribuição da Justiça impedindo o particular de resolver seus conflitos pela autotutela, bem como se tutelou os bens jurídicos tidos como os mais importantes na sociedade humana dentro do direito penal, fácil visualizar que incumbe ao próprio Estado a imposição de uma sanção pelo descumprimento de tal norma penal. Não mais podendo o particular exercer a punição, a titularidade do direito de punir do Estado surge no exato instante em que é suprimida a vingança privada e são implantados os critérios de justiça. Nessa esteira, Lopes Júnior sintetiza que (2006, p.3) “O Estado, como ente jurídico e político, avoca para si o direito (e também o dever) de proteger a comunidade e inclusive o próprio delinqüente como meio de cumprir sua função de procurar o bem comum”. Na medida em que há o crescimento estatal, consciente dos problemas causados pela autodefesa, o Estado assume o monopólio da justiça, produzindo senão a proibição expressa para os particulares de tomarem a justiça por suas próprias mãos, não cabendo, concorde Lopes Júnior (2006, p.3) “outra atividade que não a invocação da devida tutela jurisdicional”, impondo-se, assim, a necessária utilização da estrutura já anteriormente construída por este agora fortalecido Estado, qual seja o processo judicial. Então é correto afirmar que quando da ocorrência de um ilícito criminal surge para o Estado o direito-dever de punir o infrator, representando a justa reação do próprio ente estatal contra o autor da infração em nome da defesa da ordem e da boa convivência entre os cidadãos, sendo essa chamada de pretensão punitiva. 1.4 Da pretensão punitiva Em sendo o direito penal objetivo o conjunto de normas que descrevem os delitos e estabelecem as sanções, e, correspondendo o direito de punir à imposição dessas sanções, costuma a doutrina pátria distinguir o direito de punir em abstrato e concreto, nomeando-os como jus puniendi in abstracto e jus puniendi in concreto. Em clara lição, assim os define Tourinho Filho (2005, p.10): “Observe-se, contudo, que o jus puniendi existe in abstracto e in concreto. Com efeito. Quando o Estado, por meio do Poder Legislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a transgredir o mandamento proibitivo que se contém na norma penal, surge para ele o jus puniendi num plano abstrato e, para o particular, o dever de abster-se de realizar a conduta punível. Todavia, no instante em que alguém realiza a conduta proibida pela norma penal, aquele jus puniendi desce do plano abstrato para o concreto, pois, já agora, o Estado tem o dever de infligir a pena ao autor da conduta proibida.” Nesse diapasão podemos afirmar que, paralelamente com o surgimento do chamado de direito de punir concreto, nasce, também, a pretensão punitiva. Por sua vez, esse direito punitivo concreto é também chamado pela doutrina de direito subjetivo estatal, baseado na relação jurídica criada pelo infrator penal para com o Estado, qual seja a imposição da sanção penal. Este direito subjetivo, por sua vez, é clara manifestação da soberania estatal em plano interno. Portanto, a prática do ilícito penal acarreta a dicotomia existente ente o direito de liberdade do infrator e o poder punitivo estatal. Dessa exigência de subordinação do interesse alheio ao interesse próprio resulta a existência de uma pretensão, sendo que, no processo penal, “da exigência de subordinação do interesse do autor da infração penal ao interesse do Estado, resulta a pretensão punitiva” (Mirabete, 2005, p.27). Sem embargo da grande controvérsia acerca da existência de lide no processo penal, somos partidários da corrente majoritária que defende sua ocorrência, pois que o Estado, na aplicação da lei penal, deve sempre observar, paralelamente ao seu direito punitivo, o direito de ir e vir do cidadão, havendo clara oposição de uma parte à pretensão à outra. Mesmo quando o autor da conduta punível não opõe resistência à pretensão estatal, deve o Estado fazê-lo já que também tutela o direito de liberdade do paciente, esse eivado à posição de direito fundamental do homem. Em clara lição doutrinária, Tourinho Filho (2005, p.10) aponta “Desse modo, o Estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punível em conservar a sua liberdade se subordine ao seu, que é o de restringir o jus libertatis com a inflição da pena”. Não obstante, embora revelada a lide penal no conflito teórico existente entre direito de punir e direito de liberdade, cumpre destacar não ser pacífico tal entendimento. Isto porque, segundo minoritária parcela da doutrina, por ser o Estado o titular do direito de punir, e sendo o bem-estar social a maior de suas finalidades, não se pode dizer que a aplicação de pena ao criminoso seja o desejo íntimo do ente Estatal, mas, pura e simplesmente, que tal fato seja atribuído e submetido ao crivo do Estado-Juiz que em sua apreciação determina merecer ou não a aplicação da punição prevista no preceito secundário da norma penal, como vimos. Sustenta-se, desse modo, a inexistência da lide penal, posto o único interesse nessa atividade seria o de apuração ou não da recepção da reprimenda. Adotamos, entretanto, o entendimento da existência da lide penal, pois o Estado acaba por permanentemente vigiar e decidir acerca de interesses diametralmente opostos, quais sejam o poder-dever de punir, nascedouro do monopólio do jurisdição, e o direito fundamental de liberdade, oriundo da positivação dos direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão. Clara, assim, a posição de Nucci (2006, p.74) de que “O processo penal lida com liberdades públicas, direitos indisponíveis, tutelando a dignidade da pessoa humana e outros interesses dos quais não se pode abrir mão, como a vida, a liberdade, a integridade física e moral etc.” 1.5 Da necessidade do processo penal Partindo da premissa da existência do conflito teórico acima descrito surge o questionamento da forma como poderia o Estado tornar efetivo seu direito de punir infligindo ao culpado a devida sanção penal. Embora seja mais fácil a visualização da imposição direta da sanção penal do Estado, razoável concluir que da mesma forma que não seria possível a vida em sociedade com a manutenção da auto-tutela, impossível também conceber um modelo estável de sociedade em que a imposição da pena ao suposto criminoso ficasse a cargo exclusivo do próprio titular do direito de punir. Nesse ínterim, consolida-se com a evolução da sociedade moderna a fixação dos direitos fundamentais, em especial àqueles atinentes ao nosso estudo, quais sejam os diretamente vinculados ao direito de liberdade e do devido processo legal dentre outros. Nesta esteira, discorre Nucci que (2006, p.61) “O Estado deve respeitar os direitos do indivíduo, mas precisa também limitá-los, em nome da democracia”. Embora não seja possível o desenvolvimento desta idéia neste estudo monográfico, o fato é que nessa realidade incontrastável o Estado auto-limitou seu poder repressivo. Na visão de Tourinho Filho (2005, p.12) “Apesar de o Estado deter o direito de punir, ele próprio não pode executá-lo. Submete-se, assim, ao império da lei”. E o instrumento a ser utilizado para dirimir tal posição antagônica entre a liberdade e a punição é o devido processo legal, que mesmo na seara penal é indispensável para a imposição da pena, haja visto a proteção auferida aos cidadãos contra os abusos do poder público. Nesse diapasão, Lopes Júnior assevera (2006, p.2) “o Direito Penal é despido de coerção direta e, ao contrário do direito privado, não tem atuação nem realidade concreta fora do processo correspondente.” Assim sendo, para a aplicação da pena, não é suficiente a ocorrência de um evento definido como ilícito penal, mas também a ocorrência de um processo penal, havendo, nesse, amplo rol de direitos e garantias fundamentais. Com efeito, clara a disposição defendida por Lopes Júnior (2006, p.2) no sentido de que “A pena não só é efeito jurídico do delito, senão que é um efeito do processo; mas o processo não é efeito do delito, senão da necessidade de impor a pena ao delito por meio do processo”. Portanto, pelo respeito à dignidade humana e à liberdade individual é que o Estado fixa a manifestação de seu poder repressivo não apenas nos chamados pressupostos jurídico-penais materiais, exposto nos brocardos nullum crimen nulla poena sine lege, como também assegura a aplicação da lei penal ao caso concreto, de acordo com as formalidades prescritas em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais, como depreende-se dos princípios da nulla poena sine judice, nulla poena sine judicio. Isto equivale a dizer que as leis materiais, o processo e o órgão jurisdicional são fatores indispensáveis nas relações jurídico-penais, como bem disserta Lopes Júnior (2006, p.2) “Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena.” Frente à violação de um bem juridicamente protegido que se tutelado na esfera penal é porque tido como um dos mais valiosos da sociedade contemporânea, não há falar em outra atividade que não a invocação da tutela jurisdicional. Há caráter impositivo em um Estado democrático de direito para a necessária utilização do processo judicial, cuja atuação mediante um terceiro imparcial não corresponde à vontade das partes e resulta da imposição da estrutura institucional, atribuindo, assim, os efeitos devidos ao imputado e solucionando os conflitos surgidos. Isso posto devemos ressaltar a finalidade do processo penal. Superando alguns dogmas do processo penal, entendemos defasada a definição do processo penal como direito adjetivo, colocado em existência para a correta aplicação da lei penal. Em nosso entendimento, à luz da moderna teoria constitucional, em especial no concernente aos direitos e garantias fundamentais, não basta atribuir ao processo penal uma função de política de segurança pública, ou apenas de comprovação da necessidade de imposição de sanção penal ou não ao suposto autor de delito. Em verdade, hodiernamente o processo penal é um instrumento colocado à disposição do cidadão para conferir eficácia às liberdades tidas como negativas, quais sejam aquelas representadas por uma conduta negativa do Estado em respeito à liberdade individual do cidadão. Com efeito dispõe o inc. XXXV do art. 5o da Constituição Federal que “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Assim, sendo a liberdade um direito individual alçado à tutela constitucional, e se a imposição de uma pena inflige tal direito, não pode a lei nem ninguém suprimir a apreciação de tal lesão do Poder Judiciário, concluindo Tourinho Filho que (2005, p.14) “Só o Juiz e exclusivamente o Juiz é que poderá dizer se o réu é culpado, para poder impor a medida restritiva do jus libertatis”. Nesse sentido, define Nucci o processo penal como (2006, p.73): “o corpo de normas jurídicas cuja finalidade é regular o modo, os meios e os órgãos encarregados de punir do Estado, realizando-se por intermédio do Poder Judiciário, constitucionalmente incumbido de aplicar a lei ao caso concreto.” Do mesmo modo, dispõe o inc. LIV do art. 5o da Constituição Federal que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, de onde resulta a forçosa conclusão de que a imposição de pena ao pretenso culpado não pode prescindir de um regular processo presidido por um Juiz natural, ficando as partes em um mesmo plano processual de direitos e deveres a fim de que a justiça não fique menoscabada em benefício de parte melhor situada processualmente. Logo, quando alguém comete uma infração penal, o Estado, impossibilitado de exercer seu direito punitivo diretamente pelas razões expostas, vai a Juízo, tal qual o particular quando tem seu interesse atingido pelo comportamento ilícito de outrem, e deduz a sua pretensão. Nesse diapasão, curial a conclusão de que o Estado necessita de órgãos para desenvolverem a necessária atividade, visando obter a aplicação da sanção ao culpado. Essa atividade é denominada de persecução criminal, definida por Tourinho Filho (2005, p. 15) como a atividade de investigar o fato infringente à norma penal e pedir, em juízo, o julgamento da pretensão punitiva. Assim, segundo esse mesmo autor (2005, p.16) a persecução criminal “apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal.” Esta consiste no pedido de julgamento da pretensão punitiva, conquanto aquela exprime-se na atividade preparatória da ação penal, de caráter preliminar e informativo. Nesse diapasão, para que o titular da ação penal possa exercer seu direito de ação, levando ao conhecimento do Juiz a notícia sobre um fato que se reveste de aparência criminosa, apontando-lhe também o autor, é curial deva ter em mãos dados indispensáveis à propositura da ação. Atualmente, e levando em conta a realidade brasileira, em determinados casos o processo penal acaba por refletir uma verdadeira forma de imposição de sanção. Embora a existência de um estado de inocência esculpido no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira, a ocorrência de um processo penal na vida de um cidadão pode ser um fardo doloroso de ser carregado pela expansiva e marcante exposição dos imputados nos meios de comunicação. Fatores como prestígio profissional, status familiar, boa fama, honra, são facilmente maculados pela ocorrência de uma denúncia penal. Sob esta óptica, cresce a posição da investigação preliminar ao processo penal, que tem caráter dualista nitidamente demarcado. De um lado, buscar indícios suficientes de autoria e materialidade do delito, de outro, impossibilitar, por questões lógicas, denúncias infundadas seriamente prejudiciais ao cidadão. Cabe ressaltar quanto à função de filtro processual, a louvável lição de Lopes Júnior (2006, p.25): “entendemos ser imprescindível destacar a existência de verdadeiras penas processuais, pois não só o processo é uma pena em si mesmo, senão também que existe um sobrecusto inflacionário do processo penal na moderna sociedade de comunicação de massas. Existe o uso da imputação formal como um instrumento de culpabilidade preventiva e de estigmatização pública, e, por outra parte, na proliferação de processos a cada ano, não seguidos de pena alguma e somente geradores de certificados penais e de status jurídico-sociais”. Deste modo, fácil concluir a importância da investigação preliminar ao processo penal, em conseqüência do destaque conferido à posição do próprio processo penal na sociedade moderna. 1.6 Da terminologia conferida a fase pré-processual de investigação Como titular do direito de punir, quando alguém infringe a norma penal deverá o Estado, para fazer valer o seu direito, procurar os elementos comprobatórios do fato infringente da norma e os de quem tenha sido o seu autor, entregando-o, a seguir, ao titular da ação penal. Essa tarefa de levar ao juízo o fato criminoso é chamada de persecução penal em juízo, notadamente a segunda fase do aludido instituto. Mas tal assertiva é precedida de um procedimento que vise à busca dos elementos comprobatórios do fato e da respectiva autoria. No Brasil, como a investigação preliminar está afeta à Polícia Judiciária, optou o legislador, sendo seguido pela doutrina pátria, em nomeá-lo como inquérito policial. Isto porque, concorde Lopes Júnior (2006, p.37) “No Brasil, denomina-se inquérito policial, atendendo basicamente ao órgão encarregado da atividade”. Todavia, em nosso trabalho, em decorrência da análise de outros sistemas de investigação baseados no direito comparado, a terminologia não pode ser determinada pelo órgão encarregado, razão porque preferirmos título que caiba às demais modalidades de investigação, não apenas as realizadas pela polícia judiciária. Ademais, outras modalidades de investigação são também permitidas no direito pátrio, tais quais aquelas promovidas pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, pelas autoridades florestais e por agentes da Administração em sindicâncias e processos administrativos, dentre outras. Lopes Júnior (2006, p.38), em análise cuidadosa, aponta a preferência pelo termo instrução preliminar, assim discorrendo: “O termo que nos parece mais adequado é o de instrução preliminar. O primeiro vocábulo […] significa ensinar, informar. Serve para aludir ao fundamento e à natureza da atividade levada a cabo, isto é, a aportação de dados fáticos e elementos de convicção que possam servir para formar a opinio delicti do acusador e justificar o processo ou o não-processo.” Aduz ainda o aludido doutrinador que o termo instrução seria também mais amplo do que investigação porque atinente à atividade judicial ou policial, bem como ressalta a existência de uma instrução posterior, qual seja a processual penal. Por essa razão a preferência pelo termo instrução preliminar, destacando ainda que o uso dessa nomenclatura (2006, p.38) “Também servirá para apontar o caráter prévio com que se realiza a instrução, diferenciando sua situação cronológica.” Todavia, entendermos não ser possível a utilização do termo instrução preliminar, porque, na medida do possível, as provas devem ser repetidas no curso do processo judicial. Preferimos o termo investigação preliminar, nos reservando ao uso da terminologia de instrução processual para o processo judicial. 1.7 Natureza jurídica do procedimento investigativo A natureza jurídica da investigação é determinada, em geral, pela análise de sua função, estrutura e órgão encarregado. Isso porque segundo Lopes Júnior (2006, p.40) “A natureza jurídica da instrução preliminar é complexa, pois nela são praticados atos de distinta natureza (administrativos, judiciais e até jurisdicionais.” Devemos, assim, levar em conta para a respectiva classificação a natureza jurídica dos atos predominantes, que mesmo em procedimentos notoriamente administrativos como o inquérito policial podem apresentar atos jurisdicionais que necessitem da intervenção do Juiz, como por exemplo a adoção de medida restritiva de direitos fundamentais como a prisão preventiva. Com efeito, as duas correntes principais acerca da natureza jurídica da investigação são aquelas que a definem ora como um procedimento administrativo anterior ao processo ora como um procedimento judicial pré-processual. Destarte, a altercação se resume ao fato de ser ou não judicial a coléta de dados preparatórios para a propositura ou não da ação penal. Embora pareça questão superficial, a classificação como procedimento judicial acarreta diversos efeitos, em especial no concernente ao sigilo e a participação o sujeito passivo, o indiciado, em tal procedimento. Tal Idéia resta clara na seguinte lição de Santin (2001, p.133): “A definição das características processuais jurídico-processuais do inquérito policial e demais procedimentos investigatórios é importante para a aplicação das normas constitucionais relativas à participação dos interessados no desenvolvimento das fases de investigação, tendo em vista que o constituinte determinou o exercício dos princípios da ampla defesa e do contraditório nos processos judiciais e administrativos” Deste modo, passemos a analisar as duas principais correntes doutrinárias. 1.7.1 Procedimento administrativo pré-processual Esta corrente considera a investigação preliminar como uma fase preparatória, um procedimento prévio e preparatório do processo penal, sem que seja, por si mesma, uma espécie de processo. Será, então, eminentemente administrativo quando estiver a cargo de um órgão estatal que não pertença ao Poder Judiciário, isto é, um agente que não possua poder jurisdicional. Cabe ressaltar a adoção do termo procedimento administrativo pela não ocorrência de processo administrativo. Nesse diapasão, discorre com propriedade Santin (2001, p.139) “Não se trata de processo administrativo, porque ainda não há acusado, litigante ou conflito de interesses nem há imposição de sanção ou decisão sobre um direito do investigado”. Destarte, quando a investigação estiver a cabo da autoridade policial será eminentemente administrativa, embora possam decorrer atos de natureza diversa, tais como os já citados jurisdicionais. Nesse diapasão, importante trazer a lume a visão de Mirabete (2005, p.82), discorrendo sobre o caráter administrativo do procedimento no direito pátrio: “Não é o inquérito ‘processo’, mas procedimento administrativo informativo, destinado a fornecer ao órgão da acusação o mínimo de elementos necessários à propositura da ação penal. A investigação procedida pela autoridade policial não se confunde com a instrução criminal, distinguindo o Código de Processo Penal o ‘inquérito policial’ […] da ‘instrução criminal’. Por essa razão não se aplicam ao inquérito policial os princípios processuais já mencionados […] nem mesmo o contraditório.” A atividade, nesses casos, carece da direção de uma autoridade com potestade jurisdicional, não podendo, assim, ser considerada coma atividade jurisdicional e tampouco de natureza processual. Isto porque são práticas que podem ser realizadas fora do procedimento judicial e por autoridades com poderes meramente administrativos, inclusive porque conforme Lopes Júnior (2006, p.41) “são inerentes ao poder-dever de garantia da segurança pública a que estão vinculados o Estado e os órgãos da administração.” Questão bastante controvertida é a atribuição da natureza jurídica da investigação presidida pelo Ministério Público. Embora a doutrina majoritária afirme seu caráter administrativo, principalmente porque a investigação se realiza antes de proposta a ação penal, não podemos aduzir a unanimidade deste entendimento. Com efeito, aponta Fonseca Andrade que (2006, p.56) “Como era de se esperar, a soma destes fatores levou a doutrina a afirmar, sem qualquer titubeio, que a investigação criminal realizada pelo Ministério Público possui natureza administrativa ou pré-processual.” Não obstante, o aludido autor, prosseguindo na digressão sobre o tema, aponta (2006, ps.60-61) que a atribuição dirigida ao procedimento realizado pelo Parquet dependerá da posição adotada pelo legislador, mormente no tocante ao sistema processual adotado, quais sejam o acusatório, inquisitivo ou misto, que analisaremos em momento oportuno. Continua o referido autor indicando que nos países que adotam o sistema misto e a investigação pelo Ministério Público poderá o legislador estabelecer caráter administrativo ou processual. Inobstante tal assertiva, ousamos discordar do citado doutrinador. Para nós, como já dito, o que determina a natureza jurídica da investigação preliminar é a natureza jurídica dos atos predominantes, que, em síntese, decorre primeiramente da posição do agente no cenário jurídico, decorrendo de investidura de poder jurisdicional ou administrativo. Tanto é assim que em sistemas comparados a investigação realizada pelo Ministério Público pode apresentar caráter administrativo ou até judicial. Entretanto, nos casos de natureza judicial, tal classificação decorre do fato de o órgão ministerial integrar o Poder Judiciário e não pela escolha do sistema processual, como veremos quando da análise do direito comparado. 1.7.2 Procedimento judicial pré-processual A investigação preliminar toma a forma de atos concatenados e logicamente organizados, visando subsídios para a propositura da ação penal, que, como já dito, constitui um segundo momento da persecução penal, podendo seus atos predominantemente serem administrativos, judiciais ou jurisdicionais. Concorde Lopes Júnior (2006, pág. 43) caracteriza-se como judicial o procedimento quando “a investigação preliminar está a cargo de um órgão que pertence ao poder judiciário e dirige a investigação com base na potestas que emana do fato de pertencer ao poder judiciário.” Nesse modelo, podemos indicar como paradigmas aqueles adotados em países como Itália e Portugal que atribuem a investigação preliminar à um Ministério Público independente do Poder Executivo e constitucionalmente incluído no Judiciário, que analisaremos no próximo capítulo. Cabe destacar que ainda nestes casos em que o Ministério Público integre o Poder Judiciário não há qualquer dúvida de que os membros do Parquet não realizam, nessa atividade investigativa, qualquer espécie de atos jurisdicionais, mas apenas judiciais. Isto porque, embora integrantes do Poder Judiciário, não realizam atividades típicas da magistratura, mormente aqueles decorrentes da aplicação do direito objetivo ao caso concreto. Aos integrantes do Ministério Público incumbe colaborar no exercício desse poder jurisdicional, sem, contudo, exercê-lo. Nesse diapasão podemos afirmar que seus atos não são meramente administrativos, mas sim judiciais. Isto porque seu poder decorre não mais da investidura do executivo, mas sim do judiciário. De outra banda, consideramos também como procedimento judicial pré-processual a investigação comandada pelo Juiz Instrutor, não considerando-o como parte integrante do processo, pois faltam-lhe, também, requisitos para ser definido como processo, como os apontados por Lopes Júnior (2006, pág.44) tais como o exercício de uma pretensão, a existência de partes contrapostas, a garantia do contraditório, a existência de uma sentença e a produção de coisa julgada. Destarte a investigação preliminar tem a característica de ser um procedimento prévio ao processo penal, e, por isso mesmo, de natureza pré-processual e com função preparatória do processo ou do não processo, este entendido como a não iniciação da ação penal por ausência de fundamentos. Nessa esteira geralmente a primeira fase da persecução penal é escrita e secreta, contrariando a oralidade e a publicidade que devem predominar no processo penal como forma de garantir uma solução justa dos conflitos. Cabe destacar o exposto por Lopes Júnior (2006, p.45) “Em definitivo, a natureza jurídica da investigação preliminar, quando levada a cabo por membros do Poder Judiciário […] será de procedimento judicial pré-processual.” Todavia, convém ressaltar que embora sejam os responsáveis pela investigação preliminar integrantes do poder Judiciário, sejam membros do Ministério Público ou Juízes instrutores, não a podemos considerar como processo judicial por ausência de requisitos para assim defini-la, como já tivemos oportunidade de discorrer.   Referências ANDRADE, Mauro Fonseca. Ministério Público e sua Investigação Criminal. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2006. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Teoria Geral do Processo Civil. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 19.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. JESUS, Damásio De. Direito Penal, 1º Volume – Parte Geral. 26.ed. São Paulo: Saraiva, 2003. LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 17.ed. São Paulo: Atlas, 2005. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 12.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. SANTIN, Valer Foleto. O Ministério Público na Investigação Criminal. São Paulo: Edipro, 2001. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, Volume 1. 27.ed. São Paulo: Saraiva, 2005. Advogado. Pós-Graduado em Direito Público. Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de Brasília (IDP).
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/a-persecucao-criminal-no-ordenamento-juridico-brasileiro/
A realização material do princípio da fundamentação no recebimento da denúncia
O presente estudo buscou elucidar como a recente Lei 11.971/09 determina a emissão das certidões de antecedentes criminais mais precisas, garantindo, juntamente com o teor da Súmula Vinculante 14, a possibilidade a possibilidade de defesa e exclusão de homônimos em Inquérito e processo criminal.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO A lei 11.719/08 tratou do recebimento da denúncia no processo penal com a menção a tal ato no art. 396 e também no art. 399, construindo uma situação de conflito doutrinário que prega a existência de 02 (dois) recebimentos da denúncia. O art. 93, IX determina a necessidade de fundamentação nas decisões judiciais, assim, necessário que o magistrado atue expondo suas razões. Dessa forma, imperativo que o segundo recebimento – por já contar com alegação acusatória e também sustentação defensiva do acusado – determine quais as razões que atuam no recebimento da denúncia, evitando que haja a violação do preceito da Fundamentação e também da Ampla Defesa. Embora a jurisprudência exponha que tal recebimento não necessita de fundamentação, materialmente não há respeito aos postulados e tal lesão, sob a égide constitucional, é uma sabotagem constitucional que inviabiliza a democracia. 1 RECEBIMENTOS DA DENÚNCIA A alteração do Código de Processo Penal sustentada pela lei 11.719/08 determinou uma situação de conflito dentro do procedimento, qual seja, a existência de 02 (dois) momentos de recebimento da denúncia, um que ocorre antes da citação do acusado e o outro após a citação e manifestação do acusado. Consoante o art. 396, o magistrado após o oferecimento da denúncia deverá determinar a citação do acusado para responder a acusação em 10 (dez) dias. Por evidente, a possibilidade de rejeição liminar existe e pode ser exercida pelo magistrado segundo as hipóteses do art. 395. Anota-se que há também o art. 399 que trata do suposto segundo recebimento da denúncia que ocorre após a citação efetiva do acusado e a manifestação do defensor, que deve ser construída com argumentos defensivos amplos. O teor do Código de Processo Penal deixa evidente tal situação: “Art. 396-A. Na resposta, o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo que interessa à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário”. Dentro de tal possibilidade, há o segundo recebimento da denúncia:  “Art. 399. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente”. Assim, a princípio, consoante o texto do CPP haveria (02) recebimentos da denúncia, sendo o segundo o ato em que o magistrado já tem a denúncia e a tese defensiva. 2 MOMENTO EFETIVO DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA Embora a lei demonstre a existência de 02 (dois) recebimentos, acertada é a lição de Aury Lopes Jr: “Mas, infelizmente, foi inserida no art. 396 a mesóclise “recebê-la-á” e manteve-se a redação do projeto no que se refere ao art. 399, gerando uma dicotomia aparente (dois recebimentos?). Com isso, o recebimento da denúncia é imediato e ocorre nos termos do art. 396. Esse é o marco interruptivo da prescrição e demarca o início do processo, que se completa com a citação válida do réu. Tanto que o réu é citado nesse momento para apresentar sua resposta”.[1] Tal enunciado deixa evidente que, apesar do dispositivo, o fato é que apenas um recebimento ocorre. Ainda, nos dizeres de Nucci: “É inegável o equívoco legislativo na redação do art. 399 (“recebida a denúncia ou queixa”), dando a entender que seria a peça acusatória recebida duas vezes, pois já fora realizada essa atividade por ocasião no disposto no art. 399, caput”.[2] Anota-se que, apesar de reconhecer o acerto em tais lições, necessário que a jurisprudência se alinhe, efetivamente, a um dos requisitos de existência do próprio ato, que é a necessidade de fundamentação. O próprio art. 396 impõe ao magistrado cognição consoante a possibilidade de rejeição liminar, assim, o caráter decisões do recebimento é notório. 3 MATERIALIDADE DO PRECEITO DA FUNDAMENTAÇÃO O próprio art. 396 impõe ao magistrado cognição que trate da possibilidade de rejeição liminar, assim, o caráter decisões do recebimento é notório. Por evidente, o processo que apenas respeita ao teor legal pode ser inválido perante o valor democrático em razão da necessidade de o processo atender aos princípios, como elementos essenciais. O argumento percorre os princípios como cogentes e a normatividade destes postulados, elementos tratados pelo neoconstitucionalismo que pregam a sustentação dos princípios como norma cogente. A lição precisa de Barroso – neste sentido – é acertada: “Uma vez investida na condição de norma jurídica, a norma constitucional passou a desfrutar dos atributos essenciais ao gênero, dentro os quais a imperatividade. Não é própria de uma norma jurídica sugerir, recomendar, aconselhar, alvitrar. Normas jurídicas e, ipso facto, normas constitucionais contêm comandos, mandamentos, ordens, dotados de força jurídica, e não apenas moral”.[3] Dentro de tal cogência normativa o preceito da fundamentação das decisões adquire a necessária característica de incidir sobre todos os momentos processuais, a jurisprudência já se determinou em tal sentido em diversos momentos: “HABEAS CORPUS. ARTS. 396, 396-A, 397 E 399, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. `SEGUNDO¿ RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE. TESES DEFENSIVAS BUSCANDO ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. REJEIÇÃO DO PEDIDO. FUNDAMENTAÇÃO. NECESSIDADE. Antagonizada a pretensão acusatória com argumentos de fato e de direito produzida pela defesa na resposta preliminar, para fazer persistir aquela com a regular tramitação do processo, deve o juiz esclarecer a motivação deste recebimento da denúncia, renovando o juízo de admissibilidade e, assim, mantendo o controle jurisdicional sobre a acusação a justificando a sucumbência inicial da defesa. Ordem concedida” (Habeas Corpus Nº 70030173082, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aramis Nassif, Julgado em 17/06/2009) O voto do ilustre relator é ensinamento preciso: “Este papel do juiz julgador necessita da aplicação do Art. 93, IX, da Constituição Federal, porque o exercício da opção pela continuidade do feito, derribando a tese defensiva, é uma decisão que faz sucumbir os interesses do acusado em ver-se absolvido. Ou seja, necessário o cotejo da acusação, para seu controle, e da defesa para ver ou não absolvido o acusado”. O Supremo Tribunal Federal em decisão recente e necessária elucidou a necessidade de fundamentação no recebimento da denúncia, sob pena de nulidade, no presente estudo entende-se absoluta, em razão de violação de princípio, em seu teor, e também norma: “EMENTA: AÇÃO PENAL. Denúncia. Rejeição pelo juízo de primeiro grau. Recebimento em recurso em sentido estrito. Repúdio ao fundamento da decisão impugnada. Acórdão carente de fundamentação sobre outros aspectos da inicial. Nulidade processual caracterizada. Não conhecimento do recurso extraordinário. Concessão, porém, de habeas corpus de ofício. É nula a decisão que recebe denúncia sem fundamentação suficiente sobre a admissibilidade da ação penal.” (RE 456673, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 31/03/2009, DJe-094 DIVULG 21-05-2009 PUBLIC 22-05-2009 EMENT VOL-02361-05 PP-01086) No HC 94.408 o Ministro Eros Grau ensina: “no exercício da prudência do direito, para que prevaleça contra qualquer outra, momentânea, incendiária, ocasional, a força normativa da Constituição. Sobretudo nos momentos de exaltação. Para isso fomos feitos, para tanto estamos aqui”. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é razoável e também está buscando uma frente constitucional: “Crime de responsabilidade dos funcionários públicos (processo). Denúncia (recebimento). Fundamentação (necessidade). 1. Foi em 1973 que se instalou, no Supremo Tribunal, a propósito da natureza do ato judicial de recebimento da denúncia, inteligente e mágica discussão entre Bilac, Alckmin e Xavier, e lá prevaleceu o entendimento de que tal ato, se possui carga decisória, não é, entretanto, “ato decisório mencionado no art. 567” (RE-74.297, DJ de 27.3.74). 2. Então, decerto que o recebimento da denúncia não é simples despacho de expediente, ao contrário, pois, de Toledo, no Superior Tribunal, em 1995, no RHC-4.240. De igual sorte, Medina e Quaglia, nos anos 2004 e 2005, nos RHCs 13.545 e 17.974. 3. É, então, correto, hoje e agora, interpretando a regra do art. 516 do Cód. de Pr. Penal, admitir que, se se exige a rejeição da denúncia (ato negativo) em despacho fundamentado, também a decisão que a recebe (ato positivo) há de ser, sempre e sempre, devidamente fundamentada. 4. Pensar de maneira outra seria colocar à frente da liberdade a pretensão punitiva, quando, é sabido, o que se privilegia é a liberdade. Nunca é demais lembrar: (I) “havendo normas de opostas inspirações ideológicas – antinomia de princípio –, a solução do conflito (aparente) há de privilegiar a liberdade, porque a liberdade anda à frente dos outros bens da vida, salvo à frente da própria vida” (HC-95.838); e (II) “impõe-se, isto sim, se extraiam conseqüências de um bom, se não excelente, princípio/norma, que cumpre ser preservado para o bem do Estado democrático de direito” (HC-96.521). 5. Ordem de habeas corpus concedida para se anular toda a ação penal desde, e inclusive, o recebimento da denúncia – a que se procedeu sem fundamentação”. (HC 76.319/SC, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 11/12/2008, DJe 23/03/2009) O voto da ilustre ministra Maria Thereza de Assis Moura, que acompanhou o relator: “É até intuitivo que, diante do comando legal, a admissão da acusação somente se viabilizasse mediante decisão fundamentada. Na hipótese, a motivação cumpre o papel fundamental de legitimação do processo penal, mecanismo de intervenção tão gravoso. E veja que, pouco a pouco, com o palmilhar de nossa jovem democracia, tal concepção foi se generalizando, independentemente da natureza do delito. São exemplos dessa nova perspectiva, o rito sumaríssimo trazido pela Lei 9.099/95, o procedimento da anterior legislação de drogas, Lei 10.409/02, e, o da atual, Lei 11.343/06. E, para coroar tal compreensão, as recentes reformas do Código de Processo Penal cristalizaram, de modo amplo, a necessidade de que o magistrado, antes de empolgar a ação penal, zele pela sua higidez, justificando-se o processo apenas diante de comprovado embasamento – formal e material”. Acertado é o direcionamento da eminente ministra do STJ a qual ensina sobre a necessidade de o processo seja racionalmente instituído apenas quando há, de fato, fundamento para tal. A fundamentação do recebimento é o mínimo dever do magistrado de demonstrar as razões que o levaram a decisão de impor o processo e suas misérias ao cidadão. Consoante tal situação, Lauria Tucci: “É, portanto, mediante a motivação que o magistrado pronunciante de ato decisório mostra como apreendeu os fatos e interpretou a lei que sobre eles incide, propiciando, com as indispensáveis clareza, lógica e precisão, a perfeita compreensão da abordagem de todos os pontos questionados e, conseqüente e precipuamente, a conclusão atingida.(…) Daí, a afirmada imprescindibilidade da motivação de todos os atos dos órgãos jurisdicionais que tenham conteúdo decisório, consubstanciado no dever funcional de justificação do comportamento profissional dos agentes do Poder Judiciário, que, pela sua natureza, inadmite qualquer limitação”.[4] Assim – diante do evidente fato de que o ato de recebimento não é mero expediente – é imperativo que haja fundamentação devido em razão, além do dever de fundamentar, da necessidade de materializar o preceito da Ampla Defesa, pois, já que há defesa preliminar para expor a possibilidade de não recebimento, tal manifestação deve ser devidamente atacada pelo magistrado. O mesmo doutrinador supramencionado conclui de forma magistral que: “Com efeito, não pode haver mais qualquer dúvida acerca da indispensabilidade de motivação de todos os atos emanados do agente do Poder Judiciário – juiz ou tribunal – que ostentem conteúdo decisório”[5].   Portanto, diante da normatividade constitucional, é imprescindível a compreensão de que a Constituição não faculta a adequação do processo ao princípio da motivação dos atos judiciais; há, de fato, uma obrigação inerente à própria função da magistratura. CONCLUSÃO Essencial, com efeito, que haja tanto uma interpretação constitucional quanto a aplicação segundo a imediata incidência do artigo 5º, § 1º da Carta Democrática. Em mesma linha, Lauria Tucci novamente de forma brilhante expõe: “não se pode falar em fundamentação hábil quando a decisão de recebimento da denúncia ou da queixa limita-se à afirmação da co-existência de fumus boni júris (fundamento razoável da acusação) e do legítimo interesse de agir do acusador, público ou privado: é absolutamente necessário que o órgão jurisdicional justifique-os, em consonância e perfeita harmonia com os elementos colhidos nos autos de investigação criminal ou constantes das peças de informação”.[6] Uma sociedade justa é aquela que obriga o respeito aos princípios tanto por parte do cidadão quanto por parte do Estado. Desta forma, quando o Estado erige a fundamentação das decisões judiciais como princípio constitucional, o seu desrespeito aniquila a ordem democrática e a jurisprudência reconhecendo tal situação, impõe a fundamentação do recebimento da denúncia.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-68/a-realizacao-material-do-principio-da-fundamentacao-no-recebimento-da-denuncia/
A interação necessária entre processo e devido processo
A proposta do estudo é a de, despretenciosamente, elucidar um requisito de validade processual construído em razão de sua própria finalidade, qual seja, a busca por Justiça, adotando, para tal, não a abstrata referência e, de fato, o máximo respeito aos princípios como forma de alcançar um resultado eficaz perante o estrutura republicana.
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO O presente estudo persegue com insistência em elucidar, sob uma ótica de princípios, a finalidade do processo e a validade do procedimento perante seus próprios institutos elementares, centralizando o debate em torno do Devido Processo. Por evidente, de forma conjugada com a despretensão, a permissividade para tal busca reside em verificar a validade do processo e o conflito entre punir e democratizar. Ainda que se determine no presente a necessidade de respeito as estruturas fundamentais, não se pode desligar o processo da realidade, então, a afirmação de maior vulto para proteger a finalidade do processo decorre, como seria imperativo concluir, do próprio teor constitucional. 1 DEVIDO PROCESSO LEGAL E PROCESSO A Constituição Democrática, em seu artigo 5º, LIV, estabeleceu o Princípio que, ao passo que conjura todos os outros em si, deve ser objetivo processual e base de sustentação do sistema jurídico. O Devido Processo Legal é preceito amplo, o qual tem, no estudos doutrinários, imensa variedade conceitual. Nucci ensina sobre o postulado: “é o ápice do sistema de princípios e congrega todos os outros. Merece, no entanto, ser focalizado sob seu duplo aspecto: material e processual.[1]” O Devido Processo Legal carrega a mais forte abstratividade dos preceitos processuais, pois a Jurisdição já lhe deve respeito antes do processo já no procedimento inquisitório, sendo uma obrigação do magistrado verificar o seguimento dos valores constitucionais. O Devido Processo, por conjugar outros princípios, torna-se uma repositório no qual a todo momento o juiz, o defensor e o Parquet devem fundamentar suas decisões, razões e atos durante o processo. O texto do preceito é bastante evidente: “LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;” Com isso, a necessidade histórica de um processo em que houvesse, de fato, respeito às garantias individuais foi consagrado e como enunciado democrático, o Devido Processo regula todos os atos do processo. Ensina, como lucidez e precisão, Luisi: “As incorporar os princípios do Estado liberal e do Estado social, e ao conciliá-los, as Constituições modernas, renovam de um lado, as garantias individuais, mas introduzem uma série de normas destinadas a tornar concretas, ou seja, “reais”, a liberdade e a igualdade dos cidadãos”[2]. Tal postulado tem objetivo de assegurar o respeito aos Princípios dentro dos procedimentos, ou seja, na ambiência processual não se pode violar os enunciados valorativos, pois estes, em conjunto, formam o processo chamado legal, única forma de se alcançar o valor da Justiça. A conclusão lógica é evidente, o processo que não respeita os Princípios é um processo ilegal, conjugando no termo “legal” também os Princípios que formulam o Devido Processo, pois estes, com o neoconstitucionalismo, têm aplicação superior às regras. Em razão da variedade de situações sociais, um preceito pode ser aplicado ao caso concreto de forma mais incidente que outro, sendo tal determinação um processo decorrente de harmonização. Contudo, quando uma situação se harmoniza sacrificando o princípio, os Fundamentos da República, como a Dignidade Humana, e os objetivos do Processo, tal busca se torna aniquiladora de direitos e, assim, deve não deve sobreviver. O teor Democrático é forte e permeia as conquistas históricas sociais: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;” Anota-se que não pode o processo descuidar dos objetivos supra, pois se uma aplicação repercute negativamente à possibilidade de Justiça deve haver a anulação do procedimento. Em mesma linha de relevância que compreender os objetivos de Justiça e não de punitivismo, o magistrado deve ter para si de forma sólida que o interesse das partes no processo é público e não privado. As garantias individuais no processo são de interesse público pelo fato de serem situações inerentes aos objetivos da República e também os fundamentos. É evidente que não se pode ter um processo justo sem que haja respeito aos direitos das partes, não se pode considerar uma decisão justa sem que tenha ocorrido o Contraditório e a Ampla Defesa já que haveria apenas uma versão das alegações. Durante o processo, os fundamentos e objetivos da República – que estão superiores às necessidades da mídia, do punitivismo ou da supressão de valores pela celeridade – são consubstanciados pelo Devido Processo, ou seja, os objetivos e fundamentos estão dispostos nos Princípios Processuais Constitucionais e atacar tais preceitos é combater de forma imediata os postulados e indiretamente os alicerces do Estado Democrático de Direito. 2 VIOLÊNCIA CONTRA O DEVIDO PROCESSO E O INDIVÍDUO O sistema inquisitório – apesar dos benefícios trazidos à lume pela Súmula Vinculante 14 – é pautado por busca da verdade real segundo critérios de parcialidade e obscuridade, no qual não vigoram na prática as garantias humanas. Em brilhante explanação, Amilton Bueno de Carvalho, dispõe sobre a fase inquisitorial: “Registro, de logo, que os elementos oriundos da fase policial não serão valorados, porquanto a única prova hábil a gerar certeza – entendimento uníssono na Câmara – é aquela coletada perante autoridade eqüidistante, sob o crivo do contraditório, com sóbria fiscalização das partes, no espaço público. Aliás, o inverso, onde vigora o segredo e a busca da verdade máxima a qualquer preço, se situa no sistema inquisitorial vigorante na idade média – sequer a presença de advogado a legitima[3].” Anota-se que tal fase procedimental ainda carece de respeito aos preceitos garantistas e, por esse funcionamento destituído de respeito democrático, alinhava-se algumas críticas a seguir. Imperativo é rememorar que as provas produzidas no inquérito policial não podem ser amparo único para condenação criminal e que estas devem ser refeitas em juízo, segundo a própria redação do Código de Processo Penal em seu art. 155. Tal situação reflete no processo com a atuação do Ministério Público que, por evidente, apesar de parte, não tem qualquer permissão constitucional para violar os princípios e não pode causar lesões ao acusado que superem sua função de acusar. Contudo, os ataques as garantias ocorrem e sustentam-se por ausência de estrutura, ausência de razoabilidade consoante o trabalho desenvolvido e também em razão de ausência do entendimento de normatividade constitucional. Diante das injustiças que ocorrem, o Parquet, de fato, adquiriu dimensão vultosa e a proteção, em diversas frentes, a sociedade é precisa, contudo, necessário o entendimento de que, já na investigação conduzida pelo agente ministerial ou durante o procedimento, as garantias devem ser respeitadas, sob pena de haver a invalidade processual já que os princípios são elementos constitutivos do próprio processo. Outra necessidade é de que, conduzindo o inquérito, haja acesso segundo os termos da Súmula 14 aos autos. Há a figura do juiz inquisitor, o qual, ainda de forma mais atenta, deve carregar a bandeira dos princípios, sob pena de, ao passo que subverte sua função e a ordem democrática, atenta contra a existência e a validade de seus atos, atacando cidadãos. Ainda que haja forte debate no procedimento probatório impulsionado por magistrado antes da denúncia, a situação cria um sistema multilateral de produção contra o acusado perpetrado por sujeitos que, a princípio, não tem condições superiores ao aparato policial buscar provas. Em razão de tais fatos, imperativo que o respeito as garantias no procedimento sejam máximas e sem qualquer exceção, já que a Carta Democrática não faz ressalvas. Já em fase jurisdicional, inaugurada com a chegada do processo aos órgãos de Justiça, o Devido Processo Penal ganha – pela lei – caráter de indispensabilidade. Contudo, cumpre observar que as iniciativas policiais, a atuação do Ministério Público e do magistrado não podem violar os Princípios, em razão de constituir a subversão da própria atividade desempenhada. O Devido Processo deve ser atendido por tais agentes público em todo momento procedimental. 3 DEVIDO PROCESSO NO ASPECTO MATERIAL Embora necessária à crítica, adotar uma frente específica é necessário. No propósito, ganha dimensões o conceito de Anne Pamplona a qual enxerga o processo do alto democrático. Segunda a autora mencionada, o Devido Processo em razão da sua abstratividade deve ser formulado sob dois aspectos: “No aspecto processual, vários são os princípios que densificam o princípio do devido processo legal: o da ampla defesa, do contraditório, da imparcialidade do juiz, entre outros”.[4] Assim, pode-se afirmar ao Estado é obrigação que siga o Devido Processo quando da perseguição da aplicação da pena ou inocência. Contudo, ainda há o aspecto material, segundo o qual a Administração Pública, Estado, deve atuar segundo os preceitos que são para si destinados, como a Moralidade e a Eficiência. Observa-se que em acertada lição fica determinado que a formulação processual destina-se a impor o respeito aos preceitos que, quando juntos, formam o próprio Devido Processo. O princípio, com isso, torna-se uma norma que se aplica aos órgãos de Justiça e defensores para que respeitem os diversos Preceitos Fundamentais que regulam os procedimentos. E a imperatividade pós-positivista dos enunciados democráticos obriga que o Devido Processo, como regente, e os outros preceitos, Ampla Defesa, Paridade de Armas, Imparcialidade, Inocência, sejam também respeitados e aplicados de forma imediata. O combate, então, de um dos postulados que regulam o processo em um ato procedimental, atinge indiretamente o Devido Processo, tornando o processo inconstitucional. Tal situação é refletida no sistema de nulidades processuais vigente. Os atos que atacam o Devido Processo, mesmo indiretamente, combatem a Constituição e, também, os objetivos do processo que busca inocentar ou apenar. Inatacável é Rogério Lauria Tucci: “a pessoa física integrante da coletividade não pode ser privada de sua liberdade, ou de outro bens a ela correlatos, sem o devido processo penal, em que se realize a ação judiciária, atrelada ao vigoroso e incindível relacionamento entre as preceituações constitucionais e as normas penais”.[5] O mesmo jurista, citando Railda Saraiva, leciona que o respeito as garantias assegura a legitimidade do procedimento penal. 4 PROCESSO PENAL E REPÚBLICA O Processo Penal tem uma finalidade de aplicar a sanção ou inocentar o sujeito que teria cometido ato disposto como típico nas Leis Penais. Tal processo, assim como todos os atos jurídicos e administrativos, é regido pelos Fundamentos e Objetivos da República os quais estão espalhados em uma diversidade de Princípios contidos na Carta Democrática e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ou em diplomas específicos. Os Princípios, vistos em conjunto, tem função de substanciar os Fundamentos e os Objetivos e também de formular a frente de defesa dos direitos que é o Devido Processo, o qual não pode ser visto de forma separada do próprio processo penal. Assim, o processo é uma série de procedimentos ordenados e contraditórios, dentro dos quais há necessidade inatacável de respeitar o Devido Processo, que engloba os diversos Princípios que tratam de direitos do cidadão. O procedimento que segue de forma diversa causa ataques aos Preceitos que fundamentam o Processo e os dispositivos que compõe o processo, assim, as invalidades constituem elemento de proteção ao próprio processo e a seus objetivos. Lopes Jr. Menciona sobre o processo que este é um instrumento que pode levar a satisfação de determinado finalidade, devendo ser a aplicação da pena ou garantir os direitos fundamentais, situações que devem ser, obrigatoriamente, vistas em conjunto.[6] A lição é imensamente precisa. O processo não deve apenas buscar atingir os momentos previstos em lei, imperativo que, durante tais etapas, haja efetivamente verificação da conformidade dos atos com o Devido Processo e, ainda, com o objetivo de sociedade justa disposto na Constituição, a qual, apenas pode ser construída com o respeito às leis e, também, aos princípios. Visto isso, a reflexão natural trata da necessidade de o Estado, assim como o cidadão, cumprir a lei e, acima, os princípios como forma de buscar a construção de uma conjuntura socialmente melhor. 5 FINALIDADE PROCESSUAL E A EVOLUÇÃO CONSTRUÍDA PELA BUSCA POR DIGNIDADE O processo materializa o direito penal e assim está vinculado aos pressupostos que regulam os bens jurídicos penais. Como visto retro, deve haver uma relação forte entre a aplicação da pena e a máxima proteção de direitos individuais para que o processo seja eficaz. O Estado de Direito tem diversos elementos, dentre os quais, a Dignidade da Pessoa Humana e a Cidadania que são fundamentos e Justiça que é objetivo. Dessa forma, as finalidades do processo devem, obrigatoriamente, atentar-se aos fundamentos e objetivos republicanos e a obrigação do magistrado é promover a realização de tais elementos, sob pena de subverter sua própria atuação e desrespeitar todo o processo democrático visto. A finalidade do Estado é promover a Dignidade. A lógica permite que a Dignidade deve ser, então, protegida em todos as frentes de atuação, o processo penal não é exceção. Como já mencionado, não se pode descuidar dos fatos. Assim, imperativo que, mesmo diante da vultosa quantidade de crimes, haja preservação da dignidade ao acusado em processo criminal por não ser ele criminoso, pois o processo indica materialidade e autoria e não impõe tais qualidades. Diante de tal afirmação, desconsiderar a Dignidade no processo e antecipar a pena promove dois elementos nefastos colhidos no mundo da vida, a evidente confrontação com a Constituição e também uma violação de princípio notória, construída pelo desrespeito ao teor dos direitos humanos e, também, os fundamentais, em razão de uma suposta prática de delito. 6 VERDADE REAL E O IMPÉRIO DOS VALORES Como já imensamente visto na doutrina, os Princípios se relacionam e os teores devem se aproximar na busca da realização do projeto democrático. Nesta linha, a Verdade Real não pode descuidar de outros preceitos, pela imensa variedade de elos, apenas alguns serão tratados na busca de elucidar a manifestação. Antes é necessário demonstrar que a Verdade Real é, de fato, mito, como as lendas nórdicas que empurravam os guerreiros à batalha. A grande questão órbita sobre a preclusão e a possibilidade de julgamento à revelia, em que há, por uma suposta necessidade processual, aniquilação do Contraditório e Ampla Defesa, havendo apenas razões parciais de uma das partes, desconsiderando a possibilidade de Justiça vista nas primeiras linhas da Constituição. É notório que não se encontra guarida constitucional aos processos que tem apenas um narrador, ainda mais quando este aceita e se beneficia das violações constitucionais. O juízo, o Ministério Público e o Defensor não podem fazer do processo uma vítima de crime continuado contra a Justiça. Em outra lição necessária a todo mundo jurídico, Aury Lopes define a relevância de se ter como evidente o fato de não existir a Verdade Real, alega do autor que, de forma diversa da ciência newtoniana, a Verdade no direito pode atacar um direito de um cidadão e repercutir em sua vida de forma violenta, com isso, é necessário que haja um sistema garantidor que combata a possibilidade de injustiças.[7] Como a verdade – segue o autor – é inatingível seja pela política processual de celeridade e utilidade eleita ou mesmo pela absoluta ausência de retorno ao momento do fato, o grau de certeza relaciona-se ao quanto o juiz se convence da tese. Em outra obra necessária, Rodrigo Moretto ensina sobre a relatividade das verdades científicas e do tempo, situação que incide no processo penal em razão da necessidade de desconstrução da volta ao passado para presenciar os fatos delituosos. A lição ainda trata do fato de que os conceitos fixos foram superados pela própria ciência e que sua aplicação no processo penal decorre de uma insistente resistência à inovação.[8] O magistrado, então, apenas pode convencer-se de uma das diversas verdade, contudo, sem respeito aos Princípios estará causando descrédito à Justiça e suprimindo o dever constitucional de vincular seus atos ao que está positivado na Carta Constitucional. Quando o magistrado é o primeiro a violar os Princípios e o Ministério Público o primeiro a se beneficiar a ambiência social percebe que, de fato, existe uma multiplicidade de violações do processo e da lei. Assim, é imperativo que o processo se atente aos objetivos da República, também aos seus fundamentos, causando a absoluta respeito aos Princípios, sob a forma de proceder segundo o Devido Processo, evitando o combate subversivo ao processo democrático e a Ordem Jurídica eleita. CONCLUSÃO Necessária a materialização constitucional e, para tal objetivo, é preciso reconhecer que há, de fato, normatividade dos princípios e que estes são, antes de indicadores, imperativos de valor que estão no processo já em seu primeiro momento. Admitir que possa ocorrer violação constitucional no processo é proteger um desrespeito certo a um princípio em razão de uma suposta violação de norma que teria sido cometida pelo acusado. Com efeito, a aplicação dos preceitos quando não dispostos em lei decorre da necessidade ontologicamente disposto na norma, contudo, aplicar o princípio é, antes de uma obrigação perante o art. 5º, §1, demonstração de respeito ao próprio elemento de validade do processo. A sociedade justa apenas pode ser alcançada com as leis sendo protegidas não apenas pelo cidadão, mas pelo Estado efetivamente e os princípios, por serem naturalmente superiores as regras também devem ser protegidas.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-68/a-interacao-necessaria-entre-processo-e-devido-processo/
A (in)constitucionalidade das medidas cautelares previstas no Direito Processual Penal
Resumo:Partindo do pressuposto de que nem sempre se justifica a prisão provisória, seja qual for a modalidade, as prisões indevidas devem ser reparáveis economicamente pelo Estado, como maneira de compensar a ofensa imputada ao individuo que teve cerceado seu segundo maior bem, a liberdade.  A reparação pela constatação da utilização desnecessária daquelas prisões constitui um meio de equilibrar a situação advinda da medida. Contudo, verifica-se que, embora haja essa possibilidade, ela nem sempre é eficaz, pois nem tudo na vida pe passível de ser valorado. Como exemplo pode-se citar a vida e a liberdade, que, quando ofendidas, dinheiro algum é capaz e reparar o dano. Por lidar com bens de primeira ratio, o processo penal deve ser cuidadoso, sob pena de impor ao individuo uma sanção descabida, e ainda que preveja a possibilidade de indenizá-lo por um eventual erro, não se pode trabalhar com essa idéia. No presente artigo pretendeu-se discutir o teor das medidas cautelares frente à ordem constitucional vigente, de modo a esclarecer alguns pontos relativos à sua legalidade diante do principio da presunção de inocência.[1]
Direito Processual Penal
INTRODUÇÃO Todas as medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal – Decreto Lei 3.689/41, precedem os atos necessários ao processo em sua plenitude e atingem diretamente a liberdade do indivíduo, seu bem de maior valor. Exige-se, à luz da situação fática, que a prisão cautelar se descortine como forma de assegurar o império da lei penal, da garantia da ordem pública, da ordem econômica ou por conveniência da instrução criminal, de outro modo poder-se-ia afirmar que seu caráter é eminentemente inconstitucional, existindo ainda a previsão legal de indenizar o indivíduo que, preso cautelarmente, prove sua inocência ao fim do curso processual. Esta possibilidade por si só poderia retirar a inconstitucionalidade das medidas cautelares, contudo a situação não deve ser analisada somente sob o aspecto legal, mas também sob o aspecto prático e social. As medidas cautelares processuais penais são: prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão resultante de pronúncia, prisão temporária e prisão decorrente de sentença penal condenatória recorrível. Todas elas trazem para a realidade do indivíduo a condição de preso, e ainda que possam ser revogadas, estabelecem em sua vida o estigma de presidiário que indenização nenhuma consegue retirar. No mundo em que se vive os ex-presos são tratados com discriminação e, na maioria dos casos, não conseguem se inserir novamente no convívio social, retornando novamente para o crime, e vivendo à margem da sociedade.  O legislador ao criar o instituto quis dar uma maior garantia para a instrução criminal e às investigações e ainda adequar a medida à gravidade do crime. Em nada manifesta sobre a exigência constitucional do prévio processo legal, o que fica claro na redação do artigo 282 do Código de Processo Penal: “I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de novas infrações penais; II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.” Pretende-se discutir no presente artigo se as medidas cautelares do processo penal são ou não constitucionais, abordando o tema sob a ótica constitucional da dignidade da pessoa humana, onde se estabelece que todos devem receber tratamento digno e compatível com sua condição de sujeito de direitos, todos expressamente dispostos pela Constituição Federal. 1. As medidas cautelares no Código de Processo PENAL 1.1. Dos tipos de medidas cautelares Em matéria processual penal é freqüente a ocorrência de situações em que se faz necessária a utilização de medidas urgentes, quando, por exemplo, há o interesse de se garantir uma investigação adequada de um determinado fato ou mesmo de se garantir a execução de uma certa sanção penal, o que acaba por justificar a aplicação oportuna daquela medida de natureza cautelar. Essas medidas são utilizadas somente em casos de extrema necessidade, principalmente quando se pretende resguardar certas situações que possam sofrer alterações no decorrer do processo, devendo se atentar, porém, para que haja um mínimo de probabilidade de o resultado final ser compatível ao da pretensão, pois essa probabilidade está diretamente ligada ao exame dos fundamentos da própria acusação. As cautelas processuais penais podem incidir sobre a pessoa do acusado causando gravíssimos danos, mormente ao afetar-lhes sua liberdade e sua dignidade, o que resultará, desses atos jurisdicionais danosos, o direito à reparação às vítimas pelo Estado, representado, no caso, pelo Poder Judiciário, na figura do magistrado no processo. Das medidas cautelares de natureza pessoal, as prisões provisórias são as que atingem diretamente a liberdade do indivíduo, e se apresentam sob várias modalidades, como a prisão em flagrante, a prisão preventiva, a prisão resultante de pronúncia, a prisão temporária e a prisão decorrente de sentença penal condenatória recorrível. 1.1.1 Da prisão em flagrante Considera-se em flagrante delito aquele que é surpreendido no momento da prática criminosa, seja no seu exato instante, seja numa das situações declinadas no estatuto processual. As hipóteses estão previstas no art. 302, incisos I a IV do Código de Processo Penal. A prisão em flagrante, prevista no arts. 301 a 310 do CPP e também no inciso LXI do art. 5º da Constituição Federal, é uma das espécies de prisão cautelar de natureza processual e, portanto, sujeita aos critérios daquelas medidas. A sua aplicação somente se torna viável frente à necessidade imperiosa da medida, isto é, quando há evidências sobre a autoria e o fato típico. 1.1.2 Da prisão preventiva Medida de natureza cautelar, a prisão preventiva, em sentido amplo, compreende toda e qualquer prisão que seja decretada antes de uma sentença penal condenatória transitada em julgado. De acordo com David Alves Moreira[2], prisão preventiva: “é aquela medida restritiva da liberdade determinada pelo Juiz, em qualquer fase do inquérito ou da instrução criminal, seja como medida de segurança de natureza processual , seja para garantir eventual execução da pena, seja para preservar a ordem pública, seja por conveniência da instrução criminal”. Como toda medida excepcional, sua utilização deverá ser sempre criteriosa, pois o resultado nem sempre poderá corresponder ao que se é desejado, ou seja, a manutenção de um acusado numa prisão não significará, por exemplo, que a chamada “ordem pública” esteja garantida em função daquela prisão, ao mesmo tempo que se verificará um enorme prejuízo com a medida se ao final houver o reconhecimento da inocência do acusado através de uma sentença absolutória. 1.1.3 Da prisão resultante de pronúncia A pronúncia é um instituto processual de aplicação própria nos crimes da competência do Tribunal do Júri e, portanto, nos casos de crimes dolos os contra a vida e os conexos a este. A pronúncia, dependente que é da existência material do crime e indícios de sua autoria, constitui verdadeira sentença, em que o magistrado, apreciando as provas constantes nos autos, encaminha o acusado para o julgamento definitivo pelo Tribunal do Júri. As conseqüências dessa decisão, segundo a nossa sistemática processual, seria a de lançamento do nome do réu no rol dos culpados, a sua prisão, salvo exceções, e o seu julgamento pelo conselho de sentença, do que se dessume ser, a pronúncia, origem de mais uma modalidade de prisão cautelar. 1.1.4  Da Prisão temporária Instituída pela Lei nº 7.960, de 21.12.89, a prisão temporária vem se somar às várias modalidades de prisão cautelar e, como medida extrema que é, também fica reservada aos casos de maior gravidade. Representando a verdadeira prisão para averiguações, sempre presente no cotidiano das delegacias, a prisão temporária apóia-se na necessidade e conveniência de sua utilização para a realização de investigações na fase do inquérito policial e, quando indemonstrada essa necessidade, a medida fica prejudicada. 1.1.5 Prisão decorrente de sentença penal condenatória recorrível A sentença penal condenatória recorrível, segundo o art. 393 do Código de Processo Penal, produz basicamente dois efeitos principais: o recolhimento do réu à prisão, salvo algumas exceções, e o lançamento do nome do réu no rol dos culpados. Com o advento da atual Constituição, o segundo efeito, o do lançamento do nome do réu no rol dos culpados, praticamente foi revogado, pois contraria o princípio constitucional da presunção da inocência. A questão principal, portanto, limita-se ao primeiro efeito da sentença condenatória recorrível, origem de mais uma modalidade de prisão que, em razão da possibilidade recursal, ainda figura entre as medidas cautelares. 1.2. Dos fundamentos para a concessão de medidas cautelares As medidas cautelares de natureza processual também são chamadas de prisões provisórias, e como afirma Thiago Naves[3] apud MANZINI (1952), “a prisão provisória consiste em uma limitação mais ou menos intensa da liberdade física de uma pessoa, para uma finalidade processual penal”.   Através do instituto da prisão provisória, se restringe a liberdade da pessoa, tendo em vista a tutela do processo. As medidas cautelares são formas de se garantir a defesa de determinados direitos, até que se confirme a tutela definitiva, isto é, a guarda e a defesa da sociedade mediante o direito. A prisão cautelar é imprescindível para que a lei penal impere, quando necessário. São dois os requisitos essenciais para a aplicação da medida cautelar de natureza processual. O primeiro deles é o do periculum in mora. Se existe urgência em afastar-se o perigo de prejuízo ao processo, resultante do decurso do tempo, a medida cautelar torna-se necessária. Por outro lado, é também importante o requisito do fumus boni iuris. A aplicação da medida cautelar torna-se justa havendo possibilidade, para uma das partes, de solução favorável no processo principal. Deve-se fazer um juízo de probabilidade, que indique a necessidade de intervenção do processo cautelar. Não obstante os dois requisitos acima narrados, Thiago Naves[4] assevera que: “Na doutrina existem outros argumentos legitimadores da prisão provisória, tais como a garantia de se evitar que o imputado realize uma fuga, a necessidade de se fazer uma instrução criminal perfeita e eficaz colheita de provas, ou a proteção do imputado, preservando sua incolumidade contra possíveis represálias advindas do público que clama, em certas ocasiões, pela solução imediata dos crimes considerados hediondos. O mais importante, entretanto, é que todas essas condições de legitimidade só podem ser consideradas válidas quando respeitam a razão intrínseca da prisão provisória, que tem, por natureza, o princípio do devido processo legal”. 2. Dos princípios constitucionais 2.1 Princípio da liberdade individual A Liberdade Individual, mais do que fator de promoção da abundância econômica e da paz civil é o princípio definidor do Homem enquanto ser moral. O compromisso com a Liberdade Individual pressupõe a convicção de que só uma ordem social na qual caiba aos indivíduos a condução da sua vida permitirá o pleno desenvolvimento da dignidade do ser humano. E, segundo Marco Aurélio Alves Adão[5] “O anseio por liberdade se reduz, muitas vezes, a mera liberdade individual: não estar submetidos senão às leis, não ser detido, preso, morto, nem maltratado arbitrariamente, dizer a opinião sem conseqüências, escolher a profissão, ir e vir, não dar conta à ninguém dos próprios passos, reunir-se sem empecilhos, etc”. Certamente, o individualismo se sobrepõe ao pensamento mítico sobre a democracia, pois o imaginário popular foi construído pela cultura e pela promessa de felicidade do “meu” e do “fazer”. Transforma-se tudo em posse, inclusive as pessoas (minha esposa, meu filho, meu amigo, meu trabalho, meu cargo) e tudo sob a ótica de uma prática fabril (fazemos amor, fazemos amizades).      Como assevera Marco Aurélio Alves Adão[6]: “O direito individual surge como forma de libertar o homem das amarras do estado absolutista. A esfera individual não mais pode ser restringida pelo Estado de forma deliberada e absoluta. O problema é como estabelecer equilíbrio entre a “liberdade individual” e a “autoridade estatal”. Isto porque o conceito de liberdade não é absoluto, não implica em ausência de coação. Liberdade consiste na ausência de coação anormal, ilegítima e imoral. Daí concluir-se que somente a lei geral estatal pode restringi-la, e assim mesmo devendo aquela ser elaborada segundo regras preestabelecidas e aceitas pela coletividade que busca regular. A lei limitadora do conteúdo da liberdade individual precisa ser normal, moral e legítima, no sentido de ser consentida por aqueles que a liberdade restringe.” A liberdade somente pode ser limitada pela lei. Esta forma de considerar-se a legalidade frente à liberdade é baseada em um conteúdo negativo, sendo a liberdade o conceito geral e a restrição da lei a exceção. Não há uma relação no sentido de poder-se fazer tudo o que a lei permite, mas de poder-se fazer tudo, exceto o que a lei expressamente proíbe. O conteúdo das leis é também fonte de considerações éticas. Pode uma lei ser formalmente válida e emanada de poder legítimo, e mesmo assim ser moralmente considerada inválida, enquanto limitadora do conteúdo das liberdades. Daí concluir-se que a legitimidade do poder não é suficiente para que a legalidade seja legítima, é necessário também que o conteúdo das leis seja expressão da soberania popular. Para Marco Aurélio Alves Adão[7]: “As leis podem ser moralmente questionáveis quanto à sua esfera interna. O comando legal que limita a liberdade individual pode trazer regra que moralmente não traduza o interesse coletivo, a despeito de ser emanado de poder legítimo e elaborada de forma correta, segundo regras preestabelecidas.” Se há uma limitação ao exercício de uma liberdade, por parte de uma lei, é necessário que os conceitos de que a lei se vale sejam eticamente aceitos, para que a eficácia seja assegurada. 2.2 Princípio da dignidade da pessoa humana O princípio da dignidade da pessoa humana obriga ao inafastável compromisso com o absoluto e irrestrito respeito à identidade e à integridade de todo ser humano. De modo geral, é a dignidade humana um atributo da pessoa, não podendo ser medida por um único fator, pois nela intervém a combinação de aspectos morais, econômicos, sociais e políticos, entre outros. Como princípio fundamental do Estado Democrático brasileiro, a dignidade da pessoa humana, juntamente com o direito à vida e à liberdade, são garantias individuais asseguradas pela Constituição Federal de 1988. Como explicita Sílvia Mota[8] apud Sérgio Ferraz: “O princípio da salvaguarda da dignidade da pessoa humana é base da própria existência do Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, fim permanente de todas as suas atividades. É a criação e manutenção das condições para que as pessoas sejam respeitadas, resguardadas e tuteladas, em sua integridade física e moral, asseguradas o desenvolvimento e a possibilidade da plena concretização de suas potencialidades e aptidões”. Dignidade e liberdade atrelam-se à pessoa humana, indissoluvelmente. Cabe recordar, um dos fins do Estado é propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas. Todavia, a dignidade humana pode ser por diversas maneiras violada, entre estas, através da qualidade de vida desumana, de medidas como a tortura que, sob todas as modalidades, são inibidoras do desenvolvimento humano. Enquanto ao homem cabe dar sentido à sua própria vida, ao Estado cabe facilitar-lhe o exercício da liberdade. 3. Da constitucionalidade das medidas cautelares frente a possibilidade de reversão O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que não há inconstitucionalidade alguma nas prisões provisórias, ao sumular o assunto, em 06/09/1990: “a exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”. Segundo Vanderley Muniz[9]: “O instituto da presunção de inocência é relativo, relativo porque é direito individual, e o direito público, da coletividade, se sobrepõe ao direito individual. Evidentemente que a prisão cautelar deve – e na maioria dos casos é – reservada para os casos de extrema gravidade em que a liberdade individual venha a colocar em risco toda a coletividade, daí a tolerância de nosso sistema jurídico repressivo que prevê, dentre outras coisas, a liberdade provisória – art. 310, parágrafo único do C.P.P; a fiança arts.323 e seguintes; o regime aberto, art. 33 do C.P., a suspensão condicional da pena, art 77, as penas substitutivas, art 43 e seguintes; a lei 9.099/95 nos casos cabíveis, etc”. Com efeito, o princípio da presunção de inocência, não inviabiliza a decretação de qualquer das prisões provisórias, desde que os requisitos e pressupostos legais atinentes a espécies estejam presentes: a) indícios suficientes da autoria e b) prova da materialidade, seqüenciados por garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e para garantia da aplicação da lei penal. As medidas cautelares são excepcionais e de utilização restrita e cuidadosa, de forma que, ao atingir a liberdade do indivíduo, em tese inocente, poderá vir a prejudicá-lo patrimonial, ou moralmente, ensejando a responsabilidade civil do Estado pelos danos causados aos acusados com essas medidas. O questionamento sempre é se deve, o indiciado ou o acusado, suportar inerte essas medidas, quando desnecessárias e danosas, tudo em nome de uma boa prestação jurisdicional pelo Estado, ou, em outras palavras, em sacrifício de uma sociedade que se diz democrática. Segundo David Alves Moreira[10]: “As medidas cautelares, uma vez aplicadas indevidamente, resultam no nascimento do direito ao acusado, de ser reparado pelo Estado por todos os prejuízos sofridos em razão da imputação, inclusive pelos danos morais”. Percebe-se que há uma tentativa do Estado em equilibrar o dano à ofensa, como maneira de fazer uma compensação pelo ato praticado pelo Estado na tentativa de uma aplicação correta da lei e restauração da ordem pública. Não obstante a já manifestação do STJ, acerca da constitucionalidade das prisões provisórias, pode-se dizer que a possibilidade de indenização constitui um plus, uma tentativa de restaurar o status quo do individuo, ainda que seja através de uma compensação financeira. Como dito anteriormente, todos têm direito a viver uma vida com dignidade e a receber do Estado todas as condições necessárias para a realização desta condição. Como também mencionado anteriormente, as medidas cautelares de natureza processual foram criadas como uma ferramenta estatal para a dar eficácia aos procedimentos envolvendo a aplicação da lei penal, devendo resguardar, contudo, os direitos fundamentais de cada um. A possibilidade de indenizar o individuo revela a intenção do legislador de creditar constitucionalidade às prisões provisórias, uma vez que, na impossibilidade de restaurar ao individuo sua condição anterior, oferece-lhe uma compensação monetária. O STJ já decidiu pela constitucionalidade das prisões provisórias, restando ao legislador apenas corroborar esta posição, afastando do instituto o caráter de supressor de direitos quando indevidamente utilizado, com a previsão de indenização que amenize os danos causados. Conclusão O desenvolvimento normal do processo demanda, muitas vezes, um tempo superior ao esperado pelos litigantes, dá margem a que algumas situações apresentadas inicialmente sofram alterações em detrimento de uma das partes. Daí a necessidade do uso de medidas que possam garantir a originalidade dos fatos apresentados no início do processo ou mesmo de situações que se verificaram anteriormente à propositura da demanda, evitando, dessa forma, eventuais prejuízos viabilizados pela demora da prestação jurisdicional. No processo penal, da mesma forma que em outras áreas do direito, as medidas cautelares muitas vezes se fazem necessárias para a garantia do bom desenvolvimento de um processo, tanto que os próprios estatutos legais dispõem sobre as várias modalidades dessas providências. Particularmente nesse ramo do direito, tais medidas, além de estarem sempre apoiadas nas regras gerais a que estão submetidas, são tomadas de excepcionais cuidados quando da sua utilização, e isto porque o objeto da pretensão provisória é a privação da liberdade do indivíduo como medida necessária, por exemplo, nos casos de investigação criminal. A medida cautelar no processo penal é excepcional porque a restrição da liberdade do acusado obtida através das providências cautelares, em não representando mais nenhum risco para o bom desenvolvimento do processo, poderá ser considerada verdadeiro constrangimento ilegal, atentando contra o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, podendo ainda configurar abuso de autoridade por parte do responsável. E importante ressaltar que, como afetam diretamente a liberdade dos indivíduos, as prisões cautelares, quando infundadas, ensejam a responsabilidade civil do Estado, como meio de reparar o dano sofrido, reforçando o aspecto de revogabilidade dos seus efeitos. Diante do exposto, percebe-se que, embora as prisões cautelares a princípio atentem contra o principio da presunção da inocência, seu caráter revogável, sua natureza e sua função as tornam compatível com o sistema constitucional vigente, havendo ainda a possibilidade de indenização estatal como meio de compensação por danos irreparáveis. Contudo, cabe ao intérprete uma criteriosa análise do caso concreto ao encontrar-se diante de uma situação que enseje a aplicação de alguma medida cautelar, pois seus efeitos afetam diretamente a liberdade e a dignidade do acusado.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-68/a-in-constitucionalidade-das-medidas-cautelares-previstas-no-direito-processual-penal/
Breves considerações sobre o Ministério Público e sua atuação na investigação criminal
Questiona sobre a possibilidade do Ministério Público atuar na investigação preliminar, considerando que a atividade investigadora do promotor é válida (constitucional) ante ao contexto do sistema acusatório. Traz aspectos positivos e negativos, concluindo que o controle rígido do MP e da defesa na atuação policial é uma alternativa viável para a crise do inquérito.
Direito Processual Penal
Resumo: Questiona sobre a possibilidade do Ministério Público atuar na investigação preliminar, considerando que a atividade investigadora do promotor é válida (constitucional) ante ao contexto do sistema acusatório. Traz aspectos positivos e negativos, concluindo que o controle rígido do MP e da defesa na atuação policial é uma alternativa viável para a crise do inquérito. Palavras-chave: Inquérito, Ministério Público, acusatório, polícia, defesa. Um tema bastante discutido na atualidade é a possibilidade do Ministério Público promover diretamente a investigação criminal. Diante das diversas dificuldades e falhas que se tem evidenciado no inquérito policial, alternativas para dar maior efetividade à investigação preliminar são constantemente objeto de estudo. Primeiramente, deve-se considerar que a investigação criminal direta por parte do Ministério Público é absolutamente válida ante ao contexto do sistema acusatório. Isso porque não se vislumbra quebra na estrutura dialética (característica essencial desse sistema) na atividade investigadora do promotor. O sistema acusatório, assim, prima pela rígida separação das funções de acusar, defender e julgar. O Ministério Público, como órgão titular da ação penal, é responsável pela acusação, baseada no inquérito policial ou em peças de informação. À defesa não cabe ônus ou carga probatória, pois a favor do réu está a presunção de inocência e, em decorrência desta, o direito de não auto-incriminar-se (nemo tenetur se detegere). Entretanto, pode trazer aos autos elementos que minimizem o risco de uma sentença condenatória. Ao juiz, por fim, cabe a função exclusiva de julgar, colocando-se distante das partes, para garantir a tão sonhada imparcialidade. Portanto, não há ilegalidade, nem rompimento do sistema acusatório na busca direta do Ministério Público por elementos que darão suporte à denúncia, considerando ser o encargo probatório da acusação. Ocorre que ainda não encontramos, na legislação pátria, regulamentação clara sobre o tema. Têm-se decisões dos Tribunais Superiores acerca de tal possibilidade. Primeiramente, o §4º do art. 144 da CF não atribui, exclusivamente, à polícia judiciária, a apuração de infrações penais, o que nos leva a crer que a atividade de investigação também pode ser realizada por outro órgão do Estado. É o mesmo entendimento extraído do art. 4º do CPP. De igual sorte, o art. 129 da CF atribui ao Ministério Público a promoção privativa da ação penal pública, permitindo, igualmente, a condução do inquérito civil, bem como o exercício do controle externo da atividade policial. Também cabe ao parquet requisitar diligências investigatórias e instaurar o inquérito policial. Baseada nesse dispositivo, a Ministra do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie, no recente julgamento do HC 91.661/PE, reconheceu a possibilidade de, em algumas hipóteses, o Ministério Público promover atos investigatórios. Entendeu que o MP possui poderes implícitos de investigação, na medida em que o promotor é titular privativo da ação penal pública (atividade fim) e que o CPP, em seu art. 46, §1º, permite a dispensa do inquérito quando a denúncia for fundamentada em peças de informação. O fato é que, em nenhum momento, a legislação veda a participação efetiva do MP no inquérito policial. Entretanto, ao mesmo tempo em que encontramos aspectos positivos, devemos estar atentos para alguns inconvenientes. Se por um lado a atuação direta do Ministério Público traria maior efetividade ao inquérito policial, uma vez que o modelo atual não cumpre satisfatoriamente com sua função, por outro, haveria quebra na igualdade das futuras partes, trazendo fortes prejuízos para a defesa. De acordo com Aury Lopes Jr., a atuação do Ministério Público na investigação preliminar é positiva quando consideramos que o inquérito policial desagrada: a) à defesa, por seu marcado caráter inquisitivo, b) aos juízes, porque o material proporcionado é muitas vezes imprestável sob o ponto de vista probatório e c) ao próprio Ministério Público, pois a demora, as deficiências e o descompasso acabam por prejudicar seriamente a atividade acusatória. O Ministério Público, conforme o autor, melhor acusaria se por si próprio investigasse[1]. De outra banda, para Lopes Jr., a atuação traria desigualdade para as futuras partes, visto que, na prática, o promotor está inclinado a acumular tão somente provas contra o imputado. A imparcialidade do inquérito, desse modo, restaria comprometida, no momento em que haveria mais “provas”[2] para condenar que propriamente para absolver[3]. Ademais, o promotor, como agente estatal, possui maior estrutura (apoio técnico) para promover o inquérito, ao contrário do investigado/réu, que, na maioria das vezes, não possui sequer condições financeiras de arcar com um bom advogado. A desigualdade, assim, estaria evidente. Entendemos que, como bem apregoa a Ministra Ellen Graice no citado voto, a possibilidade de participação efetiva do MP no inquérito não significa retirar da Polícia Judiciária suas atribuições, mas harmonizar as normas constitucionais, para permitir não apenas a correta e regular apuração dos fatos, mas também a formação da opinio delicti. Portanto, não se pretende reforma no sentido de que os gabinetes dos promotores passem a constituir verdadeiras delegacias. Acredita-se que a função de investigar deve permanecer com a polícia, porém com maior controle externo. É dizer que o Ministério Público deveria intensificar o controle do inquérito, tomando ciência das diligências, requisitando-as, acompanhando e instruindo a atividade policial. Também tal tarefa deveria caber à defesa, nas situações que não prejudicassem as medidas próprias do sistema (sigilo necessário). Ressalta-se que o defensor, nos termos do art. 14 do CPP, pode requerer qualquer diligência à autoridade policial. Outrossim, o direito do defensor ao acesso amplo dos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório, digam respeito ao exercício de defesa (Súmula Vinculante Nº 14) já constitui grande evolução para o combate à crise da investigação preliminar. Em face do exposto, conclui-se que o Ministério Público pode e deve, em alguns casos, promover a investigação criminal, sendo que esse poder implícito (não regulamentado até o presente momento) não viola o sistema acusatório, pelo contrário, vem a firmar a estrutura dialética do sistema (cabe à acusação a busca da prova e não ao juiz). Entretanto, acredita-se que o controle rígido do MP e da defesa na atividade policial traria maiores benefícios para todos. Para o Ministério Público, uma vez que acompanharia o inquérito de perto e melhor ofereceria a denúncia; para o investigado/acusado, tendo em vista que o controle pelo seu procurador traria maior segurança ao constituído (evitando lesões injustas a garantias individuais) e maiores subsídios para elaboração dos elementos e teses defensivas.   Referências GOMES, Luiz Flávio. Policiais brasileiros toleram a corrupção e a violência dos colegas. Disponível em: <http://www.novacriminologia.com.br/artigos/leiamais/default.asp?id=2443>. Acesso em: 06 maio 2009. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 3ª ed. 2008. LOPES JR., Aury. Sistema de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 3ª ed. 2005. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 6ª ed., 2002.   Notas: [1] LOPES JR., 2008, P. 244. [2] Vide distinção feita por LOPES JR. acerca de atos de prova e atos de investigação na obra Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, publicado pela Lumen Juris. [3] LOPES JR., 2008, p. 234. Pós-graduando em Ciências Penais Latu Sensu pela Rede de Ensino LFG, Advogado
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-67/breves-consideracoes-sobre-o-ministerio-publico-e-sua-atuacao-na-investigacao-criminal/
Críticas pontuais ao Projeto de Reforma do Código de Processo Penal
Indaga sobre o Novo Projeto do CPP constituir Avanços para uma Legislação Ultrapassada ou Garantia Expressa do Aumento da Impunidade e Criminalide e Cometa a forma com que o mesmo destruiria a Lei Maria da Penha .
Direito Processual Penal
1-Avanços para uma Legislação Ultrapassada ou Garantia Expressa do Aumento da Impunidade e Criminalidade? “A impunidade é a matriz e a geratriz de novos e insensatos acontecimentos e o desmoronamento do que ainda resta de bom na alma humana.”[1] Os operadores jurídicos compromissados com o combate a criminalidade, a garantia dos direitos humanos das vítimas e a pacificação e bem estar da coletividade, receberam com apreensão o Projeto de Lei nº 156/2009, em tramitação no Senado Federal, que visa reformar o Código de Processo Penal Brasileiro, ultrapassado de fato em muitos aspectos[2]. Em que pese o projeto possua muitos aspectos positivos, como a consolidação expressa do poder de investigação do Ministério Público e a limitação do número de recursos, visando maior celeridade a prestação jurisdicional. Tais avanços, mencionados de forma meramente exemplificativa, não ofuscam o inquestionável retrocesso de outros de seus dispositivos, que certamente haverá de tornar a população ainda mais refém da impunidade que prevalece no país em todas as esferas, repercutindo negativamente no combate a criminalidade de uma maneira geral. O Projeto é de uma benevolência estarrecedora para com os “senhores criminosos”, que, ironicamente poderíamos intitular de “suas majestades: OS REÚS”, tornando a sociedade ainda mais vulnerável a toda sorte de mazelas, decorrentes do aumento da criminalidade e da certeza de impunidade que certamente se avizinha, caso tenhamos a infelicidade de ver aprovado o projeto em muitos de seus termos originais. Apenas trazendo à baila alguns exemplos, menciono o aumento do número de jurados de sete para oito, nos conselhos de sentença dos Tribunais do Júri, que, conforme se sabe, atuam no julgamento dos crimes dolosos contra a VIDA, que deveria ser o bem mais precioso a ser tutelado pelo Estado, aquém, evidentemente, do direito a liberdade. Contudo, (pasmem!), em caso de empate no veredicto dos jurados, o réu, segundo o Projeto, deveria ser ABSOLVIDO, passando a vida humana a valer menos ainda em nosso país, prevalecendo de forma injustificada a opinião de quatro cidadãos sobre a de outros quatro. Por quê? Não se trata de expandir ainda mais o “princípio in dúbio pro réu”, mas de se criar cidadãos com opiniões de primeira e segunda classe, que em sendo diametralmente opostas, mesmo em idêntica quantidade, 50% delas seriam solenemente ignoradas, ofendendo-se princípio constitucional básico[3], já que os oito cidadãos estariam exercendo função nobre em condições de igualdade formal e material como juízes de fato.  Passemos a outro ponto, no mínimo, controvertido. Imagine: Você foi furtado? Saiu de férias e ao retornar não encontrou em sua casa seus pertences mais valiosos acumulados durante toda uma vida? Algum estelionatário lhe aplicou um golpe que o levou à falência? Teve sua bolsa ou carteira subtraída ao menor descuido? Foi ao cinema e ao retornar da sessão não encontrou mais seu carro, comprado em diversas prestações e que não tinha seguro? Entraram em seu escritório e levaram todos os seus preciosos instrumentos de trabalho, mesmo aqueles que ainda nem terminou de pagar? Então: ARREPIE-SE! Pois se tais delitos já eram de difícil solução por uma polícia, em sua maioria bem intencionada, mas despreparada e desestruturada técnica e materialmente, com a aprovação do Projeto neste aspecto, creiam, ficaria muito pior! Pois o projeto prevê que nos crimes contra o patrimônio cometidos sem violência à pessoa, a ação penal passaria a ser pública condicionada à representação das vítimas. Sim! É isso mesmo que vocês leram… Analisem bem os malefícios de tal dispositivo, que impele a vítimas DESPROTEGIDAS e certamente amedrontadas, a responsabilidade de dizerem se “desejam” ou não que o ladrão, usurpador de seu patrimônio, seja processado ou não pelo delito praticado. Com todo respeito à ilustre comissão de juristas que escreveu o anteprojeto, mas, neste aspecto, ele, também, é um ABSURDO! Retrocesso odioso que na prática retira o direito de punir do Estado, dando ainda mais PODER AO CRIMINOSO, lhe facultando intimidar a vítima para fins de impedir a representação e MUITO pior, impede a prisão em flagrante dos meliantes, ainda que estejam com um caminhão de mudanças, subtraído tudo que estiver a seu alcance de uma residência qualquer de um trabalhador em viagem, com o qual não se pode ou não se consegue comunicação, já que não poderia ser encontrado de imediato para ofertar a exigida representação para se efetivar a prisão. Volto a reiterar meu respeito aos redatores do anteprojeto, mas tenho que indagar: A quem interessa tamanhos benefícios aos acusados de práticas delituosas? Qual a necessidade de ser convertida em preventiva, a prisão em flagrante? Se no caso de excessos, que de fato existem, em desfavor de alguns acusados, já se era permitido o relaxamento imediato da prisão em flagrante ilegal ou abusiva? Teria tal dispositivo o fim precípuo apenas de dificultar as prisões tão necessárias quanto imprescindíveis em diversos casos? Por quê? Realmente há que se resguardar os direitos humanos dos réus, sem, contudo se ignorar os direitos humanos das vitimas, sob pena de se institucionalizar legal e tecnicamente uma inversão de valores morais, onde ao criminoso tudo seria permitido. Será este o meio eficaz para se combater a criminalidade? Em absoluto, não creio! Os criminosos já levam inúmeras vantagens sobre a coletividade que envilece e apavora, muitas vezes de maneira reiterada, abjeta e torpe, como quando fazem dos crimes seus meios de vida, tirando proveito da sociedade que exploram frente à disparidade de armas, em razão da vulnerabilidade desta, diante da brutalidade, organização e união de propósitos dos meliantes, e principalmente porque só eles possuem o conhecimento exato do momento em que surpreenderão as vítimas com seus ataques inesperados. Por tudo isso, esperávamos do Projeto de lei em referência, meios mais eficazes e céleres de combate a criminalidade e não que se “escancarasse” que vez as portas do país para a impunidade e reiterações criminosas, como se vê no caso do aumento das dificuldades, já significativas, para decretação da prisão preventiva, que só seria possível no caso de crimes cuja pena máxima exceder a quatro anos (uma gama imensa de delitos graves, cuja punição exemplar e efetiva conduziria a pacificação social e proteção da sociedade foi solenemente excluída desse rol), dentre eles a lesão corporal geral e a praticada com violência doméstica e familiar contra a mulher, tema que abordaremos mais atentamente em nosso segundo tópico. Assim, valentões de todos os portes poderiam espancar, chutar, esmurrar, tirar sangue a vontade de seus desafetos ou de um infortunado qualquer que estivesse no lugar e na hora errados, enquanto a polícia, caso aparecesse, não poderia sequer prender em flagrante o meliante, que se livraria solto e se tornaria ainda mais “poderoso”, num país que valorizaria mais a liberdade, do que a integridade física das vítimas, independentemente do sexo, compleição física ou idade. Todo este absurdo me lembra as célebres, antigas e atualíssimas palavras de Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver crescer as injustiças, de tanto ver agigantar-se o poder nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.” O Projeto também impõe limites para a detenção de acusados antes da condenação. Atualmente, vigora a jurisprudência de que a prisão provisória pode durar, no máximo, 81 dias, estatuindo generelização inaceitável, ignorando-se as manobras chicaneiras da defesa para se extrapolar tal prazo e considerando todos os crimes como se fossem idênticos em repercussão social, potencialidade lesiva, periculosidade e necessidade de reprovabilidade. E para assegurarem ainda mais os direitos de “suas majestades: OS RÉUS”, outra proposta ABSURDA, segundo meu entendimento: Cria o Projeto a figura do “juiz de garantia”, que passaria a controlar a legalidade das investigações durante a fase inquisitorial, até o oferecimento da denúncia contra o acusado na Justiça, como se já não existissem juízes de direito capazes de tolher qualquer abuso que chegue a seu conhecimento. Seria o fim do procedimento inquisitório e a criação de mais um DEFENSOR para os réus e agora com status de JUIZ, além de seus já garantidos advogados, defensores e estagiários. Enfim… Para os réus TUDO! Para a sociedade: O CRIME! 2– Da Destruição da Lei Maria da Penha em Face dos Dispositivos Contidos no Projeto de Lei de Reforma do Código de Processo Penal “Pode-se graduar a civilização de um povo pela atenção, decência e consideração com que as mulheres são educadas, tratadas e protegidas.”[4] Há muito tempo Jean-Jacques Rousseau, cunhou frase preconceituosa contra o gênero feminino, que mesmo com toda sua história indiscutível de luta por emancipação, liberdade e igualdade, permanece absolutamente contemporânea: “As mulheres não foram feitas para a fuga. Quando correm é porque desejam ser perseguidas.” Atualmente, operando como Promotora de Justiça, incumbida do dever de fiscalizar a aplicação da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), me sinto uma sobrevivente, resistindo à duras penas, ladeada por colegas de valor inestimável em todo o país, que a essa altura conhecem literalmente a força assustadora do termo popular de “se nadar contra a maré”. Certamente nunca tivemos uma lei tão discutida, celebrada, execrada, desvirtuada, descumprida, ignorada e odiada como a LMP e diante desta realidade, volto a indagação efetivada em um de meus artigos anteriores: A QUEM INTERESSA MANTER AS MULHERES ETERNAMENTE SOB O CONTROLE MASCULINO? Nós, que acompanhamos a implementação da LMP desde seu nascedouro sabemos como tem sido espinhoso o nosso ofício, para cada avanço, um retrocesso, para cada vitória, uma derrota, para cada companheiro aguerrido e combativo, uma baixa desistente que não se sente mais capaz de trilhar por caminho tão tortuoso. A verdade é que somos poucos, diminutos resistentes num mar de operadores técnicos que observam processos, onde enxergamos pessoas, que olham vítimas, mas não as vêem, as escutam, mas não as ouvem, agem, mas não sentem… E essa sensibilidade que nos irmana torna-nos gigantes aos olhos do mundo, pois o BEM é a nossa causa, o auxílio às vítimas e o apelo a não violência nas famílias a nossa bandeira.[5] Por nossa luta, ganhamos força e coragem, não medindo esforços, nem mensurando o cansaço em prol da conquista efetiva dos direitos humanos dentro dos lares das famílias brasileiras. Românticos e utópicos, com toda razão nos rotulam, já que acreditamos, apesar de tudo e todos, no êxito de nossa causa e nos benefícios do combate a violência doméstica e familiar contra a mulher para toda a sociedade. Dentre os muitos “inimigos” poderosos que já apareceram para embaraçar a aplicação da LMP da forma idealizada pelo legislador, na intenção de manter institucionalizada contra as “mulheres desobedientes” a SURRA DOMÉSTICA, certamente estamos agora diante do mais poderoso e maléfico oponente ao combate a violência doméstica e familiar contra a mulher e se trata do Projeto de lei em referência. É que o Projeto ressuscita, sem fazer qualquer exceção, os inócuos e permissivos termos procedimentais e institutos despenalizadores da Lei 9.099/2005(Juizados Especiais Criminais), incorporando-os ao novo Código de Processo Penal como um todo, ignorando solenemente o comprovado fracasso deles no combate a violência doméstica e familiar contra a mulher e, por conseguinte, este, como lei posterior, caso fosse aprovado[6], revogaria tacitamente a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), pois atingiria o seu vital artigo 41.[7] E por conseqüência, deixaria de existir a possibilidade de se decretar a prisão preventiva nos crime cuja pena máxima fosse inferior a quatro anos, ou seja, a grande maioria de nossos casos, exceto os gravíssimos, onde muitas vezes a vida da mulher já foi ceifada ou gravemente afetada, de forma irremediável. Portanto, o projeto pretende devolver os graves delitos domésticos para serem resolvidos em casa, dando ainda mais poder ao agressor, literalmente “lavando suas mãos”, como se nada tivesse a ver com isso, afinal, seus operadores tem problemas mais importantes para resolver, voltando as mulheres a serem oferecidas em sacrifício, para “salvarem” sozinhas o mito da “harmonia familiar”, novamente como “presas fáceis e indefesas” de um sistema que se recusa a garantir os seus direitos humanos. No atual estágio do processo civilizatório da humanidade, é inadmissível que nos conformemos com o grau de desigualdades existentes entre homens e mulheres, pois tais disparidades atingem diretamente a qualidade de vida de bilhões de seres humanos, das mais diversas regiões do planeta e a promoção da igualdade de gênero requer investimentos de toda ordem, para viabilizar, ainda que em longo prazo, o desenvolvimento sustentável das próximas gerações, o que jamais se conquistará sem uma lei especial de proteção da mulher contra a violência de gênero, como a Lei Maria da Penha. Dados da Organização Mundial de Saúde – OMS, insertos no relatório divulgado pela Anistia Internacional em 2004, aponta que 70% dos assassinatos de mulheres no mundo são cometidos por homens com quem elas tinham ou tiveram algum envolvimento amoroso e que no Brasil, de cada 100 mulheres brasileiras assassinadas, 70 o são no âmbito de suas relações domésticas. O Brasil é o país que mais sofre com a violência doméstica contra a mulher, perdendo 10,5% do seu PIB, razão pela qual tais ocorrências são tidas como um problema de saúde pública, já que a mulher agredida falta ao trabalho e ainda faz uso do sistema de saúde pública para tratamento médico. Estatísticas comprovam que a cada 15 segundos uma mulher é agredida no Brasil. No mundo, uma a cada três mulheres é vítima de violência doméstica ao longo de sua vida. Nem câncer, nem acidentes de carro, a maior causa da morte de mulheres de 16 a 44 anos é a violência doméstica, mal que não distingue classe social, religião ou etnia. Relatório do Senado Federal em 2004, após ouvir milhares de mulheres, antes da promulgação da LMP, concluiu que: “dentre todos os tipos de violência contra as mulheres existentes no mundo, aquela praticada no ambiente familiar é uma das mais cruéis e perversas. O lar, identificado como local acolhedor e de conforto passa a ser um ambiente de perigo contínuo que resulta num estado de medo e ansiedade permanentes. Envolta no emaranhado de emoções das relações afetivas, a violência doméstica contra a mulher se mantém, até hoje, como uma sombra em nossa sociedade”. Este mesmo Senado não pode desconhecer tal realidade atualmente, quando ainda lutamos bravamente pela implementação efetiva da LMP em nosso país, nem tampouco ignorar que o Brasil é cada vez mais feminino, vez que estatística divulgada pelo TSE revela que a maioria de eleitores registrados é formada por mulheres (51,7%). Tudo isso não pode ser desconhecido por nossos parlamentares ao analisarem e votarem o Projeto de Lei em referência, que deve ser solenemente REJEITADO em tudo que implica retrocesso para a defesa das mulheres vítimas de violência doméstica. 3- A Guisa de Conclusão Ao concluir estas breves palavras, ouso afirmar após a leitura do Projeto de Lei nº 156/2009, que constatei que sua essência é exageradamente benéfica e permissiva aos autores de crimes, além de essencialmente descriminalizadora, tendo como foco principal a minimização do ato delituoso e a exclusão de processos criminais. Ora! Num país em que os índices de criminalidade crescem de forma alarmante, o texto deste Projeto é um indecifrável paradoxo. Mais ou menos como se o Estado, admitindo sua ineficácia para combater o crime e punir os criminosos, resolvesse fingir que não os estivesse vendo, já que os processos diminuiriam e tudo terminaria em transações penais inócuas, que ademais nunca serão cumpridas. Vejam a que ponto se chegou: nós presos, eles soltos, nós súditos, eles majestades, nós vítimas, eles sujeitos de direitos! O Estado inerte, envolto numa corrupção vergonhosa que não há tributos que sacie, ao invés de construírem mais presídios, com segurança e dentro de moldes humanizados, técnicos e de ocupação, capazes de possibilitar a recuperação dos criminosos, quer simplesmente mantê-los em liberdade, porque os presídios estariam lotados, e ademais, do que adiantaria encarcerá-los, se voltariam a delinqüir? O Judiciário, atolado de processos, sem estrutura material, pessoal e com um número insuficiente de juízes, deixaria de fato de processar os criminosos, partindo para o grande “faz de conta” dos institutos despenalizadores, num sistema processual penal que poderíamos denominar de um grande e ineficiente: “JUIZADÃO”, engavetador  de crimes impunes. E pensar que tudo seria bem diferente, se aos reeducandos fossem concedidos o direito ao voto, pois com um título de eleitor em mãos, passariam a ser vistos como seres humanos, e quiçá conseguiriam habitar temporariamente prisões passíveis de ressocialização, em prol de toda a coletividade. E nós, sonhadores e idealistas representantes do Ministério Público, sofredores defensores da sociedade, como dormiremos como um barulho desses?  Se para nós “A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Essa é a lida do promotor de justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. Vale dizer, o compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social”.[8]
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-67/criticas-pontuais-ao-projeto-de-reforma-do-codigo-de-processo-penal/
O fim do protesto por novo júri e a questão do direito intertemporal
O artigo analisa a revogação dos arts. 607 e 608 do Código de Processo Penal, por força da promulgação da Lei nº. 11.689/2008 que modificou os dispositivos processuais relativos ao procedimento do Júri. É feita uma abordagem sob o aspecto da sucessão das leis processuais penais, concluindo-se que sendo normas processuais penais materiais, e mais benéficas, devem ter incidência após a sua revogação para atingir fatos ocorridos durante a sua vigência.
Direito Processual Penal
1. Introdução Foi promulgada e publicada a Lei nº. 11.689/2008, revogando, no seu art. 4o,  o Capítulo IV do Título II do Livro III do Código de Processo Penal, extinguindo o protesto por novo júri. Esta lei, que entrou em vigor no dia 11 de agosto de 2008[1], originou-se do Projeto de Lei nº. 4.203/01 e passou a estabelecer novas regras para o procedimento a ser adotado no julgamento dos crimes dolosos contra a vida e os que lhe forem conexos (art. 78, I do Código de Processo Penal). O então Ministro da Justiça, Dr. José Carlos Dias, ao assumir o Ministério, editou o Aviso nº. 1.151/99, convidando o Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDPa apresentar uma proposta de reforma do nosso Código de Processo Penal. Este mesmo Ministro, agora por via da Portaria nº. 61/00, constituiu uma Comissão para o trabalho de reforma, tendo como membros os juristas Ada Pellegrini Grinover (Presidente), Petrônio Calmon Filho (Secretário), Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti (que mais tarde saiu, sendo substituído por Rui Stoco), Rogério Lauria Tucci e Sidnei Beneti. Com a inesperada e lamentável saída do Ministro Dias, o novo titular da Pasta, Dr. José Gregori, pela Portaria nº. 371/00, confirmou a Comissão anteriormente formada, com a substituição já referida. Ao final dos trabalhos, a Comissão de juristas entregou ao Ministério da Justiça, no dia 06 de dezembro de 2000, sete anteprojetos que, por sua vez, originaram os seguintes projetos de lei: 1º.) Projeto de lei nº. 4.209/01: investigação criminal; 2º.) Projeto de lei nº. 4.207/01: suspensão do processo/procedimentos; 3º.) Projeto de lei nº. 4.205/01: provas; 4º.) Projeto de lei nº. 4.204/01: interrogatório/defesa legítima; 5º.) Projeto de lei nº. 4.208/01: prisão/medidas cautelares e liberdade; 6º.) Projeto de lei nº. 4.203/01: júri; 7º.) Projeto de lei nº. 4.206/01: recursos e ações de impugnação. Alguns destes projetos continuam em tramitação no Congresso Nacional; outros já foram sancionados, entre os quais os que tratam sobre provas, interrogatório e Júri. 2. O Código de Processo Penal Como se sabe, o nosso Código de Processo Penal é do ano de 1941 e ao longo desse período poucas alterações sofreu em que pese serem evidentes as mudanças sociais ocorridas no País e tendo em vista a nova ordem constitucional vigente. O seu surgimento, em pleno Estado-Novo[2], traduziu de certa forma a ideologia de então, mesmo porque “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas” (grifo nosso).[3] À época tínhamos em cada Estado da Federação um Código de Processo Penal, pois desde a Constituição Republicana a unidade do sistema processual penal brasileiro fora cindida, cabendo a cada Estado da Federação a competência para legislar sobre processo, civil e penal, além da sua organização judiciária. Segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (…) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (…) ”[4] Como notara o mestre Frederico Marques, “o golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.”[5] Até que em 03 de outubro de 1941 promulgou-se o Decreto-Lei nº. 3.689, que entraria em vigor a partir de 1º. de janeiro do ano seguinte; para resolver principalmente questões de natureza de direito intertemporal, promulgou-se, também, o Decreto-Lei nº. 3.931/41, a Lei de Introdução ao Código de Processo Penal. Este Código, elaborado, portanto, sob a égide e “os influxos autoritários do Estado Novo”, decididamente não é, como já não era “um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal”, como dizia Frederico Marques. Segundo o mestre paulista, “continuamos presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do sistema escrito (…) O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados Brasileiros. (…) A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de por cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável confusionismo e absoluta falta de técnica.”[6] Assim, se o velho Código de Processo Penal teve a vantagem de proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe consigo, até por questões históricas, o ranço de um regime totalitário e contaminado pelo fascismo, ao contrário do que escreveu na exposição de motivos o Dr. Francisco Campos, in verbis: “Se ele (o Código) não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais.” É bem verdade que ao longo dos seus 60 anos de existência, algumas mudanças pontuais foram marcantes e alvissareiras como, por exemplo, o fim da prisão preventiva obrigatória com a edição das Leis de nºs. 5.349/67, 8.884/94, 6.416/77 e 5.349/67; a impossibilidade de julgamento do réu revel citado por edital que não constituiu advogado (Lei nº. 9.271/96); a revogação do seu art. 35, segundo o qual a mulher casada não poderia exercer o direito de queixa sem o consentimento do marido, salvo quando estivesse separada dele ou quando a queixa contra ele se dirigisse (Lei nº. 9.520/97); modificações no que concerne à prova pericial (Lei nº. 8.862/94); a possibilidade de apelar sem a necessidade de recolhimento prévio à prisão (Lei nº. 5.941/73); a revogação dos artigos atinentes ao recurso extraordinário (Lei nº. 3.396/58), etc. Por outro lado, leis extravagantes procuraram aperfeiçoar o nosso sistema processual penal, podendo citar as que instituíram os Juizados Especiais Criminais (Leis nºs. 9.099/95 e 10.259/01), e que constituem, indiscutivelmente, o maior avanço já produzido em nosso sistema jurídico processual, desde a edição do Código de 1941. Há, ainda, a que disciplinou a identificação criminal (Lei nº. 10.054/00); a proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas (Lei nº. 9.807/99); a que possibilitou a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais (Lei nº. 9.800/99); a lei de interceptações telefônicas (Lei nº. 9.296/96); a Lei nº 8.038/90, que disciplina os procedimentos nos Tribunais, e tantas outras, algumas das quais, é bem verdade, de duvidosa constitucionalidade (para não dizer de absoluta inconstitucionalidade). 3. A Reforma do Código de Processo Penal Pois bem. Este é o quadro atual. Além de algumas alterações pontuais, seja no próprio texto consolidado, seja por intermédio de leis esparsas, nada mais foi feito para modernizar o nosso diploma processual penal, mesmo após a nova ordem constitucional consagrada pela promulgação da Carta Política de 1988. E, assim, o atual código continua com os vícios de 60 anos atrás, maculando em muitos dos seus dispositivos o sistema acusatório, não tutelando satisfatoriamente direitos e garantias fundamentais do acusado, refém de um excessivo formalismo (que chega a lembrar o velho procedimentalismo), assistemático e confuso em alguns dos seus títulos e capítulos, bastando citar a disciplina das nulidades.[7] Destarte, podemos apontar como finalidades precípuas desta reforma a modernização do velho código e a sua adaptação ao sistema acusatório (objetivo, aliás, ainda não inteiramente alcançado), com os seus consectários lógicos, tais como a distinção nítida entre o julgador, o acusador e o acusado, a publicidade, a oralidade, a ampla defesa, o contraditório, etc. Sobre o sistema acusatório, assim escreveu Vitu: “Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. “Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré.  “Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”[8] Ademais, a reforma está mais ou menos consentânea com os princípios estabelecidos pelo Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero América. Neste Código-Modelo há alguns princípios básicos, a saber: 1) “O julgamento e decisão das causas penais será feito por juízes imparciais e independentes dos poderes do Estado, apenas sujeitos à lei.” (art. 2º.). 2)  “O imputado ou acusado deve ser tratado como inocente durante o procedimento, até que uma sentença irrecorrível lhe imponha uma pena ou uma medida de segurança.” (art. 3º.). 3) “A dúvida favorece o imputado”. (idem). 4) “É inviolável a defesa no procedimento.” (art. 5º.). Tais idéias serviram também de base para outras reformas feitas (ou por serem realizadas) em outros países, como a Argentina, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Chile, Venezuela, Bolívia, Paraguai, Honduras, Equador, Itália e Portugal.[9] Aliás, “el Derecho procesal penal de los países latinoamericanos, observado como conjunto, ingresó, a partir de la década del’80, en un período de reformas totales, que, para el lector europeo, puede compararse con la transformación que sufrió el Derecho procesal penal de Europa continental durante el siglo XIX. No se trata, así, de modificaciones parciales a un sistema ya adquirido y vigente, sino, por lo contrario, de una modificación del sistema según otra concepción del proceso penal. Descrito sintéticamente, se puede decir que este proceso de reformas consiste en derogar los códigos antiguos, todavía tributarios de los últimos ejemplos de la Inquisición – recibida con la conquista y la colonización del continente -, para sancionar, en más o en menos, leyes procesales penales conformes al Estado de Derecho, con la aspiración de recibir en ellas la elaboración cumplida en la materia durante el siglo XX.”[10] Pode-se, portanto, inferir que as reformas processuais penais já levadas a cabo em vários países da América Latina e por virem em tantos outros, são frutos, na verdade, de modificações no sistema político destes países que foram, paulatinamente, saindo de períodos autoritários para regimes democráticos. É como se a redemocratização impulsionasse o sistema processual do tipo inquisitivo para o sistema acusatório. Aliás, é inquestionável a estreita ligação entre o sistema processual penal de um país e o seu sistema político. Um país democrático[11] evidentemente deve possuir, até porque a sua Constituição assim o obriga, um Código de Processo Penal que adote o sistema acusatório, eminentemente garantidor. Ao contrário, em um sistema autoritário, o processo penal, a serviço do Poder, olvida os direitos e garantias individuais básicos, privilegiando o sistema inquisitivo, caracterizado, como genialmente escreveu Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”. O sistema inquisitivo, portanto, “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.[12] Assim, a “uniformidade legislativa latino-americana – na verdade compreendendo agora a comunidade cultural de fala luso-espanhola – apoiada em bases comuns e sem prejuízo das características próprias de cada região, é uma velha aspiração de muitos juristas do nosso continente. Além disso, ela foi o sonho de alguns grandes homens, fundadores de nossos países ou de nossas sociedades políticas. (…) “Em nossos países, geralmente, a justiça penal tem funcionado como uma ‘caixa-preta’, afastada do controle popular e da transparência democrática. O apego aos rituais antigos; As fórmulas inquisitivas, que na cultura universal já constituem curiosidades históricas; a falta de respeito à dignidade humana; a delegação das funções judiciais; o segredo; a falta de imediação; enfim, um atraso político e cultural já insuportável, tornam imperioso começar um profundo movimento de reforma em todo o continente.”[13] É evidente que o ideal seria uma reforma total, completa, que propiciasse uma harmonia absoluta no sistema processual penal, mas, como sabemos, se assim o fosse as dificuldades que já existem hoje, seriam ainda maiores. Preferiu-se, de outro modo, uma reforma que, se não chega a ser total (o que seria de difícil aprovação, à vista das evidentes dificuldades de natureza legislativa que todos nós conhecemos), também não chega a ser simplesmente pontual, até porque, como esclarece Ada, não incide “apenas sobre alguns dispositivos, mas toma por base institutos processuais inteiros, de forma a remodelá-los completamente, em harmonia com os outros.” Não é, portanto, uma reforma isolada, mas “tópica”.[14] Este movimento reformista não se limita à América Latina. Na Europa também se encontram em franco desenvolvimento reformas no sistema processual penal. A título de exemplo, podemos referir a Alemanha, onde “también el Derecho procesal penal há sido modificado en varias ocasiones entre 1997-2000”[15], a Itália[16] e a Polônia, país que “desde hace 12 años se realizan reformas en la legislación, relacionadas con el cambio de régimen político, económico y social, que tuvo lugar en 1989 y también con la necesidad de adaptar las soluciones jurídicas polacas a las soluciones aceptadas en la Unión Europea. (…) Las reformas de la legislación penal e procesal penal constituyen una parte esencial del ‘movimiento legislativo reformador’, segundo nos informa a Drª. Barbara Kunicka-Michalska, do Instituto de Ciências Jurídicas da Academia de Ciências da Polônia, em Varsóvia.[17] Recentemente, o Senado Federal instituiu uma comissão de juristas para propor um novo Código de Processo Penal; a comissão pretende concluir a redação final no mês de março de 2009, para que seja submetida a consulta pública. Segundo o presidente da comissão, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Hamilton Carvalhido, um dos principais objetivos das propostas é o de dar maior celeridade à Justiça. Um das medidas seria o fim da participação dos juízes na tramitação do inquérito policial, o qual ficaria a cargo da autoridade policial e do Ministério Público. A diligência policial não exigiria mais autorização judicial, apenas do Ministério Público.  O Ministro Carvalhido defendeu a criação da figura do juiz de garantia, a quem caberia exercer o controle sobre a legalidade da investigação, inclusive quanto à autorização para interceptações telefônicas, solicitadas pela autoridade policial. Tal juiz sairia da causa a partir do oferecimento da denúncia, dando lugar a outro magistrado, que teria maior independência para avaliar a validade das provas colhidas no inquérito. Um dos pontos do anteprojeto, que deve despertar maior polêmica, é o fim da prisão especial para pessoas com diploma de nível superior, que ficaria restrita apenas a algumas autoridades. As prisões preventivas devem ter prazo máximo delimitado. “É preciso continuar essa mudança de mentalidade de ver na [prisão] preventiva uma antecipação da sanção penal, embora não haja ainda julgamento definitivo, que possa criar a certeza da aplicação da pena”, afirmou Carvalhido.O ministro considerou positiva a decisão do Supremo Tribunal Federal, que garante a liberdade do acusado até que não haja condenação em última instância, com sentença transitada em julgado. Tal entendimento, segundo ele, reforça o princípio de que a prisão cautelar é de natureza excepcional. “É necessário que os direitos das pessoas sob investigação sejam respeitados, o que não significa dizer que não se pode prender cautelarmente”, ressalvou Carvalhido. Após passar pela consulta pública, o texto final do anteprojeto do Código de Processo Penal será submetido ao exame e aprovação dos senadores, para que seja transformado em projeto e vá à votação no Congresso Nacional. Além do ministro Carvalhido, integram a comissão, instituída em 9 de julho do ano pssado, o juiz federal Antônio Corrêa; o advogado e professor da Universidade de São Paulo (USP) Antônio Magalhães Gomes Filho; o procurador regional da República Eugenio Pacelli; o consultor legislativo do Senado Fabiano Augusto Martins Silveira; o advogado e ex-secretário de Justiça do estado do Amazonas Félix Valois Coelho Júnior; o advogado e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; o delegado federal e presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal Sandro Torres Avelar; e o promotor de Justiça Tito de Souza Amaral (Fonte: Agência Brasil). O texto do relator, o procurador da República Eugênio Pacelli de Oliveira, assim como o PLC 111/08, deve propor a extinção da prisão especial para pessoas com diploma de nível superior, a limitação do prazo máximo para as prisões preventivas, bem como as circunstâncias em que ela pode ser utilizada. Como um texto que visa substituir integralmente o atual CPP, o anteprojeto também propõe a instituição do juiz de garantias, que participaria apenas da fase de investigação, não sendo responsável pela sentença. Segundo o consultor legislativo do Senado para as áreas de Direito e Processo Penal Fabiano Silveira, foram muitas as fontes consultadas, do Brasil e do exterior, até a comissão chegar a um anteprojeto final. Ele revelou que as recentes alterações no CPP, como as três leis sancionadas em 2008, foram preservadas naquilo que não se chocassem com a concepção de processo penal adotado pela comissão. Pela abordagem adotada, a comissão buscou delimitar o papel de cada uma das autoridades envolvidas no processo penal: o juiz, o representante do Ministério Público e o da polícia judiciária. – Estivemos sempre muito atentos para esses papéis e sua preservação, sem interferências de parte a parte. Buscamos moderar o protagonismo judicial na fase de investigação e também na iniciativa probatória na fase processual. Com essa compreensão se encaixam as propostas desenvolvidas – explicou Fabiano Silveira, adiantando ainda que o anteprojeto estimula uma aproximação entre a polícia e o Ministério Público, desburocratizando a fase do inquérito. Outra necessidade identificada pela comissão, afirma o consultor, é a de retirar resquícios autoritários do processo penal brasileiro, adequando-o ao caráter democrático e liberal da Constituição de 1988, ao mesmo tempo limitando o instituto da prisão provisória e ampliando o poder e as alternativas cautelares do magistrado. Para Fabiano Silveira, as medidas podem diminuir no país o número de prisões antes da sentença final, trazendo-o para “níveis mais aceitáveis” (Fonte: Agência Senado). 4. O fim do protesto por novo júri Como se disse, foram revogados os arts. 607 e 608 do Código de Processo Penal que tratavam do protesto por novo júri, recurso exclusivo da defesa que exigia ser o condenado submetido a um novo julgamento sempre que a sentença condenatória fosse de reclusão por tempo igual ou superior a vinte anos, sendo inadmissível uma segunda interposição. Sem adentrar o mérito da revogação e da extinção deste recurso (que não obteve da referida Comissão a unanimidade), traremos à baila a discussão acerca de uma possível ultra-atividade dos artigos revogados e, por conseguinte, de uma irretroatividade da lei nova. Pergunta-se: quem for submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri por crime praticado (data da ação ou omissão: art. 4º. do Código Penal) antes da entrada em vigor da nova lei terá direito ao protesto por novo júri, ainda que a condenação seja-lhe posterior e quando já não mais se preveja o recurso? Neste caso, haveria impossibilidade jurídica a inviabilizar o manejo do recurso ou teríamos que admiti-lo excepcionalmente? Como se sabe há dois princípios basilares que regem o direito intertemporal das leis em matéria criminal: o primeiro afirma que a lei penal não retroage salvo para beneficiar o réu (art. 2°., parágrafo único do Código Penal e art. 5°., XL da Constituição Federal). Se é certo que a regra é a da irretroatividade da lei penal, e isto ocorre por uma questão de segurança jurídico-social, não há de se olvidar a exceção de que se a lei penal for de qualquer modo mais benéfica para o seu destinatário, forçosamente deverá ser aplicada aos casos pretéritos, retroagindo. Este princípio insere-se no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da nossa Carta Magna e, como garantia fundamental, tem força vinculante, “no sólo a los poderes públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño[18], tendo também uma conotação imperativa, “porque dotada  de caráter jurídico-positivo”.[19] O segundo princípio é o da aplicação imediata da lei processual penal, preconizado pelo art. 2°. do Código de Processo Penal e que proclama a regra da aplicação imediata (tempus regit actum). Desta forma, à vista desses dois princípios jurídicos, haveremos de analisar o disposto no referido art. 4º. da Lei nº. 11.689/08 que extinguiu o protesto por novo júri. 5. A questão do direito intertemporal Como adiantamos, a questão reside saber se em relação aos autores de crimes dolosos contra a vida (ou conexos) haverá ainda a possibilidade de interposição daquele meio recursal, quando o crime tiver sido praticado antes da entrada em vigor da referida lei e o julgamento for posterior. Para que se manifeste um entendimento correto, urge que procuremos definir a natureza jurídica da norma ora revogada: seria ela de natureza puramente processual ou, tão-somente, penal; ou híbrida (penal e processual)? Admitindo-se a natureza puramente processual, obviamente não há falar-se em irretroatividade ou ultra-atividade; porém, se aceitarmos que são normas processuais penais materiais (ou híbridas), a ultra-atividade dos artigos revogados e a irretroatividade da nova lei impõem-se, pois, indiscutivelmente, sendo disposição mais gravosa deve excepcionar o princípio da aplicação imediata da lei processual penal. Atentemos que qualquer norma que trate de um meio recursal diz respeito a uma garantia constitucionalmente assegurada que é o duplo grau de jurisdição. O devido processo legal deve garantir a possibilidade de revisão dos julgados. A falibilidade humana e o natural inconformismo de quem perde estão a exigir o reexame de uma matéria decidida em primeira instância, a ser feito por juízes coletivos e magistrados mais experientes.[20] A Constituição Federal prevê o duplo grau de jurisdição, não somente no já referido art. 5º., LV, como também no seu art. 93, III (“acesso aos tribunais de segundo grau”).      Em França, segundo Étienne Vergès, “l´article préliminaire du Code de procédure pénale dispose in fine que ´toute personne condamnée a le droit de faire examiner sa condamnation par une autre juridiction`.”[21] Há mais de vinte anos, o jurista baiano Calmon de Passos mostrava a sua preocupação com “a tendência, bem visível entre nós, em virtude da grave crise que atinge o Judiciário, de se restringir a admissibilidade de recursos, de modo assistemático e simplório, em detrimento do que entendemos como garantia do devido processo legal, incluída entre as que são asseguradas pela nossa Constituição.” Neste mesmo trabalho, nota o eminente Mestre que “o estudo do duplo grau como garantia constitucional desmereceu, da parte dos estudiosos, em nosso meio, considerações maiores. Ou ele é simplesmente negado como tal ou, embora considerado como ínsito ao sistema, fica sem fundamentação mais acurada, em que pese ao alto saber dos que o afirmam, certamente por força da larga admissibilidade dos recursos em nosso sistema processual, tradicionalmente, sem esquecer sua multiplicidade.”[22] Não esqueçamos que a “adoção do duplo grau de jurisdição deixa de ser uma escolha eminentemente técnica e jurídica e passa a ser, num primeiro instante, uma opção política do legislador.”[23] O duplo grau de jurisdição tem caráter de norma materialmente constitucional, mormente porque o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) que prevê em seu art. 8º., 2, h, que todo acusado de delito tem “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”, e tendo-se em vista o estatuído no § 2º., do art. 5º., da CF/88, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Ratificamos, também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque que no seu art. 14, 5, estatui que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei.” Assim, conclui-se que os arts. 607 e 608 do Código de Processo Penal, a par de serem normas processuais, inseriam-se também no âmbito do Direito Material por constituírem garantia ao duplo grau de jurisdição. Nestas condições, ditas normas não são puramente processuais (ou formais, técnicas), mas processuais penais materiais. O jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”[24] Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas.” Para ele, constituem exemplos de normas processuais penais materiais, dentre outras, as que estabelecem “graus de recurso”, sendo a lei aplicável aquela vigente “no tempus delicti, isto é, no momento da prática da conduta, independentemente do momento em que o resultado se produza.”[25] (grifo nosso). Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[26] Feitas tais considerações, lembra-se que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni.[27] A propósito, veja-se a lição de Carlos Maximiliano: “Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”[28] Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci: “Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.”[29] Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho: “Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.”[30] 6. Conclusão Diante do exposto, entendemos que os dispositivos revogados e que tratavam da possibilidade do protesto por novo júri terão incidência em relação àqueles agentes que praticaram a infração penal anteriormente à entrada em vigor da nova lei, atentando-se para o disposto no art. 2º. da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal e no art. 2º. do Código Penal. Ressalva-se, apenas, a coisa julgada como limite lógico e natural de tudo quanto foi dito, pois todas as medidas citadas exigem que haja processo em curso ou na iminência de ser iniciado. Se já houve o trânsito em julgado, não pode se cogitar de retroatividade para o seu desfazimento, pois neste caso já há um processo findo, além do que, contendo a norma caráter também processual, só poderia atingir processo não encerrado, ao contrário do que ocorreria se se tratasse de lei puramente penal (lex nova que, por exemplo, diminuísse a pena ou deixasse de considerar determinado fato como criminoso), hipóteses em que seria atingido, inclusive, o trânsito em julgado, por força do art. 2º., parágrafo único do Código Penal[31]. Enfrentando esta questão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, tratando-se “de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal.” (STF – ADI 1.719-9 – rel. Joaquim Barbosa – j. 18.06.2007 – DJU 28.08.2007, p. 01).
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-66/o-fim-do-protesto-por-novo-juri-e-a-questao-do-direito-intertemporal/
O Processo Penal é um direito constitucional aplicado?
o presente trabalho reflete um breve estudo sobre os direitos e garantias constitucionais e sua plena aplicabilidade ao “devido processo penal” sem o escopo de esgotá-las. Responder a seguinte questão: o processo penal é um direito constitucional aplicado? Não é tarefa simples, a princípio a resposta parece ser afirmativa, haja vista o amplo rol do art. 5º da Constituição Federal de 1988, que em tese proporcionaria a aplicabilidade de tais garantias ao processo penal. Mas, será que diante do caso concreto as garantias constitucionais são efetivamente aplicadas ao processo pena? Assim, diante de tantas dúvidas nos socorremos da melhor doutrina e jurisprudência pátria para iniciarmos o caminho rumo às possíveis respostas à indagação ora apresentada. [1]
Direito Processual Penal
Introdução: Nascerá para o Estado o direito de punir quando houver sido praticada uma infração penal. Com isso, não seria admissível um processo penal dissociado de uma filtragem constitucional, pois como bem observa Nucci (2006, p. 74): “Logo, não se pode visualizar a relação que o Processo Penal possui com o Direito Constitucional, como se fosse uma ciência correlata ou um corpo de normas de igual valor, o que não ocorre. Devemos partir da visão constitucional de direito e democracia, diferençando direitos e garantias fundamentais, bem como os direitos e garantias humanas fundamentais, para atingir, a partir disso, uma correta e ampla visão do processo penal.” Traçadas as primeiras premissas buscaremos responder se o processo penal é um direito constitucional aplicado. Num primeiro momento apresentaremos comentários sobre a constitucionalização do processo penal e posteriormente breves comentários aos direitos fundamentais no âmbito do processo e dos princípios constitucionais diretamente ligados ao processo penal. Diante de um Estado Democrático de Direito, de certo só poderemos apresentar uma resposta em consonância com a Constituição Federal. 1- Processo Penal e sua constitucionalização. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 de acordo com a classificação de José Afonso da Silva (2009, p.42), quanto à estabilidade é rígida. Assim, para sua modificação o processo exige um grau maior de dificuldade. E como consequência da rigidez constitucional surge o princípio da supremacia da constituição. Nesse particular, pela importância que o tema apresenta, lançamos mão, dos ensinamentos de Silva (2009, p.45): “[…] significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas.” Assim, todas as normas infraconstitucionais que integram o sistema jurídico pátrio somente serão válidas, e somente neste caso, se não confrontarem com a Constituição Federal. Doutrinariamente os direitos fundamentais (principais) são diferenciados das garantias fundamentais (acessórios). De tal forma, que os primeiros significam os bens assegurados pela Constituição, como por exemplo, o direito a vida, a liberdade, etc. Já as garantias constitucionais são instrumentos fixados na própria Constituição para a efetivação dos direitos fundamentais, temos como exemplos o habeas corpus como garantia ao direito de locomoção, a vedação da pena de morte como garantia ao direito a vida, etc.. Com muita perspicácia coloca Lopes Jr. (2005, p. 39) que devemos observar o seguinte: “Num Estado Democrático de Direito, não podemos tolerar um processo penal autoritário e típico de um Estado policial, pois o processo penal deve adequar-se a Constituição e não vice-versa.” Assim, com o fundamento das primeiras premissas sobre o tema, podemos até afirmar que o processo penal é um direito constitucional aplicado. Haja vista, que o Código de Processo Penal é norma infraconstitucional e como tal obrigatoriamente deve seguir os ditames legais da Constituição. E como consequência lógica o processo penal se desenvolveria respeitando os direitos e garantias constitucionais, no entanto, parece um tanto precipitada tal afirmação. Assim, lançamos mão, mais uma vez, dos preciosos ensinamentos de Lopes Jr. (2005, p. 40): “O processo penal deve passar pelo filtro constitucional e se democratizar. A democracia pode ser vista como um sistema político-cultural que valoriza o indivíduo frente ao Estado, e que se manifesta em todas as esferas dessa complexa relação Estado-indivíduo. Como consequência, opera-se uma democratização do processo penal, que se manifesta através do fortalecimento do sujeito passivo. O indivíduo submetido ao processo penal passa a ser valorizado juridicamente”. Com lastro na lição de Aury Lopes Jr (2005) não podemos acolher a idéia de um processo penal com qualquer índice de desvinculação do texto constitucional. E repetir a tese de que o processo penal que deve se adequar a Constituição e não o inverso. Quando travamos discussões sobre a efetiva garantia dos direitos fundamentais, são de vital importância que sejam observados os ensinamentos de Bobbio (1992, p.25): “[…] o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los. […]Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que,  apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.” Destarte, que não é suficiente o reconhecimento de todos os direitos e garantias fundamentais previstos nas Constituições democráticas se os mesmos não forem efetivamente aplicados aos seus destinatários. Pois, teríamos uma simples “folha de papel”. A Constituição de acordo com Ferdinand Lassale se consubstancia na soma dos fatores reais do poder dentro de uma sociedade. A título elucidativo permaneçamos com as palavras do mestre Lassale (2001, p. 37): “Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: “Esta árvore é uma figueira”. Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, destruiria estes a fábula, produzindo macas e não figos. Igual acontece com as constituições. De nada servirá o que escrever numa folha de papel, se não se justificar pelos fatos reais e efetivos do poder.” A Constituição Federal é a Lex Fundamentalis, é norteadora de todas as garantias e direitos assegurados aos cidadãos, no entanto, atualmente vem ganhando grande relevância as questões de direito penal internacional, como bem assinala Dias (2004, p. 10): “O direito penal é ainda hoje essencialmente direito intra-estadual, que encontra a sua fonte formal e orgânica na produção legislativa estadual e é aplicada por órgãos nacionais. Todavia, a partir da última década do séc. XX assistiu-se a um prodigioso incremento da relevância do direito internacional em matéria penal.” Ainda sobre direito penal internacional destacamos as palavras de Fernandes (2005, p.25): “Outra inclinação, na direção do sopro renovador dos direitos humanos, é o da internacionalização do direito processual penal e que se manifesta principalmente por duas formas: 1ª) a atribuição de status constitucional às normas de direitos humanos dos tratados regionais e internacionais; 2ª) o transito do direito interno para o direito internacional.” Lopes Jr. (2008, p.7) com maestria apresenta uma sólida argumentação a nossa indagação a cerca de ser o processo penal um direito constitucional aplicado, vejamos: “Somente a partir da consciência de que a Constituição deve efetivamente constituir (logo, consciência de que ela constiui-a-ação), é que se pode compreender que o fundamento legitimante da existência do processo penal democrático se dá através da sua instrumentalidade constitucional. Significa dizer que o processo penal contemporâneo somente se legitima à medida que se democratizar e for devidamente constituído a partir da Constituição.” (grifo nosso)   Logo, o processo penal somente será legítimo se sua aplicação passar pelo filtro constitucional, em outras palavras, se estiver adequado aos mandamentos constitucionais, pois como já foi dito o mais importante é evitar que os direitos sejam violados. No entanto, o “devido processo penal”, isto é, o processo penal filtrado pela Constituição não poderá ser pensado/utilizado como instrumento que leve a impunidade, pois como bem esclarece Lopes Jr. (2008, p.9): “O processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (direito penal), senão que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí porque se admite sua exigência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal). Assim, existe uma necessária simultaneidade e coexistência entre repressão ao delito e respeito às garantias constitucionais, sendo essa a difícil missão do processo penal.” (grifo nosso).   Por derradeiro, não podemos aceitar que os direitos e garantias fundamentais insculpidos na Carta Magna sejam desrespeitas no âmbito do processo penal. Caso aconteça, estaremos diante de graves violações aos direitos do homem, fato com o qual não podemos compactuar. Os direito e garantias fundamentais são frutos de uma longa luta travada pelos homens ao longo dos tempos. Assim, merece destaque as palavras de Ihering (2001, p. 27): “O fim do direito é a paz, o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver às ameaças da injustiça – e isso perdurará enquanto o mundo for mundo -, ele não poderá prescindir da luta. A vida do direito é a luta: luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos. Todos os direitos da humanidade foram conquistados pela luta; seus princípios mais importantes tiveram de enfrentar os ataques daqueles que a eles se opunham; todo e qualquer direito, seja o direito de um povo, seja o direito do indivíduo, só se afirma por disposição ininterrupta para a luta.” Não podemos olvidar que as diretrizes apresentadas pela Constituição devem impedir a presença, em termos de legislação infraconstitucional, de qualquer previsão que aponte para um sentido diverso, para uma violação de suas garantias e que, portanto, revele-se incompatível com a Lei Maior. 2- Breves comentários aos direitos fundamentais no âmbito do processo penal. 2.1- Do Inquérito Policial. O Inquérito Policial disciplinado nos arts. 4º a 23 do CPP é um procedimento administrativo investigativo. Onde o indiciando em nome do princípio da ampla defesa, tem a faculdade de utilizar a defesa técnica de acordo com a súmula Vinculante 14 do STF[2]. O que acaba com a celeuma sobre a possibilidade de defesa técnica pelo indiciado na fase de inquérito policial, pois a falta de oportunidade da defesa nessa fase é verdadeira afronta aos direitos fundamentais. E também atentatório aos direitos dos advogados previsto na Lei nº 8906/1994, nos arts. 6º, parágrafo único, e 7º, XIII e XIV. A edição da Súmula Vinculante 14 consubstancia os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); o direito de receber informações (art. 5º, XXXIII); do devido processo legal (art. 5º, LIV) e do contraditório e da ampla defesa ((art. 5º, LV). 2.2- Do direito a prova Diante das prova e as inviolabilidades constitucionais, Fernandes (2005, p. 112) argumenta que: “São várias as inviolabilidades afirmadas na Constituição Federal para resguardar a pessoa humana em seus direitos fundamentais. As provas obtidas com desrespeito a essas regras constituem prova ilícita e, assim, não podem ser admitidas, com a ressalva da aplicação, no caso, do princípio da proporcionalidade.” Merece destaque, no âmbito probatório, a plena aplicabilidade de todos os mandamentos constitucionais para evitar graves violações aos direitos humanos. No passado não muito distante, convivemos com graves violações, que hoje diante de um Estado Democrático de Direito não ousamos vislumbrar, a título elucidativo fiquemos com Foucault (2000, p.32-3): “Na França, como na maior parte dos países europeus – com a notável exceção da Inglaterra – todo o processo criminal, até a sentença, permanecia secreto: ou seja, opaco não só para o público, mas para o próprio acusado. O processo se desenrolava sem ele, ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os depoimentos, as provas. Na ordem da justiça criminal, o saber era privilegio absoluto da acusação. […] […] o rei queria mostrar com isso que a “força soberana” de que se origina o direito de punir não pode em caso algum pertencer a “multidão”. Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar. Mas o segredo não impedia que, para estabelecer a verdade, se devesse obedecer a certas regras.” Assim, temos que aos acusados em geral é legítimo o direito a utilização de todos os meios de prova admitidos. Em relação ao número de testemunhas ofende o princípio da ampla defesa e do devido processo legal, o juiz que impeça a oitiva de testemunha de defesa que esteja dentro do limite previsto pela lei.[3]  O entendimento é do ministro Celso de Mello onde sustentou a seguinte tese: “oferecido tempestivamente o rol de testemunhas até o número permitido, não tem o juízo o direito de indeferir a oitiva delas, sob pretexto de procrastinação ou que a pessoa (testemunha) nada sabe sobre os fatos” e afirmou também que “tenho para mim que se transgrediu, no caso, em detrimento do ora paciente, o direito à prova, que representa prerrogativa essencial que assiste a qualquer réu, independentemente da natureza do delito que lhe tenha sido imputado”. Entendimento firmado no julgamento do pedido de Habeas Corpus do ex-juiz João Carlos da Rocha Mattos. O ministro foi voto vencido na decisão tomada pela 2ª Turma. No entanto, merece atenção a leitura do seu voto: “HABEAS CORPUS 94.542-2 SÃO PAULO V O T O (vencido) O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Peço vênia para deferir o pedido de “habeas corpus”, pois entendo vulnerada, na espécie, a cláusula constitucional pertinente ao due process of law. Tenho para mim que se transgrediu, no caso, em detrimento do ora paciente, o direito à prova, que representa prerrogativa essencial que assiste a qualquer réu, independentemente da natureza do delito que lhe tenha sido imputado. Tenho acentuado, Senhora Presidente, em diversas decisões proferidas nesta Suprema Corte, a essencialidade desse direito básico – o direito à prova -, cuja inobservância, pelo Poder Público, qualifica-se como causa de invalidação do procedimento estatal instaurado contra qualquer pessoa, seja em sede criminal, seja em sede meramente disciplinar, seja, ainda, em sede materialmente administrativa: “- A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade do princípio que consagra o ‘due process of law’, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina. – Assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do ‘due process of law’ (CF, art. 5º, LIV) – independentemente, portanto, de haver previsão normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado -, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV), inclusive o direito à prova.- Abrangência da cláusula constitucional do ‘due process of law’.”(MS 26.358-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO) A importância do direito à prova, especialmente em sede processual penal, é ressaltada pela doutrina (ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO SCARANCE FERNANDES e ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “As nulidades no processo penal”, p. 143/153, itens ns. 1 a 6, 10ª ed., 2007, RT, v.g.), como se vê do claro magistério expendido pelo saudoso JULIO FABBRINI MIRABETE (“Código de Processo Penal Interpretado”, p. 492, item n. 209.2, 7ª ed., 2000, Atlas): “Oferecido tempestivamente o rol de testemunhas pela parte, até o número permitido, não tem o juiz o direito de indeferir a oitiva de qualquer uma delas, independentemente de justificação por parte do arrolante, sob o pretexto de que se visa a procrastinação ou de que a pessoa arrolada nada sabe sobre os fatos, nem mesmo quando deve ser ouvida em carta precatória. (…) Também não pode o juiz dispensar a oitiva de testemunha tempestivamente arrolada sem a desistência da parte interessada; ocorre, na hipótese, nulidade por cerceamento da acusação ou defesa. Trata-se, aliás, de nulidade que não precisa ser argüida.” (grifei) Essa orientação reflete-se, por igual, na jurisprudência dos Tribunais em geral, valendo referir, ante a sua relevância, julgados que reconhecem qualificar-se, como causa geradora de nulidade processual absoluta, por ofensa ao postulado constitucional do “due process of law”, a decisão judicial que, mediante “exclusão indevida de testemunhas”, compromete e impõe gravame ao direito de defesa do réu, sob a alegação de que as testemunhas, embora tempestivamente arroladas, com estrita observância do limite máximo permitido em lei, nada saberiam sobre os fatos objeto da persecução penal ou, então, que a tomada de depoimento testemunhal constituiria manobra meramente protelatória do acusado (RJDTACRIM/SP 11/68-69 – RJTJESP/LEX 117/485 – RT 542/374 – RT 676/300 – RT 723/620 – RT 787/613-614, v.g.).Em suma: por representar uma das projeções concretizadoras do direito à prova, configurando, por isso mesmo, expressão de uma inderrogável prerrogativa jurídica, não pode ser negado, ao réu – que também não está obrigado a justificar ou a declinar, previamente, as razões da necessidade do depoimento testemunhal -, o direito de ver inquiridas as testemunhas que arrolou em tempo oportuno e dentro do limite numérico legalmente admissível, sob pena de inqualificável desrespeito ao postulado constitucional do “due process of law”:“Prova – Testemunha – Oitiva indeferida por não ter o juiz se convencido das razões do arrolamento – Inadmissibilidade – Direito assegurado independentemente de justificação.– Não pode o juiz indeferir a oitiva de testemunha, sob pena de transgredir o direito límpido que assiste às partes de arrolar qualquer pessoa que não se insira nas proibidas, independentemente de justificação.” (RT 639/289, Rel. Des. ARY BELFORT – grifei)“Cerceamento de Defesa – Inquirição de testemunhas por rogatória indeferida a pretexto de ter intuito procrastinatório – Inadmissibilidade – Preliminar acolhida – Processo anulado – Inteligência do art. 222, e seus §§, do CPP.- Não é permitido ao juiz, sem ofensa ao preceito constitucional que assegura aos réus ampla defesa, inadmitir inquirição de testemunhas por rogatória, a pretexto de que objetiva o acusado procrastinar o andamento do processo.” (RT 555/342-343, Rel. Des. CUNHA CAMARGO – grifei) São estas, Senhora Presidente, as razões que me levam, com toda a vênia da ilustrada maioria, a conceder, ao ora paciente, a ordem de “habeas corpus impetrada.É o meu voto.Ministro Celso de Mello.” (Fonte: Consultor Jurídico) O   ministro Eros Grau no seu voto contestou as alegações da defesa do ex-juiz. O referido ministro se reportou à jurisprudência do próprio STF no sentido de que “não constitui cerceamento de defesa a negativa de diligências, quando desnecessárias para o órgão julgador”. 2.3- Do interrogatório e o direito ao silêncio. A Lex Fundamentalis de 1988 proclama no seu art. 5º, LXIII, “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. A regra constitucional ora transcrita deixa vislumbrar a intenção de garantir, entre os direitos fundamentais, a impossibilidade de aquele que está sendo preso ser obrigado a produzir provas contra si próprio. Assim, sendo um mandamento constitucional o direito ao silêncio deverá ser também cominado aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, independentemente de estarem ou não sendo submetidos à prisão. A Constituição garante o direito ao silêncio, então qualquer outra norma infraconstitucional que contrarie o mandamento constitucional padecerá de inconstitucionalidade.  Assim, questionava-se sobre a constitucionalidade do art. 186 do Código de Processo Penal, que apresentava, até 2003, a seguinte redação: “Art. 186. Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa“, tal artigo padecia de flagrante inconstitucionalidade, haja vista, a previsão de que o silêncio poderia ser interpretado em prejuízo do acusado, como é possível um direito que atue para o prejuízo do seu destinatário? Como não é inoportuno repetir, o processo penal deve ser adequado a Constituição, e não o contrário. Assim, foi realizada a alteração art. 186 do CPP para sua compatibilização com a Constituição. Vejamos: “Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.” “Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.  (Redação dada pela Lei n. 10.792/03). A adequação constitucional restou perfeita. No entanto, o art. 198 do CPP, persiste na inconstitucionalidade, haja vista, expressar que o silêncio poderá ter interpretação prejudicial à defesa. Vejamos: “Art. 198. O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz” (grifo nosso). A menos que o convencimento seja aplicado para beneficiar, e não para prejudicar o réu, estaremos diante de afronta ao direito constitucional ao silêncio. Não podemos olvidar, que o não-esclarecimento ao preso, investigado ou réu, quanto à possibilidade de invocação do direito constitucional ao silêncio em relação aos atos aos quais irá se submeter implica na nulidade destes, de acordo as reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal. O direito ao silêncio é apresentado com maestria na lição de Lopes Jr. (2005, p.237) quando explicou que: “O direito de calar também estipula um novo dever para a autoridade policial ou judicial que realiza o interrogatório: o de advertir o sujeito passivo de que não está obrigado a responder as perguntas que lhe foram feitas. Se calar constitui um direito do imputado e ele tem de ser informado do alcance de suas garantias, passa a existir o correspondente dever do órgão estatal a quem assim o informa, sob pena de nulidade do ato por violação de uma garantia constitucional. O direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, insculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silencio quando do interrogatório. Sublinhe-se: do exercício do direito de silêncio não pode nascer nenhuma presunção de culpabilidade ou qualquer tipo de prejuízo jurídico para o imputado.” (grifos do autor). Desta forma, a inclusão do direito ao silêncio na Constituição representa uma grande conquista, com o objetivo de desestimular a pratica de atos questionáveis para a apuração de fatos, prática até comum em períodos ditatoriais, mas que não podem coexistir num Estado Democrático de Direito. Outro ponto que merece atenção é o interrogatório por videoconferência previsto no parágrafo segundo do art.185 do CPP. A legislação foi modificada visado a possibilidade de realização de interrogatório do preso no estabelecimento prisional, sem a presença física do juiz, por meio de um sistema audiovisual em tempo real (interrogatório on-line). As principais justificativas oferecidas pela lei são a preservação da segurança pública e para evitar a fuga dos presos com o deslocamento entre presídios e fóruns. A aversão ao chamado interrogatório on-line assenta seus argumentos na afronta aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório (artigo 5º, incisos LIV e LV).  Haja vista, que o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário, preveem o direito de o réu ser conduzido à presença física do juiz natural. O interrogatório é a uma oportunidade impar que tem o magistrado para formar o juízo a respeito do acusado. Somente face a face com o acusado o juiz teria as condições básicas e necessárias para o julgamento do caso concreto e, ainda, observar se o réu está em perfeitas condições físicas e mentais, o que poderá passar despercebido com a utilização do sistema da videoconferência.  Assim, muitos defendem que o interrogatório realizado pela videoconferência compromete o pleno exercício do direito à autodefesa. Imaginemos a situação de um acusado que sofre maus tratos na prisão, será que ele teria seus direitos resguardados ao fazer tal denúncia? De tal sorte, que o § 2º do art.185 do CPP, disciplina o uso do interrogatório por videoconferência como excepcional e com fundamentação da decisão pelo juiz. O problema surge da analise dos seus incisos, onde é constante a presença de conceitos por demais subjetivos como prevenir riscos a segurança pública, a ordem pública, se usada uma interpretação por demais extensiva a possibilidade excepcional de interrogatório por videoconferência culminará como regra geral. 2.4- princípio da presunção de inocência. Partiremos da distinção apresentada por Nucci (2006, p.75) entre os conceitos de direito processual penal e processo penal democrático: “Direito processual penal é o corpo de normas jurídicas cuja finalidade é regular a persecução penal do Estado, através de seus órgãos constituídos, para que se possa aplicar a norma penal, realizando-se a pretensão punitiva no caso concreto. Processo Penal Democrático: cuida-se da visualização do processo penal a partir dos postulados estabelecidos pela Constituição Federal, no contexto dos direitos e garantias humanas fundamentais, adaptando o Código de Processo Penal a essa realidade, ainda que, se preciso for, deixe-se de aplicar legislação infraconstitucional defasada.” Assim, um processo penal democrático deverá albergar os princípios constitucionais explícitos e implícitos concernentes ao indivíduo, a relação processual e a atuação do Estado. Segundo o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, qualquer acusado é presumidamente inocente até que a sentença condenatória transitada em julgado, de acordo com o art.5º, LVII da Constituição Federal. Assim, o ônus da prova caberá a acusação. Ainda no lastro da lição de Nucci (2006, p.78-9) temos que: “Por outro lado, confirma a excepcionalidade e a necessidade das medidas cautelares de prisão, já que indivíduos inocentes somente podem ser levados ao cárcere quando realmente for útil a instrução criminal e a ordem pública. No mesmo prisma, evidencia que outras medidas constritivas aos direitos individuais devem ser excepcionais e indispensáveis, como ocorre com a quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico (direito constitucional de proteção à intimidade), bem como com a violação de domicilio em virtude de mandado de busca (direito constitucional à inviolabilidade de domicilio).  Integra-se ao princípio da prevalência do interesse do réu (in dubio pro reo), garantindo que, em caso de duvida, deve sempre prevalecer o estado de inocência, absolvendo-se o acusado. Reforça, ainda, o principio penal da intervenção mínima do Estado na vida do cidadão, uma vez que a reprovação penal somente alcançará aquele que for efetivamente culpado. Finalmente, impede que as pessoas sejam obrigadas a se auto-acusar, consagrando o direito ao silêncio.” Com isso as medidas que restrinjam os direitos e garantias individuais devem ser excepcionais e justificadamente comprovadas, sob pena de grave violação dos direitos e garantias fundamentais. CONCLUSÂO: Cumpre neste momento, respondermos se o processo penal é um direito constitucional aplicado? Agora, após toda a discussão doutrinária apresentada para chegarmos a uma resposta afirmativa, fato que se dará unicamente se, data venia, o processo penal for aplicado pela perspectiva constitucional, pois somente com a adequação constitucional do processo penal é que teremos a plena aplicabilidade das garantias constitucionais no âmbito penal. Não nos olvidemos das palavras do mestre Aury Lopes Jr. (2008, p.10) quando diz que “o processo penal deve ser lido à luz da Constituição e não ao contrário”. Assinale-se, por fim, que o processo penal é um direito constitucional aplicado quando utilizado em prol da dignidade da pessoa humana. A liberdade e a vida são direitos consagrados constitucionalmente e somente poderão vim a ser restringidos após o “devido processo penal” que somente será legítimo quando em consonância aos ditames da Constituição pátria. A pena por si só não tem o condão de resolver os problemas sociais. Devemos paralelamente pensar na educação, saúde, programas sociais efetivos, não eleitoreiros, que visem a inclusão social, que corporifiquem o mandamento constitucional maior da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-66/o-processo-penal-e-um-direito-constitucional-aplicado/
A subversão principiológica do art. 156, I do Código de Processo Penal e sua necessária interpretação conforme a Constituição
O breve estudo que segue trata da imperiosa necessidade de não sufocar os valores democráticos mesmo diante da lei.
Direito Processual Penal
1. A instrumentalidade do Processo Penal O Direito Penal tem a função primordial de proteção de bens jurídico-penais da mais alta valoração. Como bem preceitua o ilustre Régis Prado, “O Direito regula o convívio social, assegurando-lhe as condições mínimas de existência, de desenvolvimento e paz. Tanto assim é que sociedade e Direito se pressupõem mutuamente”. O combate à lesões aos bens jurídicos de maior valor é relevante frente de atuação na busca pela continuação da sociedade[1]. Por sua vez, o Direito Processual, apesar de constituir ciência autônoma, é, notoriamente, o instrumento para “tornar realidade o direito penal. Enquanto este estabelece sanções aos possíveis transgressores das suas normas, é pelo Processo Penal que se aplica a sanctio júris”.[2] O Processo Penal, como norma infraconstitucional, deve ser interpretado e realizado sob os efeitos da Carta Constitucional e de seus Princípios e garantias individuais. Os conceitos de Constituições, na doutrina, já se determinaram pelos valores, ao propósito, o professor Luisi em obra histórica:  “As constituições promulgadas nos últimos decênios se caracterizam pela presença no elenco de suas normas de instâncias de garantia de prerrogativas individuais, e concomitantemente de instâncias que traduzem imperativos de tutelas de bens transindividuais ou coletivos. Ou seja: os princípios do Rechsstaats e, ao mesmo tempo do Sozialstaats. Os primeiros configuram-se em preceitos asseguradores dos direitos humanos e da cidadania. Os segundos se fazem presentes na tutela dos valores sociais”. Os postulados fundamentais foram inseridos, portanto, nos ordenamentos como reação às lesões permitidas e produzidas pelo Estado contra o cidadão, o qual, por muitas vezes perdeu sua característica mais óbvia a de ser humano. As normas processuais, com base no teor constitucional, devem conter os ensinamentos e a carga de valores estabelecidos, como o Princípio da Imparcialidade do Juízo. Tal Princípio determina que deve atuar o magistrado de forma a não prejudicar ou beneficiar qualquer parte, prova, ato ou situação do processo. O respeito à imparcialidade forma a chamada capacidade subjetiva, sem a qual o magistrado não pode exercer sua função, sob pena de ferir a Justiça. 2. O novo art. 156, I: A Reforma Processual Penal, todavia, com a Lei 11.690/08, inseriu no ordenamento a possibilidade de o magistrado, antes mesmo de iniciada a ação penal, produzir provas. O art. 156, I determina:  “Art. 156.A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida” Apesar do critério de proporcionalidade, preceito fundamental consagrado na nova ordem constitucional, o ferimento é flagrante, visto que não há ação penal instaurada ou acusação protocolada de forma regular, constituindo lesão ao Princípio da Inércia, Imparcialidade, Devido Processo Legal, além de ocorrer a formulação de uma prova contaminada. A situação é agravada pelo contexto de delírio legiferante estabelecido no Brasil pela crescente criminalidade.[3] 3. A violação da Paridade de Armas na busca pela Verdade Real O processo pressupõe que uma parte – seja o Ministério Público ou a parte ofendida – inicie o processo penal, já há a histórica determinação do ne procedat judex ex officio, ou seja, não pode o juiz iniciar o processo sem que tenha sido provocado por qualquer das partes. Esse preceito, no entanto, não é respeitado com a reforma processual, visto que pode o juiz, mesmo sem iniciar a ação penal, produzir provas de ofício. Não há qualquer acusação pendente e, ainda assim, o cidadão sofre com a pressão social de ter contra si a instrução de provas antecipada. O juiz – que tem garantidos diversos direitos apenas para ter possibilidade de um julgamento justo e imparcial – avança sobre o acusado buscando produzir provas contra este sob a justificativa da verdade real. A doutrina já se manifestou sobre a vedação, mesmo após a vigência das reformas do Código de Processo Penal, havendo acertada determinação por limitar a atuação das partes: “ATENTADOS AO PUDOR CONTINUADOS. SISTEMA ACUSATÓRIO. GESTÃO DA PROVA. TESTEMUNHA OUVIDA DE OFÍCIO PELO JUIZ. NULIDADE. FRAGILIDADE PROBATÓRIA. ABSOLVIÇÃO. 1. A oficiosidade do Juiz na produção de prova, mesmo que sob a escusa da pretensa busca da ¿verdade real¿, é procedimento eminentemente inquisitório e que agride o critério basilar do Sistema Acusatório: a gestão da prova como encargo específico da acusação e da defesa. Precedentes da Câmara. 2. A condenação só pode emergir da convicção plena do julgador ¿ sua base ética indeclinável. A prova controversa, insegura e que não afasta todas as dúvidas possíveis enseja um desate favorável ao acusado, em homenagem ao consagrado princípio in dubio pro reo. Deram provimento ao apelo. UNÂNIME. (Apelação Crime Nº 70026105965, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 17/09/2008)” Novamente, o mesmo ilustre Relator ensina sobre a distinção das funções, necessária aplicação ao sistema de acusação e defesa: “PROCESSUAL PENAL. ¿HABEAS CORPUS¿. SISTEMA ACUSATORIO. PROVA. GESTAO. PROVA TESTEMUNHAL PRODUZIDA DE OFICIO PELO JUIZ. ILEGITIMIDADE. – NULO E O ATO PROCESSUAL EM QUE RESTAM AGREDIDOS OS MANDAMENTOS CONSTITUCIONAIS SUSTENTADORES DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ACUSATORIO. – A OFICIOSIDADE DO JUIZ NA PRODUCAO DE PROVA, SOB AMPARO DO PRINCIPIO DA BUSCA DA ¿VERDADE REAL¿, E PROCEDIMENTO EMINENTEMENTE INQUISITORIO E AGRIDE O CRITERIO BASILAR DO SISTEMA ACUSATORIO: A GESTAO DA PROVA COMO ENCARGO ESPECIFICO DA ACUSACAO E DA DEFESA. – LICAO DE JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO. – ORDEM CONCEDIDA, POR UNANIMIDADE. (Habeas Corpus Nº 70003938974, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 24/04/2002)” Tal exposto determina que a produção de provas, para condenar, deve ser buscada pelo órgão constitucionalmente investido para isto, de mesma forma, a defesa recebe seu arcabouço para proceder com as garantias dos direitos. Assim, o magistrado atuar na produção de provas não atende ao próprio valor constitucional. A Paridade de Armas fica cerceada, já que contra o acusado surge o aparato do Estado, já com a função de parcialidade, e também o magistrado, subvertendo sua própria função sob a bandeira de uma inexistente Verdade Real. Notório é o fato de que se o magistrado requer a produção de determinada prova tal manifestação resulta de qualquer fundamento particular, já aniquilando, sem margens, a imparcialidade. Acertada é a crítica de Borges de Mendonça: “poderá estar se vinculando psicologicamente à causa, assim como antecipando eventual entendimento sobre o caso, justamente o que o princípio da inércia ou da iniciativa das partes visa resguardar”[4]. As provas sustentam versões apresentadas pela acusação ou pela defesa. Tal arcabouço tem a função de convencer o magistrado, o qual, segundo preciso ensinamento de Aury Lopes, elege qual versão considera mais próxima aos fatos ocorridos em outro momento.[5] Assim, o magistrado ao atuar como inquisitor já manifestará parcialidade para uma das partes e já estará subvertendo a função democrática do processo justo, objetivo da República. 4. Impulso oficial e Juiz natural O magistrado atua segundo as regras democráticas, as quais estão substancialmente dispostas em preceitos fundamentais, os quais vinculam sua atuação e a limitam, sob pena de nulidade dos atos ou mesmo de desrespeito do julgador às normas sociais. Entre tais normas, o Princípio da Inércia, o qual determina que o magistrado apenas atue quando provocado pelas partes do processo. A busca de provas viola, evidentemente, tal preceito, além de informar o magistrado de uma situação da qual não há, de fato, informações precisas, sobre o objeto da investigação, o delito, o réu. Além de tal situação, o juiz estará contribuindo para violar a finalidade de paz de que trata o direito, já que causará, de fato, atos perturbadores aos cidadãos investigados, visto que ter um processo já é lesivo, ainda mais, na sociedade, quando o processo teve início com atos de um juiz. Os Tribunais já se definiram: “PROCESSUAL PENAL. SISTEMA ACUSATÓRIO. PROVA. GESTÃO. ARTIGO 156, DO CPP. AGRESSÃO AO ARTIGO 129, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AO JUIZ É VEDADO PERSEGUIR PROVA. PALAVRA DA VÍTIMA. AUSÊNCIA DE VALOR PROBATÓRIO ABSOLUTO. – O texto do artigo 156, do CPP, proclamado pela acusação, fere expressamente a norma constitucional, quer genericamente diante da recepção do sistema processual acusatório, quer específicamente em seu artigo 129, I (onde resguarda o princípio da inércia da jurisdição): eis a regra básica do jogo no sistema processual democrático: um acusa (e prova), outro defende e outro julga – não se pode cogitar da inquisitorial relação incestuosa entre acusador e julgador. – A principiologia constitucional suplantou – desde muito – estratagemas como a crença mitológica de busca da ”verdade real”. Dela o que se alcança é o resultado das limitações históricas, culturais e ideológicas de cada um, exteriorizado na interpretação dos fenômenos mundanos. – Não prestar valor absoluto à palavra da vítima e não violar o princípio da inércia da jurisdição para buscar provas afasta a atividade jurisdicional dos dogmas processuais inquisitórios impregnados na legislação infraconstitucional e na atuação jurisdicional pátrias. – À unanimidade negaram provimento ao apelo. (Apelação Crime Nº 70006183826, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 28/05/2003)” Assim, fica o magistrado vinculado as provas, já atacando a Constituição e, ainda mais grave o dano, esta parte processual não pode ser alterada, pois há o juiz natural. O Egrégio Tribunal:  “Apelação-crime. Furtos. Nulidades. (I) Laudo pericial juntado aos autos sem que fosse dada vista as partes; perícia que tem vinculação com tese defensiva. Agressão aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. (II) Princípio da identidade física do juiz: a teor do disposto no art. 399, § 2º, do CPP, o magistrado que preside a instrução deve prolatar a sentença, salvo exceções legais. De ofício, prejudicado o apelo defensivo, decretaram a nulidade do processo a partir da sentença. (Apelação Crime Nº 70029072451, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 08/04/2009)” A prova já contaminada e aniquilação de princípios não podem sobreviver, contudo, o juiz natural impede a alteração do julgador, assim, determina-se a nulidade absoluta do ato em razão do combate constitucional causado. Jacinto Nelson de Mirando Coutinho determina:  “Como se sabe, o princípio do devido processo legal exige que o órgão julgador seja submetido ao princípio da inércia, buscando garantir, ao máximo, a sua imparcialidade e eqüidistância das partes. Com efeito, quando se autoriza ao juiz a instauração ex-officio do processo, como era típico no sistema inquisitório puro, permite-se a formação daquilo que Cordero chamou de “quadro mental paranóico”, ou seja, abre-se ao juiz a “possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a ‘sua’ versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro.”[6] Notório o fato, com efeito, de que a inércia impede que a parcialidade acompanhe o processo, visto que o magistrado que busca provas determina-se por uma razão, a qual pode estar ligada apenas a elementos particulares, já que nem mesmo processo e, com efeito, limites existem. Os direitos fundamentais, como menciona Salo de Carvalho, adquiriram o caráter de intangibilidade, não podendo ser afastados do processo penal por qualquer razão, sendo, portanto, limites do processo.[7] Assim, não pode haver ataque por parte do julgador aos direitos fundamentais, havendo respeito obrigatório a Paridade de Armas e a Ampla Defesa. Novamente, lição de Coutinho sobre a parcialidade: “O importante, enfim, neste tema, é ter-se um julgador consciente das suas próprias limitações (ou tentações?), de modo a resguardar-se contra seus eventuais prejulgamentos, que os tem não porque é juiz, mas em função da sua ineliminável humanidade.”[8] Com efeito, necessário o respeito do julgador a Constituição, já que este como supraparte, apenas em razão de sua imparcialidade, não estruturar sua atuação sobre o ataque constitucional subversivo. 5 Conclusão Diante das razões expostas, anota-se que é necessário que o magistrado assegure a característica de imparcialidade, evitando aniquilar os dispositivos constitucionais na busca de uma inexistente verdade real. Deve haver, de fato, busca pela proteção dos valores, como determina Alves Gomes: “Em uma sociedade democrática, o Direito, ao regrar comportamentos, deve orientar-se por princípios de justiça e preocupar-se com a proteção de todas as modalidades de valores fundamentais aos seres humanos”[9]. A busca, com efeito, deve ser por assegurar os objetivos de Justiça vistas na Carta Democrática, sob pena de atuar contra sua própria função.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-66/a-subversao-principiologica-do-art-156-i-do-codigo-de-processo-penal-e-sua-necessaria-interpretacao-conforme-a-constituicao/
O fim do protesto por novo júri e a questão do direito intertemporal
O artigo analisa a revogação dos arts. 607 e 608 do Código de Processo Penal, por força da promulgação da Lei nº. 11.689/2008 que modificou os dispositivos processuais relativos ao procedimento do Júri. É feita uma abordagem sob o aspecto da sucessão das leis processuais penais, concluindo-se que sendo normas processuais penais materiais, e mais benéficas, devem ter incidência após a sua revogação para atingir fatos ocorridos durante a sua vigência.
Direito Processual Penal
1. Introdução Foi promulgada e publicada a Lei nº. 11.689/2008, revogando, no seu art. 4o,  o Capítulo IV do Título II do Livro III do Código de Processo Penal, extinguindo o protesto por novo júri. Esta lei, que entrou em vigor no dia 11 de agosto de 2008[1], originou-se do Projeto de Lei nº. 4.203/01 e passou a estabelecer novas regras para o procedimento a ser adotado no julgamento dos crimes dolosos contra a vida e os que lhe forem conexos (art. 78, I do Código de Processo Penal). O então Ministro da Justiça, Dr. José Carlos Dias, ao assumir o Ministério, editou o Aviso nº. 1.151/99, convidando o Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDPa apresentar uma proposta de reforma do nosso Código de Processo Penal. Este mesmo Ministro, agora por via da Portaria nº. 61/00, constituiu uma Comissão para o trabalho de reforma, tendo como membros os juristas Ada Pellegrini Grinover (Presidente), Petrônio Calmon Filho (Secretário), Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti (que mais tarde saiu, sendo substituído por Rui Stoco), Rogério Lauria Tucci e Sidnei Beneti. Com a inesperada e lamentável saída do Ministro Dias, o novo titular da Pasta, Dr. José Gregori, pela Portaria nº. 371/00, confirmou a Comissão anteriormente formada, com a substituição já referida. Ao final dos trabalhos, a Comissão de juristas entregou ao Ministério da Justiça, no dia 06 de dezembro de 2000, sete anteprojetos que, por sua vez, originaram os seguintes projetos de lei: 1º.) Projeto de lei nº. 4.209/01: investigação criminal; 2º.) Projeto de lei nº. 4.207/01: suspensão do processo/procedimentos; 3º.) Projeto de lei nº. 4.205/01: provas; 4º.) Projeto de lei nº. 4.204/01: interrogatório/defesa legítima; 5º.) Projeto de lei nº. 4.208/01: prisão/medidas cautelares e liberdade; 6º.) Projeto de lei nº. 4.203/01: júri; 7º.) Projeto de lei nº. 4.206/01: recursos e ações de impugnação. Alguns destes projetos continuam em tramitação no Congresso Nacional; outros já foram sancionados, entre os quais os que tratam sobre provas, interrogatório e Júri. 2. O Código de Processo Penal Como se sabe, o nosso Código de Processo Penal é do ano de 1941 e ao longo desse período poucas alterações sofreu em que pese serem evidentes as mudanças sociais ocorridas no País e tendo em vista a nova ordem constitucional vigente. O seu surgimento, em pleno Estado-Novo[2], traduziu de certa forma a ideologia de então, mesmo porque “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas” (grifo nosso).[3] À época tínhamos em cada Estado da Federação um Código de Processo Penal, pois desde a Constituição Republicana a unidade do sistema processual penal brasileiro fora cindida, cabendo a cada Estado da Federação a competência para legislar sobre processo, civil e penal, além da sua organização judiciária. Segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (…) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (…) ”[4] Como notara o mestre Frederico Marques, “o golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.”[5] Até que em 03 de outubro de 1941 promulgou-se o Decreto-Lei nº. 3.689, que entraria em vigor a partir de 1º. de janeiro do ano seguinte; para resolver principalmente questões de natureza de direito intertemporal, promulgou-se, também, o Decreto-Lei nº. 3.931/41, a Lei de Introdução ao Código de Processo Penal. Este Código, elaborado, portanto, sob a égide e “os influxos autoritários do Estado Novo”, decididamente não é, como já não era “um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal”, como dizia Frederico Marques. Segundo o mestre paulista, “continuamos presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do sistema escrito (…) O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados Brasileiros. (…) A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de por cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável confusionismo e absoluta falta de técnica.”[6] Assim, se o velho Código de Processo Penal teve a vantagem de proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe consigo, até por questões históricas, o ranço de um regime totalitário e contaminado pelo fascismo, ao contrário do que escreveu na exposição de motivos o Dr. Francisco Campos, in verbis: “Se ele (o Código) não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais.” É bem verdade que ao longo dos seus 60 anos de existência, algumas mudanças pontuais foram marcantes e alvissareiras como, por exemplo, o fim da prisão preventiva obrigatória com a edição das Leis de nºs. 5.349/67, 8.884/94, 6.416/77 e 5.349/67; a impossibilidade de julgamento do réu revel citado por edital que não constituiu advogado (Lei nº. 9.271/96); a revogação do seu art. 35, segundo o qual a mulher casada não poderia exercer o direito de queixa sem o consentimento do marido, salvo quando estivesse separada dele ou quando a queixa contra ele se dirigisse (Lei nº. 9.520/97); modificações no que concerne à prova pericial (Lei nº. 8.862/94); a possibilidade de apelar sem a necessidade de recolhimento prévio à prisão (Lei nº. 5.941/73); a revogação dos artigos atinentes ao recurso extraordinário (Lei nº. 3.396/58), etc. Por outro lado, leis extravagantes procuraram aperfeiçoar o nosso sistema processual penal, podendo citar as que instituíram os Juizados Especiais Criminais (Leis nºs. 9.099/95 e 10.259/01), e que constituem, indiscutivelmente, o maior avanço já produzido em nosso sistema jurídico processual, desde a edição do Código de 1941. Há, ainda, a que disciplinou a identificação criminal (Lei nº. 10.054/00); a proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas (Lei nº. 9.807/99); a que possibilitou a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais (Lei nº. 9.800/99); a lei de interceptações telefônicas (Lei nº. 9.296/96); a Lei nº 8.038/90, que disciplina os procedimentos nos Tribunais, e tantas outras, algumas das quais, é bem verdade, de duvidosa constitucionalidade (para não dizer de absoluta inconstitucionalidade). 3. A Reforma do Código de Processo Penal Pois bem. Este é o quadro atual. Além de algumas alterações pontuais, seja no próprio texto consolidado, seja por intermédio de leis esparsas, nada mais foi feito para modernizar o nosso diploma processual penal, mesmo após a nova ordem constitucional consagrada pela promulgação da Carta Política de 1988. E, assim, o atual código continua com os vícios de 60 anos atrás, maculando em muitos dos seus dispositivos o sistema acusatório, não tutelando satisfatoriamente direitos e garantias fundamentais do acusado, refém de um excessivo formalismo (que chega a lembrar o velho procedimentalismo), assistemático e confuso em alguns dos seus títulos e capítulos, bastando citar a disciplina das nulidades.[7] Destarte, podemos apontar como finalidades precípuas desta reforma a modernização do velho código e a sua adaptação ao sistema acusatório (objetivo, aliás, ainda não inteiramente alcançado), com os seus consectários lógicos, tais como a distinção nítida entre o julgador, o acusador e o acusado, a publicidade, a oralidade, a ampla defesa, o contraditório, etc. Sobre o sistema acusatório, assim escreveu Vitu: “Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. “Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré.  “Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”[8] Ademais, a reforma está mais ou menos consentânea com os princípios estabelecidos pelo Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero América. Neste Código-Modelo há alguns princípios básicos, a saber: 1) “O julgamento e decisão das causas penais será feito por juízes imparciais e independentes dos poderes do Estado, apenas sujeitos à lei.” (art. 2º.). 2)  “O imputado ou acusado deve ser tratado como inocente durante o procedimento, até que uma sentença irrecorrível lhe imponha uma pena ou uma medida de segurança.” (art. 3º.). 3) “A dúvida favorece o imputado”. (idem). 4) “É inviolável a defesa no procedimento.” (art. 5º.). Tais idéias serviram também de base para outras reformas feitas (ou por serem realizadas) em outros países, como a Argentina, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Chile, Venezuela, Bolívia, Paraguai, Honduras, Equador, Itália e Portugal.[9] Aliás, “el Derecho procesal penal de los países latinoamericanos, observado como conjunto, ingresó, a partir de la década del’80, en un período de reformas totales, que, para el lector europeo, puede compararse con la transformación que sufrió el Derecho procesal penal de Europa continental durante el siglo XIX. No se trata, así, de modificaciones parciales a un sistema ya adquirido y vigente, sino, por lo contrario, de una modificación del sistema según otra concepción del proceso penal. Descrito sintéticamente, se puede decir que este proceso de reformas consiste en derogar los códigos antiguos, todavía tributarios de los últimos ejemplos de la Inquisición – recibida con la conquista y la colonización del continente -, para sancionar, en más o en menos, leyes procesales penales conformes al Estado de Derecho, con la aspiración de recibir en ellas la elaboración cumplida en la materia durante el siglo XX.”[10] Pode-se, portanto, inferir que as reformas processuais penais já levadas a cabo em vários países da América Latina e por virem em tantos outros, são frutos, na verdade, de modificações no sistema político destes países que foram, paulatinamente, saindo de períodos autoritários para regimes democráticos. É como se a redemocratização impulsionasse o sistema processual do tipo inquisitivo para o sistema acusatório. Aliás, é inquestionável a estreita ligação entre o sistema processual penal de um país e o seu sistema político. Um país democrático[11] evidentemente deve possuir, até porque a sua Constituição assim o obriga, um Código de Processo Penal que adote o sistema acusatório, eminentemente garantidor. Ao contrário, em um sistema autoritário, o processo penal, a serviço do Poder, olvida os direitos e garantias individuais básicos, privilegiando o sistema inquisitivo, caracterizado, como genialmente escreveu Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”. O sistema inquisitivo, portanto, “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.[12] Assim, a “uniformidade legislativa latino-americana – na verdade compreendendo agora a comunidade cultural de fala luso-espanhola – apoiada em bases comuns e sem prejuízo das características próprias de cada região, é uma velha aspiração de muitos juristas do nosso continente. Além disso, ela foi o sonho de alguns grandes homens, fundadores de nossos países ou de nossas sociedades políticas. (…) “Em nossos países, geralmente, a justiça penal tem funcionado como uma ‘caixa-preta’, afastada do controle popular e da transparência democrática. O apego aos rituais antigos; As fórmulas inquisitivas, que na cultura universal já constituem curiosidades históricas; a falta de respeito à dignidade humana; a delegação das funções judiciais; o segredo; a falta de imediação; enfim, um atraso político e cultural já insuportável, tornam imperioso começar um profundo movimento de reforma em todo o continente.”[13] É evidente que o ideal seria uma reforma total, completa, que propiciasse uma harmonia absoluta no sistema processual penal, mas, como sabemos, se assim o fosse as dificuldades que já existem hoje, seriam ainda maiores. Preferiu-se, de outro modo, uma reforma que, se não chega a ser total (o que seria de difícil aprovação, à vista das evidentes dificuldades de natureza legislativa que todos nós conhecemos), também não chega a ser simplesmente pontual, até porque, como esclarece Ada, não incide “apenas sobre alguns dispositivos, mas toma por base institutos processuais inteiros, de forma a remodelá-los completamente, em harmonia com os outros.” Não é, portanto, uma reforma isolada, mas “tópica”.[14] Este movimento reformista não se limita à América Latina. Na Europa também se encontram em franco desenvolvimento reformas no sistema processual penal. A título de exemplo, podemos referir a Alemanha, onde “también el Derecho procesal penal há sido modificado en varias ocasiones entre 1997-2000”[15], a Itália[16] e a Polônia, país que “desde hace 12 años se realizan reformas en la legislación, relacionadas con el cambio de régimen político, económico y social, que tuvo lugar en 1989 y también con la necesidad de adaptar las soluciones jurídicas polacas a las soluciones aceptadas en la Unión Europea. (…) Las reformas de la legislación penal e procesal penal constituyen una parte esencial del ‘movimiento legislativo reformador’, segundo nos informa a Drª. Barbara Kunicka-Michalska, do Instituto de Ciências Jurídicas da Academia de Ciências da Polônia, em Varsóvia.[17] Recentemente, o Senado Federal instituiu uma comissão de juristas para propor um novo Código de Processo Penal; a comissão pretende concluir a redação final no mês de março de 2009, para que seja submetida a consulta pública. Segundo o presidente da comissão, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Hamilton Carvalhido, um dos principais objetivos das propostas é o de dar maior celeridade à Justiça. Um das medidas seria o fim da participação dos juízes na tramitação do inquérito policial, o qual ficaria a cargo da autoridade policial e do Ministério Público. A diligência policial não exigiria mais autorização judicial, apenas do Ministério Público.  O Ministro Carvalhido defendeu a criação da figura do juiz de garantia, a quem caberia exercer o controle sobre a legalidade da investigação, inclusive quanto à autorização para interceptações telefônicas, solicitadas pela autoridade policial. Tal juiz sairia da causa a partir do oferecimento da denúncia, dando lugar a outro magistrado, que teria maior independência para avaliar a validade das provas colhidas no inquérito. Um dos pontos do anteprojeto, que deve despertar maior polêmica, é o fim da prisão especial para pessoas com diploma de nível superior, que ficaria restrita apenas a algumas autoridades. As prisões preventivas devem ter prazo máximo delimitado. “É preciso continuar essa mudança de mentalidade de ver na [prisão] preventiva uma antecipação da sanção penal, embora não haja ainda julgamento definitivo, que possa criar a certeza da aplicação da pena”, afirmou Carvalhido.O ministro considerou positiva a decisão do Supremo Tribunal Federal, que garante a liberdade do acusado até que não haja condenação em última instância, com sentença transitada em julgado. Tal entendimento, segundo ele, reforça o princípio de que a prisão cautelar é de natureza excepcional. “É necessário que os direitos das pessoas sob investigação sejam respeitados, o que não significa dizer que não se pode prender cautelarmente”, ressalvou Carvalhido. Após passar pela consulta pública, o texto final do anteprojeto do Código de Processo Penal será submetido ao exame e aprovação dos senadores, para que seja transformado em projeto e vá à votação no Congresso Nacional. Além do ministro Carvalhido, integram a comissão, instituída em 9 de julho do ano pssado, o juiz federal Antônio Corrêa; o advogado e professor da Universidade de São Paulo (USP) Antônio Magalhães Gomes Filho; o procurador regional da República Eugenio Pacelli; o consultor legislativo do Senado Fabiano Augusto Martins Silveira; o advogado e ex-secretário de Justiça do estado do Amazonas Félix Valois Coelho Júnior; o advogado e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; o delegado federal e presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal Sandro Torres Avelar; e o promotor de Justiça Tito de Souza Amaral (Fonte: Agência Brasil). O texto do relator, o procurador da República Eugênio Pacelli de Oliveira, assim como o PLC 111/08, deve propor a extinção da prisão especial para pessoas com diploma de nível superior, a limitação do prazo máximo para as prisões preventivas, bem como as circunstâncias em que ela pode ser utilizada. Como um texto que visa substituir integralmente o atual CPP, o anteprojeto também propõe a instituição do juiz de garantias, que participaria apenas da fase de investigação, não sendo responsável pela sentença. Segundo o consultor legislativo do Senado para as áreas de Direito e Processo Penal Fabiano Silveira, foram muitas as fontes consultadas, do Brasil e do exterior, até a comissão chegar a um anteprojeto final. Ele revelou que as recentes alterações no CPP, como as três leis sancionadas em 2008, foram preservadas naquilo que não se chocassem com a concepção de processo penal adotado pela comissão. Pela abordagem adotada, a comissão buscou delimitar o papel de cada uma das autoridades envolvidas no processo penal: o juiz, o representante do Ministério Público e o da polícia judiciária. – Estivemos sempre muito atentos para esses papéis e sua preservação, sem interferências de parte a parte. Buscamos moderar o protagonismo judicial na fase de investigação e também na iniciativa probatória na fase processual. Com essa compreensão se encaixam as propostas desenvolvidas – explicou Fabiano Silveira, adiantando ainda que o anteprojeto estimula uma aproximação entre a polícia e o Ministério Público, desburocratizando a fase do inquérito. Outra necessidade identificada pela comissão, afirma o consultor, é a de retirar resquícios autoritários do processo penal brasileiro, adequando-o ao caráter democrático e liberal da Constituição de 1988, ao mesmo tempo limitando o instituto da prisão provisória e ampliando o poder e as alternativas cautelares do magistrado. Para Fabiano Silveira, as medidas podem diminuir no país o número de prisões antes da sentença final, trazendo-o para “níveis mais aceitáveis” (Fonte: Agência Senado). 4. O fim do protesto por novo júri Como se disse, foram revogados os arts. 607 e 608 do Código de Processo Penal que tratavam do protesto por novo júri, recurso exclusivo da defesa que exigia ser o condenado submetido a um novo julgamento sempre que a sentença condenatória fosse de reclusão por tempo igual ou superior a vinte anos, sendo inadmissível uma segunda interposição. Sem adentrar o mérito da revogação e da extinção deste recurso (que não obteve da referida Comissão a unanimidade), traremos à baila a discussão acerca de uma possível ultra-atividade dos artigos revogados e, por conseguinte, de uma irretroatividade da lei nova. Pergunta-se: quem for submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri por crime praticado (data da ação ou omissão: art. 4º. do Código Penal) antes da entrada em vigor da nova lei terá direito ao protesto por novo júri, ainda que a condenação seja-lhe posterior e quando já não mais se preveja o recurso? Neste caso, haveria impossibilidade jurídica a inviabilizar o manejo do recurso ou teríamos que admiti-lo excepcionalmente? Como se sabe há dois princípios basilares que regem o direito intertemporal das leis em matéria criminal: o primeiro afirma que a lei penal não retroage salvo para beneficiar o réu (art. 2°., parágrafo único do Código Penal e art. 5°., XL da Constituição Federal). Se é certo que a regra é a da irretroatividade da lei penal, e isto ocorre por uma questão de segurança jurídico-social, não há de se olvidar a exceção de que se a lei penal for de qualquer modo mais benéfica para o seu destinatário, forçosamente deverá ser aplicada aos casos pretéritos, retroagindo. Este princípio insere-se no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da nossa Carta Magna e, como garantia fundamental, tem força vinculante, “no sólo a los poderes públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño[18], tendo também uma conotação imperativa, “porque dotada  de caráter jurídico-positivo”.[19] O segundo princípio é o da aplicação imediata da lei processual penal, preconizado pelo art. 2°. do Código de Processo Penal e que proclama a regra da aplicação imediata (tempus regit actum). Desta forma, à vista desses dois princípios jurídicos, haveremos de analisar o disposto no referido art. 4º. da Lei nº. 11.689/08 que extinguiu o protesto por novo júri. 5. A questão do direito intertemporal Como adiantamos, a questão reside saber se em relação aos autores de crimes dolosos contra a vida (ou conexos) haverá ainda a possibilidade de interposição daquele meio recursal, quando o crime tiver sido praticado antes da entrada em vigor da referida lei e o julgamento for posterior. Para que se manifeste um entendimento correto, urge que procuremos definir a natureza jurídica da norma ora revogada: seria ela de natureza puramente processual ou, tão-somente, penal; ou híbrida (penal e processual)? Admitindo-se a natureza puramente processual, obviamente não há falar-se em irretroatividade ou ultra-atividade; porém, se aceitarmos que são normas processuais penais materiais (ou híbridas), a ultra-atividade dos artigos revogados e a irretroatividade da nova lei impõem-se, pois, indiscutivelmente, sendo disposição mais gravosa deve excepcionar o princípio da aplicação imediata da lei processual penal. Atentemos que qualquer norma que trate de um meio recursal diz respeito a uma garantia constitucionalmente assegurada que é o duplo grau de jurisdição. O devido processo legal deve garantir a possibilidade de revisão dos julgados. A falibilidade humana e o natural inconformismo de quem perde estão a exigir o reexame de uma matéria decidida em primeira instância, a ser feito por juízes coletivos e magistrados mais experientes.[20] A Constituição Federal prevê o duplo grau de jurisdição, não somente no já referido art. 5º., LV, como também no seu art. 93, III (“acesso aos tribunais de segundo grau”).      Em França, segundo Étienne Vergès, “l´article préliminaire du Code de procédure pénale dispose in fine que ´toute personne condamnée a le droit de faire examiner sa condamnation par une autre juridiction`.”[21] Há mais de vinte anos, o jurista baiano Calmon de Passos mostrava a sua preocupação com “a tendência, bem visível entre nós, em virtude da grave crise que atinge o Judiciário, de se restringir a admissibilidade de recursos, de modo assistemático e simplório, em detrimento do que entendemos como garantia do devido processo legal, incluída entre as que são asseguradas pela nossa Constituição.” Neste mesmo trabalho, nota o eminente Mestre que “o estudo do duplo grau como garantia constitucional desmereceu, da parte dos estudiosos, em nosso meio, considerações maiores. Ou ele é simplesmente negado como tal ou, embora considerado como ínsito ao sistema, fica sem fundamentação mais acurada, em que pese ao alto saber dos que o afirmam, certamente por força da larga admissibilidade dos recursos em nosso sistema processual, tradicionalmente, sem esquecer sua multiplicidade.”[22] Não esqueçamos que a “adoção do duplo grau de jurisdição deixa de ser uma escolha eminentemente técnica e jurídica e passa a ser, num primeiro instante, uma opção política do legislador.”[23] O duplo grau de jurisdição tem caráter de norma materialmente constitucional, mormente porque o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) que prevê em seu art. 8º., 2, h, que todo acusado de delito tem “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”, e tendo-se em vista o estatuído no § 2º., do art. 5º., da CF/88, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Ratificamos, também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque que no seu art. 14, 5, estatui que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei.” Assim, conclui-se que os arts. 607 e 608 do Código de Processo Penal, a par de serem normas processuais, inseriam-se também no âmbito do Direito Material por constituírem garantia ao duplo grau de jurisdição. Nestas condições, ditas normas não são puramente processuais (ou formais, técnicas), mas processuais penais materiais. O jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”[24] Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas.” Para ele, constituem exemplos de normas processuais penais materiais, dentre outras, as que estabelecem “graus de recurso”, sendo a lei aplicável aquela vigente “no tempus delicti, isto é, no momento da prática da conduta, independentemente do momento em que o resultado se produza.”[25] (grifo nosso). Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[26] Feitas tais considerações, lembra-se que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni.[27] A propósito, veja-se a lição de Carlos Maximiliano: “Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”[28] Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci: “Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.”[29] Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho: “Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.”[30] 6. Conclusão Diante do exposto, entendemos que os dispositivos revogados e que tratavam da possibilidade do protesto por novo júri terão incidência em relação àqueles agentes que praticaram a infração penal anteriormente à entrada em vigor da nova lei, atentando-se para o disposto no art. 2º. da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal e no art. 2º. do Código Penal. Ressalva-se, apenas, a coisa julgada como limite lógico e natural de tudo quanto foi dito, pois todas as medidas citadas exigem que haja processo em curso ou na iminência de ser iniciado. Se já houve o trânsito em julgado, não pode se cogitar de retroatividade para o seu desfazimento, pois neste caso já há um processo findo, além do que, contendo a norma caráter também processual, só poderia atingir processo não encerrado, ao contrário do que ocorreria se se tratasse de lei puramente penal (lex nova que, por exemplo, diminuísse a pena ou deixasse de considerar determinado fato como criminoso), hipóteses em que seria atingido, inclusive, o trânsito em julgado, por força do art. 2º., parágrafo único do Código Penal[31]. Enfrentando esta questão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, tratando-se “de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal.” (STF – ADI 1.719-9 – rel. Joaquim Barbosa – j. 18.06.2007 – DJU 28.08.2007, p. 01).
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-66/o-fim-do-protesto-por-novo-juri-e-a-questao-do-direito-intertemporal/
O Processo Penal é um direito constitucional aplicado?
o presente trabalho reflete um breve estudo sobre os direitos e garantias constitucionais e sua plena aplicabilidade ao “devido processo penal” sem o escopo de esgotá-las. Responder a seguinte questão: o processo penal é um direito constitucional aplicado? Não é tarefa simples, a princípio a resposta parece ser afirmativa, haja vista o amplo rol do art. 5º da Constituição Federal de 1988, que em tese proporcionaria a aplicabilidade de tais garantias ao processo penal. Mas, será que diante do caso concreto as garantias constitucionais são efetivamente aplicadas ao processo pena? Assim, diante de tantas dúvidas nos socorremos da melhor doutrina e jurisprudência pátria para iniciarmos o caminho rumo às possíveis respostas à indagação ora apresentada. [1]
Direito Processual Penal
Introdução: Nascerá para o Estado o direito de punir quando houver sido praticada uma infração penal. Com isso, não seria admissível um processo penal dissociado de uma filtragem constitucional, pois como bem observa Nucci (2006, p. 74): “Logo, não se pode visualizar a relação que o Processo Penal possui com o Direito Constitucional, como se fosse uma ciência correlata ou um corpo de normas de igual valor, o que não ocorre. Devemos partir da visão constitucional de direito e democracia, diferençando direitos e garantias fundamentais, bem como os direitos e garantias humanas fundamentais, para atingir, a partir disso, uma correta e ampla visão do processo penal.” Traçadas as primeiras premissas buscaremos responder se o processo penal é um direito constitucional aplicado. Num primeiro momento apresentaremos comentários sobre a constitucionalização do processo penal e posteriormente breves comentários aos direitos fundamentais no âmbito do processo e dos princípios constitucionais diretamente ligados ao processo penal. Diante de um Estado Democrático de Direito, de certo só poderemos apresentar uma resposta em consonância com a Constituição Federal. 1- Processo Penal e sua constitucionalização. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 de acordo com a classificação de José Afonso da Silva (2009, p.42), quanto à estabilidade é rígida. Assim, para sua modificação o processo exige um grau maior de dificuldade. E como consequência da rigidez constitucional surge o princípio da supremacia da constituição. Nesse particular, pela importância que o tema apresenta, lançamos mão, dos ensinamentos de Silva (2009, p.45): “[…] significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas.” Assim, todas as normas infraconstitucionais que integram o sistema jurídico pátrio somente serão válidas, e somente neste caso, se não confrontarem com a Constituição Federal. Doutrinariamente os direitos fundamentais (principais) são diferenciados das garantias fundamentais (acessórios). De tal forma, que os primeiros significam os bens assegurados pela Constituição, como por exemplo, o direito a vida, a liberdade, etc. Já as garantias constitucionais são instrumentos fixados na própria Constituição para a efetivação dos direitos fundamentais, temos como exemplos o habeas corpus como garantia ao direito de locomoção, a vedação da pena de morte como garantia ao direito a vida, etc.. Com muita perspicácia coloca Lopes Jr. (2005, p. 39) que devemos observar o seguinte: “Num Estado Democrático de Direito, não podemos tolerar um processo penal autoritário e típico de um Estado policial, pois o processo penal deve adequar-se a Constituição e não vice-versa.” Assim, com o fundamento das primeiras premissas sobre o tema, podemos até afirmar que o processo penal é um direito constitucional aplicado. Haja vista, que o Código de Processo Penal é norma infraconstitucional e como tal obrigatoriamente deve seguir os ditames legais da Constituição. E como consequência lógica o processo penal se desenvolveria respeitando os direitos e garantias constitucionais, no entanto, parece um tanto precipitada tal afirmação. Assim, lançamos mão, mais uma vez, dos preciosos ensinamentos de Lopes Jr. (2005, p. 40): “O processo penal deve passar pelo filtro constitucional e se democratizar. A democracia pode ser vista como um sistema político-cultural que valoriza o indivíduo frente ao Estado, e que se manifesta em todas as esferas dessa complexa relação Estado-indivíduo. Como consequência, opera-se uma democratização do processo penal, que se manifesta através do fortalecimento do sujeito passivo. O indivíduo submetido ao processo penal passa a ser valorizado juridicamente”. Com lastro na lição de Aury Lopes Jr (2005) não podemos acolher a idéia de um processo penal com qualquer índice de desvinculação do texto constitucional. E repetir a tese de que o processo penal que deve se adequar a Constituição e não o inverso. Quando travamos discussões sobre a efetiva garantia dos direitos fundamentais, são de vital importância que sejam observados os ensinamentos de Bobbio (1992, p.25): “[…] o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los. […]Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que,  apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.” Destarte, que não é suficiente o reconhecimento de todos os direitos e garantias fundamentais previstos nas Constituições democráticas se os mesmos não forem efetivamente aplicados aos seus destinatários. Pois, teríamos uma simples “folha de papel”. A Constituição de acordo com Ferdinand Lassale se consubstancia na soma dos fatores reais do poder dentro de uma sociedade. A título elucidativo permaneçamos com as palavras do mestre Lassale (2001, p. 37): “Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: “Esta árvore é uma figueira”. Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, destruiria estes a fábula, produzindo macas e não figos. Igual acontece com as constituições. De nada servirá o que escrever numa folha de papel, se não se justificar pelos fatos reais e efetivos do poder.” A Constituição Federal é a Lex Fundamentalis, é norteadora de todas as garantias e direitos assegurados aos cidadãos, no entanto, atualmente vem ganhando grande relevância as questões de direito penal internacional, como bem assinala Dias (2004, p. 10): “O direito penal é ainda hoje essencialmente direito intra-estadual, que encontra a sua fonte formal e orgânica na produção legislativa estadual e é aplicada por órgãos nacionais. Todavia, a partir da última década do séc. XX assistiu-se a um prodigioso incremento da relevância do direito internacional em matéria penal.” Ainda sobre direito penal internacional destacamos as palavras de Fernandes (2005, p.25): “Outra inclinação, na direção do sopro renovador dos direitos humanos, é o da internacionalização do direito processual penal e que se manifesta principalmente por duas formas: 1ª) a atribuição de status constitucional às normas de direitos humanos dos tratados regionais e internacionais; 2ª) o transito do direito interno para o direito internacional.” Lopes Jr. (2008, p.7) com maestria apresenta uma sólida argumentação a nossa indagação a cerca de ser o processo penal um direito constitucional aplicado, vejamos: “Somente a partir da consciência de que a Constituição deve efetivamente constituir (logo, consciência de que ela constiui-a-ação), é que se pode compreender que o fundamento legitimante da existência do processo penal democrático se dá através da sua instrumentalidade constitucional. Significa dizer que o processo penal contemporâneo somente se legitima à medida que se democratizar e for devidamente constituído a partir da Constituição.” (grifo nosso)   Logo, o processo penal somente será legítimo se sua aplicação passar pelo filtro constitucional, em outras palavras, se estiver adequado aos mandamentos constitucionais, pois como já foi dito o mais importante é evitar que os direitos sejam violados. No entanto, o “devido processo penal”, isto é, o processo penal filtrado pela Constituição não poderá ser pensado/utilizado como instrumento que leve a impunidade, pois como bem esclarece Lopes Jr. (2008, p.9): “O processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (direito penal), senão que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí porque se admite sua exigência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal). Assim, existe uma necessária simultaneidade e coexistência entre repressão ao delito e respeito às garantias constitucionais, sendo essa a difícil missão do processo penal.” (grifo nosso).   Por derradeiro, não podemos aceitar que os direitos e garantias fundamentais insculpidos na Carta Magna sejam desrespeitas no âmbito do processo penal. Caso aconteça, estaremos diante de graves violações aos direitos do homem, fato com o qual não podemos compactuar. Os direito e garantias fundamentais são frutos de uma longa luta travada pelos homens ao longo dos tempos. Assim, merece destaque as palavras de Ihering (2001, p. 27): “O fim do direito é a paz, o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver às ameaças da injustiça – e isso perdurará enquanto o mundo for mundo -, ele não poderá prescindir da luta. A vida do direito é a luta: luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos. Todos os direitos da humanidade foram conquistados pela luta; seus princípios mais importantes tiveram de enfrentar os ataques daqueles que a eles se opunham; todo e qualquer direito, seja o direito de um povo, seja o direito do indivíduo, só se afirma por disposição ininterrupta para a luta.” Não podemos olvidar que as diretrizes apresentadas pela Constituição devem impedir a presença, em termos de legislação infraconstitucional, de qualquer previsão que aponte para um sentido diverso, para uma violação de suas garantias e que, portanto, revele-se incompatível com a Lei Maior. 2- Breves comentários aos direitos fundamentais no âmbito do processo penal. 2.1- Do Inquérito Policial. O Inquérito Policial disciplinado nos arts. 4º a 23 do CPP é um procedimento administrativo investigativo. Onde o indiciando em nome do princípio da ampla defesa, tem a faculdade de utilizar a defesa técnica de acordo com a súmula Vinculante 14 do STF[2]. O que acaba com a celeuma sobre a possibilidade de defesa técnica pelo indiciado na fase de inquérito policial, pois a falta de oportunidade da defesa nessa fase é verdadeira afronta aos direitos fundamentais. E também atentatório aos direitos dos advogados previsto na Lei nº 8906/1994, nos arts. 6º, parágrafo único, e 7º, XIII e XIV. A edição da Súmula Vinculante 14 consubstancia os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); o direito de receber informações (art. 5º, XXXIII); do devido processo legal (art. 5º, LIV) e do contraditório e da ampla defesa ((art. 5º, LV). 2.2- Do direito a prova Diante das prova e as inviolabilidades constitucionais, Fernandes (2005, p. 112) argumenta que: “São várias as inviolabilidades afirmadas na Constituição Federal para resguardar a pessoa humana em seus direitos fundamentais. As provas obtidas com desrespeito a essas regras constituem prova ilícita e, assim, não podem ser admitidas, com a ressalva da aplicação, no caso, do princípio da proporcionalidade.” Merece destaque, no âmbito probatório, a plena aplicabilidade de todos os mandamentos constitucionais para evitar graves violações aos direitos humanos. No passado não muito distante, convivemos com graves violações, que hoje diante de um Estado Democrático de Direito não ousamos vislumbrar, a título elucidativo fiquemos com Foucault (2000, p.32-3): “Na França, como na maior parte dos países europeus – com a notável exceção da Inglaterra – todo o processo criminal, até a sentença, permanecia secreto: ou seja, opaco não só para o público, mas para o próprio acusado. O processo se desenrolava sem ele, ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os depoimentos, as provas. Na ordem da justiça criminal, o saber era privilegio absoluto da acusação. […] […] o rei queria mostrar com isso que a “força soberana” de que se origina o direito de punir não pode em caso algum pertencer a “multidão”. Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar. Mas o segredo não impedia que, para estabelecer a verdade, se devesse obedecer a certas regras.” Assim, temos que aos acusados em geral é legítimo o direito a utilização de todos os meios de prova admitidos. Em relação ao número de testemunhas ofende o princípio da ampla defesa e do devido processo legal, o juiz que impeça a oitiva de testemunha de defesa que esteja dentro do limite previsto pela lei.[3]  O entendimento é do ministro Celso de Mello onde sustentou a seguinte tese: “oferecido tempestivamente o rol de testemunhas até o número permitido, não tem o juízo o direito de indeferir a oitiva delas, sob pretexto de procrastinação ou que a pessoa (testemunha) nada sabe sobre os fatos” e afirmou também que “tenho para mim que se transgrediu, no caso, em detrimento do ora paciente, o direito à prova, que representa prerrogativa essencial que assiste a qualquer réu, independentemente da natureza do delito que lhe tenha sido imputado”. Entendimento firmado no julgamento do pedido de Habeas Corpus do ex-juiz João Carlos da Rocha Mattos. O ministro foi voto vencido na decisão tomada pela 2ª Turma. No entanto, merece atenção a leitura do seu voto: “HABEAS CORPUS 94.542-2 SÃO PAULO V O T O (vencido) O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Peço vênia para deferir o pedido de “habeas corpus”, pois entendo vulnerada, na espécie, a cláusula constitucional pertinente ao due process of law. Tenho para mim que se transgrediu, no caso, em detrimento do ora paciente, o direito à prova, que representa prerrogativa essencial que assiste a qualquer réu, independentemente da natureza do delito que lhe tenha sido imputado. Tenho acentuado, Senhora Presidente, em diversas decisões proferidas nesta Suprema Corte, a essencialidade desse direito básico – o direito à prova -, cuja inobservância, pelo Poder Público, qualifica-se como causa de invalidação do procedimento estatal instaurado contra qualquer pessoa, seja em sede criminal, seja em sede meramente disciplinar, seja, ainda, em sede materialmente administrativa: “- A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade do princípio que consagra o ‘due process of law’, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina. – Assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do ‘due process of law’ (CF, art. 5º, LIV) – independentemente, portanto, de haver previsão normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado -, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV), inclusive o direito à prova.- Abrangência da cláusula constitucional do ‘due process of law’.”(MS 26.358-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO) A importância do direito à prova, especialmente em sede processual penal, é ressaltada pela doutrina (ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO SCARANCE FERNANDES e ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “As nulidades no processo penal”, p. 143/153, itens ns. 1 a 6, 10ª ed., 2007, RT, v.g.), como se vê do claro magistério expendido pelo saudoso JULIO FABBRINI MIRABETE (“Código de Processo Penal Interpretado”, p. 492, item n. 209.2, 7ª ed., 2000, Atlas): “Oferecido tempestivamente o rol de testemunhas pela parte, até o número permitido, não tem o juiz o direito de indeferir a oitiva de qualquer uma delas, independentemente de justificação por parte do arrolante, sob o pretexto de que se visa a procrastinação ou de que a pessoa arrolada nada sabe sobre os fatos, nem mesmo quando deve ser ouvida em carta precatória. (…) Também não pode o juiz dispensar a oitiva de testemunha tempestivamente arrolada sem a desistência da parte interessada; ocorre, na hipótese, nulidade por cerceamento da acusação ou defesa. Trata-se, aliás, de nulidade que não precisa ser argüida.” (grifei) Essa orientação reflete-se, por igual, na jurisprudência dos Tribunais em geral, valendo referir, ante a sua relevância, julgados que reconhecem qualificar-se, como causa geradora de nulidade processual absoluta, por ofensa ao postulado constitucional do “due process of law”, a decisão judicial que, mediante “exclusão indevida de testemunhas”, compromete e impõe gravame ao direito de defesa do réu, sob a alegação de que as testemunhas, embora tempestivamente arroladas, com estrita observância do limite máximo permitido em lei, nada saberiam sobre os fatos objeto da persecução penal ou, então, que a tomada de depoimento testemunhal constituiria manobra meramente protelatória do acusado (RJDTACRIM/SP 11/68-69 – RJTJESP/LEX 117/485 – RT 542/374 – RT 676/300 – RT 723/620 – RT 787/613-614, v.g.).Em suma: por representar uma das projeções concretizadoras do direito à prova, configurando, por isso mesmo, expressão de uma inderrogável prerrogativa jurídica, não pode ser negado, ao réu – que também não está obrigado a justificar ou a declinar, previamente, as razões da necessidade do depoimento testemunhal -, o direito de ver inquiridas as testemunhas que arrolou em tempo oportuno e dentro do limite numérico legalmente admissível, sob pena de inqualificável desrespeito ao postulado constitucional do “due process of law”:“Prova – Testemunha – Oitiva indeferida por não ter o juiz se convencido das razões do arrolamento – Inadmissibilidade – Direito assegurado independentemente de justificação.– Não pode o juiz indeferir a oitiva de testemunha, sob pena de transgredir o direito límpido que assiste às partes de arrolar qualquer pessoa que não se insira nas proibidas, independentemente de justificação.” (RT 639/289, Rel. Des. ARY BELFORT – grifei)“Cerceamento de Defesa – Inquirição de testemunhas por rogatória indeferida a pretexto de ter intuito procrastinatório – Inadmissibilidade – Preliminar acolhida – Processo anulado – Inteligência do art. 222, e seus §§, do CPP.- Não é permitido ao juiz, sem ofensa ao preceito constitucional que assegura aos réus ampla defesa, inadmitir inquirição de testemunhas por rogatória, a pretexto de que objetiva o acusado procrastinar o andamento do processo.” (RT 555/342-343, Rel. Des. CUNHA CAMARGO – grifei) São estas, Senhora Presidente, as razões que me levam, com toda a vênia da ilustrada maioria, a conceder, ao ora paciente, a ordem de “habeas corpus impetrada.É o meu voto.Ministro Celso de Mello.” (Fonte: Consultor Jurídico) O   ministro Eros Grau no seu voto contestou as alegações da defesa do ex-juiz. O referido ministro se reportou à jurisprudência do próprio STF no sentido de que “não constitui cerceamento de defesa a negativa de diligências, quando desnecessárias para o órgão julgador”. 2.3- Do interrogatório e o direito ao silêncio. A Lex Fundamentalis de 1988 proclama no seu art. 5º, LXIII, “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. A regra constitucional ora transcrita deixa vislumbrar a intenção de garantir, entre os direitos fundamentais, a impossibilidade de aquele que está sendo preso ser obrigado a produzir provas contra si próprio. Assim, sendo um mandamento constitucional o direito ao silêncio deverá ser também cominado aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, independentemente de estarem ou não sendo submetidos à prisão. A Constituição garante o direito ao silêncio, então qualquer outra norma infraconstitucional que contrarie o mandamento constitucional padecerá de inconstitucionalidade.  Assim, questionava-se sobre a constitucionalidade do art. 186 do Código de Processo Penal, que apresentava, até 2003, a seguinte redação: “Art. 186. Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa“, tal artigo padecia de flagrante inconstitucionalidade, haja vista, a previsão de que o silêncio poderia ser interpretado em prejuízo do acusado, como é possível um direito que atue para o prejuízo do seu destinatário? Como não é inoportuno repetir, o processo penal deve ser adequado a Constituição, e não o contrário. Assim, foi realizada a alteração art. 186 do CPP para sua compatibilização com a Constituição. Vejamos: “Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.” “Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.  (Redação dada pela Lei n. 10.792/03). A adequação constitucional restou perfeita. No entanto, o art. 198 do CPP, persiste na inconstitucionalidade, haja vista, expressar que o silêncio poderá ter interpretação prejudicial à defesa. Vejamos: “Art. 198. O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz” (grifo nosso). A menos que o convencimento seja aplicado para beneficiar, e não para prejudicar o réu, estaremos diante de afronta ao direito constitucional ao silêncio. Não podemos olvidar, que o não-esclarecimento ao preso, investigado ou réu, quanto à possibilidade de invocação do direito constitucional ao silêncio em relação aos atos aos quais irá se submeter implica na nulidade destes, de acordo as reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal. O direito ao silêncio é apresentado com maestria na lição de Lopes Jr. (2005, p.237) quando explicou que: “O direito de calar também estipula um novo dever para a autoridade policial ou judicial que realiza o interrogatório: o de advertir o sujeito passivo de que não está obrigado a responder as perguntas que lhe foram feitas. Se calar constitui um direito do imputado e ele tem de ser informado do alcance de suas garantias, passa a existir o correspondente dever do órgão estatal a quem assim o informa, sob pena de nulidade do ato por violação de uma garantia constitucional. O direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, insculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silencio quando do interrogatório. Sublinhe-se: do exercício do direito de silêncio não pode nascer nenhuma presunção de culpabilidade ou qualquer tipo de prejuízo jurídico para o imputado.” (grifos do autor). Desta forma, a inclusão do direito ao silêncio na Constituição representa uma grande conquista, com o objetivo de desestimular a pratica de atos questionáveis para a apuração de fatos, prática até comum em períodos ditatoriais, mas que não podem coexistir num Estado Democrático de Direito. Outro ponto que merece atenção é o interrogatório por videoconferência previsto no parágrafo segundo do art.185 do CPP. A legislação foi modificada visado a possibilidade de realização de interrogatório do preso no estabelecimento prisional, sem a presença física do juiz, por meio de um sistema audiovisual em tempo real (interrogatório on-line). As principais justificativas oferecidas pela lei são a preservação da segurança pública e para evitar a fuga dos presos com o deslocamento entre presídios e fóruns. A aversão ao chamado interrogatório on-line assenta seus argumentos na afronta aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório (artigo 5º, incisos LIV e LV).  Haja vista, que o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário, preveem o direito de o réu ser conduzido à presença física do juiz natural. O interrogatório é a uma oportunidade impar que tem o magistrado para formar o juízo a respeito do acusado. Somente face a face com o acusado o juiz teria as condições básicas e necessárias para o julgamento do caso concreto e, ainda, observar se o réu está em perfeitas condições físicas e mentais, o que poderá passar despercebido com a utilização do sistema da videoconferência.  Assim, muitos defendem que o interrogatório realizado pela videoconferência compromete o pleno exercício do direito à autodefesa. Imaginemos a situação de um acusado que sofre maus tratos na prisão, será que ele teria seus direitos resguardados ao fazer tal denúncia? De tal sorte, que o § 2º do art.185 do CPP, disciplina o uso do interrogatório por videoconferência como excepcional e com fundamentação da decisão pelo juiz. O problema surge da analise dos seus incisos, onde é constante a presença de conceitos por demais subjetivos como prevenir riscos a segurança pública, a ordem pública, se usada uma interpretação por demais extensiva a possibilidade excepcional de interrogatório por videoconferência culminará como regra geral. 2.4- princípio da presunção de inocência. Partiremos da distinção apresentada por Nucci (2006, p.75) entre os conceitos de direito processual penal e processo penal democrático: “Direito processual penal é o corpo de normas jurídicas cuja finalidade é regular a persecução penal do Estado, através de seus órgãos constituídos, para que se possa aplicar a norma penal, realizando-se a pretensão punitiva no caso concreto. Processo Penal Democrático: cuida-se da visualização do processo penal a partir dos postulados estabelecidos pela Constituição Federal, no contexto dos direitos e garantias humanas fundamentais, adaptando o Código de Processo Penal a essa realidade, ainda que, se preciso for, deixe-se de aplicar legislação infraconstitucional defasada.” Assim, um processo penal democrático deverá albergar os princípios constitucionais explícitos e implícitos concernentes ao indivíduo, a relação processual e a atuação do Estado. Segundo o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, qualquer acusado é presumidamente inocente até que a sentença condenatória transitada em julgado, de acordo com o art.5º, LVII da Constituição Federal. Assim, o ônus da prova caberá a acusação. Ainda no lastro da lição de Nucci (2006, p.78-9) temos que: “Por outro lado, confirma a excepcionalidade e a necessidade das medidas cautelares de prisão, já que indivíduos inocentes somente podem ser levados ao cárcere quando realmente for útil a instrução criminal e a ordem pública. No mesmo prisma, evidencia que outras medidas constritivas aos direitos individuais devem ser excepcionais e indispensáveis, como ocorre com a quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico (direito constitucional de proteção à intimidade), bem como com a violação de domicilio em virtude de mandado de busca (direito constitucional à inviolabilidade de domicilio).  Integra-se ao princípio da prevalência do interesse do réu (in dubio pro reo), garantindo que, em caso de duvida, deve sempre prevalecer o estado de inocência, absolvendo-se o acusado. Reforça, ainda, o principio penal da intervenção mínima do Estado na vida do cidadão, uma vez que a reprovação penal somente alcançará aquele que for efetivamente culpado. Finalmente, impede que as pessoas sejam obrigadas a se auto-acusar, consagrando o direito ao silêncio.” Com isso as medidas que restrinjam os direitos e garantias individuais devem ser excepcionais e justificadamente comprovadas, sob pena de grave violação dos direitos e garantias fundamentais. CONCLUSÂO: Cumpre neste momento, respondermos se o processo penal é um direito constitucional aplicado? Agora, após toda a discussão doutrinária apresentada para chegarmos a uma resposta afirmativa, fato que se dará unicamente se, data venia, o processo penal for aplicado pela perspectiva constitucional, pois somente com a adequação constitucional do processo penal é que teremos a plena aplicabilidade das garantias constitucionais no âmbito penal. Não nos olvidemos das palavras do mestre Aury Lopes Jr. (2008, p.10) quando diz que “o processo penal deve ser lido à luz da Constituição e não ao contrário”. Assinale-se, por fim, que o processo penal é um direito constitucional aplicado quando utilizado em prol da dignidade da pessoa humana. A liberdade e a vida são direitos consagrados constitucionalmente e somente poderão vim a ser restringidos após o “devido processo penal” que somente será legítimo quando em consonância aos ditames da Constituição pátria. A pena por si só não tem o condão de resolver os problemas sociais. Devemos paralelamente pensar na educação, saúde, programas sociais efetivos, não eleitoreiros, que visem a inclusão social, que corporifiquem o mandamento constitucional maior da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-66/o-processo-penal-e-um-direito-constitucional-aplicado/
Utilização de algemas: Entre o risco e a liberdade
Por vezes alguns assuntos retornam ao cenário do debate nacional, sobretudo quando a mídia começa a retratá-los com mais veemência. É o caso da utilização das algemas que, principalmente após a prisão de nomes importantes do cenário político, volta a ser tema de decisões judiciais e acaloradas discussões. Entre uma prisão e outra, surgem diversas teorias sobre o assunto, diversos segmentos da sociedade, entre policiais, defensores dos direitos humanos, entre outros, opinando sobre o tema. Fato é que a situação exige uma regulamentação específica, o que ainda nos tempos atuais não vigora no ordenamento jurídico brasileiro. Por estas indefinições, ora as algemas são vistas simplesmente como símbolo de repressão, ora são vistas como fundamentais na segurança tanto do conduzido quanto do condutor. Independente do debate, elas são importantes quando o Estado, por meio da figura policial, atua com o chamado jus puniendi, ou seja, o direito que tem de punir condutas que são consideradas ilícitas. As algemas são importantes na condução de pessoas que, por suas condutas, assumem um elevado grau de periculosidade, pondo em risco, em uma eventual condução coercitiva, todos os envolvidos. O debate está armado. Cada corrente se municia com seus argumentos para que, num futuro próximo, espera-se, surja uma legislação que observe todas estas premissas e que possa por fim às interpretações errôneas e tendenciosas sobre o tema.
Direito Processual Penal
1 METODOLOGIA O artigo teve como fonte principal de pesquisas outros trabalhos de cunho acadêmico, como artigos, além da análise de textos legais e decisões dos Tribunais Superiores, bem como observação de notícias veiculadas na mídia nacional. 2 REVISÃO DE LITERATURA 2.1 POLÊMICA NA UTILIZAÇÃO DAS ALGEMAS Algema, na análise trazida por Silva, significa “[…] palavra originária do idioma arábico, aljamaa, que significa pulseira. Definida pelo Dicionário Aurélio como ‘cada uma de um par de argolas metálicas, com fechaduras, e ligadas entre si, usada para prender alguém pelo pulso’ […].” (SILVA, 2007). Com uma análise mais sociológica do termo e do próprio objeto, tem-se que ele possui uma conotação negativa, sempre remetido a um ato de restrição da liberdade, coação física, entre outros. Instrumento fundamental na atividade policial, as algemas têm sido alvo de duras críticas por diversos segmentos da sociedade, que ganhou voz de peso com a adesão do Supremo Tribunal Federal em agosto de 2008. Esta adesão veio em forma de súmula vinculante, instrumento previsto da Constituição Federal, em seu artigo Art. 103-A, que prevê, in verbis: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.” Como pode ser observado, o preceito constitucional menciona que as súmulas vinculantes somente podem ser editadas em casos de decisões reiteradas sobre um determinado tema e, ainda que tenham esse nome, elas de fato só possuem esse efeito até que seja editada uma norma que regule a questão. É importante frisar que essas súmulas não vinculam o Poder Legislativo, que possui total independência para editar normas que vão de encontro ao teor dessas decisões do STF. A súmula, de número 11, foi editada com base em um precedente em julgamento perante o Tribunal do Júri. A tese da defesa alegou que o impetrante do habeas corpus havia sido prejudicado em seu julgamento, por permanecer todo o tempo algemado, o que teria influenciado negativamente o Júri, e o STF sumulou, por sua vez, o assunto, determinando efeito vinculante a ele e anulando o julgamento em questão. Ao tomar esse posicionamento, o Supremo Tribunal acalorou o debate, visto que praticamente ao mesmo tempo a Polícia Federal desencadeava uma grande operação contra a corrupção, prendendo e algemando pessoas influentes, como o ex-prefeito paulistano Celso Pitta e o banqueiro Daniel Dantas. Essas prisões desencadearam toda a polêmica, ainda mais forte após a seqüência de habeas corpus para soltura de Dantas, que fora detido e liberado duas vezes em menos de 24 horas. A súmula de n. 11 versa sobre as situações nas quais o uso de algemas está autorizado e, principalmente, demonstra o que poderá acontecer com o agente público que exorbita o limite da utilização desse instrumento durante as atividades policiais rotineiras. Além de aprovar o texto, o Tribunal ainda decidiu que para todas as decisões tomadas em conformidade com as Súmulas Vinculantes não caberá recurso. A Súmula Vinculante tem o seguinte teor: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.” Como pode ser observado no texto editado pelo STF, toda utilização de algemas deverá ser justificada por escrito, sob pena de o executor do ato ser responsabilizado nas três esferas, administrativa, civil e penal. Na atividade policial, em que a urgência das ações é preceito fundamental para uma missão bem sucedida, seria possível a justificação escrita todas as vezes em que as algemas forem utilizadas? Em uma atividade em que o tempo é precioso, onde a sociedade cobra a presença da polícia em todos os locais, é realmente relevante tal procedimento, que somente engessa a corporação? Algumas polícias, como a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), logo que tomaram conhecimento da edição dessa súmula, agiram de pronto, de sentido de resguardar seus policiais contra possíveis problemas que eles viessem a ter no âmbito administrativo e judicial. No caso específico da PCDF, a orientação é que os policiais continuassem com o procedimento já adotado em outros tempos, ou seja, que algemassem caso julgassem conveniente e seguro para ambas as partes, quais sejam, os detidos e os próprios policiais. Além desta orientação, foi editado um formulário padrão (em anexo) para que as prisões que envolvessem o uso das algemas fossem justificadas por escrito. 2.2 UTILIZAÇÃO DAS ALGEMAS NO ÂMBITO POLICIAL Instrumento fundamental na atividade policial, as algemas fazem parte do conjunto mínimo de equipamentos de segurança que um policial deve ter ao exercer suas atividades. Por fazer parte dos órgãos que compõem a segurança pública nacional, conforme preconiza o artigo 144 da Constituição Federal, a força policial dispõe de prerrogativas que não são inerentes a todos os cidadãos, como por exemplo, o porte de armas sem restrição de lugar. Por possuírem estas características, as forças policiais são cobradas a agir em caso de situação em que um flagrante delito está sendo cometido. O artigo 301 do Código de Processo Penal preconiza que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. Como pode ser observado, os agentes policiais são obrigados a agir em uma situação flagrancial, obviamente quando há possibilidade de ação e que não deixe o policial em desvantagem numérica ou de armamentos, por exemplo. Ainda antes da edição da Súmula Vinculante número 11, alguns diplomas legais, ainda que não regulassem totalmente, já traziam espécies de orientações a serem seguidas na utilização das algemas nas prisões de infratores e suspeitos. Mesmo sem mencionar diretamente o nome algema, o Código de Processo Penal traz regulamentos que podem ser interpretados também para o uso legal do instrumento, sem ferir a dignidade da pessoa humana. Um exemplo desta afirmação está no artigo 292 do CPP, que dispõe do seguinte teor: “Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas” (grifo nosso.) Como é observado, em caso de uma resistência do conduzido, é possível a utilização dos meios necessários. Ora, não há menção em algemas, mas induz-se que elas são fundamentais neste contexto, a fim de se evitar um possível confronto corporal ou até mesmo envolvendo armas de fogo. Como aduz Alves (2008), em seu artigo: “Apesar de não elencados pelo CPP, consideram-se meios necessários todos os esforços materiais e humanos tendentes a repelir uma injusta agressão à autoridade e seus executores, bem como impedir a fuga do agente infrator, desde que o esforço seja usado na medida da agressão sofrida, bem como dentre várias possibilidades seja usado o meio menos lesivo. Portanto, as algemas englobam o universo extenso do termo ‘meios necessários’, desde que seja usadas como forma de conter uma agressão, resistência ou fuga, e não como meio de punição ou execração pública contra qualquer pessoa.” No calor de uma situação flagrancial, não há tempo para se verificar completamente se a situação se encaixa dentro de um desses preceitos ou não. A contenção de indiciados ou suspeitos é feita para se evitar uma agressão ou uma tentativa de fuga. Não há como prever qual será a resposta de uma pessoa ao saber que está detida e, para se evitar uma possível reação desesperada, que pode levar à conseqüências piores, é que a utilização das algemas se faz necessária. Até mesmo em caso dos detidos serem menores de idade, em razão do cometimento de algum ato infracional, é aceitável a utilização das algemas na condução desses. A proibição da legislação nacional versa somente no sentido de que os menores não podem ser transportados nos compartimentos fechados das viaturas policiais (conhecidos como cubículos), sob alegação que tal procedimento viola a dignidade do menor conduzido. As considerações da Promotora de Justiça Selma Sauerbronn de Souza, citada por Alves (ALVES, 2008), retratam fielmente o pensamento inequívoco que se deve ter em relação ao uso das algemas quando se tem menores envolvidos numa ocorrência: “[…] Em face do vigente Diploma Menorista, perfeito o entendimento que o uso de algemas no adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional, deixou de ser uma regra geral, passando a ser conduta excepcional por parte da autoridade policial, seja civil ou militar, quando tratar-se de adolescente de altíssimo grau de periculosidade, de porte físico compatível a um adulto, e que reaja a apreensão. Algemá-lo, certamente, evitará luta corporal e fuga com perseguição policial de desfecho muitas vezes trágico para o policial ou para o próprio adolescente. Portanto, o policial que diante de um caso concreto semelhante ao narrado, optar pela colocação de algemas, na realidade estará preservando a integridade física do adolescente, e, por conseguinte, resguardando o direito à vida e à saúde, assegurados pela CF, e como não poderia deixar de serem, direitos substancialmente, consagrados pelo ECA” […] É notório que a utilização das algemas é relevante na função policial. Obviamente que os abusos não devem ser cometidos e, caso ocorram, devem ser investigados e punidos de forma exemplar, nos termos da lei. É preciso estabelecer critérios, que não devem ser engessar a atividade policial, mas que garantam a dignidade de quem for detido. Uma das principais queixas relatadas é quando há a presença da mídia no momento das detenções. Isso faz com que o uso das algemas se torne vexatório, humilhante e por isso é necessário que nos projetos de leis que tramitam no Congresso Federal se vislumbre alguma possibilidade de se evitar a exposição gratuita daqueles que forem detidos com algemas ou mesmo colocados nas viaturas policiais. Nas palavras de Gomes (GOMES, 2006), uma explanação que retrata a realidade: “Um equívoco comum é associar o uso de algemas ao emprego de força, quando, na verdade, a algema é forma de neutralização da força, contenção e imobilização do delinqüente. É menos traumático, doloroso e arriscado imobilizar o meliante pelo recurso à algema, do que pelo acesso a técnicas corpóreas de imobilização. […] O ato de algemar não é um constrangimento ilegal. Poderá sê-lo se procedido tão somente para filmagem e divulgação em rede nacional, o que sujeita o policial a sanções disciplinares, sem prejuízo de outras que sejam pertinentes […].” 2.3 UTILIZAÇÃO DAS ALGEMAS NO ÂMBITO JUDICIÁRIO Fator preponderante na decisão do STF que fez surgir a Súmula Vinculante número 11, é a utilização das algemas dentro do judiciário, sobretudo no Tribunal do Júri, é alvo de constantes polêmicas e assunto ainda sem uma definição legal. Segundo as diversas teses em contrário a esta utilização, a mais falada é a que expõe que o réu estaria prejudicado se permanecesse todo o tempo do julgamento algemado. Isso causaria uma imagem negativa do réu perante o Conselho de Sentença (formado por cidadãos de diversos níveis sociais e de maioria leiga em procedimentos juricicionais) o que tenderia a uma condenação sem uma análise profunda das informações no julgamento. Como no caso da utilização na esfera policial, no âmbito judiciário também não há uma regulamentação plena sobre o assunto. Cabe sempre a decisão final do juiz que, ao constatar a periculosidade do réu, pode determinar que ele permaneça algemado nas audiências. No caso do Tribunal do Júri, ainda não há um consenso, sendo que, no caso do precedente utilizado pelo STF, o julgamento foi anulado pelo fato de o réu estar algemado durante toda a seção do Júri. É um posicionamento divergente. Há alguns acórdãos do Superior Tribunal de Justiça que trazem o posicionamento daquele Tribunal em relação ao tema, como é o caso do acórdão citado por Pinto (2007): “Não há que se falar em constrangimento ilegal em decorrência da manutenção das algemas do paciente durante o seu interrogatório, pois, nos termos da Lei Processual Penal, ‘ao juiz incumbirá prover à regularidade do processo e manter a ordem no curso dos respectivos atos, podendo, para tal fim, requisitar força pública’. Se o Magistrado reputou necessária a manutenção das algemas para melhor regularidade do ato, não há nulidade no interrogatório do réu”. (HC 25856-PB – 5a. T., Relator Min. Gilson Dipp, j. 17.6.2003, DJ 25.8. 2003, p. 336). Percebe-se que essa decisão fica a cargo do juiz e que ele deve levar em conta fatores que determinam sua segurança e a dos demais presentes ao julgamento. Não há como ser determinado taxativamente em quais situações ele deverá se valer da utilização das algemas ou não. Caso recente demonstra que, mesmo já tendo passado por revista pessoal, não estando armado, um réu pode gerar problemas graves referentes à segurança dentro de uma sala de audiência, conforme notícia vinculada no jornal Extra, do Rio de Janeiro: “O Julgamento de um acusado de homicídio poderia ter terminado em tragédia. na quinta-feira passada, em Cambuci, região serrana do Rio de Janeiro. Após receber a sentença de 17 anos por homicídio, Rodrigo Vieira de Almeida, que aguardava o julgamento sem algemas, (para evitar o constrangimento segundo o STF), tentou agredir fisicamente a juíza, a promotora e os jurados, que esperavam que a sentença fosse impressa. Foram necessários 6 Policiais Militares para conter o acusado.” 3 DISCUSSÃO Com a mais recente polêmica sobre o tema, percebe-se que não é somente a utilização das algemas que está no foco do assunto. A questão é muito mais profunda que isso, passando por quesitos de ordem social, principalmente. As algemas sempre foram utilizadas como forma de contenção na maioria das vezes, e como forma de humilhação, em outras. Fato é que nunca este tema chegou a tal ponto de ser discutido em plenário de Tribunais Superiores e ser ensejador de anulações de julgamentos e prisões. Aqui há, claramente, a atenção de alguns operadores do Direito somente quando as classes superiores são atingidas por medidas que não lhes agradam. Nas precisas palavras de Bernardo Carvalho (CARVALHO, 2008), é possível verificar as tendências deste tipo de discussão: “Temos, portanto, mais um apartheid social. Sim, porque essa súmula pode até deixar margens de dúvida a respeito de quando as algemas não devem ser usadas, mas quando elas devem ser usadas continua claro: quando se tratar daquele criminoso dos crimes com violência real, normalmente contra o patrimônio. Ou seja, em virtude da súmula vinculante nº 11, restará saber se determinado delinqüente do colarinho branco deve ou não ser algemado e na maioria das vezes, a autoridade policial não terá como sustentar que ele deverá sê-lo, em virtude dos requisitos erigidos pelo STF.” (grifo nosso.) E, complementando esta tese, defende Gomes (GOMES, 2007): “A maior parte das críticas (falta de regulamentação, excepcionalidade da medida) possui como pano de fundo o ‘preconceito de classes’, pois, na prisão de traficantes e assaltantes de bancos, cargas e valores, abordagens em morros, favelas e comunidades humildes, afastados dos círculos de influência e amizade da burguesia e altas autoridades, os medalhões do direito e os mecenas da ‘presunção de inocência’ nunca levantaram suas vozes.” Percebe-se que de fato não há um padrão para o uso das algemas, mas que há divergência quanto ao tratamento em relação às classes sociais. Nas classes de menor poder aquisitivo, o uso de algemas é quase padronizado, utilizado em todas as pessoas que são detidas pelas forças policiais, ao passo que em classes com maior poder aquisitivo e de influência, o costume é por não algemar. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em um país que adota o chamado civil low, ou seja, as decisões judiciais são amparadas principalmente nas leis (em sentido amplo) e, tendência atual, nos princípios, é necessário que haja regulamentação sobre assunto que envolva conflitos entre os direitos fundamentais, como a liberdade, a dignidade da pessoa humana, e a segurança daqueles que são, em alguns casos, o único braço do Estado que tem contato direto com a sociedade, no caso, as forças policiais. Não há como sustentar que um procedimento seja adotado de forma distinta em função de classe social. É preciso, conforme preconiza a Constituição Federal do Brasil, buscar um tratamento equânime, independente da classificação econômica do agente sujeito à condução coercitiva. O procedimento deve ser exclusivamente em função da situação, da periculosidade, da possibilidade de reação ou de fuga. Assim sendo, todos aqueles que se enquadram nestas situações, podem e devem ser algemados, para garantir não só a integridade física dos condutores, geralmente as polícias, mas também sua própria segurança, já que, numa possível reação, o uso de arma letal pode ser necessário. O Congresso Nacional deve se movimentar no sentido de aprovar uma legislação para regulamentar essa questão e dar liberdade para que as forças policiais possam atuar e que, num eventual abuso de poder, os cidadãos possam lutar por seus direitos, punindo os agentes públicos de acordo com a Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 4898/ 65). Em síntese, a excelente conclusão de José Reinaldo Guimarães Carneiro, Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, citado por Gomes (GOMES, 2007): “Os argumentos contra as algemas são variados e criativos. Ora se diz presente excesso de poder, ora se afirma o desrespeito puro e simples a direitos constitucionais. O que não se diz, às claras, é que o argumento é essencialmente preconceituoso. Querem fazer crer, com péssimo propósito, que o colarinho branco não precisa ser algemado. Tiram do uso do equipamento somente a sua simbologia de suposta humilhação, para concluir, às avessas, que só quem merece as algemas é o réu ordinário, aquele que mal consegue defesa técnica digna. O Brasil não merece debate tão pobre.”
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-65/utilizacao-de-algemas-entre-o-risco-e-a-liberdade/
A publicidade no processo penal e a democracia capitalista: um binômio problemático!
O presente trabalho destina-se a especular sobre a definição de democracia capitalista e os seus reflexos para a publicidade relativa ao processo penal.
Direito Processual Penal
Resumo: O presente trabalho destina-se a especular sobre a definição de democracia capitalista e os seus reflexos para a publicidade relativa ao processo penal. Palavras-chave: Democracia Capitalista – Publicidade – Processo Penal. Résumé: Ce travail a pour but de spéculer sur la définition de la démocratie capitaliste et ses conséquences pour la publicité sur la procédure pénale. Mots-clés: Démocratie capitaliste – Publicité – procédure pénale. Sumário: I. Reflexões sobre a democracia capitalista; II. Reflexos sobre a publicidade no processo penal; III. Conclusão. I. Reflexões sobre a democracia capitalista A democracria capitalista deve ser vista com desconfiança. É possível afirmar, com espeque em Weber[1], que a democracia capitalista é a engrenagem mais aperfeiçoada do Poder. Ou seja, esta espécie de democracia permite a dominação perfeita, vez que incute no dominado a ideologia de igualdade de participação no Poder e da liberdade social. Afinal, o mais perfeito dos Poderes é aquele que não é percebido[2]. O dominado toma como sua a ideologia do dominador[3]. Mais que isso, a democracia capitalista desconsidera a irracionalidade humana[4], irracionalidade que é amplificada e fomentada no exercício do Poder. Nesse sentido, então, a democracia capitalista é uma emboscada, uma estratégia anestésica do Poder.[5] A armadilha dos ingênuos, a estratégia do Capital e o discurso dos “homens de boa vontade”. Mas quem nos protege da bondade dos bons? Em suma, a democracia capitalista pressupõe a exclusão. Como bem nos lembra Aristóteles, somente os homens livres exercem a liberdade política, participam da polis e, para isso, faz-se necessário que possuam escravos, de sorte que estes possam proporcionar àqueles a liberdade do discurso[6], o desapego à necessidade de sobrevivência. Quem tem fome não é livre. Por tudo isso, a democracia capitalista deve ser compreendida com um objeto de fé ou, para ser otimista (ou seria utilitarista?), como um valor ideal que supostamente poderia ser perseguido. II. Reflexos sobre a publicidade no processo penal É neste cenário “democrático” que o princípio da publicidade no processo penal está inserido. O princípio da publicidade no processo penal de hoje não é o mesmo de ontem. Parece está ocorrendo uma revolução silenciosa. Já não se sabe mais onde termina o limite de tal princípio e onde começa o território da liberdade de imprensa. Qual é a linha que demarca a fronteira entre o princípio da publicidade no processo penal e a liberdade de acesso à informação? O que resulta dessa confusão de direitos e princípio é a impressão de que os seus limites se diluíram. Foram dragados por um novo modelo de sociedade, que se estabelece pouco a pouco, de forma rápida e silenciosa, uma sociedade pós-moderna. Neste palco, os direitos e princípios alternam seus papéis, e disso resulta um único e ideológico conceito[7], o de publicidade. Mas este conceito, ao contrário dos demais, não encontra limites. A publicidade invade os lares, devassa a intimidade, fragiliza os valores e redesenha, através da tecnologia (tecnocracia), a sociedade fluida, heterogênea, complexa, paradoxal e consumerista atual. Mas a embalagem não adverte: “cuidado, a publicidade faz mal à saúde”! Não seria a ingenuidade a verdadeira enfermidade?[8] Quando a redoma da segurança está rachada, a escolha torna-se a ilusão de liberdade. O homem se vê perdido, desnorteado entre dúvidas, atordoado entre aparências de escolha. Lacaio da desconfiança, servo da conspiração. A moral, pouco a pouco, se dilui, e a ética é re-programada[9]. A luz do flash queima e a sombra se torna o melhor esconderijo. O dissimulado torna-se contagioso. Enquanto isso, os estudiosos do Direito dedicam páginas e mais páginas para precisar os limites do que venha a ser o princípio da publicidade. Uns afirmam se tratar de princípio[10]. Outros, por sua vez, sustentam que se trata de uma regra. Outros, ainda, afirmam que, em verdade, se trata de uma norma[11]. Quando o Direito se divorciou da Filosofia, da Sociologia, da Psicanálise…? Seria a proporcionalidade a solução para o drama provocado pela publicidade? Eis a mais nova tábua de salvação! Não seria a proporcionalidade o mais novo e badalado mito do mundo arrogante jurídico? Para onde foram as certezas?[12] Tudo de repente ficou tão inseguro. Constata-se, então, a necessidade de um novo olhar sobre o princípio da publicidade no processo penal. Um olhar que contextualize tal princípio numa sociedade contemporânea e que o analise a partir de uma perspectiva transdisciplinar. É neste teatro de tendências que a publicidade, este ser mutante (re)configurado na sociedade pós-moderna[13], é amplificada pelas ondas do rádio, artificializada por meio dos sinais da televisão e “globalizada” através da internet, a qual insere o homem no “ciberespaço”, cria a aparência de inclusão para o excluído; constrói, destrói e reconstrói o significado de (demo)cracia; adapta, versatiliza e fluidifica a dose necessária e cotidiana de anestesia. III. Conclusão Esta mesma publicidade que administra o torpor do Vulnerável para evitar a sua crise de abstinência incontrolável, que transforma o homem em produto descartável. Afinal, quem não tem presente se conforma com o futuro. Eis, então, que a overdose de publi-demo-cracia transforma o consumidor-cidadão em mercadoria[14]. A epidemia depressiva é sintoma dessa agonia. Quanto mais o estranho se esconde, mais o nome dele é alardeado. Nunca antes a sociedade sofreu tanto de esquizofrenia. Mas a publicidade não é a apenas um artigo de consumo, é também uma ferramenta do poder. Mais que isso, é um valor caro ao Poder. A publicidade cria uma realidade virtual mais real do que a real[15]. O criptográfico é colocado à venda na prateleira. E, neste cenário de angústias, a democracia capitalista entra crise, ou será que é o Poder que está em crise? Ou melhor, não será que quem agoniza é o Capital? Não seria a hegemonia da democracia capitalista a engrenagem perfeita de dominação a serviço do Capital? Quem disse que o Estado detém todo o poder?[16] Afinal, o mais perfeito dos poderes é aquele que não é percebido. O Eu, então, encobre o Outro e este se torna um segundo Eu. Afinal, quanto maior a liberdade de escolha do Ego, maior a capacidade de domínio do Alter. Notas: [1] WEBER, Max. Economia e Sociedade. Volume I. Brasília: Unb, 2004, p. 76-87. [2] FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. Reflexões sobre o Poder, a Liberdade e a Justiça. São Paulo: Atlas, 2002, p. 15. [3] GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. passim. [4] HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 83-92. [5] LENIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo- Fase superior do Capitalismo. São Paulo: Centauro, 1990., p. 15-25. [6] ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martin Claret, 2002. passim. [7] MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 3ª edição, 1969. passim. [8] LYOTARD, Jean-François. A Condição-Pós Moderna. Tradução: Wilmar do Valle Barbosa. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2006, p. 80. [9] ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006. passim. [10] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Jéferson Luiz Camargo. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. passim. [11] ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Políticos e Constitucionales, 2002. passim. [12] PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 1996, p. 7-16. [13] BAUMAN. Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Tradução: Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 52 [14] BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: 70 Arte & Comunicação, 2007. passim [15] BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Tradução: Maria João Pereira. Lisboa: Relógio D’água, 1997, p. 27. [16] ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3. ed. Tradução de Karin Praefke-Aires Coutinho. Coordenação José Joaquim Gomes Canotilho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Ciências Criminais pela UFBA. Professor de Processo Penal da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Professor de Direito Penal da Universidade Salvador (UNIFACS). Analista Previdenciário junto à Procuradoria Federal Especializada do INSS na Bahia.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-64/a-publicidade-no-processo-penal-e-a-democracia-capitalista-um-binomio-problematico/
A posse de substâncias entorpecentes no contexto da Lei nº 11.343/06 e suas repercussões na execução penal
Há grande repercussão acerca da posse de substâncias entorpecentes durante a execução da pena, haja vista que se já houve imputação de pena em razão de tráfico ou de uso de drogas, não pode o indivíduo ser novamente punido pelo consumo durante o cumprimento da sanção a ele imposta, sob pena de incorrer em bis in idem. Ainda, se a condenação ocorrerá em razão de outro delito, há que se falar em regressão de regime prisional uma vez que a Lei nº 11.343/06 sequer pune com cárcere a posse de drogas. O assunto vem sendo discutido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que está aplicando a Lei de Execuções Penais para regredir o regime prisional do apenado quando este se encontra em posse de drogas.
Direito Processual Penal
1 Introdução A nova Lei de drogas obteve grande repercussão por chamar atenção para um aspecto ainda não percebido pela legislação brasileira. Ela enfrentou o tema das drogas de forma diferente, passando a tratar o consumo de entorpecentes como de fato ele é: algo que incontestavelmente existe, que cresce a cada dia e que, em verdade, não há perspectiva de estanque. Dessa forma, o consumo de drogas, conseqüentemente, movimenta o tráfico, questão preocupante e aventada internacionalmente. O tema ora apresentado e desenvolvido apresenta diversos posicionamentos na doutrina e na jurisprudência, além de ser também polêmico, por envolver aspectos de ordem pública. O que efetivamente está em discussão e, portanto, justifica-se na elaboração deste artigo, são as alterações da nova Lei de drogas no que se refere à sanção imposta para a posse de drogas e sua repercussão na execução penal. A fim de possibilitar a compreensão da importância da aplicação do processo penal à luz da Constituição Federal, será discutido o tipo penal consumo (art. 28 da Lei 11.343/06), bem como seus elementos, requisitos, implicações e penalidades. Ainda, será analisada a jurisprudência acerca da aplicabilidade da Lei de Execuções Penais em consonância com a nova Lei de drogas, uma vez que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já vem aplicando a regressão de regime prevista pela Lei de Execuções Penais a presos que configuram a posse de substâncias entorpecentes durante o cumprimento da pena. Ademais, não há como deixar de comentar o modo como a droga chega às casas prisionais. É imperioso dizer que todos têm conhecimento quanto à entrada de drogas no presídio, inclusive os próprios agentes penitenciários, que quando encontram tais substâncias ilícitas, instauram procedimentos administrativos disciplinares para apurar a desobediência dos apenados no tocante à Lei de Execução Penal. Outrossim, o apenado não sofre apenas regressão de seu regime, mas também sofre a perda dos dias já remidos em razão do trabalho que exerceu durante a execução da sanção. O direito à remissão da pena está claro na Lei de Execuções Penais, a fim de estimular a reinserção gradual do apenado ao convívio social. 2 A posse de substâncias entorpecentes conforme a Lei 11.343/06 O direito penal traz consigo a atribuição de encarcerar, de afastar do convívio social, aquele que infringe determinada norma imposta pela sociedade. Diante disto, seu caráter torna-se, especificamente, fazer o que os outros ramos do Direito não fizeram, ou seja, impor sanção não apenas pecuniária e, sim, privativa de liberdade. Neste sentido, não há dúvida de que a nova Lei de drogas traz uma natureza descarcerizadora e não, descriminalizadora, pois a conduta não deixa de ser crime, somente passa a não ser punida com pena de reclusão. Sabidamente, a nova Lei possui caráter pedagógico, objetivando a prevenção e o tratamento do usuário de drogas, conforme prevê o seu artigo 28, incisos I, II e III e parágrafo 7º. Assim sendo, o usuário de drogas passa a ser reconhecido como doente, em razão da dependência química. Não há possibilidade de promover prevenção, uma vez que o usuário somente será advertido dos efeitos do uso de drogas quando já estiver sendo processado pelo uso. Ainda, não há que se falar em Lei para prevenir, se o “advertido” já terá feito uso de substância entorpecente e certamente já terá sido conhecedor dos efeitos que o uso de drogas acarreta. Ademais, de forma alguma há efetivo tratamento, visto que nem ao certo é tipificada corretamente a conduta (que pode ser enquadrada no delito de tráfico, conforme as circunstâncias e quantidade), tampouco é conhecido o grau de dependência química e psíquica. A nova Lei de drogas adota um posicionamento extremamente evoluído e racional do ponto de vista legal. Há uma expressiva mudança da forma de abordagem que tínhamos dos crimes relacionados a substâncias entorpecentes ilícitas. O usuário (agora visto como dependente químico) assume uma posição privilegiada em relação ao texto legal anterior. Em contrapartida, o tráfico e a produção de drogas recebem uma sanção mais severa. No Brasil, a política criminal de drogas sempre se mostrou conservadora no tocante a assuntos que abrangem drogas. A intenção legislativa da Lei nº 11.343/06 é bem clara ao retirar a essência criminosa do usuário de drogas, que passa a ocupar uma posição de vítima direta do tráfico de drogas. De outra banda, não podemos deixar de frisar que em relação ao consumo próprio de drogas, o tipo penal configurado sequer causa efetiva lesão ou gravidade ao bem jurídico, qual seja, a saúde pública. A coletividade não sofre qualquer dano quando determinado indivíduo faz uso de substâncias entorpecentes. Nesse diapasão, cabe ressaltar, ainda, o procedimento especial definido pela nova Lei, que afasta o seu próprio rito, estabelecendo o que o delito de consumo próprio deve ser processado e julgado pela Lei que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais (Lei nº 9.099/95). Tão somente por essa disposição, observa-se claramente que a conduta tipificada pelo artigo 28 é de menor potencial ofensivo. Dessa forma, há de se concordar que uma vez abolida a pena de encarceramento, o usuário não oferece risco algum à sociedade, motivo pelo qual não é mais afastado do convívio social. 3 As repercussões da posse de drogas na Execução Penal Se o usuário, pela nova Lei de drogas, não é mais punido com pena privativa de liberdade, não há motivo para que seu regime prisional sofra regressão durante a execução de sua pena em razão de ser o apenado surpreendido com drogas. A punição dada ao apenado deve ser a mesma dispensada ao indivíduo que não está cumprindo pena de prisão, sob pena de aplicar-lhe sanção maior que a prevista na nova Lei. Ademais, se o indivíduo está cumprindo pena justamente em razão das drogas, ele já está pagando à sociedade o que é devido. Se já foi condenado por este delito, não pode ser novamente prejudicado pela mesma conduta. A 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou em 18/12/2008 o Agravo nº 70027252519, interposto pelo Ministério Público contra decisão do Juízo da Vara de Execuções Criminais de Cachoeira do Sul que não reconheceu como falta grave a conduta de um apenado em regime semi-aberto. O Ministério Público, resumidamente, sustenta tratar-se de cometimento de crime doloso no curso do cumprimento da pena, a seguinte situação: “[…] durante uma revista procedida no albergue, foi encontrado no armário do apenado entorpecente e bebida alcoólica. Assim, afirma que a posse de droga no presídio configura cometimento de novo delito previsto no art. 28 da Lei nº 11.343/06. […]”. Em razão de tal circunstância, o Órgão Ministerial requereu a regressão de regime, a perda dos dias remidos e a alteração da data-base para futuros benefícios. O desembargador relator, acompanhado dos vogais, deu provimento às alegações do Ministério Público nos seguintes termos: “[…] mister ressaltar que o apenado cumpre pena por tráfico ilícito de entorpecentes e associação para o tráfico. Assim, entendo que a imputação caracteriza falta grave a ensejar a regressão do regime, a perda dos dias remidos e a alteração da data-base para futuros benefícios. Portanto, reconheço como falta grave a conduta praticada pelo apenado […] e determino a regressão do regime, a perda dos dias remidos, se houver, bem como a modificação da data-base, fixando-a na data em que terá seu regime regredido, tudo com fundamento nos artigos 52, 118, I, e 127, todos da Lei n.º 7.210/84. […]”. (grifei) Como pode o apenado ter seu regime regredido em razão de suposta propriedade de drogas, se o artigo 28 da Lei nº 11.343/06 não prevê pena de cárcere para quem praticar a conduta prevista em seu tipo penal? Não é possível aplicar tão-somente a Lei de Execução Penal sem observar a pena prevista na Lei especifica sobre drogas. As leis devem ser aplicadas a partir de uma interpretação sistemática do Direito. 4 Conclusão A Lei de Execuções Penais prevê a punição com regressão de regime para quem incorrer em crime doloso no curso do cumprimento da pena. Como vimos, o referido artigo 28, que tipifica o consumo, não pune mais com pena de prisão, por conseguinte, não afasta mais do convívio social o dependente químico. Por isso, não há possibilidade de regredir o regime prisional de quem consome substâncias entorpecentes no curso da pena. Outrossim, observa-se que a regressão de regime prisional não é a única conseqüência gerada pela posse de drogas no curso da execução penal. Além de não ter seu regime prisional regredido, o apenado ainda corre o risco de ter invalidada eventual remissão de pena concedida em razão de seu trabalho durante o cumprimento de sua pena. Não há como concluir de outra forma, senão que a Lei de Execuções Penais está sendo aplicada de modo a prejudicar o réu, o que jamais é admitido segundo os princípios do Direito Penal Brasileiro.   Bibliografia BACILA, Carlos Roberto; RANGEL, Paulo. Comentários Penais e Processuais Penais à Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8ª edição, Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002. BASAN, Pedro Mudrey. Nova lei de repressão aos tóxicos comentada: doutrina, legislação, jurisprudência. São Paulo: Pró-Livro Comércio de Livros Profissionais, 1977. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, volume 1. 9ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2004. BIZZOTTO, Alexandre; RODRIGUES, Andreia de Brito. Nova Lei de Drogas Comentários à Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. 2ª edição, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil (Estudo Criminológico e Dogmático). 4ª edição ampliada, atualizada e com comentários à Lei 11.343/06, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. __________. A Política Criminal de Drogas no Brasil: (do discurso oficial às razões de descriminalização). 2ª edição, Rio de Janeiro: Editora Luam, 1997. CASTILHO NETO, Arthur de; Barreto, João de Deus Lacerda Menna. Entorpecentes. 2ª edição, Brasília, Ministério da Justiça, 1983. GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos: prevenção-repressão: comentários à Lei n.º 6.368, de 21-10-1976, acompanhados da legislação vigente e de referência e ementário jurisprudencial. 11ª edição, atualizada, São Paulo: Saraiva, 1996. FOCCHI, Guilherme Rubino de Azevedo; Andrade, Arthur Guerra de; Leite, Marcos da Costa; Laranjeira, Ronaldo. Dependência química: novos modelos de tratamento. 1ª edição, São Paulo: Roca, 2001. Isaac Sabbá Guimarães. O problema da toxicodependência: as novas achegas da política criminal.http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5163 Acesso em: 07 de setembro de 2008. Disponível em: João Evaldo dos Santos Lourido Júnior. Drogas: A Classe Média frente à Lei 11.343/2006. Disponível em: http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?action=doutrina&coddou=4521 Acesso em: 14 de setembro de 2008. Luis Flávio Gomes. Drogas: combater ou controlar? Disponível em: http://www.wiki-iuspedia.com.br/article.php?story=20040927113042529 Acesso em: 17 de agosto de 2008. MARCÃO, Renato. Tóxicos: Leis n. 6.368/1976 e 10.409/2002: anotadas e interpretadas. 2ª edição, revista e ampliada, São Paulo: Saraiva, 2005. MARLATT, G. Alan; Gordon, Judith R. Prevenção de Recaída: Estratégias de Manutenção no Tratamento de Comportamentos Adictivos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2ª edição, revisada, atualizada e ampliada, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. __________. Código Penal Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. RANGEL, Mário Guaraci de Carvalho. Lei de tóxicos: comentários e aspectos internacionais. Rio de Janeiro: Forense, 1978. SILVA, Jorge Vicente. Tóxicos. 2ª edição, 4ª tiragem, Curitiba: Editora Jurua, 2005. THUMS, Gilberto; Pacheco, Vilmar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008. VIEIRA, João. O magistrado e a lei antitóxicos. 2ª edição revista e ampliada, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. Tóxicos/organização de textos: notas remissivas e índices por Juarez de Oliveira. 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 1985.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-63/a-posse-de-substancias-entorpecentes-no-contexto-da-lei-n-11-343-06-e-suas-repercussoes-na-execucao-penal/