O_Alienista
stringclasses
1 value
Cinco_Minutos
stringclasses
1 value
O_Mulato
stringclasses
1 value
Clara_dos_Anjos
stringclasses
1 value
O Alienista, de Machado de Assis Fonte: ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: FTD, 1994. (Grandes leituras). Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <bibvirt@futuro.usp.br>. Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <bibvirt@futuro.usp.br> e saiba como isso é possível. O Alienista Machado de Assis CAPÍTULO I - DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia. —A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo. Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte. D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência,—explicável, mas inqualificável,— devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes. Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de louros imarcescíveis, — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores. —A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico. —Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais. A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico. —Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo. D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe "que estava com desejos", um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redargüiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloqüência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil. — Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa? Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo; tinha cinqüenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A idéia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente. A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestiu-se luxuosamente, cobriu-se de jóias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto,—e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade do tempo, —porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores. Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates. CAPÍTULO II - TORRENTES DE LOUCOS Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o mistério do seu coração. —A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos Coríntios: "Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada". O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade. —Um excelente serviço, corrigiu o boticário. —Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos. —Muito maior, acrescentou o outro. E tinha razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua! —Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos os dias. — Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe... —Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica, e disso trato... —Vá que seja, e fico ansioso. Realmente! Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade. O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos. A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes ( porque não olhava nunca para nenhuma pessoa ) toda a sua genealogia, que era esta: —Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu. Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas: —Deus engendrou um ovo, o ovo, etc. Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus. Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científico. Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa idéia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.—A Casa Verde, disse ele ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual. E o Padre Lopes ria deste pio trocado,—e acrescentava,—com o único fim de dizer também uma chalaça: —Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa. Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista. CAPÍTULO III - DEUS SABE O QUE FAZ Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres: caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou: —Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos... Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto,—os olhos, que eram a sua feição mais insinuante,— negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento. Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo caso, o alienista não lhe atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo. Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do Cântico: —Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro. D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que Itaguaí, Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior, agora é que ela perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pagou-lhe na mão e sorriu,—um sorriso tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento: — "Não há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se". E porque era homem estudioso tomou nota da observação. Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas estradas. —Irá com sua tia, redargüiu o alienista. Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo nem insinuá-lo, em primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era melhor, mais metódico e racional que a proposta viesse dele. —Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! suspirou D. Evarista sem convicção. —Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me contas. Queres ver? E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-láctea de algarismos. E depois levou-a às arcas, onde estava o dinheiro. Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência. Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusões: —Quem diria que meia dúzia de lunáticos... D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação: —Deus sabe o que faz! Três meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dali sair em certa manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a idéia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo. —Adeus! soluçaram enfim as damas e o boticário. E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras. CAPÍTULO IV - UMA TEORIA NOVA Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o 1 [Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa idéia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heróicos. Um dia de manhã,—eram passadas três semanas,—estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar. —Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador. Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez:—"Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora agüenta-te; anda, agüenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amem a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!"—E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde. Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspeção até o pescoço. —Estou muito contente, disse ele. —Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula. O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu: —Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha idéia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente. Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua idéia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente: —A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério. —Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu. Quanto à idéia de ampliar 0 território da loucura, achou-a 0 boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia; ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz;—ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão. De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam,—um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores,—aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde,—desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século. —Há melhor do que anunciar a minha idéia, é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do boticário. E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução. —Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele. Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse: —Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia. O Vigário Lopes a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia princípio de execução. —Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca? Sobre o lábio fino e discreto do alienista rogou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas. A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução. CAPÍTULO V - O TERROR Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido à Casa Verde. —Impossível! —Qual impossível! foi recolhido hoje de manhã. — Mas, na verdade, ele não merecia... Ainda em cima! depois de tanto que ele fez... Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí, Herdara quatrocentos mil cruzados em boa moeda de El-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou 0 tio no testamento, para viver "até o fim do mundo". Tão depressa recolheu a herança, como entrou a dividi-la em empréstimos, sem *usura, mil cruzados a um, dois mil a outro, trezentos a este, oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí, seria enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria, gradualmente. Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao chão, logo que ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos corteses eram justamente os que tinham ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os agasalhava com maior prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuráveis devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um desafeiçoado, com certa perfídia: — "Você suporta esse sujeito para ver se ele lhe paga". Costa não se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a divida.— "Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mão de uma estrela, que está no céu". Costa era perspicaz, entendeu que ele negava todo o merecimento ao ato, atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham meter-lhe na algibeira. Era também pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe não cabia um tal labéu: pegou de algumas dobras, e mandou-as de empréstimo ao devedor. —Agora espero que...—pensou ele sem concluir a frase. Esse último rasgo do Costa persuadiu a crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs em dúvida os sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadão. As necessidades mais acanhadas saíram à rua, vieram bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos, com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto, rola a alma do Costa: era o conceito do desafeto. Mas isso mesmo acabou; três meses depois veio este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lhos daí a dois dias; era 0 resíduo da grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco meses depois era recolhido à Casa Verde. Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis,—ou mansos, e até engraçados, conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranqüilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava no perfeito equilíbrio das faculdades mentais, à vista do modo como dissipara os cabedais que... —Isso, não! isso, não! interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é dele. —Não? —Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar 0 chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine como ficou. A cara era um pimentão; todo ele tremia, a boca escumava; lembra-me como se fosse hoje. Então um homem feio, cabeludo, em mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio (Deus lhe fale n alma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para ele, abriu a mão em ar de ameaça, e rogou esta praga:—"Todo o seu dinheiro não há de durar mais de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o sino-salamão! E mostrou o sino-salamão impresso no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquele maldito. Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na galeria dos alucinados. A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia jurar. —Você, que é íntimo dele, não nos podia dizer o que há, o que houve, que motivo... Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atônitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio, porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos, secos, encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana. —Há coisa, pensavam os mais desconfiados. Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha negócios pessoais Acabava de construir uma casa suntuosa. Só a casa bastava para deter a chamar toda a gente; mas havia mais,—a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda, segundo contava, e que se podia ver do lado de fora, porque as janelas viviam abertas,—e o jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma casa magnífica, jardim pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas, mas repousava dele na contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que a Casa Verde, mais nobre do que a da Câmara, Entre a gente ilustre da povoação havia choro e ranger de dentes, quando se pensava, ou se falava, ou se louvava a casa do albardeiro,—um simples albardeiro, Deus do céu! —Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã. De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado, durante uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos, embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras despregadas. — Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde. A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as famílias safam a passeio (jantavam cedo) usava o Mateus postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até que anoitecia de todo. Pode crer-se que a intenção do Mateus era ser admirado e invejado, posto que ele não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao Padre Lopes seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a alegação do boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desde algum tempo. Aquilo de contemplar a casa... —Não, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares. —Não? —Há de perdoar-me, mas talvez não saiba que ele de manhã examina a obra, não a admira; de tarde, são os outros que o admiram a ele e à obra.—E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde cedo até o cair da noite. Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou ele não conhecia todos os costumes do albardeiro, ou nada mais quis, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma notícia incerta ou suspeita vaga. A explicação satisfê-lo; mas como tinha as alegrias próprias de um sábio, concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar uma intenção sinistra. Ao contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço para irem a passeio. Deus! era a primeira vez que Simão Bacamarte dava o seu privado tamanha honra; Crispim ficou trêmulo, atarantado, disse que sim, que estava pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou-as mentalmente a todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer que Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele. Que impaciência! que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da casa do albardeiro, viu-o à janela, passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, examinando as atitudes, a expressão do rosto. O pobre Mateus, apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro volto de Itaguaí redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes... Triste! triste, não fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde. —A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica. Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí,—a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas,— duas ou três de consideração,—foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública. Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva, —ou quase toda—que algumas semanas antes partira de Itaguaí O alienista foi recebê-la, com o boticário, o Padre Lopes os vereadores e vários outros magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, —balbuciou uma palavra e atirou-se ao consorte—de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona que caiu neles e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos D. Evarista recebia os cumprimentos dos amigos e o préstito punha-se em marcha. D. Evarista era a esperança de Itaguaí contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde. Daí as aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e damascos às janelas. Com o braço apoiado no do Padre Lopes —porque o eminente confiara a mulher ao vigário e acompanhava-os a passo meditativo—D. Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário indagava do Rio de Janeiro, que ele não vira desde o vice-reinado anterior; e D. Evarista respondia entusiasmada que era a coisa mais bela que podia haver no mundo. O Passeio Público estava acabado, um paraíso onde ela fora muitas vezes, e a Rua das Belas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah! o chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas—feitas de metal e despejando água pela boca fora. Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro devia estar agora muito mais bonito. Se já o era noutro tempo! Não admira, maior do que Itaguaí, e, demais, sede do governo... Mas não se pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha belas casas, a casa do Mateus, a Casa Verde... —A propósito de Casa Verde, disse o Padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião, a senhora vem achá-la muito cheia de gente. —Sim? —É verdade. Lá está o Mateus... —O albardeiro? —O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e... —Tudo isso doido? —Ou quase doido, obtemperou padre. —Mas então? O vigário derreou os cantos da boca, à maneira de quem não sabe nada ou não quer dizer tudo; resposta vaga, que se não pode repetir a outra pessoa por falta de texto. D. Evarista achou realmente extraordinário que toda aquela gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos? Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio, não recolheria ninguém à Casa Verde sem prova evidente de loucura. —Sem dúvida... sem dúvida... ia pontuando o vigário. Três horas depois cerca de cinqüenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas segundo a versão modesta de Crispim Soares e dois sóis no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito, dizia ao ouvido da mulher que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D. Evarista fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando três quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. Deus, disse ele, depois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista." D. Evarista baixou os olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, 0 gesto do alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças e provavelmente de sangue. O atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que removesse qualquer episódio trágico—ou que o adiasse ao menos para o dia seguinte. Sim, que o adiasse. Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir consigo mesma que D. Evarista não merecia nenhuma desconfiança, tão longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água-morna. Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? Esta idéia fê-la tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que era um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a idéia relativa ao nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em algum autor que?... Não senhor; era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e pareceu-lhe adequada a um arroubo oratório. De resto, suas idéias eram antes arrojadas do que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo, compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o "dragão aspérrimo do Nada" esmagado pelas "garras vingadoras do Todo"; e assim outras mais ou menos fora do comum; gostava das idéias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres... — Pobre moço! pensou o alienista. E continuou consigo: —Trata-se de um caso de lesão cerebral: fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo... D. Evarista ficou estupefata quando soube, três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na Casa Verde. Um moço que tinha idéias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o ato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra coisa; realmente, a declaração do moço fora audaciosa demais. Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico das cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos safam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia emigrava. Um desses fugitivos chegou a ser preso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distancia de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das cortesias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes pessoais, que eram raros, como à nobre tenacidade com que nunca desanimava diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia era que, uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da casa o deixavam a ele, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de olho; na madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à Casa Verde. —Devemos acabar com isto! —Não pode continuar! —Abaixo a tirania! —Déspota! violento! Golias! Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror crescia; avizinhava-se a rebelião. A idéia de uma petição ao governo, para que Simão Bacamarte fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio a expendesse na loja com grandes gestos de indignação. Note-se — e essa é uma das laudas mais puras desta sombrio história — note-se que o Porfírio, desde que a Casa Verde começara a povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas que dali lhe pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse público. E acrescentava:—é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse grito justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um homem que trazia com ele uma demanda, o Coelho. —Não me dirão em que é que o Coelho é doido? bradou o Porfírio, E ninguém lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma demanda que ele trazia com o barbeiro, acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de um alvará e não da cobiça ou ódio. Um excelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que tinha eram alguns sujeitos que dizendo-se taciturnos ou alegando andar com pressa mal o viam de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas, etc. Na verdade, ele amava a boa palestra, a palestra comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que sabiam dizer duas palavras, mas não desdenhando os outros. O Padre Lopes que cultivava o Dante, e era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e emendasse este trecho: La bocca sollevò dal fiero pasto Quel "seccatore"... mas uns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto era uma oração em latim. CAPÍTULO VI - A REBELIÃO Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e `_ levaram uma representação à Câmara. A Câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua. —Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos. A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da rebelião e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis e algumas distintas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos tais não eram tratados de graça: as famílias e em falta delas a Câmara pagavam ao alienista... —É falso! interrompeu o presidente. —Falso? —Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico em que nos declara que, tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela Câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos. A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para demonstrar o erro, era preciso alguma coisa mais do que arruaças e clamores. Isto disse o presidente, com aplauso de toda a Câmara. O barbeiro, depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato público e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde—"essa Bastilha da razão humana"—expressão que ouvira a um poeta local e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e, a um sinal, todos saíram com ele. Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde—"Bastilha da razão humana"—achou-a tão elegante que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão: —Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista? Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo, com prudência mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas idéias na rua para não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião Freitas prometeu suspender qualquer ação, reservando-se o direito de pedir pelos meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo namorado:— Bastilha da razão humana! Entretanto a arruaça crescia. Já não eram trinta mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe o Canjica—e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A ação podia ser restrita—visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde,— dada a diferença de Paris a Itaguaí,—podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha. D. Evarista teve noticia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela provava nessa ocasião um vestido de seda,—um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro,—e não quis crer. —Há de ser alguma patuscada, dizia ela, mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a barra está boa. —Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim. Está muito boa. —Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: — Morra o Dr. Bacamarte!!! o tirano! dizia o moleque assustado. —Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para ficar igualzinho e... — Morra o Dr. Bacamarte!!! morra o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova. D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante de triunfo súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha jurar por ele. —Morra o alienista! bradavam as vozes mais perto. D. Evarista, se não resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis;; os olhos dele, empanados pela cogitação, subiam do livro ao reto e baixavam do reto ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentais. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente. —Você não ouve estes gritos? perguntou a digna esposa em lágrimas. O alienista atendeu então; os gritos aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e tranqüilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume desconsertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher que se recolhesse, que não fizesse nada. —Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você... Simão Bacamarte teimou que não, que não era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe, em nome da vida, que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa. —Abaixo a Casa Verde! bradavam os Canjicas. O alienista caminhou para a varanda da frente e chegou ali no momento em que a rebelião também chegava e parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de desespero.—Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar; os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então o barbeiro, agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse da paciência do povo como fizera até então. —Direi pouco, ou até não direi nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis. —Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida, ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão. —Não entendo. —Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância... O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma contração leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu: —Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas, se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em comissão dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes. Disse isto o alienista e a multidão ficou atônita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais, fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão ou talvez a forca ou o degredo. Infelizmente a resposta do alienista diminuíra o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação e quis bradar-lhes:— Canalhas! covardes! —mas conteve-se e rompeu deste modo: Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heróicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno. E a multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que tornava a si da ligeira síncope e ameaçava arrasar a Casa Verde. —Vamos! bradou Porfírio, agitando o chapéu. —Vamos! repetiram todos. Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na Rua Nova. CAPÍTULO VII - O INESPERADO Chegados os dragões em frente aos Canjicas houve um instante de estupefação. Os Canjicas não queriam crer que a força pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e esperou. Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos alevantados: —Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí. Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Canjicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa; alguns, trepando às janelas das casas ou correndo pela rua fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou bufando de cólera, indignada, animada pela exortação do barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço dos dragões,— qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram,—passou subitamente para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo que lançou o desanimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e um a um foram passando para eles, de modo que, ao cabo de alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado com alguma gente contra uma massa compacta que o ameaçava de morre. Não teve remédio, declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro. A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou para a Câmara Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao "ilustre Porfírio". Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de governo começava a eurijar-lhe os quadris. Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar um mês de soldo aos dragões, "cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes . Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes noticia da triste realidade. O presidente não desanimou:—Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo.—Sebastião insinuou que melhor se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas toda a Câmara rejeitou esse alvitre. Daí a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança intimava à Câmara a sua queda. A Câmara não resistiu, entregou-se e foi dali para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse (acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram. O barbeiro veio à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de—"Protetor da vila em nome de Sua Majestade, e do povo".—Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma proclamação ao povo, curta, mas enérgica: Itaguaienses! Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda publica, tão desbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós. O Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo Porfírio Caetano das Neves. Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras e sendo um dos homens aparentado com o Protetor. Não era um repto, um ato intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira; e a vila respirou com a esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e destruído o terrível cárcere. O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio Poucos gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O barbeiro faz expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o vigário para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o Padre Lopes recusou abertamente o seu concurso. —Em todo caso, Vossa Reverendíssima não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro, dando à fisionomia um aspecto tenebroso. Ao que o Padre Lopes respondeu, sem responder: —Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos? O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte. CAPÍTULO VIII - AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do palácio do governo,—foi a denominação dada à casa da Câmara,— com dois ajudantes-de-ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado. Não descrevo o terror do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista.—Vai prendê-lo, pensou ele. E redobraram-lhe as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em mais apertado lance: —a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a simples noticia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e que ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver. Fê-lo Catão , é verdade, sed victa Catoni, pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do Padre Lopes; mas Catão não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a causa da república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável egoísta; minha situação é outra. Insistindo, porém, a mulher, não achou Crispim Soares outra saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e meteu-se na cama. —Lá vai o Porfírio à casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da cama; vai acompanhado de gente. —Vai prendê-lo, pensou o boticário. Uma idéia traz outra; o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo a ele na qualidade de cúmplice. Esta idéia foi 0 melhor dos vesicatórios. Crispim Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sair; e, apesar de todos os esforços e protestos da consorte, vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia colocar-se nobremente ao lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam com muita perspicácia o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou resolutamente ao palácio do governo e não à casa do alienista. Ali chegando, mostrou-se admirado de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adesão, não o tendo feito desde a véspera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta declaração, sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a importância da adesão nova e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; afirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde, a negócio importante, mas não tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a de todos os patriotas; ao que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara outra coisa, que isso mesmo mandaria declarar a Sua Majestade. CAPÍTULO IX - DOIS LINDOS CASOS Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e portanto estava prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir pessoalmente à destruição da Casa Verde. — Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas.. Demais, a Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há entretanto—por força que há de haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito público. O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento do hospício, a prisão dele, o desterro, tudo, menos... —O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação, pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no animo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade. —Quantos mortos e feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos. O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos. —Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista. E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom mas que ele ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao que o barbeiro ia respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no descrédito em que a Câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos principais da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar não já com a simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele grande homem que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas impassível como um deus de pedra. —Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram, não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.—Dois lindos casos! —Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta. O alienista espiou pela janela e ainda ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta pessoas que o aclamavam: —...porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem, meus amigos, é a base do governo... —Viva o ilustre Porfírio bradaram as trinta vozes, agitando os chapéus. —Dois lindos casos! murmurou o alienista. CAPÍTULO X - RESTAURAÇÃO Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinqüenta aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava vendido ao ouro de Simão Bacamarte, frase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio vendo o antigo rival da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente com grandes frases que o ato de Porfírio! era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara corrupta, falou este de "um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua Majestade", etc. Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinqüenta e tantos indivíduos que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe mais dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na primeira rebelião. Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele ainda na véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de nenhum outro aro seu, acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados. Mas a prova mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a Câmara lhe entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena sessão, que não se contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário da Câmara entusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por meter 0 secretário na Casa Verde, e foi dali à Câmara à qual declarou que o presidente estava padecendo da "demência dos touros", um gênero que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a princípio hesitou, mas acabou cedendo. Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns cronistas crêem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à loa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há. —Onde é que este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos apoiado os Canjicas... Um dia de manhã—dia em que a Câmara devia dar um grande baile,—a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fora recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato. —Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente um vestido para a imagem de Nossa Senhora da matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite, porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira. Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa.—Que tem? perguntei-lhe.—Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito!—Pois leve o de safira.—Ah! mas onde fica o de granada?—Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um ora outro. Era evidente a demência: recolhi-a logo. O Padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de "mania santuária", não incurável e em todo caso digno de estudo. —Conto pô-la boa dentro de seis semanas, concluiu ele. E a abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjeturas, invenções, desconfianças, tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe—menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência. Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão. CAPÍTULO XI - O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua. —Todos? —Todos. —É impossível; alguns sim, mas todos... —Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara De fato o alienista oficiara à Câmara expondo: — 1': que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2° que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e do fato estatístico, resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4D que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5° que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde. O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e prolongadas. E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras. CAPÍTULO XII - O FINAL DO § 4º. Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos eixos. Reinava a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo sem nenhuma pressão externa; o presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O barbeiro Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo "provado tudo", como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às calam idades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido, atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu o nosso adágio:—ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão;— adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil. Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos atos que ele praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as crônicas que D. Evarista a princípio tivera idéia de separar-se do consorte, mas a dor de perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de amor-próprio e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes. Não menos íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou muito a magnanimidade do alienista, que ao dar-lhe a liberdade estendeu-lhe a mão de amigo velho. —É um grande homem, disse ele à mulher, referindo aquela circunstância. Não é preciso falar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros especialmente nomeados neste escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos anteriores. O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico—"cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra". — Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver restituído à liberdade. Entretanto, a Câmara que respondera o ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adorada sem debate uma postura, autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara antes mesmo daquele prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que, em nenhum caso, fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das conseqüências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega; este, porem, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção. —A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espírito humano. Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou 0 pedido do alienista e votou unanimemente a entrega. Compreende-se que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O Padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera e declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa noticia, esqueceu os motivos de dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde. —Um caso destes é raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim. Crispim Soares entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita atenção; mas antes disso não podia deixá -la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte: —O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá passará as noites, e os domingos e dias santos. A proposta colocou o pobre boticário na situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista. Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia cerebral. Um dia conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto escrúpulo que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos os seus atos e interrogar os principais da vila. Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em quem reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais que era perigoso deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente, desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome da pessoa em questão. —Então parece-lhe...? —Sem dúvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa. O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento e acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do réu foi solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe às mãos. O distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade. Mas nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele agente, reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde; deu-lhe todavia um dos melhores cubículos. Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal. Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso. — O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principais da vila. Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde.— Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz. Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana. CAPÍTULO XIII - PLUS ULTRA! Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista faz curas pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguaí. Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas,—graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente poeta que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve a idéia de mandar correr matraca para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro. —Foi um santo remédio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo remédio. Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas, não sendo escritor (mal sabia assinar o nome), não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos, estabelecida em Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por especial graça do finado Rei Dom João V, e implicavam o tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de Lisboa recusou o diploma; mas, representando o alienista que o não pedia como prêmio honorífico ou distinção legitima, e somente como um meio terapêutico para um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o faz sem extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que vinha a ser primo do alienado. Foi outro santo remédio. —Realmente, é admirável! Dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex-dementes. Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que a qualidade predominante resistia a tudo; então o alienista atacava outra parte, aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza por um ponto, se por outro o não pode conseguir. No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão cruelmente afligido de moderação e eqüidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação corrompendo os juízes e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza. Não aconteceu o mesmo com o Padre Lopes. Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbência, e em boa hora o fez; ao cabo de dois meses possuía um livro e a liberdade. Quanto à senhora do boticário, não ficou muito tempo na célula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos. —Por que é que o Crispim não vem visitar-me: dizia ela todos os dias. Respondiam-lhe ora uma coisa, ora outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona não pôde conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera escaparam-lhe expressões soltas e vagas, como estas: —Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas à custa de ungüentos falsificados e podres... Ah! tratante!... Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a acusação contida nestas palavras, bastavam elas para mostrar que a excelente senhora estava enfim restituída ao perfeito desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu alta. Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde, mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em Itaguaí. o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria. —Vejamos, pensava ele; vejamos se chego enfim à última verdade. Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios ultramarinos de Sua Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de seda, com borlas de ouro (presente de uma universidade) envolvia o corpo majestoso e austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas cogitações cotidianas da ciência. Os pés, não delgados e femininos, não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e modesto latão. Vede a diferença:—só se lhe notava luxo naquilo que era de origem científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da singeleza, virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio. Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si: —Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim,—ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro? E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar, eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam. Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade:—não havia loucos em Itaguaí. Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito; foi a idéia da dúvida. Pois quê! Itaguaí. não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta, não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica? A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os forres enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade. —Sim, há de ser isso, pensou ele. Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa. —Nenhum defeito? —Nenhum, disse em coro a assembléia. —Nenhum vício? —Nada. —Tudo perfeito? —Tudo. —Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade. A assembléia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este conceito digno de um observador: —Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras:—a modéstia. Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante. —A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática. —Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas. Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco além dele em Itaguaí mas esta opinião fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes. que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade. nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan
1 MINISTÉRIO DA CULTURA Fundação Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro nan CINCO MINUTOS José de Alencar A D... nan I É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história, e não um romance. Há mais de dois anos, seriam seis horas da tarde, dirigi-me ao Rocio para tomar o ônibus de Andaraí. Sabe que sou o homem o menos pontual que há neste mundo; entre os meus imensos defeitos e as minhas poucas qualidades, não conto a pontualidade, essa virtude dos reis, e esse mau costume dos ingleses. Entusiasta da liberdade, não posso admitir de modo algum que um homem se escravize ao seu relógio e regule as suas ações pelo movimento de uma pequena agulha de aço ou pelas oscilações de uma pêndula. Tudo isto quer dizer que, chegando ao Rocio, não vi mais ônibus algum; o empregado a quem me dirigi respondeu : — Partiu há cinco minutos. Resignei-me, e esperei pelo ônibus de sete horas. Anoiteceu. Fazia uma noite de inverno fresca e úmida; o céu estava calmo, mas sem estrelas. À hora marcada chegou o ônibus, e apressei-me a ir tomar o meu lugar. Procurei, como costumo, o fundo do carro, a fim de ficar livre das conversas monótonas dos recebedores, que de ordinário têm sempre uma anedota insípida a contar, ou uma queixa a fazer sobre o mau estado dos caminhos. O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar. Sentei-me; prefiro sempre o contato da seda à vizinhança da casimira ou do pano. O meu primeiro cuidado foi ver se conseguia descobrir o rosto e as formas que se escondiam nessas nuvens de seda e de rendas. Era impossível. Além da noite estar escura, um maldito véu que caía de um chapeuzinho de palha não me deixava a menor esperança. Resignei-me, e assentei que o melhor era cuidar de outra coisa. Já o meu pensamento tinha-se lançado a galope pelo mundo da fantasia, quando de repente fui obrigado a voltar por uma circunstância bem simples. Senti no meu braço o contato suave de um outro braço, que me parecia macio e aveludado como uma folha de rosa. Quis recuar, mas não tive ânimo; deixei-me ficar na mesma posição, e cismei que estava sentado perto de uma mulher que me amava e que se apoiava sobre mim. nan 2 Pouco e pouco fui cedendo àquela atração irresistível e reclinando-me insensivelmente; a pressão tornou-se mais forte; senti o seu ombro tocar de leve o meu peito; e a minha mão impaciente encontrou uma mãozinha delicada e mimosa, que se deixou apertar a medo. Assim, fascinado ao mesmo tempo pela minha ilusão e por este contato voluptuoso, esqueci-me, a ponto que, sem saber o que fazia, inclinei a cabeça e colei os meus lábios ardentes nesse ombro, que estremecia de emoção. Ela soltou um grito, que foi tomado naturalmente como susto causado pelos solavancos do ônibus, e refugiou-se no canto. Meio arrependido do que tinha feito, voltei-me como para olhar pela portinhola do carro, e, aproximando-me dela, disse-lhe quase ao ouvido: — Perdão! Não respondeu; conchegou-se ainda mais ao canto. Tomei uma resolução heróica. — Vou descer, não a incomodarei mais. Ditas estas palavras rapidamente, de modo que só ela ouvisse, inclinei-me para mandar parar. Mas senti outra vez a sua mãozinha, que apertava docemente a minha, como para impedir-me de sair. Está entendido que não resisti, e que me deixei ficar; ela conservava-se sempre longe de mim, mas tinha-me abandonado a mão, que eu beijava respeitosamente. De repente veio-me uma idéia. Se fosse feia! se fosse velha! se fosse uma e outra coisa! Fiquei frio, e comecei a refletir. Esta mulher, que sem me conhecer me permitia o que só se permite ao homem que se ama, não podia deixar com efeito de ser feia e muito feia. Não lhe sendo fácil achar um namorado de dia, ao menos agarrava-se a este, que de noite e às cegas lhe proporcionara o acaso. É verdade que essa mão delicada, essa espádua aveludada... Ilusão! Era a disposição em que eu estava! A imaginação é capaz de maiores esforços ainda. Nesta marcha, o meu espírito em alguns instantes tinha chegado a uma convicção inabalável sobre a fealdade de minha vizinha. Para adquirir a certeza renovei o exame que tentara a princípio: porém, ainda desta vez, foi baldado; estava tão bem envolvida no seu mantelete e no seu véu, que nem um traço do rosto traía o seu incógnito. Mais uma prova! Uma mulher bonita deixa-se admirar, e não se esconde como uma pérola dentro da sua ostra. Decididamente era feia, enormemente feia! Nisto ela fez um movimento entreabrindo o seu mantelete, e um bafejo suave de aroma de sândalo exalou-se. Aspirei voluptuosamente essa onda de perfume, que se infiltrou em minha alma como um eflúvio celeste. Não se admire, minha prima; tenho uma teoria a respeito dos perfumes. A mulher é uma flor que se estuda, como a flor do campo, pelas suas cores, pelas suas folhas e sobretudo pelo seu perfume. Dada a cor predileta de uma mulher desconhecida, o seu modo de trajar e o seu perfume favorito, vou descobrir com a mesma exatidão de um problema algébrico se ela é bonita ou feia. De todos estes indícios, porém, o mais seguro é o perfume; e isto por um segredo da natureza, por uma lei misteriosa da criação, que não sei explicar. Por que é que Deus deu o aroma mais delicado à rosa, ao heliótropo, à violeta, ao jasmim, e não a essas flores sem graça e sem beleza, que só servem para realçar as suas irmãs? 3 É decerto por esta mesma razão que Deus só dá à mulher linda esse tato delicado e sutil, esse gosto apurado, que sabe distinguir o aroma o mais perfeito. Já vê, minha prima, porque esse odor de sândalo foi para mim como uma revelação. Só uma mulher distinta, uma mulher de sentimento, sabe compreender toda a poesia desse perfume oriental, desse hatchiss do olfato, que nos embala nos sonhos brilhantes das Mil e uma Noites, que nos fala da Índia, da China, da Pérsia, dos esplendores da Ásia e dos mistérios do berço do sol. O sândalo é o perfume das odaliscas de Stambul e das huris do profeta; como as borboletas que se alimentam de mel, a mulher do Oriente vive com as gotas dessa essência divina. Seu berço é de sândalo; seus colares, suas pulseiras, o seu leque, são de sândalo; e, quando a morte vem quebrar o fio dessa existência feliz, é ainda em uma urna de sândalo que o amor guarda as suas cinzas queridas. Tudo isto passou-me pelo pensamento como um sonho, enquanto eu aspirava ardentemente essa exalação fascinadora, que foi a pouco e pouco se desvanecendo. Era bela! Tinha toda a certeza; desta vez era uma convicção profunda e inabalável. Com efeito, uma mulher de distinção, uma mulher de alma elevada, se fosse feia, não dava sua mão a beijar a um homem que podia repeli-la quando a conhecesse; não se expunha ao escárnio e ao desprezo. Era bela! Mas não a podia ver, por mais esforços que fizesse. O ônibus parou; uma outra senhora ergueu-se e saiu. Senti a sua mão apertar a minha mais estreitamente; vi uma sombra passar diante de meus olhos no meio do ruge-ruge de um vestido, e quando dei acordo de mim, o carro rodava e eu tinha perdido a minha visão. Ressoava-me ainda ao ouvido uma palavra murmurada, ou antes suspirada quase imperceptivelmente: — Non ti scordar di me!... Lancei-me fora do ônibus; caminhei à direita e à esquerda; andei como um louco até nove horas da noite. Nada! II nan Quinze dias se passaram depois de minha aventura. Durante este tempo é escusado dizer-lhe as extravagâncias que fiz. Fui todos os dias a Andaraí no ônibus das sete horas, para ver se encontrava a minha desconhecida; indaguei de todos os passageiros se a conheciam, e não obtive a menor informação. Estava a braços com uma paixão, minha prima, e com uma paixão de primeira força e de alta pressão, capaz de fazer vinte milhas por hora. Quando saía, não via ao longe um vestido de seda preta e um chapéu de palha que não lhe desse caça, até fazê-lo chegar à abordagem. No fim descobria alguma velha ou alguma costureira desjeitosa, e continuava tristemente o meu caminho, atrás dessa sombra impalpável, que eu procurava havia quinze longos dias, isto é, um século para o pensamento de um amante. Um dia estava em um baile, triste e pensativo, como um homem que ama uma mulher e que não conhece a mulher que ama. 4 Recostei-me a uma porta, e daí via passar diante de mim uma miríade brilhante e esplêndida, pedindo a todos aqueles rostos indiferentes um olhar, um sorriso, que me desse a conhecer aquela que eu procurava. Assim preocupado, quase não dava fé do que se passava junto de mim, quando senti um leque tocar meu braço, e uma voz que vivia no meu coração, uma voz que cantava dentro de minha alma, murmurou : — Non ti scordar di me!... Voltei-me. Corri um olhar pelas pessoas que estavam junto de mim, e apenas vi uma velha que passeava pelo braço de seu cavalheiro, abanando-se com um leque. — Será ela, meu Deus? pensei eu horrorizado. E, por mais que fizesse, os meus olhos não se podiam destacar daquele rosto cheio de rugas. A velha tinha uma expressão de bondade e de sentimento que devia atrair a simpatia; mas naquele momento essa beleza moral, que iluminava aquela fisionomia inteligente, pareceu-me horrível e até repugnante. Amar quinze dias uma sombra, sonhá-la bela como um anjo, e por fim encontrar uma velha de cabelos brancos, uma velha coquette e namoradeira! Não, era impossível! Naturalmente a minha desconhecida tinha fugido antes que eu tivesse tempo de vê-la. Essa esperança consolou-me; mas durou apenas um segundo. A velha falou, e na sua voz eu reconheci, apesar de tudo, apesar de mim mesmo, o timbre doce e aveludado que ouvira duas vezes. Em face da evidência não havia mais que duvidar. Eu tinha amado uma velha, tinha beijado a sua mão enrugada com delírio, tinha vivido quinze dias de sua lembrança. Era para fazer-me enlouquecer ou rir; não me ri nem enlouqueci, mas fiquei com um tal tédio e um aborrecimento de mim mesmo que não posso exprimir. Que peripécias, que lances, porém, não me reservava ainda esse drama, tão simples e obscuro! Não distingui as primeiras palavras da velha logo que ouvi a sua voz; foi só passado o primeiro espanto que percebi o que dizia. — Ela não gosta de bailes. — Pois admira, replicou o cavalheiro; na sua idade! — Que quer! não acha prazer nestas festas ruidosas, e nisto mostra bem que é minha filha. A velha tinha uma filha, e isto podia explicar a semelhança extraordinária da voz. Agarrei-me a esta sombra, como um homem que caminha no escuro. Resolvi-me a seguir a velha toda a noite, até que ela se encontrasse com sua filha; desde este momento era o meu fanal, a minha estrela polar. A senhora e o seu cavalheiro entraram na saleta da escada. Separado dela um instante pela multidão, ia segui-la. Nisto ouço uma voz alegre dizer da saleta: — Vamos, mamã! Corri, e apenas tive tempo de perceber os folhos de um vestido preto, envolto num largo burnous de seda branca, que desapareceu ligeiramente na escada. Atravessei a saleta tão depressa como me permitiu a multidão, e, pisando calos, dando encontrões à direita e à esquerda, cheguei enfim à porta da saída. O meu vestido preto sumiu-se pela portinhola de um cupê, que partiu a trote largo. Voltei ao baile desanimado; a minha única esperança era a velha; por ela podia tomar informações, saber quem era a minha desconhecida, indagar o seu nome e a sua morada, acabar enfim com este enigma, que me matava de emoções violentas e contrárias. 5 Indaguei dela. Mas como era possível designar uma velha da qual eu só sabia pouco mais ou menos a idade? Todos os meus amigos tinham visto muitas velhas, porém não tinham olhado para elas. Retirei-me triste e abatido, como um homem que se vê em luta contra o impossível. De duas vezes que a minha visão me tinha aparecido, só me restavam uma lembrança, um perfume e uma palavra! Nem sequer um nome! A todo momento parecia-me ouvir na brisa da noite essa frase do Trovador, tão cheia de melancolia e de sentimento, que resumia para mim toda uma história. Desde então não se representava uma só vez esta ópera que eu não fosse ao teatro, ao menos para ter o prazer de ouvi-la repetir. A princípio, por uma intuição natural, julguei que ela devia, como eu, admirar essa sublime harmonia de Verdi, que devia também ir sempre ao teatro. O meu binóculo examinava todos os camarotes com uma atenção meticulosa; via moças bonitas ou feias, mas nenhuma delas me fazia palpitar o coração. Entrando uma vez no teatro e passando a minha revista costumada, descobri finalmente na terceira ordem sua mãe, a minha estrela, o fio de Ariadne que me podia guiar neste labirinto de dúvidas. A velha estava só na frente do camarote, e de vez em quando voltava-se para trocar uma palavra com alguém sentado no fundo. Senti uma alegria inefável. O camarote próximo estava vazio; perdi quase todo o espetáculo a procurar o cambista incumbido de vendê-lo. Por fim achei-o, e subi de um pulo as três escadas. O coração queria saltar-me quando abri a porta do camarote e entrei. Não me tinha enganado; junto da velha vi um chapeuzinho de palha com um véu preto rocegado, que não me deixava ver o rosto da pessoa a quem pertencia. Mas eu tinha adivinhado que era ela; e sentia um prazer indefinível em olhar aquelas rendas e fitas, que me impediam de conhecê-la, mas que ao menos lhe pertenciam. Uma das fitas do chapéu tinha caído do lado do meu camarote, e, em risco de ser visto, não pude suster-me e beijei-a a furto. Representava-se a Traviata, e era o último ato; o espetáculo ia acabar, e eu ficaria no mesmo estado de incerteza. Arrastei as cadeiras do camarote, tossi, deixei cair o binóculo, fiz um barulho insuportável, para ver se ela voltava o rosto. A platéia pediu silêncio; todos os olhos procuraram conhecer a causa do rumor; porém ela não se moveu; com a cabeça meio inclinada sobre a coluna, em uma lânguida inflexão, parecia toda entregue ao encanto da música. Tomei um partido. Encostei-me à mesma coluna, e em voz baixa balbuciei estas palavras: — Não me esqueço! Estremeceu, e, baixando rapidamente o véu, conchegou ainda mais o largo burnous de cetim branco. Cuidei que ia voltar-se, mas enganei-me; esperei muito tempo, e debalde. Tive então um movimento de despeito e quase de raiva; depois de um mês que eu amava sem esperança, que eu guardava a maior fidelidade à sua sombra, ela me recebia friamente. Revoltei-me. — Compreendo agora, disse eu em voz baixa e como falando a um amigo que estivesse a meu lado, compreendo por que ela me foge, por que conserva esse mistério; tudo isto não passa de uma zombaria cruel, de uma comédia, em que eu faço o papel de amante ridículo. Realmente é uma lembrança engenhosa! Lançar em um coração o germe de um amor profundo; alimentá-lo 6 de tempos a tempos com uma palavra, excitar a imaginação pelo mistério; e depois, quando esse namorado de uma sombra, de um sonho, de uma ilusão, passear pelo salão a sua figura triste e abatida, mostrá-lo a suas amigas como uma vítima imolada aos seus caprichos, e escarnecer do louco! É espirituoso! O orgulho da mais vaidosa mulher deve ficar satisfeito! Enquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o fel que tinha no coração, a Charton modulava com a sua voz sentimental essa linda ária final da Traviata, interrompida por ligeiros acessos de uma tosse seca. Ela tinha curvado a cabeça e não sei se ouvia o que eu lhe dizia ou o que a Charton cantava; de vez em quando as suas espáduas se agitavam com um tremor convulsivo, que eu tomei injustamente por um movimento de impaciência. O espetáculo terminou, as pessoas do camarote saíram, e ela, levantando sobre o chapéu o capuz de seu manto, acompanhou-as lentamente. Depois, fingindo que se tinha esquecido de alguma coisa, tornou a entrar no camarote, e estendeu-me a mão. — Não saberá nunca o que me fez sofrer, disse-me com a voz trêmula. Não pude ver-lhe o rosto; fugiu, deixando-me o seu lenço impregnado desse mesmo perfume de sândalo e todo molhado de lágrimas ainda quentes. Quis segui-la; mas ela fez um gesto tão suplicante que não tive ânimo de desobedecerlhe. Estava como dantes; não a conhecia, não sabia nada a seu respeito; porém ao menos possuía alguma coisa dela; o seu lenço era para mim uma relíquia sagrada. Mas as lágrimas? Aquele sofrimento de que ela falava? O que queria dizer tudo isto? Não compreendia; se eu tinha sido injusto, era uma razão para não continuar a esconderse de mim. Que queria dizer este mistério, que parecia obrigada a conservar? Todas estas perguntas e as conjeturas a que elas davam lugar não me deixaram dormir. Passei uma noite de vigília a fazer suposições, cada qual mais desarrazoada. III nan Recolhendo-me no dia seguinte, achei em casa uma carta. Antes de abri-la conheci que era dela, porque lhe tinha imprimido esse suave perfume que a cercava como uma auréola. Eis o que dizia : Julga mal de mim, meu amigo; nenhuma mulher pode escarnecer de um nobre coração como o seu. Se me oculto, se fujo, é porque há uma fatalidade que a isto me obriga. E só Deus sabe quanto me custa este sacrifício, porque o amo! Mas não devo ser egoísta e trocar sua felicidade por um amor desgraçado. Esqueça-me. nan 7 “C.” Reli não sei quantas vezes esta carta, e, apesar da delicadeza de sentimento que parecia ter ditado suas palavras, o que para mim se tornava bem claro é que ela continuava a fugir-me. Essa assinatura era a mesma letra que marcava o seu lenço, e à qual eu desde a véspera pedia debalde um nome! Fosse qual fosse esse motivo que ela chamava uma fatalidade, e que eu supunha ser apenas escrúpulo, senão uma zombaria, o melhor era aceitar o seu conselho e fazer por esquecêla. Refleti então friamente sobre a extravagância da minha paixão, e assentei que com efeito precisava tomar uma resolução decidida. Não era possível que continuasse a correr atrás de um fantasma que se esvaecia quando ia tocá-lo. Aos grandes males os grandes remédios, como diz Hipócrates. Resolvi fazer uma viagem. . Mandei selar o meu cavalo, meti alguma roupa em um saco de viagem, embrulhei-me no meu capote e saí, sem me importar com a manhã de chuva que fazia. Não sabia para onde iria. O meu cavalo levou-me para o Engenho Velho, e eu daí me encaminhei-me para a Tijuca, onde cheguei ao meio-dia todo molhado e fatigado pelos maus caminhos. Se algum dia se apaixonar, minha prima, aconselho-lhe as viagens como um remédio soberano e talvez o único eficaz. Deram-me um excelente almoço no hotel; fumei um charuto, e dormi doze horas, sem ter um sonho, sem mudar de lugar. Quando acordei, o dia despontava sobre as montanhas da Tijuca. Uma bela manhã, fresca e rociada das gotas de orvalho, desdobrava o seu manto de azul por entre a cerração, que se desvanecia aos raios do sol. O aspecto desta natureza quase virgem, esse céu brilhante, essa luz esplêndida caindo em cascatas de ouro sobre as encostas dos rochedos, serenou-me completamente o espírito. Fiquei alegre, o que há muito tempo não me sucedia. O meu hóspede, um inglês franco e cavalheiro, convidou-me para acompanhá-lo à caça; gastamos todo o dia a correr atrás de duas ou três marrecas e a bater as margens da Restinga. Assim passei nove dias na Tijuca, vivendo uma vida estúpida quanto pode ser: dormindo, caçando e jogando bilhar. Na tarde do décimo dia, quando já me supunha perfeitamente curado e estava contemplando o sol, que se escondia por detrás dos montes, e a lua, que derramava no espaço a sua luz doce e acetinada, fiquei triste de repente. Não sei que caminho tomaram as minhas idéias; o caso é que daí a pouco descia a serra no meu cavalo, lamentando esses nove dias, que talvez me tivessem feito perder para sempre a minha desconhecida. Acusava-me de infidelidade, de traição; a minha fatuidade dizia-me que eu devia ao menos ter-lhe dado o prazer de ver-me. Que importava que ela me ordenasse que a esquecesse? Não me tinha confessado que me amava, e não devia eu resistir e vencer essa fatalidade, contra a qual ela, fraca mulher, não podia lutar? Tinha vergonha de mim mesmo; achava-me egoísta, cobarde, irrefletido, e revoltava-me contra tudo, contra o meu cavalo que me levara à Tijuca, e o meu hóspede, cuja amabilidade ali me havia demorado. Com esta disposição de espírito cheguei à cidade, mudei de traje, e ia sair, quando o meu moleque me deu uma carta. Era dela. Causou-me uma surpresa misturada de alegria e de remorso: "Meu amigo. 8 Sinto-me com coragem de sacrificar o meu amor à sua felicidade; mas ao menos deixeme o consolo de amá-lo. Há dois dias que espero debalde vê-lo passar, e acompanhá-lo de longe com um olhar! Não me queixo; não sabe nem deve saber em que ponto de seu caminho o som de seus passos faz palpitar um coração amigo. Parto hoje para Petrópolis, donde voltarei breve; não lhe peço que me acompanhe, porque devo ser-lhe sempre uma desconhecida, uma sombra escura que passou um dia pelos sonhos dourados de sua vida. Entretanto eu desejava vê-lo ainda uma vez, apertar a sua mão e dizer-lhe adeus para sempre. "C." A carta tinha a data de 3; nós estávamos a 10; havia oito dias que ela partira para Petrópolis e que me esperava. No dia seguinte embarquei na Prainha e fiz essa viagem da baía, tão pitoresca, tão agradável, e ainda tão pouco apreciada. Mas então a majestade dessas montanhas de granito, a poesia desse vasto seio de mar, sempre alisado como um espelho, os grupos de ilhotas graciosas que bordam a baía, nada disto me preocupava. Só tinha uma idéia... chegar; e o vapor caminhava menos rápido do que meu pensamento. Durante a viagem pensava nessa circunstância que a sua carta me revelara, e fazia-me por lembrar de todas as ruas por onde costumava passar, para ver se adivinhava aquela onde ela morava, e donde todos os dias me via sem que eu suspeitasse. Para um homem como eu, que andava todo o dia desde a manhã até a noite, a ponto de merecer que a senhora, minha prima, me apelidasse de Judeu Errante, este trabalho era improfícuo. Quando cheguei a Petrópolis, eram cinco horas da tarde; estava quase noite. Entrei nesse hotel suíço, ao qual nunca mais voltei, e enquanto me serviam um magro jantar, que era o meu almoço, tomei informações. — Têm subido estes dias muitas famílias? perguntei eu ao criado. — Não, senhor. — Mas há coisa de oito dias não vieram da cidade duas senhoras? — Não estou certo. — Pois indague, que preciso saber e já ; isto... o ajudará a obter informações. A fisionomia sisuda do criado expandiu-se ao tinir da moeda, e a língua adquiriu a sua elasticidade natural. — Talvez o senhor queira falar de uma senhora já idosa que veio acompanhada de sua filha? — É isso mesmo. — A moça parece-me doente; nunca a vejo sair. — Onde está morando? — Aqui perto, na rua de... — Não conheço as ruas de Petrópolis; o melhor é acompanhar-me e vir mostrar-me a casa. — Sim, senhor. O criado seguiu-me, e tomamos por uma das ruas agrestes da cidade alemã. 9 IV A noite estava escura. Era uma dessas noites de Petrópolis, envoltas em nevoeiro e cerração. Caminhávamos mais pelo tato do que pela vista, dificilmente distinguíamos os objetos a uma pequena distância; e muitas vezes, quando o meu guia se apressava, o seu vulto perdia-se nas trevas. Em alguns minutos chegamos em face de um pequeno edifício construído a alguns passos do alinhamento, e cujas janelas estavam esclarecidas por uma luz interior. — É ali. — Obrigado. O criado voltou, e eu fiquei junto dessa casa, sem saber o que ia fazer. A idéia de que estava perto dela, que via a luz que a esclarecia, que tocava a relva que ela pisara, fazia-me feliz. É coisa singular, minha prima! O amor que é insaciável e exigente, e não se satisfaz com tudo quanto uma mulher pode dar, que deseja o impossível, às vezes contenta-se com um simples gozo d'alma, com uma dessas emoções delicadas, com um desses nadas, dos quais o coração faz um mundo novo e desconhecido. Não pense, porém, que eu fui a Petrópolis só para contemplar com enlevo as janelas de um chalé; não; ao passo que sentia esse prazer, refletia no meio de vê-la e de falar-lhe. Mas como?... Se soubesse todos os expedientes, cada qual mais extravagante, que inventou a minha imaginação! Se visse a elaboração tenaz a que se entregava o meu espírito para descobrir um meio de dizer-lhe que eu estava ali e a esperava! Por fim achei um; se não era o melhor, era o mais pronto. Desde que chegara, tinha ouvido uns prelúdios de piano, mas tão débeis que pareciam antes tirados por uma mão distraída que roçava o teclado, do que por uma pessoa que tocasse. Isto me fez lembrar que ao meu amor se prendia a recordação de uma bela música de Verdi; e foi quanto bastou. Cantei, minha prima, ou antes assassinei aquela linda romanza; os que me ouvissem tomar-me-iam por algum furioso; mas ela me compreenderia. E de fato, quando eu acabei de estropiar esse trecho magnífico de harmonia e sentimento, o piano, que havia emudecido, soltou um trilo brilhante e sonoro, que acordou os ecos adormecidos no silêncio da noite. Depois daquela cascata de sons majestosos, que se precipitavam em ondas de harmonia do seio daquele turbilhão de notas que se cruzavam, deslizou plangente, suave e melancólica uma voz que sentia e palpitava, exprimindo todo o amor que respira a melodia sublime de Verdi. Era ela que cantava! Oh! não posso pintar-lhe, minha prima, a expressão profundamente triste, a angústia de que ela repassou aquela frase de despedida: 10 Non ti scordar di me. Addio!... Partia-me a alma. Apenas acabou de cantar, vi desenhar-se uma sombra em uma das janelas; saltei a grade do jardim; mas as venezianas descidas não me permitiam ver o que se passava na sala. Sentei-me sobre uma pedra e esperei. Não se ria, D...; estava resolvido a passar ali a noite ao relento, olhando para aquela casa, e alimentando a esperança de que ela viria ao menos com uma palavra compensar o meu sacrifício. Não me enganei. Havia meia hora que a luz da sala tinha desaparecido e que toda a casa parecia dormir, quando se abriu uma das portas do jardim, e eu vi ou antes pressenti a sua sombra na sala. Recebeu-me com surpresa, sem temor, naturalmente, e como se eu fosse seu irmão ou seu marido. É porque o amor puro tem bastante delicadeza e bastante confiança para dispensar o falso pejo, o pudor de convenção de que às vezes costumam cercá-lo. — Eu sabia que sempre havias de vir, disse-me ela. — Oh! não me culpes! se soubesses! — Eu culpar-te? Quando mesmo não viesses, não tinha o direito de queixar-me. — Porque não me amas! — Pensas isto? disse-me com uma voz cheia de lágrimas. — Não! não!... Perdoa! — Perdôo-te, meu amigo, como já te perdoei uma vez; julgas que te fujo, que me oculto de ti, porque não te amo, e entretanto não sabes que a maior felicidade para mim seria poder dar-te a minha vida. — Mas então por que esse mistério? — Esse mistério, bem sabes, não é uma coisa criada por mim, e sim pelo acaso; se o conservo, é porque, meu amigo..., tu não me deves amar. — Não te devo amar! Mas eu amo-te!... Ela recostou a cabeça ao meu ombro, e eu senti uma lágrima cair sobre meu seio. Estava tão perturbado, tão comovido dessa situação incompreensível, que me senti vacilar, e deixei-me cair sobre o sofá. Ela sentou-se junto de mim; e, tomando-me as duas mãos, disse-me um pouco mais calma: — Tu dizes que me amas! — Juro-te! — Não te iludes talvez? — Se a vida não é uma ilusão, respondi, penso que não, porque a minha vida agora és tu, ou antes a tua sombra. — Muitas vezes toma-se um capricho por amor; tu não conheces de mim, como dizes, senão a minha sombra!... — Que me importa?... — E se eu fosse feia? disse ela rindo. — Tu és bela como um anjo! Tenho toda a certeza. — Quem sabe? — Pois bem; convence-me, disse eu, passando-lhe o braço pela cintura e procurando levá-la para uma sala vizinha, donde filtravam os raios de uma luz. Ela desprendeu-se do meu braço. A sua voz tornou-se grave e triste. — Escuta, meu amigo; falemos seriamente. Tu dizes que me amas; eu o creio, eu o sabia antes mesmo que me dissesses. As almas como as nossas quando se encontram, se re- conhecem 11 e se compreendem. Mas ainda é tempo; não julgas que mais vale conservar uma doce recordação do que entregar-se a um amor sem esperança e sem futuro?... — Não, mil vezes não! Não entendo o que queres dizer; o meu amor, o meu, não precisa de futuro e de esperança, porque o tem em si, porque viverá sempre!... — Eis o que eu temia; e entretanto eu sabia que assim havia de acontecer; quando se tem a tua alma, ama-se uma só vez. — Então por que exiges de mim um sacrifício que sabes ser impossível? — Porque, disse ela com exaltação, porque, se há uma felicidade indefinível em duas almas que ligam sua vida, que se confundem na mesma existência, que só têm um passado e um futuro para ambas, que desde a flor da idade até à velhice caminham juntas para o mesmo horizonte, partilhando os seus prazeres e as suas mágoas, revendo-se uma na outra até o momento em que batem as asas e vão abrigar-se no seio de Deus, deve ser cruel, bem cruel, meu amigo, quando, tendo-se apenas encontrado, uma dessas duas almas irmãs fugir deste mundo, e a outra, viúva e triste, for condenada a levar sempre no seu seio uma idéia de morte, a trazer essa recordação, que, como um crepe de luto, envolverá a sua bela mocidade, a fazer do seu coração, cheio de vida e de amor, um túmulo para guardar as cinzas do passado! Oh! deve ser horrível!... A exaltação com que falava tinha-se tornado uma espécie de delírio; sua voz, sempre tão doce e aveludada, parecia alquebrada pelo cansaço da respiração. Ela caiu sobre o meu seio, agitando-se convulsivamente em um acesso de tosse. V nan Assim ficamos muito tempo imóveis, ela, com a fronte apoiada sobre o meu peito, eu, sob a impressão triste de suas palavras. Por fim ergueu a cabeça; e, recobrando a sua serenidade, disse-me com um tom doce e melancólico: — Não pensas que melhor é esquecer do que amar assim? — Não! Amar, sentir-se amado, é sempre um gozo imenso e um grande consolo para a desgraça. O que é triste, o que é cruel, não é essa viuvez da alma separada de sua irmã, não; aí há um sentimento que vive, apesar da morte, apesar do tempo. É, sim, esse vácuo do coração que não tem uma afeição no mundo, e que passa como um estranho por entre os prazeres que o cercam. — Que santo amor, meu Deus! Era assim que eu sonhava ser amada!... — E me pedias que te esquecesse!... — Não! não! Ama-me; quero que me ames, ao menos... — Não me fugirás mais? — Não. — E me deixarás ver aquela que eu amo, e que não conheço? perguntei sorrindo. — Desejas? — Suplico-te! — Não sou eu tua?... Lancei-me para a saleta onde havia luz, e coloquei o lampião sobre a mesa do gabinete em que estávamos. Para mim, minha prima, era um momento solene; toda essa paixão violenta, incompreensível, todo esse amor ardente por um vulto de mulher, ia depender talvez de um olhar. E tinha medo de ver esvaecer-se, como um fantasma em face da realidade, essa visão poética de minha imaginação, essa criação que resumia todos os tipos. 12 Foi, portanto, com uma emoção extraordinária que, depois de colocar a luz, voltei-me. Ah!... Eu sabia que era bela; mas a minha imaginação apenas tinha esboçado o que Deus criara. Ela olhava-me e sorria. Era um ligeiro sorriso, uma flor que se desfolhava nos seus lábios, um reflexo que iluminava o seu lindo rosto. Seus grandes olhos negros fitavam em mim um desses olhares lânguidos e aveludados que afagam os seios d'alma. Um anel de cabelos negros brincava-lhe sobre o ombro, fazendo sobressair a alvura diáfana de seu colo gracioso. Tudo quanto a arte tem sonhado de belo e de voluptuoso desenhava-se naquelas formas soberbas, naqueles contornos harmoniosos que se destacavam entre as ondas de cambraia de seu roupão branco. Vi tudo isto de um só olhar, rápido, ardente e fascinado! depois fui ajoelhar-me diante dela, e esqueci-me a contemplá-la. Ela me sorria sempre, e se deixava admirar. Por fim tomou-me a cabeça entre as mãos, e seus lábios fecharam-me os olhos com um beijo. — Ama-me, disse. O sonho esvaeceu-se. A porta da sala fechou-se sobre ela; tinha-me fugido. Voltei ao hotel. Abri a minha janela, e sentei-me ao relento. A brisa da noite trazia-me de vez em quando um aroma de plantas agrestes que me causava íntimo prazer. Fazia-me lembrar da vida campestre, dessa existência doce e tranqüila que se passa longe das cidades, quase no seio da natureza. Pensava como seria feliz vivendo com ela em algum canto isolado, onde pudéssemos abrigar o nosso amor em um leito de flores e de relva. Fazia na imaginação um idílio encantador, e sentia-me tão feliz que não trocaria a minha cabana pelo mais rico palácio da terra. Ela me amava. Só essa idéia embelezava tudo para mim; a noite escura de Petrópolis parecia-me poética e o murmurejar triste das águas do canal tornava-se-me agradável. Uma coisa, porém, perturbava essa felicidade; era um ponto negro, uma nuvem escura que toldava o céu da minha noite de amor. Lembrava-me daquelas palavras tão cheias de angústia e tão sentidas, que pareciam explicar a causa de sua reserva para comigo: havia nisto um quer que seja que eu não compreendia. Mas esta lembrança desaparecia logo sob a impressão de seu sorriso, que eu tinha em minh'alma, de seu olhar, que eu guardava no coração, e de seus lábios, cujo contato ainda sentia. Dormi embalado por estes sonhos e só acordei quando um raio de sol, alegre e travesso, veio bater-me nas pálpebras e dar-me o bom dia. O meu primeiro pensamento foi ir saudar a minha casinha; estava fechada. Eram oito horas. Resolvi dar um passeio para disfarçar a minha impaciência; voltando ao hotel, o criado disse-me terem trazido um objeto que recomendaram me fosse entregue logo. Em Petrópolis não conhecia ninguém; devia ser dela. Corri ao meu quarto, e achei sobre a mesa uma caixinha de pau-cetim; na tampa havia duas letras de tartaruga incrustadas: C. L. 13 A chave estava fechada em uma sobrecarta com endereço a mim; dispus-me a abrir a caixa com a mão trêmula e tomado por um triste pressentimento. Parecia-me que naquele cofre perfumado estava encerrada a minha vida, o meu amor, toda a minha felicidade. Abri. Continha o seu retrato, alguns fios de cabelos e duas folhas de papel escritas por ela e que li de surpresa em surpresa. VI Eis o que ela me dizia: Devo-te uma explicação, meu amigo. Esta explicação é a história da minha vida, breve história, da qual escreveste a mais bela página. Cinco meses antes do nosso primeiro encontro completava eu os meus dezesseis anos, a vida começava a sorrir-me. A educação rigorosa que me dera minha mãe, me conservara menina até àquela idade, e foi só quando ela julgou dever correr o véu que ocultava o mundo aos meus olhos, que eu perdi as minhas idéias de infância e as minhas inocentes ilusões. "A primeira vez que fui a um baile, fiquei deslumbrada no meio daquele turbilhão de cavalheiros e damas, que girava em torno de mim sob uma atmosfera de luz, de música, de perfumes. Tudo me causava admiração; esse abandono com que as mulheres se entregavam ao seu par de valsa, esse sorriso constante e sem expressão que uma moça parece tomar na porta da entrada para só deixá-lo à saída, esses galanteios sempre os mesmos e sempre sobre um tema banal, ao passo que me excitavam a curiosidade, faziam desvanecer o entusiasmo com que tinha acolhido a notícia que minha mãe me dera da minha entrada nos salões. “Estavas nesse baile; fia o primeira vez que te vi. Reparei que nessa multidão alegre e ruidosa tu só não dançavas nem galanteavas, e passeavas pelo salão como um espectador mudo e indiferente, ou talvez como um homem que procurava uma mulher e só via toilettes. "Compreendi-te, e durante muito tempo segui-te com os olhos; ainda hoje me lembro dos teus menores gestos, da expressão do teu rosto e do sorriso de fina ironia que às vezes fugia-te pelos lábios. Foi a única recordação que trouxe dessa noite, e quando adormeci, os meus doces sonhos de infância, que, apesar do baile, vieram de novo pousar nas alvas cortinas de meu leito, apenas foram interrompidos um instante pela tua imagem, que me sorria. No dia seguinte reatei o fio de minha existência, feliz, tranqüila e descuidosa, como costuma ser a existência de uma moça aos dezesseis anos. "Algum tempo depois fui a outros bailes e ao teatro, porque minha mãe, que guardara a minha infância, como um avaro esconde o seu tesouro, queria fazer brilhar a minha mocidade. Quando cedia ao seu pedido e me ia aprontar, enquanto preparava o meu simples traje, murmurava: — Talvez ele esteja. E esta lembrança, não só me tornava alegre, mas fazia com que procurasse parecer bela, para te merecer um primeiro olhar. Ultimamente era eu quem, cedendo a um sentimento que não sabia explicar, pedia a minha mãe para irmos a um divertimento, só na esperança de encontrar-te. Nem suspeitavas então que, entre todos aqueles vultos indiferentes, havia um olhar que te seguia sempre e um coração que adivinhava os teus pensamentos, que se expandia quando te via sorrir, e contraía-se quando uma sombra de melancolia anuviava o teu semblante. 14 Se pronunciavam o teu nome diante de mim, corava e na minha perturbação julgava que tinham lido esse nome nos meus olhos ou dentro de minh'alma, onde eu bem sabia que ele estava escrito. E entretanto, nem sequer ainda me tinhas visto; se teus olhos haviam passado alguma vez por mim, tinha sido em um desses momentos em que a luz se volta para o íntimo, e se olha, mas não se vê. Consolava-me, porém, que algum dia o acaso nos reuniria, e então não sei o que me dizia que era impossível não me amares. O acaso deu-se, mas quando a minha existência já se tinha completamente transformado. Ao sair de um desses bailes, apanhei uma pequena constipação, de que não fiz caso. Minha mãe teimava que eu estava doente, e eu achava-me apenas um pouco pálida e sentia às vezes um ligeiro calafrio, que eu curava, sentando-me ao piano e tocando alguma música de bravura. Um dia, porém, achei-me mais abatida; tinha as mãos e os lábios ardentes, a respiração era difícil, e ao menor esforço umedecia-se-me a pele com uma transpiração que me parecia gelada. Atirei-me sobre um sofá, e, com a cabeça recostada ao colo de minha mãe, caí em um letargo que não sei quanto tempo durou. Lembro-me somente que, no momento mesmo em que ia despertando dessa sonolência que se apoderara de mim, vi minha mãe sentada à cabeceira de meu leito chorando, e um homem dizia-lhe algumas palavras de consolo, que eu ouvi como em sonho: — Não desespere, minha senhora; a ciência não é infalível, nem os meus diagnósticos são sentenças irrevogáveis. Pode ser que a natureza e as viagens a salvem. Mas é preciso não perder tempo. O homem partiu. Não tinha compreendido as suas palavras, às quais não ligava o menor sentido. Passado um instante, ergui tranqüilamente os olhos para minha mãe, que escondeu o lenço e tragou em silêncio o seu pranto e os seus soluços. — Tu choras, mamãe? — Não, minha filha... não... não é nada. — Mas tu estás com os olhos cheios de lágrimas!... disse eu assustada. — Ah! sim!... uma notícia triste que me contaram há pouco... sobre uma pessoa... que tu não conheces. — Quem é este senhor que estava aqui? — É o Dr. Valadão, que te veio visitar. — Então eu estou muito doente, boa mamãe? — Não, minha filha, ele assegurou que não tens nada; é apenas um incômodo nervoso. E minha querida mãe, não podendo mais conter as lágrimas que lhe saltavam dos olhos, fugiu pretextando uma ordem a dar. Então, à medida que a minha inteligência ia saindo do letargo, comecei a refletir sobre o que se tinha passado. Aquele desmaio tão longo, aquelas palavras que eu ouvira ainda entre as névoas de um sono agitado, as lágrimas de minha mãe e a sua repentina aflição, o tom condoído com que o médico lhe falara... Um raio de luz esclareceu de repente o meu espírito. “Estava desenganada. “O poder da ciência, o olhar profundo, seguro, infalível, desse homem que lê no corpo humano como em um livro aberto, tinha visto no meu seio um átomo imperceptível. E esse átomo, era o verme que devia destruir as fontes da vida, apesar dos meus dezesseis anos, apesar de minha organização, apesar de minha beleza e dos meus sonhos de felicidade!" 15 Aqui terminava a primeira folha, que eu acabei de ler entre as lágrimas que me inundavam as faces e caíam sobre o papel. Era este o segredo de sua estranha reserva; era a razão por que me fugia, por que se ocultava, por que ainda na véspera dizia que se tinha imposto o sacrifício de nunca ser amada por mim. Que sublime abnegação, minha prima! E, como eu me sentia pequeno e mesquinho à vista desse amor tão nobre! VII nan Continuei a ler : Sim, meu amigo!... Estava condenada a morrer; estava atacada dessa moléstia fatal e traiçoeira, cujo dedo descarnado nos toca no meio dos prazeres e dos risos, nos arrasta ao leito, e do leito ao túmulo, depois de ter escarnecido da natureza, transfigurando as suas mais belas criações em múmias animadas. É impossível descrever-te o que se passou então em mim; foi um desespero mudo e concentrado, mas que me prostrou em uma atonia profunda; foi uma angústia pungente e cruel. As rosas da minha vida apenas se entreabriam, e já eram bafejadas por um hálito infetado; já tinham no seio o germe de morte que devia fazê-las murchar! Meus sonhos de futuro, minhas tão risonhas esperanças, meu puro amor, que nem sequer ainda tinha colhido o primeiro sorriso, este horizonte, que há pouco me parecia tão brilhante, tudo isto era uma visão que ia sumir-se, uma luz que lampejava prestes a extinguir-se. Foi preciso um esforço sobre-humano para esconder de minha mãe a certeza que eu tinha sobre o meu estado, e para gracejar dos seus temores, que eu chamava imaginários. "Boa mãe! Desde então só viveu para consagrar-se exclusivamente à sua filha, para envolvê-la com esse desvelo e essa proteção que Deus deu ao coração materno, para abrigar-me com suas preces, sua solicitude e seus carinhos, para lutar à força de amor e de dedicação contra o destino. Logo no dia seguinte fomos para Andaraí, onde ela alugara uma chácara, e aí, graças a seus cuidados, adquiri tanta saúde, tanta força, que me julgaria boa se não fosse a sen- tença fatal que pesava sobre mim. Que tesouro de sentimento e de delicadeza que é um coração de mãe, meu amigo! Que tato delicado, que sensibilidade apurada, possui esse amor sublime! "Nos primeiros dias, quando ainda estava muito abatida e era obrigada a agasalhar-me, se visses como ela pressentia as rajadas de um vento frio antes que ele agitasse os renovos dos cedros do jardim, como adivinhava a menor neblina antes que a primeira gota umedecesse a laje do nosso terraço! Fazia tudo por distrair-me; brincava comigo como uma camarada de colégio; achava prazer nas menores coisas para excitar-me a imitá-la; tornava-se menina e obrigava-me a ter caprichos. Enfim, meu amigo, se fosse a dizer-te tudo, escreveria um livro e esse livro deves ter lido no coração de tua mãe, porque todas as mães se parecem. Ao cabo de um mês tinha recobrado a saúde para todos, exceto para mim, que às vezes sentia um quer que seja como uma contração, que não era dor, mas que me dizia que o mal estava ali, e dormia apenas. Foi nesta ocasião que te encontrei no ônibus de Andaraí; quando entravas, a luz do lampião iluminou-te o rosto e eu reconheci-te. Faze idéia que emoção sentira quando te sentaste junto de mim. O mais tu sabes; eu te amava, e era tão feliz de ter-te ao meu lado, de apertar a tua 16 mão, que nem me lembrava como te devia parecer ridícula uma mulher que, sem te conhecer, te permitia tanto. Quando nos separamos, arrependi-me do que tinha feito. Com que direito ia eu perturbar a tua felicidade, condenar-te a um amor infeliz e obrigar-te a associar tua vida a uma existência triste, que talvez não te pudesse dar senão os tormentos de seu longo martírio?! Eu te amava; mas, já que Deus não me tinha concedido a graça de ser tua companheira neste mundo, não devia ir roubar ao teu lado e no teu coração o lugar que outra mais feliz, porém menos dedicada, teria de ocupar. Continuei a amar-te, mas impus-me a mim mesma o sacrifício de nunca ser amada por ti. Vês, meu amigo, que não era egoísta e preferia a tua à minha felicidade. Tu farias o mesmo, estou certa. Aproveitei o mistério do nosso primeiro encontro, e esperei que alguns dias te fizessem esquecer essa aventura e quebrassem o único e bem frágil laço que te prendia a mim. Deus não quis que acontecesse assim; vendo-te só em um baile, tão triste, tão pensativo, procurando um ser invisível, uma sombra, e querendo descobrir os seus vestígios em algum dos rostos que passavam diante de ti, senti um prazer imenso. Conheci que tu me amavas; e, perdoa, fiquei orgulhosa dessa paixão ardente, que uma só palavra minha havia criado, desse poder do meu amor, que, por uma força de atração inexplicável, tinha-te ligado à minha sombra. "Não pude resistir. Aproximei-me, disse-te uma palavra sem que tivesses tempo de ver-me; foi essa mesma palavra que resume todo o poema do nosso amor, e que depois do primeiro encontro era, como ainda hoje, a minha prece de todas as noites. Sempre que me ajoelho diante do meu crucifixo de marfim, depois de minha oração, ainda com os olhos na cruz e o pensamento em Deus, chamo a tua imagem para pedir-te que não te esqueças de mim. Quando tu te voltaste ao som da minha voz, eu tinha entrado na toilette; e pouco depois saí desse baile, onde apenas acabava de entrar, tremendo da minha imprudência, mas alegre e feliz por te ter visto ainda uma vez. Deves agora compreender o que me fizeste sofrer no teatro quando me dirigias aquela acusação tão injusta, no momento mesmo em que a Charton cantava a ária da Traviata. "Não sei como não me traí naquele momento e não te disse tudo; o teu futuro, porém, era sagrado para mim, e eu não devia destruí-lo para satisfação de meu amor-próprio ofen- dido. No dia seguinte escrevi-te; e assim, sem me trair, pude ao menos reabilitar-me na tua estima; doía-me muito que, ainda mesmo não me conhecendo, tivesses sobre mim uma idéia tão injusta e tão falsa. Aqui é preciso dizer-te que no dia seguinte ao do nosso primeiro encontro, tínhamos voltado à cidade, e eu via-te passar todos os dias diante de minha janela, quando fazias o teu passeio costumado à Glória. Por detrás das cortinas seguia-te com o olhar, até que desaparecias no fim da rua, e este prazer, rápido como era, alimentava o meu amor, habituado a viver de tão pouco. Depois da minha carta tu deixaste de passar dois dias, estava eu a partir para aqui, donde devia voltar unicamente para embarcar no paquete inglês. Minha mãe, incansável nos seus desvelos, quer levar-me à Europa e fazer-me viajar pela Itália, pela Grécia, por todos os países de um clima doce. Ela diz que é para mostrar-me os grandes modelos de arte e cultivar o meu espírito, mas eu sei que essa viagem é a sua única esperança, que não podendo nada contra a minha enfermidade, quer ao menos disputar-lhe a sua vítima durante mais algum tempo. 17 "Julga que fazendo-me viajar, sempre me dará mais alguns dias de existência, como se estes sobejos de vida valessem alguma coisa para quem já perdeu a sua mocidade e o seu futuro. Quando ia embarcar para aqui, lembrei-me de que talvez não te visse mais, e diante dessa derradeira provança sucumbi. Ao menos o consolo de dizer-te adeus!... Era o último! Escrevi-te segunda vez; admirava-me da tua demora, mas tinha uma quase certeza de que havias de vir. Não me enganei. Vieste, e toda a minha resolução, toda a minha coragem cedeu, porque, sombra ou mulher, conheci que me amavas como eu te amo. O mal estava feito. Agora, meu amigo, peço-te por mim, pelo amor que me tens, que reflitas no que te vou dizer, mas que reflitas com calma e tranqüilidade. Para isto parti hoje de Petrópolis sem prevenir-te, e coloquei entre nós o espaço de vinte e quatro horas e uma distância de muitas léguas. Desejo que não procedas precipitadamente, e que, antes de dizer-me uma palavra, tenhas medido todo o alcance que ela deve ter sobre o teu futuro. Sabes o meu destino, sabes que sou uma vítima, cuja hora está marcada, e que todo o meu amor, imenso, profundo, não te pode dar talvez dentro em bem pouco senão o sorriso contraído pela tosse, o olhar desvairado pela febre, e carícias roubadas aos sofrimentos. É triste; e não deves imolar assim a tua bela mocidade, que ainda te reserva tantas venturas e talvez um amor como o que eu te consagro. Deixo-te, pois, meu retrato, meus cabelos e minha história; guarda-os como uma lembrança e pensa algumas vezes em mim; beija esta folha muda, onde os meus lábios deixaram-te o adeus extremo. Entretanto, meu amigo, se, como tu dizias ontem, a feli cidade é amar e sentir-se amado; se te achas com forças de partilhar essa curta existência, esses poucos dias que me restam a passar sobre a terra, se me queres dar esse consolo supremo, único que ainda embelezaria minha vida, vem! Sim, vem! iremos pedir ao belo céu da Itália mais alguns dias de vida para nosso amor; iremos aonde tu quiseres, ou onde nos levar a Providência. "Errantes pelas vastas solidões dos mares ou pelos cimos elevados das montanhas, longe do mundo, sob o olhar protetor de Deus, à sombra dos cuidados de nossa mãe, viveremos tanto um como outro, encheremos de tanta afeição os nossos dias, as nossas horas, os nossos instantes, que, por curta que seja a minha existência, teremos vivido por cada minuto séculos de amor e de felicidade. Eu espero; mas temo. Espero-te como a flor desfalecida espera o raio de sol que deve aquecê-la, a gota de orvalho que pode animá-la, o hálito da brisa que vem bafejá-la. Porque para mim o único céu que hoje me sorri, são teus olhos; o calor que pode me fazer viver, é o do teu seio. Entretanto temo, temo por ti, e quase peço a Deus que te inspire e te salve de um sacrifício talvez inútil! Adeus para sempre, ou até amanhã!" nan CARLOTA VIII nan Devorei toda esta carta de um lanço de olhos. Minha vista corria sobre o papel como o meu pensamento, sem parar, sem hesitar, poderia até dizer sem respirar. 18 Quando acabei de ler, só tinha um desejo: era o de ir ajoelhar-me a seus pés, e receber como uma bênção do céu esse amor sublime e santo. Como sua mãe, lutaria contra o destino, cercá-la-ia de tanto afeto e de tanta adoração, tornaria sua vida tão bela e tão tranqüila, prenderia tanto sua alma à terra, que lhe seria impossível deixá-la. Criaria para ela com o meu coração um mundo novo, sem as misérias e as lágrimas deste mundo em que vivemos; um mundo só de ventura, onde a dor e o sofrimento não pudessem penetrar. Pensava que devia haver no universo algum lugar desconhecido, algum canto de terra ainda puro do hálito do homem, onde a natureza virgem conservaria o perfume dos primeiros tempos da criação e o contato das mãos de Deus quando a formara. Aí era impossível que o ar não desse vida; que o raio do sol não viesse impregnado de um átomo de fogo celeste; que a água, as árvores, a terra, cheia de tanta seiva e de tanto vigor, não inoculassem na criatura essa vitalidade poderosa da natureza no seu primitivo esplendor. Iríamos, pois, a uma dessas solidões desconhecidas; o mundo abria-se diante de nós, e eu sentia-me com bastante força e bastante coragem para levar o meu tesouro além dos ma- res e das montanhas, até achar um retiro onde esconder a nossa felicidade. Nesses desertos, tão vastos, tão extensos, não haveria sequer vida bastante para duas criaturas que apenas pediam um palmo de terra e um sopro de ar, a fim de poderem elevar a Deus, como uma prece constante, o seu amor tão puro? Ela dava-me vinte e quatro horas para refletir, e eu não queria nem um minuto, nem um segundo. Que me importavam o meu futuro e a minha existência se eu os sacrificaria de bom grado para dar-lhe mais um dia de vida? Todas estas idéias, minha prima, cruzavam-se no meu espírito, rápidas e confusas, enquanto eu fechava na caixinha de pau-cetim os objetos preciosos que ela encerrava, copiava na minha carteira a sua morada, escrita no fim da carta, e atravessava o espaço que me separava da porta do hotel. Aí encontrei o criado da véspera. — A que horas parte a barca da Estrela? — Ao meio-dia. Eram onze horas; no espaço de uma hora eu faria as quatro léguas que me separavam daquele porto. Lancei os olhos em torno de mim com uma espécie de desvairo Não tinha um trono, como Ricardo III, para oferecer em troca de um cavalo; mas tinha a realeza do nosso século, tinha dinheiro. A dois passos da porta do hotel estava um cavalo, que o seu dono tinha pela rédea. — Compro-lhe este cavalo, disse eu caminhando para ele, sem mesmo perder tempo em cumprimentá-lo. — Não pretendia vendê-lo, respondeu-me o homem cortesmente; mas, se o senhor está disposto a dar o preço que ele vale... — Não questiono sobre o preço; compro-lhe o cavalo arreado como está. O sujeito olhou-me admirado; porque, a falar a verdade, os seus arreios nada valiam. Quanto a mim, já tinha-lhe tomado as rédeas da mão; e, sentado no selim, esperava que me dissesse quanto tinha de pagar-lhe. — Não repare, fiz uma aposta e preciso de um cavalo para ganhá-la. Isto deu-lhe a compreender a singularidade do meu ato e a pressa que eu tinha; recebeu sorrindo o preço do seu animal, e disse, saudando-me com a mão, de longe, porque já eu dobrava a rua: — Estimo que ganhe a aposta; o animal é excelente! Na verdade era uma aposta que eu tinha feito comigo mesmo, ou antes com a minha 19 razão, a qual me dizia que era impossível apanhar a barca, e que eu fazia uma extravagância sem necessidade, pois bastava ter paciência por vinte e quatro horas. Mas o amor não compreende esses cálculos e esses raciocínios próprios da fraqueza humana; criado com uma partícula do fogo divino, ele eleva o homem acima da terra, desprendeo da argila que o envolve, e dá-lhe força para dominar todos os obstáculos, para querer o impossível. Esperar tranqüilamente um dia para ir dizer-lhe que eu amava e queria amá-la com todo o culto e admiração que me inspirava a sua nobre abnegação, me parecia quase uma infâmia. Seria dizer-lhe que tinha refletido friamente, que tinha pesado todos os prós e os contras do passo que ia dar, que havia calculado como um egoísta a felicidade que ela me oferecia. Não só a minha alma se revoltava contra esta idéia; mas parecia-me que ela, com a sua extrema delicadeza de sentimento, embora não se queixasse, sentiria ver-se o objeto de um cálculo e o alvo de um projeto de futuro. A minha viagem foi uma corrida louca, desvairada, delirante. Novo Mazzepa, passava por entre a cerração da manhã, que cobria os píncaros da serrania, como uma sombra que fugia rápida e veloz. Dir-se-ia que alguma rocha colocada em um dos cabeços da montanha tinha-se desprendido de seu alvéolo secular, e, precipitando-se com todo o peso, rolava surdamente pelas encostas. O galopar do meu cavalo formava um único som, que ia reboando pelas grutas e cavernas, e confundia-se com o rumor das torrentes. As árvores, cercadas de névoa, fugiam diante de mim como fantasmas; o chão desaparecia sob os pés do animal; às vezes parecia-me que a terra ia faltar-me e que o cavalo e cavaleiro rolavam por algum desses abismos imensos e profundos, que devem ter servido de túmulos titânicos. Mas, de repente, entre uma aberta de nevoeiro, eu via a linha azulada do mar, e fechava os olhos e atirava-me sobre o meu cavalo, gritando-lhe ao ouvido a palavra de Byron: — Away! Ele parecia entender-me, e precipitava essa corrida desesperada; não galopava, voava; seus pés, como impelidos por quatro molas de aço, nem tocavam a terra. Assim, minha prima, devorando o espaço e a distância, foi ele, o nobre animal, abater-se a alguns passos apenas da praia; a coragem e as forças só o tinham abandonado com a vida, e no termo da viagem. Em pé, ainda sobre o cadáver desse companheiro leal, via a coisa de uma milha o vapor que singrava ligeiramente para a cidade. Aí fiquei perto de uma hora, seguindo com os olhos essa barca que a conduzia; e quando o casco desapareceu, olhei os frocos de fumaça do vapor, que se enovelaram no ar, e que o vento desfazia a pouco e pouco. Por fim, quando tudo desapareceu, e que nada me falava dela, olhei ainda o mar por onde havia passado e o horizonte que a ocultava aos meus olhos. O sol dardejava raios de fogo; mas eu bem me importava com o sol; todo o meu espírito e os meus sentidos se concentravam em um único pensamento; vê-la, vê-la em uma hora, em um momento, se possível fosse. Um velho pescador arrastava nesse momento a sua canoa à praia. Aproximei-me e disse-lhe: — Meu amigo, preciso ir à cidade, perdi a barca, e desejava que você me conduzisse na sua canoa. — Mas se eu agora mesmo é que chego! — Não importa; pagarei o seu trabalho, também o incômodo que isto lhe causa. — Não posso, não, senhor, não é lá pela paga que eu digo que estou chegando; mas é que passar a noite no mar sem dormir não é lá das melhores coisas; e estou caindo de sono. 20 — Escute, meu amigo... — Não se canse, senhor; quando eu digo não, é não; e está dito. E o velho continuou a arrastar a sua canoa. — Bem, não falemos mais nisto; mas conversemos. — Lá isto como o senhor quiser. — A sua pesca rende-lhe bastante? — Qual! rende nada!... — Ora diga-me! Se houvesse um meio de fazer-lhe ganhar em um só dia o que pode ganhar em um mês, não enjeitaria decerto? — Isto é coisa que se pergunte? — Quando mesmo fosse preciso embarcar depois de passar uma noite em claro no mar? — Ainda que devesse remar três dias com três noites, sem dormir nem comer. — Nesse caso, meu amigo, prepara-se, que vai ganhar o seu mês de pescaria; leve-me à cidade. — Ah! isto já é outro falar; por que não disse logo?... — Era preciso explicar-me?! — Bem diz o ditado que é falando que a gente se entende. — Assim, é negócio decidido. Vamos embarcar? — Com licença; preciso de um instantinho para prevenir a mulher; mas é um passo lá e outro cá. — Olhe, não se demore; tenho muita pressa. — É em um fechar de olhos, disse ele correndo na direção da vila. Mal tinha feito vinte passos, parou, hesitou, e por fim voltou lentamente pelo mesmo caminho. Eu tremia; julgava que se tinha arrependido, que vinha apresentar-me alguma nova dificuldade. Chegou-se para mim de olhos baixos e coçando a cabeça. — O que temos, meu amigo? perguntei-lhe com uma voz que esforçava por tornar calma. — É que... o senhor disse que pagava um mês... — Decerto; e, se duvida, disse levando a mão ao bolso. Não, senhor, Deus me defenda de desconfiar do senhor! Mas é que... sim, não vê, o mês agora tem menos um dia que os outros! Não pude deixar de sorrir-me do temor do velho; nós estávamos com efeito, no mês de fevereiro. — Não se importe com isto; está entendido que, quando eu digo um mês, é um mês de trinta e um dias; os outros são meses aleijados, e não se contam. — É isso mesmo, disse o velho rindo-se da minha idéia; assim como quem diz, um homem sem um braço. Ah!... ah!... E continuou a rir-se, tomou o caminho de casa e desapareceu. Quanto a mim, estava tão contente com a idéia de chegar à cidade em algumas horas, que não pude deixar também de rir-me do caráter original do pescador. Conto-lhe estas cenas e as outras que se lhe seguiram com todas as suas circunstâncias por duas razões, minha prima. A primeira é porque desejo que compreenda bem o drama simples que me propus traçarlhe; a segunda é porque tenho tantas vezes repassado na memória as menores particularidades dessa história, tenho ligado de tal maneira o meu pensamento a essas reminiscências, que não me animo a destacar delas a mais insignificante circunstância; parece-me que se o fizesse, separaria uma parcela de minha vida. Depois de duas horas de espera e de impaciência, embarquei nessa casquinha de noz, que saltou sobre as ondas, impelida pelo braço ainda forte e ágil do velho pescador. 21 Antes de partir fiz enterrar o meu pobre cavalo; não podia deixar assim exposto às aves de rapina o corpo desse nobre animal, que eu tinha roubado à afeição do seu dono, para imolá-lo à satisfação de um capricho meu. Talvez lhe pareça isto uma puerilidade; mas a senhora é mulher, minha prima, e deve saber que, quando se ama como eu amava, tem-se o coração tão cheio de afeição, que espalha uma atmosfera de sentimento em torno de nós, e inunda até os objetos inanimados, quanto mais as criaturas, ainda irracionais, que um momento se ligaram à nossa existência para realização de um desejo. IX Eram seis horas da tarde. O sol declinava rapidamente, e a noite, descendo do céu, envolvia a terra nas sombras desmaiadas que acompanham o ocaso. Soprava uma forte viração de sudoeste, que desde o momento da partida retardava a nossa viagem; lutávamos contra o mar e o vento. O velho pescador, morto de fadiga e de sono, estava exausto de forças; a sua pá, que a princípio fazia saltar sobre as ondas como um peixe o frágil barquinho, apenas feria agora a flor da água. Eu, recostado na popa, e com os olhos fitos na linha azulada do horizonte, esperando a cada momento ver desenhar-se o perfil do meu belo Rio de Janeiro, começava seriamente a inquietar-me na minha extravagância e loucura. À proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céu, esse vago inexprimível da noite no meio das ondas, a tristeza e melancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem em face dessa solidão imensa de água e de céu, se apoderavam do meu espírito. Pensava então que teria sido mais prudente esperar o dia seguinte, e fazer uma viagem breve e rápida, do que sujeitar-me a mil contratempos e mil embaraços, que no fim de contas nada adiantavam. Com efeito já tinha anoitecido; e, ainda que conseguíssemos chegar à cidade por volta de nove ou dez horas, só no dia seguinte poderia ver Carlota e falar-lhe. De que havia servido, pois, todo o meu arrebatamento, toda a minha impaciência? Tinha morto um animal, tinha incomodado um pobre velho, tinha atirado às mãos cheias di- nheiro, que poderia melhor empregar socorrendo algum infortúnio e cobrindo esta obra de caridade com o nome e a lembrança dela. Concebia uma triste idéia de mim; no meu modo de ver então as coisas, parecia-me que eu tinha feito do amor, que é uma sublime paixão, apenas uma estúpida mania; e dizia interiormente que o homem que não domina os seus sentimentos, é um escravo, que não tem o menor merecimento quando pratica um ato de dedicação. Tinha-me tornado filósofo, minha prima, e decerto compreenderá a razão. No meio da baía, metido em uma canoa, à mercê do vento e do mar, não podendo dar largas à minha impaciência de chegar, não havia senão um modo de sair desta situação, e este era arrepender-me do que tinha feito. Se eu pudesse fazer alguma nova loucura, creio piamente que adiaria o arrependimento para mais tarde, porém era impossível. Tive um momento a idéia de atirar-me à água, e procurar vencer a nado a distância que me separava dela; mas era noite, não tinha a luz de Hero para guiar-me, e me perderia nesse novo Helesponto. Foi decerto uma inspiração do céu ou o meu anjo da guarda que me veio advertir que naquela ocasião eu nem sabia mesmo de que lado ficava a cidade. Resignei-me, pois, e arrependi-me sinceramente. 22 Dividi com o meu companheiro algumas provisões que tínhamos trazido; e fizemos uma verdadeira colação de contrabandistas ou piratas. Caí na asneira de obrigá-lo a beber uma garrafa de vinho do Porto, bebendo eu outra para acompanhá-lo e fazer-lhe as honras da hospitalidade. Julgava que deste modo ele restabeleceria as forças e chegaríamos mais depressa. Tinha-me esquecido que a sabedoria das nações, ou a ciência dos provérbios, consagra o princípio de que devagar se vai ao longe. Acabada a nossa magra colação, o pescador começou a remar com uma força e um vigor que me reanimaram a esperança. Assim, docemente embalado pela idéia de vê-la e pelo marulho das ondas, com os olhos fitos na estrela da tarde, que se ia sumindo no horizonte e me sorria como para consolar-me, senti a pouco e pouco fecharem-se-me as pálpebras, e dormi. Quando acordei, minha prima, o sol derramava seus raios de ouro sobre o manto azulado das ondas: era dia claro. Não sei onde estávamos; via ao longe algumas ilhas; o pescador dormia na proa, e ressonava como um boto. A canoa tinha vogado à mercê da corrente; e o remo, que caíra naturalmente das mãos do velho, no momento em que ele cedera à força invencível do sono, tinha desaparecido. Estávamos no meio da baía, sem poder dar um passo, sem poder mover-nos. Aposto, minha prima, que a senhora acaba de dar uma risada, pensando na cômica posição em que me achava; mas seria uma injustiça zombar de uma dor profunda, de uma angústia cruel como a que sofri então. Os instantes, as horas, corriam de decepção em decepção; alguns barcos que passaram perto, apesar dos nossos gritos, seguiram o seu caminho, não podendo supor que com o tempo calmo e sereno que fazia, houvesse sombra de perigo para uma canoa que boiava tão levemente sobre as ondas. O velho, que tinha acordado, nem se desculpava; mas a sua aflição era tão grande que quase me comoveu; o pobre homem arrancava os cabelos e mordia os beiços de raiva. As horas correram assim nessa atonia do desespero. Sentados em face um do outro, talvez culpando-nos mutuamente do que sucedia, não proferíamos uma palavra, não fazíamos um gesto. Por fim veio a noite. Não sei como não fiquei louco, lembrando-me que estávamos a 13, e que o paquete devia partir no dia seguinte. Não era unicamente a idéia de uma ausência que me afligia; era também a lembrança do mal que ia causar-lhe, a ela, que, ignorando o que se passava, me julgaria egoísta, suporia que a havia abandonado, e que ficara em Petrópolis divertindo-me. Aterrava-me com as conseqüências que poderia ter esse fato sobre a sua saúde tão frágil, sobre a sua vida; e me condenava já como assassino. Lancei um olhar alucinado sobre o pescador, e tive ímpetos de abraçá-lo e atirar-me com ele ao mar. Oh! como sentia então o nada do homem e a fraqueza da nossa raça, tão orgulhosa de sua superioridade e do seu poder! De que me serviam a inteligência, a vontade, e essa força invencível do amor, que me impelia e me dava coragem para arrostar vinte vezes a morte? Algumas braças d'água e uma pequena distância me retinham e me encadeavam naquele lugar como a um poste; a falta de um remo, isto é, de três palmos de madeira, criava para mim o impossível; um círculo de ferro me cingia, e para quebrar essa prisão, contra a qual toda a minha razão era impotente, bastava-me que fosse um ente irracional. A gaivota, que frisava as ondas com a ponta de suas asas brancas; o peixe, que fazia cintilar um momento seu dorso de escamas à luz das estrelas; o inseto, que vivia no seio das 23 águas e plantas marinhas, eram reis dessa solidão, na qual o homem não podia sequer dar um passo. Assim, blasfemando contra Deus e sua obra, sem saber o que fazia nem o que pensava, entreguei-me à Providência; embrulhei-me no meu capote, deitei-me e fechei os olhos para não ver a noite adiantar-se, as estrelas empalidecerem e o dia raiar. Tudo estava sereno e tranqüilo; as águas nem se moviam; apenas sobre a face lisa do mar passava uma aragem tênue, que se diria hálito das ondas adormecidas. De repente, pareceu-me sentir que a canoa deixara de boiar à discrição e singrava lentamente; julgando que fosse ilusão minha, não me importei, até que um movimento contínuo e regular me convenceu. Afastei a aba do capote e olhei, receando ainda iludir-me; não vi o pescador; mas a alguns passos da proa percebi os rolos de espuma que formavam um corpo agitando-se nas ondas. Aproximei-me, e distingui o velho pescador, que nadava, puxando a canoa por meio de uma corda que amarrara à cintura, para deixar-lhe os movimentos livres. Admirei essa dedicação do pobre velho, que procurava remediar a sua falta por um sacrifício que eu supunha inútil: não era possível que um homem nadasse assim por muito tempo. Com efeito, passados alguns instantes, vi-o parar e saltar ligeiramente na canoa como temendo acordar-me; a sua respiração fazia uma espécie de burburinho no seu peito largo e forte. Bebeu um trago de vinho, e com o mesmo cuidado deixou-se cair n'água e continuou a puxar a canoa. Era alta noite quando nesta marcha chegamos a uma espécie de praia, que teria quando muito duas braças. O velho saltou e desapareceu. Fitando a vista nas trevas, vi uma claridade, que não pude distinguir se era fogo, se luz, senão quando uma porta abrindo-se deixou-me ver o interior de uma cabana. O velho voltou com um outro homem, sentaram-se sobre uma pedra e começaram a falar em voz baixa. Senti uma grande inquietação; na verdade, minha prima, só me faltava, para completar a minha aventura, uma história de ladrões. A minha suspeita, porém, era injusta; os dois pescadores estavam à espera de dois remos que lhes trouxe uma mulher, e imediatamente embarcaram e começaram a remar com uma força espantosa. A canoa resvalou sobre as ondas, ágil e veloz como um desses peixes de que há pouco invejava a rapidez. Ergui-me para agradecer a Deus, ao céu, às estrelas, às águas, a toda a natureza enfim, o raio de esperança que me enviavam. Uma faixa escarlate já se desenhava no horizonte; o oriente foi-se esclarecendo de gradação em gradação, até que deixou ver o disco luminoso do sol. A cidade começou a erguer-se do seio das ondas, linda e graciosa, como uma donzela que, recostada sobre um monte de relva, banhasse os pés na corrente límpida de um rio. A cada movimento de impaciência que eu fazia, os dois pescadores dobravam-se sobre os remos e a canoa voava. Assim nos aproximamos da cidade, passamos entre os navios, e nos dirigimos à Glória, onde pretendia desembarcar, para ficar mais próximo de sua casa. Em um segundo tinha tomado a minha resolução; chegar, vê-la, dizer-lhe que a seguia, e embarcar-me nesse mesmo paquete em que ela ia partir. Não sabia que horas eram; mas há pouco havia amanhecido; tinha tempo para tudo, tanto mais que eu só precisava de uma hora. Um crédito sobre Londres e a minha mala de viagem eram todos os meus preparativos; podia acompanhá-la ao fim do mundo. Já via tudo cor-de-rosa, sorria à minha ventura e gozava da alegre surpresa que ia causarlhe, a ela que já não me esperava. A surpresa, porém, foi minha. 24 Quando passava diante de Villegaignon, descobri de repente o paquete inglês: as pás se moviam indolentemente, e imprimiam ao navio essa marcha vagarosa do vapor, que parece experimentar as suas forças, para precipitar-se a toda a carreira. Carlota estava sentada sob a tolda, com a cabeça encostada ao ombro de sua mãe, e com os olhos engolfados no horizonte, que ocultava o lugar onde tínhamos passado a primeira e última hora de felicidade. Quando me viu, fez um movimento como se quisesse lançar-se para mim; mas contevese, sorriu-se para sua mãe, e, cruzando as mãos no peito, ergueu os olhos ao céu, como para agradecer a Deus, ou para dirigir-lhe uma prece. Trocamos um longo olhar, um desses olhares que levam toda a nossa alma e a trazem ainda palpitante das emoções que sentiu noutro coração; uma dessas correntes elétricas que ligam duas vidas em um só fio. O vapor soltou um gemido surdo; as rodas fenderam as águas; e o monstro marinho, rugindo como uma cratera, vomitando fumo e devorando o espaço com os seus flancos negros, lançou-se. Por muito tempo ainda vi o seu lenço branco agitar-se ao longe, como as asas brancas do meu amor, que fugia e voava ao céu. O paquete sumiu-se no horizonte. X O resto desta história, minha prima, a senhora conhece, com exceção de algumas particularidades. Vivi um mês, contando os dias, as horas e os minutos; o tempo corria vagarosamente para mim, que desejava poder devorá-lo. Quando tinha durante uma manhã inteira olhado o seu retrato, conversando com ele, e lhe contado a minha impaciência e o meu sofrimento, começava a calcular as horas que faltavam para acabar o dia, os dias que faltavam para acabar a semana, e as semanas que ainda faltavam para acabar o mês. No meio da tristeza que me causara a sua ausência, o que me deu um grande consolo foi uma carta que ela me havia deixado, e que me foi entregue no dia seguinte ao da sua partida. Bem vês, meu amigo, dizia-me ela, que Deus não quer aceitar o teu sacrifício. Apesar de todo o teu amor, apesar de tua alma, ele impediu a nossa união; poupou-te um sofrimento e a mim talvez um remorso. Sei tudo quanto fizeste por minha causa, e adivinho o resto; parto triste por não te ver, mas bem feliz por sentir-me amada, como nenhuma mulher talvez o seja neste mundo." Esta carta tinha sido escrita na véspera da saída do paquete; um criado que viera de Petrópolis, e a quem ela incumbira de entregar-me a caixinha com o seu retrato, contou-lhe metade das extravagâncias que eu praticara para chegar à cidade no mesmo dia. Disse-lhe que me tinha visto partir para a Estrela, depois de perguntar a hora da saída do vapor; e que embaixo da serra referiram-lhe como eu tinha morto um cavalo para al- cançar a barca, e como me embarcara em uma canoa. Não me vendo chegar, ela adivinhara que alguma dificuldade invencível me retinha, e atribuía isto à vontade de Deus, que não consentia no meu amor. Entretanto, lendo e relendo a sua carta, uma coisa me admirou; ela não me dizia um adeus, apesar de sua ausência e apesar da moléstia, que podia tornar essa ausência eterna. Tinha-me adivinhado! Ao mesmo tempo que fazia por me dissuadir, estava convencida que a acompanharia. Com efeito parti no paquete seguinte para a Europa. 25 Há de ter ouvido falar, minha prima, se é que ainda não o sentiu, da força dos pressentimentos do amor, ou da segunda vista que tem a alma nas suas grandes afeições. Vou contar-lhe uma circunstância que confirma este fato. No primeiro lugar onde desembarquei, não sei que instinto, que revelação, me fez correr imediatamente ao correio; parecia-me impossível que ela não tivesse deixado alguma lembrança para mim. E de fato em todos os portos da escala do vapor havia uma carta que continha duas palavras apenas: Sei que tu me segues. Até logo. Enfim cheguei à Europa e vi-a. Todas as minhas loucuras e os meus sofrimentos foram compensados pelo sorriso de inexprimível gozo com que me acolheu. Sua mãe dizia-lhe que eu ficaria no Rio de Janeiro, mas ela nunca duvidara de mim! Esperava-me como se a tivesse deixado na véspera, prometendo voltar. Encontrei-a muito abatida da viagem; não sofria, mas estava pálida e branca como uma dessas Madonas de Rafael, que vi depois em Roma. Às vezes uma languidez invencível a prostrava; nesses momentos um quer que seja de celeste e vaporoso a cercava, como se a alma exalando-se envolvesse o seu corpo. Sentado ao seu lado, ou de joelhos a seus pés, passava os dias a contemplar essa agonia lenta; sentia-me morrer gradualmente, à semelhança de um homem que vê os últimos clarões da luz que vai extinguir-se e deixá-lo nas trevas. Uma tarde que ela estava ainda mais fraca, tínhamo-nos chegado para a varanda. A nossa casa em Nápoles dava sobre o mar; o sol, transmontando, escondia-se nas ondas; um raio pálido e descorado veio enfiar-se pela nossa janela e brincar sobre o rosto de Carlota, sentada ou antes deitada em uma conversadeira. Ela abriu os olhos um momento e quis sorrir; seus lábios nem tinham força para desfolhar o sorriso. As lágrimas saltaram-me dos olhos; havia muito que eu tinha perdido a fé, mas conservava ainda a esperança; esta desvaneceu-se com aquele reflexo do ocaso, que me parecia o seu adeus à vida. Sentindo as minhas lágrimas molharem as suas mãos, que eu beijava, ela voltou-se e fixou-me com os seus grandes olhos lânguidos. Depois, fazendo um esforço, reclinou-se para mim e apoiou as mãos sobre o meu ombro. — Meu amigo, disse ela com voz débil, vou-te pedir uma coisa, a última; tu me prometes cumprir? — Juro, respondi-lhe eu, com a voz cortada pelos soluços. — Daqui a bem pouco tempo... daqui a algumas horas talvez... Sim! sinto faltar-me o ar!... — Carlota!... — Sofres, meu amigo! Ah! se não fosse isto eu morreria feliz. — Não fales em morrer! — Pobre amigo, em que deverei falar então? Na vida?... Mas não vês que a minha vida é apenas um sopro... um instante que breve terá passado? — Tu te iludes, minha Carlota. Ela sorriu tristemente. — Escuta; quando sentires a minha mão gelada, quando as palpitações do meu coração cessarem, prometes receber nos teus lábios a minha alma? — Meu Deus!... — Prometes? sim?... — Sim. Ela tornou-se lívida; sua voz suspirou apenas: — Agora! 26 Apertei-a ao peito e colei os meus lábios aos seus. Era o primeiro beijo de nosso amor, beijo casto e puro, que a morte ia santificar. Sua fronte se tinha gelado, não sentia a sua respiração nem as pulsações de seu seio. De repente ela ergueu a cabeça. Se visse, minha prima, que reflexo de felicidade e alegria iluminava nesse momento o seu rosto pálido! — Oh! quero viver! exclamou ela. E com os lábios entreabertos aspirou com delícia a aura impregnada de perfumes que nos enviava o golfo de Ischia. Desde esse dia foi pouco e pouco restabelecendo-se, ganhando as forças e a saúde; sua beleza. reanimava-se e expandia-se como um botão que por muito tempo privado de sol, se abre em flor viçosa. Esse milagre, que ela, sorrindo e corando, atribuía ao meu amor, foi-nos um dia explicado bem prosaicamente por um médico alemão que fez-nos uma longa dissertação a respeito da medicina. Segundo ele dizia, a viagem tinha sido o único remédio e o que nós tomávamos por um estado mortal não era senão a crise que se operava, crise perigosa, que podia matá-la, mas que felizmente a salvou. Casamo-nos em Florença na igreja de Santa Maria Novela. Percorremos a Alemanha, a França, a Itália e a Grécia; passamos um ano nessa vida errante e nômade, vivendo do nosso amor e alimentando-nos de música, de recordações históricas, de contemplações de arte. Criamos assim um pequeno mundo, unicamente nosso; depositamos nele todas as belas reminiscências de nossas viagens, toda a poesia dessas ruínas seculares em que as gerações que morreram, falam ao futuro pela voz do silêncio; todo o enlevo dessas vastas e imensas solidões do mar, em que a alma, dilatando-se no infinito, sente-se mais perto de Deus. Trouxemos das nossas peregrinações um raio de sol do Oriente, um reflexo de lua de Nápoles, uma nesga do céu da Grécia, algumas flores, alguns perfumes, e com isto enchemos o nosso pequeno universo. Depois, como as andorinhas que voltam com a primavera para fabricar o seu ninho no campanário da capelinha em que nasceram, apenas ela recobrou a saúde e as suas belas cores, viemos procurar em nossa terra um cantinho para esconder esse mundo que havíamos criado. Achamos na quebrada de uma montanha um lindo retiro, um verdadeiro berço de relva suspenso entre o céu e a terra por uma ponta de rochedo. Aí abrigamos o nosso amor e vivemos tão felizes que só pedimos a Deus que nos conserve o que nos deu; a nossa existência é um longo dia, calmo e tranqüilo, que começou ontem, mas que não tem amanhã. Uma linda casa, toda alva e louçã, um pequeno rio saltitando entre as pedras, algumas braças de terra, sol, ar puro, árvores, sombras,... eis toda a nossa riqueza. Quando nos sentimos fatigados de tanta felicidade, ela arvora-se em dona de casa ou vai cuidar de suas flores; eu fecho-me com os meus livros e passo o dia a trabalhar. São os únicos momentos em que não nos vemos. Assim, minha prima, como parece que neste mundo não pode haver um amor sem o seu receio e a sua inquietação, nós não estamos isentos dessa fraqueza. Ela tem ciúmes de meus livros, como eu tenho de suas flores. Ela diz que a esqueço para trabalhar; eu queixo-me de que ela ama as suas violetas mais do que a mim. Isto dura quando muito um dia; depois vem sentar-se ao meu lado e dizer-me ao ouvido a primeira palavra que balbuciou o nosso amor: — Non ti scordar di me. Olhamo-nos, sorrimos e recomeçamos esta história que lhe acabo de contar, e que é ao mesmo tempo o nosso romance, o nosso drama e o nosso poema. 27 Eis, minha prima, a resposta à sua pergunta; eis por que esse moço elegante, como teve a bondade de chamar-me, fez-se provinciano e retirou-se da sociedade, depois de ter passado um ano na Europa. Podia dar-lhe outra resposta mais breve, e dizer-lhe simplesmente que tudo isto sucedeu porque me atrasei cinco minutos. Desta pequena causa, desse grão de areia, nasceu a minha felicidade; dele podia resultar a minha desgraça. Se tivesse sido pontual como um inglês, não teria tido uma paixão nem feito uma viagem; mas ainda hoje estaria perdendo o meu tempo a passear pela Rua do Ouvidor e a ouvir falar de política e teatro. Isto prova que a pontualidade é uma excelente virtude para uma máquina; mas um grave defeito para um homem. Adeus, minha prima. Carlota impacienta-se, porque há muitas horas que lhe escrevo; não quero que ela tenha ciúmes desta carta e que me prive de enviá-la. *** Minas, 12 de agosto nan * Abaixo da assinatura havia um pequeno post-scriptum de uma letra fina e delicada: P. S. — Tudo isto é verdade, D..., menos uma coisa. Ele não tem ciúmes de minhas flores, nem podia ter, porque sabe que só quando seus olhos não me procuram é que vou visitá-las e pedir-lhes que me ensinem a fazer-me bela para agradá-lo. Nisto enganou-a; mas eu vingo-me roubando-lhe um dos meus beijos, que lhe envio nesta carta. Não o deixe fugir, prima; iria talvez revelar a nossa felicidade ao mundo invejoso." nan CARLOTA nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan
MINISTÉRIO DA CULTURA Fundação Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro O MULATO Aluísio de Azevedo 1 Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças d’água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem-cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho. A Praça da Alegria apresentava um ar fúnebre. De um casebre miserável, de porta e janela, ouviam-se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz tísica e aflautada, de mulher, cantar em falsete a “gentil Carolina era bela”; do outro lado da praça, uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de moscas, apregoava em tom muito arrastado e melancólico: “Fígado, rins e coração!’’ Era uma vendedeira de fatos de boi. As crianças nuas, com as perninhas tortas pelo costume de cavalgar as ilhargas maternas, as cabeças avermelhadas pelo sol, a pele crestada os ventrezinhos amarelentos e crescidos, corriam e guinchavam, empinando papagaios de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de sair, atravessava a rua, suado, vermelho, afogueado, à sombra de um enorme chapéu-de-sol. Os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos, movimentos irascíveis, mordiam o ar querendo morder os mosquitos. Ao longe, para as bandas de São Pantaleão, ouvia-se apregoar: “Arroz de Veneza! Mangas! Mocajubas!” Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de sabão da terra e aguardente. O quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado pé descalço. Da Praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade os sons invariáveis e monótonos de uma buzina, anunciando que os pescadores chegavam do mar; para lá convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas. A Praia Grande e a Rua da Estrela contrastavam todavia com o resto da cidade, porque era aquela hora justamente a de maior movimento comercial. Em todas as direções cruzavam-se homens esbofados e rubros; cruzavam-se os negros no carreto e os caixeiros que estavam em serviço na rua; avultavam os paletós-sacos, de brim pardo, mosqueados nas espáduas e nos sovacos por grandes manchas de suor. Os corretores de escravos examinavam, à plena luz do sol, os negros e moleques que ali estavam para ser vendidos; revistavam-lhes os dentes, os pés e as virilhas; faziam-lhes perguntas sobre perguntas, batiam-lhes com a biqueira do chapéu nos ombros e nas coxas, experimentando-lhes o vigor da musculatura, como se estivessem a comprar cavalos. Na Casa da Praça, debaixo das amendoeiras, nas portadas dos armazéns, entre pilhas de caixões de cebolas e batatas portuguesas, discutiam-se o câmbio, o preço do algodão, a taxa do açúcar, a tarifa dos gêneros nacionais; volumosos comendadores resolviam negócios, faziam transações, perdiam, ganhavam, tratavam de embarrilar uns aos outros, com muita manha de gente de negócios, falando numa gíria só deles trocando chalaças pesadas, mas em plena confiança de amizade. Os leiloeiros cantavam em voz alta o preço das mercadorias, com um abrimento afetado de vogais; diziam: “Mal-rais“ em vez de mil-réis. À porta dos leilões aglomeravam-se os que queriam comprar e os simples curiosos. Corria um quente e grosseiro zunzum de feira. O leiloeiro tinha piscos de olhos significativos; de martelo em punho, entusiasmado, o ar trágico, mostrava com o braço erguido um cálice de cachaça, ou, comicamente acocorado, esbrocava com o furador os paneiros de farinha e de milho. E, quando chegava a ocasião de ceder a fazenda, repetia o preço muitas vezes, gritando, e afinal batia o martelo com grande barulho, arrastando a voz em um tom cantado e estridente. Viam-se deslizar pela praça os imponentes e monstruosos abdomens dos capitalistas; viam-se cabeças escarlates e descabeladas, gotejando suor por debaixo do chapéu de pêlo; risinhos de proteção, bocas sem bigode dilatadas pelo calor, perninhas espertas e suadas na calça de brim de Hamburgo. E toda esta atividade, posto que um tanto fingida, era geral e comunicativa; até os ricos ociosos, que iam para ali encher o dia, e os caixeiros, que “faziam cera” e até os próprios vadios desempregados, aparentavam diligência e prontidão. A varanda do sobrado de Manuel Pescada, uma varanda larga e sem forro no teto, deixando ver as ripas e os caibros que sustentavam as telhas, tinha um aspecto mais ou menos pitoresco com a sua bela vista sobre o rio Bacanga e as suas rótulas pintadas de verde-paris. Toda ela abria para o quintal, estreito e longo, onde, à mingua de sol, se mirravam duas tristes pitangueiras e passeava solenemente um pavão da terra. As paredes, barradas de azulejos portugueses e, para o alto, cobertas de papel pintado, mostravam, nos seus desenhos repetidos de assuntos de caça, alguns lugares sem tinta, cujas manchas brancacentas traziam à idéia joelheiras de calças surradas. Ao lado, dominando a mesa de jantar, aprumava-se um velho armário de jacarandá polido, muito bem tratado, com as vidraças bem limpas, expondo as pratas e as porcelanas de gosto moderno; a um canto dormia, esquecida na sua caixa de pinho envernizado, uma máquina de costura de Wilson, das primeiras que chegaram ao Maranhão; nos intervalos das portas simetrizavam-se quatro estudos de Julien, representando em litografia as estações do ano; defronte do guarda-louça um relógio de corrente embalava melancolicamente a sua pêndula do tamanho de um prato e apontava para as duas horas. Duas horas da tarde. Não obstante, ainda permanecia sobre a mesa a louça que servira ao almoço. Uma garrafa branca, com uns restos de vinho de Lisboa cintilava à claridade reverberante que vinha do quintal. De uma gaiola, dependurada entre as janelas desse lado, chilreava um sabiá. Fazia preguiça estar ali. A viração do Bacanga refrescava o ar da varanda e dava ao ambiente um tom morno e aprazível. Havia a quietação dos dias inúteis, uma vontade lassa de fechar os olhos e esticar as pernas. Lá defronte, nas margens opostas do rio, a silenciosa vegetação do Anjo da Guarda estava a provocar boas sestas sobre o capim, debaixo das mangueiras; as árvores pareciam abrir de longe os braços, chamando a gente para a calma tepidez das suas sombras. — Então, Ana Rosa, que me respondes?... disse Manuel, esticando-se mais na cadeira em que se achava assentado, à cabeceira da mesa, em frente da filha. Bem sabes que te não contrario... desejo este casamento, desejo... mas, em primeiro lugar, convém saber se ele é do teu gosto... Vamos.., fala! Ana Rosa não respondeu e continuou muito embebida, como estava, a rolar sob a ponta cor-de-rosa dos seus dedos as migalhas de pão que ia encontrando sobre a toalha. Manuel Pedro da Silva, mais conhecido por Manuel Pescada, era um português de uns cinqüenta anos, forte, vermelho e trabalhador. Diziam-no atilado para o comércio e amigo do Brasil. Gostava da sua leitura nas horas de descanso, assinava respeitosamente os jornais sérios da província e recebia alguns de Lisboa. Em pequeno meteram-lhe na cabeça vários trechos do Camões e não lhe esconderam de todo o nome de outros poetas. Prezava com fanatismo o Marquês de Pombal, de quem sabia muitas anedotas e tinha uma assinatura no Gabinete Português, a qual lhe aproveitava menos a ele do que à filha, que era perdida pelo romance. Manuel Pedro fora casado com uma senhora de Alcântara, chamada Mariana, muito virtuosa e, como a melhor parte das maranhenses, extremada em pontos de religião; quando morreu, deixou em legado seis escravos a Nossa Senhora do Carmo. Bem triste foi essa época, tanto para o viúvo como para a filha, orfanada; coitadinha, justamente quando mais precisava do amparo maternal. Nesse tempo moravam no Caminho Grande, numa casinha térrea, para onde a moléstia de Mariana os levara em busca de ares mais benignos; Manuel, porém, que era já então negociante e tinha o seu armazém na Praia Grande, mudou-se logo com a pequena para o sobrado da Rua da Estrela, em cujas lojas prosperava, havia dez anos, no comércio de fazendas por atacado. Para não ficar só com a filha “que se fazia uma mulher” convidou a sogra, D. Maria Bárbara, a abandonar o sítio em que vivia e ir morar com ele e mais a neta. “A menina precisava de alguém que a guiasse, que a conduzisse! Um homem nunca podia servir para essas coisas! E, se fosse a meter em casa uma preceptora — Meu bom Jesus! — que não diriam por ai?... No Maranhão falava-se de tudo! D. Maria Bárbara que se decidisse a deixar o mato e fosse de muda para a Rua da Estrela! Não teria que se arrepender... havia de estar como em sua própria casa — bom quarto, boa mesa, e plena liberdade!” A velha aceitou e lá foi, arrastando os seus cinqüenta e tantos anos, alojar-se em casa do genro, com um batalhão de moleques, suas crias, e com os cacaréus ainda do tempo do defunto marido. Em breve, porém, o bom português estava arrependido do passo que dera: D. Maria Bárbara, apesar de muito piedosa; apesar de não sair do quarto sem vir bem penteada, sem lhe faltar nenhum dos cachinhos de seda preta, com que ela emoldurava disparatadamente o rosto enrugado e macilento; apesar do seu grande fervor pela igreja e apesar das missas que papava por dia, D. Maria Bárbara, apesar de tudo isso, saíra-lhe “má dona de casa”. Era uma fúria! Uma víbora! Dava nos escravos por hábito e por gosto; só falava a gritar e, quando se punha a ralhar — Deus nos acuda! —, incomodava toda a vizinhança! Insuportável! Maria Bárbara tinha o verdadeiro tipo das velhas maranhenses criadas na fazenda. Tratava muito dos avós, quase todos portugueses; muito orgulhosa; muito cheia de escrúpulos de sangue. Quando falava nos pretos, dizia “Os sujos” e, quando se referia a um mulato dizia “O cabra”. Sempre fora assim e, como devota, não havia outra: Em Alcântara, tivera uma capela de Santa Bárbara e obrigava a sua escravatura a rezar aí todas as noites, em coro, de braços abertos, às vezes algemados. Lembrava-se com grandes suspiros do marido “do seu João Hipólito” um português fino, de olhos azuis e cabelos louros. Este João Hipólito foi brasileiro adotivo e chegou a fazer alguma posição oficial na secretaria do governo da província. Morreu com o posto de coronel. Maria Bárbara tinha grande admiração pelos portugueses, dedicava-lhes um entusiasmo sem limites, preferia-os em tudo aos brasileiros. Quando a filha foi pedida por Manuel Pedroso, então principiante no comércio da capital, ela dissera: “Bem! Ao menos tenho a certeza de que é branco!” Mas o Pescada não compreendeu a esposa, nem foi amado por ela; a virtude, ou talvez simplesmente a maternidade, apenas conseguiu fazer de Mariana uma companheira fiel; viveu exclusivamente para a filha. É que a desgraçada, desde os quinze anos, ainda no irresponsável arrebatamento do primeiro amor, havia eleito já o homem a quem sua alma teria de pertencer por toda a vida. Esse homem existe hoje na história do Maranhão, era o agitador José Cândido de Moraes e Silva conhecido popularmente pelo “Farol”. Fez todo o possível para casar com ele, mas foram baldados os seus esforços, nem só em virtude das perseguições políticas que, tão cedo, atribularam a curta existência daquela fenomenal criatura, como também pela inflexível oposição que tal idéia encontrou na própria família da rapariga. Entretanto, o destino dela se havia prendido à sorte do desventurado maranhense. Quem diria que aquela pobre moça, nascida e criada nos sertões do Norte, sentiria, como qualquer filha das grandes capitais, a mágica influência que os homens superiores exercem sobre o espírito feminino? Amou-o, sem saber por quê. Sentira-lhe a força dominadora do olhar, os ímpetos revolucionários do seu caráter americano, o heroísmo patriótico da sua individualidade tão superior ao meio em que floresceu; decorara-lhe as frases apaixonadas e vibrantes de indignação, com que ele fulminava os exploradores da sua pátria estremecida e os inimigos da integridade nacional; e tudo isso, sem que ela soubesse explicar, arrebatou-a para o belo e destemido moço com todo o ardor do seu primeiro desejo de mulher. Quando, na Rua dos Remédios, que nesse tempo era ainda um arrabalde, o desditoso herói, apenas com pouco mais de vinte e cinco anos de idade sucumbiu ao jugo do seu próprio talento e da sua honra política, oculto, foragido, cheio de miséria, odiado por uns como um assassino e adorado por outros como um deus, a pobre senhora deixou-se possuir de uma grande tristeza e foi enfraquecendo, e ficando doente, e ficando feia e cada vez mais triste, até morrer silenciosamente poucos anos depois do seu amado. Ana Rosa não chegou a conhecer o Farol; a mãe porém, muito em segredo, ensinara-lhe a compreender e respeitar a memória do talentoso revolucionário, cujo nome de guerra despertava ainda, entre os portugueses, a raiva antiga do motim de 7 de agosto de 1831. “Minha filha, disse-lhe a infeliz já nas vésperas da morte, não consintas nunca que te casem, sem que ames deveras o homem a ti destinado para marido. Não te cases no ar! Lembra-te que o casamento deve ser sempre a conseqüência de duas inclinações irresistíveis. A gente deve casar porque ama, e não ter de amar porque casou. Se fizeres o que te digo, serás feliz!” Concluiu pedindo-lhe que prometesse, caso algum dia viessem a constrangê-la a aceitar marido contra seu gosto, arrostar tudo, tudo, para evitar semelhante desgraça, principalmente se então Ana Rosa já gostasse de outro; e por este, sim, fosse quem fosse, cometesse os maiores sacrifícios, arriscasse a própria vida, porque era nisso que consistia a verdadeira honestidade de uma moça. E mais não foram os conselhos que Mariana deu à filha. Ana Rosa era criança, não os compreendeu logo, nem tão cedo procurou compreendê-los; mas, tão ligados estavam eles à morte da mãe, que a idéia desta não lhe acudia à memória sem as palavras da moribunda. Manuel Pedro, apesar de bom, era um desses homens mais que alheados às sutilezas do sentimento; para outra mulher daria talvez um excelente esposo, não para aquela, cuja sensibilidade romântica, longe de o comover, havia muita vez de importuná-lo. Quando se achou viúvo, não sentiu, a despeito da sua natural bondade, mais do que certo desgosto pela ausência de uma companheira com que já se tinha habituado; contudo, não pensou em tornar a casar, convencido de que o afeto da filha lhe chegaria de sobra para amenizar as canseiras do trabalho, e que o auxílio imediato da sogra bastaria para garantir a decência da sua casa e a boa regra das suas despesas domésticas. Ana Rosa cresceu pois, como se vê, entre os desvelos insuficientes do pai e o mau gênio da avó. Ainda assim aprendera de cor a gramática do Sotero dos Reis; lera alguma coisa; sabia rudimentos de francês e tocava modinhas sentimentais ao violão e ao piano. Não era estúpida; tinha a intuição perfeita da virtude, um modo bonito, e por vezes lamentara não ser mais instruída. Conhecia muitos trabalhos de agulha; bordava como poucas, e dispunha de uma gargantazinha de contralto que fazia gosto ouvir. Tanto assim que, em pequena, servira várias vezes de anjo da verônica nas procissões da quaresma. E os cônegos da Sé gabavam-lhe o metal da voz e davam-lhe grandes cartuchos de amêndoas de mendubim, muito enfeitados nas suas pinturas, toscas e características, feitas a goma-arábica e tintas de botica. Nessas ocasiões ela sentia-se radiante, com as faces carminadas, a cabeça coberta de cachos artificiais, grande roda no vestido curto, a jeito de dançarina. E, muito concha, ufana dos seus galões de prata e ouro e das suas trêmulas asas de papelão e escumillha, caminhava triunfante e feliz no meio do cordão das irmandades religiosas, segurando a extremidade de um lenço, do qual o pai segurava a outra. Isto eram promessas feitas pela mãe ou pela avó em dias de grande enfermidade na família. E crescera sempre bonita de formas. Tinha os olhos pretos e os cabelos castanhos de Mariana, e puxara ao pai as rijezas de corpo e os dentes fortes. Com a aproximação da puberdade apareceram-lhe caprichos românticos e fantasias poéticas: gostava dos passeios ao luar, das serenatas; arranjou ao lado do seu quarto um gabinete de estudo, uma bibliotecazinha de poetas e romancistas; tinha um Paulo e Virgínia de biscuit sobre a estante e, escondido por detrás de um espelho, o retrato do Farol, que herdara de Mariana. Lera com entusiasmo a Graziela de Lamartine. Chorou muito com essa leitura e, desde aí, todas as noites, antes de adormecer, procurava instintivamente imitar o sorriso de inocência que a procitana oferecia ao seu amante. Praticava bem com os pobres, adorava os passarinhos e não podia ver matar perto de si uma borboleta. Era um bocadinho supersticiosa: não queria as chinelas emborcadas debaixo da rede e só aparava os cabelos durante o quarto crescente da lua. “Não que acreditasse nessas coisas”, justificava-se ela, “mas fazia porque os outros faziam. “Sobre a cômoda, havia muito tempo, tinha uma estampa litográfica e colorida de Nossa Senhora dos Remédios e rezava-lhe todas as noites, antes de dormir. Nada conhecia melhor e mais agradável do que um passeio ao Cutim, e, quando soube que se projetava uma linha de bondes até lá, teve uma satisfação violenta e nervosa. Feitos os quinze anos, ela começou pouco a pouco a descobrir em si estranhas mudanças; percebeu, sentiu que uma transformação importante se operava no seu espírito e no seu corpo: sobressaltavam-na terrores infundados; acometiam-na tristezas sem motivo justificável. Um dia, afinal, acordou mais preocupada; assentou-se na rede, a cismar. E, com surpresa, reparou que seus membros ultimamente se tinham arredondado; notou que em todo seu corpo a linha curva suplantara a reta e que as suas formas eram já completamente de mulher. Veio-lhe então um sobressalto de contentamento mas logo depois caiu a entristecer: sentia-se muito só; não lhe bastava o amor do pai e da velha Barbara; queria uma afeição mais exclusiva, mais dela. Lembrou-se dos seus namoros. Riu-se “coisas de criança!...” Aos doze anos namorara um estudante do Liceu. Haviam conversado três ou quatro vezes na sala do pai e supunham-se deveras apaixonados um pelo outro; o estudante seguiu para a Escola Central da Corte, e ela nunca mais pensou nele. Depois foi um oficial de marinha; “Como lhe ficava bem a farda!... Que moço engraçado! bonito! e como sabia vestir-se!... Ana Rosa chegou a principiar a bordar um par de chinelas para lho oferecer; antes porém de terminado o primeiro pé, já o bandoleiro havia desaparecido com a corveta “Baiana”. Seguiu-se um empregado do comércio. “Muito bom rapaz! muito cuidadoso da roupa e das unhas!...” Parecia-lhe que ainda estava a vê-lo, todo metódico, escolhendo palavras para lhe pedir “a subida honra de dançar com ela uma quadrilha”. — Ah tempos! tempos!.. E não queria pensar ainda em semelhantes tolices. “Coisas de criança! Coisas de criança!...” Agora, só o que lhe convinha era um marido! “O seu”, o verdadeiro, o lega!! O homem da sua casa, o dono do seu corpo, a quem ela pudesse amar abertamente como amante e obedecer em segredo como escrava. Precisava de dar-se e dedicar-se a alguém; sentia absoluta necessidade de pôr em ação a competência, que ela em si reconhecia, para tomar conta de uma casa e educar muitos filhos. Com estes devaneios, acudia-lhe sempre um arrepiozinho de febre; ficava excitada, idealizando um homem forte, corajoso, com um bonito talento, e capaz de matar-se por ela. E, nos seus sonhos agitados, debuxava-se um vulto confuso, mas encantador, que galgava precipícios, para chegar onde ela estava e merecer-lhe a ventura de um sorriso, uma doce esperança de casamento. E sonhava o noivado: um banquete esplêndido! e junto dela, ao alcance de seus lábios, um mancebo apaixonado e formoso, um conjunto de força, graça e ternura, que a seus pés ardia de impaciência e devorava-a com o olhar em fogo. Depois — via-se dona de casa; pensando muito nos filhos; sonhava-se feliz, muito dependente na prisão do ninho e no domínio carinhoso do marido. E sonhava umas criancinhas louras, ternas, balbuciando tolices engraçadas e comovedoras, chamando-lhe “mamã!” — Oh! Como devia ser bom!... E pensar que havia por aí mulheres que eram contra o casamento!... Não! Ela não podia admitir o celibato, principalmente para a mulher!... “Para o homem — ainda passava... viveria triste, só; mas em todo o caso — era um homem... teria outras distrações! Mas uma pobre mulher, que melhor futuro poderia ambicionar que o casamento?. . que mais legítimo prazer do que a maternidade; que companhia mais alegre do que a dos filhos, esses diabinhos tão feiticeiros?..” Além de que, sempre gostara muito de crianças: muita vez pedira a quem as tinha que lhas mandasse a fazer-lhe companhia, e, enquanto as pilhava em casa, não consentia que mais ninguém se incomodasse com elas; queria ser a própria a dar-lhes a comida, a lavá-las, a vesti-las, e acalentá-las E estava constantemente a talhar camisinhas e fraldas, a fazer toucas e sapatinhos de lã, e tudo com muita paciência, com muito amor, justamente como, em pequenina, ela fazia com as suas bonecas. Quando alguma de suas amigas se casava, Ana Rosa exigia dela sempre um cravo do ramalhete ou um botão das flores de laranjeira da grinalda; este ou aquele, pregava-os religiosamente no seio com um dos alfinetes dourados da noiva, e quedava-se a fitá-los, cismando, até que dos lábios lhe partia um suspiro longo, muito longo, como o do viajante que em meio do caminho já se sente cansado e ainda não avista o lar. Mas o noivo por onde andava que não vinha? Esse belo mancebo, tão ardente e tão apaixonado, por que se não apresentava logo? Dos homens que Ana Rosa conhecia na província nenhum decerto podia ser!... E, no entanto, ela amava... A quem? Não sabia dizê-lo, mas amava. Sim! Fosse a quem fosse, ela amava; porque sentia vibrar-lhe todo o corpo, fibra por fibra, pensando nesse — Alguém — íntimo e desconhecido para ela; esse — Alguém — que não vinha e não lhe saía do pensamento; esse — Alguém — cuja ausência a fazia infeliz e lhe enchia a existência de lágrimas. Passaram-se meses — nada! Correram três anos. Ana Rosa principiou a emagrecer visivelmente. Agora dormia menos; estava pálida; à mesa mal tocava nos pratos. — Ó pequena, tu tens alguma coisa! disse-lhe um dia o pai, já incomodado com aquele ar doentio da filha. Não me pareces a mesma! Que é isso, Anica? Não era nada!... E Ana Rosa sobressaltava-se, como se tivera cometido uma falta. “Cansaço! Nervos! Não era coisa que valesse a pena!... “ Mas chorava. — Olha! Aí temos! Agora o choro! Nada! É preciso chamar o médico! — Chamar o médico?... Ora papai, não vale a pena!... E tossia. “Que a deixassem em paz! Que não a estivessem apoquentando com perguntas!...” E tossia mais, sufocada. — Vês?! Estás achacada! Levas nesse “Chrum, chrum! chrum chrum!” E é só: “Não vale a pena! Não precisa chamar o médico!...” Não senhora! com moléstias não se brinca! O médico receitou banhos de mar na Ponta d’Areia. Foi um tempo delicioso para ela os três meses que aí passou. Os ares da costa, os banhos de choque, os longos passeios a pé, restituíram-lhe o apetite e enriqueceram-lhe o sangue. Ficou mais forte; chegou a engordar. Na Ponta d’Areia travara uma nova amizade — D. Eufrasinha. Viúva de um oficial do quinto de infantaria, batalhão que morreu todo na Guerra do Paraguai. Muito romântica: falava do marido requebrando-se, e poetizava-lhe a curta história: “Dez dias depois de casados, seguira ele para o campo de batalha e, no denodo da sua coragem, fora atravessado por uma bala de artilharia, morrendo logo a balbuciar com o lábio ensangüentado o nome da esposa estremecida.” E com um suspiro, feito de desejos mal satisfeitos, a viúva concluía pesarosa que “prazeres nesta vida, conhecera apenas dez dias e dez noites...” Ana Rosa compadecia-se da amiga e escutava-lhe de boa-fé as frioleiras. Na sua ingênua e comovida sinceridade facilmente se identificava com a história singular daquele casamento tão infeliz e tão simpático. Por mais de uma vez chegou a chorar pela morte do pobre moço oficial de infantaria. D. Eufrasinha instruiu a sua nova amiga em muitas coisas que esta mal sonhava; ensinou-lhe certos mistérios da vida conjugal; pode dizer-se que lhe deu lições de amor: falou muito nos “homens”, disse-lhe como a mulher esperta devia lidar com eles; quais eram as manhas e os fracos dos maridos ou dos namorados; quais eram os tipos preferíveis; o que significava ter “olhos mortos, beiços grossos, nariz comprido”. A outra ria-se. “Não tomava a sério aquelas bobagens da Eufrasinha!” Mas intimamente ia, sem dar por isso, reconstruindo o seu ideal pelas instruções da viúva. Fê-lo menos espiritual, mais humano, mais verossímil, mais suscetível de ser descoberto; e, desde então, o tipo, apenas debuxado ao fundo dos seus sonhos, veio para a frente, acentuou-se como uma figura que recebesse os últimos toques do pintor; e, depois de vê-lo bem correto, bem emendado e pronto, amouo ainda mais, muito mais, tanto quanto o amaria se ele fora com efeito uma realidade. A partir daí, era esse ideal, correto e emendado, a base das suas deliberações a respeito de casamento; era a bitola, por onde ela aferia todo aquele que a requestasse. Se o pretendente não tivesse o nariz, o olhar, o gesto, o conjunto enfim de que constava o padrão, podia, desde logo, perder a esperança de cair nas graças da filha de Manuel Pedro. Eufrasinha mudou-se para a cidade; Ana Rosa já lá estava. Visitaram-se. E estas visitas, que se tornaram muito íntimas e repetidas, serviram mutuamente de consolo, ao afincado celibato de uma e a precoce viuvez da outra. Havia, empregado no armazém do pai de Ana Rosa, um rapaz português, de nome Luís Dias; muito ativo, econômico, discreto, trabalhador, com uma bonita letra, e muito estimado na Praça. Contavam a seu favor invejáveis partidas de tino comercial, e ninguém seria capaz de dizer mal de tão excelente moço. Ao contrário, quase sempre que falavam dele, diziam “Coitado!” e este — coitado — era inteiramente sem razão de ser, porque ao Dias, graças a Deus, nada faltava: tinha casa, comida, roupa lavada e engomada, e, ainda por cima, os cobres do emprego. Mas a coisa era que o diabo do homem, apesar das suas prósperas circunstâncias, impunha certa lástima, impressionava com o seu eterno ar de piedade, de súplica, de resignação e humildade. Fazia pena, incutia dó em quem o visse, tão submisso, tão passivo, tão pobre rapaz — tão besta de carga. Ninguém, em caso algum, levantaria a mão sobre ele, sem experimentar a repugnância da covardia. Elogiavam-no entretanto: “Que não fossem atrás daquele ar modesto, porque ali estava um empregadão de truz!” Vários negociantes ofereceram-lhe boas vantagens para tomá-lo ao seu serviço; mas o Dias, sempre humilde e de cabeça baixa, resistia-lhes a pé firme. E, tal constância opôs as repetidas propostas, que todo o comércio, dando como certo o seu casamento com a filha do patrão, elogiou a escolha de Manuel Pedro e profetizou aos nubentes “um futuro muito bonito e muito rico”. — Foi acertado, foi! diziam com olhar fito. Manuel Pedro via, com efeito, naquela criatura, trabalhadora e passiva como um boi de carga e econômico como um usurário, o homem mais no caso de fazer a felicidade da filha. Queria-o para genro e para sócio; dizia a todos os colegas que o “seu Dias” apenas retirava por ano, para as suas despesas, a quarta parte do ordenado. — Tem já o seu pecúlio, tem! considerava ele. A mulher que o quisesse, levava um bom marido! Aquele virá a possuir alguma coisa... é moço de muito futuro! E, pouco a pouco foi-se habituando a julgá-lo já da família e a estimá-lo e distingüi-lo como tal; só faltava que a pequena se decidisse... Mas qual! ela nem queria vê-lo! Tinha-lhe birra; não podia sofrer aquele cabelo à escovinha, aquele cavanhaque sem bigode, aqueles dentes sujos, aquela economia torpe e aqueles movimentos de homem sem vontade própria. — Um somítico! classificava Ana Rosa, franzindo o nariz. Uma ocasião, o pai tocou-lhe no casamento. — Com o Dias?... perguntou espantada. — Sim. — Ora, papai! E soltou uma risada. Manuel não se animou a dizer mais palavra; à noite, porém, contou tudo em particular ao compadre, um amigo velho, íntimo da casa — o cônego Diogo. — Optima soepè despecta! sentenciou este. É preciso dar tempo ao tempo, seu compadre! A coisa há de ser... deixe correr o barco! No entanto, o Dias não se alterara; esperava calado, pacificamente, sem erguer os olhos, cheio sempre de humildade e resignação. 2 Assim era, quando Manuel Pedro, na varanda de sua casa, pedia à filha uma resposta definitiva a respeito do casamento. Já lá se iam três meses depois da estada na Ponta d’Areia. Ana Rosa continuou muda no seu lugar, a fitar a toalha da mesa, como se procurasse aí uma resolução. O sabiá cantava na gaiola. — Então, minha filha, não dás sequer uma esperança?... — Pode ser... E ela ergueu-se... — Bom. Assim é que te quero ver... O negociante passou o braço em volta da cintura da rapariga, disposto a conversar ainda, mas foi interrompido por umas passadas no corredor. — Dá licença? disse o cônego, já na porta da varanda. — Vá entrando, compadre! O cônego entrou, devagar, com o seu sorriso discreto e amável. Era um velho bonito; teria quando menos sessenta anos, porém estava ainda forte e bem conservado; o olhar vivo, o corpo teso, mas ungido de brandura santarrona. Calçava-se com esmero, de polimento; mandava buscar da Europa, para seu uso, meias e colarinhos especiais, e, quando ria, mostrava dentes limpos, todos chumbados a ouro. Tinha os movimentos distintos; mãos brancas e cabelos alvos que fazia gosto. Diogo era o confidente e o conselheiro do bom e pesado Manuel; este não dava um passo sem consultar o compadre. Formara-se em Coimbra, donde contava maravilhas; um bocadinho rico, e não relaxava o seu passeio a Lisboa, de vez em quando, “para descarregar anos da costa...” explicava ele, a rir. Logo que entrou, deu a beijar a Ana Rosa o seu grande e trabalhado anel de ametista, obra do Porto, feita de encomenda. E batendo-lhe na face com a mão fina e impregnada de sabonete inglês: — Então, minha afilhada, como vai essa bizarria? Ia bem, agradecida. Sorriu. — Dindinho está bom? — Como sempre. Que notícias de D. Babita? Estava de passeio. — Pois não vê a casa sossegada? interrogou Manuel. Foi à missa e naturalmente almoçou por aí com alguma amiga. Deus a conserve por lá! Mas que milagre o trouxe a estas horas cá por casa, seu compadre? — Um negócio que lhe quero comunicar; particular, um bocado particular. Ana Rosa fez logo menção de afastar-se. — Deixa-te ficar, disse-lhe o pai. Nós vamos aqui para o escritório. E os dois compadres, conversando em voz baixa, encaminharam-se para uma saleta que havia na frente da casa. A saleta era pequenina, com duas janelas para a Rua da Estrela. Chão esteirado paredes forradas de papel e o teto de travessinhas de paparaúba pintadas de branco. Havia uma carteira de escrita, muito alta, com o seu mocho inclinado, um cofre de ferro, uma pilha de livros de escrituração mercantil, uma prensa, o copiador ao lado e mais um copo sujo de pó, em cujas bordas descansava um pincel chato de cabo largo; uma cadeira de palhinha, um caixão de papéis inúteis, um bico de gás e duas escarradeiras. Ah! ainda havia na parede, sobre a secretária, um calendário do ano e outro da semana, ambos com as algibeiras pejadas de notas e recibos. Era isto que Manuel Pedro chamava pamposamente “o seu escritório” e onde fazia a correspondência comercial. Aí, quando ele de corpo e alma se entregava aos interesses da sua vida, às suas especulações, ao seu trabalho enfim, podiam lá fora até morrer, que o bom homem não dava por isso. Amava deveras o trabalho e seria uma santa criatura se não fora certa maniazinha de querer especular com tudo, o que às vezes lhe desvirtuava as melhores intenções. Quando os dois entraram, ele foi logo fechando a porta, discretamente, enquanto o outro se esparralhava na cadeira, com um suspiro de cansaço, levantando até ao meio da canela a sua batina lustrosa e de bom talho. Manuel havia tomado um cigarro de papel amarelo de cima da carteira e acendia-o sofregamente; o cônego esperava por ele, com uma notícia suspensa dos lábios, como espantado; a boca meio aberta; o tronco inclinado para a frente, as mãos espalmadas nos joelhos, a cabeça erguida e um olhar de sobrancelhas arregaçadas através do cristal dos óculos. — Sabe quem está a chegar por aí?... perguntou afinal, quando viu Manuel já instalado no mocho da secretária. — Quem? — O Raimundo! E o cônego sorveu uma pitada. — Que Raimundo? — O Mundico! o filho do José, homem! teu sobrinho! aquela criança, que teu mano teve da Domingas... — Sim, sim, já sei, mas então?... — Está a chegar por dias... Ora espera... O padre tirou papéis da algibeira e rebuscou entre eles uma carta, que passou ao negociante. — É do Peixoto, o Peixoto de Lisboa. — De Lisboa, como? — Sim, homem! Do Peixoto de Lisboa, que está há três anos no Rio. — Ah!... isso sim, porque tinha idéia de que o pequeno deveria estar agora na Corte. Ah! chegou o vapor do Sul... — Pois é. Lê! Manuel armou os óculos no nariz e leu para si a seguinte carta datada do Rio de Janeiro: “Revmo. amigo e Sr. Cônego Diogo de Melo. Folgamos que esta vá encontrar V. Revma. no gozo da mais perfeita saúde. Temos por fim comunicar a V. Reverendíssima que, no paquete de 15 do corrente, segue para essa capital o Dr. Raimundo José da Silva, de quem nos encarregou V. Revma. e o Sr. Manuel Pedro da Silva quando ainda nos achávamos estabelecidos em Lisboa. Temos também a declarar, se bem que já em tempo competente o houvéssemos feito, que envidamos então os melhores esforços para conseguir do nosso recomendado ficasse empregado em nossa casa comercial e que, visto não o conseguirmos, tomamos logo a resolução de remetê-lo para Coimbra com o fim de formar-se ele em Teologia, o que igualmente não se realizou, porque, feito o curso preparatório, escolheu o nosso recomendado a carreira de Direito, na qual se acha formado com distinções e bonitas notas. Cumpre-nos ainda declarar com prazer a V. Revma. que o Dr. Raimundo foi sempre apreciado pelos seus lentes e condiscípulos e que tem feito boa figura, tanto em Portugal, como depois na Alemanha e na Suíça, e como ultimamente nesta Corte, onde, segundo diz ele, tencionava fundar uma empresa muito importante. Mas, antes de estabelecer-se aqui, deseja o Dr. Raimundo efetuar nessa província a venda de terras e outras propriedades de que aí dispõe, e com esse fim segue. Por esta mesma via escrevemos ao Sr. Manuel Pedro da Silva, a quem novamente prestamos contas das despesas que fizemos com o sobrinho.” Seguiam-se os cumprimentos do estilo. Manuel, terminada a leitura, chamou o Benedito, um moleque da casa, e ordenou-lhe que fosse ao armazém saber se havia já chegado a correspondência do Sul. O moleque voltou pouco depois, dizendo que “ainda não senhor, mas que seu Dias a fora buscar ao correio”. — Homem! ele é isso!... exclamou Pescada. O rapaz está bem encaminhado, quer liquidar o que tem por cá e estabelecer-se no Rio. Não! Sempre é outro futuro!. — Ora! ora! ora! soprou o cônego em três tempos. Nem falemos nisso! O Rio de Janeiro é o Brasil! Ele faria uma grandíssima asneira se ficasse aqui. — Se faria... — Até lhe digo mais.. nem precisava cá vir, porque... continuou Diogo, abaixando a voz, ninguém aqui lhe ignora a biografia; todos sabem de quem ele saiu! — Que não viesse, não digo, porque enfim.. “quem quer vai e quem não quer manda”, como lá diz o outro; mas é chegar, aviar o que tem a fazer e levantar de novo o ferro! — Ai, ai! — E demais, que diabo ficava ele fazendo aqui? Enchendo as ruas de pernas e gastando o pouco que tem... Sim! que ele tem alguma coisinha para roer... tem aquelas moradas de casa em São Pantaleão; tem o seu punhado de ações; tem o jimbo cá na casa, onde por bem dizer é sócio comanditário, e tem as fazendas do Rosário, isto é — a fazenda, porque uma é tapera... — Essa é que ninguém a quer!... observou o cônego, e ferrou o olhar num ponto, deixando perceber que alguma triste reminiscência o dominava. — Acreditam nas almas doutro mundo... prosseguiu Manuel. O caso é que nunca mais consegui dar-lhe destino. Pois olhe, seu compadre, aquelas terras são bem boas para a cana. O cônego permanecia preocupado pela lembrança da tapera. — Agora... acrescentou o outro, o melhor seria que ele se tivesse feito padre. O cônego despertou. — Padre?! — Era a vontade do José... — Ora, deixe-se disso! retrucou Diogo, levantando-se com ímpeto. Nós já temos por aí muito padre de cor! — Mas, compadre, venha cá, não é isso... — Ora o quê, homem de Deus! É só — ser padre! é só — ser padre! E no fim de contas estão se vendo, as duas por três, superiores mais negros que as nossas cozinheiras! Então isto tem jeito?... O governo — e o cônego inchava as palavras — o governo devia até tomar uma medida séria a este respeito! devia proibir aos cabras certos misteres! — Mas, compadre... — Que conheçam seu lugar! E o cônego transformava-se ao calor daquela indignação. — E então, parece já de pirraça, bradou, é nascer um moleque nas condições deste... E mostrava a carta, esmurrando-a — pode contar-se logo com um homem inteligente! Deviam ser burros! burros! que só prestassem mesmo para nos servir! Malditos! — Mas, compadre, você desta vez não tem razão... — Ora o quê, homem de Deus. Não diga asneiras! Pois você queria ver sua filha confessada, casada, por um negro? você queria seu Manuel que a Dona Anica beijasse a mão de um filho da Domingas? Se você viesse a ter netos queria que eles apanhassem palmatoadas de um professor mais negro que esta batina? Ora, seu compadre, você às vezes até me parece tolo! Manuel abaixou a cabeça, derrotado. — Ora, ora, ora! respingava o sacerdote, como as últimas gotas de um aguaceiro. E passeava vivamente em toda a extensão da saleta, atirando de uma para a outra mão o seu lenço fino de seda da Índia.— Ora! ora, deixe-se disso, seu compadre! Stultorum honor inglorius!... Nisto bateram à porta. Era o Dias com a correspondência do Sul. — Dê cá. A carta de Manuel pouco adiantava da outra. — Mas, afinal que acha você, compadre?... disse ele, passando a carta ao cônego, depois de a ler. — Que diabo posso achar?... A coisa está feita por si.. Deixe correr o barco! Você não disse uma vez que queria entrar em negócio com a fazenda do Cancela? Não há melhor ocasião — trate-a com o próprio dono... mesmo as casas de São Pantaleão convinham-lhe... olhe se ele as desse em conta, eu talvez ficasse com alguma. — Mas o que eu digo, compadre, é se devo recebê-lo na qualidade de meu sobrinho. — Sobrinho bastardo, está claro! Que diabo tem você com as cabeçadas de seu mano José?... Homessa! — Mas, compadre, você acha que não me fica mal? . — Mal por quê, homem de Deus? Isso nada tem que ver com você... — Lá isso é verdade. Ah! outra coisa! devo hospedá-lo aqui em casa? — É!... por um lado, devia ser assim... Todos sabem as obrigações que você deve ao defunto José e poderiam boquejar por aí, no caso que não lhe hospedasse o filho... mas, por outro lado, meu amigo, não sei o que lhe diga!... E depois de uma pausa em que o outro não falou: — Homem, seu compadre, isto de meter rapazes em casa... é o diabo! — De sorte que... — Omnem aditum malis prejudica! Manuel não compreendeu, porém acrescentou: — Mas eu hospedo constantemente os meus fregueses do interior... — Isso é muito diferente! — E meus caixeiros? não moram aqui comigo?... — Sim! disse o cônego, impacientando-se, mas os pobres dos caixeiros são todos uns moscas-mortas, e nós não sabemos a que nos saiu o tal doutor de Coimbra!... Homem, compadre, o melro vem de Paris, deve estar mitrado!... — Talvez não... — Sim, mas é mais natural que esteja! E o cônego intumescia a papada com certo ar experimentado. — Em todo caso... arriscou Manuel, é por pouco tempo... Talvez coisa de um mês... E, sopeando a voz, discretamente, com medo: Além disso... não me convinha desagradar o rapaz... Sim! tenho de entrar em negócio com ele, e... isto cá para nós... seria uma fineza, que me ficava a dever... porque enfim... você sabe que... — Ah! interrompeu o cônego, tomando uma nova atitude. Isso é outro cantar!... Por ai é que você devia ter principiado! — Sim, tornou Manuel, com mais ânimo. Você bem sabe que não tenho obrigação de estar a moer-me com o nhonhô Mundico... e, se bem que... — Pchio!... fez o padre, cortando a conversa, e disse: — Hospede o homem! E saiu da saleta, revestindo logo o seu pachorrento e estudado ar de santarrão. Ao chegarem à varanda Ana Rosa, já em trajes de passeio, os esperava para sair toda debruçada no parapeito da janela e derramando sobre o Bacanga um olhar mole e cheio de incertezas. — Então, sempre te resolveste, minha caprichosa?... disse o pai. E contemplava a filha, com um risinho de orgulho. Ela estava realmente boa com o seu vestido muito alvo de fustão, alegre, todo cheirando aos jasmins da gaveta; com o seu chapéu de palhinha de Itália, emoldurando o rosto oval, fresco e bem feito; com o seu cabelo castanho, farto e sedoso, que aparecia em bandós no alto da cabeça e reaparecia no pescoço enrodilhado despretensiosamente. — Tinhas dito que não ias... — Vá se vestir, papai. E assentou-se. — Lá vou! Lá vou! Manuel bateu no ombro do cônego: — Meto-lhe inveja, hein, compadre?... Olhe como o diacho da pequena está faceira, não é? — Ne insultes miseris! — Quê?... interjeicionou o negociante, olhando para o relógio da varanda. Quatro e meia! E eu que ainda tinha de ir hoje tratar do despacho de um açúcar!... E foi entrando apressado no quarto, a gritar para o Benedito “que lhe levasse água morna para banhar o rosto”. O cônego assentou-se defronte de Ana Rosa. — Então onde é hoje o passeio minha rica afilhada? — À casa do Freitas. Não se lembra? Lindoca faz anos hoje. — Cáspite! Temos então peru de forno!.. — Papai fica para o jantar... vossemecê não vai, dindinho? — Talvez apareça à noite... Com certeza há dança... — Hum-hum... mas creio que o Freitas conta com uma surpresa da Filarmônica.. disse Ana Rosa, entretida a endireitar os folhos do seu vestido com a biqueira da sombrinha. Nisto, ouviram-se bater embaixo as portas do armazém, que se fechavam com grande ruído de fechaduras, e logo em seguida o som pesado de passos repetidos na escada. Eram os caixeiros que subiam para jantar. Entrou primeiro na varanda o Bento Cordeiro. Português dos seus trinta e tantos anos arruivado, feio, de bigode e barba e cavanhaque. Gabava-se de grande prática de balcão chamavam-lhe “Um alho”. Para aviar encomendas do interior não havia outro! Cordeiro “metia no bolso o capurreiro mais sabido”. Dos empregados da casa era o mais antigo; nunca, porém lograra ter interesse na sociedade; continuava sempre de fora e tinha por isso um ódio surdo ao patrão; ódio, que o patife disfarçava por um constante sorriso de boa vontade. Mas o seu maior defeito o que deveras depunha contra ele aos olhos das — raposas — do comércio; o que explicava na Praça a sua não entrada na sociedade da casa em que trabalhava havia tanto tempo, era sem dúvida a sua queda para o vinho. Aos domingos metia-se na tiorga e ficava de todo insuportável. Bento atravessou silencioso a varanda cortejando com afetada humildade o cônego e Ana Rosa, e seguiu logo para o mirante, onde moravam todos os caixeiros da casa. O segundo a passar foi Gustavo de Vila Rica; simpático e bonito mocetão de dezesseis anos, com as suas soberbas cores portuguesas, que o clima do Maranhão ainda não tinha conseguido destruir. Estava sempre de bom humor; lisonjeava-se de um apetite inquebrantável e de nunca haver ficado de cama no Brasil. Em casa todavia ganhara fama de extravagante; é que mandava fazer fatos de casimira à moda, para passear aos domingos e para ir aos bailes familiares de contribuição, e queimava charutos de dois vinténs. O grande defeito deste era uma assinatura no Gabinete Português, o que levava a boa gente do comércio a dizer “que ele era um grande biltre, um peralta, que estava sempre procurando o que ler!” O Bento Cordeiro bradava-lhe às vezes, furioso: — Com os diabos! o patrão já lhe tem dado a entender que não gosta de caixeiros amigos de gazeta?.. Se você quer ser letrado, vá pra Coimbra, seu burro! Gustavo ouvia constantemente destas e doutras amabilidades, mas, que fazer? precisava ganhar a vida!... O outro era caixeiro mais antigo na casa... Conformava-se, sem respingar, e em certas ocasiões até satisfeito, graças ao seu bom humor. Ao passar pela varanda foi menos brusco no seu cumprimento à filha do patrão; chegou mesmo a parar, sorrir, e dizer, inclinando a cabeça: “Minha senhora!...” O cônego teve uma risota. — Que mitra!... julgou com os seus botões. Em seguida, atravessou a varanda, muito apressado, com as mãos escondidas nas enormes mangas de um jaquetão, cuja gola lhe subia ate à nuca, uma criança de uns dez anos de idade. Tinha o cabelo à escovinha; os sapatos grandemente desproporcionados; calças de zuarte dobradas na bainha; olhos espantados; gestos desconfiados, e um certo movimento rápido de esconder a cabeça nos ombros, que lhe traía o hábito de levar pescoções. Este era em tudo mais novo que os outros — em idade, na casa, e no Brasil. Chegara havia coisa de seis meses da sua aldeia no Porto; dizia chamar-se Manuelzinho e tinha sempre os olhos vermelhos de chorar à noite com saudades da mãe e da terra. Por ser o mais novo na casa varria o armazém limpava as balanças e burnia os pesos de latão. Todos lhe batiam sem responsabilidade, não tinha a quem se queixar. Divertiam-se à custa dele; riam-se com repugnância das suas orelhas cheias de cera escura. Desfeava-lhe a testa uma grande cicatriz; foi um trambolhão que levou na primeira noite em que lhe deram uma rede para dormir. O pobre desterradozinho, que não sabia haver-se com semelhante engenhoca, caiu na asneira de meter primeiro os pés, e zás! lá foi por cima de uma caixa de pinho de um dos companheiros. Desde esse dia ficou conhecido em casa pela alcunha de “Salta-chão”. Punham-lhe nomes feios e chamavam-lhe “Ó coisa! — Ó maroto! — Ó bisca!” tudo servia para o chamarem, menos o seu verdadeiro nome. Ia atravessando a varanda, como um bicho assustado, quase a correr. O cônego gritou por ele: — Ó pequeno? anda cá! Manuelzinho voltou, confuso, coçando a nuca, muito contrariado sem levantar os olhos. Ana Rosa teve um olhar de piedade. — Então que e isso? disse o cônego. Pareces-me um bicho do mato! Fala direito com a gente, rapaz! Levanta essa cachimônia! E, com a sua mão branca e fina, suspendeu-lhe pelo queixo a cabeça, que Manuelzinho insistia em ter baixa. — Este ainda está muito peludo!... acrescentou. E perguntou-lhe depois uma porção de coisas: “Se tinha vontade de enriquecer, se não sonhava já com uma comenda; se tinha visto o pássaro guariba, se encontrara a árvore das patacas.” O pequeno mastigava respostas inarticuladas, com um sorriso aflito. — Como te chamas? Ele não respondeu. — Então não respondes?... Com certeza és Manuel! O portuguesinho meneou a cabeça afirmativamente, e apertou a boca, para conter o riso que procurava uma válvula. — Então é com a cabeça que se responde? Tu não sabes falar, mariola? E, voltando-se para Ana Rosa: — Isto é um sonso, minha afilhada! olhe em que estado ele traz as orelhas! Se tens a alma como tens o corpo, podes dá-la ao diabo! Tu já te confessaste aqui, maroto? Manuelzinho, não podendo já suster os beiços, abriu a boca e, com a força de uma caldeira, soprou o riso que a tanto custo refreava. — Olha que estás a cuspir-me, ó patife! gritou o cônego. Bom, bom! vai-te! vai-te! Repeliu-o e limpou a batina com o lenço. Ana Rosa então correu os dedos pela cabeça do menino e puxou-o para si. Arregaçou-lhe as mangas da jaqueta e revistou-lhe as unhas. Estavam crescidas e sujas. — Ah! censurou ela, você também não é tão pequeno, que se desculpe isto!... E, tirando do seu indispensável uma tesourinha, começou, com grande surpresa do caixeiro e até do cônego, a limpar as unhas da criança, dizendo ao outro, baixinho: — Não sei como há mães que se separam de filhos desta idade... Também, coitados! devem amargar muito!... A sua voz tinha já completa solicitude de amor materno. O cônego levantou-se e foi encostar-se ao parapeito da varanda, enquanto Ana Rosa, que continuava a cortar as unhas do menino, ia em segredo perguntando a este se não tinha saudades da sua terra e se não chorava ao lembrar-se da mãe. Manuelzinho estava pasmado. Era a primeira vez que no Brasil lhe falavam com aquela ternura. Levantou a cabeça e encarou Ana Rosa; ele, que tinha sempre o olhar baixo e terrestre, procurou, sem vacilar, os olhos da rapariga e fitou-os, cheio de confiança, sentindo por ela um súbito respeito, uma espécie de adoração inesperada. Afigurava-se extraordinário ao pobrezito desprezado de todos, que aquela senhora brasileira, tão limpa, tão bem vestida, tão perfumada e com as mãos tão macias, estivesse ali a cortar-lhe e assear-lhe as unhas. A princípio foi isto para ele um sacrifício horrível, um suplício insuportável. Desejava, de si para si, ver terminada aquela cena incômoda; queria fugir daquela posição difícil; resfolegava, sem ousar mexer com a cabeça, olhando para os lados, de esguelha, como a procura de uma saída, de algum lugar onde se escondesse ou de qualquer pretexto que o arrancasse dali. Sentia-se mal com aquilo, que dúvida! Não se animava a respirar livremente, receoso de fazer notar o seu hálito pela senhora; já lhe doíam as juntas do corpo, tal era a sua imobilidade contrafeita; não mexia sequer com um dedo. Depois do primeiro minuto de sacrifício, o suor começou logo a correr-lhe em bagas da cabeça pela gola do jaquetão, e o pequeno teve verdadeiros calafrios; mas quando Ana Rosa lhe falou da pátria e da mãe, com aquela penetrante meiguice que só as próprias mães sabem fazer, as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos e desceram-lhe em silêncio pela cara. Pois se era a primeira vez que no Brasil lhe falavam dessas coisas!... O cônego assistia a tudo isto, calado, rufando sobre a sua tabaqueira de ouro as unhas burnidas a cinza de charuto e a sorrir como um bom velho. E, enquanto Ana Rosa, de cabeça baixa, toda desvelos, tratava do desgraçadinho, provocando-lhe as lágrimas e contendo as próprias, sabe Deus como! passava o Dias pelo fundo da varanda, sem ser sentido, o andar de gato, levando no coração uma grande raiva, só pelo fato de ver a filha do patrão acarinhando o outro. Ralava-o aquela caridade. “Ele nunca tivera quem lhe cortasse as unhas!...” Amofinava-o ver a Sra. D. Ana Rosa às voltas com semelhante bisca. “Punha a perder de todo a peste do pequeno! — Ora para que lhe havia de dar!... embonecar o súcio! Queria-o com certeza para seu chichisbéu! Contava já com ele para levar-lhe as cartas do desaforo e trazer-lhe os presentinhos de flores e os recados dos pelintras!... Ah! mas ele, o Dias, ali estava para lhes cortar as vazas!” O Dias, que completava o pessoal da casa de Manuel Pescada, era um tipo fechado como um ovo, um ovo choco que mal denuncia na casca a podridão interior. Todavia, nas cores biliosas do rosto, no desprezo do próprio corpo, na taciturnidade paciente daquela exagerada economia, adivinhava-se-lhe uma idéia fixa, um alvo, para o qual caminhava o acrobata, sem olhar dos lados, preocupado, nem que se equilibrasse sobre um corda tesa. Não desdenhava qualquer meio para chegar mais depressa aos fins; aceitava, sem examinar, qualquer caminho, desde que lhe parecesse mais curto; tudo servia, tudo era bom, contanto que o levasse mais rapidamente ao ponto desejado. Lama ou brasa — havia de passar por cima; havia de chegar ao alvo — enriquecer. Quanto à figura, repugnante: magro e macilento, um tanto baixo, um tanto curvado, pouca barba, testa curta e olhos fundos. O uso constante dos chinelos de trança fizera-lhe os pés monstruosos e chatos; quando ele andava, lançava-os desairosamente para os lados, como o movimento dos palmípedes nadando. Aborrecia-o o charuto, o passeio, o teatro e as reuniões em que fosse necessário despender alguma coisa; quando estava perto da gente sentia-se logo um cheiro azedo de roupas sujas. Ana Rosa não podia conceber como uma mulher de certa ordem pudesse suportar semelhante porco. “Enfim, resumia ela, quando, conversando com amigas, queria dar-lhes uma idéia justa do que era o Dias — sempre há um homem que não tem coragem de comprar uma escova de dentes!” As amigas respondiam “Iche!” mas em geral tinham-no na conta de moço benfazejo e de conduta exemplar. À noite só deixava a porta do patrão nos sábados, para ir ao peixe frito em casa de uma mulata gorda, que morava com duas filhas lá para os confins da Rua das Crioulas. Ia sempre sozinho. “Nada de troças!” — Não tenho amigos... dizia ele constantemente, tenho apenas alguns conhecidos... Nesses passeios levava às vezes uma garrafa de vinho do Porto ou uma lata de marmelada, e chamava a isso “fazer as suas extravagâncias”. A mulata votava-lhe grande admiração e punha nele muita confiança: dava-lhe a guardar “os seus ouros” e as suas economias. Além desta, ninguém lhe conhecia outra relação particular; uma bela manhã, porém, o “exemplar moço” aparecera incomodado e pedira ao patrão que lhe deixasse ficar aquele dia no quarto. Manuel, todo solícito pelo seu bom empregado, mandou-lhe lá o médico. — Então, que tinha o rapaz? — Aquilo é mais porcaria que outra coisa, respondeu o facultativo, franzindo o nariz; mas receitou, recomendando banhos mornos. “Banhos! de banhos principalmente é que ele precisava!” E, quando viu o doente pela segunda vez, não se pôde ter, que lhe não dissesse: — Olhe lá, meu amigo, que o asseio também faz parte do tratamento! E acabou provando que a limpeza não era menos necessária ao corpo do que a alimentação, principalmente em um clima daqueles em que um homem está sempre a transpirar. Manuel foi à noite ao quarto do caixeiro. Falou-lhe com brandura paternal; lamentou-o com palavras amigáveis, e desatou um protesto, em forma de sermão, contra o clima e os costumes do Brasil. — Uma terrinha com que é preciso cuidado! Perigosa! Perigosa! dizia ele. Aqui a gente tem a vida por um fio de cabelo! Tratou depois, com entusiasmo, de Portugal; lembrou as boas comezainas portuguesas: “As caldeiradas d’eirozes, a orelheira de porco com feijão branco, a açorda, o caldo gordo, o famoso bacalhau do Algarve!” — Ai! o pescado! suspirou o Dias, saudoso pela terra. Que rico pitéu! — E os nossos figos de comadre, e as nossas castanhas assadas, e o vinho verde? Dias escutava com água na boca. — Ai! a terra!... O patrão falou-lhe também das comodidades, dos ares, das frutas e por fim dos divertimentos de Lisboa, terminando por contar fatos de moléstia; casos idênticos ao do Dias; transportou-se rindo ao seu tempo de rapaz, e, já de pé, pronto para sair, bateu-lhe no ombro, carinhosamente: — Você, homem, o que devia era casar!... E jurou-lhe que o casamento lhe estava mesmo calhando. “O Dias, com aquele gênio e com aquele método, dava por força um bom marido!... Que se casasse, e havia de ver se não teria outra importância!...” — Olhe! concluiu, digo-lhe agora como o doutor “Banhos! banhos, meu amigo” mas que sejam de igreja, compreende? E, rindo com a própria pilhéria e todo cheio de sorrisos de boa intenção, saiu do quarto na ponta dos pés, cautelosamente, para que os outros caixeiros, a quem ele não dava a honra de uma visita daquelas, não lhe ouvissem as pisadas. Quando Ana Rosa acabou de cortar as unhas de Manuelzinho deu-lhe de conselho que estudasse alguma coisa; prometeu que arranjaria com o pai metê-lo em uma aula noturna de primeiras letras, e recomendou-lhe que todos os dias de manhã tomasse o seu banho debaixo da bomba do poço. — Faça isso, que serei por você, rematou a moça, afastando-o com uma ligeira palmada na cabeça. O menino retirou-se, muito comovido, para o andar de cima, mas o Dias, de pé, no tope da escada, esperava por ele, furioso. — Que estava fazendo, seu traste? — Nada, respondeu a criança, a tremer. Fora a senhora que o chamara!... Dias, com um murro, explicou que o maroto não podia pôr-se de palestra na varanda, em vez de cuidar das obrigações. — E se me constar, acrescentou, cada vez mais zangado, que você me torna a ir com lamúrias para o lado de D. Anica, comigo se tem de haver, seu mariola! Vai tudo aos ouvidos do patrão! Manuelzinho arredou-se dali, convencido de que havia praticado uma tremenda falta; no íntimo, porém, ia muito satisfeito com a idéia de que já não estava tão desamparado, e sentindo renascer-lhe, na obscura mágoa do seu desterro, um desejo alegre de continuar a viver. A reunião em casa do Freitas esteve animada. Houve violão, cantoria, muita dança. Chegaram a deitar chorado da Bahia. Mas, pela volta da meia-noite, Ana Rosa, depois de uma valsa, fora acometida de um ataque de nervos. Era o terceiro que lhe dava assim, sem mais nem menos. Felizmente o médico, chamado a toda a pressa afiançou que aquilo não valia nada. “Distrações e bom passadio!” receitou ele, e, ao despedir-se de Manuel, segredou-lhe sorrindo: — Se quiser dar saúde à sua filha, trate de casá-la... — Mas o que tem ela, doutor?... — Ora o que tem! Tem vinte anos! Está na idade de fazer o ninho! mas, enquanto não chega o casamento, ela que vá dando os seus passeios a pé. Banhos frios, exercícios, bom passadio e distrações! Percebe? Manuel, na sua ignorância, imaginou que a filha alimentava ocultamente algum amor mal correspondido. Sacudiu os ombros. “Não era então coisa de cuidado.” E, em cumprimento as ordens do médico, inaugurou com a enferma longos passeios pela fresca da madrugada. Daí a dias, o cônego Diogo, contra todos os seus hábitos, procurava o compadre às sete horas da manhã. Atravessou o armazém, apressado como quem traz grande novidade, e, mal chegou ao negociante, foi lhe dizendo em tom misterioso: — Sabe? Faz sinal de aparecer, e é o Cruzeiro... Manuel largou logo de mão o serviço que fazia, subiu à varanda, deu as suas providências para receber um hóspede, e em seguida ganhou a rua com o amigo. Eles a saírem de casa e a fortaleza de São Marcos a salvar, anunciando com um tiro, a entrada de paquete brasileiro. Os dois tomaram um escaler e foram a bordo. 3 Daí a pouco, entre as vistas interrogadoras dos curiosos, atravessou a Praça do Comércio um rapaz bem parecido, que ia acompanhado pelo cônego Diogo e por Manuel. A novidade foi logo comentada. Os portugueses vinham, com as suas grandes barrigas, às portas dos armazéns de secos e molhados; os barraqueiros espiavam por cima dos óculos de tartaruga; os pretos cangueiros paravam para “mirar o cara-nova”. O Perua-gorda, em mangas de camisa, como quase todos os outros, acudiu logo à rua: — Quem será esse gajo, ó coisa? perguntou ele ruidosamente a um súcio que passava na ocasião. — Algum parente ou recomendado do Manuel Pescada. Veio do Sul. — Ó aquele! sabes quem é o lanceiro que vai com o Pescada? — Não sei, homem, mas é um rapagão! Manuel apresentou o sobrinho a vários grupos. Houve sorrisos de delicadezas e grandes apertos de mão. — É o filho de um mano do Pescada... diziam depois. Conhecemos-lhe muito a vida! Chama-se Raimundo. Estava nos estudos. — Vem estabelecer-se aqui? indagou o José Buxo. — Não, creio que vem montar uma companhia... Outros afiançavam que Raimundo era sócio capitalista da casa de Manuel. Discutiam-lhe a roupa, o modo de andar, a cor e os cabelos. O Luisinho Língua de Prata afirmava que ele “tinha casta”. Entretanto os três subiam a Rua da Estrela. Chegados a casa, onde já havia pronto um quarto para o Sr. Dr. Raimundo José da Silva, o cônego e Manuel desfizeram-se em delicadezas com o rapaz. — Benedito! vê cerveja! Ou prefere conhaque, doutor?... Olha moleque, prepara guaraná! Doutor, venha antes para este lado que está mais fresco... não faça cerimônias! Vá entrando! vá entrando para a varanda! O senhor está em sua casa!... Raimundo queixava-se do calor. — Está horrível! dizia ele, a limpar o rosto com o lenço. Nunca suei tanto! — O melhor então é recolher-se um pouco e ficar à vontade. Pode mudar de roupa, arejar-se. A bagagem não tarda aí. Olhe, doutor, entre, entre e veja se fica bem aqui! Os três penetraram no quarto destinado ao hóspede. — O senhor, disse Manuel, tem aqui janelas para a rua e para o quintal. Ponha-se a gosto. Se precisar qualquer coisa, é só chamar pelo Benedito. Nada de cerimônias! Raimundo agradeceu muito penhorado. — Mandei dar-lhe cama, acrescentou o negociante, porque o senhor naturalmente não está afeito à rede, no entanto se quiser... — Não, não, muito obrigado. Está tudo muito bom. O que desejo é repousar um pouco justamente. Ainda tenho a cabeça a andar à roda. — Pois então descanse, descanse, para depois almoçar com mais apetite… Até logo. E Manuel e mais o compadre afastaram-se, cheios de cortesia e sorrisos de afabilidade. Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica da sua fisionomia era os olhos — grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis; pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido; as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz. Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pretensão, falava em voz baixa, distintamente sem armar ao efeito; vestia-se com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciências, a literatura e, um pouco menos, a política. Em toda a sua vida, sempre longe da pátria, entre povos diversos, cheia de impressões diferentes, tomada de preocupações de estudos, jamais conseguira chegar a uma dedução lógica e satisfatória a respeito da sua procedência. Não sabia ao certo quais eram as circunstâncias em que viera ao mundo; não sabia a quem devia agradecer a vida e os bens de que dispunha. Lembrava-se, no entanto, de haver saído em pequeno do Brasil e podia jurar que nunca lhe faltara o necessário e até o supérfluo. Em Lisboa tinha ordem franca. Mas quem vinha a ser essa pessoa encarregada de acompanhá-lo de tão longe?... Seu tutor, com certeza, ou coisa que o valha, ou talvez seu próprio tio, pois, quanto ao pai, sabia Raimundo que já o não tinha quando foi para Lisboa. Não porque chegasse a conhecê-lo, nem porque se recordasse de ter ouvido de alguém o doce nome de filho, mas sabia-o por intermédio do seu correspondente e pelo que deduzia de algumas vagas reminiscências da meninice. “Sua mãe, porém, quem seria?...” Talvez alguma senhora culpada e receosa de patentear a sua vergonha!... “Seria boa? Seria virtuosa?...” Raimundo perdia-se em conjeturas e, malgrado o seu desprendimento pelo passado, sentia alguma coisa atraí-lo irresistivelmente para a pátria. “Quem sabia se aí não descobriria a ponta do enigma?... Ele, que sempre vivera órfão de afeições legítimas e duradouras, como então seria feliz!... Ah, se chegasse a saber quem era sua mãe, perdoar-lhe-ia tudo, tudo!” O quinhão de ternura, que a ela pertencia, estava intacto no coração do filho. Era preciso entregá-lo a alguém! Era preciso desvendar as circunstâncias que determinaram o seu nascimento! “Mas, no fim de contas, refletia Raimundo, em um retrocesso natural de impressões, que diabo tinha ele com tudo isso, se até aí, na ignorância desses fatos, vivera estimado e feliz!... Não foi decerto para semelhante coisa que viera à província! Por conseguinte, era liquidar os seus negócios, vender os seus bens e — por aqui é o caminho! O Rio de Janeiro lá estava a sua espera! “Abriria, ao chegar lá, o seu escritório, trabalharia, e, ao lado da mulher com quem casasse e dos filhos que viesse a ter, nem sequer havia de lembrar-se do passado! “Sim, que mais poderia desejar melhor?... Concluíra os estudos, viajara muito, tinha saúde, possuía alguns bens de fortuna. — Era caminhar pra frente e deixar em paz o tal — passado! — O passado, passado! Ora adeus!” E, chegando a esta conclusão, sentia-se feliz, independente, seguro contra as misérias da vida, cheio de confiança no futuro. “E por que não havia de fazer carreira? Ninguém podia ter melhores intenções do que ele?.. Não era um vadio, nem homem de maus instintos; aspirava ao casamento, à estabilidade; queria, no remanso de sua casa, entregar-se ao trabalho sério, tirar partido do que estudara, do que aprendera na Alemanha, na França, na Suíça e nos Estados Unidos. Faltava-lhe apenas vir ao Maranhão e liquidar os seus negócios. — Pois bem! cá estava — era aviar e pôr-se de novo a caminho!” Foi com estas idéias que ele chegou à cidade de São Luís. E agora, na restauradora liberdade do quarto, depois de um banho tépido, o corpo ainda meio quebrado da viagem, o charuto entre os dedos, sentia. Se perfeitamente feliz, satisfeito com a sua sorte e com a sua consciência — Ah! bocejou fechando os olhos. É liquidar os negócios e pôr-me ao fresco!... E, com um novo bocejo, deixou cair ao chão o charuto, e adormeceu tranqüilamente. No entanto, a história de Raimundo, a história que ele ignorava, era sabida por quantos conheceram os seus parentes no Maranhão. Nasceu numa fazenda de escravos na Vila do Rosário, muitos anos depois que seu pai, José Pedro da Silva aí se refugiara, corrido do Pará ao grito de “Mata bicudo!” nas revoltas de 1831. José da Silva havia enriquecido no contrabando dos negros da África e fora sempre mais ou menos perseguido e malquisto pelo povo do Pará; até que, um belo dia, se levantou contra ele a própria escravatura, que o teria exterminado, se uma das suas escravas mais moças, por nome Domingas, não o prevenisse a tempo. Logrou passar incólume ao Maranhão, não sem pena de abandonar seus haveres e risco de cair em novos ódios, que esta província, como vizinha e tributária do comércio da outra, sustentava instigada pelo Farol, contra os brasileiros adotivos e contra os portugueses. Todavia, conseguiu sempre salvar algum ouro; metal que naquele bom tempo corria abundante por todo o Brasil e que mais tarde a Guerra do Paraguai tinha de transformar em condecorações e fumaça. A fuga fizeram eles, senhor e escrava, a pé, por maus caminhos, atravessando os sertões. Ainda não existia a companhia de vapores e os transportes marítimos dependiam então de vagarosas barcas, a vela e remo e, às vezes, puxadas a corda, nos igarapés. Foram dar com os ossos no Rosário. O contrabandista arranjou-se o melhor que pôde com a escrava que lhe restava, e, mais tarde, no lugar denominado São Brás, veio a comprar uma fazendola, onde cultivou café, algodão, tabaco e arroz. Depois de vários abortos, Domingas deu à luz um filho de José da Silva. Chamou-se o vigário da freguesia e, no ato do batismo da criança, esta, como a mãe, receberam solenemente a carta de alforria. Essa criança era Raimundo. Na capital, entretanto, acalmavam-se os ânimos. José prosperou rapidamente no Rosário; cercou a amante e o filho de cuidados; relacionou-se com a vizinhança, criou amizades, e, no fim de pouco tempo, recebia em casamento a Sra. D. Quitéria Inocência de Freitas Santiago, viúva, brasileira, rica, de muita religião e escrúpulos de sangue, e para quem um escravo não era um homem, e o fato de não ser branco, constituía só por si um crime. Foi uma fera! às suas mãos, ou por ordem dela, vários escravos sucumbiram ao relho, ao tronco, à fome, à sede, e ao ferro em brasa. Mas nunca deixou de ser devota, cheia de superstições; tinha uma capela na fazenda, onde a escravatura, todas as noites, com as mãos inchadas pelos bolos, ou as costas lanhadas pelo chicote, entoava súplicas à Virgem Santíssima, mãe dos infelizes. Ao lado da capela o cemitério das suas vítimas. Casara com José da Silva por dois motivos simplesmente: porque precisava de um homem, e ali não havia muito onde escolher, e porque lhe diziam que os portugueses são brancos de primeira água. Nunca tivera filhos. Um dia reparou que o marido, a título de padrinho, distinguia com certa ternura o crioulo da Domingas e declarou logo que não admitia, nem mais um instante, aquele moleque na fazenda. — Seu negreiro! gritava ela ao marido, fula de raiva. Você pensa que lhe deixarei criar, em minha companhia, os filhos que você tem das negras?... Era só também o que faltava! Não trate de despachar-me, quanto antes, o moleque, que serei eu quem o despacha, mas há de ser para ali, para junto da capela! José, que sabia perfeitamente de quanto ela era capaz, correu logo à vila para dar as providências necessárias à segurança do filho. Mas, ao voltar à fazenda, gritos horrorosos atraíram-no ao rancho dos pretos, entrou descoroçoado e viu o seguinte: Estendida por terra, com os pés no tronco, cabeça raspada e mãos amarradas para trás, permanecia Domingas, completamente nua e com as partes genitais queimadas a ferro em brasa. Ao lado, o filhinho de três anos, gritava como um possesso, tentando abraçá-la, e, de cada vez que ele se aproximava da mãe, dois negros, à ordem de Quitéria, desviavam o relho das costas da escrava para dardejá-lo contra a criança. A megera, de pé, horrível, bêbada de cólera, ria-se, praguejava obscenidades, uivando nos espasmos flagrantes da cólera. Domingas, quase morta, gemia, estorcendo-se no chão. O desarranjo de suas palavras e dos seus gestos denunciava já sintomas de loucura. O pai de Raimundo, no primeiro assomo de indignação, tão furioso acometeu sobre a esposa, que a fez cair. Em seguida, ordenou que recolhessem Domingas à casa dos brancos e que lhe prodigalizassem todos os cuidados. Quitéria, a conselho do vigário do lugar, um padre ainda moço, chamado Diogo, o mesmo que batizara Raimundo, fugiu essa noite para a fazenda de sua mãe, D. Úrsula Santiago, a meia légua dali. O vigário era muito da casa das Santiago; dizia-se até aparentado com elas. O caso é que foi na qualidade de confessor, parente e amigo, que ele acompanhou Quitéria. José da Silva, por esse tempo, chegava à cidade de São Luís com o filho. Procurou seu irmão mais moço, o Manuel Pedro, e entregou-lhe o pequeno, que ficaria sob as vistas do tio até ter idade para matricular-se num colégio de Lisboa. Feito isso, tornou de novo para a sua roça. “Agora contava viver mais descansado; era natural que a mulher se deixasse ficar em casa da mãe.” Ao chegar lá, sabendo que não o esperavam essa noite e como visse luz no quarto da esposa, apeou-se em distância e, para não se encontrar com ela, guardou o cavalo e entrou silenciosamente na fazenda. Os cães conheceram-no pelo faro e apenas rosnaram. Mas, na ocasião em que ele passava defronte do quarto de Quitéria, ouviu aí sussurros de vozes que conversavam. Aproximou-se levado pela curiosidade e encostou o ouvido à porta. Reconheceu logo a voz da mulher. “Mas, com quem, diabo, ela conversaria àquela hora?...” Conteve a impaciência e esperou de ouvido alerta. “Não havia dúvida! — a outra voz era de um homem!...” Sem esperar mais nada, meteu ombros à porta e, precipitou-se dentro do quarto, atirando-se com fúria sobre a esposa, que perdera logo os sentidos. O padre Diogo, pois era dele a outra voz, não tivera tempo de fugir e caíra, trêmulo, aos pés de José. Quando este largou das mãos a traidora, para se apossar do outro, reparou que a tinha estrangulado. Ficou perplexo e tolhido de assombro. Houve então um silêncio ansioso. Ouvia-se o resfolegar dos dois homens. A situação dificultava-se; mas o vigário, recuperando o sangue-frio, ergueu-se, consertou as roupas e, apontando para o corpo da amante, disse com firmeza: — Matou-a! Você é um criminoso! — Cachorro! E tu?! Tu serás porventura menos criminoso do que eu? — Perante as leis, decerto! porque você nunca poderá provar a minha suposta culpa e, se tentasse fazê-lo, a vergonha do fato recairia toda sobre a sua própria cabeça, ao passo que eu, além do crime de injúria consumado na minha sagrada pessoa, sou testemunha do assassínio desta minha infeliz e inocente confessada, assassínio que facilmente documentarei com o corpo de delito que aqui está! E mostrava a marca das mãos de José na garganta do cadáver. O assassino ficou aterrado e abaixou a cabeça. — Vamos lá!... disse o padre afinal, sorrindo e batendo no ombro do português. Tudo neste mundo se pode arranjar, com a divina ajuda de Deus... só para a morte não há remédio! Se quiser, a defunta será sepultada com todas as formalidades civis e religiosas... E, dando à voz um cunho particular de autoridade: — Apenas, pelo meu silêncio sobre o crime, exijo em troca o seu para a minha culpa... Aceita? José saiu do quarto, cego de cólera, de vergonha e de remorso. — Que vida a sua! exclamava. Que vida, santo Deus! O padre cumpriu a promessa: o cadáver enterrou-se na capela de São Brás, ao lado das suas vítimas; e todos os do lugar, até mesmo os de casa, atribuíram a morte de Quitéria ao espírito maligno que se lhe havia metido no corpo. O vigário confirmava esses boatos e continuava a pastorar tranqüilamente o seu rebanho, sempre tido por homem de muita santidade e de grandes virtudes teologais. Os devotos continuaram a trazer-lhe, de muitas léguas de distância, os melhores bácoros, galinhas e perus dos seus cercados. Em breve, as coisas voltavam todas aos eixos: José entregou a fazenda a Domingas e mais três pretos velhos, que alforriou logo, e, acompanhado pelo resto da escravatura, seguiu para a cidade de São Luís, no propósito de liquidar seus bens e recolher-se à pátria com o filho. A mãe de Raimundo conseguiu enfim descansar. São Brás criou a sua lenda e foi aos poucos ganhando fama de amaldiçoada. Entretanto, o pequeno, quando chegou à casa do tio na capital, estava, como facilmente se pode julgar, com a pele sobre os ossos. A falta de cuidados espalhara-lhe na carinha opada uma expressão triste de moléstia; quase que não conseguia abrir os olhos. Todo ele era mau trato e fraqueza; tinha o estômago muito sujo, a língua saburrenta, o corpo a finar-se de reumatismo e tosse convulsa, o sangue predisposto à anemia escrofulosa. Apesar do instinto materno, que a tudo resiste e vence, a pobre escrava não podia olhar nunca pelo filho: lá estava Quitéria para desviá-la dele, para cortar-lhe as carícias a chicote; tanto assim, que, quando José lhe anunciou que Raimundo ia para a casa do tio na cidade, a infeliz abençoou com lágrimas desesperadas aquela separação. Todavia, o desgraçadinho foi encontrar em Mariana, cunhada de seu pai, a mais carinhosa e terna das protetoras. A boa senhora, como sabia que o marido o pouco que tinha devia à generosidade do irmão, julgou-se logo obrigada a servir de mãe ao filho deste. Ana Rosa, único fruto do seu casamento, ainda não era nascida nesse tempo, de sorte que as premissas da sua maternidade pertenceram ao pupilo. Dentro em pouco, no agasalho carinhoso daquelas asas de mãe, Raimundo, de feio que era, tornou-se uma criança forte, sã e bonita. Foi então que Ana Rosa veio ao mundo; a princípio muito fraquinha e quase sem dar acordo de si. Manuel andava aflito, com medo de perdê-la. Que luta, os três primeiros meses de sua vida! Parecia morrer a todo instante, coitadinha! Ninguém dormia na casa; o negociante chorava como um perdido, enquanto a mulher fazia promessas aos santos da sua devoção. Era por isto que a menina, mais tarde, se recordava agradavelmente de ter feito o anjo da verônica nas procissões da quaresma. E ao lado de Mariana, que noite e dia velava o berço da filhinha enferma, estava o Mundico, o outro filho, que este também a chamava de mãe e já se não lembrava da verdadeira, da preta que o trouxera nas entranhas. A menina salvou-se, graças aos bons serviços de um médico, que chegara havia pouco da universidade de Montpellier, Dr. Jauffret, e, a partir daí Manuel não quis saber de outro facultativo em sua casa. Por essa época, mais ou menos, chegava do Rosário a notícia de haver D. Quitéria sucumbido a uma congestão cerebral. — Deu-lhe de repente! explicava o correio, com o seu saco de couro às costas. Foi obra do sujo, credo! E, pouco depois, José Pedro da Silva, todo coberto de luto, muito encanecido e desfeito, vinha liquidar os seus negócios e partir logo para Portugal. Manuel estimava-o deveras e sentia-se de vê-lo naquele estado. Aprontou-se tudo para a viagem e José recolheu-se a última noite em casa do irmão. Mas não pôde pregar olho, estava excitado, e a lembrança dos terríveis sucessos, que ultimamente se haviam dado com ele, nunca o apoquentara tanto. Levantou-se e começou a passear no quarto, a falar sozinho, nervoso, delirante, vendo surgir espectros de todos os lados. Pelas quatro horas da madrugada, Manuel, impressionado, porque, de todas as vezes que acordava, via luz no quarto do hóspede e ouvia-lhe o som dos passos trôpegos e vacilantes, e sentia-lhe os gemidos abafados e o vozear frouxo e doloroso, não se pôde ter e levantou-se. “Terá alguma coisa o José?...” pensou ele, embrulhando-se no lençol e tomando aquela direção. A porta achava-se apenas no trinco, abriu-a devagar e entrou. O viúvo, ao sentir alguém, voltou-se assombrado e, dando com o fantasma que lhe invadia a alcova, recuou de braços erguidos, entre gritos terror. Manuel correu sobre ele; mas antes que se desse a conhecer, já o assassino de Quitéria havia caído desamparadamente no chão. Fez-se logo um grande motim por toda a casa, que era nesse tempo no Caminho Grande, e na qual os caixeiros do negociante ainda não moravam com o patrão. A boa Mariana acudiu pronta, cheia de zelo. “Um escalda-pés! depressa!” dizia, apalpando os contraídos e volumosos pés do cunhado. Tisanas, mezinhas de toda a espécie, foram lembradas; pôs-se em campo a medicina doméstica, e, daí a uma hora o desfalecido voltava a si. Mas não pôde erguer-se: ficara muito prostrado. À síncope sobreveio-lhe uma febre violenta, que durou até à noite, quando chegou afinal o Jauffret. Era uma febre gástrica, explicou este. E mais: que a moléstia requeria certo cuidado — muito sossego de espírito! Nada de bulha, principalmente! José, malgrado a recomendação do médico, quis ver o filho. Abraçou-o soluçando, disse-lhe que estava para morrer. E no outro dia ainda de cama, perfilhou-o; pediu um tabelião, fez testamento e, chorando, chamou Manuel para seu lado. — Meu irmão, recomendou-lhe. Se eu for desta... o que é possível, remete-me logo o pequeno para a casa do Peixoto em Lisboa. Terminou dizendo “que o queria — com muito saber — que o metessem num colégio de primeira sorte. Ficava aí bastante dinheiro... não tivessem pena de gastar com o seu filho; que lhe dessem do melhor e do mais fino”. Estas coisas fizeram-no piorar; já todos os choravam como morto, e, pelos dias de mais risco, quando José delirava na sua febre, apareceu em casa do Manuel o pároco do Rosário; vinha muito solícito, saber do estado do seu amigo José “do seu irmão” dizia ele com uma grande piedade. E daí, não abandonava a casa. Prestava-se a um tudo, serviçal, discreto, às vezes choramingando porque lhe vedavam a entrada no quarto do enfermo. Manuel e Mariana não se furtavam de apreciar aquela solicitude do bom padre, o interesse com que ele chegava todos os dias para pedir notícias do amigo. Dispensavam-lhe um grande acolhimento; achavam-no meigo, jeitoso e simpático. — É um santo homem! dizia Manuel convencido. Mariana confirmava, acrescentando em voz baixa: — Por adulação não é, coitado! Todos sabem que o padre Diogo não precisa de migalhas!... — É remediado de fortuna, pois não! Mas, olhe, que sabe aplicar bem o que possui... Seguia-se uma longa resenha dos episódios louváveis da vida do santo vigário; citavam-se rasgos de abnegação, boas esmolas a criaturas desamparadas, perdões de ofensas graves, provas de amizade e provas de desinteresse. “Um santo! Um verdadeiro santo!” E assim foi o padre Diogo tomando pé em casa de Manuel e fazendo-se todo de lá. Já contavam com ele para padrinho de Ana Rosa; esperavam-no todas as tardes com café, e à noite, nos serões da família, marido e mulher não perdiam ocasião de contar as boas pilhérias do senhor vigário, glorificar-lhe as virtudes religiosas e recomendá-lo às visitas como um excelente amigo e magnífico protetor. Um dia, em que ele, como sempre, cheio de solicitude, perguntava pelo “seu doente” disseram-lhe que José estava livre de maior perigo e que o restabelecimento seria completo com a viagem à Europa. Diogo sorriu, aparentemente satisfeito; mas, se alguém lhe pudesse ouvir o que resmungava ao descer as escadas, ter-se-ia admirado de ouvir estas e outras frases: — Diabo!... Querem ver que ainda não se vai desta, o maldito?... E eu, que já o tinha por despachado!... No dia seguinte, dizia o velhaco ao futuro compadre: — Bom, agora que o nosso homem está livre de perigo, posso ir mais sossegado para a minha paróquia... Já não vou sem tempo!... E despediu-se, todo boas palavras e sorrisos angélicos, acompanhado pelas bênçãos da família. — Senhor vigário! gritou-lhe Mariana do patamar da escada. Não faça agora como os médicos, que só aparecem com as moléstias!... Seja cá de casa! —Venha de vez em quando, padre! acrescentou Manuel. Apareça! Diogo prometeu vagamente, e nesse mesmo dia atravessou o Boqueirão em demanda da sua freguesia. Essa noite, nas salas de Manuel, só se conversou sobre as boas qualidades e os bons precedentes do estimado cura do Rosário. José, com geral contentamento dos de casa, convalescia prodigiosamente. Manuel e Mariana cercavam-no de afagos, desejosos por fazê-lo esquecer a imprudência da madrugada fatal, o que supunham, fosse o único motivo da moléstia; daí a coisa de um mês, o convalescente resolveu tornar à fazenda, a despeito das instâncias contrárias da cunhada e dos conselhos do irmão. — Que vais lá fazer, homem de Deus? perguntava este. Se era por causa da Domingas, que diabo! fizesse-a vir! O melhor porém, segundo a sua fraca opinião, seria deixá-la lá onde estava. Uma preta da roça, que nunca saiu do mato!... Não! não era isso! respondia o outro. Mas não iria para a terra, sem ter dado uma vista d’olhos ao Rosário! — Ao menos não vai só, José. Eu posso acompanhar-te. José agradeceu. Que já estava perfeitamente bom. E, em caso de necessidade, podia contar com os canoeiros, que eram todos seus homens. E dizia as inúmeras viagens que tinha feito até ali; contava episódios a respeito do Boqueirão. “E que se deixassem disso! Não estivessem a fazer daquela viagem um bicho de sete cabeças!... Haviam de ver que, antes do fim do mês, estava ele de velas para Lisboa.” Partiu. A viagem correu-lhe estúpida, como de costume naquele tempo, em que o Maranhão ainda não tinha vapores. Demais, a sua fazenda era longe, muito dentro, a cinco léguas da vila. Urgia, por conseguinte, demorar-se aí algumas horas antes de internar-se no mato; comer, beber, tratar dos animais; arranjar condução e fazer a matalotagem. Os poucos familiarizados com tais caminhos tomam sempre, por precaução, um “pajem”, é este o nome que ali romanticamente se dá ao guia; e o pajem menos serve para guiar o viajante, que a estrada é boa, do que para lhe afugentar o terror dos mocambos, das onças e cobras de que falam com assombro os moradores do lugar. Não é tão infundado aquele terror: o sertão da província está cheio de mocambeiros, onde vivem os escravos fugidos com suas mulheres e seus filhos, formando uma grande família de malfeitores. Esses desgraçados, quando não podem ou não querem viver da caça, que é por lá muito abundante e de fácil venda na vila, lançam-se à rapinagem e atacam na estrada os viajantes; travando-se, às vezes, entre uns e outros, verdadeiras guerrilhas, em que ficam por terra muitas vítimas. José da Silva comprou na vila o que lhe convinha e seguiu, sem pajem para a fazenda. Ah! Ele conhecia perfeitamente essas paragens!... E quantas recordações não lhe despertavam aquelas carnaubeiras solitárias, aqueles pindovais ermos e silenciosos e aqueles trêmulos horizontes de verdura! Quantas vezes, perseguindo uma paca ou um veado, não atravessou ele, a galope, aqueles barrancos perigosos que se perdiam da estrada! Pungia-lhe agora deixar tudo isso; abandonar o encanto selvagem das florestas brasileiras. O europeu sentia-se americano, familiar às vozes misteriosas daqueles caités sempre verdejantes, habituado à companhia austera daquelas árvores seculares, às sestas preguiçosas da fazenda, ao viver amplo da roça, descalço, o peito nu, a rede embalada pela viração cheirosa das matas, o sono vigiado por escravos. E tinha de deixar tudo isso! “Para que negar? Havia de custar-lhe muito!” considerou ele, fazendo estacar o seu animal. Havia andado quatro léguas e precisava comer alguma coisa. No interior do Maranhão o viajante, de ordinário, “pousa” e come nas fazendas que vai encontrando pelo caminho, tanto que todas elas, contando já com isso, têm sempre cômodos especiais, destinados exclusivamente aos hóspedes adventícios; mas com José da Silva, que, aliás muitas e muitas vezes pernoitara em diversas e conhecia de perto a hospitalidade dos seus vizinhos, a coisa mudava agora de figura: não queria de forma alguma suportar a companhia de ninguém; receava que o interrogassem sobre a morte da mulher. Preferiu pois jantar mesmo ao relento, e seguir logo sua viagem. Não obstante, ia já escurecendo, as cigarras estridulavam em coro; ouvia-se o lamentoso piar das rolas que se aninhavam para dormir; toda a natureza se embuçava em sombras, bocejando. Anoitecia lentamente. Então, José da Silva sentiu mais negra por dentro a sua viuvez; sentiu um grande desejo de chegar a casa, mas queria encontrar uma boa mesa, onde comesse e bebesse à vontade, como dantes; queria a sua cama larga, de casados, o seu cachimbo, o seu trajo de casa. Ah! Nada disso encontraria!... O quarto, em que ele, durante tantos anos, dormira feliz, devia ser àquela hora um ermo pavoroso; a cozinha devia estar gelada, os armários vazios, a horta murcha, os potes secos, o leito sem mulher! Que desconsolo! Apesar de tudo, sentia fundas saudades da esposa. — Como o homem precisa de família!... lamentava ele no isolamento. Ah padre! Aquele maldito padre! E daí, quem sabe?... se eu perdoasse?... ela talvez se arrependesse e viesse ainda a dar uma boa companheira, virtuosa e dócil!... Mas... e ele?... Oh nunca! Ele existiria! A dúvida continuava na mesma! Ele, só ele é que eu devia ter matado! E depois de refletir um instante: — Não! antes assim! Assim foi melhor! Esta conclusão, arrancada só pelo seu espírito religioso, foi seguida de um movimento rápido de esporas. O cavalo disparou. Fez-se então um correr vertiginoso, em que José, todo vergado sobre a sela, parecia dormir na cadeia do galope. Mas, de súbito, contraiu as rédeas e o animal estacou. O cavaleiro torceu a cabeça, concheando a mão atrás da orelha. Vinha de longe uma toada estranha de vozes sussurrantes, e um confuso tropel de cavalgaduras. A noite exalava da floresta. Sentiam-se ainda as derradeiras claridades do dia e já também um crescente acumular de sombras. A lua erguia-se, brilhando com a altivez de um novo monarca que inspeciona os seus domínios, e o céu ainda estava todo ensangüentado da púrpura do último sol, que fugia no horizonte trêmulo, como um rei expulso e envergonhado. José da Silva, entregue todo aos seus tormentos, assistia, sem apreciar, ao espetáculo maravilhoso de um crepúsculo de verão no extremo norte do Brasil. O sol descambava no ocaso, retocando de tons quentes e vigorosos, com a minuciosidade de um pintor flamengo, tudo aquilo que o cercava. Desse lado, montes e vales tinham orlas de ouro; era tudo vermelho e esfogueado: ao passo que, do ponto contrário, lhe opunha o luar o doce contraste da sua luz argentina e fresca, debuxando contra o horizonte o trêmulo e duvidoso perfil das carnaubeiras e dos pindovais. Destas bandas, no conflito boreal daquelas duas luzes inimigas, um grupo mal-definido e rumoroso agitava-se e crescia progressivamente. Era uma caravana de ciganos que se aproximava. Vinha lentamente, com o passo frouxo de uma boiada. Na solidão tristonha e sombria da floresta iam-se pouco a pouco distinguindo vozes de tons diversos e acentuavam-se grupo de homens, mulheres e crianças, de todas as cores e de todas as idades, cavalgando magníficos animais. Uns cantavam ao embalo monótono da besta; outros tocavam viola; esta acalentava o filho, aquela repetia as modas que lhe ensinara a gajoa. Viam-se moços, de calça e quinzena, cabelos grandes, o ar indolente, o cachimbo ao canto da boca, o olhar vago e cheio de volúpia, ao lado de raparigas fortes, queimadas do sol, com as melenas muito negras e lisas escorrendo sobre a opulência das espáduas. Sentavam-se à moda de odaliscas em volumosas trouxas, que serviam, a um tempo, de alforje e de sela. Algumas delas traziam filhos ao colo ou na garupa do cavalo. E, lenta e pesadamente, a caravana dos ciganos se aproximava. José escondeu-se no mato, para a ver passar. Com certeza vinha enxotada de alguma fazenda, porque o chefe, um velho membrudo, de grandes barbas brancas, olhos cor de fumo, cavados e sombrios, mas irrequietos e vivos, erguia, de vez em quando, o braço e ameaçava o poente: — Jacarés te piquem diabo! Atravessado tu sejas na boca de um bacamarte! E a voz rouca e profunda do ancião perdia-se na floresta. Meio deitada nas pernas dele, cingindo-lhe a cintura, uma mulher bela, o colo nu e fresco, a garganta lisa e carnuda, procurava, com o olhar muito mole de uma ternura úmida e escrava, diminuir-lhe a cólera. E a caravana, iluminada pelos últimos raios da claridade poente, foi passando. E a pouco e pouco o sussurrar das vozes foi se perdendo no tristonho murmúrio das matas, como no horizonte se perdia a última réstia de luz vermelha. Em breve, tudo recaiu no silêncio primitivo, e a lua, do alto, baldeava com a sua luz misteriosa e triste a solidão das clareiras. José ficou imóvel, pensativo, perdido num desgosto invencível. O espetáculo daquele velho boêmio, abraçado a uma mulher bonita e sem dúvida fiel, mordia-o por dentro com o dente mais agudo da inveja. “Aquele, um vagabundo, um miserável, sem lar, sem dinheiro, sem mocidade ao menos, tinha contudo nesta vida uma fêmea que o acarinhava e seguia como escrava; ao passo que ele, ali, no meio do campo, desacompanhado, inteiramente esquecido, chorava, porque lhe arrancaram tudo, tudo — a casa, a mulher e a felicidade!” E depois pela associação natural das idéias, punha-se a lembrar do rosto pálido de Diogo. A despeito do ódio que lhe votava, achava-o bonito, com o seu cabelo todo anelado, o sorriso terno e piedoso, olhos e lábios de uma expressão sensual e ao mesmo tempo religiosa. Este contraste devia por força agradar às mulheres, vencê-las pelos mistérios, pelo incognoscível. E chorava, chorava cada vez mais. “Como eles não se amariam!... Quanto prazer não teriam desfrutado!... “ Instintivamente comparava-se ao padre e, cheio de raiva, de inveja, reconhecia-se inferior. De repente, veio-lhe esta idéia: “E se eu o matasse?...” Repeliu-a logo, sem querer nem ao menos escutá-la; mas a idéia não ia e agarrava-se-lhe ao cérebro, com uma obstinação de parasita. Então, vieram-lhe à lembrança, sob uma reminiscência lúcida e saudosa — o seu casamento, os sobressaltos felizes do noivado, o namoro de Quitéria. Tudo isso nunca lhe pareceu tão bom, tão apetecível como naquele momento. Agora, descobria na mulher virtudes e belas qualidades, para as quais nunca atentara dantes. “Seria eu o culpado de tudo?... Não teria cumprido com os meus deveres de bom esposo?.. Seriam insuficientes os meus carinhos?...” interrogava ele à própria consciência; esta respondia opondo-lhe dúvidas que valiam acusações. Ele defendia-se, explicava os fatos, citava provas em favor, lembrava a sua dedicação e a sua amizade pela defunta; mas a maldita rezingueira não se acomodava e não aceitava razões. E José abriu a chorar como um perdido. Surpreendeu-se neste estado; quis fugir de si mesmo, e cravou as esporas no cavalo. Correu muito, à rédea solta como se fugira perseguido pela própria sombra. “E se eu o matasse?...” Era a maldita idéia que vinha de novo à superfície dos seus pensamentos. “Não! Não!” E ele a repelia de novo empurrando-a para o fundo da sua imaginação, como o assassino que repele no mar o cadáver da sua vítima; ela mergulhava com o impulso, mas logo reaparecia, boiando. “E se eu o matasse?...” — Não! não! exclamou, desferindo um grito no silêncio da floresta. Já basta a outra! E assanhavam-se-lhe os remorsos. Nesse momento uma nuvem escondera a lua. Espectros surgiam no caminho; José suava e tremia sobre a sela; o mais leve mexer de galhos eriçava-lhe os cabelos. No entanto — corria. Pouco lhe faltava já para chegar à fazenda, muito pouco, uma miserável distância, e, contudo, mais lhe custava esse pouco do que todo o resto da viagem. Fechou os olhos e deixou que o cavalo corresse à toa, galopando ruidosamente na terra úmida de orvalho. Ele ofegava, acossado por fantasmas. Via a sua vítima, com a boca muito aberta, os olhos convulsos, a falar-lhe coisas estranhas numa voz de moribunda, a língua de fora, enorme e negra, entre gorgolhões de sangue. E via também surgir aquele padre infame, bater-lhe no ombro, apresentar-lhe, sorrindo, um alvitre, propor uma condição e passar logo à ameaça brutal: “Tenho-te na mão, assassino! Se quiseres punir-me, entrego-te à justiça! “ E José gritou, como doido, soluçando: — E eu aceitei, diabo! Eu aceitei! Nisto, o cavalo acuou. Um vulto negro agitou-se por detrás do tronco de um ingazeiro, e uma bala, seguida pela detonação de um tiro, varou o peito de José da Silva. Os negros de São Brás viram aparecer lá o animal às soltas, e todo salpicado de sangue, tinham ouvido um tiro para as bandas da estrada, correram todos nessa direção à procura da vítima. Foi Domingas quem a descobriu, e, num delírio, precipitou-se contra o cadáver, a beijar-lhe as mãos e as faces. — Meu senhor! meu querido! meus amores! exclamava ela, a soluçar convulsivamente. Mas, tomada de uma idéia súbita, ergueu-se, e gritou, apontando vagamente para o lado da vila. — Foi ele! Não foi outro! Foi aquele malvado! Foi aquele padre do diabo! E pôs-se a rir e a dançar, batendo palmas e cantando. Era a loucura que voltava. O crime foi atribuído aos mocambeiros e o corpo de José da Silva enterrado junto à sepultura da mulher, ao lado da capela, que principiava a desmoronar com a míngua dos antigos cuidados. A fazenda aos poucos se converteu em tapera, e lendas e superstições de todo o gênero se inventaram para explicar-lhe o abandono. O vigário do lugar, pessoa insuspeita e criteriosa, nem só confirmava o que diziam, como aconselhava a que não fossem lá. ‘’Aquilo eram terras amaldiçoadas!” Anos depois, contavam que nas ruínas de São Brás vivia uma preta feiticeira, que, por alta noite, saía pelos campos a imitar o canto da mãe-da-lua. Ninguém se animava a passar perto dali, e o caminheiro descuidado, que se perdesse em tais paragens, via percorrer o cemitério, a cantar e a rodar, um vulto alto e magro de mulher, coberto de andrajos. A morte inesperada de José causou grande abalo no irmão e ainda mais em Mariana. Raimundo era muito criança, não a compreendeu; por esse tempo teria ele cinco anos, se tanto. Vestiram-no de sarja preta e disseram-lhe que estava de luto pelo pai. Manuel tratou do inventário; recebeu o que lhe coube e mais a mulher na herança; depositou no recém-criado banco da província o que pertencia ao órfão e, apesar das vantagens que propôs para vender ou arrendar a fazenda de São Brás, ninguém a quis. Isto feito, escreveu logo para Lisboa, pedindo esclarecimentos à Casa Peixoto, Costa & Cia., e uma vez bem informado no que desejava, remeteu o sobrinho para um colégio daquela cidade. Muito custou à bondosa Mariana separar-se de Raimundo. Doía aquele coração amoroso ver expatriar-se, assim, tão sem mãe, uma pobre criança de cinco anos. O pequeno, todavia, depois de preparado com todo o desvelo, foi metido, a chorar, dentro de um navio, e partiu. Ia recomendado ao comandante e lamentava-se muito em viagem. Quando chegou a Lisboa teve horror de tudo que o cercava. Entretanto, foi sempre bem tratado: seu correspondente hospedou-o como a um parente, tratou-o como filho; depois, meteu-o num colégio dos melhores. Raimundo envergou o uniforme da casa, recebeu um número, e freqüentou as aulas. A princípio, logo que o deixavam sozinho, punha-se a chorar. Tinha muito medo do escuro; à noite, cosia-se contra a parede, abraçado aos travesseiros. Não gostava dos outros meninos, porque lhe chamavam “Macaquinho”. Era teimoso, cheio de caprichos, ressentia-se muito da má educação que os portugueses trouxeram para o Brasil. No colégio era o único estudante que se chamava Raimundo e os colegas ridicularizavam-lhe o nome, “Raimundo Mundico Nico!” diziam-lhe, puxando-lhe a blusa e batendo-lhe na cabeça tosquiada à escovinha; até que ele se retirava enfiado, sem querer tornar ao recreio, a chorar e a berrar que o mandassem para a sua terra. Mas, com o tempo, apareceram-lhe amigos e a vida então se lhe afigurou melhor. Já faziam as suas palestras; os companheiros não se cansavam de pedir-lhe informações sobre o Brasil. “Como eram os selvagens?... E se a gente encontrava, pelas ruas, mulheres despidas; e se Raimundo nunca fora varado por alguma flecha dos caboclos.” Um dia recebeu uma carta de Mariana e, pela primeira vez, deu-se ao cuidado de pensar em si. Mas as suas reminiscências não iam além da casa do tio; no entanto, queria parecer-lhe que a sua verdadeira mãe não era aquela senhora, aquela vinha a ser sua tia, porque era a mulher de seu tio Manuel; e até, se lhe não falhava a memória, por mais de uma vez ouvira dela própria falar na outra, na sua verdadeira mãe... “Mas quem seria a outra? Como se chamava?... Nunca lho disseram!...” Quanto a seu pai, devia ser aquele homem barbado que, uma noite, lhe apareceu, muito pálido e aflito, e por quem pouco depois o cobriram de luto. Da cena dessa noite lembrava-se perfeitamente! Já estava recolhido, foram buscá-lo à rede e trouxeram-no, estremunhado, para as pernas do tal sujeito, por sinal que as suas barbas tinham na ocasião certa umidade aborrecida, que Raimundo agora calculava ser produzida pelas lágrimas; depois foi se deitar e não pensou mais nisso. Recordava-se também, mas não com tamanha lucidez, do tempo em que aquele mesmo homem esteve doente, lembrava-se de ter recebido dele muitos beijos e abraços, e só agora notava que todos esses afagos eram sempre ocultos e assustados, feitos como que ilegalmente, às escondidas, e quase sempre acompanhados de choro. Depois destas e outras divagações pelo passado, Raimundo, se bem que muito novo ainda, punha-se a pensar e os véus misteriosos da sua infância assombravam-lhe já o coração com uma tristeza vaga e obscura, numa perplexidade cheia de desgosto. Todo o seu desejo era correr aos braços de Mariana e pedir-lhe que lhe dissesse, por amor de Deus, quem afinal vinha a ser seu pai e, principalmente, sua mãe. Passaram-se anos, e ele permaneceu enleado nas mesmas dúvidas. Concluiu os seus preparatórios, habilitou-se a entrar para a Academia. E sempre as mesmas incertezas a respeito da sua procedência. Matriculou-se em Coimbra. Desde então a sua vida mudou radicalmente; todo ele se transformou nos seus modos de ver e julgar. Principiou a ser alegre. Mas um golpe terrível veio de novo entristecê-lo — a morte da sua mãe adotiva. Chorou-a longa e amargamente; não só por ela, mas também muito por si próprio: perdendo Mariana, perdia tudo que o ligava ao passado e à pátria. Nunca se considerou tão órfão. Todavia, com o correr dos tempos, dispersaram-se-lhe as mágoas e a mocidade triunfou; a criança melancólica produziu um rapaz cheio de vida e bom humor; sentiu-se bem dentro da sua romântica batina de estudante; meteu-se em pândegas com os colegas; contraiu novos amigos, e afinal reparou que tinha talento e graça; escreveu sátiras, ridicularizando os professores antipatizados; ganhou ódios e admiradores; teve quem o temesse e teve quem o imitasse. No segundo ano deu para namorador: atirou-se aos versos líricos, cantou o amor em todos os metros depois vieram-lhe idéias revolucionárias, meteu-se em clubes incendiários, falou muito, e foi aplaudido pelos seus companheiros. No terceiro ano tornou-se janota, gastou mais do que nos outros, teve amantes, em compensação veio-lhe a febre dos jornais, escreveu com entusiasmo sobre todos os assuntos, desde o artigo de fundo até à crônica teatral. No quarto, porém, distinguiu-se na Academia, criou gosto pela ciência, e daí em diante fez-se homem, firmou a sua imputabilidade, tornou-se muito estudioso e sério. Seus discursos acadêmicos foram apreciados; elogiaram-lhe a tese. Formou-se. Veio-lhe então à idéia fazer uma viagem. Em Coimbra todos o diziam rico; tinha ordem franca. Preparou as malas. Sua principal ambição era instruir-se, instruir-se muito, abranger a maior quantidade de conhecimentos que pudesse; e sentia-se cheio de coragem para a luta e cheio de confiança no seu esforço. Às vezes, porém uma sombra de tristeza mesquinha toldava-lhe as aspirações — não sabia ao certo de quem descendia, e de que modo, e por quem, fora adquirido aquele dinheiro que lhe enchia as algibeiras. Procurou o seu correspondente em Lisboa, pediu-lhe esclarecimentos a esse respeito — Nada! O Peixoto dizia-lhe, em tom muito seco, “que o pai de Raimundo havia morrido antes da chegada deste a Portugal, e o tio, o tutor, esse estava no Maranhão, estabelecido na Rua da Estrela com um armazém de fazendas por atacado”. De sua mãe — nem uma palavra, nem uma atribuição!... Era para enlouquecer! “Mas, afinal, quem seria ela?... Talvez irmã daquela santa senhora que foi para ele uma segunda mãe... Mas então por que tanto mistério?... Seria alguma história, a tal ponto vergonhosa, que ninguém se atrevesse a revelar-lhe?... Seria ele enjeitado?... Não, decerto, porque era herdeiro de seu pai...” E Raimundo, quanto mais tentava pôr a limpo a sua existência, mais e mais se perdia no dédalo das conjeturas. Das cartas que recebia do Brasil, nem uma só lhe falava no passado, e todavia, era tanto o seu empenho em penetrá-lo, que às vezes, com muito esforço de memória, conseguia reconstruir e articular fragmentos dispersos de algumas reminiscências, incompletas e vagas, da sua infância. Lograva recordar-se da Aniquinha, que tantas noites, adormecera a seu lado, na mesma esteira, ouvindo cantar por D. Mariana o “Boizinho do curral, vem papar neném”; recordava-se também da Sra. D. Maria Bárbara, a sogra de Manuel, que ia, com muito aparato, visitar a neta; passar dias. Em geral, ela chegava à boca da noite, no seu palanquim carregado por dois escravos, vestida de enorme roda, cercada de crias e moleques, precedida por um preto encarregado de alumiar a rua com um lampião de folha, oitavado, duas velas no centro. E o demônio da mulher sempre a ralhar, sempre zangada, batendo nos negros e a implicar com ele, Raimundo, a quem, todas as vezes que lhe dava a mão a beijar, pespegava com as costas desta uma pancada na boca. E recordava-se bem do rosto macilento de Maria Bárbara, já então meio descaído; recordava-se dos seus olhos castanho-claros, de seus dentes triangulares, truncados a navalha, como barbaramente faziam dantes, por luxo, as senhoras do Maranhão, criadas em fazenda. Raimundo, uma vez, ainda em Coimbra, aspirando o cheiro de alfazema queimada, sentiu, como por encanto, surgirem-lhe à memória muitos fatos de que nunca se recordara até então. Lembrou-se logo do nascimento de Ana Rosa: A casa estava toda silenciosa e impregnada daquele odor; Mariana gemia no seu quarto; Manuel andava, de um para outro lado da varanda, inquieto e desorientado; mas, de repente, apareceu na porta do quarto uma mulata gorda, a quem davam o tratamento de “Inhá comadre”, e esta, que vinha alvoroçada, chamou de parte o dono da casa, disse-lhe alguma coisa em segredo, e daí a pouco estavam todos felizes e satisfeitos. E ouvia-se vir lá de dentro um grunhido fanhoso, que parecia uma gaita. Na ocasião, Raimundo nada compreendeu de tudo isto; disseram-lhe que Mariana recebera uma menina de França, e ele acreditou piamente. Assim lhe acudiam outras recordações; por exemplo a do macassar cheiroso, então muito em uso na província, com que D. Mariana lhe perfumava os cabelos todas as manhãs antes do café; mas, dentre tudo, do que melhor ele se recordava era dos lampiões com que iluminavam a cidade. Ainda lá não havia gás, nem querosene; ao bater d’Ave-Marias vinha o acendedor, desatava a corrente do lampião, descia-o, abria-o, despejava-lhe dentro aguarrás misturada com álcool, acendia-lhe o pavio, guindava-o novamente para o seu lugar, e seguia adiante. “E que mau cheiro em todas as esquinas em que havia iluminação!... Oh! a não ser que estivesse muito transformada a sua província devia ser simplesmente horrível!” Não obstante, queria lá ir. Sentia atrações por essa pátria, quase tão desconhecida para ele como o seu próprio nascimento misterioso. “Com a viagem descobriria tudo! Mas, primeiro, era preciso dar um passeio à Europa.” E, resolvido, foi ao escritório de Peixoto, Costa & Cia., sacou a quantia de que precisava, abraçou os amigos, e fez-se de vela para a França. Passou pela Espanha, visitou a Itália, foi à Suíça, esteve na Alemanha, percorreu a Inglaterra, e, no fim de três anos de viagem, chegou ao Rio de Janeiro, onde encontrou os seus antigos correspondentes de Lisboa. Demorou-se um ano na Corte, gostou da cidade, relacionou-se, fez projetos de vida e resolveu estabelecer aí a sua residência. “E o Maranhão?... Oh, que maçada! Mas não podia deixar de lá ir! Não podia instalar-se na Corte, sem ter ido primeiro à sua província! Era indispensável conhecer a família; liquidar os seus bens e...” — Verdade, verdade, dizia ele, conversando com um amigo, a quem confiara os seus projetos, a coisa não é tão feia como quer parecer, porque, no fim de contas, fico conhecendo todo o norte do Brasil, dou um pulo ao Pará e ao Amazonas, que desejo ver, e, afinal, volto descansado para cá com a vida em ordem, a consciência descarregada e o pouco que possuo reduzido a moeda. Não posso queixar-me da sorte! O passeio à Europa não só lhe beneficiara o espírito, como o corpo. Estava muito mais forte bem exercitado e com uma saúde invejável. Gabava-se de ter adquirido grande experiência do mundo; conversava à vontade sobre qualquer assunto tão bem sabia entrar numa sala de primeira ordem como dar uma palestra entre rapazes numa redação de jornal ou na caixa de um teatro. E em pontos de honra e lealdade, não admitia, com todo o direito, que houvesse alguém mais escrupuloso do que ele. Foi nessa bela disposição de espírito, feliz e cheio de esperanças no futuro que Raimundo tomou o “Cruzeiro” e partiu para a capital de São Luís do Maranhão. 4 Entretanto, com a chegada de Raimundo, reuniram-se em casa de Manuel as velhas amizades da família. Vieram as Sarmentos com os seus enormes penteados; moças feias, mas de grandes cabelos, muito elogiados e conhecidos na província. “Tranças como as das Sarmentos!... Cabelo bonito como o das Sarmentos! Cachos como os das Sarmentos!...” Estas e outras tantas frases se haviam convertido em preceitos invariáveis. Fora das Sarmentos não conheciam termo de comparação para cabelos; e elas, cônscias daquela popularidade, ostentavam sempre o objeto de tais admirações em penteados assustadores, de tamanhos fantásticos. — Tenho pena, afetava às vezes D. Bibina Sarmento (esta era Bernardina) de ter tanto cabelo!... Para desembrulhá-lo é um martírio. E, quando depois do banho, não me penteio logo, ou quando passo um dia sem botar óleo... Ah, dona, nem lhe digo nada!... E arregalava os olhos e sacudia a juba, como se descrevesse uma caçada de leões. A família Sarmento compunha-se, além desta D. Bibina, de outra rapariga e de uma senhora de cinqüenta anos, muito nervosa, tia das duas moças. A velha só falava em moléstias e sabia remédios para tudo; tinha um grosso livro de receitas, que ela em geral trazia no bolso; em casa uma variadíssima coleção de vidros, garrafas e púcaros; guardava sempre as cascas de laranja, de romã e os caroços de tuturubá, os quais, dizia pateticamente “Abaixo de Deus, eram santo remédio para as dores de ouvido!” Chamava-se Maria do Carmo, e as sobrinhas tratavam-na por “Mamãe outrinha”. Era sumamente apreensiva e entendida de doces. Viúva. Passara a mocidade no Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios, onde concebera o seu primeiro filho do homem com quem depois veio a casar — o tenente Espigão, tenente do exército, um espalhafateiro dos quatro costados, que andava sempre de farda e desembainhava a durindana por dá cá aquela palha. Contavam dele que, um dia, num jantar de festa, perdendo a paciência com o peru assado, que parecia disposto a resistir ao trinchante, arranca do chanfalho e esquarteja a golpes de espada o inocente animal. Gostava de fazer medo as crianças, fingindo que as prendia ou afiando a lâmina reluzente no tijolo do chão; e ficava muito lisonjeado quando lhe diziam que se parecia com o Pedro II. Tinha-se na conta de muito atilado e a todos contava que fora poeta em rapaz: referia-se a meia dúzia de acrósticos e recitativos, que lhe inspirava D. Maria do Carmo, no seu tempo de recolhida. Coitado! Morreu de uma tremenda indigestão no dia seguinte a uma ceia, ainda mais tremenda, na qual praticara a imprudência de comer uma salada inteira de pepinos, seu pratinho predileto. A viúva ficou inconsolável, e, em homenagem à memória do Espigão, nunca mais comeu daquele legume; seu ódio estendeu-se implacável por toda a família do maldito; não quis ouvir mais falar de maxixes, nem de abóboras, nem de jerimuns. — Ai o meu rico tenente! lamentava-se ela quando alguém lhe lembrava o esposo. Que maneiras de homem! que coração de pomba! aquilo é que era um marido como hoje em dia não se vê!... A outra sobrinha de D. Maria do Carmo, chamava-se Etelvina. Criaturinha sumamente magra, e tão nervosa como a tia; nariz muito fino grande e gelado, mãos ossudas e frias, olhos sensuais e dentes podres. Era detestável: os rapazes do comércio chamavam-lhe “Lagartixa”. Fazia-se muito romântica; prezava a sua cor horrivelmente pálida; suspirava de cinco em cinco minutos e sabia estropiar modinhas sentimentais ao violão. Diziam, em ar muito sério, que ela tivera aos dezesseis anos uma formidável paixão por um italiano, professor de canto, o qual fugira aos credores para o Pará e que, desde então, Etelvina nunca mais tomara corpo. Apresentou-se também em casa de Manuel a sra. D. Amância Sousellas, velha de grande memória para citar fatos, datas e nomes; lembrava-se sempre do aniversário natalício dos seus inúmeros conhecidos, e nesse dia filava-lhes impreterivelmente o jantar. Estava sempre a falar mal da vida alheia, à sombra da qual aliás, vivia; quinze dias em casa de uma amiga, outros quinze em casa de um parente, o mês seguinte em casa de um parente e amigo, e assim por diante; sempre, sempre de passeio. Ia a qualquer parte, fosse ou não fosse desejada, e, às duas por três, era da casa. Conhecia todo o Maranhão; contava, sem reservas, os escândalos que lhe caíam no bico, e andava sozinha na rua, passarinhando por toda a cidade, de xale, metendo o nariz em tudo. Se morria algum conhecido seu, lá estava ela, a vestir o cadáver, a cortar-lhe as unhas, a dizer os lugares-comuns da consolação, tida e citada por muito serviçal, ativa e prestimosa. Era cronicamente virgem, mas afirmava que em moça, rejeitara muito casamento bom. Dava-se a coisas de igreja; sabia vestir anjos de procissão e pintava os cabelos com cosmético preto. Detestava o progresso. — No seu tempo, dizia ela com azedume, as meninas tinham a sua tarefa de costura para tantas horas e haviam de pôr pr’ali o trabalho! se o acabavam mais cedo iam descansar?... Boas! desmanchavam minha senhora! desmanchavam para fazer de novo! E hoje?... perguntava, dando um pulinho, com as mãos nas ilhargas — hoje é o maquiavelismo da máquina de costura! Dá-se uma tarefa grande e é só “zuc-zuc-zuc!” e está pronto o serviço! E daí, vai a sirigaita pôr-se de leitura nos jornais, tomar conta do romance ou então vai para a indecência do piano! E jurava que filha sua não havia de aprender semelhante instrumento, porque as desavergonhadas só queriam aquilo para melhor conversar com os namorados, sem que os outros dessem pela patifaria! Também dizia mal da iluminação a gás: — Dantes os escravos tinham que fazer! Mal serviam a janta iam aprontar e acender os candeeiros, deitar-lhes novo azeite e colocá-los no seu lugar... E hoje? É só chegar o palitinho de fogo à bruxaria do bico de gás e... caia-se na pândega! Já não há tarefa! Já não há cativeiro! É por isso que eles andam tão descarados! Chicote! chicote, até dizer basta! que é do que eles precisam. Tivesse eu muitos, que lhes juro, pela bênção de minha madrinha, que lhes havia de tirar sangue do lombo! Mas a especialidade de D. Amância Sousellas, o que a tornava adorável para certos rapazes e detestada por muitos pais de família que iam de nariz torcido lhe recebendo visitas e obséquios de cortesia, era, sem dúvida, o seu antigo hábito de contar anedotas baixas e grosseiras. Sempre fora muito desbocada; no entanto alguns basbaques da sua roda, diziam dela, num frouxo de riso: “Com a D. Amância não pode a gente estar séria! — O diabo da velha tem uma graça!...” Lá estava também em casa de Manuel a Eufrasinha, viúva do oficial de infantaria. Toda enfeitada de lacinhos de fita roxa, moreninha apesar da superabundância do pó-de-arroz; as feições muito desenhadas à superfície do rosto e com um sinal de nitrato de prata ao lado esquerdo da boca, desastradamente imitado do de uma francesa ex-cantora com quem ela se dava. O sinal era para ficar do tamanho de uma pulga e saiu do tamanho e do feitio de um feijão-preto. Saracoteava-se, cheia de novidades, levantando-se de vez em quando, para ir dizer um segredinho ao ouvido de Ana Rosa, enquanto disfarçadamente lhe endireitava o penteado; nestes passeios olhava de esguelha para os quartos e para a varanda — dando fé — e voltava à sua cadeira, mirando-se a furto nos espelhos da sala, sempre muito curiosa, irrequieta, querendo achar em tudo que lhe diziam uma significação dupla, trejeitando sorrisos e momices expressivas quando não entendia, para fingir que compreendera perfeitamente. Tinha a voz sibilante e afetada, assoviava os SS, e dizia silabadas. O Freitas, em cuja casa Ana Rosa tivera o seu último histérico, também se achava presente, com a filha, a sua querida Lindoca. O Freitas era um homem desquitado da mulher “que se atirara aos cães”, explicava friamente, muito teso, magro, alto, com o pescocinho comprido no seu grande colarinho em pé. Não relaxava as calças brancas, e gabava-se do segredo de conservá-las limpas e engomadas durante uma semana; trazia sempre, apesar do calor da província, o colarinho duro e o peito da camisa irrepreensível; gravata preta — invariavelmente. Tratava uma enorme unha no dedo mínimo, com a qual costumava pentear o bigode, feito de longos fios, tingidos e lisos, que lhe velavam a boca. Jamais consentia que barbeiro algum “lhe encostasse a mão no rosto”; fazia ele mesmo a sua barba, um dia sim, outro não. Escondia a calva com as compridíssimas farripas do cabelo, muito espichadas, como que grudadas a goma-arábica sobre o crânio. Dispunha de uma memória prodigiosa, gabada por toda a cidade; fazia-se grande conhecedor da história antiga; quando falava escolhia termos, procurava fazer estilo, e, sempre que se referia ao Imperador dizia gravemente: “O nosso defensor perpétuo!” Afiançavam que era habilidoso; em tempo fizera, com muita paciência, uma árvore genealógica de sua família e mandara-a litografar no Rio de Janeiro. Este trabalho foi muito apreciado e comentado na província. Era empregado público havia vinte e cinco anos e só faltara à repartição três vezes — por uma queda, um antraz, e no dia do seu malfadado casamento; contava isto a todos, com glória. Quando temia constipar-se, aspirava cautelosamente o fartum do conhaque. “Isto e o bastante para me fazer ficar tonto!...” afirmava com uma repugnância virtuosa. Tinha honor às cartas e sabia tocar clarinete, mas nunca tocava, porque o médico lhe dissera ‘’não achar prudente”. Fumara em tempo, mas o médico dissera do charuto o mesmo que do clarinete. — Nunca mais fumou. Não dançava, para não suar; falava com raiva das mulheres e, nem caindo de fome, seria capaz de comer à noite. “Além do chá, nada! nada!” protestava com firmeza; estivesse onde estivesse, havia de retirar-se impreterivelmente à meia-noite. Usava sapatos rasos, de polimento, e nunca se esquecia do chapéu-de-sol. Jamais arredara o pé da ilha de São Luís do Maranhão, tal era o medo que tinha do mar. — Nem para ir a Alcântara! jurava ele, conversando essa noite em casa do Manuel. Daqui — para o Gavião! Nada, meu caro senhor, quero morrer na minha caminha, sossegado, bem com Deus! — Com toda a comodidade, observou Raimundo, a rir. Era devoto: todos os anos carregava na procissão o andor do milagroso Senhor Bom Jesus dos Passos. E muito arranjadinho: “Em casa dele havia de tudo, como na botica.” Diziam os seus íntimos. “Só falta dinheiro...” completava o Freitas em ar discreto de pilhéria. No mais: — sempre o mesmo homem; nunca fora de estroinices; mesmo em rapaz, era já metido consigo; não gostava de dever a ninguém; colecionava selos velhos; dava homeopatia de graça, aos amigos, e tinha a fama do maior maçante do Maranhão. A tal “sua querida Lindoca” era uma menina de dezesseis anos, pequenina, extremamente gorda, quase redonda, bonitinha de feições, curta de idéias, bom coração e temperamento honesto. A Etelvina dissera uma vez que ela estava engordando até nos miolos. Lindoca Freitas não escondia o seu desejo de casar e amava extremosamente o pai, a quem só tratava por “Nhozinho”. — Tenho um desgosto desta gordura!... Lamentava-se ela às camaradas, que lhe elogiavam a exuberância adiposa. Se eu soubesse de um remédio para emagrecer... tomava! As amigas procuravam consolá-la: “Dá-me gordura que te darei formosura! — Gordura é saúde!” Mas a repolhuda moça não se conformava com aquela desgraça. Vivia triste. As banhas cresciam-lhe cada vez mais; estava vermelha; cansava por cinco passos. Era um desgosto sério! Recorria ao vinagre; dava-se a longos exercícios pela varanda; mas qual! — as enxúndias aumentavam sempre. Lindoca estava cada vez mais redonda, mais boleada; a casa estremecia cada vez mais com o seu peso; os olhos desapareciam-lhe na abundância das bochechas; o seu nariz parecia um lombinho; as suas costas uma almofada. Bufava. Dias, o piedoso, o doce Luís Dias, também comparecera aquela noite à sala do patrão. Lá estava, metido a um canto, roendo ferozmente as unhas, o olhar imóvel sobre Ana Rosa, que, ao piano, dispunha-se a tocar alguma coisa e experimentava as teclas. Em uma das janelas da frente, encostados contra a sacada, Manuel e o cônego Diogo ouviam de Raimundo a descrição em voz baixa de um passeio de Paris à Suíça. No resto da sala corria o sussurro das senhoras, que conversavam. — Então! Estamos passando o Boqueirão? exclamou o Freitas, erguendo-se do sofá, a sacudir as calças, para evitar as joelheiras. E, voltando-se para uma das sobrinhas de D. Maria do Carmo: — Diga alguma coisa, D. Etelvina!... Etelvina ergueu os olhos para o teto e soltou um suspiro. — Por quem suspiras? perguntou-lhe, em misterioso falsete, a velha Amância que lhe ficava ao lado. — Por ninguém... respondeu a Lagartixa, sorrindo melancolicamente com os caquinhos dos dentes. — Ele não é feio... a senhora não acha D. Bibina?... segredava Lindoca à outra sobrinha de D. Maria do Carmo, olhando furtivamente para o lado de Raimundo. — Quem? O primo d’Ana Rosa? — Primo? Eu creio que ele não é primo, dona! — É! sustentou Bibina quase com arrelia. É primo, sim, por parte de pai!... E olhe, ali está quem lhe sabe bem a história!... E indicava a tia com o beiço inferior. — An... resmungou a gorducha, passando a considerar da cabeça aos pés o objeto da discussão. Por outro lado, Maria do Carmo segredava a Amância Sousellas: — Pois é o que lhe digo, D. Amância: muito boa preta!... negra como este vestido! Cá está quem a conheceu!... E batia no seu peito sem seios. — Muita vez a vi no relho. Iche! — Ora quem houvera de dizer!... resmungou a outra, fingindo ignorar da existência de Domingas, para ouvir mais. Uma coisa assim só no Maranhão! Credo! — É como lhe digo, minha rica! O sujeitinho foi forro à pia, e hoje, olhe só pr’aquilo! está todo cheio de fumaças e de filáucias!... Pergunte ao cônego, que está ao lado dele! — Cruz! T’arrenego, pé-de-pato! E Amância bateu por hábito nas faces engelhadas. Nisto, ouviu-se um grande motim, que vinha da varanda. — Ó Benedito! Moleque! Ó peste! Está dormindo, sem-vergonha?! E logo o estalo de uma bofetada. — Arre! que até me fazes zangar com visitas na sala!... Era Maria Bárbara, que andava às voltas com o Benedito. — Vai deitar a mesa do chá moleque! Manuel correu logo à varanda, contrariado. — Ó senhora!... disse à sogra. Que inferneira! Olhe que está aí gente de fora!... Freitas passou-se à janela de Raimundo, e aproveitou a oportunidade para despejar contra este uma estopada a respeito do mau serviço doméstico feito pelos escravos. — Reconheço que nos são necessários, reconheço!... mas não podem ser mais imorais do que são!... As negras, principalmente as negras!... São umas muruxabas, que um pai de família tem em casa, e que dormem debaixo da rede das filhas e que lhes contam histórias indecentes! É uma imoralidade! Ainda outro dia, em certa casa, uma menina, coitada, apareceu coberta de piolhos indecorosos, que pegara da negra! Sei de outro caso de uma escrava que contagiou a uma família inteira de impigens e dartros de caráter feio! E note, doutor, que isto é o menos, o pior é que elas contam às suas sinhazinhas tudo o que praticam aí por essas ruas! Ficam as pobres moças sujas de corpo e alma na companhia de semelhante corja! Afianço-lhe, meu caro senhor doutor, que, se conservo pretos ao meu serviço, é porque não tenho outro remédio! Contudo... Foi interrompido por Benedito que, nu da cintura para cima e acossado pela velha Bárbara, atravessou a sala com agilidade de macaco. As senhoras espantaram-se, mas abriram logo em gargalhadas. O moleque alcançara a porta da escada e fugira. Então, o Dias, que até aí se conservara quieto no seu canto, ergueu-se de um pulo e deitou a correr atrás dele. Desapareceram ambos. Benedito era cria de Maria Bárbara; um pretinho seco, retinto, muito levado dos diabos; pernas compridas, beiços enormes, dentes branquíssimos. Quebrava muita louça e fugia de casa constantemente. A velha estacara no meio da sala furiosa. — Ai, gentes! não reparem!... bradou. Aquele não-sei-que-diga, aquele maldito moleque!... Pois o desavergonhado não queria vir trazer água na sala, sem pôr uma camisa?... Patife! Ah, se o pego!... Mas deixa estar, que não as perdes, malvado! E correndo à janela: — Se seu Dias não te alcançar, tens amanhã um campeche te seguindo a pista, sem-vergonha! E saiu de novo para a varanda, muito atarefada, gritando pela Brígida: — Ó Brígida! Também estás dormindo, seu diabo?! Na sala as visitas discutiam rindo a cena do moleque e o mau gênio de Maria Bárbara, mas tiveram de abafar a voz, porque Ana Rosa pôs-se a tocar uma polca ao piano. Pouco depois, ouviu-se um farfalhar de saias engomadas, e em seguida apresentou-se a Brígida, uma mulata corpulenta a carapinha muito trançada e cheia de flores, um vestido de chita com três palmos de cauda, recendendo a cumaru. Preparava-se daquele modo, para ir à sala, oferecer água. E, segurando com ambas as mãos uma enorme salva de prata, cheia de copos, dirigia-se a todos, um por um, a bambalear as ancas volumosas. A criadagem de Manuel e Maria Bárbara, contava, além de Brígida e Benedito, de uma cafuza já idosa, chamada Mônica, que amamentara Ana Rosa e lavava a roupa da casa, e mais de uma preta só para engomar, e outra só para cozinhar, e outra só para sacudir o pó dos trastes e levar recados à rua. Pois, apesar deste pessoal, o serviço era sempre tardio e malfeito. — Estas escravas de hoje têm luxos!... observou Amância em voz baixa a Maria do Carmo, apontando com o olhar para o vulto empantufado de Brígida. E entraram a conversar sobre o escândalo das mulatas se prepararem tão bem como as senhoras. “Já se não contentavam com a sua saia curta e cabeção de renda; queriam vestido de cauda; em vez das chinelas, queriam botinas! Uma patifaria!” Depois falaram nos caixeiros, que roubavam do patrão para enfeitar as suas pininchas; e, por uma transição natural, estenderam a crítica até aos passeios a carro, às festas de largo e os bailes dos pretos. — Os chinfrins, como lhes chamava o meu defunto Espigão, acudiu Maria do Carmo, conheço! ora se conheço!... Bastante quizília tivemos nós por amor deles!... — É uma sem-vergonheira! Ver as escravas todas de cambraia, laços de fita, água de cheiro no lenço, a requebrarem as chandangas na dança!... — Ah, um bom chicote!... disseram as duas velhas ao mesmo tempo. — E elas dançam direito?... perguntou a do Carmo, — Se dançam!... O serviço é que não sabem fazer a tempo e a horas! Lá para dançar estão sempre prontas! Nem o João Enxova! A indignação secava-lhe a voz. — Até parecem senhoras, Deus me perdoe! Todas a se fazerem de gente! os negros a darem-lhes excelência. “E porque minha senhora pra cá! Vossa Senhoria pra lá!” É uma pouca vergonha, a senhora não imagina!... Uma vez, em que fui espiar um chinfrim, porque me disseram que o meu defunto estava lá metido, fiquei pasma! E o melhor é que os descarados não se tratam pelo nome deles, tratam-se pelo nome dos seus senhores!... Não sabe Filomeno?... aquele mulato do presidente?... Pois a esse só davam “Sr. Presidente!”. Outros são “Srs. Desembargadores, Doutores, Majores e Coronéis!”. Um desaforo que deveria acabar na palmatória da polícia! Ana Rosa terminou a sua polca. — Bravo! Bravo! — Muito bem, D. Anica! E estalaram palmas. — Tocou às mil maravilhas!... — Não senhor, foi uma polca do Marinho. Correram a cumprimentar a pianista. O Freitas profetizou logo “que ali estava um segundo Lira!” Raimundo foi o único que não se abalou. Estava fumando à janela, e fumando deixou-se ficar. Ana Rosa, sem dar a perceber, sentiu por isso uma ligeira decepção. Esforçara-se por tocar bem e ele, nem assim! “Até parecia não ter notado nada!... É um malcriado!” concluiu ela, de si para si. E, com uma pontinha de mau humor, assentou-se ao lado de Lindoca. Eufrásia correu logo para junto da amiga. — Que tal o achas?... perguntou em segredo, assentando-se, com muito interesse. — Quem? disse Ana Rosa, fingindo distração e franzindo o nariz. A outra indicou misteriosamente a janela com um dos polegares. — Assim, assim... E a filha do negociante fez um bico de indiferença. — Nem por isso!... — Um peixão! opinou Eufrásia com entusiasmo. — Gentes!... Que é isto, Eufrasinha?... — É uma tetéia! E a viúva mordia os beiços. — Sim, ele não é feio... tornou Ana Rosa, impacientando-se. Mas também não é lá essas coisas!... — Que olhos! que cabelos! e que gestos!... olha, olha, menina! como ele brinca com o charuto!... olha como ele se encosta à grade da janela!... Parece um fidalgo, o diabo do homem!... Ana Rosa, sem desfranzir o nariz, enviesava os olhos contra o primo e sentia melhor do que a amiga, a evidência do que esta lhe dizia. “Raimundo era com efeito elegante e bem bonito, mas, que diabo, desde que chegara ainda lhe não tinha dispensado uma única palavra de distinção, um só gesto que a especializasse, quando ali, no entanto, era ela, incontestavelmente, a mais chique, a mais simpática, e, além disso — sua prima! (Ana Rosa pouco, ou nada, sabia ao certo do grau do seu parentesco com ele) Não! Não fora correto! Falara-lhe como às outras, igualmente frio e reservado; não fizera como os rapazes do Maranhão, que, mal se aproximavam dela estavam desfeitos em elogios e protestos de amor!” Aquela indiferença de Raimundo doía-lhe como uma injustiça: sentia-se lesada, roubada, nos seus direitos de moça irresistível. “Um pedante é o que ele é! Um enfatuado! Pensa que vale muito, porque se formou em Coimbra e correu a Europa! Um tolo!...” Nessa ocasião, entraram na sala, com ruídos, dois novos tipos — o José Roberto e o Sebastião Campos. Foram logo apresentados a Raimundo e seguiram a cumprimentar as senhoras, dando a cada qual uma frase ou uma palavra ou um gesto de galanteio familiar: “D. Eufrasinha sempre bela como os amores, que pena ser eu já papel queimado! — Então, D. Lindoca, onde vai com essa gordura? divida a metade comigo! — Quando se come doce desse casamento, D. Bibina?... E tinham sempre na ponta da língua uma pilhéria, um dito, para bulir com as moças; coisas desengraçadas e sediças, mas que as faziam rebentar de riso. — Deus os fez e o diabo os ajuntou! explodiu, com um estalo de boca, a velha Amância quando os dois passaram por ela. José Roberto, a quem só tratavam por “Seu Casusa”, era moço de vinte e tantos anos; magro, moreno, crivado de espinhas, olhos muito negros, boca em ruínas, uma enorme cabeleira, rica, toda encaracolada e reluzente de óleo cheiroso, preta, bem preta, dividida pacientemente ao meio da cabeça. Usava lunetas azuis e cantava ao violão modinhas da sua própria lavra e de outros, apimentadas à baiana com o travo sensual e árabe dos lundus africanos. Quando tocava, tinha o amaneirado voluptuoso do trovador de esquina; vergava-se todo sobre o instrumento, picando as notas com as unhas cujos dedos pareciam as pernas de um caranguejo doido, ou abafando com a palma da mão o som das cordas, que gemiam e choravam como gente. Tipo do Norte, perfeito, cheio de franquezas, com horror ao dinheiro, muito orgulhoso e prevenido contra os portugueses, a quem perseguia com as suas constantes chalaças, imitando-lhes o sotaque, o andar e os gestos. Tinha alguma coisinha de seu e passava por estróina. Gostava das serenatas, das pândegas com moças; pilhando dança — não perdia quadrilha nem pulada, mas no dia seguinte ficava de cama, estrompado. Havia muito que José Roberto procurava agradar a Ana Rosa; esta sempre o repelia, a rir. Também poucos o tomavam a sério: “Um pancada”, diziam; mas queriam-lhe bem. O Sebastião Campos, esse era viúvo da primeira filha de Maria Bárbara e, como aquele, um tipo legítimo do Maranhão; nada, porém, tinha do outro senão o orgulho e a birra aos portugueses, a quem na ausência só chamava “marinheiros — puças — galegos”. Senhor de engenho, de um engenho de cana, lá para as bandas do Munim, onde passava três meses no tempo da colheita; o resto do ano passava-o na cidade. Devia ter quase o duplo da idade de José Roberto, baixote, muito asseado, mas com a roupa sempre malfeita. Usava calças curtas, em geral brancas, deixando aparecer, desde o tornozelo, os seus pezinhos ridiculamente pequenos e mimosos; barba cerrada, ainda preta, e cabelo à escovinha; olhos de pássaro, vivos e lascivos, nariz de criança e testa enorme; uma grande cabeça, desproporcionada do corpo, beiços grossos e vermelhos, mostrando a dentadura miudinha e gasta, porém muito bem tratada, tratada a mel de fumo de corda, que era com que ele asseava a boca. Bairrista, isso ao último ponto: a tudo preferia o que fosse nacional. “Não trocava a sua boa cana-capim — e o seu vinho de caju por quantos cognacs e vinhos do Porto havia por aí! nem o seu gostoso e cheiroso fumo de molho, fabricado no Maranhão, pelo melhor tabaco estrangeiro, ou mesmo importado das outras províncias! Ou bem que se era maranhense ou bem que se não era!” Não cochilava com os seus escravos. Na roça era temido até pelo feitor, um pouco devoto e cheio de escrúpulos de raça. “Preto é preto; branco é branco! Moleque é moleque; menino é menino!” E estava sempre a repetir que o Brasil teria ganho muito, se perdesse a Guerra dos Guararapes. — A nossa desgraça, rezava ele, é termos caído nas mãos destas bestas! Uns lesmas! Uma gente sem progresso, que só cuida de encher o papo e aferrolhar dinheiro! Favores, de quem quer que fosse, não os aceitava “que não queria dever obrigações a nenhum filho da mãe!...” Mas também, quando dava para meter as botas em qualquer pessoa — era aquela desgraça! Não tinha papas na língua! Era nervoso e ativo; gostava todavia de ler ou conversar, escarranchado na rede durante horas esquecidas, em ceroulas, fumando o seu cachimbo de cabeça preta, fabricado na província. Na rua, encontravam-no de sobrecasaca aberta, coletinho de chamalote, camisa bordada, guarnecida por três brilhantes grandes; ao pescoço, prendendo o cebolão, um trancelim muito comprido, de ouro maciço, obra antiga, com passador. Adorava os perfumes ativos, as jóias e as cores vivas; para ele, nada havia, porém, como um passeio ao sítio embarcado, à fresca da madrugada, bebericando o seu trago de cachaça e pitando o seu fumo do Codó. Em casa muito obsequiador. Passava à farta. Com a vinda destes dois, a reunião tornou-se mais animada. Reclamou-se logo o violão, e seu Casusa, depois de muito rogado, afinou o instrumento e principiou a cantar Gonçalves Dias: “Se queres saber o meio Por que às vezes me arrebata Nas asas do pensamento A poesia tão grata;” Nisto, rebentou uma corda do violão. — Ora pistolas!... resmungou o trovador. E gritou: — Ó D. Anica! a senhora não terá uma prima? Ana Rosa foi ver se tinha, andou remexendo lá por dentro da casa, e voltou com uma segunda. “Era o que havia.” O Casusa arranjou-se com a segunda e prosseguiu, depois de repetir os versos já cantados; ao passo que o Freitas, na janela, importunava Raimundo, a propósito do autor daquela poesia e de outros vultos notáveis do Maranhão “da sua Atenas brasileira” como a denominava ele. O cônego fugiu logo para a varanda, covardemente, com medo à seca. — Não sou bairrista, não senhor... dizia o maçante, mas o nosso Maranhãozinho é um torrão privilegiado!... E citava, com orgulho, “os Cunha, os Odorico Mendes, os Pindaré e os Sotero et cetera! et cetera!’’ O seu modo de dizer et cetera era esplêndido! — Temos os nossos faustos, temos! Passou então a falar nas belezas da sua Atenas: no dique das Mercês, “estava em construção, mas havia de ficar obra muito de se ver e gostar...” afiançava ele cheio de gestos respeitosos. Falou do Cais da Sagração, “também não estava concluído”, dos Quartéis, “iam entrar em conserto”, na igreja de Santo Antônio, “nunca chegaram a terminá-la, mas se o conseguissem, seria um belo templo!” Elogiou muito o teatro São Luís. “Dizia o cônego que era o São Carlos de Lisboa, em ponto pequeno!” Lembrou respeitosamente a companhia lírica do Ramonda, o Remorini, o tenor “morrera de febre amarela, depois de ser muito aplaudido na Gemma de Vergi. Ah, como aquela, jurava não voltaria outra companhia ao Maranhão! Mas que, mesmo na província, havia moços de grande habilidade...” Referia-se a uma sociedade particular, de curiosos. “Tinham seu jeito, sim senhor!” E, engrossando a voz, com muita autoridade: “Representavam Os Sete Infantes de Lara! — Os Renegados! — O Homem da Máscara Negra, e outras peças de igual merecimento! Tinham a sua queda para a coisa, tinham!... Não se pode negar!...” E assoava-se, meneando a cabeça, convencido. “Principalmente a dama... sim! o moço que fazia de dama!... Não havia que desejar — o pegar do leque, o revirar dos olhos, certos requebros, certas faceirices!... Enfim, senhores, era perfeito, perfeito, perfeito!” Raimundo bocejava. E o Freitas nem cuspia. Acudiam-lhe fatos engraçados sobre o teatrinho; soltava as anedotas em rebanho, sem intervalos. Raimundo já não achava posição na janela; virava-se da esquerda, da direita, firmava-se ora numa perna, ora na outra deixando afinal pender a cabeça e olhando para os pés, entristecido pelo tédio. “Que maçante!...” pensava. Entretanto, o Freitas a sacudir-lhe a manga do fraque, que Raimundo sujara na caliça da janela, ia confessando que “estavam em vazante de divertimentos; que a sua distração única era cavaquear um bocado com os amigos...” — Ah! exclamou, minto! minto! Há uma festa nova! — a de Santa Filomena! Mas não será como a dos Remédios, isso, tenham paciência!... — Sim, decerto, balbuciou Raimundo, fingindo prestar atenção. E espreguiçou-se. — A festa dos Remédios!... repetiu o outro, estalando os dedos e assoviando prolongadamente, como quem diz: “Vai longe!” Raimundo estremeceu, ficou gelado até a raiz dos cabelos; percebeu aquela tremenda ameaça e mediu instintivamente a altura da janela, como se premeditasse uma fuga. — O nosso João Lisboa... disse o Freitas. E meteu profundamente as mãos nas algibeiras das calças. O nosso João Lisboa já, em um folhetim publicado no número... Ora qual é o número do Publicador Maranhense?... Espere!... E fitou o teto. — 1173 — Sim! 1173, de 15 de outubro de 1851. Pois nesse folhetim descreve ele, circunstanciadamente e com muito donaire e gentilezas de estilo, a nossa popular e pitoresca festa dos Remédios. Raimundo, aterrado, prometeu, sob palavra de honra, ler o tal folhetim na primeira ocasião. — Ah!... volveu terrível o Freitas, é que ela hoje é outra coisa!... Hoje não se compara! — há muito mais luxo, mas muito! E, segurando com ambas as mãos a gola do fraque de Raimundo e ferrando-lhe em cima dos olhos arregalados, acrescentou energicamente: — Creia, meu doutor, mete pena o dinheirão que se gasta naquela festa! faz dó ver as sedas, os veludos, as anáguas de renda, arrastarem-se pela terra vermelha dos Remédios!... Raimundo empenhou a cabeça como faria idéia aproximada. — Qual! Qual! Tenha paciência meu amigo, não é possível! E Freitas repeliu com força a vítima. Aquilo só vendo e sentindo, Sr. Dr. Raimundo José da Silva! E descreveu minuciosamente a cor, a sutileza da terra; como a maldita manchava o lugar em que caía; como se insinuava pelas costuras dos vestidos, das botas, nas abas dos chapéus, nas máquinas dos relógios; como se introduzia pelo nariz, pela boca, pelas unhas, por todos os poros! — Aquilo, meu caro amigo... Raimundo queixou-se inopinadamente de que tinha muito calor. Freitas levou-o pelo braço até a varanda; deu-lhe uma preguiçosa, passou-lhe uma ventarola de Bristol, preparou-lhe uma garapada, e, depois de havê-lo regalado bem, como antigamente se fazia com os sentenciados antes do suplício, de pé, implacável, verdadeiro carrasco em face do paciente, despejou inteira uma descrição do dia da festa dos Remédios, recorrendo a todos os mistérios da tortura, escolhendo palavras e gestos, repetindo as frases, frisando os termos, repisando o que lhe parecia de mais interesse, cheio de atitudes como se discursasse para um grande auditório. Principiou expondo minuciosamente o Largo dos Remédios, com a sua ermida toda branca, seus bancos em derredor; muitos ariris, muita bandeira, muito foguete, muito toque de sino. Descreveu com assombro o luxo exagerado em que se apresentavam todos, todos! para a missa das seis e para a missa das dez, nas quais, dizia ele circunspectamente, “reúne-se a nata da nossa judiciosa sociedade!...” Era tudo em folha, e do mais caro, e do mais fino. Nesse dia todos luxavam, desde o capitalista até o ralé caixeiro de balcão; velho ou moço, branco ou preto, ninguém lá ia, sem se haver preparado da cabeça aos pés; não se encontrava roupa velha, nem coração triste! — Às quatro horas da tarde, acrescentou o narrador, torna-se o largo a encher. Pensará talvez o meu amigo que tragam a mesma fatiota da manhã... — Naturalmente... — Pois engana-se! é tudo outra vez novo! são novos vestidos, novas calças, novas... — Etc., etc.! Vamos adiante. — Afirmam alguns estrangeiros... e dizendo isto tenho dito tudo!... que não há, em parte alguma do mundo festa de mais luxo!... E a voz do maçante tomava a solenidade de um juramento. — O que lhe posso afiançar, doutor, é que não há criança que, nessa tarde, não tenha a sua pratinha amarrada na ponta do lenço. Aparecem cédulas gordas, moedas amarelas; troca-se dinheiro; queimam-se charutos caros, no bazar (há um bazar) as prendas sobem a um preço escandaloso! Digo-lhe mais: nesse dia não há homem, por mais pichelingue, que não gaste seu bocado nos leilões, nas barracas, nos tabuleiros de doce ou nas casas de sorte; nem há mulher, senhora ou moça-dama, que não arrote grandeza, pelo menos seu vestidinho novo de popelina. Vêem-se enormes trouxas de doce seco, corações unidos de cocada, navios de massa com mastreação de alfenim, jurarás dourados, cutias enfeitadas dentro da gaiola, pombos cheios de fitas, frascos de compota de murici, bacuri, buriti, o diabo, meu caro senhor! As pretas-minas, cativas ou forras, surgem com os seus ouros, as suas ricas telhas de tartaruga, as suas ricas toalhas de rendas, suas belas saias de veludo, suas chinelas de polimento, seus anéis em todos os dedos, aos dois e aos três em cada um... E este povo mesclado, coberto de luxo, radiante, com a barriga confortada e o coração contente, passeia, exibe-se, ancho de si, pensando erradamente chamar a atenção de todos, quando aliás cada qual só pensa e repara em si próprio e na sua própria roupa! Raimundo ria-se por delicadeza, e espreguiçava-se na cadeira, bocejando. — À noite, continuou o Freitas, ilumina-se todo o largo. Armam-se grandes e deslumbrantes arcos transparentes, com a imagem da santa e os emblemas do Comércio e da Navegação, que Nossa Senhora dos Remédios é padroeira do Comércio, e é este que lhe dá a festa. Mas bem, faz-se a iluminação — armas brasileiras, estrelas, vasos caprichosos, o nome da santa, tudo a bico de gás, não contando uma infinidade de balõezinhos chineses, que brilham por entre as bandeiras, os florões os ariris, as casas de música; em uma palavra fica tudo, tudo, claro como o dia! Raimundo soltou um suspiro profundo e mudou de posição. — Há também, para os moleques, um pau-de-sebo, balanços e cavalinhos. É verdade! o doutor sabe o que e um pau-de-sebo?... — Perfeitamente. Tenha a bondade de não explicar. — Com franqueza! Se não sabe, diga, que eu posso... — Ora, por amor de Deus! faz-me o favor em não se incomodar, juro-lhe! Estou impaciente pelo resultado da festa. Continue! — Pois sim, senhor. Dão oito horas... Ah, meu caro amigo! então surge de todos os cantos da cidade uma aluvião interminável de famílias, de velhos, moços, meninos, mulatinhas e negrinhas, que enchem o largo que nem um ovo! Pretos de ambos os sexos e de todas as idades; desde o moleque até o tio velho, acodem, trazendo equilibradas nas cabeças imensas pilhas de cadeiras, e, com estas cadeiras, formam-se grandes rodas mesmo na praça, ao ar livre, e as famílias, ou ficam aí assentadas, ou, a título de passeio, acotovelam-se entre o povo. Fazem-se grupos, a gente ri, discute, critica, namora, zanga-se, ralha... — Ralha? — Ora! Já houve uma senhora que castigou um moleque a chicote, lá mesmo no largo! — A chicote? — Sim, a chicote! Aquilo, meu caro doutor, é uma espécie de romaria! As famílias levam consigo potes de água, cuscuz, castanhas assadas, biscoitos e o mais... E tudo isto ao som desordenado da pancadaria de três bandas de música, dos gritos do leiloeiro e da inqualificável algazarra do povo! Raimundo quis levantar-se; o outro obrigou-o a ficar sentado, pondo-lhe as mãos nos ombros. — Estamos no apogeu da festa! exclamou o maçante. — Ah! gemeu Raimundo. — Soltam-se balões de papel fino; cruzam-se moças aos pares; giram aos pares os janotas; vendem-se roletos de cana, sorvetes, garapa, cerveja, doces, pastéis, chupas de laranja; sentem-se arder charutos de canela; gastam-se os últimos cartuchos; esvaziam-se de todo as algibeiras e, finalmente, com grande júbilo geral arde o invariável fogo de artifício. Então rebentam todas as bandas de música a um só tempo, levanta-se uma fumarada capaz de sufocar um fole, e, no meio do estralejar das bombas e do infrene entusiasmo da multidão, aparece no castelo, deslumbrante de luzes, a imagem de Nossa Senhora dos Remédios. Foguetes de lágrimas voam aos milhares pelo espaço; o céu some-se. Todos se descobrem, em atenção à santa, e abrem o chapéu-de-sol com medo das tabocas. Há uma chuva de luzes multicores; tudo se ilumina fantasticamente; todos os grupos, todas as fisionomias, todas as casas, tomam sucessivamente as irradiações do prisma. Durante esta apoteose o povo se concentra numa contemplação mística, terminada a qual, está terminada a festa! E Freitas tomou fôlego. Raimundo ia falar, ele atalhou: — De repente, o povo acorda e quer sair! Corre, precipita-se em massa à Rua dos Remédios, aglomera-se, disputa os carros, pragueja, assanha-se! Cada um entende que deve chegar primeiro à casa; há trambolhões, descomposturas, gritos, gargalhadas, gemidos, rinchos de cavalos, tabuleiros de doce derramados, vestidos rotos, pés esmagados, crianças perdidas, homens bêbados; mas, de súbito, como por encanto, esvazia-se o largo e desaparece a multidão! — Como? por quê? — Daí a pouco estão todos recolhidos, sonhando já com a festa do ano seguinte, calculando economias, pensando em ganhar dinheiro, para na outra fazer ainda melhor figura! E o Freitas resfolegou prostrado, com a língua seca. — Mas por que diabo se retiram tão depressa?... perguntou Raimundo. Freitas engoliu sofregamente três goles de água e voltou-se logo. — É porque este povinho, por fogo de vista, é pior que macaco por banana! Tirem-lhe de lá o fogo que ninguém se abalará de casa! — Com efeito! E é muito antiga esta festa, sabe? — Bastante. Ela já tem seu tempo. Ora espere! E o memorião atirou logo o olhar para o teto. — No tempo dos governadores portugueses, disse, depois de uma pausa, era ali o convento de São Francisco; isso foi... poderia ser... em.. em mil, setecentos... e dezenove! Chamava-se então a ponta, que forma hoje o Largo dos Remédios, “Ponta do Romeu”. Ora, os frades cederam esse terreno a um tal Monteiro de Carvalho, que fez a ermida, como se pode calcular, no mato. Uma ocasião, porém, um preto fugido matou nesse lugar o seu senhor, e os romeiros, que lá iam constantemente, abandonaram receosos a devoção. Só depois de cinqüenta e seis anos, é que o governador Joaquim de Melo e Póvoas mandou abrir uma boa estrada, a qual vem a ser hoje a nossa pitoresca Rua dos Remédios. A ermida caiu em ruínas, mas o ermitão, Francisco Xavier, mandou, em 1818, construir a que lá está presentemente; e daí data a festa, que tive a honra e o gosto de descrever-lhe. — De tudo isso, aventurou Raimundo, o que mais me admira é a sua memória: o senhor com efeito tem uma memória de anjo. — Ora! O senhor ainda não viu nada! Vou contar-lhe... O outro ia disparatar sem mais considerações, quando, felizmente, acudiram todos à varanda. Criou alma nova. — Apre! disse Raimundo consigo, respirando. É de primeira força!... Serviu-se o chocolate. O cônego vinha a discretear para Manuel em voz soturna: — Pois é o que lhe digo, compadre, fique você com as casas e divida-as em meias-moradas, que rendem?... — Acha então que vou bem, dando quatro contos de réis por cada uma... — Decerto, são de graça!... Homem aquilo é pedra e cal — construção antiga! — deita séculos! Além disso, as casinhas têm bom quintal, bom poço e não são devassadas pela vizinhança... verdade é que não deixam de ser um bocadinho quentes, mas... — Abrem-se-lhe janelas para o nascente, concluiu o negociante. E, assim, conversando, chegaram à varanda, onde já estavam à mesa. José Roberto e Sebastião Campos serviam às senhoras, acompanhando com uma pilhéria cada prato que lhes ofereciam. Raimundo pediu dispensa do chá, com medo do Freitas que lhe abrira um lugar ao lado do seu. Ouviu-se mastigar as torradas e sorver, aos golinhos, o chocolate quente. — Doutor, exclamou o cônego, procurando espetar com o garfo uma fatia de um bolo de tapioca. Prove ao menos do nosso “Bolo do Maranhão”. Também o chamam por aí “Bolo podre”. Prove, que isto não há fora de cá... é uma especialidade da terra! — Não é mau... disse Raimundo, fazendo-lhe a vontade. Muito saboroso, mas parece-me um tanto pesado... — É de substância — acrescentou Maria Bárbara. Faz-se de tapioca de forno e ovos. — D. Bibina! chamou Ana Rosa, apontando para os beijus. São fresquinhos... Amância, com a boca cheia, dizia baixo a Maria do Carmo: — Pois, minha amiga, quando precisar de missa com cerimônia, não tem mais do que se entender com o padre que lhe digo... É muito pontual e contenta-se com o que a gente lhe dá! Est’r’o dia, apanhou-me dezoito mil-réis por uma missinha cantada, mas também podia se ver a obra que o homem apresentou!.. Pois então! Há de dar uma criatura seus cobrinhos, que tanto custam a juntar, a muito padre, como há por aí, desses que, mal chegam ao altar, estão pensando no almoço e na comadre?... Deus te livre, credo! Até pesa na consciência de um cristão! — Como o padre Murta!... lembrou a outra. — Oh! Esse, nem se fala! Às vezes, Deus me perdoe! nos enterros, até se apresenta bêbado! E Maria do Carmo bateu na boca — Cá está, acrescentou, quem já o viu a todo o pano encomendar o corpo de José Caroxo!... — Não! que hoj’em dia a gente perde a fé... isso está se metendo pelos olhos!... Mas é o que já não tem o outro... porta-se muito bem! muito bem procedido! muito cumpridor das suas obrigações! Zeloso da religião! Acredite, minha amiga, que faz gosto... Dizem até... E Amância segredou alguma coisa à vizinha. Maria do Carmo baixou os olhos, e resmungou beaticamente: — Deus lhe leve em conta, coitado! Houve um rumor de cadeiras que se arrastam. Os comensais afastaram-se dos seus lugares. — Mesa feita. companhia desfeita!...gritou logo José Roberto, chupando os restos dos dentes. E tratou de seguir as senhoras, que se encaminhavam silenciosas para a sala. Nisto, entrou o Dias, trazendo o Benedito pelo cós. Vinha a deitar os bofes pela boca e, quase sem poder falar, contou que “seguira o ladrão até o fim da Rua Grande, e que o ladrão quebrara para o Largo dos Quartéis e quase que alcança o mato da Camboa”. Dito isto, conduziu ele mesmo o moleque lá para dentro. “Anda, peste! Vai preparando o pêlo, que ainda hoje te metes em relho!” Apreciaram muito o serviço do Dias, e conversaram sobre aquele ato de dedicação, elogiando o zelo do bom amigo e caixeiro de Manuel. Daí a uma hora despediam-se as moças, entre grande barafunda de beijos e abraços. — Lindoca! gritava Ana Rosa, agora não arribe de novo, ouviu?... — Sim, minha vida, hei de aparecer... olha! E subiu dois degraus para lhe dizer um segredinho. — Sim, sim! Eufrasinha, adeus! D. Maria do Carmo, não deixe de levar essas meninas à quinta no dia de São João. Temos torta de caranguejos, olhe lá! — Adeus, coração! — Etelvina, não se esqueça daquilo!... — Bibina, despeça-se da gente!... guarde seus quatro vinténs!... — Olhe, observou o Sebastião Campos, que as tais moças, para se despedirem... são temíveis! — “Pudesse uma só nau contê-las todas...” recitou o Freitas, coçando o bigode com a sua unha de estimação, “e o piloto fosse eu... triunfo eterno!...” E, após uma gargalhada seca, voltou-se para Raimundo e ofereceu-lhe com ar pretensioso “um talher na sua parca mesa”. — Vá doutor, vá por aquela choupana, disse. Vá aborrecer-se um pouco... Raimundo prometeu distraidamente. Bocejava. Por mera delicadeza, perguntou se alguma das senhoras “queria um criado para acompanhá-las a casa”. As Sarmentos aceitaram logo, com muitos trejeitos de cortesia. Ele, interiormente contrariado, levou-as até às Mercês, onde moravam, ali mesmo, perto. Voltou pouco depois. — Recolha-se, doutor, trate de recolher-se... aconselhou-lhe Manuel, que o esperava de pé. O senhor deve estar com o corpo a pedir descanso... Raimundo confessou que sim, apertou-lhe a mão. “Boas noites, e obrigado”. — Até amanhã! Olhe! se precisar de qualquer coisa, chame pelo Benedito, ele dorme na varanda. Mas deve estar tudo lá; a Brígida é cuidadosa. Passe bem! Raimundo fechou-se no quarto; despiu-se, acendeu um cigarro e deitou-se. Abriu por hábito um livro; mas, no fim da primeira página, as pálpebras se lhe fechavam. Soprou a vela. Então sentiu um bem-estar infinito, profundamente agradável; abraçou-se aos travesseiros e, antes que algum dos acontecimentos desse dia lhe assaltasse o espírito, adormeceu. Todavia, a pouca distância dali, alguém velava, pensando nele. 5 Era Ana Rosa. Logo que ela se recolhera ao quarto, gritara pela Mônica. — Mãe-pretinha! Assim tratava a cafuza que a criara e que dormia todas as noites debaixo da sua rede... — Mãe-pretinha! Ó senhores! — O que é, Iaiá? Não se agaste! — Você tem um sono de pedra! oh! Deu um estalo com a língua. — Dispa-me! E estendeu-se negligentemente em uma cadeira, entregando à criada os pés pequeninos e bem calçados. Mônica tomou-os, com amor, entre as suas mãos negras e calejadas; descalçou-lhe cuidadosamente as botinas, sacou-lhe fora as meias; depois, com um desvelo religioso, como um devoto a despir a imagem de Nossa Senhora, começou a tirar as roupas de Ana Rosa; desatou-lhe o cadarço das anáguas; desapertou-lhe o colete e, quando a deixou só em camisa, disse, apalpando-lhe as costas: — Iaiá? vossemecê está tão suada!... E correu logo ao baú. A senhora pusera-se a cismar, distraída, coçando de leve a cintura, o lugar das ligas e as outras partes do seu corpo que estiveram comprimidas por muito tempo. Mônica voltou com uma camisola toda cheirosa, impregnada de junco, a qual, abrindo-a com os braços, enfiou pela cabeça de Ana Rosa, esta ergueu-se e deixou cair a seus pés a camisa servida e conchegou a outra à pele, afagando os seus peitos virgens num estremecimento de rola. Depois suspirou baixinho e deu uma carreira para a rede, na pontinha dos pés, como se não quisesse tocar no chão. A cafuza ajuntou zelosamente a roupa dispersa pelo quarto e guardou as jóias. — Iaiá quer mais alguma coisa? — Água, disse a moça, aninhando-se já nos lençóis defumados de alfazema. Só se lhe via a graciosa cabeça, saindo despenteada dentre nuvens de pano branco. A cafuza trouxe-lhe uma bilha de água, e a senhora, depois de servida, beijou-lhe a mão. — Boas noites mãe-pretinha. Abaixe a luz e feche a porta. — Deus te faça uma santa! respondeu Mônica, traçando no ar uma cruz com a mão aberta. E retirou-se humildemente, toda bons modos e gestos carinhosos. Mônica orçava pelos cinqüenta anos; era gorda, sadia e muito asseada; tetas grandes e descaídas dentro do cabeção. Tinha ao pescoço um barbante, com um crucifixo de metal, uma pratinha de 200 réis, uma fava de cumaru, um dente de cão e um pedaço de lacre encastoado em ouro. Desde que amamentara Ana Rosa dedicara-lhe um amor maternalmente extremoso, uma dedicação desinteressada e passiva. Iaiá fora sempre o seu ídolo, o seu único “querer bem”, porque os próprios filhos, esses lhos arrancaram e venderam para o Sul. Dantes, nunca vinha da fonte, onde passava os dias a lavar, sem lhe trazer frutas e borboletas, o que, para a pequenita, constituía o melhor prazer desta vida. Chamava-lhe “sua filha, seu cativeiro” e todas as noites, e todas as manhãs, quando chegava ou quando saía para o trabalho, lançava-lhe a bênção, sempre com estas mesmas palavras: “Deus te faça uma santa! — Deus te ajude! Deus te abençoe!” Se Ana Rosa fazia em casa qualquer diabrura, que desagradasse a mãe-preta, esta a repreendia imediatamente, com autoridade; desde, porém, que a acusação ou a reprimenda partissem de outro, fosse embora do pai ou da avó, punia logo pela menina e voltava-se contra os mais. Havia seis anos que era forra. Manuel dera-lhe a carta a pedido da filha, o que muita gente desaprovou, “terás o pago!...” diziam-lhe. Mas a boa preta deixou-se ficar em casa dos seus senhores e continuou a desvelar-se pela Iaiá melhor que até então, mais cativa do que nunca. Ana Rosa, mal ficou sozinha, no aconchego confidencial da sua rede, íntima tranqüilidade do seu quarto, frouxamente iluminado à luz mortiça do candeeiro de azeite, principiou a passar em revista todos os acontecimentos desse dia. Raimundo avultava dentre a multidão dos fatos como uma letra maiúscula no meio de um período de Lucena; aquele rosto quente, de olhos sombrios, olhos feitos do azul do mar em dias de tempestade, aqueles lábios vermelhos e fortes, aqueles dentes mais brancos que as presas de uma fera, impressionavam-na profundamente. “Que espécie de homem estaria ali!...” Procurava com insistência recordar-se dele em algum dos episódios da sua infância — nada! Diziam-lhe, entretanto, que brincara com ela em pequenino, e que foram amigos, companheiros de berço, criados juntos, que nem irmãos. E todas estas coisas lhe produziam no espírito um efeito muito estranho e singular. As meias sombras, as reservas e as reticências, com que a medo lhe falavam dele, ainda mais interessante o tornavam aos olhos dela. “Mas, afinal, quem seria ao certo aquele belo moço?... Nunca lho explicaram; paravam em certos pontos, saltavam sobre outros como por cima de brasas; e tudo isto, todos estes claros, que deixavam abertos a respeito do passado de Raimundo, todos esses véus em que o envolviam como a uma estátua que se não pode ver, emprestavam-lhe atrações magnéticas, um encanto irresistível e perigoso de mistério, uma fascinação romântica de abismo. Entontecia de pensar nele. O hibridismo daquela figura, em que a distinção e a fidalguia do porte harmonizavam caprichosamente com a rude e orgulhosa franqueza de um selvagem, produzia-lhe na razão o efeito de um vinho forte, mas de uma doçura irresistível e traidora; ficava estonteada; perturbava-se toda com a lembrança do contraste daquela fisionomia, com a expressão contraditória daqueles olhos, suplicantes e dominadores a um tempo; sentia-se vencida, humilhada defronte daquele mito; reconhecia-lhe certo império, certa preponderância que jamais descobrira em ninguém; quanto mais o comparava aos outros, mais o achava superior, único, excepcional. E Ana Rosa deixava-se invadir lentamente por aquela embriaguez, esquecendo-se, alheando-se de tudo, sem querer pensar em outro objeto que não fosse Raimundo. De repente surpreendeu-se a dizer: “Como deve ser bom o seu amor!...” E ficou a cismar, a fazer conjeturas, a julgá-lo minuciosamente, da cabeça aos pés. Parou nos olhos: “Quantos tesouros de ternura não estariam neles escondidos? neles, do feitio de amêndoas, banhados de bondade e cercados de pestanas crespas e negras, como os pêlos de um bicho venenoso; aquelas pestanas lembravam-lhe as sedas de uma aranha caranguejera.” Estremeceu, porém, vieram-lhe desejos de os apalpar com os lábios. “Como devia ser bom ouvir dizer — Eu te amo! — por aquela boca e por aquela voz!...” E ficava assustada, como se de fato, no silêncio da alcova, uma voz de homem estivesse a segredar-lhe, junto ao rosto, palavras de amor. Mas logo tornava a si com a idéia do porte austero e frio de Raimundo. Esta indiferença, ao mesmo tempo que lhe pungia e atormentava o orgulho, levantava-lhe, na sua vaidade de mulher, um apetite nervoso de ver rendida a seus pés aquela misteriosa criatura, aquele espectro inalterável e sombrio, que a vira e contemplara sem o menor sobressalto. E, entre mil devaneios deste gênero, com o sangue a percorrer-lhe mais apressado as artérias, conseguiu afinal adormecer, vencida de cansaço. E, quem pudesse observá-la pela noite adiante, vêla-ia de vez em quando abraçar-se aos travesseiros e, trêmula, estender os lábios, entreabertos e sôfregos, como quem procura um beijo no espaço. Na manhã seguinte acordara pálida e nervosa, à semelhança de uma noiva no dia imediato às núpcias. Faltava-lhe ânimo até para se preparar e sair do quarto: deixava-se ficar deitada na rede, a cismar, sem abrir de todo os olhos, cheia de fadiga. Parecia-lhe sentir ainda na face o calor do rosto de Raimundo. Decorreram duas horas e ela continuava na mesma irresolução; as pálpebras lânguidas; as narinas dilatadas pelo hálito quente e doentio; os beiços secos e ásperos; o corpo moído sob um fastio geral, que lhe dava espreguiçamentos de febre e má vontade. E, assim prostrada, deixava-se ficar entre os lençóis, tolhida de vexame e enleio, pelas loucuras da noite. A voz clara de Raimundo que conversava na varanda enquanto tomava café, despertou-a; Ana Rosa estremeceu, mas, num abrir e fechar de olhos, ergueu-se, lavou-se e vestiu-se. Ao fitar o espelho, achou-se feia e mal enjorcada, posto não estivesse pior que nos outros dias; endireitou-se toda, cobriu o rosto de pó-de-arroz, arranjou melhor os cabelos e escovou um sorriso. Apareceu lá fora com grande acanhamento; deu a Raimundo um “Bons dias” frio, de olhos baixos. Não podia encará-lo. Maria Bárbara já lá estava na labutação, a cuidar da casa, a dar voltas, a gritar com os escravos. — Olha esse bilhete da Eufrásia, disse ela, ao ver a neta. E passou-lhe uma tira de papel, engenhosamente dobrada em laço e com um galhinho de alecrim enfiado no centro. Ana Rosa teve um gesto involuntário de contrariedade. Aborrecia-lhe agora, sem saber por quê, a amizade da viúva, dela, que era até aí a sua íntima, a sua confidente, a sua melhor amiga; dos outros havia muito que se tinha enfastiado. O seu desejo, naquele instante, era ficar só, bem só, num lugar em que ninguém pudesse importuná-la. Serviu-se de uma xícara de café, deu-se por incomodada. — V. Ex.ª sente alguma coisa? perguntou Raimundo com delicadeza. Ana Rosa sobressaltou-se ligeiramente, ergueu os olhos, viu os do rapaz, abaixou logo os seus e entressorrindo, gaguejou: — Não é nada... Nervoso... — É isto! acudiu Maria Bárbara, que parara para ouvir a resposta da neta. Nervoso! Olhem que estas moças d’agora são tão cheias de tanta novidade e de tantas invenções!... É o nervoso! é a tal da enxaqueca! é o flato! é o faniquito! Ah, meu tempo, meu tempo!... Raimundo riu-se e Ana Rosa deu de ombros, simulando indiferença pelo que dizia a velha. — Não faça caso, moço! Esta menina está assim já de tempos, e ninguém me tira que foi quebranto que lhe botaram!... Raimundo tornou a rir, e Ana Rosa endireitou-se na cadeira em que acabava de assentar-se. “Esta vovó!... pensou ela envergonhada. Que idéia não ficará ele fazendo da gente!...” — Não se ria, nhô Mundico! não se ria, prosseguiu a sogra de Manuel, que aqui está — e bateu no peito — quem já andou de quebranto a dar-não-dá com os ossinhos no Gavião! E, tirando do seio um trancelim, com uma enorme figa de chifre encastoada em ouro:—Ai, minha rica figa, a ti o devo! a ti o devo, que me livraste do mau-olhado! — Mas, Sra. D. Maria Bárbara, conte-me como foi essa história do quebranto, pediu Raimundo. — Ora, o quê! Pois então o senhor não sabe que o mau-olhado, pegando uma criatura de Deus — está despachadinha?... Então, credo! que andou o senhor aprendendo lá por essas paragens que correu?! — V. Ex.ª, minha prima, também acredita no quebranto? interrogou o moço, voltando-se para Ana Rosa. — Bobagens... murmurou esta, afetando superioridade. — Ah, então não é supersticiosa?... — Não, felizmente. Além disso — e abaixou a voz, rindo-se mais — ainda que acreditasse, não corria risco... dizem que o quebranto só ataca em geral as pessoas bonitas... E sorriu para Raimundo. — Nesse caso, é prudente acautelar-se... volveu ele, galanteando. E, como se Ana Rosa lhe chamara a atenção para a própria beleza, passou a considerá-la melhor; enquanto a velha taramelava: — Meu caro senhor Mundico, hoj’em dia já não se acredita em coisa alguma!... por isso é que os tempos estão como estão — cheios de febres, de bexigas, de tísicas e de paralisias, que nem mesmo os doutores de carta sabem o que aquilo é! Diz que é “beribéri” ou não sei quê; o caso é que nunca vi, em dias de minha vida semelhante diabo de moléstia, e que o tal como-chama está matando de repente, que nem obra do sujo, credo! Até parece castigo! Deus me perdoe! Isto vai, mas é tudo caminhando para uma república! há de dar-lhes uma, que os faça ficar aí de dente arreganhado! Pois o que, senhor! se já não há tementes de Deus! já poucos são os que rezam!.. Hoje, com perdão da Virgem Santíssima — e bateu uma palmada na boca — até padres! até há padres que não prestam! Raimundo continuava a rir. — Quanto mais, observou ele, de bom humor, para a fazer falar, quanto mais se V. Ex.ª conhecesse certos povos da Europa meridional... Então é que ficaria pasma deveras! — Credo, minha Nossa Senhora! que inferno não irá por esse mundão de esconjurados! Por isso é que agora está se vendo o que se vê, benza-me Deus! E, benzendo-se ela própria com ambas as mãos, pediu que a deixassem ir dar uma vista de olhos pela cozinha. — É eu não estar lá e o serviço fica logo pra trás... Caem no remancho, diabo das pestes! Afastou-se, gritando, desde a varanda pela Brígida: “Que estavam a pingar as nove, e nem sinal de almoço!...” Raimundo e Ana Rosa ficaram a sós defronte um do outro, ela de olhos baixos, confusa, na aparência quase aborrecida; e ele, de cara alegre, a observá-la com interesse, gozando em contemplar, assim de perto, aquela provinciana simples e bem disposta, que se lhe afigurava agora uma irmã, de quem ele estivera ausente desde a infância. “Deve ser, com certeza, uma excelente moça... calculou de si para si. Pelo seu todo está a dizer que é boa de coração e honesta por natureza. Além do que, bonita...” Sim, que até aí Raimundo ainda não tinha reparado que sua prima era bonita. Notou-lhe então a frescura da pele, a pureza da boca, a abundância dos cabelos. Achou-a bem tratada; as mãos claras, os dentes asseados, a tez muito limpa, fina e lustrosa, na sua palidez simpática de flor do Norte. Principiaram a conversar, depois de algum silêncio, com muita cerimônia. Ele continuava a dar-lhe excelência, o que a constrangia um tanto, perguntou-lhe pelo pai. Que tinha ido para o armazém, como de costume, e só subiria para almoçar e para jantar. Daí, queixou-se da solidão em que vivia no aborrecimento daquela casa “Um cemitério de triste!...” Lamentou não ter um irmão e, em resposta a uma pergunta que lhe fez o rapaz, disse que lia para se distrair, mas que a leitura muitas vezes a fatigava também. O primo, se tinha um romance bom, que lho emprestasse. Raimundo prometeu ver entre os seus livros, logo que abrisse um caixão que ainda estava pregado. A propósito do romance, entrou a conversa pelas viagens. Ana Rosa lamentou não ter saído nunca do Maranhão. Tinha vontade de conhecer outros climas, outros costumes; entusiasmava-se com a descrição de certos lugares; falou, suspirando, da Itália. “Ah, Nápoles!...” — Não, não! objetou o rapaz. Não é o que V. Ex.ª supõe! Os poetas exageram muito! É bom não acreditar em tudo o que eles dizem, os mentirosos! E, depois de uma ligeira súmula das impressões recebidas na Itália, perguntou à prima se queria ver os seus desenhos. A menina disse que sim e Raimundo, muito solícito, correu a buscar o seu álbum. Logo que ele se levantou, Ana Rosa sentiu um grande alívio; respirou como se lhe houvessem tirado um peso das costas. Mas já não estava tão nervosa e até parecia disposta a rir e gracejar; é que Raimundo, no meio da conversa, dissera despretensiosamente que simpatizava muito com ela; que a achava interessante e bonita, e isto sem precisar de mais nada, tornou-a logo bem disposta e restituiu-lhe ao semblante a sua natural expressão de bom humor. Ele voltou com o álbum e abriu-o de par em par defronte da rapariga. Começaram a ver. Ana Rosa era toda atenção para os desenhos; enquanto Raimundo, ao seu lado, ia virando as folhas com os seus dedos morenos e roliços, e explicando as paisagens montanhosas da Suíça, os edifícios e os jardins de França, os arrabaldes de Itália. E contava os passeios que realizara, os almoços que tivera em viagem, as serenatas em gôndola; ia dizendo tudo o que aqueles desenhos lhe chamavam à memória: como chegara a certo lago; como passara tal ponte; como fora servido em tais e tais hotéis e o que sabia daquele chalezinho verde, que a aquarela representava escondido entre árvores sonolentas e misteriosas. Ana Rosa escutava com um silêncio de inveja. — Que é isto? perguntou ela, ao ver um esboço, que expunha dois bispos, já amortalhados dentro dos competentes caixões de defunto, como à espera do momento de baixarem a terra. Um estava imóvel, de mãos postas e olhos cerrados; o outro, porém, erguia-se a meio e parecia voltar à vida. Ao lado deles havia um frade. — Ah! fez ele rindo, e explicou: Isso é copiado de um quadro, que vi na sacristia do velho convento de São Francisco, da Paraíba do Norte. Não vale nada, como todos os quadros que lá estão, e não poucos, pintados sobre madeira; um colorido impossível; as figuras mal desenhadas, muito duras. Esse é um dos mais antigos; copiei-o por isso. Pura curiosidade cronológica. Vê esse escudo nas mãos do frade? Tenha a bondade de virar a página; que V. Ex.ª encontrará um soneto que aí estava escrito a pincel. Ana Rosa virou a folha e leu: “Este quadro, Leitor, onde a figura Vivo um Bispo te põe, que morto estava, Mostra quanto Francisco o estimava, Pois não quer vá com culpa à sepultura. Olha o outro defronte, em que a pintura Jugulado o expõe; este formava Contra a Ordem mil queixas, que esperava Fossem dos Frades trágico jatura. Tu agora, Leitor, que a diferente Sorte vês nestes dois acontecida Toma a ti a que for mais conducente: O primeiro ama a Ordem e torna à vida; O segundo a aborrece e o golpe sente. Ambos prêmios têm por igual medida.” — Quem há de gostar disto, é vovó... ela tem muita devoção com São Francisco! — Olhe! aí tem V. Ex.ª um dos pontos mais bonitos de Paris.— É desenho de um pintor meu amigo; muito forte! — Essas ruínas, que aparecem ao fundo, são das Tulherias. E passaram a conversar sobre a Guerra Franco-Prussiana, extinta pouco antes. Ana Rosa, sem desprender os olhos do álbum, via e ouvia tudo, com muito empenho; queria explicações; não lhe escapava nada. Raimundo, debruçado nas costas da cadeira em que ela estava, tinha às vezes de abaixar a cabeça para afirmar o desenho e roçava involuntariamente o rosto nos cabelos da rapariga. Ao virar de uma folha deram de súbito com um cartão fotográfico, que estava solto dentro do livro; um retrato de mulher sorrindo maliciosamente numa posição de teatro: com as suas saias de cambraia, curtíssimas, formando-lhe uma nuvem vaporosa em torno dos quadris; colo nu, pernas e braços de meia. — Oh! articulou a moça, espantando-se como se o retrato fosse uma pessoa estranha que viesse entremeter-se no seu colóquio. E, maquinalmente, desviou os olhos daquele rosto expressivo que lhe sorria do cartão com um descaramento muito real e uma ironia atrevida. Declarou-a logo detestável. — Ah, certamente!... É uma dançarina parisiense, explicou Raimundo, fingindo pouco caso. Tem algum merecimento artístico... E, tomando a fotografia com cuidado, para que Ana Rosa não percebesse a dedicatória nas costas do retrato, colocou-a entre as folhas já vistas do álbum. Ao terminarem, ele falou muito da Europa e, como a música viesse à conversa, pediu a Ana Rosa que tocasse alguma coisa antes do almoço. Passaram-se para a sala de visitas, e ela, com um grande acanhamento e um pouco de desafinação, executou vários trechos italianos. Benedito apareceu à porta de corpo nu. — Iaiá! Sinhô está chamando pra mesa. O almoço correu pilheriado e alegre. O cônego Diogo viera, a convite de Manuel, no propósito de saírem os dois, mais o Raimundo, para dar uma vista d’olhos pelas casinhas de São Pantaleão. Servida a segunda mesa, os caixeiros subiram com grande ruído de pés. Por esse tempo aqueles três surgiam na rua, formando cada qual mais vivo contraste com os outros: Manuel no seu tipo pesado e chato de negociante, calças de brim e paletó de alpaca; o cônego imponente na sua batina lustrosa, aristocrata, mostrando as meias de seda escarlate e o pé mimoso, apertadinho no sapato de polimento; Raimundo, todo europeu, elegante, com uma roupa de casimira leve, adequada ao clima do Maranhão, escandalizando o bairro comercial com o seu chapéu-de-sol coberto de linho claro e forrado de verde pela parte de dentro. “Formavam, dizia este último, chasqueando, sem tirar o charuto da boca uma respeitável trindade filosófica, na qual, ali, o Sr. Cônego representava a teologia, o Sr. Manuel a metafísica, e ele, Raimundo, a filosofia positiva, o que, aplicado à política, traduzia-se na prodigiosa aliança dos três governos — o do papado, o monárquico e o republicano!” Ana Rosa espreitava-os e seguia-os com a vista, curiosa, por entre as folhas semicerradas de uma janela. Por onde seguiam, Raimundo ia levantando a atenção de todos. As negrinhas corriam ao interior das casas, chamando em gritos a sinhá-moça para ver passar “Um moço bonito!” Na rua, os linguarudos paravam com ar estúpido, para examiná-lo bem; os olhares mediam-no grosseiramente da cabeça aos pés, como em desafio; interrompiam-se as conversas dos grupos que ele encontrava na calçada. — Quem é aquele sujeito, que ali vai de roupa clara e um chapéu de palha? — Or’essa! Pois ainda não sabes? respondia um Bento. É o hóspede de Manuel Pescada! — Ah! este é que é o tal doutor de Coimbra? — O cujo! afirmava o Bento. — Mas Brito, vem cá! disse o outro, com grande mistério, como quem faz uma revelação importante. — Ouvi dizer que é mulato!... E a voz do Brito tinha o assombro de uma denúncia de crime. — Que queres, meu Bento? São assim estes pomadas cá da terra dos papagaios! E ainda se zangam quando queremos limpar-lhes a raça, sem cobrar nada por isso! — Branquinho nacional! É gentinha com quem eu embirro, ó Bento, como com o vento, disse Brito com uma troca e baldroca de VV e BB, que denunciava a sua genealogia galega. Em outra parte, dizia-se: — Olé! Um cara nova? Que achado! — É o Dr. Raimundo da Silva... — Médico? — Não. Formado em Direito. — Ah! É advogado? Que faz ele? do que vive? o que possui? — Vem advogar a própria causa por cá! Está tratando do que lhe pertence e do que lhe não pertence! — O que me conta você, homem?... — Coisas da vida, meu amigo! Estes doutores pensam que aqui os casamentos ricos andam a ufa!... Em uma casa de família: — Sabem? passou por aí o Raimundo! — Que Raimundo? perguntam logo em coro. — Aquele mulato, que diz que é doutor, e está às sopas do Manuel Pescada! — Dizem que ele tem alguma coisa... — Pulha, minha rica, todos estes aventureiros, que arribam por cá, trazem o rei na barriga! — E o Pescada para que o quer em casa? —Qual quer o quê! O Manuel despachou-o bonito, porem o mitra deixou-se ficar! — Sempre há muita gente sem-vergonha!... Em outras partes, juraram que Raimundo era filho do cônego Diogo e que vinha dos estudos; ainda noutras, viam em Raimundo uma carta do Partido Conservador; o redator do “Maritacaca” dizia a um correligionário: “Espere um pouco! deixe chegarem as eleições e então você verá este sujeito de cama e mesa com o presidente. Olhe! eles hão de dar-se perfeitamente, porque, tanto cara de safado tem um, como o outro!” E assim ia Raimundo, sendo inconscientemente, objeto de mil comentários diversos e estúpidas conjeturas. À noite estava fechado o negócio das casas, e decidido que, mal fizesse bom tempo, iria ele ao Rosário com o Manuel, resolver o da fazenda. No dia imediato, Raimundo deu um passeio ao Alto da Carneira; no outro dia foi até São Tiago; no outro percorreu a praça do Mercado; foi três ou quatro vezes ao Remédios; repetiu a visita aos pontos citados e — não tinha mais onde ir. Meteu-se em casa, disposto a cultivar as relações familiares do tio e visitá-las de vez em quando, para se distrair; mas, posto lhe repetissem com insistência que o Maranhão era uma província muito hospitaleira, como é de fato, reparava despeitado, que, sempre e por toda a parte, o recebiam constrangidos. Não lhe chegava as mãos um só convite para baile ou para simples sarau; cortavam muita vez a conversação, quando ele se aproximava; tinham escrúpulo em falar na sua presença de assuntos, aliás, inocentes e comuns; enfim — isolavam-no, e o infeliz, convencido de que era gratuitamente antipatizado por toda a província, sepultou-se no seu quarto e só saía para fazer exercício, ir a uma reunião pública, ou então quando algum dos seus negócios o chamava à rua. Todavia, uma circunstância o intrigava, e era que, se os chefes de família lhe fechavam a casa, as moças não lhe fechavam o coração; em sociedade o repeliam todas, isso e exato, mas em particular o chamavam para a alcova. Raimundo via-se provocado por várias damas, solteiras, casadas e viúvas, cuja leviandade chegava ao ponto de mandarem-lhe flores e recados, que ele fingia não receber, porque, no seu caráter educado, achava coisa ridícula e tola. Muitos e muitos dias não se despregava do quarto, senão para comer ou, o que sucedia com freqüência, para ir à varanda dar dois dedos de palestra à prima. Estes cavacos faziam-se pelo alto dia, a horas de mais calor, e, muita vez, também à noite, das sete às nove, durante o serão. O rapaz, sempre respeitoso, assentava-se, defronte da máquina em que Ana Rosa cosia, e com um livro entre os dedos ou a rabiscar algum desenho, conversavam tranqüilamente, com grandes intervalos. Às vezes dava-lhe para pedir explicações sobre a costura; queria saber, com um interesse pueril e carinhoso, o modo de arrematar as bainhas, de tirar os alinhavos; outras vezes, distraídos, falavam de religião, política, literatura, e Raimundo, de bom humor, concordava em geral com tudo o que ela entendia, mas, quando lhe dava na cabeça, discordava, de manhoso, para que a menina se exaltasse, discorresse sobre o ponto, e ralhasse com ele, procurando, muito séria, chamá-lo a verdade religiosa, dizendo-lhe “que não fosse maçom e respeitasse a Deus!” Raimundo, que nunca, depois de homem, vivera na intimidade da família, dedicava-se com aquilo. D. Maria Bárbara, porém, vinha quase sempre quebrar com o seu mau gênio aquele remanso de felicidade. Era cada vez mais insuportável o diabo da velha! berrava horas inteiras; tinha ataques de cólera; não podia passar muito tempo sem dar pancadas nos escravos. O rapaz, por diversas vezes, enterrara o chapéu na cabeça e saíra protestando mudar-se. — Que carrasco! Dizia ele pela escada, a descer a quatro e quatro os degraus. Dá bordoada por gosto! Diverte-se em fazer cantar o relho e a palmatória! E aquele castigo bárbaro e covarde revoltava-o profundamente, punha-o triste, dava-lhe ímpetos de fazer um despropósito na casa alheia. “Estúpidos!” exclamava a sós, indignado. Mas, como a mudança não fosse tão fácil, contentava-se ele com o passar uma parte do dia no bilhar do único restaurante da província, não sem pena de abandonar as inocentes palestras da varanda. Em breve criou fama de jogador e bêbedo. O fato era que, por tudo isto, lhe minava o espírito uma surda repugnância pela província e contra aquela maldita velha. Quando o estalo do chicote ou dos bolos rebentava no quintal ou na cozinha, Raimundo repelia a pena com que trabalhava no quarto. — Lá está o diabo! Nem me deixa fazer nada! arre! E saía furioso para o bilhar. Ora, Ana Rosa, era também contra o castigo, e o procedimento da avó foi um pretexto para a sua primeira solidariedade de pontos de vista com o primo; os dois conversavam em voz baixa contra Maria Bárbara, e esta conspiração aproximava-os mais um do outro, unia-os. Mas um belo dia, em que o Benedito levou uma mela mais estirada, Raimundo chegou-se a Manuel e falou-lhe resolutamente em mudança. “Que sabia estava incomodando e não queria abusar. O Sr. Manuel que tivesse paciência e lhe arranjasse uma casinha mobiliada e um criado...” — O quê, homem!... protestou logo Manuel, a quem não convinha a mudança do seu hóspede antes de realizada a compra da fazenda. O doutor pensa que está na Europa ou no Rio?... Pois então casinhas mobiliadas e com criado, isto é lá coisa que se encontre por cá?... Ora deixe-se disso! E, como o sobrinho insistisse, continuou declarando que semelhante exigência, sobre ser quase inexeqüível, acarretava para ele, Manuel, certa odiosidade. “Que não diriam por aí?... Diriam que Raimundo fora tão maltratado pelos parentes de seu pai que preferira sepultar-se entre quatro paredes a ter de aturá-los!” — Não senhor! concluiu ele, afagando-lhe o ombro com uma palmada, deixe-se ficar cá em casa, pelo menos até o verão — em agosto, iremos juntos ver a fazenda — e, como por esse tempo já todos os seus negócios estarão liquidados, ou o senhor volta para a Corte, ou se instala aqui mesmo na província, porém com decência! Não lhe parece isto acertado? Para que fazer as coisas malfeitas?... Raimundo consentiu afinal, e, desde então, esperava o mês de agosto com uma impaciência de faminto. Não era tanto a vontade de fugir a Maria Bárbara o que lhe fazia desejar com tamanha febre aquela viagem ao Rosário, mas o empenho, a sede velha de tornar a ver o lugar, em que lhe diziam, tão secamente, ter ele nascido e vivido os seus primeiros anos. “E daí, quem sabe lá se não iria encontrar a decifração do mistério da sua vida?...” Esperou, e na espera entretinha-se todos os dias com Ana Rosa, tanto e com tal satisfação, que ainda nos princípios de junho, confessava já não lamentar a dificuldade da mudança. Ao contrário, pressentia até que já não podia realizá-la, sem sofrer pela falta daquele conchegozinho de família; sem curtir grandes saudades por aquela irmã, sua amiga, franca e delicada, que lhe dera a provar pela primeira vez o suavíssimo prazer da convivência em família. Efetivamente, a filha de Manuel já era muito chegada a Raimundo. O tratamento de excelência desaparecera como inútil entre parentes que se estimam; os sustos, os sobressaltas, as desconfianças, que dantes a acometiam na presença daquele moço austero e na aparência tão pouco comunicativo, foram substituídos, graças às providências do negociante sobre Maria Bárbara, por momentos agradáveis, cheios de doçura, em que o primo, ora contava com graça as peripécias de uma jornada; ora desenhava a lápis a caricatura dos conhecidos da casa; ora solfejava alguma melodia alemã ou algum romance italiano; ou, quando menos, lia versos e contos escolhidos. Ana Rosa sentia em tudo isso um grande encanto, mas incompleto: Raimundo, pelos modos, parecia que lhe não tributava mais do que respeitosa amizade de irmão; e isto, para ela, não bastava. Raro era o dia em que a moça sob qualquer pretexto, não lhe fazia uma carícia disfarçada; dizia por exemplo: “Esta varanda é muito fresca... Não acha primo? Olhe, veja como tenho as mãos frias...” E entregava-lhe as mãos, que ele tenteava frouxamente, com medo de ser indiscreto. Outras vezes fingia reparar que o rapaz tinha os dedos muito longos e vinha-lhe à fantasia medi-los com os seus, ou queixava-se de ameaças de febre e pedia-lhe que lhe tomasse o pulso. Mas, a todas estas dissimulações da ternura, a todas estas tímidas hipocrisias do amor, sujeitava-se ele frio, indiferente e por vezes distraído. Este pouco caso desesperava-a; doía-lhe aquela falta de entusiasmo, aquele nenhum carinho, por ela, que tanto se desvelava em merecê-lo. Certos dias a pobre moça aparecia sem querer dar-lhe palavra e com os olhos vermelhos e pisados; Raimundo atribuía tudo a qualquer indisposição nervosa e procurava distraí-la por meio da conversa, da música, sem nunca lhe falar do aspecto triste e abatido que lhe notava; tinha receio de impressioná-la e só conseguia afligi-la mais, porque Ana Rosa, quando, ao levantar-se da rede, se percebia pálida e triste, esforçava-se por conservar intacta na fisionomia a expressão da sua mágoa, na esperança de comovê-lo; de ser interrogada por ele, de ter enfim uma ocasião de confessar-lhe o seu amor. O ar friamente atencioso de Raimundo, as suas perguntas calmas, cristalizadas pela delicadeza, com que ele se informava da saúde da prima, a imperturbabilidade médica com que falava daquelas tristezas, daquela insônia e daquela falta de apetite, a formal condescendência que afetava, como por obséquio a uma pobre convalescente que se não deve contrariar, enchiam-na de raiva e despedaçavam-lhe a esperança de ser correspondida. Uma ocasião, em que ela se lhe apresentou muito mais desfeita e pálida, Raimundo chamou a atenção de Manuel para a saúde da filha: — Tenha cuidado! disse-lhe. Aquela idade é muito perigosa nas mulheres solteiras... Talvez fosse acertado uma viagem... Em todo o caso, não há efeito sem causa... É bom consultar o médico. Manuel coçou a cabeça, em silêncio; a verdadeira causa já o Jauffret lhe havia declarado; mas, como Raimundo voltasse à questão e pintasse o caso muito feio, insistindo em que era preciso fazer alguma coisa, teve o bom português, nessa mesma tarde, uma conferência com o compadre e com o seu caixeiro Dias a quem prometeu sociedade comercial, na hipótese de que se efetuasse para o seguinte mês, como ficava resolvido, o casamento dele com Ana Rosa. — Mas a D. Anica levará em gosto?... perguntou o Dias, abaixando os olhos, com o melhor sorriso hipócrita do seu repertório. — Naturalmente... respondeu Manuel, porque da última vez que lhe toquei nisso, ela deu-me esperança... agora é provável que dê certeza! — De não casar talvez! observou o cônego. — Como não casar?... — Como? Eu lho digo... E o cônego apresentou as suas razões, fez bons argumentos, estabeleceu premissas, tirou conclusões, citou máximas latinas, e declarou que aquela hospedagem do cabrocha, no seio da família, nunca fora do seu gosto; e que, para se tratar do casamento de Ana Rosa, a primeira coisa a fazer era afastá-lo da casa. Mas o negociante, que colocava os seus interesses pecuniários acima de tudo, abanou as orelhas às palavras do compadre, e descreveu a atitude respeitosa e desinteressada de Raimundo ao lado de Ana Rosa; falou no empenho com que o sobrinho quis mudar-se; no seu horror pela província; no seu entusiasmo pela Corte; e lembrou que fora ele próprio até, coitado! quem provocara aquela conferência dos três. Terminou dizendo que, por esse lado, nada temia. Além de que, depositava bastante confiança no bom senso de sua filha. “Não! por aí podiam estar descansados! Não havia perigo a recear!” — Veremos... veremos... Enquanto não assistir ao casamento deste aqui com a minha afilhada, estou no que disse!... Cui fidas vide! E o cônego assoou-se com estrondo. Nessa mesma noite, Manuel, aproveitando a ausência do hóspede, levou a filha ao quarto de Maria Bárbara. A velha embalava-se na rede, “bebendo” o seu fumo de corda no cachimbo e fitando um velho oratório de pau-santo. Ana Rosa, intrigada com a situação, encostou-se a uma cômoda, e o pai, depois de discorrer sobre várias coisas indiferentes, disse que, no dia seguinte, viriam as amostras da casa do Vilarinho, para a noiva escolher as fazendas do seu enxoval! — Quem vai casar?... perguntou a menina, num alvoroço. — Faze-te desentendida, minha sonsa!... Ora qual de nós aqui tem mais cara de noivo — eu ou tua avó?... E Manuel fez uma festinha no queixo da filha. — Casar! eu? mas com quem, papai? E Ana Rosa sorriu, porque calculou que Raimundo a pedira em casamento. — Ora com quem havia de ser, minha disfarçada? E desta vez foi Manuel que riu, iludido pelo bom acolhimento que a filha dera à notícia. — Não sei, não senhor... respondeu ela, com ar de quem sabe perfeitamente. Com quem é?... — Anda lá, sonsinha? Não sabes outra coisa!... E, enquanto Ana Rosa parecia muito ocupada em raspar com a unha uns pingos de cera velha, espalhados pela madeira da cômoda, continuou o negociante: — Mas por que não me falaste com franqueza há mais tempo, sua caprichosa, fazendo o pobre rapaz supor que o não querias?... Ana Rosa ficou séria. O pai acrescentou: — A fazê-lo, coitado! andar por aí tão derreado, que até metia dó!... — Como?! — Pois então não sabes como andava o nosso Dias?... — O Dias?! interrogou Ana Rosa empalidecendo. E fez-se muda, a cismar; só despertou, com estas palavras: — Ora senhores!... Tem graça! — Tem graça, não senhora! vossemecê disse que o aceitava para marido! Que diabo quer dizer agora esta mudança?... Ah, que temos mouros na costa!... Bem me dizia o compadre!... — Não sei o que lhe disse o padrinho, mas o que eu lhe digo, papai, é que definitivamente não me casarei com o Dias. Nunca, percebe? — Mas, Anica, tu, se já não o queres, é porque tens outro de olho!... — Não sei não senhor... E abaixou os olhos. — Bem! vê lá! Isto já me vai cheirando mal!... Ora dizes uma coisa; ora dizes outra!.. O mês passado respondeste-me na varanda: “Pode ser” e agora, às duas por três, dizes que não! Sabes que só quero a tua felicidade... não te contrario.. mas tu também não deves abusar!... — Mas, gentes, o que foi que eu fiz?... — Não estou dizendo que fizesses alguma coisa!... Só te aviso que prestes toda a atenção na tua escolha de noivo!.. Nem quero imaginar que seria capaz de escolher uma pessoa indigna de ti!... — Mas, como, papai?... Fale claro! — Isto vai a quem toca! Não sei se me entendes!... — Ora, seu Manuel! exclamou Maria Bárbara, levantando-se e pousando no chão o enorme cachimbo de taquari do Pará. Você às vezes tem lembranças que parecem esquecimento! Pois então, uma menina, que eu eduquei, ia olhar... — E gritou com mais força — para quem, seu Manuel!? — Bem, bem... — Vejam se não é mesmo vontade de provocar uma criatura!... — Bem, bem! Eu não digo isto para ofender!... desculpou-se o negociante. Mas é que temos cá um rapaz bem-aparecido, que... — Um cabra! berrou a sogra. E era muito bem feito que acontecesse qualquer coisa, para você ter mais cuidado no futuro com as suas hospedagens! Também só nessa cabeça entrava a maluqueira de andar metendo em casa crioulos cheios de fumaças! Hoje todos eles são assim! Súcia de apistolados! Dá-se-lhes o pé e tomam a mão! Corja! Julgue-se mas é muito feliz em não lhe ter recebido o coice! porém fique você sabendo que só a mim o deve!—sei a educação que dei a minha neta!... por esta respondo eu!.. E, quanto ao cabra... é tratar de despachá-lo já, e já, se não quiser ao depois ter de pegar-se com trapos quentes!... — Pois bem, pois bem, senhora! Amanhã mesmo tratarei disso! Oh! E Manuel pensou logo em aconselhar-se com o cônego. Ana Rosa continha o choro. — Vou para meu quarto! disse ela, com mau modo. — Ouça!... opôs-lhe o pai, detendo-a. A senhora... — Não diga asneiras!... atalhou a velha, empurrando a neta para fora. Vai-te! e reza à Virgem Santíssima para que te proteja e te dê juízo! Ana Rosa fechou-se, no seu quarto, rezou muito, não quis tomar chá, e soluçou até às quatro horas da manhã. No dia seguinte, Manuel, depois de entender-se com o compadre, preveniu a Raimundo que se preparasse para ir ao Rosário. — Estou às suas ordens, mas o senhor tinha dito que iríamos no mês de agosto. — É certo! porém o tempo está seco e para a semana temos lua cheia. Podemos ir no sábado Convém-lhe? — Como quiser... estou pronto. E, daí a pouco, Raimundo foi ao quarto verificar se os seus pertences de viagens, a borracha de aguardente, as botas de montar, as esporas e o chicote, achavam-se em bom estado de servir. Estranhou encontrar tudo isso mexido e remexido de muito fresco, como se alguém houvera se servido daqueles objetos. Já não era o primeiro reparo que fazia desse gênero; por outras vezes quis lhe parecer que alguém curioso de mau gosto se divertia a remexer-lhe os papéis e a roupa. “Talvez bisbilhotice do moleque!” Mas, no dia seguinte, por ocasião de deitar-se, achou sobre o travesseiro um atracador de tartaruga preso a um laço de veludo preto. Reconheceu logo estes objetos; pertenciam a Ana Rosa. “Mas, como diabo vieram eles, imoralmente, parar ali, na sua cama?... Havia nisso, com certeza, um mistério ridículo, que convinha pôr a limpo!...” Lembrou-se então de ter ficado uma vez muito intrigado por descobrir, na escova e no pente de seu uso, fios compridos de cabelo, cabelo de mulher, sem dúvida, e mulher branca. Já maçado, resolveu passar busca minuciosa em todo o quarto e encontrou os seguintes corpos de delito: dois ganchos de pentear, um jasmim seco, um botão de vestido e três pétalas de rosa. “Ora, estes objetos lhe pertenciam tanto quanto o pentinho de tartaruga e o laço de veludo.. Quem fazia a limpeza e arrumava o quarto era o Benedito; este também não usava laços nem ganchos na cabeça... Logo, como havia pensado, alguém se divertia em vir, na sua ausência, revistar o que era dele, e esse alguém só poderia ser Ana Rosa!... Mas, que diabo vinha ela fazer ali?... Como adivinhar o fim daquelas visitas extravagantes?... Seria simples curiosidade ou andaria naquilo a base de alguma intriga maranhense, tramada contra o morador do quarto, ou talvez, quem sabe? contra a pobre menina?... Fosse o que fosse, em todo o caso, era urgente pôr cobro a semelhante patacoada!” Desde esse dia, Raimundo prestou atenção a todos os objetos que deixava no quarto; marcou o ponto em que ficava o álbum, o despertador um livro, o estojo de barba ou qualquer coisa, que o moleque não precisasse tirar do lugar para fazer a limpeza. E com estas experiências, cada vez mais se convencia das visitas misteriosas; os corpos de delito reproduziam-se escandalosamente; uma vez encontrou toda riscada à unha a cara da dançarina, cuja fotografia ele, com tanto cuidado, escondera de sua prima, porque nas costas do cartão, havia a seguinte dedicatória: A mon brésilien bien-aimé, Raymond. Que dúvida! Todas as suspeitas recaíam sobre a bela filha do dono da casa! A graça, porém, é que Raimundo, apesar de não agradar à sua índole de homem sério e franco, tudo que cheirasse a subterfúgio e ilegalidade, sentia no entanto certo gosto vaidoso em preocupar tanto a imaginação de uma mulher bonita; lisonjeava-lhe aquele interesse, aquela espécie de revelação tímida e discreta; gostou de perceber que seu retrato era, de todos os objetos, o mais violado, e, como bom polícia chegou a descobrir-lhe manchas de saliva, que significavam beijos. Mas, ou fosse levado pela curiosidade, ou fosse na desconfiança de ser tudo aquilo obra de algum patife, ou fosse, enfim, porque o fato repugnasse ao seu caráter honesto, verdade é que deliberou aproveitar a primeira oportunidade para acabar com aquela mistificação. Poucos dias depois, saindo de casa e demorando-se defronte da porta a conversar com alguém, viu da rua fecharem cuidadosamente as rótulas do seu quarto. Não hesitou — subiu pé ante pé, atravessou a varanda deserta, e foi direito ao seu aposento. 6 Ana Rosa, com efeito, de algum tempo a essa parte, fazia visitas ao quarto de Raimundo, durante a ausência do morador. Entrava disfarçadamente, fechava as rótulas da janela, e, como sabia que o morador não aparecia àquela hora, começava a bulir nos livros, a remexer nas gavetas abertas, a experimentar as fechadas, a ler os cartões de visita e todos os pedacinhos de papel escrito, que lhe caíam nas mãos. Sempre que encontrava um lenço já servido no chão ou atirado sobre a cômoda apoderava-se dele e cheirava-o sofregamente, como fazia também com os chapéus de cabeça e com a travesseirinha da cama. Estas bisbilhotices deixavam-na caída numa enervação voluptuosa e doentia, que lhe punha no corpo arrepios de febre. Uma vez encontrou uma banda de luva cor de cinza, esquecida atrás de uma das malas calçou-a logo, com avidez e facilidade, e pôs-se a fixá-la muito, a interrogá-la com os olhos, abrir e fechar a mão, distraída, acompanhando as rugas da pelica. E esta luva arrancava-lhe conjeturas sobre o passado de Raimundo; fazia-lhe imaginar os bailes ruidosos de Paris, as festas, os passeios, as estações dos caminhos de ferro, as manhãs frescas em viagem de mar, as ceias nos hotéis, as corridas a cavalo e toda uma vida de movimento, de gargalhadas, de almoços com mulheres; uma existência que se desenrolava defronte da sua imaginação, como um panorama feito com os desenhos do álbum de Raimundo, e em cujo primeiro plano atravessava este, rindo, fumando, braço dado à dançarina da fotografia, que lhe dizia, cheia de um amor teatral: “Raymond! mon bien-aimé!” Foi num desses sonhos que Ana Rosa, irrefletidamente, arranhou o rosto do retrato, com a mesma raiva com que no colégio fazia outro tanto aos judeus mal desenhados do seu compêndio de doutrina cristã. Aquelas visitas eram agora toda a sua preocupação; os seus melhores instantes eram os que passava ali, entregue de corpo e alma àquele segredo; o resto do tempo servia apenas para esperar a hora do prazer querido; e quando, por qualquer motivo, não podia realizá-lo ficava insuportavelmente frenética e nervosa. Até já nem queria saber das amigas; tomara-se de birra pela Eufrasinha e não pagava uma só das visitas que lhe faziam. E nem por sombras lhe falassem de festas e divertimentos — seu único divertimento, a sua única festa era estar lá, naquele quarto proibido, sozinha, à vontade, conversando intimamente com os objetos de Raimundo, lendo os seus papéis, mexendo em tudo a palpitar num gosto novo e desconhecido, secreto, cheio de sobressaltos, quase criminoso; saboreando aos poucos, em goles compassados, como um vinho bom, gozos extremamente fortes, violentos; sentindo-se embriagar, consumir, absorver por aquela loucura de perseguir um nada, uma esperança que lhe fugia, que a atormentava, porém melhor e mais deliciosa, para ela, que os melhores e mais brilhantes prazeres da sociedade. No dia em que Raimundo subira, pé ante pé, ao seu quarto, Ana Rosa tinha entrado havia pouco e, como de costume, fechara-se por dentro. O ambiente fizera-se de um tom morno e duvidoso, em que havia mescla de claridade e sombra. Ela, depois de varrer o olhar em torno de si, assentara-se na cama e tomara, distraidamente, de uma cadeira ao lado, no lugar do velador, um tratado de fisiologia que o rapaz estivera a ler na véspera, antes de dormir, e que havia deixado junto ao castiçal, marcado pela caixa de fósforos. Ao abrir o livro, Ana Rosa soltou logo uma envergonhada exclamação: dera com um desenho, em que o autor da obra, com a fria sem-cerimônia da ciência, expunha aos seus leitores uma mulher no momento de dar à luz o filho. A fidelidade, indecorosa e séria, da estampa, produziu no ânimo da moça uma impressão estranha de respeito e de vexame. Sem compreender cabalmente o que tinha diante dos olhos, fixava a página, voltando-a de um para outro lado, à procura de entender melhor. Virou algumas folhas e, com o pouco que sabia do francês, tentou apanhar o sentindo do que vinha escrito sobre os vários fenômenos da gestação e do parto; ao chegar, porém, a uma das gravuras, fechou o livro com ímpeto e olhou em torno, como para certificar-se de que estava completamente só. Tinha visto de surpresa um espetáculo, que os seus sentidos ainda mal formulavam por instinto — o ato da fecundação. Fizera-se cor de romã e repelira o indiscreto volume com um ligeiro e espontâneo movimento do seu pudor, mas, pouco depois, pensando bem no caso, convencendo-se de que tudo aquilo não era feito por malícia, mas, ao contrário, para estudo, muniu-se de coragem e afrontou a página. Aquele desenho abriu-se, defronte dela, como um postigo, para um mundo vasto e nebuloso, um mundo desconhecido, povoado de dores, mas ao mesmo tempo irresistível; estranho paraíso de lágrimas, que simultaneamente a intimidava e atraía. Observou-o com profunda atenção, enquanto dentro dela se travava a batalha dos desejos. Todo o ser se lhe revolucionou; o sangue gritava-lhe, reclamando o pão do amor; seu organismo inteiro protestava irritado contra a ociosidade. E ela então sentiu bem nítida a responsabilidade dos seus deveres de mulher perante a natureza, compreendeu o seu destino de ternura e de sacrifícios, percebeu que viera ao mundo para ser mãe; concluiu que a própria vida lhe impunha, como lei indefectível, a missão sagrada de procriar muitos filhos, sãos, bonitos, alimentados com seu leite, que seria bom e abundante, e que faria deles um punhado de homens inteligentes e fortes. E tinha já defronte dos seus olhos os seus queridos filhinhos, nus, muito tenros e roliços, com a moleira descascando, os pezinhos vermelhos, narizinhos quase imperceptíveis, pequeninas bocas desdentadas, a lhe chuparem os peitos, com a engraçada sofreguidão irracional das criancinhas. E, a pensar neles, enlanguescia toda, numa postura indolente e comovida — os braços estendidos sobre as coxas, a cabeça mole, pendida para o seio, o olhar quebrado, fito, com preguiça de mover-se, o livro descansado nos joelhos, entre os dedos insensibilizados. E cismava: “Sim, precisava casar, fazer família, ter um marido, um homem só dela, que a amasse vigorosamente!” E via-se dona-de-casa, com o molho das chaves na cintura — a ralhar, a zelar pelos interesses do casal, cheia de obrigações, a evitar o que contrariasse o esposo, a dar as suas ordens para que ele encontrasse o jantar pronto. E queria fazer-lhe todas as vontades, todos os caprichos — tornar-se passiva, servi-lo como uma escrava amorosa, dócil, fraca, que confessa sua fraqueza, seus medos, sua covardia, satisfeita de achar-se inferior ao seu homem, feliz por não poder dispensá-lo. E cismava, muito, muito, no marido, e esse marido aparecia-lhe na imaginação sob a esbelta figura de Raimundo. Nisto, abriu-se por detrás dela o cortinado da cama, com um leve rumor de rendas engomadas. Ana Rosa voltou-se em sobressalto e deu, cara a cara, com Raimundo, que a fitava repreensivo, soltou um grito e tentou fugir. O livro caiu ao chão, escancarando uma página, onde se via desenhado o interior de um ventre, cheio com o seu grande novelo de tripas amarelas e cor-de-rosa. O rapaz não lhe deu tempo para sair, colocando-se entre a cama e a parede. — Tenha a bondade de esperar... disse, muito sério. — Deixe-me por amor de Deus! suplicou ela, torcendo a cabeça, para evitar os olhos de Raimundo. — Não senhora, há de ouvir-me primeiro... respondeu este com delicada autoridade. E acrescentou, depois de uma pausa, pondo nas palavras certo cunho de superioridade paternal: Custa-me, mas é necessário repreendê-la... tanto mais, por me achar na casa de seu pai, que é também sua!... A senhora, porém, cometeu uma falta, e eu cometeria outra maior se me calasse. — Deixe-me! — A senhora sairá deste quarto prometendo que não tornará a fazer o que tem feito!... Se descobrissem as suas visitas clandestinas que não julgariam de mim?... de mim, e da sua pessoa, o que é muito mais grave!... Que não diriam?... E, vamos lá! — com direito!... Pois a reputação de uma senhora é coisa que se exponha deste modo?... Isto tem lugar?... Mas, quando assim fosse, quando, por uma aberração imperdoável, minha prima assim o entendesse, poderia barateá-la, sem enxovalhar sua família? Fique sabendo, minha senhora, que a obrigação que cada qual tem de zelar pelo seu nome, não se baseia só no amor-próprio, mas no respeito que devemos aos solidários do nosso crédito! Uma senhora nada tem que fazer no quarto de um rapaz!... É muito feio! Minha prima comete com isso uma ingratidão a quem deve tudo — a seu pai! O pranto nervoso da menina, sustido até ali com dificuldade, rebentou-lhe da garganta e dos olhos, como um regato que quebrasse as represas; as lágrimas corriam-lhe quentes pela face e pingavam-lhe grossas bagas nas carnes brancas e palpitantes do seio. Raimundo comoveu-se, mas procurou esconder a sua comoção. E desviando o corpo, para lhe dar passagem, acrescentou com a voz pouco alterada. — Peço-lhe que se retire e não volte em circunstâncias idênticas... Queria acusá-la ainda, repreendê-la mais, porém as sobrancelhas desfranziam-se-lhe defronte daquele vestidinho honesto de chita, daquelas singelas tranças castanhas, daquelas lágrimas inocentes. Ana Rosa ouviu-o de cabeça baixa, sem uma palavra, com o rosto escondido no lenço. Quando Raimundo acabou de falar, ela dava grandes soluços, muito suspirados, como de uma criança inconsolável. — Então que tolice é esta?... Agora está soluçando deste modo!... Vamos, não seja criança!.. Ana Rosa chorava mais. — Olhe que, desse modo, podem ouvi-la da varanda!... E Raimundo atrapalhava-se de comoção e de medo; já não acertava com o que queria dizer; faltavam-lhe os termos; sentia-se estúpido. Começou a temer a situação. — Vamos, minha amiga... tartamudeou inquieto, se a ofendi, desculpe, perdoe-me, era para seu interesse... E chegou-se para ela, ameigou-a; estava arrependido de ter sido tão ríspido. “Fora grosseiro! No fim de contas, bem sabia que a pobre moça não era responsável por aquilo!...” Sentia remorsos. E tentou destruir o mau efeito das suas primeiras palavras: — Então, vamos... Eu sou seu amigo, diga-me por que chora... Ana Rosa não respondia, soluçava sempre. Raimundo não pôde conter um movimento de impaciência, e coçou a cabeça. — Ai, que vai mal a história! Estava já sinceramente arrependido de ter vindo surpreendê-la. “Que lhe valesse a paciência!” Todo o seu receio era que a ouvissem da varanda. “Descobriam tudo!... Com certeza que descobriam!” E, sem saber o que fazer, atarantado, foi à porta, voltou, tornou a ir, aflito, sobre brasas. — Então, minha prima tenciona ficar?... Não chore mais!... Que imprudência a sua!... Lembre-se que está no meu quarto... Tenha a bondade — retire-se. Não fique ressentida, mas vá, que podemos comprometer-nos muito seriamente!... Redobrou o pranto. — A senhora não tem motivo para chorar!... — Tenho sim! respondeu ela por detrás do lenço. — Ora essa! Então por que é?... — É porque o amo muito, muito, entende? declarou entre soluços, com os olhos fechados e gotejantes, e assoando-se devagarinho, sem afastar do nariz o lenço ensopado de lágrimas e entrouxado na mão. — Desde que o vi! Desde o primeiro instante! percebe? E no entanto meu primo nem... E desatou a chorar mais forte ainda, desorientada, apaixonadamente. Raimundo perdeu de todo a esperança de acabar com aquilo de um modo conveniente. Não obstante, sentia que gostava bastante de Ana Rosa, mais do que ela podia julgar talvez, mais do que ele mesmo podia esperar de si. “Mas, se assim era, que diabo! que se casassem como toda a gente! Era levá-la à igreja, em público, com decência, ao lado da família! e não tê-la ali, a lacrimejar no seu quarto às escondidas, romanticamente! Não! não admitia! Era simplesmente ridículo!” E disparatou: — De acordo minha senhora, mas eu não tenho o direito de detê-la no meu quarto. Queira retirar-se!... o lugar e a ocasião são os menos próprios para revelações tão delicadas!... Falaremos depois! Ana Rosa continuou a chorar, imóvel. Raimundo chegou a conceber a idéia de ir à varanda, chamar por alguém, fazer bulha, contar tudo! mas teve pena dela; “Iria prejudicá-la, ofendê-la, seria brutal; além disso escandaloso... oh! um formidável escândalo!... Que diabo então devia fazer?... Sim, no fim de contas, seria estúpido revoltar-se contra a rapariga!... ela o amava, tinha vinte anos, e queria casar nada mais justo!” E resolveu mudar de tática, empregar meios brandos e carinhosos para acabar com aquela situação. “Era o caminho mais curto e mais seguro!” Aproximou-se pois de Ana Rosa, muito terno, e disse-lhe afetuosamente, depois de enxugar-lhe o suor da testa e consertar-lhe o desalinho dos cabelos: — Mas, querida prima, o fato de amar-me não é motivo de choro!... ao contrário —devemos alegrar-nos! Veja como estou satisfeito, estou rindo! Siga o meu exemplo! E sabe o que nos compete fazer de melhor? — Não é chorar certamente! — é casar-nos! Não acha? Não lhe parece mais acertado? Não me aceita para seu esposo?... Ao ouvir isto, Ana Rosa tirou logo o lenço do rosto e, o que ainda não tinha feito, encarou Raimundo, desassombrada, feliz, rindo-se, com os olhos ainda vermelhos e molhados, a respiração soluçosa, sem poder articular palavra. E, em seguida, com um desembaraço, que abismou o primo e de que ela própria não se julgaria capaz, abraçou-o amplamente, com expansão, pousando-lhe a cabeça no ombro e estendendo-lhe os lábios numa ansiedade suplicante. O rapaz não teve remédio — deu-lhe na boca um beijo tímido. Ela respondeu logo com dois — ardentes. Então, o moço, a despeito de toda a sua energia moral, perturbou-se — esteve a desabar — um fogo subiu-lhe à cabeça; latejaram-lhe as fontes; e, no seu rosto congestionado e cálido, sentia respirar sofregamente o nariz frio de Ana Rosa. Porém teve mão em si: desprendeu-se dos braços dela com muita brandura, beijou-lhe respeitosamente as mãos e pediu-lhe que saísse. — Vá, sim? Podem vê-la!... Isto não é digno de qualquer de nós... — Você está maçado comigo, Raimundo? — Não, que lembrança! mas vai-te, sim? — Tens razão! mas, olha, quando me pedes a papai? — Na primeira ocasião, dou-te a minha palavra! mas não voltes aqui, hein? — Sim. E saiu. Raimundo fechou a porta e começou a passear pelo quarto, bastante agitado. Estava satisfeito consigo mesmo: apesar dos seus belos vinte e seis anos, tinha sido leal e generoso com uma pobre rapariga que o amava. E, de contente, cantarolou, com a voz ainda um pouco trêmula: “Sento una forza indomita!” Mas bateram duas pancadas na porta. Era o Benedito. — Sinhô mandou dizer para vossemecê fazer o favor de chegar no quarto dele. — Vou já. A viagem ao Rosário ficou transferida para o outro mês, em razão de Manuel haver — caído — com uma tremenda papeira, justamente no dia em que Raimundo surpreendera Ana Rosa no seu quarto. Nessa noite encheu-se a casa de amigos; o Freitas apareceu logo, trazendo uma dose homeopática; discutiu-se a moléstia; contaram-se fatos adequados. Cada qual tivera um caso muito pior que o de Manuel! Choviam receitas de todos os lados. — Laranja-da-terra! laranja-da-terra! gritava D. Maria do Carmo. E afiançava que “abaixo de Deus, não havia remédio melhor para aquele mal! “ — Não! olhe que as papas de linhaça têm provado muito bem... considerou Amância. — Pois eu me achei foi com a folha de tajá, observou a sobrinha mais velha de D. Maria do Carmo. — E eu, disse Etelvina com um suspiro, se quis dar cabo de uma que tive, recorri ao óleo de amêndoa doce! Ana Rosa acendera uma vela a São Manuel do Buraco e Maria Bárbara prometera uma bochecha de cera a Santa Rita dos Milagres. A Eufrasinha apareceu, e receitou logo — leite de janaúba. — Corta-se o cipó e escorre um leite branco, tão grosso que é um azeite! explicava ela com grande mímica. A gente apara numa xícara e depois ensopa algodão bem ensopado, e planta na cara do doente. É uma vez só, menina! Na varanda conversavam sobre o desânimo do doente. — É muito esmorecido!... protestava Maria Bárbara. Por qualquer coisa parece que está morrendo! Fica todo “Ai, ai, ai, eu morro desta!” Uma febrinha põe-no assim! E Maria Bárbara, para mostrar ao vivo como ficava o genro, puxou as faces com os dedos e arregalou disformemente os olhos. — Credo! exclamou Amância, e citou a morte de um conhecido seu. Maria do Carmo passou a contar, patética, o falecimento do Espigão. Aquilo é que era morte! Só vendo!... Seguiu-se uma enfiada de anedotas fúnebres. Freitas, na sala, examinava, com minuciosidade patriótica, umas litografias, que descansavam na pedra dos consolos. Eram episódios da Guerra do Paraguai — havia a tomada de Paissandu, a passagem de Humaitá, e outros, impressos no Rio e mal desenhados. Via-se o general Osório, a cavalo, sobressair com o seu bigode preto e a barba branca. E o pai de Lindoca despregava de vez em quando os olhos do quadro e passeava-os pela sala, à procura de uma vítima para a seca. Raimundo, logo que o bispou, escondera-se no quarto, com medo. Ana Rosa cumpriu o prometido de não voltar ao quarto de Raimundo, mas em compensação falava-lhe todos os dias no casamento. Depois do seu ajuste com o primo, andava escorreita, alegre, vivia a cantarolar, tanto na costura, como passarinhando pela varanda, a pretexto de ajudar a avó nos arranjos da casa, ao que ela agora ligava muito mais interesse. Maria Bárbara, por outro lado, dava aos diabos a papeira de Manuel e com esta a transferência da viagem ao Rosário. “Aquela demora do cabra em companhia de sua neta embrulhava-lhe o estômago! — Não sossegaria enquanto não o visse pelas costas!...” Entretanto, aproximava-se o dia de São João. Em casa do Freitas, em casa de Maria do Carmo, como em casa do Manuel, falava-se da festa. A pagodeira seria, como todos os anos, no sítio de Maria Bárbara. Era um antigo costume ainda do tempo do defunto coronel, avô materno de Ana Rosa. A velha não relaxava a ladainha de São João. “Tudo! menos deixar de fazer nesse dia a sua festa costumeira!” Aquela data representava para ela o aniversário dos acontecimentos mais notáveis da sua vida — nesse dia nascera o nunca assaz chorado coronel, o seu João Hipólito; também nesse dia fora pedida em casamento, e, um ano depois, justamente no dia de São João, casara; ainda nesse dia batizara a sua primeira filha — a defunta mulher de Sebastião Campos —, e nesse dia enfim — Mariana esposara Manuel. Fez-se uma congregação em casa do negociante, composta por Amância, Maria do Carmo, as sobrinhas desta, e presidida por Maria Bárbara. Falou-se muito em capados, carneiros e perus de forno; discutiu-se com o que se devia encher o papo do peru — se de farinha ou com os próprios intestinos do animal, decidiu a maioria que se encheria com farofa, “à moda de Pernambuco”, explicava Etelvina. Fizeram-se grandes encomendas de dúzias de ovos; lembraram-se os doces menos lembrados; receitaram-se processos dificultosíssimos da arte culinária: consultou-se o “Cozinheiro Imperial”, houve oferecimentos de louça, compoteiras, talheres, moleques e negrinhas, para ajudarem no serviço; citaram-se pessoas privilegiadas na confecção de tais e tais quitutes; falou-se em caruru da Bahia e presunto de fiambre. No dia seguinte encarregou-se a um pedreiro de correr uma caiação geral na casa do sítio; os escravos tiveram ordem de assear a quinta, limpar as estradas, os tanques, os pombais; e preveniu-se o padre Lamparinas, que era quem, todos os anos, cantava lá a ladainha de São João. Haveria dança e fogos. Seria um festão de arromba! “O diabo! pensava Maria Barbara, era que o — cabra — só se iria do Maranhão para o outro mês!...” No entanto, Raimundo aborrecia-se; a província parecia-lhe cada vez mais feia, mais acanhada, mais tola, mais intrigante e menos sociável. Por desfastio, escreveu e publicou alguns folhetins; não agradaram — falavam muito a sério; passou então a dar contos, em prosa e verso; eram observações do real, trabalhadas com estilo, pintaram espirituosamente os costumes e os tipos ridículos do Maranhão “de nossa Atenas” como dizia o Freitas. Houve um alvoroço! Gritaram que Raimundo atacava a moralidade pública e satirizava as pessoas mais respeitáveis da província. E foi o bastante: os atenienses saltaram logo, espinoteando com a novidade. Meteram-lhe as botas; chamaram-lhe por toda a parte: “besta! cabra atrevido!” Os lojistas, os amanuenses de secretaria, os caixeiros freqüentadores de clubes literários, em que se discutia, durante anos, a imortalidade da alma, e os inúmeros professores de gramática, incapazes de escrever um período original, declararam que era preciso — meter-lhe o pau! “Escová-lo, para se não fazer de atrevido e desrespeitador das coisas mais sagradas desta vida: — a inocência das donzelas, a virtude das casadas e a mágoa das viúvas maranhenses!” Nas portas de botica, nas esquinas do Largo do Carmo, no fundo das vendas em que se vendia vinho branco e no interior de todas as casas particulares, juravam nunca ter visto semelhante escândalo de linguagem pelas folhas. Falou-se muito nos jornais em Gonçalves Dias, Odorico Mendes, Sotero dos Reis e João Lisboa; apareceram descomposturas, anônimos, pasquins, contra Raimundo; escreveram-se obscenidades pelas paredes, a giz e blac-verniz, contra o “novo poeta d’água doce!” Ele foi a ordem do dia, de muitos dias; apontaram-no a dedo, boquejaram, por portas travessas, que ia sair um jornalzinho, intitulado “O Bode”, só para botar os podres do ordinário na rua! Os moleques cantavam, contra o perseguido, torpezas tais, que este nem sequer as compreendia. E, alheio ao verdadeiro sentido das descomposturas e das indiretas, jurou, pasmado, nunca mais publicar coisa alguma no Maranhão. — Apre! Com efeito! Dizia. E tomou deveras um invencível nojo por aquela província indigna dele; impacientou-se por consumar o seu casamento com Ana Rosa e retirar-se daquele chiqueiro de pretensiosos maus. — Safa! terrinha estúpida! resmungava sozinho, a fumar cigarros, de barriga para o ar, no seu quarto. Todavia, o pior lhe estava reservado para o mês de junho. 7 Junho chegou, com as suas manhãs muito claras e muito brasileiras. É o mês mais bonito do Maranhão. Aparecem os primeiros ventos gerais, doidamente, que nem um bando solto de demônios travessos e brincalhões, que vão em troça percorrer a cidade, assoviando a quem passa, atirando ao ar o chapéu dos transeuntes, virando-lhes do avesso os guarda-sóis abertos, levantando as saias das mulheres e mostrando-lhes brejeiramente as pernas. Manhãs alegres! O céu varre-se nesse dia como para uma festa, fica limpo, todo azul, sem uma nuvem; a natureza prepara-se, enfeita-se; as árvores penteiam-se, os ventos gerais cantam-lhes as folhas secas e sacodem-lhes a frondosa cabeleira verdejante; asseiam-se as estradas, escova-se a grama dos prados e das campinas, bate-se a água, que fica mais clara e fresca. E o bando turbulento não pára nunca e, sempre remoinhando, zumbindo, cantando, lá vai por diante, dando piparotes em tudo que encontra, acordando as pequeninas plantas, rasteiras e preguiçosas, não deixando dormir uma só flor, enxotando dos ninhos toda a chilreadora república das asas. E as borboletas, em cardumes multicores, soltam-se por aqui e por ali, doidejando; e nuvens de abelhas revoam, peralteando, gazeando o trabalho, e as lavadeiras, que vadias! brincam ao sol, sobre os lagos, dançando ao som de uma orquestra de cigarras. A gente bem conformada, nessas manhãs, acorda lépida, depois de um sono bom, completo, bebido de uma vez, como um copo de água fresca. E não resiste ao convite do bando endemoninhado, que lhe salta pela janela e lhe invade o quarto, atirando ao chão os papéis da mesa, arrancando os quadros da parede e desfraldando as cortinas, que tremulam no ar em flutuações alegres de bandeira; não resiste — veste-se rindo, cantarolando, e vai para a rua, para o campo, mete uma flor na lapela do fraque, agita a bengala, fala muito, ri, tem vontade de correr e almoça nesse dia com apetite selvagem. A madrugada da véspera de São João era dessas. Raimundo, antes de raiar o dia, já se achava de pé e em caminho, junto com Maria Bárbara, Manuel e Ana Rosa, para o sítio, onde seria realizada a grande festa tradicional dos tempos do defunto coronel. A velha arrependia-se de não ter esperado pelo bonde das seis horas e, de cansada assentou-se com o genro no banco de uma das quintas do Caminho Grande; Raimundo continuou a andar distraidamente, de braço dado à rapariga. Clareava o tempo; a este o horizonte tingia-se de vermelho para o seu grande parto quotidiano e deslumbrante; ia nascer o sol. Houve uma grande alegria rubra em torno do ventre de ouro e púrpura, que se rasgou afinal, num turbilhão de fogo, jorrando luz pelo céu e pela terra. Um hino de gorjeios partiu dos bosques; a natureza inteira cantou, saudando o seu monarca! Raimundo, estático ao lado de Ana Rosa, não podia conter o seu entusiasmo. — Como é belo! como é belo! exclamava ele, apontando para o nascente. E, numa comoção de pintor, amarrotando entre os dedos o seu chapéu de feltro, parecia beber avidamente, pelos olhos deslumbrados, aquele maravilhoso nascimento do sol meridional de junho. Depois, sempre emocionado, segurava o braço da prima, chamando a atenção desta, sem despregar a vista da paisagem, para o lindo efeito da luz, filtrada por entre as folhas, na espessura das árvores; para as gotas de orvalho, que cintilavam como diamantes; para a esfogueada selagem dos planos afastados; para a luminosa cercadura dos casebres ao longe, em torno dos quais pasciam bois e acogulavam-se carroções com grandes feixes de capim novo. E vinham do campo para o mercado da cidade enormes tabuleiros de hortaliças, gotejantes da última rega, e pirâmides de ramalhetinhos de vintém, para se vender às mulatas; e cofos de frutas, que espalhavam no ar um perfume desenjoativo; e matutos traziam, dependuradas de um pau sobre o ombro, as pacas e as cutias, caçadas no mato; e os carros da roça passavam gemendo, com as suas imensas rodas inteiriças; e os caboclos, seguidos pelas mulheres e pelo bandão dos filhos, num passo sacudido e ligeiro, chegavam da Vila do Paço e de São José de Ribamar, muito carregados, depois de engolir léguas e léguas a pé descalço, para vir vender à boca do Caminho Grande o seu peixe, pescado e mosqueado na véspera, os seus beijus fresquinhos, o azeite de gergelim, a massa de água, a macaxeira e os bolos de mandioca. Ana Rosa não parecia a mesma daqueles últimos tempos: estava alegre, despreocupada; dir-se-ia ter voltado a um dos seus dias de colégio. Os ventos gerais como que lhe levantaram o véu das suas melancolias de donzela e arejaram-lhe o coração com uma rajada. — Deixe lá a paisagem, e dê-me o braço, primo! disse ela arquejante, tendo ido de carreira comprar tangerinas à mão de um roceiro. Ah!... cansada! E, sem poder falar, prendeu-se ao braço de Raimundo. Este vergou-se sobre ela, depois de contemplá-la muito. — Sabe? segredou-lhe, você hoje está bonita como nunca, minha prima! Suas faces são duas rosas! — É debique seu... Se me achasse bonita, já me teria pedido a papai... — Confesso que nunca a vi tão linda... — São os ventos gerais! Limparam-lhe os olhos!... — Não diga brincando! Quer que lhe confesse uma coisa?... Não sei que singular efeito me produz esta manhã... É esquisito, mas eu mesmo me desconheço! Sinto-me transformado! A idéia, por exemplo, da minha sisudez habitual, dessa gravidade exagerada, de que por mais de uma vez a prima se queixou a mim próprio, parece-me agora tão pueril e ridícula como o estilo do Freitinhas e o orgulho do Sebastião Campos! É exato! Creia que neste instante lamento não ser mais expansivo, mais alegre, mais rapaz! Deploro ter esperdiçado tantas madrugadas a estudar, a matar-me de trabalho; ter adormecido esfalfado ao raiar do dia, quando os outros se levantavam satisfeitos e confortados. Com franqueza toda a obra de uma geração inteira de investigadores da ciência; tudo quanto ensinam as melhores academias, não vale a boa lição que em algumas horas de passeio ao seu lado me dá a natureza, a grande mestra! Com esta única lição renasce-me a mocidade que eu estupidamente me empenhava em sufocar! Sinto-me disposto a ser feliz, sinto-me capaz de amá-la, minha querida amiga! Ana Rosa abaixou o rosto, afogada em pejo e contentamento, sem querer interrompê-lo, para não desperdiçar uma só daquelas palavras, que lhe faziam tanto bem. O que Raimundo lhe dizia dava-lhe vontade de chorar e cair-lhe agradecida nos braços, traduzindo em beijos todas as ternuras, que o pudor vedava aos lábios proferissem. Haviam parado, junto um do outro; batia-lhes em cheio no rosto o sol nascente. Emudeceram. O moço tomou-lhe as mãos, e os dois fitaram-se com um juramento nos olhos, e não falaram mais em amor, enquanto esperavam por Manuel e Mana Bárbara, que de novo se tinham posto a caminhar. Meia hora depois chegavam todos ao sítio. Raimundo fazia pasmar com o seu bom humor; confessava-se no momento mais feliz de sua vida; deu até para brincalhão e ferrou, ao entrar na casa, um abraço em D. Amância, que viera recebê-los à porta. A velha afastou-se, benzendo-se: — Credo! Pra lá mandado! Ela já lá se achava, desde a véspera, preparando tudo, arrumando, dando ordens, ralhando, prometendo castigos, como se estivesse em fazenda própria e cercada de escravos seus. A quinta de Maria Bárbara, como quase todas as quintas do Maranhão, era aprazível e rústica. Um velho portal de ferro, com o competente lampião de corrente, abria sobre duas longas filas de mangueiras seculares, que iam terminar defronte da casa, formando sombrosa e úmida galeria, onde o sol penetrava horizontalmente, por entre os grossos troncos nodosos e encascados. Por uma e outra banda sem ordem nem simetria, viam-se plantações, na maior parte úteis e bem tratadas; destacava-se o verde alegre dos canteiros de hortaliças donde voava um cheiro fresco de salsa e coentro. Mais para o interior do sítio encontravam-se tanques cheios, esverdeados de limo; sinuosas calhas esgalhavam, suspensas por estacas de acapu, levando água para todos os lados; extensas latadas vergavam ao peso das abóboras, dos jerimuns e dos maracujás de diversos tamanhos, desde o da laranja até ao da melancia. Ainda mais para o interior, destacavam-se, em qualquer dia do ano, o verde-escuro e lustroso das jaqueiras colossais e das árvores da fruta-pão, ambas com as suas folhas grandes e recortadas caprichosamente, contrastando com as massas fuscas da folhagem miudinha dos eternos tamarindeiros, com os tons dourados do pé de cajá e com os altivos jenipapeiros, as graciosas pitombeiras, cercados de goiabais floridos e cheirosos. Em outros pontos adivinhavam-se olhos-d’água pela abundância das juçareiras. Parasitas de mil espécies enfeitavam com as suas flores, extravagantes e admiráveis, as árvores e os pombais, numa variedade prodigiosa de cores. E por toda a parte doidejavam, cantando, os passarinhos e saltitavam rolas, a mariscar na relva. A habitação olhava de frente para os dois renques de mangueiras, franqueando as suas varandas sem parede; toda ela aberta, deixando-se invadir pelas plantas do jardim que a rodeava. Uma dessas pitorescas vivendas acaçapadas, muito comuns nos sertões da ilha de São Luís. Grande telheiro quadrado, telha vã, formando bico na cumeeira e sustentado nas quatro faces por moitões de piqui, pintados de verde, e firmados estes em anteparos de pedra e cal, que formavam uma espécie de amurada, alta pela parte de fora e rasa pela de dentro. No meio, distanciado da antepara uns vinte palmos seguros, estava a casa feita de paredes inteiriças, caiadas de cima a baixo. O chão era todo forrado de tijolos vermelhos. À entrada uma cancela, três degraus de cantaria, jasmins de Itália, bancos de pau e uma confusão de trepadeiras, que se enroscavam pelos moitões e galgavam o telhado, vitoriosamente, erguendo lá em cima os seus rebentões novos, ávidos de sol. Esta quinta fora a menina dos olhos de Maria Bárbara; aí passara ela grandes delícias no tempo do coronel. Ainda estava muito forte e bem conservada, mas, havia dez anos, desde que a velha foi fazer companhia à neta, achava-se entregue aos cuidados do português Antônio e ao trabalho de três pretos velhos, que iam diariamente à cidade vender hortaliças, flores e frutas. Às seis e meia da manhã chegou o bonde com os convidados. Trazia música. Era uma “surpresa” arranjada pelo Casusa. E este, encarrapitado na plataforma do carro, doido de entusiasmo, dava vivas a São João, vivas “ao belo madamismo maranhense!” e vivas à música. Os músicos romperam com o Hino Nacional. O Casusa, inteiramente fora de si, rouco já, um bocadinho picado pelo conhaque, cujo corpo de delito ele trazia a tiracolo enforcado num pedaço de cabinho, saltava, ia e vinha, singrando por entre todos, atravessando o bonde com as senhoras ainda assentadas, fazendo-as apear, assustando-as com os seus gritos, machucando nas costas dos bancos os dedos dos que desciam, provocando gemidos, protestos, e fazendo rir ao mesmo tempo. Deu um beijo em D. Amância que lhe chamou furiosa, “Cachaceiro! Pancada! Moleque!”; bateu na barriga de Manuel, que o exprobrava por se ter incomodado, feito despesas, contratado músico. — É gosto, é gosto, seu Manuel! Não faça caso! Hoje há de sair cinza nesta pândega! E os convidados saltavam do bonde. O primeiro a descer foi o Freitinhas, todo vestido de brim branco de Hamburgo, irrepreensível rodaque de botões de osso, uma enorme cadeia de cabelo prendendo o relógio e dependurado nela um anel de ouro, onde se lia esmaltado “Saudade”. Trazia, por causa do pó, umas lunetas azuis, grandes, verdadeiras vidraças, que lhe davam à grande fisionomia o tom pitoresco de uma casa de campo; um chapéu de feltro branco, peludo, alto, a que os gaiatos da província denominavam “Carneiro” e do qual o dono contava maravilhosas propriedades. “Era uma pena!... Podia a gente machucá-lo à vontade sem ofender o pêlo, de bom que era! Custara vinte mil-réis, mas valia cinqüenta, a olhos fechados!” E, com a bengala de unicorne debaixo do braço, ajudava a sua gorda Lindoca a descer do bonde com dificuldade. As meninas Sarmento, acompanhadas da tia, de Eufrasinha e um cachorrinho branco e felpudo, que esta trazia ao colo, saltaram, cheias de espalhafato, muitos risos, latidos, cores vivas nos chapéus e nas sombrinhas. O famoso cabelo ostentava-se, mais que nunca, em cachos acastelados e trescalantes de óleo de babosa. O cônego, discretamente risonho e sempre janota, vinha seguido por um padrezinho magricela, que desfrutava na província a especialidade de cantar ladainhas; alcunhavam-no de “Frei Lamparinas”. O Sebastião Campos, vestido de branco como o Freitas, porém de paletó e chapéu-do-chile, pulara em terra, abraçado a uma grande cesta de busca-pés, pistolas, carretilhas e bombas. — É o mantimento! respondia ele aos olhares curiosos. Tinha paixão pelos fogos. — Sou perdido por isto! dizia mostrando uma luva grosseira feita de sola, com que tocava os formidáveis busca-pés. Nos sábados de Aleluia era o seu luxo queimar um judas defronte da casa; não perdia fogo de vista nas festas de arraial e sabia fazer bichinhas, carretilhas e foguetes. Apresentaram-se também, fora da rodinha do costume, dois novos convidados; um levado por Manuel e o outro pelo Casusa. O primeiro era o Joaquim Furtado da Serra, bom homem, do comércio, muito amigo da família e tapado como um ovo, o que, aliás, não impedia que estivesse rico. Só entendia e só conversava sobre negócios, gostava de fazer bem e era membro de várias sociedades filantrópicas. Vivia contente da vida, cheio de amigos e obsequiados, estava sempre a rir e a falar das suas três filhas. “Não puderam ir à festa de Manuel, coitadinhas! porque ficaram à cabeceira de uma doente...” Não queria comendas nem grandezas; contava a todos como principiara no Brasil, descalço, com um barril às costas, e orgulhava-se, entre gargalhadas, da sua atual independência. O outro era um rapazola de vinte e dois anos, que, à primeira vista, parecia ter apenas dezesseis: magro, puxado, muito penteado e muito míope, com as unhas burnidas, o colarinho enorme e os pés apertadinhos em sapatos de polimento. Estudava no Liceu da província, usava uma cadeia de plaquê, brilhantes falsos no peito da camisa e uma bengalinha equilibrada entre o indicador e o índex da mão direita; tinha uma coleção de acrósticos e recitativos da própria lavra, uns inéditos e outros já publicados a dinheiro nos jornais, aos quais qualificava desvanecidamente de “seu tesouro!” Chamava-se Boaventura Rosa dos Santos; era conhecido por “Dr. Faísca” e gostava de fazer e adivinhar charadas. Entraram todos em casa, numa desordem, acossados pela música, que atropelava uma polca do Colás, e por uma intempestiva carretilha que soltara Sebastião. Houve sarilho. José Roberto, debaixo de tempestuosa descompostura, obrigava D. Amância a dar meia dúzia de voltas pela varanda, indo cair ambos, perseguidos pelo Joli, sobre um banco de paparaúba. Joli era o cãozinho da Eufrásia. No furor da terrível dança, desprendera-se o coque de Amância e fora parar no jardim. Joli saltara-lhe logo atrás e destripava-o freneticamente com os dentes. — Olhe, seu Casusa! Gritou a velha, quase sem fôlego, você não me perca o respeito, seu pica-fumo! Quando tomar suas monas, meta-se em casa com os diabos! Credo! Que cachaceiro acabado! Vá tomar liberdade com quem lhas dá! Diabo do sem brios! O coque foi arrancado das garras do Joli e restituído à dona. — Vejam! Vejam em que bonito gosto me puseram o meu coque de pita! Parece uma rodinha de limpar panelas! Diabo da brincadeira estúpida! Também, em vez de criar xirimbabos, seria melhor que cada um cuidasse de sua vida, que teria muito do que cuidar! E voltando-se para Sebastião: — Mas o culpado é você, seu Sebastião; com você e que me tenho de haver! Não posso perder o meu coque novo! — Novo quê! ... contestou Casusa. Eu vi pular de dentro dele uma aranha! — É novo, e quero outro p’r’aqui! — Está bom, meus senhores, deixem-se disso, interveio Manuel, e vamos ao café, que está esfriando! — Mas o meu coque? Isto não pode ficar assim! — A senhora terá outro, descanse! Mal se serviram de café com leite e bolo de tapioca com manteiga, formou-se uma quadrilha, na qual o Casusa, de par com Eufrasinha, fez o que ele chamava “pintar o padre!’’ Ditado este que sobremaneira escandalizava o especialista das ladainhas, de cujos olhos partiu, por cima dos óculos, chispas repreensivas sobre aquele. Este Frei Lamparinas era um homenzinho escorrido, feio, natural de Caxias. Não conseguira nunca ordenar-se em razão da sua extremada estupidez: soletrava ainda as ladainhas que havia vinte anos recitava; jamais entrara com o latim. Os rapazes do Liceu mexiam com ele e atiravam-lhe limões verdes por detrás do muro do convento do Carmo, quando o infeliz passava defronte. Tinha uma biografia engraçada, cheia de disparates, mas todos diziam que era bom de coração e não fazia mal a ninguém. — O chorado! Venha o chorado! gritavam do fundo da varanda batendo palmas. E a música, sem se fazer rogada, gemeu a lânguida e sensual dança brasileira. De pronto, Casusa e Sebastião pularam ao meio da sala e puseram-se a sapatear agilmente, com barulho, estalando os dedos e requebrando todo o corpo. Em breve arrastaram o Serra, o Faísca e o Freitas: e as moças, chamadas por aqueles, entraram na irresistível brincadeira. Elas rodavam na pontinha dos pés, o passo miudinho e ligeiro, os braços dobrados e a cabeça inclinada, ora para um lado, ora para outro, estalando a língua contra o céu da boca, numa volúpia original e graciosa. Os velhos babavam-se. — Quebra! berrava o Casusa entusiasmado. Quebra, meu bem! E regamboleava furiosamente a perna. O chorado atingira afinal a sua fase de loucura. Os que não podiam dançar espectavam, acompanhando a música com movimentos de corpo inteiro e palmas cadenciadas e espontâneas. — Bravo! Assim, seu Casusa! — Picadinho! Picadinho! De repente, ouviu-se um trambolhão e um grito: era o Faísca. que cedera a um “cambite” do Casusa, indo cair aos pés de Maria do Carmo. Todos riram. — Credo! gritou a velha. Pois este homem não me queria agarrar a perna?... Cruz, capeta! — Não aumente, minha senhora, foi no tornozelo...Este ossinho do pé! — Mas eu tenho muita cócega, e, depois do defunto Espigão, ninguém mais me tocou no corpo! Daí a pouco, chamavam para o almoço, e o divertimento continuou sem interrupção. No dia de São João nunca se abria o armazém de Manuel, e naquele ano a véspera caíra num domingo! “Eram dois dias cheios!” como dizia satisfeito o Vila-Rica. Desde a véspera que o Benedito, e mais uma preta, haviam seguido para o sítio, carregados de fogos e dos paramentos necessários para se armar o altar; na madrugada do dia foi a Brígida, em companhia de Mônica. Lá estava D. Amância para tomar conta de tudo. Os empregados iriam também todos; não havia, por conseguinte, necessidade de ficar escravo nenhum em casa. O quarto dos caixeiros tinha então um aspecto domingueiro: botas engraxadas sobre os baús; roupas de casimira cuidadosamente estendidas nas costas de cadeiras; camisas engomadas, por aqui e por ali, a espera da serventia, e um cheiro ativo de extratos para o lenço. Os rapazes vestiam-se. Seriam, quando muito, oito horas da manhã. Mas, apesar do aspecto festivo dos colegas, Dias conservava-se em trajos menores, a varrer o soalho. — Você não se apronta, seu Dias?... perguntou-lhe o Cordeiro, ocupado a enfiar um par de calças cor de alecrim. Você não vem conosco à quinta? — Vão andando, que eu já vou. Não trocaram mais palavra. Os três saíram, e o Dias, encostando no queixo o cabo da vassoura, ficou pensativo. Mal ouviu, porém, bater embaixo o trinco da porta da rua, atirou a vassoura para um canto e desceu cautelosamente à varanda. A casa tinha a tranqüilidade saudosa de um lugar abandonado. Só o sabiá chilreava na gaiola. O caixeiro predileto de Manuel fechou à chave a cancela de madeira polida, que separava a varanda do corredor, e, depois de olhar em torno, seguiu para o quarto de Raimundo, fariscando, nem ele sabia bem o quê. Pôs-se a esquadrinhar o que lá havia, não com a curiosidade amorosa da primitiva bisbilhoteira, porém frio, calculado, com a prudência de quem sabe que está cometendo uma baixeza. E abria gavetas, lia os manuscritos que encontrava, revistava as algibeiras da roupa estendida no cabide, folheava os livros, examinando tudo, escarafunchando todos os cantinhos. Em uma das malas encontrou um folheto de capa verde, guardou-o logo, depois de lhe ter lido o frontispício, e afinal, quando já nada mais tinha para dar fé, retirou-se, sem deixar o menor vestígio do que fez. Daí seguiu para o aposento de Ana Rosa, mas teve logo uma contrariedade: a porta estava fechada; rebuscou a chave na varanda, pelos cantos, não a encontrou, e subiu então rapidamente ao segundo andar, donde trouxe um pedaço de cera, com que modelou a fechadura. Em seguida atirou-se para o quarto de Maria Bárbara, experimentou a porta; estava também fechada. Mas havia um postigo; Dias espremeu-se por esse e conseguiu entrar. O aposento da velha condizia com a dona. Sobre uma cômoda antiga, de pau-santo, com puxadores de metal e coberta por um oleado já puído e gasto, equilibrava-se um oratório de madeira, caprichosamente trabalhado e cheio de uma porção variadíssima de santos, havia entre eles, feitos de casca de cajá, de gesso, de terra vermelha e de porcelana. O Santo Antônio de Lisboa, vindo de encomenda, com o pequeno ao colo, lá estava, muito rubicundo e lustroso; a Sant’Ana, ensinando a filha a ler; um São José de cores cruas, detestavelmente pintado; um São Benedito, vestido de frade, pretinho, de beiços encarnados e olhos de vidro; um São Pedro, cujas proporções o faziam criança ao lado dos outros; uma miuçalha de santinhos, pequenitos e caricatos, que a gente não podia ver sem rir e que se escondiam na peanha dos grandes; e, finalmente, um grande São Raimundo Nonato, calvíssimo, barbado, feio, e com um cálice na mão direita. Ao fundo do oratório litografias de carregação representavam Santa Filomena, a fugida de São José com a família, Cristo crucificado e outros assuntos religiosos. O grupo dos santos ressentia-se de uma falta, a de S. João Batista, que havia desertado para a quinta. Havia ainda sobre a cômoda dois castiçais de latão, guarnecidos de papel redondo, com as velas de cera meio gastas; um grupo de biscuit representando a Mater dolorosa e um menino Jesus, fechado numa manga de vidro, por causa das moscas. Encostada à parede, uma palma de pindoba benta a qual, segundo a voz do povo, tinha a virtuosa propriedade de apaziguar os elementos em dias de tempestade, duas outras palmas casquilhas, enfeitadas de pano e malacacheta, guarneciam os lados do oratório. Viam-se ainda, por toda a parte, quadrinhos de gravuras e cromos, onde se liam orações milagrosas, a do Monte Serrate, a do Parto, a da Virgem, e outras, sem desenho, com que os tipógrafos espertos da província exploravam a carolice das beatas. Contrastando com tudo isto, destacava-se, dependurada na parede, uma formidável palmatória de dar bolos, negra, terrível e muito lustrosa de uso. Defronte do oratório simetrizavam duas molduras envidraçadas, expondo cada qual uma talagarça cheia de amostras dos diversos bordados de lã, que as meninas aprendem no colégio. “Panos de tapete” como se diz no Maranhão. Em uma delas liam-se no centro as iniciais M. R. S. e “Colégio da Trindade em 1838”, e na outra, que estava em melhor estado de conservação “A. R. S. S.” e uma data muito mais recente. A julgar por estas letras, os dois quadros tinham sido bordados por Mariana e Ana Rosa, mãe e filha. Tudo isso foi minuciosamente esmerilhado pelo Dias; leu as Horas Marianas, apalpou as roupas de Maria Bárbara, provou a ponta do molho do fumo com que esta “espairecia os passados dissabores”, e, depois, quando nada mais tinha para esmiuçar, pôs-se a refletir, pensando, no que devia fazer. Afinal veio-lhe uma idéia, que lhe deu um sorriso de contentamento, acendeu logo uma das grossas velas de cera, tomou pelas pernas a imagem de São Raimundo e tisnou-lhe a cara e a careca de encontro à chama do pavio. Depois da operação, o pobre santo parecia um carvoeiro; ficara tão negro como o seu companheiro de oratório, o engraçado São Benedito. Dias contemplou a sua obra, riu de novo, calculando o bom efeito que ela produziria, colocou em seguida a imagem no seu lugar, e saiu apressado, por lhe parecer que ouvira rumor na porta da rua. Enganara-se. Daí a meia hora, vestido de pano preto, segundo o seu invariável costume, o acreditado caixeiro de Manuel Pescada, tomava o bonde do Cutim, com destino ao sítio da sogra do patrão. 8 Eram cinco da tarde. A festa de Maria Bárbara continuara sempre muito animada; havia uma boa disposição geral. Os homens bebericaram durante o dia cálices de conhaque, e sopravam agora o fumo dos seus charutos domingueiros, com um grande ar de pessoas de importância; as senhoras melaram galantemente os beiços com licor de rosa e hortelã-pimenta. Dançara-se muito. Brincou-se o Padre-cura o Anel, o Peixinho de Muquém. Afinal, foram todos lá pra fora, apreciar a tarde, assentados nos bancos fronteiros à casa. A sociedade estava engrossada pelos quatro caixeiros de Manuel e por um sertanejo que a divertia com as suas cantigas. “Lamparinas” havia saído para ir ali perto, à quinta de um amigo, mas prometera não faltar à ladainha. O sol escondera-se. Uma tarde formosa, com o seu poente esfogueado, rubrava as caras suadas dos homens e os vestidos machucados das senhoras, que se arejavam debaixo das latadas de maracujás e jasmins da Itália. As damas, comodamente assentadas, tinham requebros de etiqueta, gestos cheios de conveniência, risos com a boca fechada, olhares por debaixo das pálpebras, o leque nos lábios e o dedo mínimo levantado com galanteria. Minava um apetite surdo pelo jantar; alguns estômagos resmungavam indiscretamente. Contudo, todos os olhares e todas as atenções convergiam, na aparência, para o sertanejo, que, a certa distância, de pé, isolado, a cabeça erguida com desembaraço mal-educado, o chapéu de couro atirado para a cerviz e preso ao pescoço por uma correia, a camisa de algodão cru por fora das calças de zuarte, arregaçadas no joelho, o pé descalço, curto e espalmado, pé de andarilho, o peito liso e cor de cedro à mostra, braço nu e sem cabelos — vibrava entusiasmado as cordas metálicas de uma viola ordinária, acompanhando, com um repinicado muito original, os versos que improvisava e outros que trazia de cor: “Lá vai a garça voando Para as bandas do sertão! Leva Maria no bico, Teresa no coração!” Ao terminar de cada estrofe, rebentava um coro de risadas, durante o qual se ouvia o sapatear surdo do sertanejo, socando a terra, a dançar. “Não tenho medo da onça, Que todos têm medo dela!.. Não tenho medo de ti, Que fará de Micaela!” E o matuto, depois do sapateado, dirigiu-se a Ana Rosa: “Me diga, minha senhora: (Quem pergunta quer saber...) Se eu sair daqui agora, Onde vou amanhecer? “ — Este foi de sentimento!... considerou Etelvina com um gesto aprovativo. — Gostei, gostei... confirmava o Freitas, protetoramente. E o sertanejo ferrou o olhar em Ana Rosa: “Sinhá dona, se eu pedisse... Responda, mas não se ria... Uma flor do seu cabelo... Sinhá dona que diria?…” — Bravo! — Sim senhor! Houve um sussurro alegre — D. Anica, dê a flor!... Ana Rosa hesitava. — Então, menina... repreendeu Manuel em voz baixa. Ana Rosa tirou um bogari da cabeça e passou-o ao trovador, que versejou logo: “Ó minha senhora dona, Deus lhe pague, eu agradeço; Seus quindingues são dos ricos Eu sou pobre e não mereço!... “ E, colocando a flor atrás da orelha, continuou, depois de olhar intencionalmente para Raimundo: “Ó nhá dona feiticeira! Me cativa seu favor Mas não vá meter ciúmes Agora pro mode a flor!...” Em seguida, desprendeu o chapéu e estendeu-o a um por um. Consultaram-se as algibeiras do colete, pingaram os vinténs e as pratinhas de tostão. O menestrel, com a cabeça erguida em ar de exigência, dizia: “Vamos, vamos, pingue o cobre, Qu ‘eu não gosto de maçada! Dos homens aceito a paga, Das moças não quero nada!” E, quando se chegou a Manuel: “Manuelzinho cravo roxo, Me desculpe a impertinência; Se puder dar, eu aceito, Se não puder — paciência!...” Entre gargalhadas, enchiam-lhe o chapéu de moedas. Ao chegar a vez do Faísca, este, em vez de dinheiro, lançou-lhe a ponta do cigarro; o matuto, como de costume, cavaqueou com a pilhéria e gritou zangado: “Seu lanceiro da Bahia, Casaquinha do Pará A gente recebe o coice, Conforme a besta que o dá!” A hilaridade aumentou e o Faísca enfureceu-se, chegando a ameaçar o caboclo, que lhe sorria em ar de mofa. — Eu ainda atiro com alguma coisa à cara daquele diabo! resmungou o estudante, lívido. — Deixe-se disso!... aconselharam-lhe, você já sabe que esta gente é assim, para que se mete?... — Tome lá! disse Manuel ao sertanejo, beba e vá embora! E passou-lhe um copo de vinho, que ele emborcou, trovando, depois de estalar a língua: “O vinho é sangue de Cristo, É alma de Satanás. É sangue quando ele é pouco, É alma quando é demais!” E, fazendo um grande cumprimento com o chapéu: “Meus senhores nhás donas, Vou-me embora de partida. Deus lhes dê muita fortuna E muitos anos de vida!” E virou de costas e retirou-se, a dançar, cantando uma passagem do — Bumba-meu-boi: “Isto não, isto não pode sê. Isto não, isto não pode sê A filha de meu amo casar com você! .. O caboclo me prendeu, Meu amor! Foi tão certa da razão, Coração! Que o cabo... “ E perdeu-se nas fundas sombras do mangueiral a voz do sertanejo e o som da viola. Iam-lhe discutir o talento poético e a graça, quando, de cima, Manuel, Maria Bárbara e Amância, todos três a um tempo, chamaram para a mesa, com autoridade benfazeja. Houve um sussurro de prazer. — Olha, filha, que já tinha o estômago a dar horas!... cochichou D. Maria do Carmo, ao passar por Ana Rosa. Subiram todos para a varanda e foram tomando vivamente os seus lugares à mesa, entre uma confusão de vozes, a discutirem mil assuntos. — Homem! exclamou Sebastião Campos, parece que tomaram alma nova só com o cheiro!... O Freitas amolava Raimundo sobre poesia popular; falou, com assombro, de Juvenal Galeno. — Muito original! muito original! — Do Ceará, não? — Todo inteiro! Ah, o senhor não imagina o que é aquela provinciazinha para as trovas populares! E, antes que Raimundo desse alguma providência contra a maçada, já o Freitas lhe recitava junto ao ouvido: “Quando passares na nua, Escarra, cospe no chão! Qu’estou cosendo à candeia Não sei se passas ou não!...” — Pois não há como uma festa no sítio! dizia Sebastião por outro lado. Isto de pândegas, ou bem que é pândega ou bem que não é! O Freitas insistia: “Sinhá, me dê qualquer coisa, Inda que só uma banana, Que a barriga é bicho burro, Com qualquer coisa s’engana!” Raimundo já não o ouvia: prestava atenção a uma conversa entre Bibina, Lindoca e Eufrásia. — Vocês não tiraram a sorte esta noite? perguntou a última. — Como não? disse a gorda, porém não vi nada, ou pelo menos não acertei com o que apareceu ... — Não, pois eu, declarou a viúva, tirei uma sorte bem bonita... — Que foi? Que foi? — Um véu branco e uma grinalda! — Casamento! gritaram várias vozes. — Eu tirei um “túmulo”!... disse do canto da mesa a Lagartixa, suspirando funebremente. — Credo! exclamou Amância, passando com uma salada de agrião, que acabava de preparar. Raimundo, assentado, contra a vontade, ao lado do Freitas, falava com saudade nos costumes portugueses nas noites de São João e São Pedro; contou como era que as raparigas queimavam alcachofras e plantavam-nas em vasos à janela, para ver com elas grelar a sorte; citou o costume das favas sobre o travesseiro, os bochechos de água à meia-noite para se ouvir nome do namorado, as fogueiras de alecrim seco, e enfim aquele uso do copo de água, de que as moças ali falavam. — Um antigo uso! explicava o Freitas, a mastigar pedacinhos de pão. Consiste em deitar ao sereno, na noite de São João, um copo de água com a gema de um ovo... — E a clara! reclamou D. Maria do Carmo, que acompanhava a conversa com muito interesse. — Pois seja assim! a gema e a clara; e no outro dia, pela manhã, dizem que a sorte do indivíduo aparece representada no interior do copo. Patacoadas! — Patacoadas, não! retorquiu a velha, tomando lugar junto das sobrinhas. Cá está quem recebeu a notícia da morte do Espigão muito antes do dia fatal! E levou o guardanapo aos olhos num movimento patético. — Há outros usos, continuou Freitas, passando adiante um prato de sopa. O banho de São João, por exemplo! — Imitações de Portugal... — Quem não se banha amanhã de madrugada, fica com a alma suja! Dizem! — Então, seu Cordeiro! seu Dias! e você lá, menino! não tratam de se assentar? intimou Manuel. —Nós esperamos a outra mesa... respondeu modestamente o Dias. Não há mais lugares... — Qual outra mesa, o quê! Não, senhor! Sente-se cá, seu Dias! E o negociante abriu um lugar ao lado da filha. Luís Dias, todo vexado, foi assentar-se, sorrindo, ao lado de Ana Rosa, que fez logo um gesto de contrariedade e repugnância. — E lá os senhores? seu Cordeiro! seu Vila Rica! e esse menino! Venham se chegando! — Nós esperamos... Faz-se depois outra mesa!... — E a darem com a outra mesa! Não, senhor! e a senhora, minha sogra? D. Amância, onde ficam? — Tem aqui um lugar, minha senhora!... disse Raimundo levantando-se. E ofereceu a cadeira. — Meu amigo, censurou Manuel, deixe-se dessas coisas! Olhe que estamos no sítio! Isto cá não é cidade para se fazer cerimônias! — Pagode de sítio não presta, quando nada falta!... arriscou o Serra, mexendo e soprando uma colherada de sopa. — Não! contradisse o Freitas. Quero a minha comodidade até no inferno! — Ora está tudo arranjado! gritou Amância, que acabava de preparar outra mesa. Ficamos nós aqui! Somos poucos, porém bons!... — E eles lá?... interrogou Vila Rica, contando as pessoas da mesa grande, pela seguinte ordem, a partir da cabeceira: “O patrão — um, senhor cônego — dois, D. Maria do Carmo — três, as duas sobrinhas — cinco, o Dr. Raimundo — seis, seu Freitas e a filha — oito, D. Eufrasinha — nove, seu Serra e aquele moço — era o Faísca — onze, o Dias e D. Anica — treze ao todo! — Treze?! bradou D. Maria do Carmo, soprando o macarrão que tinha na boca. Treze! — Treze! repetiram todas as senhoras, assustadas. — Saia um! reclamaram. Ninguém se mexeu. — Ou venha outro... lembrou o cônego, largando a colher. Em treze não pode ficar! Suspendeu-se o jantar. O Freitas passou logo a dar explicações a Raimundo do que aquilo queria dizer, posto haver este declarado de pronto que já sabia perfeitamente. — Não há mais ninguém por aí? Maria Bárbara levantou-se e foi buscar lá dentro uma negrinha de três anos. — Aqui tem! — E verdade! E o Casusa?!... — É verdade, gente, seu Casusa!... — Venha o Casusa! Casusa dormia. Tinha tomado um banho e recolhera-se cansado. A pequena foi novamente levada para a cozinha. — Moleque! Chama seu Casusa aí no quarto! O Casusa veio bocejando e esticando os braços. — Para que jantar tão cedo?... Não tenho apetite algum!... resmungava ele, abrindo a boca. — Cedo!... Se lhe parece!... Já deram cinco horas! — Quase que ficavas a ver navios!... considerou Sebastião, rindo. — Olha o prejuízo!... desdenhou Amância, com um esgar de pouco caso. — Tu já queres inticar comigo, coração?... Depois te queixa!... Mas, enfim onde me assento? O que não vejo é lugar! Ah, exclamou, voltando-se para a mesa pequena. Tenho-o cá, e em boa companhia! — Pra lá, opôs-se Amância, escandalizada. —Venha pra cá, homem de Deus! Você é cá necessário! E com dificuldade arranjou-se uma cadeira ao lado de Sebastião. — Ora até que afinal! disse Manuel, assentando-se descansadamente. — Tollitur quaestio! E o cônego sorveu uma colherada de sopa. Fez-se silêncio por um instante; só se ouvia o arrastar das colheres no fundo do prato e os assovios dos que chuchurreavam o macarrão. O Cordeiro cercava Amância e Maria Bárbara de cuidados, cuja delicadeza procurava acentuar à força de diminutivos: — Uma coxinha de galinha, senhora D. Amancinha!... — É um perfeito cavalheiro!... segredava esta à outra velha. Compare-o só com a peste do Casusa!... — Não! que os rapazes de lá são mais aqueles... está provado! — Têm outro assento que não têm os de cá! — O senhor Serra, passa-me o pires das azeitonas?... É bondade. — Quer mais pirão, D. Lindoca? — Muito obrigada, assim! chega! Um tiquinho só! — Gentes?... você come essa pimenta toda, D. Etelvina?!... — Basta, oh! Não quero afogar-me em caldo! — Tenha o obséquio de encolher as asas, meu amigo! — Não enchas a boca desse modo!... dizia em segredo a velha Sarmento a uma das sobrinhas. Era o que tinha o Espigão! — comia como um danado, mas ninguém dava por isso! — Olhe que você me suja de gordura, seu Casusa! Que diabo de homem!... — Então! Quem mexe esta salada?! — A salada, sentenciou judiciosamente o Freitas com um sorriso, deve ser mexida por um doido! — Então, tome conta, seu Casusa! — Quanto quer o menino pela graça?... Se tivesse um vintém aqui, dava-lho, “seu poeta!” Isto era entre o Casusa e o Faísca. — Doutor, não deixe apagar a lanterna! recomendava Manuel a Raimundo. — Uma fatia de porco, D. Maria Bárbara. — Deite menos, minha vida! Assinzinho! — Dona Etelvina! a senhora está magra de não comer!... — Ai! suspirou ela, fitando o talher cruzado sobre o prato. — Não queres arroz, ó Sebastião? — Não! Vou à farinha-d’água. — Um brinde! gritou Casusa, levantando-se e suspendendo o copo à altura da cabeça. Ao belo madamismo maranhense, que hoje nos honra! — Hup! Hup! bangüê! —Aproveito a ocasião, meus senhores, para agradecer o obséquio que me fazem, e à minha sogra, comparecendo a esta nossa velha festa da família! Era Manuel que falava. Seguiu-se um inferno de vivas e hurras que se prolongaram em medonha berraria. Os caixeiros do autor do brinde, já um pouco eletrizados pelo vinho, gritaram familiarmente: “Viva o Manuel!” Houve uma voz indiscreta que gritou: — Manuel Pescada. Mas restabeleceu-se a ordem, e só se ouvia, além do rumor dos talheres e dos queixos, a voz avinhada do Cordeiro, que gritava para a sua vizinha da direita com uma solicitude exagerada: — Beba! beba, D. Amancinha! Ataque-lhe pra baixo, que é o que se leva desta vida! E batia-lhe no ombro, revirando os olhos, em que o álcool pusera faíscas. — Credo! O senhor quer m’embebedar?!... E, como o Cordeiro insistisse em servi-la de Lisboa, Amância retirou o copo e o vinho derramou-se-lhe no prato, pela mesa e sobre as pernas. — Ui! fez ela, arredando súbito a cadeira, e gritou: — Que selvageria, Virgem Santíssima! — Farinha! Farinha seca, D. Amância! Farinha seca! receitavam de todos os lados. O Cordeiro, já pronto, tomou a cuia da farinha e despejou-a em cheio sobre a pobre velha, que entrou a tossir muito sufocada. Foi um gargalhadão geral e prolongado. — Cruzes! Valha-me Deus, com os diabos! berrou Amância, quando pôde falar, e a sacudir-se toda, muito enfarinhada. Arre! Aqui mesmo não me sento mais! — Vem cá pro meu lado, perdição! dizia Casusa, convidando Amância entre o riso da mesa inteira. — Se a farinha é o antídoto cure-se agora com este! aconselhou Raimundo por pilhéria. — Até você?! esbravejou Amância, cega de raiva. Ora mire-se! Quer um espelho?!... — Preferia uma escova, minha senhora, para limpar-lhe a roupa. As gargalhadas repetiam-se já sem intervalo, contagiosamente, sem precisar de mais nada para as provocar. — Vinho derramado — sinal de alegria! decidiu Freitas, preocupado a esbrugar uma canela de frango, sem querer lambuzar os bigodes. Serviu-se a sobremesa e reformou-se a bebida. Veio Porto em cálices. — Uma saúde! exigiu Cordeiro, mal podendo ter-se nas pernas. Criou-se logo silêncio, em que se destacavam estas frases: — Mau!... Temos carraspana?... — Cabeça fraca de rapaz!... — Esse bruto a teima em beber! Forte birra! — Diabo do homem não pode ir a parte alguma! — Vai já tudo isto raso! — Pscio... pscio!... — Meus senhores... e minhas senhoras, de ambos os sexos! Eu vou beber à saúde do melhor... sim! do melhor, por que não?! do melhor patrão que todos nós temos tido, aquele que está me olhando, o Manuel Pescada! Houve um sussurro de repreensão. — Ou da Silva! emendou o orador. É um homem sem aquelas! É um mel!... para um serviço... quer dizer, quando a gente precisa dele, pode falar, que é o mesmo! Mas... O sussurro aumentou. — Cale-se! dizia baixo o Vila Rica, a puxar o paletó do Cordeiro. Cale-se com os diabos! Você está servindo de bobo! — Mas! berrou o espingardeiro, sem fazer caso das advertências do colega, o que não posso admitir, é a porção de picardias e desaforos, que ele me está a fazer constantemente!... O sussurro transformou-se em um coro de protestos, que apagava os berros do orador; as moças atiravam-lhe bolas de miolo de pão; Manuelzinho, muito vermelho, possuía-se de uma hilaridade excepcional; Vila Rica puxava com ambas as mãos o paletó do Cordeiro. — Solte-me! roncou este. Solte-me, com todos os diabos! ou vou-lhe aos queixos! Meta-se lá com a sua vida, e deixe-me! quero desabafar! Sebo! Não me calo, entende?! Não me calo, porque não quero! não me calo! não me calo! — Sim! continuou em tom de discurso, não admito os seus desaforos!... Ainda outro dia... — Viva o Manuel! gritou um. — Vivô! respondia o coro. — Seu Manuel! à sua! — À sua! — Hup! hup! hurra! — Bangüê! gritou Cordeiro, e quebrou o copo na mesa. É de quebrar. — Só se fosse a tua cabeça, grandíssimo borracho! resmungou o Serra, muito maçado. — Atenção! atenção, meus senhores!... Era a voz do Faísca, acompanhada de palmas. — Atenção! E tirou da algibeira uma folha de papel. Fez-se algum silêncio, e o Faísca, depois de puxar os punhos, começou a falar, com uma voz aflautada, cheia de afetações e com a minuciosa mímica dos míopes; a cabecinha inquieta muito arrebitada, os olhos esticados, procurando alcançar o vidro das lunetas; a boca aberta e as ventas distendidas. — Meus senhores!... Em tal dia... eu não podia deixar de fazer... uma poesia!... — É verso! É verso! declarou Bibina, a bater palmas, contente. — Eu creio também que sim... é uma poesia em verso!... — E por isso... continuou Faísca, calcando a luneta, que o suor fazia escorregar — recorrendo às musas, ouso erguer a minha débil voz, para oferecer, como penhor de estima e consideração, ao senhor Manuel, digno negociante matriculado da nossa Praça, este modesto soneto, que... se não prima... sim!... se não prima... — Primasse! gritou o Cordeiro. Faísca, todo atrapalhado, procurava uma palavra. — Venham os versos! — Venha a poesia! Reclamavam. “Filho da antiga terra de Camões!” principiou o Faísca a recitar, trêmulo. — Filho da antiga terra de Camões! repetiu o Cordeiro, arremedando-lhe a voz. — Homem! você não se calará? repreendeu Manuel. O recitador prosseguiu: “Filho da antiga terra de Camões! E nosso irmão de leite e companhia!...” — Leite e companhia?... considerou o Serra na sua seriedade, meditando. Não! me é estranha a firma!... Ora espere!... Será com o José e Cia., do Piauí?!... Faísca continuou, muito enfiado: “Eu quero vos saudar no augusto dia, Em que só juntos estão amigos bons!” — Bravo! Bravo! — Olha, gentes! — rimou! — Pscio!... Pscio!... — Diga outro, seu Rosinha? — Diga outro verso! — Diga um de transporte!... lembrou Etelvina com um suspiro. — Silêncio! Mas o poeta não pôde continuar, porque, em um movimento de atrapalhação, caíra-lhe o pince-nez dentro de uma compoteira de doce de calda. — Um brinde! pediu Casusa. Um brinde! — Silêncio! — Espere! — Ordem! — Ne quid nimis! E, depois destas palavras, ouviu-se a voz de Maria Bárbara, dizendo a D. Maria do Carmo: — Minha vida, coma uma naquinha de melão! Passou-lhe o prato. — Ai, filha! não sei se poderei entrar nele!... considerou lamentosa a viúva do Espigão, lembrando-se do protesto que fizera contra os pepinos e a sua competente família — senhor Doutor, inquiriu ela de Raimundo, o melão será da família dos pepinos? — Sim, minha senhora, pertencem ambos à dos cucurbitáceos. — Como? perguntou a velha com a boca cheia de arroz-doce. — Quer dizer, explicou logo o Freitas, radiante por pilhar uma ocasião de expor os seus conhecimentos, — quer dizer que é um fruto cucurbitáceo, da importante família dos dicotiledôneos, segundo Jussieu, ou das calicífloras, segundo De Candole. — Fiquei na mesma com a tal família dos califorchons! — Que família? que família? O que foi que fez ela?! Algum escândalo, aposto? fariscou Amância, pensando, assanhada já, a sentir o cheiro de uma intriga. Quando eu digo!... Não há em quem fiar hoje em dia! Mas quem são esses danados? qual é a família? — É a dos cucurbitáceos. — Ah! são estrangeiros!... Já sei, já sei! é uma família de bifes, que está morando no Hotel da Boavista! É certo, agora me lembro que ainda est’outr’dia uma sujeita ruiva... deve ser mulher ou filha do tal... como se chama mesmo?.. — Quem, D. Amância? A senhora está fazendo uma embrulhada da nossa morte!... — O tal inglês! — Que inglês? Ninguém aqui falou em ingleses, nem franceses! E Maria do Carmo passou a explicar à amiga que se tratava de pepinos e melões. Casusa continuava a discursar num brinde feito ao Serra (a uma de cujas filhas pretendia); já lhe tinha chamado gênio e agora comparava-o a um lírio pendido na estrada; o bom homem escutava-o, sorrindo, sem compreender; enquanto Raimundo, com a cabeça quase dentro do prato, suportava o Freitas, suspirando pelo fim do jantar, para fugir-lhe. O maçante, elogiava a sua própria memória com a vaidade do costume: — O senhor ainda não viu nada... segredava ele ao outro. Sei discursos inteiros, longos, que ouvi há dez anos! sei de cor, meu caro doutor, extensas poesias que apenas li duas vezes! Não acha extraordinário?... — Decerto... E o desalmado, como prova, entrou a recitar “A Judia” de Tomás Ribeiro, que tinha nesse tempo no Maranhão um cheiro ativo de novidade: “Corria branda a noite. O Tejo era sereno!...” — Mais alto! reclamou, da mesa pequena, o Cordeiro, com um grito. Não chega até cá. Queremos ouvir o recitativo!... E, como Raimundo conseguisse fazer calar o Freitas, aquele levantou-se arrebatadamente e pôs-se a estropiar uma chula: “Carolina que horas são estas?... Nove horas no bronze da torre!” — Cante antes o “Não quero que ninguém me prenda!” aconselhou Eufrasinha, com uma risada. — Gentes! disseram outras moças, admiradas do desembaraço da viúva. Cordeiro obedeceu, e, trepando na cadeira, tomou uma garrafa pelo gargalo, ergueu-a e, berrou o que então representava na província o hino dos borrachos: “Eu não quero que ninguém de prenda; Aihée! Debaixo do meu pifão! Quando fores de noite à rua, Aihée! Leva cheio o garrafão! Seu soldado não me prenda, Não me leve pro quarté! Eu não vim fazer barulho, Vim buscar minha mulhé! Aihée! Debaixo do meu pifão! Quando fores de noite à rua, Aihée! Leva cheio o garrafão! A pouco e pouco, iam todos, menos o Dias, acompanhando em coro o terrível “Aihée!” e batendo, até algumas senhoras, com a faca nos pratos. Daí a nada, era uma algazarra em que ninguém já se entendia. A confusão tornou-se, afinal, completa; faziam-se brindes de braço entrançado, bebia-se de copos trocados; misturavam-se vinhos; soltavam-se gargalhadas estrepitosas; cruzavam-se projéteis de miolo de pão, quebravam-se copos e, dentro de todo esse tumulto, destacava-se a voz rouca do Casusa, que insistia no seu brinde ao Serra, a quem agora chamava berrando: “Poeta do Comércio! Colosso de negócios!” As senhoras tinham-se já levantado dos lugares e palitavam os dentes, encostadas às competentes cadeiras, meio entorpecidas na repleção do estômago. A noite fechava-se. Maria Bárbara afastara-se para dar providências sobre a luz. Ouvia-se uma voz a discutir gramática com o Faísca; Cordeiro, que se calara afinal, caíra em prostração, derreado na cadeira e com as pernas estendidas em cima da que Amância deixara vazia. Entretanto, o Freitas, sempre teso, sem alteração alguma na sua roupa de brim engomado, pediu “vênia” para erguer um modesto brinde... Limpou a superfície dos lábios com o guardanapo dobrado, que pousou depois vagarosamente sobre a mesa; passou a enorme unha do seu dedo mínimo no desfibrado bigode, e, fitando uma compoteira de doce de pacovas — erguida a mão direita, na atitude de quem mostra uma pitada —declamou com ênfase: — Meus ilustres senhores e respeitabilíssimas senhoras!... Houve uma pausa. Não poderíamos, pela ventura, terminar satisfatoriamente esta, tão pequena quão antiga e tradicional festa de família, sem brindarmos uma pessoa respeitável e digna de toda a consideração e respeito! Por isso... eu! eu, senhores, o mais insignificante, mais insuficiente de todos nós! ... — Não apoiado! Não apoiado! — Apoiado! dizia o Cordeiro com os olhos, vidrados. — Sim! — eu, cuja voz não foi bafejada pelo dom sagrado da eloqüência! Eu, que não possuo a palavra divina dos Cícero, dos Demóstenes, dos Mirabeau, dos José Estevão, et cetera, et cetera! eu, meus senhores! vou brindar... a quem?!. E desenrolou um repertório interminável de fórmulas misteriosas apropriadas à situação, exclamando no fim, cheio de sibilos: — Inútil é dizer o nome!... Todos perguntavam entre si com quem seria o brinde. Houve teimas, fizeram-se apostas. — Mais do que inútil é dizer o nome, prosseguiu o discursador, saboreando o efeito da sua impenetrável alusão, mais do que inútil é dizer o nome! porquanto já sabeis de sobra que falo com referência à Excelentíssima Sr.ª Dona... (nova pausa) Maria Bárbara Mendonça de Melo!... Fez-se uma balbúrdia de exclamações. — D. Maria Bárbara! D. Maria Bárbara! gritavam muitas vozes. E todos se voltavam para o interior da casa. — Minha sogra! — Minha sogra! — D. Babu! — D. Maria Bárbara! Ela apareceu afinal, trazendo na mão um candeeiro aceso. — Cá estou! cá estou! E, toda desfeita em risos, pôs o candeeiro sobre a mesa e bebeu do primeiro copo que lhe levaram à boca. Seguiu-se um formidável “hup! hup! hurra!”. E a música atacou o Hino Brasileiro. — O nosso hino! disse misteriosamente o Freitas a Raimundo, tocando-lhe no ombro. Um dos mais lindos que conheço!... — Chit! Com os diabos! resmungou o Dias, empalidecendo e levando as mãos à cabeça. — Que é? que é? Voltavam-se todos para ele. — Nada... nada... disfarçou, sem despregar mais os lábios. É que só agora, à vista da luz, se lembrara de não haver apagado a vela do quarto de Maria Bárbara. Serviu-se o café, vieram os licores, o conhaque e a cana-capim. O Dias sentia-se cada vez mais preocupado. Ora que ferro!... Esquecer-se de soprar aquela maldita vela!... Que diabo! podia haver um incêndio e lá ir tudo pelos ares!... Sebastião Campos desapareceu com o Casusa, levando a sua cesta de fogos, e todos os outros, mais ou menos excitados pelas libações, aproximaram-se das anteparas da varanda. Cerrara-se completamente a noite; viam-se já os pirilampos da quinta palpitando na sombra; punha-se nova mesa, para os músicos, que continuavam a tocar; o Cordeiro sapateava um fadinho ao som do Hino Nacional, mal podendo ter-se nas pernas; o Serra, boleando o seu respeitável ventre foi desafiado pela gorda Lindoca, e dançaram ambos; o Serra puxou Manuel, e, com o exemplo do patrão, atiraram-se também o Vila Rica e Manuelzinho, sem mais contemplações com a rigorosa pragmática comercial. O Faísca, que era fraco da cabeça e do estômago, dava para chorar espetaculosamente, lamentando-se com ânsias e suores frios; dizia sentir um desgosto tremendo da vida, uma inabalável resolução de suicidar-se e uma vontade estúpida de vomitar. Então um busca-pé, descrevendo no ar incendiados caracóis de grossas faíscas, foi cravar-se no rebordo da varanda, bem junto ao lugar em que estava Amância. — Credo! Fez-se um espalhafato. A velha pulou para trás, tossindo sufocada e o Cordeiro afiançava que, indo ela tomar fôlego, engolira um busca-pé aceso. Ana Rosa, com o susto, correu até ao lado oposto da varanda, onde não chegava claridade. e caiu trêmula nos braços de Raimundo, que, contra os seus hábitos de rapaz sério, ferrou-lhe dois beijos mestres. Os busca-pés repetiam-se lá fora sem interrupção. Acenderam-se afinal, os candeeiros e iluminou-se, a velas de cera, ao fundo do lado esquerdo da varanda, o vistoso altar, onde São João Batista, no meio de uma fulgência de luzes e flores de papel dourado, resplandeceu com o seu cordeirinho nos braços e segurando um cajado de prata. Ficou tudo claro e alegre. Os músicos foram para a mesa, e Manuel distribuiu fogos por todos os convidados. As moças queimavam pistolas; os homens carretilhas, foguetes e bombas. Levantou-se defronte da casa uma grande fogueira de barricas alcatroadas, depois outras; e a varanda, com os seus estampidos, afogueada pelo clarão vermelho, cuspindo balas brilhantes e multicores, parecia um baluarte em guerra. Dias, alheio a tudo isso, passeava de um para outro lado, embebido na sua preocupação. Aquelas pistolas, brancas e compridas, ainda mais o irritavam, porque pareciam velas de cera. Depois de jantar, a banda de música retirou-se, tocando uma coisa alegre. — Seu Freitas, dizia Bibina, me acenda esta rodinha! — Ui! gritava ao mesmo tempo a Eufrasinha, procurando queimar uma pistola, tenho medo disto que me pélo! — Pegue com o lenço, aconselhava a tia Sarmento. — Seu moço, me escorve isto, por seu favor... Sebastião e Casusa continuavam lá embaixo às voltas com os busca-pés, que se cruzavam no ar freneticamente. Raimundo, ao lado de Ana Rosa, acendia no seu charuto os fogos que ela tocava, e falava-lhe baixinho em casamento. — Na primeira ocasião falo a teu pai... — E por que não falas amanhã?... mamãe foi pedida justamente num dia de São João! — Pois bem, amanhã!. . — Não m’enganas?... — Não. E tu, dize, tu me estimas deveras?... Olha que o casamento é coisa muito séria!. — Eu adoro-te, meu amor!... — Está aí o padre! Gritou Sebastião lá de baixo. — Chegou o padre! Chegou o padre! repetiram muitas vozes. Frei Lamparinas, efetivamente, chegava para cantar a ladainha. Acompanhavam-no quatro sujeitos de ar farandulesco; caras avermelhadas pela cachaça, cabeleiras à nazarena, paletós insuficientes, olhares cansados; um todo cheio de insônia e movimentos reservados de quem não conhece o dono da casa em que se apresenta. Eram músicos de contrato, pândegos afeitos às serenatas, aos chinfrins de todo o gênero, estômagos vitimados às comezainas fora de horas, cujas digestões põem manchas biliosas na face. Um trazia um violão debaixo do braço, outro uma flauta, outro um pistão e outro uma rabeca. Entraram em rebanho, com os pés surdos e foram assentar-se, modestamente risonhos, na amurada varanda, a cochicharem entre si, olhando com tristeza gástrica para os destroços da mesa. Casusa, que os seguiu desde lá debaixo, foi o único a cumprimentá-los, a cada um de per si, dando-lhes o nome e recebendo o tratamento de tu. Fez logo vir uma garrafa e serviu com intimidade, a rir, lembrando-lhes outras patuscadas em que estiveram juntos. Manuel acudiu também, oferecendo-lhes de comer, e insistindo principalmente com Frei Lamparinas que ainda não tinha jantado, conforme ele próprio confessava. Recusaram-se todos, prometendo cear depois da ladainha. “Comeriam mais à vontade!” — Pois então vamos à ladainha! E dispuseram-se para a nova festa que ia principiar. Sebastião Campos continuava na quinta, a soltar os seus busca-pés e as suas formidáveis bombas, que estrondavam como canhões. “Ah! só tocava fogo fabricado por ele próprio! Não tinha confiança nesses fogueteiros de meia-tigela!...” As barricas estalavam em labaredas fiscalizadas por Benedito. Havia por toda a parte uma reverberação vermelha e um cheiro marcial de pólvora queimada. Defronte da casa as árvores erguiam-se, arremedando uma apoteose de inferno. As mãos encardiam-se, as roupas saraqueimavam-se com faíscas. Algumas pessoas saltavam as fogueiras; outras de mãos dadas e braços erguidos, passeavam em torno delas, com solenidade, arranjando compradescos. — Quer ser minha comadre, D. Anica? perguntou Casusa a Ana Rosa. — Vamos lá! E desceram à quinta. Aí, com a fogueira entre ambos, deram a mão um ao outro e passaram três voltas rápidas em torno das chamas, com os braços erguidos, a dizer de cada vez: — Por São João! Por São Pedro! Por São Paulo! E por toda a corte do céu! Na varanda, Lamparinas dava tranqüilamente, no meio de um grupo, a notícia de ter havido incêndio na cidade. — Onde? perguntaram assustados. — Na Praia Grande. Dias, sem dar uma palavra, atirou-se de carreira para a quinta e desapareceu logo na alameda de mangueiras. Freitas expôs a Raimundo o grande inconveniente daquele brinquedo bárbaro do fogo. “Quase sempre, nos dias de São João e São Pedro havia incêndios na cidade!... Os negociantes apertados aproveitavam a ocasião para liquidar a casa!...” Entretanto, o Serra apontando para o lugar onde desaparecera o caixeiro de Manuel, dizia ao ouvido deste: “Aquilo é que é um empregado de truz, seu colega! Tenho inveja de você, acredite! Vale quanto pesa! “ Lamparinas procurava tranqüilizar o ânimo dos dois negociantes, declarando que o fogo era na Praça do Comércio e que não atingira grandes proporções. “Aquela hora talvez já não houvesse vestígio dele!...” Varreu-se a varanda em todos os seus quatro lados; estenderam-se esteiras de meaçaba sobre o tijolo, no lugar em que as devotas teriam de ajoelhar-se; acenderam-se mais algumas velas no altar, onde Frei Lamparinas ia recitar a sua “milésima ladainha”, segundo o que nesse momento acabava de dizer o Freitas. — Milésima?... perguntou Raimundo, pasmado. — Admira-se, hein?... volveu o homem da unha grande. Pois olhe, só neste sítio, a julgar de um pequeno cálculo, que me dei ao trabalho de fazer, tem ele engrolado nunca menos de 657 ladainhas! E, a propósito, Freitas contou minuciosamente o clássico costume daquela festa de São João. — Hoje não se faz nada, à vista do que já se fez!... dizia. Bons rega-bofes tivemos no tempo do coronel, em que se faziam novenas e trezenas de São João! E era dançar pra aí toda a noite, sem descansar! Meu amigo, era uma brincadeirazinha que rendia seguramente meio mês de verdadeira folia! E, com um ar misterioso, como quem vai fazer uma revelação de suma importância: — Quer que lhe diga, aqui entre nós?... As moças de hoje não valem as velhas daquele tempo!... E o maroto cascalhou uma risada, como se houvera dito alguma coisa com graça. Os fogos continuavam ainda e os ânimos persistiam quentes, quando, de improviso, se abriu a porta de um quarto, e o padre Lamparinas apareceu, todo aparamentado com a sua sobrepeliz nova; o livro da reza entre os dedos, os óculos montados no nariz adunco, os passos solenes, o ar cheio de religião. E arvorou-se nos degraus do altar, anunciando que ia dar começo à ladainha. Houve um prolongado rumor de saias, e as mulheres ajoelharam-se defronte do padre. Do alto, contra a luz da velas de cera, desenhava-se em sombrinha o vulto do Lamparinas, anguloso, com os braços levantados para o teto, num êxtase convencional. Os homens aproximaram-se todos, à exceção do Faísca, que dormia. Alguns ajoelharam-se também. Atiraram-se fora os charutos em meio; deixaram-se em paz os busca-pés e as bombas; correu silêncio. E a voz fúnebre do Lamparinas chiou confusamente a Tua Domine. — Então não temos jaculatória?... perguntou Amância, escandalizada. Lamparinas atirou-lhe uma olhadela repreensiva, e concentrou-se de novo em sua oração, concluindo: — Apresentamos, Senhor, estas ofertas, sobre os vossos altares, para celebrarmos esta festa, com a honra que é devida ao nascimento daquele santo, que, além de anunciar a vinda do Salvador ao mundo, nos mostrou também que era já nascido o mesmo Jesus Cristo nosso Senhor, que conosco vive e reina em unidade. — Apoiado! gritou o Cordeiro. Desencadeou-se um sussurro de indignação. Todavia, entre a tosse, os escarros secos e alguns espirros dispersos, que se acusavam daqui e dali, continuou fanhoso o Lamparinas: — Gratiam tuam, quoesumus, Domine, mentibus nostris infunde, ut qui Angelo nuntiante Christi Filii tui incamationem cognovimus, per passionem ejus et crucem ad ressurrectionis gloriam perducamus. Per eumdem Christum Dominum Nostrum. Amen! — Amen! disseram em coro. E a voz do Lamparina chilreava, acompanhada pela música: — Kyrie eleison! Os devotos e devotas respondiam cantando em todos os tons: — Ora... pro... nobis! E este bis final ia longe! — Christe eleison! — Ora pro nobis! Destacava-se a voz grossa e avinhada do Cordeiro, que sempre se demorava no canto e arrastava escandalosamente o bis. — Diabo do herege!... resmungou Amância, sem desfazer a sua atitude beata. — Pater de caelis, Deus, miserere nobis!... — Ora pro nobis!... insistia o coro — Fili Redemptor mundi, Deus, miserere nobis. — Ora pro nobis! E o pobre Lamparinas, no fim de um quarto de hora desta música, sentia-se plenamente no seu elemento, entusiasmava-se, cantava, marcando frenético o compasso com o pé, e quase dançando. Já não espera pelo “Ora pro nobis”, ia gritando: — Santa Maria! — Santa Dei genitrix! — Santa virgo Virginum! — Mater puríssima! E o coro, e a música, a correrem atrás dele, a toda a força. Mas o especialista das ladainhas teve de interromper o seu entusiasmo, porque, em torno de Maria do Carmo, levantava-se um zunzum. — Que terá minha tia?!... exclamou Etelvina alvoroçada. — Mamãe-outrinha! Jesus! Valha-me Deus! — O que é? — Que foi? — Que tem? — Que sucedeu? Ninguém sabia. Entretanto, Maria do Carmo, ajoelhada, hirta, com o queixo enterrado entre as clavículas, tinha uma imobilidade aterradora no olhar. — Credo! gritou Amância, benzendo-se. As sobrinhas puseram-se logo a chorar ruidosamente; Ana Rosa, Eufrásia e Lindoca imitaram-nas no mesmo instante. Correram todos para o lugar do sinistro; os músicos com os instrumentos debaixo do braço; Lamparinas com o manual de rezas marcado pelo indicador da mão direita. Ouvia-se roncar estranhamente o ventre de Maria do Carmo. Raimundo abriu caminho, chegou onde ela estava, suspendeu-lhe a cabeça e, ao soltá-la de novo, uma golfada de vômito podre jorrou pelo corpo da velha. — É um vólvulo! disse ele, voltando a cabeça. — Do latim — volvulus — segredou-lhe o Freitas, que o acompanhara até lá. Maria do Carmo foi carregada para o quarto. Estenderam-na em uma marquesa. Pingava-lhe de todo o corpo um suor copioso e frio; tinha o ventre duro como pedra. Raimundo fez darem-lhe azeite doce e aconselhou que mandassem comprar, quanto antes, eletuário de sena. Correu-se a chamar o médico na cidade. A doente voltou a si, mas sentia cólicas horríveis, comichão por todo o corpo; queixava-se de grande secura, e delirava de instante a instante. Daí a meia hora vieram de novo os vômitos; cresceram-lhe as agonias; aumentavam-lhe os rebates intestinais. A pobre velha estorcia-se, arranhava a palhinha da marquesa, cravando as unhas na madeira. Em torno dela fazia-se um silêncio aterrador. Afinal chegou-lhe a reação: deu um arranco dos pés à cabeça e ficou logo imóvel. Raimundo pediu um espelho; colocou-o defronte da boca de Maria do Carmo, observou-o depois e disse secamente: — Está morta. Foi um berreiro geral. Etelvina caiu para trás, estrebuchando num histérico; Manuel arredou a filha daquele lugar. Acudiram todos os de casa. Os ânimos que o vinho entorpecia, acordaram como por encanto. A situação incontinenti tornou-se lúgubre. O Cordeiro, já em seu juízo perfeito, ajudou a carregar o cadáver, afastou cadeiras, arrastou uma cômoda, e preparou a encenação da morte. Invadiram o quarto. Os pretos do sítio chegavam-se com medo, apavorados, resmungando monossílabos guturais; o olhar parvo, a boca aberta. Em menos de duas horas, Maria do Carmo estava estendida em um canapé, iluminada por velas de cera, lavada, vestida de novo e penteada. Sobre a cômoda, perto dela, a inalterável imagem de São João Batista, e, ajoelhado no tijolo, com o olhar fito no santo, o cônego, de braços abertos, balbuciava uma oração. Manuel expediu recados para a cidade; seus caixeiros partiram todos; Maria Bárbara fechara-se no quarto e pusera-se a rezar com desespero de beata velha. A agitação era comum. Só Amância conservava o sangue-frio; estava no seu elemento — ia e vinha, dava ordens, dispunha tudo, aconselhava, ralhava, chorando quando era preciso, consolando os desanimados, dizendo rezas, citando fatos, governando, repreendendo aos que não obedeciam, e pondo ela mesma em prática as suas prescrições. Às dez horas da noite, uma rede de algodão, enfiada numa taboca de muitas cores, cujas extremidades dois pretos vigorosos sustentavam no ombro, conduzia o cadáver de Maria do Carmo para o sobrado do Largo das Mercês, com grande acompanhamento de homens e mulheres. Benedito ia na frente, iluminando o fúnebre cortejo à luz ruiva de um enorme archote alcatroado que ele erguia sobre a cabeça. Lamparinas caminhava atrás, furioso, fazendo voar ante seus pés as pedrinhas soltas da estrada, e dando-se aos diabos pela má observância do antigo e confortador provérbio: “O padre onde canta lá janta!” 9 Logo depois da partida do cadáver, Maria Bárbara e Ana Rosa desceram do sítio, em um carro que se mandou buscar; foram diretamente para o Largo das Mercês. Manuel e Raimundo vieram de bonde e seguiram para casa. Mas o rapaz, apesar de fatigado, não conseguiu repousar. Precisava de ar livre. Mudou de roupa e tornou a sair. Passava já de meia-noite. A cidade tinha o caráter especial das vésperas de São João: viam-se restos de fogueiras fulgurando ao longe, em diversos pontos; de quando em quando ouviam-se estalos destacados. Raimundo tomou a direção das Mercês. “Seria crível, pensava pelo caminho, que estivesse deveras enfeitiçado por sua prima?... ou seria tudo aquilo uma dessas impressões passageiras, que nos produz em dias de bom humor um rosto bonito de moça?... Verdade era que nunca se sentira tão preocupado por outra mulher.” — Em todo o caso, concluiu ele, convém dar tempo ao tempo!... Nada de precipitações! Assim raciocinando, no antegosto do seu casamento provável com Ana Rosa, chegou à casa das Sarmentos. Nessa ocasião reuniram-se aí as velhas amizades da defunta, prevenidas logo do triste acontecimento pelos empregados de Manuel. O enterro seria no dia seguinte à tarde. Os conhecidos do comércio mandaram lá os seus caixeiros para ajudarem a encher as cartas de convite e fazerem quarto. Chamou-se logo um armador, para preparar a casa, conforme o uso da província; falou-se a um desenhista para fazer o retrato do cadáver; tomou-se medida e encomendou-se o caixão; discutiu-se a vestimenta que devia levar Maria do Carmo, e resolveu-se que seria a de Nossa Senhora da Conceição, por ser a mais bonita e vistosa. Amância ofereceu-se prontamente para talhar a roupa. “Que não valia a pena encomendá-la ao armador, sobre vir malfeita e malcosida, sairia por um dinheirão!” — Não sei! dizia ela. Todas estas coisas pra enterro custam sempre quatro vezes mais do que podem valer! É uma ladroeira descarada! Por isso enriquecem tão depressa os armadores! diabo dos gatunos! Desta vez a velha tinha razão. Mandaram comprar cetim cor-de-rosa, azul e branco, sapatinhos de baile, escumilha e filó para o véu, que seria franjado de ouro. Uns teimavam que a morta devia levar um ramalhete de cravos na mão; outros negavam, considerando, nem só a idade da defunta, como o seu estado de viúva. E choviam exemplos de parte a parte: — Outro dia, D. Pulquéria das Dores apesar dos seus sessenta anos, levou na mão um enorme ramo de rosas vermelhas! E demais, era casada. — E o que tem isso?! D. Chiquinha Vasconcelos foi de caixão aberto, porém não levava ramalhete, e, até digo-lhe mais, nem palma nem capela! no entanto era solteira e tinha a metade da idade de D. Maria do Carmo. — Mas ia com as faces pintadas de carmim, que é muito pior! Ora aí está!... Além disso, dizia-se da Chiquinha o que todos nós sabemos. Deus me perdoe! Uma mulata obesa cortou o nó górdio da questão, declarando que o ramalhete bem podia ir escondido por debaixo do hábito. Todos concordaram logo. Deu uma hora. Vários caixeiros retiraram-se já com um maço de cartas, que entregariam pela manhã; algumas famílias, vestidas de preto, despediam-se com beijos, pedindo desculpa por não ficarem até à hora do enterro. O armador martelava na sala. A noite caía no silêncio; ouvia-se um ou outro busca-pé retardado. Na rua, grupos pândegos passavam em troça para o banho de São João; do Alto da Carneira vinha um sussurro longínquo de “Bumba-meu-boi”. Cantavam os primeiros galos; cães uivavam distante, prolongadamente; no céu, azul e tranqüilo, uma talhada de lua, triste, sonolenta, mostrava-se como por honra da firma, e, todavia, um homem, de escada ao ombro, ia apagando os lampiões da rua. Raimundo parara um instante, olhando o mar, defronte da casa das Sarmentos. À porta de entrada havia um grande reposteiro de veludo negro, com uma cruz de galões amarelos. Ele considerou o prédio: era um casarão velho, um desses antigos sobrados do Maranhão, que já se vão fazendo raros. Cinqüenta palmos de alto e outros tantos de largo, barra pintada de piche, mostrando a caliça em vários pontos, cinco janelas de peitoril, enfileiradas sobre quatro portas lisas, com um portão entre elas, pesado, batente de cantaria; cheirando tudo a construção dos tempos coloniais, quando a pedra e a madeira de lei estavam ali a dois passos e se levantavam, em terrenos aforados, paredes de uma braça de grossura e degrau de pau-santo. Entrou. O corredor transpirava um caráter sepulcral. Subia-se uma escada feia, acompanhada de um corrimão negro e lustrado pelo uso; nas paredes, via-se, à insuficiente claridade de uma lanterna suja, o sinal gorduroso das mãos dos escravos, e no teto havia lugares encarvoados de fumaça. A escada era dividida em dois lances, dispostos em sentido contrário um do outro; Raimundo chegou ao fim do primeiro lance sufocado, e galgou o segundo de carreira, dando aos diabos o maldito costume de fechar toda a casa, quando ela mais precisa de ar, porque tem dentro um cadáver. Numa das salas da frente, forrada então pelo tapete do armador, tapete velho e, tão crivado de pingos de cera, que o pé escorregava nele, estava um grande tabuleiro de paparaúba, cheio de tochas e enormes castiçais de madeira e folha-de-flandres, pintados de amarelo. Em uma das quatro paredes, cobertas de alto a baixo de veludo preto e orladas de galões de ouro, destacava-se um altar, ainda não aceso, todo estrelado de lantejoulas; carregado de adornos, com uma toalha de rendas no centro, sobre a qual pousavam dois castiçais de latão, pintalgados pelas moscas, tendo entre eles um crucifixo do mesmo metal, extremamente azinhavrado. Defronte estava a essa, enfeitada de acordo com o resto, à espera do caixão, que aquelas horas se preparava em casa do Manuel Serigueiro. Empoleirado numa escada e de martelo em punho, um homem, em mangas de camisa, pregava sobre as portas bambinelas bordadas. — A que horas é o enterro? perguntou-lhe Raimundo. — Às quatro e meia, disse o armador, sem voltar o rosto. Da varanda vinha um murmúrio de vozes. Raimundo seguiu para lá. Varanda larga e alta, caiada, toda aberta para o quintal; telha vã, mostrando os caibros irregulares, donde pendiam melancólicas teias de aranha. Num dos cantos um banco de pau roxo, muito escuro, sustentando, em buracos redondos, dois grandes potes bojudos de barro vermelho; sobre o parapeito da varanda, uma fila de quartinhas também de barro, esfriavam água. Aberto na parede um imenso armário tosco, e logo ao pé um alçapão no soalho, resguardado por uma grade, com a cancela despejada sobre uma escada tenebrosa. Encostado à grade — um sujeito gordo, sem bigode, de óculos e barba debaixo do queixo, dizia a outro do mesmo feitio, batendo com o pé nas largas tábuas do chão. — Hoje ninguém mais pilha deste madeiramento! Repare! É tudo pau-d’arco, pau-santo, pau-cetim, bacuri, jacarandá e pequi! Madeiras que valem o ferro e que nem o machado pode com elas! Em volta de uma mesa, dez homens, a título de fazer quarto à defunta, jogavam cartas, conversando em voz discreta, repetindo xícaras de café e cálices de conhaque, entre pilhérias segredadas, risos abafados e o fumo espesso dos cigarros. Quando Raimundo entrou, confidenciava um deles ao vizinho: — Já não sou homem para estas coisas!... Não posso perder uma noite!... Por mais que beba café, sinto sono!... Porém não podia deixar de vir, era uma ocasião de encontrar-me com a pequena... Não tenho entrada na casa dela... E bocejava. — Conhecias esta velha que morreu? interrogou-lhe o outro. — Não. Creio que a encontrei uma vez em casa do Manuel Pescada... Já estive a olhá-la — é horrível! — Pois aqui onde me vês, estou furioso! O patrão mandou-me para cá, mas com poucas arribo! Tenho um pagode no Cutim e não o perco! — Também porque a velha não escolheu melhor dia pra morrer!... — Logo na véspera de São João! Que espiga! E bocejavam ambos. — Quem é este tipo? perguntou um dos jogadores, vendo entrar Raimundo. Corte com o três de espadas! — É um tal Raimundo... um sujeito que o Pescada tem em casa por compaixão. — O que faz ele? — Dama! — Diz que é doutor. — É meu! — Não parece mau rapaz... — Fia-te! — Já te pregou alguma hein? conta-nos isso! —Não te digo mais nada... Fia-te na Virgem e não corras!... Fizeram uma pausa, em que se ouvia atirar cartas à mesa, com uma pancada de dedos no tapete. — Mas do que vive ele? perguntou o curioso que se informava de Raimundo. — Venha o ás! — Ora do que vive!... Você não tem copas?... Pergunte a toda essa gente sem emprego, de quem oficialmente se diz “vive de agências” e ficarás sabendo. — Ganhei! — Mas o que é ele do Manuel? — Diz que primo... respondeu o outro, baralhando as cartas. — Ah!... — Dê cartas. Raimundo cumprimentou-os e perguntou pela família da defunta. Estava fazendo quarto. Que entrasse por ali, responderam-lhe, indicando uma porta. Logo que o rapaz deu as costas, o maledicente levantou o braço e fez-lhe uma ação feia. — Gosto muito destes tipos, acrescentou, então em voz alta, para o grupo inteiro, depois de um silêncio, todos eles são uma coisa lá por fora “Porque eu fiz! e porque eu aconteci! Porque isto é uma aldeia! É um chiqueiro!” E no entanto metem-se no chiqueiro e daqui não saem!... — Meu amigo, não há Maranhão como este!... — Mas dizem que este cabra tem alguma coisa... arriscou um terceiro. — Qual nada!... Você ainda come araras! Todos eles dizem ter mundos e fundos!... Gosto deste Maranhãozinho, porque não perdoa os tipos que vêm pra cá com pomadas!... O sujeito aqui, que se quiser fazer mais sabichão do que os outros, há de levar na cuia dos quiabos, para não ser pedante! Diabo dos burros! Se sabe muita coisa, guarde pra si a sabedoria, que ninguém por cá precisa dela, nem lha pediu! E não se meta a escrevinhar livrinhos e artigos para os jornais, que isso é ridículo!... Lá o meu patrão é quem sabe haver-se com esses espoletas! Ainda há pouco tempo ele precisou aí não sei de que papel — para o sobrinho que tinha chegado do Porto — e vai — pede a um doutorzinho, muito nosso conhecido, que lhe arranjasse a história... Pois o que pensam vocês que respondeu o tal bisca ao patrão?... Não sabiam. — Pois mandou-o plantar batatas! Chamou-o de toleirão! “Que o que ele queria, era um absurdo!” — Sim, hein?... — Com estas palavras!... Estou lhe dizendo!... Ah, meu amigo, mas também o patrão pregou-lhe uma de respeito!... Você sabe que o Lopes, em questões de capricho, não se importa de gastar dois vinténs... — Sim, como naquela história da comenda... — Bom. Pois ele foi aí a um outro tipo e encomendou-lhe uma dessas descomposturas de criar bicho! — E então? — Ora! Se bem o patrão o disse, melhor o tipo o fez... Ora, espera! Como era mesmo o nome da coisa?... Era... Estou com o diabo na ponta da língua... Ah! Era um anônimo! — Ah! Um anônimo! — Uma descomponenga, que pôs o tal doutorzinho de borra mais raso que o chão! — Ah! Isso foi com o Melinho!... — Foi. Você leu, hein? — Ora, mas aquilo do Lopes foi demais. Desacreditou o pobre moço!... — Não sei! Bem feito! — E, segundo me consta, nem tudo era verdade no tal anônimo! — Não sei!... o caso é que esfregou o tipo! — Sim, mas o que não se pode negar é que o Melinho é um rapaz inteligente e honesto a toda a prova!... — Que lhe faça muito bom proveito! Coma agora da sua inteligência e beba da sua honestidade! Meu menino, deixemo-nos de patacoadas! O tempo hoje é de cobre! Honesto e inteligente é isto!... E com os dedos fazia sinal de dinheiro. — Tenha eu o jimbo seguro, acrescentou, e bem que me importa a boca do mundo! E senão — olhe aí para a nossa sociedade!... E citava nomes muito conhecidos, contava histórias medonhas de contrabandos, de grande ladroeiras, de notas falsas, do diabo! — Sim! sim, isso é velho; mas que fim levou o Melinho? — Sei cá! muscou-se para o Sul! Que o leve o diabo! — Pois olhe, gosto daquele moço!... — Não lhe gabo o gosto! Raimundo, depois de atravessar um quarto espaçoso, penetrou na sala de visitas e achou-se defronte de uma roda de senhoras de todas as idades, na maior parte vestidas de luto, e que, assentadas, fitavam, de cabeça à banda com o olhar cansado e sonolento, o corpo inanimado de Maria do Carmo. Numa rede, a um canto, soluçava Etelvina, escondendo a cabeça entre travesseiros; ao lado, uma mulata gorda e enfeitada de ouro — saia de chamalote preto e toalha de rendas sobre os ombros — dizia maquinalmente as frases da consolação. Assentada no sobrado, sobre uma esteira. Amância talhava o hábito de Nossa Senhora da Conceição, com que a defunta devia ir vestida à fantasia para a sepultura, como se fosse para um baile de máscaras. Nas paredes, os retratos de família estavam cobertos por um vasto crepe; o do tenente Espigão, horrorosamente pintado a óleo, com um colorido cru, tinha através do véu, um sorriso duro, de beiços vermelhos. No meio da sala, em um sofá de gosto antigo, com encosto de palhinha envernizada, decompunha-se o cadáver da velha Sarmento; tinha o rosto coberto por um lenço de labirinto encharcado de água-flórida; as mãos cruzadas sobre o peito e amarradas à força por uma fita de seda azul; as pernas esticadas, o cabelo muito puxado para trás, bem penteado, o corpo todo se mirrando, hirto um pouco empenado na tensão dos músculos. Em cima do ventre opado um prato cheio de sal. À cabeceira do canapé, numa mesinha coberta de rendas, um Cristo colorido, de braços abertos, pendia da cruz, e duas velas de cera derretiam-se no lugar do bom e do mau ladrão. Logo junto, uma vasilha de água benta, com um galinho de alecrim; mais para a frente, uma Nossa Senhora pequenina, de barro pintado. Ouviam-se soluços discretos e o crepitar seco das velas. Raimundo aproximou-se do cadáver e, por mera curiosidade descobriu-lhe o rosto — estava lívido, com os raros dentes à mostra, os olhos mal fechados, mostrando um branco baço, cor de sebo; dos queixos subia-lhe ao alto da cabeça um lenço, amarrado para segurar o queixo. Principiava a cheirar mal. Então, apareceu na sala uma negrinha com uma bandeja de xícaras de café. Serviram-se. Raimundo foi levar uma chávena a Ana Rosa, que se achava entre as senhoras. — Obrigada, disse ela, chorosa, eu já tomei ainda agorinha mesmo. De vez em quando ouvia-se um suspiro estalado e o froon nasal das moças que assoavam as lágrimas. Um grupo de mulheres, de saia e camisa, conversava soturnamente sobre as boas qualidades e as virtudes da defunta. Tinham a voz medrosa de quem receia acordar alguém ou ser ouvido pelo objeto de conversação. — Era pra um tudo!... afirmava uma delas, compungida. Devo-lhas muitas!... que lhas hei de pagar com padre-nossos! Inda s’tr’oudia, quando me atacou a pneumonia na pequena, com quem foi que me achei?!... Pois olhe que os doutores de carta não lhe souberam dar voltas! E hoje, minha rica?... Ela está aí fina e lampeira, que faz gosto, ao passo que a pobre da senhora D. Maria do Carmo... Deus me perdoe, até parece feitiçaria! — E apontou para o cadáver com um gesto desconsolado. — Ao menos descansou, coitada! — Não semos nada neste mundo!... suspirou, com a mão no queixo, uma mulherzinha magra e pisca-pisca, que até então se conservara numa imobilidade enternecida. E contou a história de uma sua camarada, que, havia trinta anos, morrera na flor da idade. Este caso puxou outros. Foi um cordão de anedotas fúnebres. A mulata obesa fechou a rosca, narrando, muito sentida, a história de um papagaio de grande estimação, que ela possuía, e que, um belo dia, cantando, coitado! a “Maria Cachucha”, caíra para trás — morto! — Credo! exclamou Amância. E, voltando-se para a mulata, com os óculos na ponta do nariz. — Nhá Maria! esta espiguilha é toda para o véu, ou tem de se tirar daqui também os laçarotes?... Depois do enterro, quando Maria Bárbara, de volta a casa entrou no seu quarto, dera logo com a vela de cera gasta até o fim e com a singular máscara do seu milagroso São Raimundo; ficou aterrada, sem saber o que pensar, e, na sua cegueira supersticiosa, atirou-se de joelhos defronte do oratório e pôs-se a rezar fervorosamente. Nessa noite, apesar da canseira em que vinha, não pôde dormir senão pela volta da madrugada; e, à força de meditar o caso, acabou por enxergar nele um milagre. Sim, um milagre, justamente como o explicam os catecismos que se dão na escola e como a sua própria mestra lhe ensinara — um mistério incompreensível. “Não havia que duvidar — Deus Nosso Senhor servira-se daquele engenhoso ardil para preveni-la de presentes e futuras calamidades!...” Entretanto, só ao cônego se animou de confiar o fato, e até lhe pediu segredo, que, se o genro viesse a conhecê-lo, havia de sair-se com alguma das suas. Já lhe estava a ouvir resmungar com o seu insuportável risinho de homem sem fé: “Pomadas de minha sogra!...” Além disso, se São Raimundo quisesse tornar público o seu sagrado aviso, não usaria dos meios que empregou!... — Agora, o que está entrando pelos olhos, senhor cônego, é que aquele maldito cabra do Mundico tem parte nisto! Deus queira que eu me engane, porém a coisa toca-lhe a ele por casa! — Pode ser, pode ser... Davus sum non Edipus!... — E o que devo fazer?... — Ofereça uma missa a São Raimundo. Cantada, não seria mau... Uma missinha cantada! Ficaram nisto; mas a velha não podia tranqüilizar-se assim só: afigurava-se-lhe que, em torno dela, grandes transformações se operavam. Verdade é que a morte de Maria do Carmo como que viera perturbar o ramerrão daquela panelinha de Manuel Pescada. Uma semana depois do passamento, chegara de Alcântara um irmão da defunta, e em seguida à missa do sétimo dia, carregou consigo as duas inconsoláveis sobrinhas. Etelvina, embrulhada no seu vestido preto, de lã, encarecera o costume de dar suspiros; Bibina, com grande abnegação, ocultara o cabelo numa coifa de retrós. D. Amância Sousellas, para carpir mais à vontade a perda da amiga, fora passar algumas semanas no recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios, ao calor confortável das rezas e do caldo forro do refeitório. Eufrasinha, percebendo frieza em Ana Rosa, dera-se por magoada e não lhe aparecia. “Que, de algum tempo àquela parte, notava-lhe certo arzinho de constrangimento e fastio, bem aborrecido! A Anica já não era a mesma! Não sabia quem lhe pisara o cachorrinho; tinha plena convicção de estar sendo intrigada por alguma insoneira, mas também tinha alma grande e deixava correr o barco pra Caxias!” A repolhuda Lindoca igualmente se retraíra, mas esta, coitada! por desgosto das suas banhas; já não queria aparecer a pessoa alguma, de vergonha. Entrara, por conselho do pai, a dar longos passeios de madrugada, enquanto houvesse pouca gente na rua, para ver se lhe descaíam as enxúndias, mas qual! a enchente de gordura continuava bolear-lhe cada vez mais os membros. A pobre moça já não tinha feitio; quando saía era obrigada a descansar de vez em quando, provocando olhares de admiração, que a irrintavam; já não podia usar botinas, ficara condenada ao sapato de pano, raso, quase redondo; as suas mãos perderam o direito de tocar nos seus quadris; trazia os braços sempre abertos; o pescoço apresentava roscas assustadoras; os olhos, o nariz e a boca ameaçavam desaparecer afogados nas bochechas. Entretanto, afeiçoava-se pela linha reta, tinha predileções por tudo que era seco e escorrido, olhava com inveja para as magricelas. Freitas gastava os lazeres a consultar tratados de medicina, a ver se descobria remédio contra aquele mal, o bom homem maçava-se; as cadeiras de sua casa estavam todas desconjuntadas: “Daquele modo, não lhe chegaria o ordenado só para mobília” e, como homem fino mandou fazer uma cadeira especial para Lindoca, com parafusos fortes, de madeira de lei. Viviam ambos tristes. E tudo isto, todo esse desgosto surdo que minava na panelinha, era atirado por Maria Bárbara à conta de Raimundo. Queixava-se dele a todos, amargamente; dizia que, depois da chegada de semelhante criatura, a casa parecia amaldiçoada “Tudo agora lhe saía torto!”. Chegou a pedir ao cônego que lhe benzesse o quarto e juntou à promessa da missa mais a de dez libras de cera virgem, que mandaria entregar ao cura da Sé no dia em que o cabra se pusesse ao fresco. Mas, pouco depois, a sogra de Manuel chamou o padre em particular, e disse-lhe radiante de vitória: — Sabe? Já descobri tudo! — Tudo, o quê? — O motivo de todas as desgraças, que nos têm acontecido ultimamente. — E qual é? — O cabra é “bode!...” — Bode?! Como? Maria Bárbara chegou a boca ao ouvido de Diogo e segredou-lhe horripilada: — É maçom! — Ora o que me conta a senhora!... exclamou Diogo, fingindo uma grande indignação. — É o que lhe digo, senhor cônego! O cabra é bode! — Mas isso é sério?... Como veio a senhora a saber?... — Se é sério... Veja isto! E, cheia de repugnância e trejeitos misteriosos, sacou da algibeira da saia o folhetinho de capa verde, que Dias subtraíra da gaveta de Raimundo. — Veja esta bruxaria, reverendo! Veja, e diga ao depois se o danado tem ou não parte com o cão tinhoso! Pois se eu cá sentia um palpite!... E apontava horrorizada para a brochura, em cujo frontispício havia desenhado um xadrez, duas colunas amparando dois globos terrestres, e outros emblemas. O cônego apoderou-se do folheto e leu na primeira página: “Lenda maçônica ou condutor das lojas regulares, segundo o rito francês, reformado.” — Sim senhora! tem toda a razão! Cá estão os três pontinhos da patifaria!... patifaria!... E leu na introdução da obra, possuindo-se de uma raiva de partido: “Maçons, penetremo-nos da nossa dignidade! A retidão de nossos votos, a união de nossos trabalhos, e a harmonia de nossos corações, alimentem sem cessar o fogo sagrado, cuja claridade resplandecente ilumina o interior de nossos templos!” — Sim senhora! Tem mais essa prenda... resmungou, entregando o folheto à velha; além de cabra, é bode! E sem transição, duro: — É preciso pôr esse homem fora de cá! — E quanto antes!... — O compadre está aí? — Creio que sim, no armazém. — Pois vou convencê-lo. Até logo. — Veja se consegue, reverendo! Olhe lembra-me até que seria melhor desistir de tal compra da fazenda... Esta gente, quando não tisna, suja! Não imagina a arrelia que me faz vê-lo todo o santo dia à mesa de janta ao lado de minha neta!... Também nunca esperei esta de meu genro! É preciso pôr o homem pra fora! Isto não tem jeito! As Limas já falaram muito; disse a Brígida que na quitanda do Zé Xorro lhe perguntaram se era certo que ele estava para casar com Anica... Ora isto não se atura! Cada um que ponha o caso em si!... Pois então aquele não-sei-que-diga precisa que lhe gritem aos ouvidos qual é o seu lugar?... No fim de contas quantos somos nós?!... Nada! Nada! é precioso pôr cobro a semelhante coisa. Fale a meu genro, senhor cônego, fale-lhe com franqueza! Olhe pode dizer-lhe até que, se ele não quiser tratar disto, eu m’encarrego de pôr a peste no olho da rua! A porta da rua é a serventia da casa! Não vê que entre paredes, onde cheira a Mendonça de Melo, se tem aquelas com um pedaço de negro! Iche cacá! — Está bom, está bom... Não se arrenegue, Dona Babu! Pode arranjar-se tudo, com a divina ajuda de Deus!... E o cônego foi entender-se com o negociante. — Homem... respondeu Manuel tendo ouvido as razões do compadre, lá de recambiá-lo para o diabo, convenho! porque enfim é um perigo que um pai de família tem dentro de casa!... mas essa agora de não negociar a fazenda, é pelo que não estou! Seria asnice de minha parte! É boa! Pois se o Cancela me escreveu; quer entrar em negócio, e eu posso meter para a algibeira uma comissãozinha menos má, sem empregar capital algum e quase sem trabalho — hei de agora meter os pés e deixar o pobre rapaz às tontas, em risco até de cair nas mãos de algum finório!... Porque, venha cá, seu compadre, mesmo deitando de parte o interesse, com quem, a não ser comigo, podia o Mundico, coitado! haver-se neste negócio? Também a gente deve olhar p’r’estas coisas!... Ficou resolvida a viagem para o sábado seguinte. Raimundo acolheu a notícia com uma satisfação que espantou a todos. “Até que afinal ia visitar o lugar em que lhe diziam ter nascido!...” — Olhe! disse ele a Manuel, tenho um importante pedido a fazer-lhe... — Se estiver em minhas mãos... — Está... — O que é? — Coisa muito séria... Em viagem para o Rosário conversaremos. Manuel coçou a nuca. 10 No dia combinado, às seis horas da manhã, acharam-se Manuel e Raimundo a bordo do vaporzinho Pindaré, pertencente à então nova Companhia Maranhense de Navegação Costeira. Fazia um tempo abrasado, muito seco, cheio de luz. A viagem era incômoda, pela aglomeração dos passageiros, os quais, no dizer sediço de um de bordo, iam “como sardinhas em tigela”. Tudo aquilo, no entanto, estava muito melhor... considerava Manuel. Agora já se podia viajar facilmente pelo interior da província!... Dantes é que a navegação do Itapicuru tinha os seus quês!... E passou a narrar circunstanciadamente as dificuldades primitivas da ida ao Rosário. “Aquela companhia, assim mesmo, viera prestar grandes serviços à província!... Deixasse lá falar quem falava, o único inconveniente que ele via era a — baldeação no Codó! — Isso sim! Tinha o que se lhe dizer, e devia acabar quanto antes!” — Felizmente, concluiu, o Rosário é a primeira estação e não temos de sofrer a maldita maçada! Ao anoitecer saltaram na vila do Rosário, em companhia de um antigo conhecido de Manuel, ali residente havia um bom par de anos. Era um portuguesinho de meia-idade, falador, vivo, brasileiro nos costumes e trigueiro como um caboclo. — Venha cá pra casa e pela manhãzinha seguirá o seu caminho, oferecia ele ao negociante. Sempre lhe quero mostrar o meu palácio! Foi aceito o convite, e os três puseram-se a andar, de mala pendurada na mão. — Sabe você, ia dizendo o homenzinho, toda aquela baixa que pertencia ao Bento Moscoso? pois isso fica-me hoje no quintal! Arrecadei a fazenda da viúva por uma tuta e mea e hoje está produzindo, que é aquilo que você pode ver! O meu projeto é levantar uma engenhoca aí perto, onde fica o igarapé do Ribas; quero ver se aproveito as baixas para a cana, percebe? E dissertava largamente sobre a sua roça, sobre as suas esperanças de prosperidade, censurando medidas mal tomadas pelos vizinhos; afinal atirou a conversa sobre o Barroso. Barroso era a fazenda do Canela, para onde se dirigiam os outros dois. — São boas terras, são! Muito limpas, muito abençoadas! O que foi que levantou o Luís Cancela? E é verdade! se me não engano, creio que ele uma ocasião me disse que foi você quem lhas aforrou. Não é isso? — E exato, respondeu Manuel. — Ah! são suas?... — Não! São deste amigo. E Manuel indicou Raimundo, que nesse momento contratava, com um homem que se mandou chamar, os cavalos para a viagem no dia seguinte. — São muito boas terras!... insistia o outro. O Cancela já por várias vezes tem-nas querido comprar. — Compra-as agora. E chegaram a casa. —A minha gente está toda fora, declarou o roceiro. Mas não faz mal, temos aí de sobra com que passar. Ó Gregório! — Meu senhô! Veio logo um preto velho, a quem ele se dirigiu para dar as ordens em voz baixa. A noite, ao contrário do dia, fizera-se fresca. Depois da ceia, cada um se estendeu na sua rede, preguiçosamente. Raimundo queixava-se de pragas e maruins; Manuel meditava os seus negócios, toscanejando, e o portuguesinho não dava tréguas à língua: falava daquelas terras com um entusiasmo progressivo; contava maravilhas agrícolas; mostrava-se fanático pelo Rosário. E, no empenho da conversa, arrastado, chegava a mentir, exagerando tudo o que descrevia. Raimundo interrompeu-o, para saber se ele conhecia a antiga fazenda São Brás. — São Brás!... E o homenzinho levantou-se da rede com um espanto. — São Brás! Se conheço! E por aqui V.S.ª não encontra quem não saiba a história dela!... O outro ardia de curiosidade. — Tenha então a bondade de contar-ma, pediu, assentando-se. Como vou andar por essas bandas... Manuel adormeceu. — Pois V.S.ª não sabe a história de São Brás?... Valha-o Deus, meu caro senhor, quem podia cair em algum malfarrico; mas eu vou ensinar-lhe a reza que aprendemos com o nosso santo vigário. Olhe! quando V.S.ª topar uma cruz na estrada, apeie e reze, e ao depois siga o seu caminho por diante, repetindo sempre: “Por São Brás! Por São Jesus! Passo aqui, Sem levar cruz” Até avistar as mangueiras do Barroso: daí à riba pode seguir descansado, que lá não chega chamusco! — Mas por que toma a gente tais precauções? — Ora aí está onde a porca torce o rabo! É por causa do diabo de uma alma danada, que empesta essas paragens... Eu conto a V.S.ª! E o homenzinho, engolindo em seco, contou prolixamente que São Brás, ou Ponta do Fogo, como dantes lhe chamavam, fora noutro tempo lugar de terras boas e férteis, onde se podia plantar e colher muito, que abençoadas eram elas pelas mãos de Deus. Mas, que uma vez aparecera por lá o célebre assassino Bernardo, terror do Rosário e sobressalto dos fazendeiros, e, depois de uma vida errante pelo sertão, roubando e matando, meteu-se na Ponta do Fogo e aí estourou. E desde então nesse desgraçado lugar nunca mais vingara fruto que não tivesse ressaibo de veneno, nem medrara planta sem mitinza; as águas deixavam cinza na boca, a terra, se a gente a colhia na mão, virava-se em salitre, e as flores fediam a enxofre; mas, quem comesse desses frutos, se deitasse nesse chão, se banhasse nessas águas e cheirasse aquelas flores, ficava por tal modo enfeitiçado, que não havia meio de arrancá-lo dali, porque o diabo tinha untado o fruto de mel, e perfumado as flores e amaciado a relva, para engodar o caminheiro incauto. — Foi isso, continuou ele, o que sucedeu ao pobre José do Eito, quando se meteu por cá — enfeitiçou-se! Eu era muito novo nesse tempo, mas bem me lembro de o ter visto tantas vezes, coitado! todo amarelo, morrinhento e resmungão, que logo se adivinhava que o diabo lhe pregara alguma! E sempre andou assim!... um dia morreu-lhe a mulher de repente, e ele pouco depois foi varado por um tiro, que nunca ninguém soube donde veio. Daí em diante São Brás ficou tapera. No lugar em que morreu o José levantou-se uma cruz, e todos os que passam por lá rezam por alma do desventurado, até encher certa conta de orações, com que ela possa descansar!... Enquanto isso não chega, vaga pela tapera a pobre alma penada, de dia que nem um pássaro negro, enorme, que canta a finados, e de noite vira-se numa feiticeira, que dança e canta rindo como as raposas. Quando algum imprudente atravessa perto, a feiticeira o persegue de tal feitio, que o infeliz se não estiver montado, ela o pilha com certeza! — E se o pilha? — Se o pilha?... Ah, nem falar nisso é bom! Se o pilha, vira-se logo, toda em ossos e cai-lhe em riba, com tal fúria de pancadas, que o deixa morto! — E depois? — Depois, volta a alma para penitência, tendo perdido, por pancada que deu, vinte coroas de padre-nossos. Quando V.S.ª for amanhã é bom levar na sela do seu cavalo um galhinho de arruda, e, ao depois de rezar à cruz, vá sacudindo sempre até as mangueiras do Cancela, sem nunca parar com a reza que lhe ensinei! — Sim, sim, mas diga-me uma coisa: esse José do Eito não se chamava José Pedro da Silva? — Justo! V.S.ª o conheceu? — De nome. — Pois eu conheci, perfeitamente. E, a pedido de Raimundo, o portuguesinho descreveu o tipo de José, e contou o que sabia da vida dele. O rapaz escutava tudo com um interesse religioso; não queria perder uma só daquelas palavras; mas tinha, muitas vezes, que interromper o narrador, para lhe fazer perguntas, a que o outro respondia em parênteses rápidos. — Pois a D. Quitéria Santiago morreu pouco antes do marido; eu fui vê-la! e olhe V.S.ª que, de bonitona que era, ficou horrível. Estava mais roxa que uma berinjela! — Não tinha filhos? — Nunca os teve. — Nem o marido?... Sim... este podia ter algum filho natural... — Não, que eu saiba, não tinha. — Nem consta de alguma parenta, que vivesse na fazenda em companhia do José?... — Sei cá, mas... — Alguma irmã de D. Quitéria, ou talvez alguma amiga, hein? Veja se se lembra... — Qual o quê!... Viviam ao contrário muito sós! D. Quitéria a única parenta que tinha era a mãe; esta andava sempre de ponta com o genro e não saía da sua fazenda, que vem a ser aquela em que está hoje o Cancela — a fazenda do Barroso! É verdade! sabe quem pode informar bem estas coisas? é o Sr. Vigário! ele ainda vive na cidade; hoje é cônego. Pois era muito unha com carne do José do Eito. — O cônego Diogo?... — Justamente! Ele é que era o vigário desta freguesia. Ora quanto tempo já lá vai!... — Ah! O cônego Diogo era o vigário desta freguesia, e muito da casa das Santiagos?... — Sim senhor! E ele está aí, que conta a quem quiser ouvir as voltas que deu para desencantar São Brás! Coitado! nada conseguiu e quase que ia sendo vítima da sua boa vontade! — Ele também acreditava na feitiçaria? — Se acreditava! Pois se ele a viu, que o disse! E olhe V.S.ª que o cônego não é homem de mentiras! Afirmava que havia em São Brás uma alma danada, e não gostava até que lhe falassem muito nisso!... Proibia-o expressamente, sob pena de excomunhão! Se acreditava? É boa! Por que foi então que ele abandonou a paróquia, tendo aqui nascido, gozando da mais alta consideração e recebendo, como recebia, presentes e mais presentes de toda a freguesia?... Eram bois, carneiros, capados, muita criação. Ele está aí na cidade, que o diga! Raimundo caía de conjetura em conjetura. — Ele era então bastante amigo do José da Silva? o cônego? — Se era, coitado! Amigo e muito bom amigo!... Quando assassinaram o pobre homem, o senhor vigário nem quis espargir-lhe a água benta; mandou o sacristão! Não podia encarar com o corpo do José! E, veja V.S.ª , meteu-se em casa, e pouco nada apareceu, até que se retirou para sempre cá da vila! Todos nós sentimos deveras semelhante retirada; estávamos tão acostumados com ele!... Eu, nesse tempo, trabalhava nas terras do coronel Rosa; tinha os meus vinte anos e ainda estava solteiro; assisti a tudo, meu rico senhor! Lembra-me como se fosse ontem! A fazenda, essa foi logo abandonada; ninguém quis saber mais dela, pois, todas as noites, quem passasse por aí, ouvia gritos medonhos, de arrepiar o couro! — Mas, além do José e da mulher, quem mais morou nesse lugar? — Or’essa! a escravatura e o feitor. — Não. Digo senhores. — Ninguém mais. — Ah, é verdade! O José era feliz com a mulher? Viviam bem?... — Qual! Pois se lhe estou a dizer que aquelas terras são terras do diabo! Viviam que nem o cão com o gato! O cônego, ainda assim, era quem os acomodava, dando-lhes conselhos e pedindo a Deus por eles! E Raimundo perdia-se novamente em conjeturas. “Sempre sombras!... Sempre as mesmas dúvidas sobre o seu passado!...” A conversa afrouxou. O portuguesinho deitou-se, e depois de uns restos de palestra, vaga e bocejado, adormeceu. Raimundo sonhou toda a noite. Às quatro da madrugada estavam de pé, selados os cavalos, cheio o farnel para a viagem, e o guia montado. Partiram às cinco horas. Logo que os dois, e mais o guia, se acharam em caminho, Raimundo procurou entabular a mesma conversação que tivera na véspera com o roceiro; queria ver se conseguia arrancar de Manuel algum esclarecimento positivo sobre os seus antepassados. Nada obteve; as respostas do negociante eram, como sempre, que o sobrinho lhe tocava nisso, obscuras, difusas, entrecortadas de pausas e reticências. Manuel falou-lhe no cônego, na cunhada, no mano José, e em mais ninguém. A respeito da mãe de Raimundo — nem a mais ligeira referência. “Ora adeus!... Estou sempre na mesma!...” concluiu o moço de si para si e fez por pensar noutra coisa. O fato, porém, é que ele, apesar do seu temperamento de artista, não tinha uma frase para as belas paisagens que se desenrolavam diante de seus olhos. Ia cabisbaixo e preocupado. Jornadearam em silêncio horas e horas. De vez em quando, o guia, com o seu ar triste de sertanejo, levava-os a uma fazenda ou a um rancho, onde os três descansavam e comiam, para tornar logo a cavalgar por entre as melancólicas carnaubeiras e pindovais da estrada. Raimundo sentia-se aborrecido e impacientava-se pelo fim da viagem. Seu maior empenho era visitar São Brás; propôs até que se fosse lá primeiro, mas o negociante declarou que era impossível. “Não tinham tempo a perder!...” — Na volta, doutor, na volta, acrescentou, sairemos bem cedo e daremos um pulo até lá. Lembre-se de que nos esperam, e não seria razoável bater fora de hora em casa de uma família. O outro consentiu, praguejando entre dentes contrariado e cheio de tédio: “Que grandíssima estopada! O diabo da tal fazenda do inferno parecia fugir diante deles!...” — Não se rale, patrãozinho! É ali quase! disse compassadamente o guia, espichando o beiço inferior. Meta a espora no animal, que talvez chegaremos com dia! — Ah! suspirou Raimundo, desanimado por ver o Sol ainda alto e compreender que tinha de caminhar até à noite. E deixou-se cair numa prostração mofina, a fitar as orelhas do burro, que arfavam com a regularidade monótona das asas de um pássaro voando. — Cá está! exclamou Manuel, duas horas depois, chegando a um lugar mais sombrio do caminho. — Que é? ia perguntar o moço, quando deu por sua vez com uma cruz de madeira, muito tosca e arruinada. Ah! — Foi neste lugar assassinado o José!... Todos pararam, e o guia apeou-se e foi rezar de joelhos ao cruzeiro. — Reze pela alma de seu pai, meu amigo. Neste lugar foi ele varado por uma bala. — E o assassino? perguntou Raimundo depois de um silêncio. — Algum preto fugido!... até hoje nada se sabe ao certo... mas dizem que nisto andou unha política... outros atribuem o fato ao diabo. Bobagens! ... Raimundo apeou-se e indagou se o pai estava enterrado ali. Manuel, já de pé, respondeu que não. Enterrara-se no cemitério da fazenda, ao lado da mulher. Aquela cruz, explicou ele, era um antigo uso do sertão; servia para mostrar ao viajante o lugar onde fora alguém assassinado e fazê-lo rezar pela alma da vítima, como ali estava praticando aquele homem. E apontou para o guia, que, terminada a sua oração, levantou-se e foi colher um ramo de murta, que depôs aos pés da cruz. Raimundo sentia-se comovido. Manuel, de joelhos, cabeça baixa e chapéu pendurado das mãos postas, rezava convictamente. Ao terminar surpreendeu-se por saber que Raimundo não tencionava fazer o mesmo. — O quê? Pois então o senhor não reza?... — Não. Vamos? — Ora! essa cá me fica!... Então qual é a sua religião? Como adora o senhor a Deus? — Ora, senhor Manuel, deixemo-nos disso; conversemos sobre outra coisa... — Não! queria só que o senhor me dissesse como adora a Deus! — Deixe-se disso homem, deixe Deus em paz! Ora para que lhe havia de dar!... — Mas, nesse caso, o senhor não tem religião! — Tenho, tenho... — Pois não parece!... Pelo menos não devia fazer tão pouco caso das rezas, que nos foram ensinadas pelos apóstolos de Nosso Senhor Jesus Cristo!... Raimundo não pôde conter uma risada, e, como o outro se formalizara, acrescentou em tom sério “que não desdenhava da religião, que a julgava até indispensável como elemento regulador da sociedade. Afiançou que admirava a natureza e rendia-lhe o seu culto, procurando estudá-la e conhecê-la nas suas leis e nos seus fenômenos, acompanhando os homens de ciência nas suas investigações, fazendo, enfim, o possível para ser útil aos seus semelhantes, tendo sempre por base a honestidade dos próprios atos”. Montaram de novo e puseram-se a caminho. Uma cerrada conversa travou-se entre eles a respeito de crenças religiosas; Raimundo mostrava-se indulgente com o companheiro, mas aborrecia-se, intimamente revoltado por ter de aturá-lo. Da religião passaram a tratar de outras coisas, a que o moço ia respondendo por comprazer; afinal veio à baila a escravatura e Manuel tentou defendê-la; o outro perdeu a paciência, exaltou-se e apostrofou contra ela e contra os que a exerciam, com palavras tão duras e tão sinceras, que o negociante se calou, meio enfiado. Entretanto, o guia cavalgava na frente, distraído, cantando para matar o tempo: “Você diz que amor não dói No fundo do coração!... Queira bem e viva ausente... Me dirá se dói ou não!...” Caminharam meia hora em silêncio. O dia declinava, os primeiros sintomas da noite levantavam-se da terra, como um perfume negro; as aves refugiavam-se no seio embalsamado da floresta; a viração fresca da tarde eriçava os leques das palmeiras, enchendo os ares de um doce murmúrio voluptuoso. — Tenho palrado tanto, disse por fim Raimundo com certa perplexidade, e todavia não tratei do que mais me interessa... — Como assim?... — Lembra-se o senhor que, outro dia, pedi-lhe uma conferência em seu escritório, e, ou porque o meu amigo se esquecesse, ou porque mesmo não houvesse ocasião, o certo é que não chegamos a falar, e, no entanto, o assunto é de suma importância para ambos nós... — E o que vem a ser? — É um grande favor, que tenho a pedir-lhe... Manuel abaixou a cabeça, contrafazendo o embaraço em que se via. — Trata-se de alguma questão comercial?... perguntou. — Não senhor; trata-se de minha felicidade... — É a mão de minha filha que deseja pedir? — É... — Então... tenha a bondade de desistir do pedido... — Por quê? — Para poupar-me o desgosto de uma recusa... — Como?!... — É natural que o senhor se espante, concordo; dou-lhe toda a razão; está no seu direito! O senhor é um homem de bem, é inteligente, tem o seu saber, que ninguém lho tira, e virá sem dúvida a conquistar uma bonita posição, mas... — Mas... Mas, o quê? — Desculpe-me, se o ofende tal recusa de minha parte, mas creia, ainda mesmo que eu quisesse, não podia fazer-lhe a vontade... — Está já comprometida com outro, talvez... Bem! Nesse caso, esperarei... Resta-me ainda a esperança!... — Não é isso... E peço-lhe que não insista. — Não quer separar-se da menina? — Oh! O senhor martiriza-me!... — Também não é?... Então que diabo! Terei, sem saber alguma, dívida de meu pai, que haja de rebentar por aí, como uma bomba?... — Que lembrança! Se assim fosse eu seria um criminoso em não o ter nunca prevenido. O que o senhor possui está limpo e seguro! Presto contas quando quiser!... — Ah! já sei... tomou Raimundo com um vislumbre, rindo. Não quer dar sua filha a um homem de idéias tão revolucionárias?... — Não! não é isso! E fiquemos aqui! Sei que o senhor tem direito a uma explicação, mas acredite que, apesar da minha boa vontade, não a possa dar... — Ora esta! Mas então por que é?... — Não posso dizer nada, repito! E peço-lhe de novo que não insista... Esta posição é para mim um sacrifício penoso, creia! — De sorte que o senhor me recusa a mão de sua filha?... Definitivamente?! — Sinto muito, porém... definitivamente... Calaram-se ambos, e não trocaram mais palavra até à fazenda do Cancela. 11 Quando chegaram ao portão da fazenda, já a Lua resplandecia, desenhando ao longo da eira a sombra espichada de enormes macajubeiras sussurrantes. Fazia um tempo magnífico, seco, fresco, transparente; podia ler-se ao luar. O guia sacudiu com vigor a campainha e gritou: — Ó de casa! Seguiu-se uma algazarra de cães. Veio abrir um preto, munido de um tição, que trazia sempre em movimento, para conservá-lo aceso. — Boa noite, tio velho! disse Manuel. — D’es-b’a-noite, branco! respondeu o negro. E, segurando a brida do cavalo, conduziu com este o cavaleiro até a casa. Raimundo e o guia seguiram atrás. De longe, avistaram logo uma parede rebocada, disforme, que ao luar se afigurava um lago entre árvores. Mais perto, o lago se transformou num sobrado e os viajantes descobriram uma porta, em cujo esvazamento se desenhara o vulto varonil do Cancela, que detinha dois formidáveis rafeiros. — Ora viva! gritou o dono da casa. E, voltando-se para os cães, que insistiam em ladrar: Safa, Rompe-Nuvens! Arreda, Quebra-Ferros! Os cães rosnaram amigavelmente, e o fazendeiro, com sua voz forte, de pulmões enxutos, gritou para Manuel: — Então sempre veio!.. Pois olhe, cuidei que desta vez fizesse como das outras!... Enfim, como vai essa católica? — Assim, assim, um pouco moído da viagem... disse Manuel, entregando o cavalo ao preto e apertando a mão do Cancela. Como lhe vão cá os seus? — Bons, louvado Deus. Ainda estão na Ave-Maria, mas não devem tardar. Efetivamente, vinha do interior da casa um coro abafado de vozes, que rezava cantando. Raimundo aproximou-se, depois de apear. — Este é o Mundico de que lhe falei! declarou Manuel, empurrando o sobrinho para a frente. O rapaz espantou-se com a rústica apresentação, e muito mais, quando o roceiro, em vez de cumprimentá-lo, pôs as mãos nas cadeiras e começou a passar-lhe uma revista de cima a baixo, como quem examina uma criança. — Com os diabos! exclamou, soltando uma risada. Você e seu compadre falaram-me em um menino!... — Há doze anos! — Olha o demo! Pois, seu Mundiquinho, aperte esta mão, que é de um antigo amigo de seu pai, e não repare se não encontrar por aqui o bom trato da cidade! Isto cá sempre é roça! mas vá como o outro, que diz: “Mais vai pouca de bom coração, que muito de sovina!...” E conduziu os hóspedes à varanda, menos o guia, que se tinha aboletado já pelos ranchos dos pretos. — Homem! vocês vão se assentando nessas redes! Ó Pedro! vê cachimbos! Traze a cana e o café. Ou querem antes vinho? — Qualquer coisa serve. — Temos aqui conhaque! ofereceu Raimundo, apresentando um frasco que trazia a tiracolo. — Pode fartar-se com ele! desdenhou Cancela. É coisinha que não me entra cá no bico! Encheram-se três copinhos de cana-capim. — Vá lá à nossa! E venham despir-se para cear! E conduziu-os a um quarto, destinado exclusivamente a hóspedes. A casa compreendia a antiga fazenda Barroso, onde noutro tempo morou e morreu a sogra de José da Silva, e uma parte nova, feita de pedra e cal, cujo cuidado de construção revelava a prosperidade do rendeiro. A “casa nova”, como chamavam a última parte, compunha-se de um grande avarandado, no qual, fazendo as vezes de cadeiras, viam-se redes armadas em todos os cantos. No centro, que é o lugar de honra nas fazendas do Maranhão, havia um quarto espaçoso e arejado, e o mais eram paredes sem pintura e tetos sem forro, potes de barro vermelho, vassouras de carnaúba encostadas por aqui e por ali, selins estendidos no parapeito da varanda; a respeito de mobília, nada mais do que uma mesa tosca e bancos compridos de pau. O paiol da farinha era por baixo do sobrado, onde se encontravam enormes baús, forrados de couro, com umas setenta redes destinadas aos hóspedes. A adega ao lado do paiol. De fora ouvia-se o grunhir preguiçoso dos porcos no chiqueiro, e do fundo do quintal, soprado pelos ventos da noite, vinha um cheiro bom de jasmins de Caiana, lírios do Peru, resedás e manjeronas. Quando os três voltaram do quarto, já a filha e a mulher do fazendeiro tinham vindo da reza. Manuel apareceu enfronhado comodamente num paletó de brim pardo e num par de tamancos. Raimundo não mudara de roupa, apenas banhara o rosto e as mãos e penteara os cabelos. A mulher do Cancela punha a mesa para a ceia; a filha correra a esconder-se no quarto, espiando as visitas por detrás da porta, com vergonha de aparecer. — Anda pra cá, Angelina! gritou o roceiro. Pareces um bicho do mato! Nunca viste gente, rapariga?! Foi ter com ela e obrigou-a a sair do esconderijo. — Ora vamos! Fala direito! Não estejas a esconder o rosto, que não tens de que o esconder!... Vamos! Angelina apareceu, com muito acanhamento, e foi cumprimentada. — Então! ralhou o pai. É com a cabeça que se responde?... Ah, que estás cada vez mais matuta!... Que mal te fez este pobre cabeção para o maltratares desse modo?... Olha que o rompes, estonteada! Angelina, muito contrafeita, abaixara o seu rosto moreno, agora mais corado sob o frouxo do riso da encalistração que a dominava. — Então, de que tanto ris, sua feiosa?... Esta última palavra era uma injustiça que o Cancela fazia à filha; Raimundo, ao apertar-lhe a mão, desenvolta e maltratada, compreendeu logo que estava defronte de uma bonita e toleirona sertaneja, inocente e forte como um animal do campo. Era mulher de dezoito anos; mulher, porque tinha já o corpo em plena formatura — ombros fartos, colo cheio e braços desenvolvidos no trabalho ao ar livre: “Boa mulher para procriar!...” pensou ele. — Isto que você está vendo aqui, meu amigo, é uma sonsa!... disse o Cancela, satisfeito com o ar lisonjeiro de Raimundo. Capaz é ela de virar esta casa de pernas pro ar! e parece que não quebra um prato! Olhe se a tonta já me tomou a bênção depois da reza!... Parece que empanemou com as visitas!... Anda daí, bicho brabo! A rapariga foi beijar-lhe a mão, e ele ferrou-lhe depois uma palmada na rija almofada do quadril. —Esta disfarçada! Vá lá! Deus te faça branca! Por esse tempo, Manuel conversava com a esposa do Cancela; brasileira pequenina, socada, cheia de vida, dentes magníficos, morena e de cabelos crespos. Respirava de toda ela um ar modesto de quem gosta de fazer o bem; estava sempre à procura de alguma coisa para arrumar, muito ativa, muito asseada e muito trabalhadeira. Na cozinha dava sota e ás à mais pintada; sabia lavar como ninguém e assistia à roça dos pretos sem cair doente. “Era p’r’um tudo!” diziam dela os escravos. Chamava-se Josefa, e só fora duas vezes à cidade. — Então! reclamou o fazendeiro, vem ou não vem essa merenda?... olhem que os homens devem trazer o estômago na espinha, e eu não lhes quero dar trela sem havermos manducado! A mulher ouviu o fim da reclamação já na cozinha. — Por que não despiu você essas tafularias? perguntou o dono da casa a Raimundo. Por cá ninguém olha para elas! Se quer, ponha-se a gosto! — Obrigado, bem sei, estou à vontade. E conversavam, enquanto Angelina punha a mesa. Cancela sentia-se satisfeito, loquaz; gostava de dar à língua e, quando pilhava hóspedes que o aturassem, ninguém podia com a vida dele. Entretanto, Josefa trazia já as iguarias e os homens dispunham-se a comer com apetite. À luz de um antigo candeeiro de querosene, reverberava uma toalha de linho claro, onde a louça reluzia escaldada de fresco; as garrafas brancas, cheias de vinho de caju, espalhavam em torno de si reflexos de ouro; uma torta de camarões estalava sua crosta de ovos; um frangão assado tinha a imobilidade resignada de um paciente; uma cuia de farinha seca simetrizava com outra de farinha d’água; no centro, o travessão do arroz, solto, alvo, erguia-se em pirâmide, enchendo o ar com o seu vapor cheiroso. Sentia-se a gente bem ali, com aquele asseio e com aquela franqueza rude do Cancela. — Olé! gritou este, destapando uma fumegante terrina de mundubés e fidalgos, temos peixe de escabeche?! Bravo! — E passando a examinar o que mais havia: — Bravo, bravo! moquecas de sururu! Peixe moqueado! Olhem que este não é do rio e por isso não se pilha por cá todos os dias! Tem escamas, seu Manuel! E enchiam-se os pratos. — Famoso! está famoso! repetia, levando à boca grandes colheradas. — Então as senhoras não nos fazem companhia?... disse Raimundo, voltando-se para as duas. — Qual! apressou-se o fazendeiro a responder. Não estão acostumadas com pessoas de fora... Deixe-as lá! deixe-as lá, que ao depois se arranjarão mais à vontade! Olhe, ali a minha Eva diz que não aprecia o seu peixinho, senão comido com a mão. Coisas de mulher! Deixe-as lá! Contudo, Josefa veio presidir à mesa, ao lado do marido, e informava-se do êxito dos seus quitutes. — Não os deixe sem provarem daquela torta de sururus, que está de encher o papo! — Lá chegaremos! lá chegaremos! Vai apanhar mais pimentas! — Ó amigo, entorne, sem receio! Não tenha medo que o vinhito é fraco! — Seu Manuel! seu Mundico! topemos à memória do velho amigo José da Silva! Os três beberam, e Cancela, depois de pousar o copo vazio, acrescentou com respeito, limpando a boca nas costas da mão: — Foi um meu segundo pai!... Quando arribei por estas terras, no tempo da minha defunta patroa, D. Úrsula Santiago, não tinha de meu mais do que saúde, força e boa vontade! Pois o José que então namoriscava a filha da patroa, a D. Quiterinha, meteu-me aqui, como feitor, e disse-me: “Olha lá, rapaz! encosta-te por aí, que, se souberes levar o gênio da velha e mais o do vigário, podes até fazer fortuna! Ela tem lá uma afilhada de muita estimação, bem prendada e de boa cabeça!...” Vou eu — fico a servir na casa e, graças a Deus, sempre mereci a confiança de D. Úrsula. De noite vinha para a varanda conversar com ela junto com a minha Josefa, que nesse tempo era uma tetéia que se podia ver! O certo é que, ao fim de dois anos, casava-nos o senhor padre Diogo e, em boa hora o diga! tenho sido feliz, louvado o Santíssimo! — Comeu e prosseguiu: — Já fiz esta casa em que estamos ceando, levantei o engenho, meti braços na roça, plantei algodão, que aqui não havia, e tenciono, se Deus quiser, fazer no seguinte ano muitas outras benfeitorias! — Eles já quererão o café?... perguntou Josefa, comovida com a narração do marido. Depois do café, serviram-se de restilo de ananás e acenderam-se os cachimbos de cabeça de barro preto e taquari de três palmos. Gasta meia hora de palestra, Manuel queixou-se de que já não era homem para grandes façanhas e precisava descansar o corpo. — Pois fica o resto para amanhã! Pedro! — Meu senhor! — Leva essa gente para a casa dos hóspedes e mostra-lhe o quarto que tua senhora preparou. — Já ouvi, sim senhor. — Então, muito boa noite! — Até amanhã! Manuel e Raimundo instalaram-se num quarto da casa velha, outrora morada da sogra de José da Silva; esta parte, ao contrário da outra era um sobrado silencioso e triste, que só respirava abandono e decrepitude. Em breve o negociante ressonava; ao passo que o rapaz, estendido numa rede, olhava pela janela o céu afogado em luar, passando mentalmente revista ao que fizera durante o dia. Os acontecimentos desfilaram no seu espírito em uma procissão vertiginosa e extravagante: vinha na frente o pedido da mão de Ana Rosa de braço dado à recusa; logo atrás o portuguesinho da vila passava cantando, com um galho de arruda na mão: Por São Brás! Por São Jesus! Passo aqui Sem levar cruz! E seguia-se uma infinidade de imagens fantásticas: o pássaro negro cantando a finados, a feiticeira que se transformava em ossos; e seguia-se o cônego Diogo, remoçado, cercando de desvelos a sogra de José da Silva, formada imaginariamente pelo tipo de Maria Bárbara. E Raimundo, sem poder conciliar o sono, demorava-se até a pensar em coisas de todo indiferentes: o guia, preguiçoso e tristonho, a cantar no seu falsete de mulher; uma fazenda que encontraram, em que havia um homem muito gordo e idiota; as ruínas de uma casa, que de longe lhe pareceu à primeira vista uma fortaleza bombardeada, e assim, mil outros assuntos vagos e sem interesse, vinham-lhe à memória com insistência aborrecida. Afinal, chegou a vontade de dormir; mas a recusa de Manuel! apresentou-se de novo e a vontade fugiu espantada. “Por que seria que aquele homem negou tão formalmente a mão da filha?... Ora! com certeza por qualquer tolice, e nem valia a pena preocupar-se com semelhante futilidade! Amanhã! amanhã! calculava ele, saberia tudo!. . E tinha até vontade de rir pelo ar grave com que o tio lhe respondera. Ora! no fim de contas não passava de alguma criancice do Manuel!... Ou, quem sabia lá? alguma intriga!... Sim! Bem podia ser!... No Maranhão o espírito de bisbilhotice ia muito longe! E não havia de ser outra coisa! Uma intriga! Mas que intriga? Ah! ele descobriria tudo! olá! Ficaria tudo em pratos limpos. Nada de desanimar!...” E, sem saber por quê, reconhecia-se muito mais empenhado naquele casamento; desejava-o muito mais depois da resistência oposta ao seu pedido; a recusa de Manuel vinha dar-lhe a medida do verdadeiro apreço em que tinha Ana Rosa. Até ali julgava que aquele casamento dependia dele somente, e preparava-se frio, sem entusiasmo, quase fazendo sacrifício; e agora, depois do insucesso do seu pedido, eis que o desejava com ardor. Aquela recusa inesperada era para Ana Rosa o que um fundo negro é para uma estátua de mármore, fazia destacar melhor a harmonia das linhas, a alvura da pedra e a perfeição do contorno. E Raimundo procurando medir a extensão do seu amor por ela, topava de surpresa em surpresa, de sobressalto em sobressalto, pasmado do que descobria em si mesmo, espantando-se com os próprios raciocínios, como se foram apresentados por um estranho, chegando às vezes a não compreendê-los bem e fugindo de esmerilhá-los, com medo de concluir que estava deveras apaixonado. Nesta duplicidade de sentimentos, seu espírito passeava-lhe no cérebro às apalpadelas, como quem anda às escuras num quarto alheio e desconhecido. — E que tal?... monologava. Não é que estou há duas horas a pensar nisto?... E não podia convencer-se de que ligava tão séria importância àquele casamento, procurando até capacitar-se de que tentara realizá-lo por uma espécie de compassiva indulgência para com Ana Rosa; entretanto, revolucionava-se todo só com a idéia de não levá-lo a efeito. “Ora adeus! também não morreria de desgosto por isso!... Não faltavam bons partidos para fazer família!... o caso era dispor-se a procurar noiva!... Sim, nem lhe ficava bem insistir no projeto de casar com a prima!... No fim de contas, aquela recusa grosseira, seca, o ofendia!... decerto que o ofendia!... Não! não devia pensar, nem por sombras, em semelhante asneira!... definitivamente não casaria com Ana Rosa!... Com qualquer, menos com ela! Nada! Como não, se aquilo já era uma questão de brios?...” Mas, com este propósito, voltava-lhe, de um modo mais claro e positivo, uma grande admiração pelos encantos da rapariga, e um surdo pesar dissimulado, um desgosto hipócrita, de não poder possuí-la. Manuel, a poucos passos, roncava com insistência incômoda; Raimundo, depois de virar-se muitas vezes na rede, ergueu-se fatigado, acendeu um charuto e saiu para a varanda. Um morcego, na curva do vôo, roçou-lhe, com a ponta da asa, pelo rosto. O luar entrava sem obstáculo até à porta do quarto e estendia no chão uma luz branca. Raimundo encostou-se ao parapeito da varanda e ficou a percorrer com o olhar cansado a funda paisagem que se esbatia nas meias-tintas do horizonte, como um desenho a pastel. O silêncio era completo; de repente, porém, a uma nota harmoniosa de contralto sucederam-se outras, prolongadas e tristes, terminando em gemidos. O rapaz impressionou-se; o canto parecia vir de uma árvore fronteira à casa. Dir-se-ia uma voz de mulher e tinha uma melodia esquisita e monótona. Era o canto da mãe-da-lua. O pássaro levantou vôo, e Raimundo o viu então perfeitamente, de asas brancas abertas, a distanciar seus gorjeios pelo espaço. Considerou de si para si que os sertanejos tinham toda a razão nos seus medos legendários e nas suas crenças fabulosas. Ele, se ouvisse aquilo em São Brás lembrar-se-ia logo, com certeza, do tal pássaro que canta a finados. “Segundo a indicação do guia, continuava a pensar, a tapera amaldiçoada ficava justamente para o lado que tomara a mãe-da-lua. Devia ser naquelas baixas, que dali se viam. Não podia ser muito longe, e ele seria capaz de ir lá sozinho...” Veio distraí-lo destas considerações um frouxo vozear misterioso, que lhe chegava aos ouvidos de um modo mal balbuciado e quase indistinguível. Prestou toda a atenção e convenceu-se de que alguém conversava ou monologava em voz baixa por ali perto. Quedou-se imóvel a escutar. “Não havia dúvida! Desta vez ouvira distintamente! Chegara a apanhar uma ou outra palavra! Mas, onde diabo seria aquilo?...” Foi ao quarto de Manuel, o bom homem dormia como uma criança; agora assoviava em vez de ressonar. Atravessou pé ante pé a varanda inteira — nada descobriu; voltou pelo lado oposto ao luar — ainda nada! “Seria lá embaixo?...” Desceu, mas deixou de ouvir o sussurro. “Ora esta!... A coisa era lá mesmo em cima!... Mas em cima não havia outros hóspedes, além dele e Manuel, dissera-lhe o Cancela!...” Tornou a subir, mas desta vez pela escada do fundo. “Oh! agora a coisa estava mais clara.” Raimundo ouviu frases inteiras, e queixas, lamentações, palavras soltas, ora de revolta, ora de ternura. “Era de enlouquecer!... Quem diabo estaria ali falando?...” — Quem está aí?! gritou ele, no último lance da varanda, com a voz um pouco alterada. Ninguém respondeu, e o murmúrio misterioso calou-se logo. Raimundo esperava todavia, possuído já de certa impaciência nervosa e com o ouvido ainda impressionado do estranho efeito da sua própria voz a perguntar no silêncio: “Quem está aí?” Decorreu um espaço que lhe pareceu infinito, e afinal reapareceu o vozear, agora porém muito mais afastado, vindo do lado contrário ao lado em que ele estava. Encaminhou-se, tão em silêncio lhe foi possível, na direção da voz misteriosa, e notou satisfeito que esta ia gradualmente se alteando. — Oh! fez Raimundo consigo, maravilhado. Tinha ouvido bem claro o seu nome, e o de seu pai “José do Eito”. Redobrou de atenção. “Estaria sonhando? Aquela voz infernal falava dubiamente de São Brás, do padre Diogo, de D. Quitéria e outras pessoas que ele não sabia quem eram. Com certeza ia ouvir alguma coisa a respeito de — sua mãe! — Seria a primeira vez! Oh! já não era sem tempo!...” Reprimiu a respiração; fez-se todo ouvidos; estava trêmulo, frio, nunca sentira comoção tamanha. Mas a voz falou, falou, referindo-se aos acontecimentos maiores de São Brás, fazendo revelações, citando, um por um, todos os personagens, menos a mãe de Raimundo. Este, na treva, com o coração oprimido, estendia a cabeça, arregalava os olhos, arfando-lhe o peito. Nada. “Que desespero!” Mas a voz prosseguia, e ele escutava. De súbito, porém, calou-se tudo e nada mais se ouviu que o piar longínquo das aves noturnas. Raimundo esperou, estático e sôfrego, dois minutos, quatro, cinco. Foi inútil—a voz não reapareceu. “De sua mãe — nem uma palavra!... Maldita conspiração!...” No fim de meia hora percorreu de novo a varanda; não sabia que julgar daquilo, nem o que devia fazer, mas jurava descobrir tudo. “Oh! quem quer que falara estava perfeitamente a par da história de São Brás e havia de saber alguma coisa de sua vida!...” Foi à alcova, tomou o candeeiro, deu-lhe luz, percorreu os vários lados da varanda, entrou nos aposentos abertos, desceu, andou lá por baixo, às tontas, porque estava tudo atravancado de coisas, tornou a subir, sem conseguir nada, e, aborrecido, frenético, tornou ao seu quarto, diminuiu a luz e deitou-se, sem descalçar as botas. Não fechara a porta, de propósito; estava alerta, ao primeiro rumor saltaria. Contudo cerrou as pálpebras; a fadiga da viagem pedia repouso; já era quase madrugada. Ia adormecer. Mas, um leve e surdo ruído despertara-o. Raimundo encolheu-se na rede e insensivelmente se lembrou do revólver que tinha a seu lado; na porta desenhava-se, contra a claridade exterior, a mais esquálida, andrajosa e esquelética figura de mulher, que é possível imaginar. Era uma preta alta, cadavérica, tragicamente feia, com os movimentos demorados e sinistros, os olhos cavos, os dentes escarnados. O rapaz, apesar da sua presença de espírito, teve um forte sobressalto de nervos; todavia, não se mexeu, na esperança de ouvir ainda alguma revelação; o espectro porém, olhou em torno de si, viu-o, sorriu, e tornou a sair silenciosamente. Raimundo levantou-se de um pulo e precipitou-se atrás dele que fugiu na sua frente, como uma sombra. Atravessaram o primeiro lance da varanda, o segundo e o terceiro. — Espera! Espera! gritou o moço, fora de si. Espera, ou eu te mato, diabo! O fantasma desapareceu pela porta do fundo, Raimundo acompanhou-o com dificuldade e, ao chegar lá embaixo, avistou-o já no pátio, a fugir-lhe sempre. O rapaz tinha contra si não conhecer o terreno; foi às apalpadelas e aos encontrões que conseguira atravessar a parte inferior da casa. Lá fora havia já perdido de vista a sombra fugitiva; olhou em torno de si, caminhou à toa, de um para outro lado, nervoso, irrequieto, voltando-se rápido ao menor mexer de galhos. Afinal, auxiliado pela Lua, divisou em distância o vulto sinistro, que se afastava, prestes a sumir-se nas meias-tintas da noite. Então, abriu contra ele numa vertiginosa carreira de boas pernas; mas o vulto embrenhando-se no mato, desapareceu totalmente. Entretanto, os primeiros sintomas do dia avermelhavam o horizonte e nos ranchos erguia-se já a escravatura para o trabalho das roças. As poucas horas em que Raimundo encostou a cabeça, para descansar um bocado, foram cheias de sonho. Ao levantar-se pelas sete da manhã, sentia-se aborrecido e quase em dúvida se sonhara toda a noite ou se, com efeito, vira e ouvira o singular espectro. Todavia, ao almoço conversou-se largamente sobre o fato, e o Cancela explicou que o fantasma devia ser alguma dessas muitas pretas velhas, agregadas aos ranchos das fazendas e que naturalmente estava bêbeda. E contou que, nas noites de — tambor — elas costumavam dormir por ali, no primeiro rancho encontrado em caminho. Ali mesmo havia sempre uma súcia dessas pestes; apareciam e desapareciam, sem ninguém lhes perguntar donde vinham, nem para onde iam. — São escravas fugidas? indagou Raimundo. O Cancela respondeu que não. Os mocambeiros formavam grupo à parte; nunca apareciam publicamente, viviam escondidos nos seus quilombos e só se mostravam na estrada real para atacar os viajantes. Os agregados eram pretos forros, forros em geral com a morte de seus senhores, e que habituados desde pequenos ao cativeiro não tendo já quem os obrigasse a trabalhar e não querendo sair do sertão, ficavam por aí ao Deus dará, pedinchando pelas fazendas um bocado de arroz para matar a fome, e um pedaço de chão coberto para dormir. Simples vagabundos, que não faziam mal a ninguém. — Olhe, continuou ele, de São Brás tínhamos aqui a princípio três que andavam p’r’aí sem fazer nada. Dois morreram e eu enterrei-os, o terceiro não sei se ainda existe, é uma preta idiota. Talvez a que o senhor doutor viu esta noite. E, como Raimundo pedisse mais informações, acrescentou que ela às vezes passava meses inteiros na fazenda; os pretos gostavam de ouvi-la cantar e vê-la dançar. Doida varrida! estava sempre resmungando consigo; mas que, de tempos àquela parte, não aparecia, e era bem possível que a pobre-diaba tivesse já esticado a canela aí pelo mato. Falou-se também na mãe-da-lua. Cancela contou velhas anedotas dos estrangeiros que se perderam nas matas, seguindo o canto original daquele pássaro. Depois trataram de interesses; e fechou-se o negócio da fazenda — Raimundo estava por tudo, contanto que lhe não demorassem a partida — ardia de impaciência por visitar São Brás. Não obstante, o Cancela instava com os dois hóspedes para que se demorassem uma semana, ou, pelo menos, alguns dias. Manuel disparatou: Que loucura! Pois ele podia lá passar dias longe do seu armazém?... Então que partissem pela manhã seguinte. Nada! Havia de ser naquela mesma noite! Para que diabo agüentar sol pelo caminho, quando tinham um luar, que nem dia?... O jantar demorava-se e Raimundo mal podia conter a sua contrariedade. Só às três horas da tarde conseguiram levantar acampamento. — Leve-nos a São Brás, disse ele ao guia, logo que se acharam fora do portão da fazenda. — A São Brás? Deus me livre! E o caboclo, depois de benzer-se, perguntou para que diabo iam a São Brás. — Ora essa! Não é de sua conta! Leve-nos! — A São Brás não vou! — Essa é melhor! Não vai! Então que veio você fazer conosco senão guiar-nos? — Sim senhor, mas é que a São Brás não vou, nem amarrado! — Vá para o inferno! Iremos nós! Ó se’or Manuel, o senhor não sabe o caminho? — Verdade, verdade, o homem não deixa de ter sua razão!... No fim de contas que diacho ai fazer o amigo àquela tapera?... — É boa! Ver o lugar em que nasci!... — Tem razão, mas... — Se não quiser ir, vou só! — Mas o senhor sabe que... — Contam bruxarias do lugar, e há quem acredite nelas... Faço-lhe, porém, a justiça de não supô-lo desses... Os cavalos ganhavam a Estrada Real. — Homem, disse Manuel, lá saber o caminho, eu sei, e o guia, se não quisesse vir, poderia esperar-nos ao pé da cruz, mas... confesso-lhe: tenho meu receio dos mocambeiros... além disso... quem, como eu, ouviu as últimas palavras de meu irmão... — De meu pai?! exclamou Raimundo vivamente. Oh! Conte-me isso! — O senhor há de rir-se... São coisas que parecem asneira... Hoje, os moços não acreditam em nada! Mas é que certas palavras, ouvidas da boca de quem vai morrer... mexem com a gente... não acha? fazem um homem ficar assim meio aquele! Olhe, meu amigo, eu digo-lhe aqui entre nós, e o senhor não se mace, seu pai não teve a vidinha lá muito sossegada, não! Depois que casou, não se dava com pessoa alguma, e nem a própria sogra queria saber dele... vivia como que abandonado! Eu era nesse tempo principiante no comércio e quase que não podia arredar pé do trabalho, contudo aqui vim três vezes; porém creia que não gostava de cá vir!... Era uma tal tristeza!... Doía-me de ver o José tão desprezado, tão triste, que parecia estar a cumprir uma sentença! Viajante nenhum aceitava o pouso em São Brás; preferiam dormir ao relento e às cobras! Contavam que alta noite ouviam-se constantemente gritos horríveis na fazenda, pancadas por espaço de muitas horas, correntes arrastadas; os escravos morriam sem saber de quê! Enfim, o cônego Diogo, que era o vigário desta freguesia, confessa que nunca lhe soube dar volta! E olhe, coitado! meteu-se-lhe em cabeça abençoar e proteger São Brás, e quase ia sendo vítima da sua dedicação! até ficou assim a modo de aluado! E, foi tão perseguido por cá, que o pobre homem viu-se obrigado a abandonar a paróquia! Ainda hoje, quando lhe toco nisso, benze-se todo! Pois pode crer o senhor que ele era o mais íntimo amigo de meu irmão e o único talvez que ultimamente lhe freqüentava a casa; entretanto, compreenda-se lá seu pai, já por último, não o queria ver nem pintado! e, nos delírios das suas febres, estava sempre a ver fantasmas e a gritar como um doido que queria dar cabo do padre! “Quero matar o padre! — Tragam-me o padre! — O padre é que é o culpado de tudo!” Este fulano padre era o cônego! Eu não quis nunca falar nestas coisas ao compadre, porque, cismático como é, podia agastar-se comigo!... E, depois de uma pausa: — Ora, já vê o meu amigo que, apesar de não acreditar em almas do outro mundo, tenho as minhas razões para... Raimundo procurava disfarçar a preocupação em que o punham as palavras de Manuel, e declarou que, se este não estava disposto a ir a São Brás, que se ficasse com o guia, ele iria só. — Mas saiba, disse, que ao caboclo perdôo o medo, porque enfim não está na altura de certas verdades, mas ao senhor... — Eu não tenho medo de coisa alguma, já disse!... Mas é que... — Receia sempre que o diabo lhe saia ao encontro, compreendo! E o rapaz fingiu uma gargalhada, para intimidar o companheiro. — Não, mas é que... — Ora deixe-se de histórias! O senhor não me parece um homem!... Manuel cedeu afinal, e os dois tomaram a direção da tapera. Fizeram em silêncio todo o caminho; Raimundo por muito comovido e Manuel por amedrontado. Instintivamente, pararam em respeitável distância. — Creio que chegamos! arriscou o moço. E, avançando alguns passos, disse ao outro: — Lá está ela! — Ó de casa! gritou Manuel. Só o eco respondeu. Adiantaram-se mais e Raimundo gritou por sua vez, com o mesmo resultado. — Ande, senhor Manuel! Estamos a quixotear... Aqui não há viva alma!... Mais alguns passos e estavam defronte da tapera. Eram os restos de uma casa térrea, sem reboque e cujo madeiramento de lei resistira ao seu completo abandono. Ia anoitecer. O Sol naufragava, soçobrando num oceano de fogo e sangue; o céu reverberava como a cúpula de uma fornalha; o campo parecia incendiado. Como era preciso aproveitar o dia, os dois viajantes apearam-se logo, cada qual prendeu o seu cavalo, e introduziram-se na varanda da casa por uma brecha que cortava de alto a baixo o primeiro pano de parede. Essa parte estava completamente arruinada e cheia de mato; os camaleões, as osgas e as mucuras fugiam espantados pelos pés de Raimundo, que ia galgando moitas de urtiga e capim-bravo. Lá dentro a tapera tinha um duro aspecto nauseabundo. Longas teias de aranha pendiam tristemente em todas as direções, como cortina de crepe esfacelado; a água da chuva, tingida de terra vermelha, deixara, pelas paredes, compridas lágrimas sangrentas que serpeavam entre ninhos de cobras e lagartos; a um canto descobria-se no chão ladrilhado um abominável instrumento de suplício, era um tronco de madeira preta, e os seus buracos redondos, que serviam para prender as pernas, os braços ou o pescoço dos escravos, mostravam ainda sinistras manchas arroxeadas. Os dois seguiram adiante, penetrando o interior da casa. Ao transporem cada porta fugia na frente deles uma nuvem negra de morcegos e andorinhas. O solo, empastado de excremento de pássaros e répteis era pegajoso e úmido; o telhado abria em vários pontos, chorando uma luz morna e triste; respirava-se uma atmosfera de calabouço. De um charco vizinho à casa palpitava, monótono como um relógio, o rouquenho coaxar das rãs. Os anuns passavam de uma para outra árvore, cortando o silêncio da tarde, com os seus gemidos prolongados e agudíssimos; do fundo tenebroso da floresta vinham de espaço a espaço o gargalhar das raposas e os gritos sensuais dos macacos e sagüis. Era já o concerto da noite. Manuel, um tanto comovido, contemplava demoradamente as ruínas que o cercavam, procurando descobrir naqueles restos mudos e emporcalhados, a antiga residência de seu irmão. Nada lhe trazia à lembrança uma nota ainda viva do passado. — Vejamos agora por aqui... disse ele, passando, seguido pelo sobrinho, a um quarto, cujas janelas tinham as folhas despregadas e prestes a desabar. Era este o quarto de José... E pôs-se a meditar. Raimundo olhava para tudo com uma grande tristeza, infinita, sem bordas, mas fechada que nem um horizonte de névoas. “Como seria seu pai?...” pensava ele, sem uma palavra, como seria esse bom homem, que nunca se descuidara da educação do pobre Raimundo?... Quantas vezes, naquele quarto, talvez junto a uma daquelas janelas, olhando para a quinta, não pensaria o infeliz no querido filho, que tinha tão longe dos seus afagos?... E sua mãe?... Sua pobre mãe desconhecida, estaria ali, ao lado dele, ou, quem o sabia? escondida, envergonhada, a chorar as faltas em algum desterro humilhante?... — Aqui, disse Manuel, batendo no ombro do companheiro, nasceu o senhor, meu amigo, e viveu os seus primeiros anos... Raimundo sentia um desejo doido de perguntar pela mãe, mas não se achava com ânimo; temia agora uma inesperada decepção, uma agonia inédita, que o esmagasse de todo; receava alguma verdade implacável e fria, rija, de aço, que o atravessasse de lado a lado, como uma espada. Até ali, ninguém lhe falara nela. “É que, sem dúvida, havia em tudo aquilo um segredo de família, alguma paixão vergonhosa, uma falta horrível, talvez um crime abominável, que ninguém ousava revelar! E, no entanto, Raimundo tinha plena certeza de que aquele homem, que ali estava em sua presença, ao alcance de suas palavras, sabia de tudo e poderia, se quisesse, arrancá-lo para sempre daquela maldita incerteza!.. Quem seria ela?... essa estranha mãe misteriosa, por quem ele sentia um amor desnorteado?... Alguma senhora, bonita sem dúvida, porque causava crimes; criminosa ela própria, por amor, a inspirar loucuras a seu pai, a acender-lhe uma paixão fatal e romanesca, cheia de sobressaltos e de remorsos! E desse amor secreto e criminoso, desse adultério, que sem dúvida causou a morte de seu pai, nascera ele!... Mas, por que não lhe contavam tudo com franqueza?... Por que não lhe diziam toda a verdade?... Oh! devia ser um segredo infernal, para o esconderem com tamanho empenho!...” E, acabrunhado por estes raciocínios, humilhado pela dúvida de si próprio, miserável e triste, Raimundo percorria a casa, em silêncio. Despertou-o de novo a voz de Manuel: — Vamos à capela, antes que anoiteça de todo. Entraram primeiro no cemitério. Estava arrasado. Manuel apontou para uma velha sepultura, e disse ao outro com respeito: — Ali está seu pai! Raimundo chegou-se para o túmulo, descobriu-se, e procurou ler na carneira alguma inscrição que lhe falasse do morto. Absolutamente nada! o tempo apagara da pedra o nome de seu pai. Ali só havia um pedaço de mármore carunchoso e negro. Deixara de ser uma tabuleta, era uma tampa. O rapaz sentiu então, mais do que nunca, pesar-lhe dentro d’alma, como uma barra de chumbo, todo o mistério da sua vida; compreendeu que sobre esta havia também uma pedra silenciosa e negra; compreendeu que o seu passado nada mais era do que outra sepultura sem epitáfio. Enovelou-se-lhe na garganta um godilhão de soluços e Raimundo sentiu a necessidade de ajoelhar-se defronte do silêncio daquele túmulo. Manuel afastara-se discretamente, tossindo, para disfarçar a sua comoção. O moço enxugava as lágrimas, agora abundantes e fartas; depois encaminhou-se para uma outra cova mais adiante, abrigada por uma frondosa mangueira. Estava já vazia e com a lousa fora do lugar. Naturalmente, os parentes do cadáver haviam retirado dali os ossos para alguma igreja da capital. A posição e a folhagem da lápida da árvore serviram de resguardo ao epitáfio; Raimundo passou o lenço por cima dele e conseguiu ler o seguinte: “Aqui jazem os restos mortais de Quitéria Inocência de Freitas Santiago, filha extremosa, esposa exemplar. Casou em 15 de dezembro de 1845 e faleceu em 1849. Orai por ela.” — Não há dúvida que, além de bastardo, descendi de uma tremenda vergonha! Meu nascimento combina aproximadamente com estes algarismos... E, tendo monologado estas palavras, chegou ao fundo do cemitério e achou-se defronte de uma capela. Entrou, galgando três degraus escalavrados. Uma coruja fugiu espavorida. A luz triste da lua filtrava-se já pelas aberturas do telhado, mas pelas janelas entrava de rojo o quente lusco-fusco do crepúsculo. Raimundo, ao chegar à sacristia, estacou e estremeceu todo: o vulto esquelético e andrajoso, que lhe aparecera à noite, como um fantasma, ali estava naquela meia escuridão, a dançar uns requebros estranhos, com os braços magros levantados sobre a cabeça. O rapaz sentiu gelar-lhe a testa um suor frio e conservou-se estático, quase duvidoso de que aquilo que tinha defronte de si fosse uma figura humana. Todavia, a múmia se aproximava dele, a dar saltos, estalando os dedos ossudos e compridos. Viam-se-lhe os dentes brancos e descarnados, os olhos a estorcerem-se-lhe convulsivamente nas órbitas profundas, e a caveira a desenhar-se em ângulos através das carnes. Ora erguia as mãos, descaindo a cabeça; ora fazia voltas, sapateando e dando pungas no ar. De repente deu com Raimundo e precipitou-se para ele de braços abertos. Na primeira impressão o rapaz recuava com repugnância, mas, caindo logo em si, aproximou-se da louca e perguntou-lhe se conhecia quem morara naquela fazenda. A idiota olhou para ele, e riu-se sem responder. — Não conheceste o José da Silva ou José do Eito? A preta continuou a rir. Raimundo insistiu no seu interrogatório mas sem obter resultado algum. A doida o considerava fixamente, como que procurando reconhecer-lhe as feições; de súbito, deu um salto sobre ele, tentando abraçá-lo; o rapaz não tivera tempo de fugir e sentiu-se em contacto com aquele corpo repugnante. Então num assomo nervoso repeliu-a bruscamente. Ela caiu para trás, estalando os ossos contra os tijolos do chão. Raimundo saiu de carreira para reunir-se a Manuel, porém a idiota alcançou-o, já no cemitério, e arremessou-se de novo contra ele. — Não me toques! gritava o moço, com raiva, levantando o chicote. Manuel acudiu correndo: — Não lhe bata, doutor! Não lhe bata, que é doida! Conheço-a! — Mas, se ela não me quer deixar!... Sai! Sai, diabo! Olha que te dou! Manuel mostrava-se agoniado e surpreso. — Já! disse ele, intimidando a louca. Já pra dentro! A preta retirou-se humildemente. — Quem é ela, perguntou Raimundo, lá fora, tratando de montar. O senhor disse que a conhecia. — Esta pobre negra... respondeu Manuel hesitante, foi escrava de seu pai. Vamos! E puseram-se a caminho. 12 Voltaram ambos impressionados da tapera. Manuel tentara por duas vezes uma conversa que não vingara no ânimo acabrunhado do companheiro; Raimundo respondia maquinalmente às suas palavras, ia muito preocupado e aborrecido. Na dúvida da sua procedência e com a certeza do seu bastardismo, vinha-lhe agora uma estranha suscetibilidade; não sabia por que motivo, mas sentia que precisava, que tinha urgência, de uma explicação cabal do que levou Manuel a recusar-lhe a filha. “Com certeza estava aí a ponta do mistério!” Ele o que queria era penetrar no seu passado, percorrê-lo, estudá-lo, conhecê-lo a fundo; encontrara até então todas as portas fechadas e mudas, como a sepultura de seu pai; embalde bateu em todas elas; ninguém lhe respondera. Agora um alçapão se denunciava na recusa de Manuel; havia de abri-lo e entrar, custasse o que custasse, ainda que o alçapão despejasse sobre um abismo. E, tão dominado ia pela sua resolução que, ao passar pelo cruzeiro da Estrada Real, nem só não deu por ele, como pelo guia que logo se pusera a caminho. — Ó meu amigo! gritou-lhe o tio. Isto também não vai assim!... Despeça-se deste lugar! E apeou-se, para depor aos pés da cruz um galho de murta. Raimundo voltou atrás e, depois de um grande silêncio, fitou Manuel e perguntou-lhe, externando um retalho do pensamento que o dominava: — Ela será, porventura, minha irmã?... — Ela, quem? — Sua filha. O negociante compreendeu a preocupação do sobrinho. — Não. Raimundo tornou a mergulhar no paul da sua dúvida e das suas conjeturas, procurando de novo o motivo daquela recusa, como quem procura um objeto no fundo d’água; e a sua inteligência, de outras vezes tão lúcida e perspicaz, sentia-se agora impotente e cega, às apalpadelas, às tontas, desesperada, quase extinta, nas lamacentas e misteriosas trevas do pântano. E, de tudo isso, vinha-lhe um grande mal-estar. Depois da negativa de Manuel, Ana Rosa afigurava-se-lhe uma felicidade indispensável; já não podia compreender a existência, sem a doce companhia daquela mulher simples e bonita, que, no seu desejo estimulado, lhe aparecia agora sob mil novas formas de sedução. E, na sua fantasia enamorada, acariciava ainda a idéia de possuí-la, idéia que, só então o notava, dormira todas as noites com ele, e que agora, ingrata, queria escapar-lhe com as desculpas banais e comuns de uma amante enfastiada. Oh! sim! desejava Ana Rosa! habituara-se imperceptivelmente a julgá-la sua; ligara-a a pouco e pouco, sem dar por isso, a todas as aspirações da sua vida; sonhara-se junto dela, na intimidade feliz do lar, vendo-a governar uma casa que era de ambos, e que Ana Rosa povoava com alegria de um amor honesto e fecundo. E agora, desgraçado — olhava para toda essa felicidade, como o criminoso olha, através às grades do cárcere para os venturosos casais, que se vão lá pela nua, de braço dado, rindo e conversando ao lado dos filhos. E Raimundo antejulgava perfeitamente que aquele empenho de Manuel em negar-lhe a filha, longe de arredá-la do seu amor, mais e mais o empurrava para ela, ligando-a para sempre ao seu destino. — Terá sua filha alguma secreta enfermidade, que levasse o médico a proibir-lhe o casamento? Terá algum defeito orgânico?... — Oh! com efeito! O senhor tortura-me com as suas perguntas!... creia que, se eu pudesse dizer-lhe a causa de minha recusa, tê-lo-ia feito desde logo! Oh! Raimundo não pôde conter-se e disparatou, fazendo estacar o seu cavalo. — Mas o senhor deve compreender a minha insistência! Não se diz assim, sem mais nem menos, a um homem que vem, legítima e conscienciosamente, pedir a mão de uma senhora, que a isso o autorizou. “Não lha dou, porque não quero!” Por que não quer?! “Porque não! Não posso dizer o motivo!...” É boa! Tal recusa significa uma ofensa direta a quem faz o pedido! Foi uma afronta à minha dignidade. O senhor há de concordar que me deve uma resposta, seja qual for! uma desculpa! uma mentira, muito embora! mas, com todos os diabos! é necessária uma razão qualquer! — É justo, mas... — Se me dissesse: “Oponho-me ao casamento, porque antipatizo solenemente com o seu caráter”. Sim senhor! Não seria uma razão plausível, mas estaria no seu direito de pai, mas o senhor... — Perdão! eu não podia dizer semelhante coisa, depois de o haver elogiado por várias vezes, e ter-me declarado, como repito, seu amigo e seu apreciador... — Mas então?! Se é meu amigo, que diabo! diga-me a razão com franqueza! tire-me, por uma vez, deste maldito inferno da dúvida! declare-me o segredo da sua recusa, seja qual for, ainda que uma revelação esmagadora! Estou disposto a aceitar tudo, tudo! menos o mistério, que esse tem sido o tormento da minha vida! Vamos, fale! suplico-lhe por... aquele que caiu assassinado!—E apontou na direção da cruz. Era seu irmão e dizem que meu pai... Pois bem, peço-lhe por ele que me fale com franqueza! Se sabe alguma coisa dos meus antepassados e do meu nascimento, conte-me tudo! Juro-lhe que lhe ficarei reconhecido por isso! Ou, quem sabe? serei tão desprezível a seus olhos, que nem sequer lhe mereça tão miserável prova de confiança?... — Não! não! ao contrário, meu amigo! Eu até levaria muito em gosto o seu casamento com a minha filha, no caso de que isso tivesse lugar!... E só peço a Deus que lhe depare a ela um marido possuidor das suas boas qualidades e do seu saber; creia, porém, que eu, como bom pai, não devo, de forma alguma, consentir em semelhante união. Cometeria um crime se assim procedesse!... — Com certeza há parentesco de irmão entre ela e eu! — Repare que me está ofendendo... — Pois defenda-se, declarando tudo por uma vez! — E o senhor promete não se revoltar com o que eu disser?... — Juro. Fale! Manuel sacudiu os ombros e resmungou depois, em ar de confidência: — Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é... é filho de uma escrava... — Eu?! — O senhor é um homem de cor!... Infelizmente esta é a verdade... Raimundo tornou-se lívido. Manuel prosseguiu, no fim de um silêncio: — Já vê o amigo que não é por mim que lhe recusei Ana Rosa mas é por tudo! A família de minha mulher sempre foi muito escrupulosa a esse respeito, e como ela é toda a sociedade do Maranhão! Concordo que seja uma asneira; concordo que seja um prejuízo tolo! o senhor porém não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos!... Nunca me perdoariam um tal casamento; além do que, para realizá-lo, teria que quebrar a promessa que fiz a minha sogra, de não dar a neta senão a um branco de lei, português ou descendente direto de portugueses!... O senhor é um moço muito digno, muito merecedor de consideração, mas... foi forro à pia, e aqui ninguém o ignora. — Eu nasci escravo?!... — Sim, pesa-me dizê-lo e não o faria se a isso não fosse constrangido, mas o senhor é filho de uma escrava e nasceu também cativo. Raimundo abaixou a cabeça. Continuaram a viagem. E ali no campo, à sombra daquelas árvores colossais, por onde a espaços a Lua se filtrava tristemente, ia Manuel narrando a vida do irmão com a preta Domingas. Quando, em algum ponto hesitava por delicadeza em dizer toda a verdade, o outro pedia-lhe que prosseguisse francamente, guardando na aparência uma tranqüilidade fingida. O negociante contou tudo o que sabia. — Mas que fim levou minha mãe?... a minha verdadeira mãe? perguntou o rapaz, quando aquele terminou. Mataram-na? Venderam-na? O que fizeram dela? — Nada disso; soube ainda há pouco que está viva... É aquela pobre idiota de São Brás. — Meu Deus! exclamou Raimundo, querendo voltar à tapera. — Que é isso? Vamos! Nada de loucuras! Voltará noutra ocasião! Calaram-se ambos. Raimundo, pela primeira vez, sentiu-se infeliz; uma nascente má vontade contra os outros homens formava-se na sua alma até aí limpa e clara; na pureza do seu caráter o desgosto punha a primeira nódoa. E, querendo reagir, uma revolução operava-se dentro dele; idéias turvas, enlodadas de ódio e de vagos desejos de vingança, iam e vinham, atirando-se raivosos contra os sólidos princípios da sua moral e da sua honestidade, como num oceano a tempestade açula contra um rochedo os negros vagalhões encapelados. Uma só palavra boiava à superfície dos seus pensamentos: “Mulato”. E crescia, crescia, transformando-se em tenebrosa nuvem, que escondia todo o seu passado. Idéia parasita, que estrangulava todas as outras idéias. — Mulato! Esta só palavra explicava-lhe agora todos os mesquinhos escrúpulos, que a sociedade do Maranhão usara para com ele. Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhe falavam sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: “Ora mire-se!” a razão pela qual, diante dele, chamavam de meninos aos moleques da rua. Aquela simples palavra dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizia-lhe brutalmente: “Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da tua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi escrava! E tu também o foste!” — Mas, replicava-lhe uma voz interior, que ele mal ouvia na tempestade do seu desespero; a natureza não criou cativos! Tu não tens a menor culpa do que fizeram os outros, e no entanto és castigado e amaldiçoado pelos irmãos daqueles justamente que inventaram a escravidão no Brasil! E na brancura daquele caráter imaculado brotou, esfervilhando logo, uma ninhada de vermes destruidores, onde vinham o ódio, a vingança, a vergonha, o ressentimento, a inveja, a tristeza e a maldade. E no círculo do seu nojo, implacável e extenso, entrava o seu país, e quem este primeiro povoou, e quem então e agora o governava, e seu pai, que o fizera nascer escravo, e sua mãe, que colaborara nesse crime. “Pois então de nada lhe valia ter sido bem educado e instruído; de nada lhe valia ser bom e honesto?... Pois naquela odiosa província, seus conterrâneos veriam nele, eternamente, uma criatura desprezível, a quem repelem todos do seu seio?..” E vinham-lhe então, nítidas à luz crua do seu desalento, as mais rasteiras perversidades do Maranhão; as conversas de porta de botica, as pequeninas intrigas que lhe chegavam aos ouvidos por intermédio de entes ociosos e abjetos, a que ele nunca olhara senão com desprezo. E toda essa miséria, toda essa imundícia, que até então se lhe revelara aos bocadinhos, fazia agora uma grande nuvem negra no seu espírito, porque, gota a gota, a tempestade se formara. E, no meio desse vendaval, um desejo crescia, um único, o desejo de ser amado, de formar uma família um abrigo legítimo, onde ele se escondesse para sempre de todos os homens. Mas o seu desejo só pedia, só queria, só aceitava Ana Rosa, como se o mundo inteiro houvera desaparecido de novo ao redor daquela Eva pálida e comovida, que lhe dera a provar, pela primeira vez, o delicioso veneno do fruto proibido. 13 A volta pareceu-lhe mais longa do que a ida ao Rosário; quase que não falou por toda a viagem, estalava de impaciência por estar só, inteiramente só, para pensar à vontade, conversar consigo mesmo e convencer-se de que era um espírito superior àquelas pequenas misérias sociais. Logo que chegou a casa, foi direto ao seu quarto, fechou-se por dentro, com um ruído áspero de fechadura que funciona poucas vezes. Fazia-se noite. Ele parou junto à mesa, no escuro, acendeu um fósforo, apagou-se; segundo, terceiro, o quarto ardeu bem, porém Raimundo ficou a olhar abstrato para a flama azul, torcendo entre os dedos, automaticamente, o pedacinho de madeira, que se queimou até chamuscar-lhe as unhas; e ficou às escuras, por longo tempo, cismando, perdido na sua preocupação. É que, de raciocínio em raciocínio, chegara ao âmago do fato. “Devia ceder ou lutar?...” Mas o seu espírito nada resolvia; acuava como um cavalo defronte de um abismo. Ele metia as esporas; era tudo inútil! — Diabo! exclamou, voltando a si. E acendeu a vela. Assentou-se à escrivaninha, sem tirar sequer o chapéu, e pôs-se a pensar, sacudindo nervosamente a perna. Tomou distraído a pena, embebeu-a repetidas vezes no tinteiro, e rabiscou as margens dos jornais que lhe estavam mais próximos. Desenhou, com uma pachorra inconsciente, um sino-salomão, e, como se estivesse prestando sumo cuidado ao seu desenho, emendou-o, corrigiu-se, fez um novo igual ao primeiro, outro, mais outro, encheu com eles toda uma margem de jornal. — Diabo! exclamou novamente, no desespero de quem não encontra a solução de um problema. E pôs-se a fitar, com a máxima atenção a chama da vela. Depois, tomou um invólucro de cigarros, abandonado sobre a mesa, e começou a quebrar com ele as estalactites da estearina, até que o papel, por muito embebido no combustível, inflamou-se e foi lançado ao chão. — Diabo! E repetia insensivelmente as palavras de Manuel: “Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é filho de uma escrava! — O senhor é um homem de cor! — O senhor foi forro à pia, e aqui ninguém o ignora! — O senhor não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos!...” — Mulato! E eu que nunca pensara em semelhante coisa!... Podia lembrar-me de tudo, menos disto!... E acusava-se de frouxo; de não ter dado boas respostas na ocasião; não ter reagido com espírito forte, e provado que Manuel estava em erro e que ele, Raimundo, não ligava a mínima importância a semelhante — futilidade! Assistiam-lhe agora respostas magníficas, verdadeiros raios de lógica, com que fulminaria o adversário. E, argumentando com as réplicas que lhe faltaram então, reformava mentalmente todo o caso, dando a si próprio um novo papel, tão brilhante e enérgico quão fraco e passivo fora o primeiro. Afastou a cadeira da secretária, debruçou-se sobre esta e escondeu o rosto nos braços dobrados. Assim levou quase uma hora; quando levantou de novo a cabeça, reparou, pela primeira vez, numa litografia de São José, que sempre estivera ali na parede do seu quarto. Raimundo examinou minuciosamente o santo com o seu colorido vivo, o menino Jesus no braço esquerdo e uma palma na mão direita. Surpreendeu-se de vê-la naquele lugar: em dias de despreocupação nunca dera por ela. E daí, recordou-se de ter visto na Alemanha trabalhar um prelo litográfico dos mais aperfeiçoados; depois pensou nos processos do desenho, nos diversos estilos de artistas seus conhecidos e, afinal, em São José e na religião cristã. E mais: acudiam-lhe agora coisas inteiramente indiferentes: lembrava-se de um homem, vermelho e suado, que ele vira uma semana antes, a conversar sobre Napoleão Bonaparte com um lojista da Rua de Nazaré. Diziam muita asnice; e a imagem do lojista saltava-lhe perfeita à memória — magricela, com uns bigodes compridos, afetando delicadezas de alfaiate de Lisboa. Ouvira-lhe o nome, mas estava na dúvida. “Moreira? Não, não era Moreira!” E procurava mentalmente o nome, com insistência. “Pereira? Não! Nogueira... Era Nogueira!” Este nome trouxe-lhe logo à lembrança uma ocasião em que conversava com Nogueira Penteeiro, e passar na rua uma mulher doida, que levantava as saias para mostrar o corpo. De repente, Raimundo estremeceu, era a idéia que voltava, a idéia primitiva, a idéia capital. Reaparecia; tinha feito uma retirada falsa; ficara à porta do cérebro, espiando para dentro. E ele soltou um suspiro com a presença importuna e vexatória dessa idéia que esperava, pelo seu pensamento, como um polícia espera um criminoso, para o levar preso. E o pensamento de Raimundo remancheava; não queria ir mas a idéia implacável reclamava-o. E o prisioneiro entregou afinal os pulsos. Ergueu-se da cadeira; bateu vigorosamente uma punhada na mesa, protestando como se alguém lhe falasse: — Ora sebo! Que diabo tenho eu com isto? O que vim fazer a esta província estúpida, foi tratar dos meus negócios pecuniários! Liquidados — nada mais tenho que fazer aqui! Musco-me! Ponho-me ao fresco! Passem muito bem! E começou a passear pelo quarto, agitado, a fingir-se muito egoísta com as mãos nas algibeiras das calças monologando: — Sim! sim! longe daqui não sou forro à pia! o filho da escrava; sou o Doutor Raimundo Jose da Silva, estimado, querido e respeitado! Vou! Por que não?! O que mo impediria? E parou, tornou a andar, afinal assentou-se na cama, disposto a recolher-se. Despiu o paletó, arremessou o chapéu e o colete. — Sim! O que mo impediria?... Ia descalçar a primeira botina, quando espantou-se com a lembrança de Ana Rosa. Uma voz exigente bradava-lhe do coração: “E eu? e eu? e eu?... Esqueceste de mim, ingrato? Pois bem, não quero que vás, ouviste? Não irás! sou eu quem to impedirá!” E Raimundo, pasmo por não ter, durante tanto tempo, pensado em Ana Rosa, despiu-se com pressa e, como querendo fugir a esta nova idéia, atirou-se de bruços à cama, soluçando. Às seis horas da manhã ainda havia luz no quarto dele. No dia seguinte, às duas da tarde, desceu, muito abatido, ao escritório de Manuel e pediu-lhe secamente que apressasse os seus negócios e o despachasse quanto antes, porque não podia demorar-se mais tempo no Maranhão. Precisava partir o mais cedo possível. — Mas venha cá, doutor, o senhor não me deve guardar ódio por ter eu... — Ah, certamente, certamente! Nem pensemos nisso! interrompeu Raimundo, procurando desviar a conversa. O senhor tem toda a razão... Vamos ao que importa! Diga-me quando poderei estar desembaraçado? — Mas não ficou maçado comigo!... Não é verdade? Creia que... — Ó senhor! Como quer que lhe diga que não? Maçado! Ora essa! por quê? Já nem pensava em tal! Vinha até pedir-lhe um serviço... — Se estiver em minhas mãos... — É simples. E, depois de uma pausa, Raimundo continuou, com a voz um pouco alterada, a despeito do esforço que fazia por afetar tranqüilidade: — Como lhe disse ontem... estava autorizado pela senhora sua filha a pedi-la em casamento; em vista, porém, do que me expôs o senhor a meu respeito, cumpre-me dar à Sr.ª Ana Rosa qualquer explicação. Compreende que não posso retirar-me desta província, assim, sem mais nem menos, estando já empenhado em um compromisso tão melindroso... — Ah, sim... mas não lhe dê isso cuidado... Arranjarei qualquer desculpa... — Uma desculpa, justamente! É preciso dar-lhe uma desculpa; e o melhor seria declarar-lhe a verdade. Explique-lhe tudo. Conte-lhe o que se passou entre nós. Ninguém, para isso, está mais no caso que o senhor!... Manuel coçava a nuca com uma das mãos, enquanto com a outra batia o cabo da caneta entre os dentes, na atitude contrariada de quem toma, à pura força de circunstâncias, interesse numa causa estranha; porém, como Raimundo falasse em mudar de casa, ele atalhou logo. — Como o senhor quiser... mas a nossa choupana está sempre às suas ordens... — Bem, concluiu o rapaz, agradecendo o oferecimento com um gesto; posso então contar que o meu amigo se encarrega de explicar tudo à senhora sua filha? — Pode ficar descansado. — E quando terei os meus negócios concluídos? — Antes da chegada do vapor já o senhor estará inteiramente desembaraçado. — Muito agradecido. E Raimundo subiu para o seu quarto. Fazia um grande calor. O céu, todo limpo, com as suas nuvens arredondadas, parecia um vasto tapete azul, onde dormiam enormes cães felpudos e preguiçosos. Raimundo lembrou-se de sair; faltou-lhe o ânimo: afigurava-se-lhe que na rua todos os apontariam, dizendo: “Lá vai o filho da escrava!” Ia abrir a janela e hesitou; sentia um grande tédio, um mal-estar crescente, desde a revelação de Manuel; uma surda indisposição contra tudo e contra todos; naquele momento, irritava-o, por exemplo, a voz aflautada de um quitandeiro, que argumentava, lá embaixo na rua, com um súcio. Abriu o álbum com a intenção de desenhar, mas repeliu-o logo; tomou um livro e leu distraidamente algumas linhas; levantou-se, acendeu um cigarro e passeou a largos passos pelo quarto, com as mãos nas algibeiras. Em um destes passeios, parou defronte do espelho e mirou-se com muita atenção, procurando descobrir no seu rosto descorado alguma coisa, algum sinal, que denunciasse a raça negra. Observou-se bem, afastando o cabelo das fontes; esticando a pele das faces, examinando as ventas e revistando os dentes; acabou por atirar com o espelho sobre a cômoda, possuído de um tédio imenso e sem fundo. Sentia uma grande impaciência, porém vaga, sorrateira, sem objeto, um frouxo desejar que o tempo corresse bem depressa e que chegasse um dia, que ele não sabia que dia era; sentia uma vontade indefinida de ir de novo a vila do Rosário, procurar a pobre mãe, a pobre negra, a dedicada escrava de seu pai, e trazê-la em sua companhia, para dizer a todos: “Esta preta idiota, que aqui vêem ao meu braço é minha mãe, e ai daquele que lhe faltar ao respeito!” Depois fugir com ela da pátria, como quem foge de um covil de homens maus e meter-se em qualquer terra, onde ninguém conhecesse a sua história. Mas, de improviso, chegava-lhe Ana Rosa à lembrança, e o infeliz desabava num grande desânimo, vencido e humilhado. E deixava cair a cabeça na palma das mãos, a soluçar. Por este tempo, Manuel acabava de expor à filha a necessidade absoluta de não pensar em Raimundo. — Enfim, dizia de, tu já não és uma criança, e bem podes julgar o que te fica bem e o que te fica mal!... Há por aí muito rapaz decente, de boa família... e nos casos de fazer-te feliz. Vamos! Não quero ver esse rostinho triste!... Deixa estar que mais tarde me agradecerás o bem que agora te faço!... Ana Rosa, de cabeça baixa, ouvia, aparentemente resignada, as palavras do pai. Confiava em extremo no seu amor e nos juramentos de Raimundo, para recear qualquer obstáculo. Só agora soubera ao certo da procedência de seu primo bastardo, e no entanto, ou fosse porque lhe germinavam ainda no coração os supremos conselhos maternos, ou fosse que o seu amor era dos que a tudo resistem, o caso é que essa história que a tantos arrancara exclamações de desprezo; isso que forneceu assunto a gordas palestras nas portas dos boticários; isso que foi comentado em toda a província, entre risos de escárnio e cuspalhadas de nojo, desde a sala mais pretensiosa, até à quitanda mais pífia; isso que fechou muitas portas a Raimundo e cercou-o de inimigos; isso, essa grande história escandalosa e repugnante para os maranhenses, não alterou, absolutamente nada, o sentimento que Ana Rosa lhe votava. As palavras de Manuel não lhe produziam o menor abalo; ela continuava a estremecer e desejar o mulato com a mesma fé e com o mesmo ardor; tinha lá para si que ele possuía bastante merecimento próprio, bastante atrativo, para ocupar de todo a atenção de quem o observasse, sem ser preciso remontar aos seus antepassados. Estabelecia comparações entre as regalias do amor de Raimundo e as vergonhas que dele pudessem resultar, e concluía que aquelas bem mereciam o sacrifício destas. Amava-o — eis tudo. Manuel, depois dos seus conselhos, passou a fazer considerações desfavoráveis a respeito das qualidades morais do mulato, e com isso apenas conseguiu estimular o desejo da filha, juntando aos atrativos do belo rapaz mais um, não menos poderoso o da proibição. Enquanto ele, entestando com a inadmissível hipótese de um casamento tão desastrado, desenrolava um quadro assustador, profetizando, com as negras cores da sua experiência e com febre do seu amor de pai, um futuro de humilhações e arrependimentos chegando até a ameáça-la de retirar-lhe a bênção; Ana Rosa, distraída, olhando para um só ponto respondia maquinalmente: “Sim... Não... Decerto!... Está visto!.. “ sem prestar a mínima atenção ao que ele discreteava, porque o próprio objeto discutido lhe arredava dali o pensamento, trazendo-lhe por associação de idéias, os seus devaneios favoritos nos quais se sonhava ao lado de Raimundo, em plena felicidade conjugal. — Enfim, disse Manuel, procurando encerrar o discurso e satisfeito pelo ar atento e resignado da filha; nada temos que recear... Ele muda-se por estes dias e parte definitivamente no primeiro vapor para o Sul! Esta notícia, dada assim à queima-roupa e em tom firme, despertou-a com violência. — Hein? como? parte? muda-se? por quê?... E fitou o pai, sobressaltada. — É, ele muda-se... Não quer esperar aqui o dia da viagem... — Mas por quê, senhores?... O negociante viu-se num grande embaraço; não lhe convinha dizer abertamente a verdade; dizer que Raimundo se retirava, para fugir ao tormento de ver todos os dias Ana Rosa, sem esperança de possuí-la. E, não atinando com uma resposta, com uma saída, o pobre homem balbuciava: — É! o rapaz maçou-se com o que eu lhe disse, e, como é senhor do seu nariz, muda-se! Ora essa! Pensas talvez que ele se sinta muito com isso?... Estás enganadinha, filha! Foi-me muito lampeiro ao escritório e pediu-me que o desculpasse contigo. “Que desses o dito por não não dito! Que ele precisava mudar de ares!... Que se aborrecia muito cá pela província! pela aldeola — como ele a chama!” — Mas por que não veio ele mesmo entender-se comigo?... — Ora, filha! bem se vê que não conheces o Raimundo... Pois ele é lá homem para essas coisas?... Um tipo que não liga a menor importância às coisas mais respeitáveis! Um ateu que não acredita em nada! Até ficou mais satisfeito depois da minha recusa! Só parece que estava morrendo por um pretexto para desfazer o seu compromisso contigo! — Percebo! exclamou Ana Rosa, transformando-se e cobrindo o rosto com as mãos. É que não me ama! Nunca me amou, o miserável! E abriu a chorar. — Hein?! Olá! Então que quer isto dizer... Ora, ora os meus pecados! Ai, que isto de mulheres não há quem as entenda! Ana Rosa fugiu para o seu quarto, nervosa, soluçando, e atirou-se de bruços na rede. O pai seguiu-a assustado: — Então, minha filha, que é isto?... — Diabo da peste! E a infeliz soluçava. — Então, que tolice a tua, Anica! Olha, minha filha! escuta! — Não quero escutar nada! Diga-lhe que pode ir quando entender! Pode ir, que até é favor! — Grande coisa perdes, na verdade! Ora vamos! Nada de asneiras! Ana Rosa continuava a soluçar, cada vez mais aflita, com o rosto escondido nos braços; as mangas do seu vestido e os travesseiros da rede estavam já ensopados das lágrimas. Assim levou algum tempo, sem responder ao que lhe dizia o pai, de repente suspendeu de chorar, ergueu a cabeça e soltou um gemido rápido e agudo. Era o histérico. — Diabo! resmungou Manuel, coçando a nuca atrapalhado. E chamou logo pelos de casa: D. Maria Bárbara! Brígida! Mônica! O aposento encheu-se imediatamente. O cônego Diogo, que ficara na saleta, à espera daquela conferência de Manuel com a filha, entrou também, atraído pelos gritos da afilhada. — Hoc opus hic labor est! Nessa ocasião, Raimundo, no seu quarto, passava pelo sono, estendido sobre um divã. Sonhava que fugia com Ana Rosa e que, em caminho, eram, os dois, perseguidos por três quilombolas furiosos armados de facão. Um pesadelo. Raimundo queria correr e não podia: os pés enterravam-se-lhe no solo, como no tijuco, e Ana Rosa pesava como se fosse de chumbo. Os pretos aproximavam-se, dardejando os ferros, iam alcançá-los. O rapaz suava de medo; estava imóvel, sem ação, com a língua presa. Os gritos reais da histérica coincidiam com os gritos que Ana Rosa, no sonho, soltava, ferida pelos mocambeiros. Com o esforço, Raimundo pulou do divã e olhou estremunhado em torno de si; depois, deitou a correr para a varanda. O cônego, ouvindo-lhe os passos, veio sair-lhe ao encontro. — Attendite! — Ora, até que enfim nos encontramos! disse-lhe Raimundo. — Psiu! fez o cônego. Ela está sossegando agora! Não vá lá, que lhe pode voltar o ataque!... O senhor é o causador de tudo isto!... — Preciso dar-lhe duas palavras incontinenti, senhor cônego! — Homem, deixe isso para outra ocasião... Não vê o alvoroço em que está a casa?... — Se lhe digo que preciso falar-lhe incontinenti!... Ande! Vamos ao meu quarto! — Que diabo tem o senhor que me dizer?! — Quero tomar alguns esclarecimentos sobre São Brás, percebe? — Horresco referens!... E Raimundo, com um empurrão, meteu-se, mais o cônego, no quarto, e fechou-se por dentro. — Vá dizer-me quem matou meu pai! exclamou, ferrando-lhe o olhar. — Sei cá! E o cônego empalideceu. Mas estava a prumo, defronte do outro. Cruzou os braços. — Que quer isto dizer?... — Quer dizer que descobri afinal o assassino de meu pai e posso vingar-me no mesmo instante! — Mas isto é uma violência! tartamudeou o padre, com a voz sufocada pela comoção. E, fazendo um esforço sobre si, acrescentou mais seguro: — Muito bem senhor doutor Raimundo! muito bem! Está procedendo admiravelmente! É então por esta forma que me pede notícias de seu pai? é este o modo pelo qual me agradece a amizade fiel, que dediquei noutro tempo ao pobre homem? Fui o seu único amigo, o seu amparo, a sua derradeira consolação! e é um filho dele que vem agora, depois de vinte anos, ameaçar um pobre velho, que foi sempre respeitado por todos! Parece que só esperavam que me embranquecessem de todo os cabelos, para insultarem esta batina, que foi sempre recebida de chapéu na mão! Ah, muito bem! muito bem! Era preciso viver setenta anos para ver isto! muito bem! Quer vingar-se? Pois vingue-se! Que lho impede?! Sou eu o criminoso? Pois venha o carrasco! Não me defenderei, mesmo porque já me faltam as forças para isso!... Então! que faz que não se mexe?! Raimundo, com efeito, estava imóvel. “Ter-se-ia enganado?...” À vista do aspecto sereno do cônego chegara a duvidar das conclusões dos seus raciocínios. “Seria crível que aquele velho, tão brando, que só respirava religião e coisas santas, fosse o autor de um crime abominável?...” E, sem saber o que decidir, atirou-se a uma cadeira, fechando a cabeça nas mãos. O padre compreendeu que ganhara terreno e prosseguiu, na sua voz untuosa e resignada: — É, o senhor deve ter razão!... Fui eu naturalmente o assassino de seu pai!... É um rasgo generoso e justo de sua parte desmascarar-me e cobrir-me de ultrajes, aqui nesta casa, onde sempre me beijaram a mão. O senhor está no seu direito! Olhe! agarre aquela bengala e bata-me com ela! Está moço, pode fazê-lo! está no vigor dos seus vinte e cinco anos! Vamos! Fustigue este pobre velho indefeso! castigue este corpo decrépito, que já não presta para nada! Então! bata sem receio que ninguém o saberá! Pode ficar descansado que não gritarei — tenho defronte dos olhos a imagem resignada de Cristo, que sofreu muito mais! E o cônego Diogo, com os braços e olhos erguidos para cima, caiu de joelhos e disse entre dentes, soluçando: — Ó Deus misericordioso! Tu, que tanto padeceste por nós, lança um olhar de bondade sobre esta pobre criatura desvairada! compadece-te da pobre alma pecadora, levada só pela paixão mundana e cega! Não deixes que Satanás se apodere da mísera. Salva-a, Senhor! perdoa-lhe tudo, como perdoaste aos teus algozes! Graça para ela! eu te suplico, graça, meu divino Senhor e Pai! E o cônego ficou em êxtase. — Levante-se, observou-lhe Raimundo, aborrecido. Deixe-se disso! Se lhe fiz uma injustiça, desculpe. Pode ir descansado, que não o perseguirei. Vá! Diogo ergueu-se, e pousou a mão no ombro do moço. — Perdôo-te tudo, disse; compreendo perfeitamente o teu estado de excitação. Sei o que se passou! Mas consola-te, meu filho, que Deus é grande, e só no seu amor consiste a verdadeira paz e felicidade! E saiu de cabeça baixa, o ar humilde e contrito; mas, ao descer a escada para a rua, resmungava: — Deixa estar, que mas pagarás, meu cabrinha apistolado!... 14 Sete dias depois, morava Raimundo em uma das suas casinhas da Rua de São Pantaleão. Vivia aborrecido; vivia exclusivamente a esperar o dia da viagem para a Corte. Nunca a província lhe parecera tão enfadonha, nem o seu isolamento tão pesado e tão triste. Não saía quase nunca à rua; não procurava pessoa alguma, nem tampouco ninguém o visitava. Dizia-se por aí que ele estava de cama por uma bonita sova, que lhe mandara dar o pai da namorada. “Era bem feito! Para se não fazer apresentado com uma menina branca!” Os maldizentes, empenhados na vida dele, como se Raimundo fosse um político de quem dependesse a salvação ou a desgraça da província, afiançavam que alguma peça estava o tratante urdindo em silêncio. — Acreditem, exclamava um dos tais, a um grupo, que todos estes sujeitos, que se fazem muito santarrões e de quem a boca do mundo nada tem que dizer, são os mais perigosos! Eu, cá por mim, não me fio de ninguém! quando vejo um tipo, julgo logo mal dele; se o traste prega-me alguma, não me espanta, porque já a esperava! — E se não prega? — Fico na certeza de que muita coisa se faz às caladas neste Maranhão! Mas 1á acreditar em virtudes de aventureiros, isso é que nem à sétima facada! Entretanto, Raimundo levava uma vida de degradado, sem amigos e sem carinhos de espécie alguma. No seu desterro tinha por companhia única uma preta velha, que se encarregara de servi-lo; magra, feia, supersticiosa, arrastando-se, a coxear, pela varanda e pelos quartos desertos, fumando um cachimbo insuportável, e sempre a falar sozinha, a mastigar monólogos intermináveis. E essa solidão enchia-o de tédio e de saudades pelas boas horas alegres, que passava dantes ao lado de Ana Rosa, aquecido ao calor benéfico da família. Ultimamente muito pouco se dava ao estudo; estava desleixado, preguiçoso, vivia para as suas preocupações recentes. Ficava horas esquecido à mesa, depois do almoço ou do jantar, olhando vagamente para o seu quintal sem plantas, com os pés cruzados, a cabeça molemente caída sobre o peito, a fumar cigarros um atrás do outro, num aborrecimento invencível. Tomara embirrância por tudo e emagrecia. À noite, acendia-se o candeeiro de querosene, e Raimundo assentava-se junto à secretária, lendo distraído algum romance ou revendo as gravuras de algum jornal ilustrado. A um canto da varanda resmungava a criada, cosicando trapos. O rapaz sentia um fastio de morte, tinha espreguiçamentos de febre, moleza geral no corpo; não podia entrar com a cozinha da preta — era uma coisa muito mal amanhada — tinha nojo de beber pelos copos mal lavados; banhava com repugnância o rosto na bacia barrada de gordura. “Ó senhores! Que vida!” E ficava cada vez mais nervoso e frenético; esperava o dia da viagem contando os minutos; porém, a despeito de tudo, sentia uma surda e funda vontade de não ir, uma íntima esperança de ser ainda legitimamente amado por Ana Rosa. — Impossível!... concluía sempre, fazendo-se forte. Deixemo-nos de asneiras! E pensava no que não estaria ela julgando dele; no juízo que formaria do seu caráter. Nunca mais tiveram ocasião de trocar uma palavra ou um olhar; apenas recebia notícias de Ana Rosa por aquela idiota, que não as sabia dar. “Ora! também de que servia afligir-se daquele modo? o melhor era deixar que as coisas levassem o seu destino natural! Não podia, nem devia, por forma alguma, casar com semelhante mulher, para que, pois, pensar ainda nisso?...” Em casa de Manuel as coisas igualmente não corriam lá muito bem. Ana Rosa curtia densas tristezas, mal dissimuladas aos olhos do pai, da avó e do cônego. A pobre moça esforçava-se por esquecer o desleal amante que a abandonara covardemente. E, na sua decepção, imaginava vinganças irrefletidas; tinha desejos absurdos: queria casar-se por aqueles dias, arranjar um marido qualquer, antes que Raimundo se retirasse da província; desejava provar-lhe que ela não ligava a menor importância ao caso e que se entregaria com prazer a outro homem. Pensou no Dias e esteve quase a falar-lhe. Manuel, soprado pelo compadre, indispunha mais e mais o ânimo da filha contra o mulato; contando-lhe a respeito deste, fatos revoltantes, inventados pelo cônego; fazia-se agora muito meigo ao lado dela, submetia-se aos seus caprichos, às suas vontadezinhas de menina doente, com a compungida solicitude de um bom enfermeiro. Ana Rosa abanava a cabeça, resignada. O fato provado de que Raimundo consentia, sem resistência e talvez por gosto, em abandoná-la, ao mesmo tempo que aumentava nela o desejo de reconquistá-lo e possuí-lo, dava a seu orgulho bastante energia para esconder de todos o seu amor Supunha-se vítima de uma decepção; julgava o seu amante mais apaixonado e mais violento, e, à vista da passividade com que ele se submeteu logo às circunstâncias; à vista daquela condescendência burguesa e medrosa, pois Raimundo não se animara a dar-lhe, nem a escrever-lhe, uma palavra depois da recusa de Manuel, ela se julgava desenganada e desiludida. “Nunca, nunca me amou! dizia de si para si, desesperada. Se me amasse, como eu imaginava, teria reagido! É um impostor! um tolo! Um vaidoso, que desejou apenas ter mais uma conquista amorosa! E vinha-lhe um grande desejo de chorar e proferir muito mal contra Raimundo. Agora, achava que ele era o pior dos homens, a mais desprezível das criaturas. Às vezes, porém, arranhava-lhe a consciência uma pontinha de remorso: lembrava-se de que a iniciativa daquele namoro partira toda de sua parte, e então, com uma dorzinha de vergonha assistiam-lhe considerações mais favoráveis ao primo; chegava até a doer-se de haver feito um juízo tão mau do pobre rapaz. “Sim... pensava. Verdade, verdade, se não fosse eu... coitado! ele talvez nunca me falasse em amor!... fui eu que o provoquei, que lhe lancei a primeira faísca no coração!...” E por este caminho Ana Rosa fazia mil raciocínios, que abrandavam um tanto a sua má vontade contra o perjuro. Mas a avó saltava-lhe logo em cima: — Parece que ficaste meio sentida com o que se passou!... Pois olha: se tivesse de assistir ao teu casamento com um cabra, juro-te, por esta luz que está nos alumiando, que te preferia uma boa morte, minha neta! porque serias a primeira que na família sujava o sangue! Deus me perdoe, pelas santíssimas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo! gritava ela, pondo as mãos para o céu e revirando os olhos, mas tinha ânimo de torcer o pescoço a uma filha, que se lembrasse de tal, credo! que nem falar nisto é bom! E só peço a Deus que me leve, quanto antes, se tenho algum dia de ver, com estes que a terra há de comer, descendente meu coçando a orelha com o pé! E, voltando-se para o genro, num assanhamento crescente: — Mas creia, seu Manuel, que se tamanha desgraça viesse a suceder, só a você a deveríamos, porque, no fim das contas, a quem lembra meter em casa um cabra tão cheio de fumaças como o tal doutor das dúzias?... Eles hoje em dia são todos assim!... Dá-se-lhes o pé e tomam a mão!... Já não conhecem o seu lugar, tratantes! Ah, meu tempo! meu tempo! que não era preciso estar cá com discussões e políticas! Fez-se besta? — Rua! A porta da rua é a serventia da casa! E é o que você deve fazer, seu Manuel! Não seja pamonha! despeça-o por uma vez para o Sul, com todos os diabos do inferno! e trate de casar sua filha com um branco como ela. Arre. — Amém! disse beaticamente o cônego. E sorveu uma pitada. Falou-se em toda a capital do rompimento de Raimundo com a família do Manuel Pescada. Cada qual comentou o fato como melhor o entendeu, alterando-o, já se sabe, cada um por sua parte. O Freitas aproveitou logo a ocasião para dizer dogmaticamente aos seus companheiros de secretaria: — Acontece, meus senhores, com um boato, que corre a província, o mesmo que com uma pedra levada pela enxurrada da chuva; à proporção que rola, de rua em rua, de beco em beco, de fosso em fosso, vão-se-lhe apegando toda sorte de trapos e imundícias que encontra na sua vertiginosa carreira; de sorte que, ao chegar à boca-de-lobo, já se lhe não reconhece a primitiva forma. Do mesmo feitio, quando uma notícia chega a cair no esquecimento, já tão desfigurada vai de si, que da própria não conserva mais do que a origem! E o Freitas, satisfeito com esta tirada, assoou-se estrondosamente, sem despregar do auditório o seu penetrante sorriso de grande homem, que prodigaliza, sem olhar a quem dá, as preciosas jóias da sua pródiga eloqüência. Durante aqueles dias não se falava senão em Raimundo. — Desacreditou, para sempre, a pobre moça!... dizia um barbeiro no meio da conversa da sua loja. — Desacreditar quis ele! responderam-lhe, mas é que ela nunca lhe deu a menor confiança! Isto sei eu de fonte limpa! Na casa da praça, afirmava um comendador, que a saída de Raimundo da casa do tio era devida simplesmente a uma ladroeira de dinheiro, perpetrada na burra de Manuel, e que este, constava, já tinha ido queixar-se à polícia e que o doutor chefe procedia ao inquérito. — É bem feito! É bem feito!... vociferava um mulato pálido, de carapinha rente, bem vestido e com um grande brilhante no dedo. É muito bem feito, para não consentirem que estes negros se metam conosco! Seguiu-se um comércio rápido de olhadelas expressivas, trocadas entre os circunstantes, e a conversa torceu de rumo, indo a cair sobre as celebridades de raça escura, vieram os fatos conhecidos a respeito do preconceito da cor; citaram-se pessoas gradas da melhor sociedade maranhense, que tinham um moreno bem suspeito; foram chamados à conversa todos os mulatos distintos do Brasil; narrou-se enfaticamente a célebre passagem do Imperador com o engenheiro Rebouças. Um sujeito, levantou pasmo na roda, nomeando Alexandre Dumas, e dando a sua palavra de honra em como Byron tinha casta. — Ora! isso que admira?... disse um estúpido. Aqui já tivemos um presidente tão negro como qualquer daqueles cangueiros, que ali vão com a pipa de aguardente! — Não... rosnou convencido um velhote, que entre os comerciantes passava por homem de boa opinião. Que eles têm habilidade, principalmente para a música, isso é inegável!... — Habilidade?... segredou outro, com o mistério de quem revela uma coisa proibida. Talento! digo-lhe eu! Esta raça cruzada é a mais esperta de todo o Brasil! Coitadinhos dos brancos se ela pilha uma pouca de instrução e resolve fazer uma chinfrinada. Então é que vai tudo pelos ares! Felizmente não lhe dão muita ganja! — Aquilo, comentava Amância, boquejando esse dia, sobre o mesmo assunto, em casa de Eufrásia; aquilo não podia ter outro resultado! Cá está quem não poria lá mais os pezinhos, se o basbaque do Pescada metesse o cabra na família! — Ora, não é também tanto assim!... objetava a quente viúva. Conheço certa gente, que se faz muito de manto de seda e que, no entanto, vai filar constantemente o jantar dos cabras que passam bem. A questão é de boa mesa! — O quê? berrou a velha, pondo as mãos nas cadeiras. Isso é uma indireta?! Isso é comigo?!... E subiu-lhe uma roxidão às faces. — Diga! exclamou. Pois diga! Quero que diga qual foi o negro a quem Amância Diamantina dos Prazeres Sousella, neta legítima do Brigadeiro Cipião Sousella, conhecido pelo “Corisco” na Guerra dos Guararapes, desse algum dia a confiança de ocupar! Eu?!... Até brada ao céu! Qual foi o cabra com quem a senhora já me viu de mesa?!... — Eu não falo com a senhora! E esta? — Ah!... Pois então conheça! — Falo no geral! E Eufrasinha dava as provas, citava nomes, contava fatos, e terminou declarando que, apesar de tudo que se dizia nesse Maranhão velho, Raimundo era um cavalheiro distinto, com um futuro bonito, alguns cobres, e... enfim... Ora, adeus, deixasse lá falar quem falava! — era um marido de encher as medidas! E a viúva arregalou os olhos e mordeu os beiços, chupando o ar com um suspiro. — Que lhe faça muito bom proveito! arrematou a neta do “Corisco” traçando o xale já na porta, para sair. Há gente para tudo nesta vida! Credo! E foi logo, direitinha como um fuso, para a casa do Freitas. — Pois não sabem de uma muito boa?... disse ao chegar lá, sem tomar fôlego. A sirigaita de Eufrásia diz que não se lhe dava de casar com o Mundico do Pescada! — Ele é que eu duvido que a aceitasse!... bocejou o Freitas, estendendo com preguiça as suas magras e longas pernas na cadeira, e cruzando os pés, com ar feliz e descansado. Que ela morre por um marido — isso é velho! E tem razão, coitada! Riu-se. — Credo! cruz! trejeitou Amância. Assim também não!... No meu tempo... — Era a mesmíssima coisa, D. Amância; as raparigas pobres pediam aos céus um marido, como... como... insistia ele, à procura de uma comparação, como não sei o quê!... A senhora, já sei que fica para jantar... — Se tiver peixe, fico! disse, autorizada pelo cheiro de azeite frito, que vinha da cozinha. — Então, titia Amância, saiba que temos e muito bom! observou Lindoca, bamboleando-se pela varanda. — Ó menina! gritou-lhe a velha, onde queres ir tu com toda essa gordura? Já basta! Apre! — Não irá muito longe, disse o Freitas, sempre risonho, cansaria depressa... — Olhe, veja, reclamou a moça, fazendo parar a escrava, que passava com a terrina do peixe. Está convidando! Quentinho que é um fogo! — Ai, filha! é a minha paixão! Um peixinho bem preparado, quentinho, com farinha-d’água! Mas, olha, bradou para a criada, e levantou-se logo, não o deites aí, rapariga que o gato é muito capaz de pregar-nos alguma peça... Bota antes neste armário! E, como se estivesse na própria casa, tomou a terrina e acondicionou-a em uma das prateleiras. “Não havia que fiar em gatos!... Eles eram necessários por mor dos ratos, mas que canseira seu Bom Jesus! Ind’estrodia o seu Peralta fora-lhe ao guarda-petiscos e... nem dizia nada! unhara-lhe a carne-de-sol, que havia para o almoço, porque ela estava de purga. Forte ladrão! Mas também, dera-lhe uma mela, que o pusera assim!...” E Amância, procurando mostrar como ficara o gato, arreganhou uns restos de dentadura acavalada e espichou as peles do pescoço. Passava já das três da tarde. Os empregados públicos saíam da repartição, procurando a sombra, com o seu passo metódico e inalterável, o chapéu-de-sol dependurado no braço esquerdo, como de um cabide, o ar descansado e indiferente dos homens pagos por mês, que nunca se apressam, que nunca precisam de se apressar. Começava a soprar a viração da tarde, e o tempo refrescava. Lindoca, com grande estremecimento do assoalho, arrastou-se até à janela, para ver passar o Dudu Costa. Dudu era um praticante da Alfândega, que lhe arrastava a asa, rapaz sério, sequinho de carnes, bem arranjado e com muito jeito para o casamento. O Freitas olhava com bons olhos este namoro, e só esperava que o moço tivesse nesse mesmo ano um acesso na repartição: havia lá um empregado superior muito doente, que, sem dúvida, bateria o cachimbo por todos aqueles três meses, e, como Dudu tinha um amigo, cujo pai dispunha de bons empenhos para o presidente, dava como certa a sua nomeação; tão certa que pensava já no enxoval do casamento, punha de parte alguma coisa do ordenado e convidava os amigos mais íntimos para o grande dia da amarração. De tudo isto o Freitas andava a par. “Diabo era só aquela maldita gordura da menina, que aumentava todos os dias e estava fazendo dela um odre!” — Ora queira Deus não seja alguma praga!... observava Amância. Há muita gente invejosa neste mundo, minha rica! — Minha senhora, “o casamento e a mortalha no céu se talham!” citou o grande homem, sacrificando a rima à boa concordância gramatical. Por essas mesmas horas, topavam-se numa esquina o Sebastião Campos e o Casusa. — O1á! por cá, seu Susa? — Como vai isso? — Ora! você não faz idéia! desquerido de dor de dentes. Este diabo não me deixa pôr pé em ramo verde! E Sebastião escancarou a boca, para mostrar um queixal ao amigo. — Andaço! resmungou este. Dê cá um cigarro. Sebastião passou-lhe prontamente a enorme bolsa de borracha amarela e o caderninho de mortalhas de papel. — Então que há de novo por aí? perguntou. — Tudo velho... Você vai se chegando pra casa... — Hum-hum, afirmou o Campos com a garganta. Chegou o vapor do Pará? — Chegou; sai amanhã para o Sul às nove. É verdade! o Mundico vai nele, sabe? — É! Ouvi dizer que tinha brigado com o Pescada. — Brigou, hein?... — Diz que por causa de dinheiro; que Raimundo pedira-lhe certa quantia emprestada, e, como o outro negara, disparatou! — Homem! não sei se pediu dinheiro, mas a filha sei, por fonte limpa, que pediu! — E o galego? — Negou-a! diz que porque o outro é mulato! — Sim, em parte... aprovou Sebastião — Ora, deixe disso, seu Campos! Não sei se é porque não tenho irmãs, mas o que lhe asseguro é que preferia o doutor Raimundo da Silva a qualquer desses chouriços da Praia Grande. — Não! lá isso é que não admito!... Preto é preto! branco é branco! Nada de confusões! — Digo-lhe então mais! asneira seria a dele se se amarrasse, porque o cabra é atilado às direitas! — Sim, lá isso faria... confirmou o Campos, entretido a quebrar a caliça da parede com a biqueira do chapéu-de-sol. Aquilo está se perdendo por cá... é homem para uma cidade grande!.. Olhe, ele talvez faça futuro no Rio... Você lembra-se do...? — E segredou um nome ao ouvido do Casusa. — Ora! como não? Muita vez dei-lhe aos cinco e aos dez tostões, para comer, coitado! E hoje, hein? — É! Foi feliz... mas, quer que lhe diga? não acredito lá essas coisas no futuro deste, por causa daquelas idéias de repúblicas... porque, convençam-se por uma vez de uma coisa! a república é muito bonita, é muito boa, sim senhor! porém não é ainda para os nossos beiços! A república aqui vinha dar em anarquia!... — Você exagera, seu Sebastião!... — Não é ainda para os nossos beiços, repito! nós não estamos preparados para a república! O povo não tem instrução! É ignorante! é burro! não conhece os seus direitos! — Mas venha cá! replicou o Casusa, fechando no ar a sua mão pálida e encardida de cigarro. Diz você que o povo não tem instrução; muito bem! Mas, como quer você que o povo seja instruído num país, cuja riqueza se baseia na escravidão e com um sistema de governo que tira a sua vida justamente da ignorância das massas?... Por tal forma, nunca sairemos deste círculo vicioso! Não haverá república enquanto o povo for ignorante, ora, enquanto o governo for monáquico, conservará, por conveniência própria, a ignorância do povo; logo — nunca haverá república! — E será o melhor!... — Eu então já não penso assim! Acho que ela devia vir, e quanto antes! tomara eu que rebentasse por aí uma revolução; só para ver o que saía! Creio que, somente quando tudo isto ferver, a porcaria irá na espuma! E será espuma de sangue, seu Sebastião!... Acredite, meu rico, que não há Maranhão como este! Isto nunca deixará de ser uma colônia portuguesa!... O alto governo não faz caso das províncias do Norte! A tal centralização é um logro para nós! ao passo que, se isto fosse dividido em departamentos, cada província cuidaria de si e havia de ir pra diante, porque não tinha de trabalhar para a Corte! a insaciável cortesã! E o Casusa gesticulava indignado. — Mas o que quer você?! O governo tem parentes, tem afilhados, tem comitivas, tem salvas, tem maçapães, tem o diabo! e para isso é preciso cobre! cobre! O povo está aí, que pague! Tome imposto pra baixo e deixa correr o pau para Caxias! E, chegando a boca a uma orelha do outro: — Olhe, meu Sebastião, aqui no Brasil vale mais a pena ser estrangeiro que filho da terra!... Você não está vendo todos os dias os nacionais perseguidos e desrespeitados, ao passo que os portugueses vão se enchendo, vão se enchendo, e as duas por três são comendadores, são barões, são tudo! Uma revolução! exclamou repelindo o Campos com ambas as mãos. Uma revolução é do que precisamos! — Qual revolução, o quê! Você é uma criançola, seu Casusa e ainda não pensa seriamente na vida! Deixe estar que em tempo julgará as coisas a meu modo, porque em nossa terra... Que idade tem você? — Entrei nos vinte e seis. — Eu tenho quarenta e quatro... em nossa terra estão se vendo constantemente entradas de leão e saídas de sendeiro!... Você acha que a república convinha ao Brasil? pois bem... Ai! — O que é? — O dente! diabo! E, depois de uma pausa: — Adeus. Até logo, disse cobrindo o rosto com o lenço e afastando-se. — Olhe! Espere, seu Sebastião! gritava o Casusa, querendo detê-lo, empenhado na palestra. — Nada! Vou ali ao Maneca Barbeiro curar este maldito! E separaram-se. Entretanto, na noite desse mesmo dia, quando o relógio de Raimundo marcava onze horas, acabava este de aprontar as suas malas. — Bom! — E sacudiu as mangas da camisa, que o suor prendia aos braços. —Amanhã a estas horas já estou longe daqui!... Em seguida, assentou-se à secretária e tirou da pasta uma folha de papel, escrita de princípio a fim com uma letra miúda e às vezes tremida. Releu tudo atentamente, dobrou a folha, meteu-a num envelope e subscritou-o a “Ex.ª Sr.ª D. Ana Rosa de Sousa e Silva”. Depois, quedou-se a fitar este nome, como se contemplasse uma fotografia. — Deixemo-nos de fraquezas!... E levantou-se. Fazia um grande silêncio nas ruas; ao longe ladrava tristemente um cão, e, de vez em quando, ouviam-se ecos de uma música distante. E Raimundo, ali, no desconforto do seu quarto, sentia-se mais só do que nunca; sentia-se estrangeiro na sua própria terra, desprezado e perseguido ao mesmo tempo. “E tudo, por quê?... pensava ele, porque sucedera sua mãe não ser branca!... Mas do que servira então ter-se instruído e educado com tanto esmero? do que servira a sua conduta reta e a inteireza do seu caráter?... Para que se conservou imaculado?... para que diabo tivera ele a pretensão de fazer de si um homem útil e sincero?...” E Raimundo revoltava-se. “Pois, melhores que fossem as suas intenções todos ali o evitavam, porque a sua pobre mãe era preta e fora escrava? Mas que culpa tinha ele em não ser branco e não ter nascido livre?.. Não lhe permitiam casar com uma branca? De acordo! Vá que tivessem razão! mas por que insultá-lo e persegui-lo? Ah! amaldiçoada fosse aquela maldita raça de contrabandistas que introduziu o africano no Brasil! Maldita! mil vezes maldita! Com ele quantos desgraçados não sofriam o mesmo desespero e a mesma humilhação sem remédio? E quantos outros não gemiam no tronco, debaixo do relho? E lembrar-se que ainda havia surras e assassínios irresponsáveis tanto nas fazendas como nas capitais!... Lembrar-se de que ainda nasciam cativos, porque muitos fazendeiros, apalavrados com o vigário da freguesia, batizavam ingênuos como nascidos antes da lei do ventre livre!... Lembrar-se que a conseqüência de tanta perversidade seria uma geração de infelizes, que teriam de passar por aquele inferno em que ele agora se debatia vencido! E ainda o governo tinha escrúpulo de acabar por uma vez com a escravatura; ainda dizia descaradamente que o negro era uma propriedade, como se o roubo, por ser comprado e revendido, em primeira mão ou em segunda, ou em milésima, deixasse por isso de ser um roubo para ser uma propriedade! E continuando a pensar neste terreno, muito excitado, Raimundo dispunha-se a dormir, impaciente pelo dia seguinte, impaciente por ver-se bem longe do Maranhão, dessa miserável província que lhe custara tantas decepções e desgostos; dessa terrinha da intriga miúda e das invejas pequeninas! Desejava arrancar-se para sempre daquela ilha venenosa e traiçoeira, mas pungia-lhe uma grande mágoa de perder Ana Rosa eternamente. Amava-a cada vez mais! — Ora sebo! interrompeu-se. E eu a pensar nisto!... Tenho tudo liquidado e pronto!... Amanhã está aí o vapor e... adeus! adeus queridos atenienses! E, afetando tranqüilidade, acendeu um cigarro. Nisto, caiu na sala uma carta que meteram pelas rótulas da janela. Raimundo apoderou-se dela e leu no subscrito: “Ao Dr. Raimundo.” Teve um estremecimento de prazer, imaginando fosse de Ana Rosa, mas era simplesmente uma carta anônima. “Ilustre canalha: Então V.S.ª muda-se amanhã?... Se é verdade agradeço-lhe o obséquio em nome da província. Creia, meu caro senhor, que será talvez o primeiro ato judicioso que V.S.ª pratica em sua vida tão aventurosa, porque nós já temos por cá muita pomada e não precisamos mais dessa fazenda. Honre-nos com a sua ausência e faça-nos o especial obséquio de ficar-se por lá o maior tempo que puder! Quem disse a V.S.ª que isto aqui é uma terra de beócios, onde os pedantes arranjam bons casamentos, debicou-o, respeitável senhor, debicou-o redondamente. Já se não amarram cães com lingüiça. No entanto, se vir a prima dê-lhe lembranças.” Assinava: “O Mulato disfarçado”. Raimundo sorriu, amarrotou a folha de papel e lançou-a ao chão. — Coitados! disse, e foi pôr-se à janela. Aí ficou longo tempo, debruçado no peitoril, a olhar a escuridão da noite, onde os bicos de gás se acusavam tristemente, muito distantes uns dos outros. A Rua de São Pantaleão tinha um silêncio de cemitério. Bateu uma badalada, ao longe. — Devem ser duas e meia. Raimundo fechou a janela e recolheu-se à cama. Levantou-se de novo, tornou a apanhar a carta e releu-a. Só a assinatura o irritou. — Cães! disse. E soprou a vela. Começavam então as chuvas, que no Maranhão chamam “de caju”; o vento soprou com mais força, esfuziando nas ripas do telhado. Em breve, o céu peneirava um chuvisco fino e passageiro. Na rua, não obstante, um trovador de esquina, cantava ao violão “Quis debalde varrer-te da memória, E teu nome arrancar do coração. Amo-te sempre, que martírio infindo! Tem a força da morte esta paixão!” Na manhã seguinte, Manuel levantou-se antes dos caixeiros, vestiu-se ainda com a meia claridade da aurora e endireitou para a casa de Diogo. — Olé! você madrugou, compadre! disse-lhe o cônego da janela, onde fazia a barba em mangas de camisa. — Tem tempo. Vá subindo, compadre, que lhe vou dar um cafezinho fazenda! E, voltando-se para o interior da casa: — Anda com isso, ó Inácia! que temos de sair mais cedo! gritava ele, enquanto estendia com pachorra, em um paninho de barba, a espuma do sabão que tirava do queixo. — Compadre, vá estando à vontade e diga o que há de novo. A caseira entrou com uma bandeja, onde vinha o café, um pires de papa, uma garrafa de licor e cálices. — Vai uma papinha, compadre? — Não, obrigado. Quero o café. — Pois eu cá não passo sem ela, mais o meu café e o meu chartreuse... Vá um calicezinho, seu Manuel! Que tal? Deste é que não vem para negócio hein?... — Decerto! não vale a pena! Mas, com efeito, é papa-fina. — Então outro, vá outro, compadre, isto nunca sobe logo à primeira dose... — Também não vai a matar.. — Assim! agora um gole de café... Hein? E o que me diz do café?... — Soberbo! Do Rio, não é verdade? — Qual Rio! muito bom Ceará! Acredite, seu compadre, o melhor café do Brasil é o do Ceará!... E esta crioula, que o trouxe, é mestra em passá-lo!... Nunca vi! para um café e para uma papa de araruta com ovos, não há outra! E o cônego passou a vestir-se, esticando muito as suas meias de seda escarlate; calçando, com a calçadeira de tartaruga, os seus sapatos de polimento azeitado, cujas fivelas levantavam cintilações. Enfiou depois a batina de merinó lustroso, ameigando a barriga redonda e carnuda, saracoteando-se todo, a sacudir a perninha gorda, indo ao espelho do toucador alcochetar no pescoço a sua volta de rendas alvas. Estava limpo, cheiroso e penteado; tinha, no rosto escanhoado e nos anéis dos seus cabelos brancos, uns tons frescos de fidalgo velho e namorador; o cristal dos óculos redobrava-lhe o brilho dos olhos, e o seu chapéu novo, de três bicos, elegantemente derreado um pouco para a esquerda, dava à sua cabeça distinta e ao seu rosto todo barbeado o ar pitoresco e nobre dos cortesãos do século XVII. — Quando quiser, compadre, estou às suas ordens... lembrou ele a Manuel, que fumava um cigarro à janela, pensativo. — Então vamos indo. O homem talvez já esteja à nossa espera. E saíram. A manhã levantava-se bonita. As calçadas de cantaria secavam a umidade da noite aos primeiros raios do Sol. Ouviam-se tinir nas pedras os saltos dos sapatos do padre. Passavam os trabalhadores para as suas obrigações; o padeiro com o saco às costas; a lavadeira, em caminho da fonte, com a trouxa de roupa suja equilibrada na cabeça; pretas-minas apregoavam “Mingau de milho!; os escravos desciam para o açougue com a cesta das compras enfiada no braço; das quintas chegavam os vendedores de hortaliças, com os seus tabuleiros acumulados de folhas e legumes. E todos cumprimentavam respeitosamente o cônego, e ele a todos respondia: “Viva!” Algumas crianças em caminho da escola, iam, de boné na mão, beijar-lhe o anel. — Você diz que ele já está à nossa espera?... — É natural! respondeu Manuel. — Não tenha medo! É muito cedo ainda — e consultou o relógio. — Podemos ir mais devagar... Ele só chegará daqui a uma hora. Ainda não são sete. — Estou impaciente por vê-lo pelas costas... — Não tardará muito. E a pequena, como ficou? — Assim; menos maçada do que eu esperava... É que aquilo passou-lhe. — E o outro? — O Dias? — Sim. — Por ora... nada. — Há de chegar! há de chegar!... afirmou o cônego em ar de experiência. Labor improbus omnia vincit!... — Como? — Aquilo é um marido que convém à Anica!... Assim conversando, ao lado um do outro, acharam-se na rampa de Palácio. Ainda pouca gente lá havia. — Um bote, patrãozinho! exclamou um rampeiro, aprumando-se defronte de Manuel e descobrindo a cabeça com arremesso. — Espere, deixe ver se está o Zé Isca, que é freguês. O catraieiro afastou-se lentamente, jogando o corpo, no seu andar de pernas abertas. Os dois desceram ao cais. Apareceu o Isca, e contratou-se a viagem. — Patrão, podemos ir? — Deixe vir o doutor. É preciso esperá-lo. O padre observou que tinham ido cedo demais; enquanto Manuel fazia SS no chão com a biqueira do guarda-sol. — Homem! este vapor assim mesmo fez desta vez uma viagenzinha bem boa!... disse o primeiro, provocando palestra. — Quinze dias. — E então?... quando saiu ele do Rio?... — No dia dois. — Daqui a outros quinze está por lá!... calculou o cônego. — Não, leva menos! para lá é muito mais favorável a viagem... onze, doze, treze dias é o máximo. No fim de algum tempo aborreciam-se de esperar: Manuel havia fumado já quatro cigarros. Raimundo demorava-se. — Isto já são oito horas! quantas tem você, compadre? — Oito e um quarto. O rapaz com certeza descuidou-se!... Ó seu Manuel, ele sabe que o vapor sai às dez? — Como não? se ainda ontem à tarde lho mandei dizer!... — Então há de ser alguma despedida mais demorada... explicou o cônego com um risinho velhaco. Fugit irreparabile tempus!... — Isto vai, mas é esquentando demais, seu compadre. E Manuel limpava e tornava a limpar o carão vermellho, estendendo pela rampa um olhar suplicante, que parecia chamar o sobrinho. — Vamos cá para a guardamoria, aconselhou o outro, resguardando-se do sol. Um empregado obsequioso ofereceu-lhes logo duas cadeiras. — V.S.as por que não se sentam?... Tenham a bondade de estar a gosto... — Obrigado, obrigado, meu amigo! E assentaram-se impacientes. — V.S.ª vêm ao bota-fora do doutor Raimundo?... — É! Ele já desceu? — Não o vi ainda, não senhor; porém não poderá tardar. Vão se fazendo horas!... Um assovio muito agudo deu o primeiro sinal de bordo, chamando os últimos passageiros. Manuel levantou-se logo, foi até à porta, lambeu com um olhar o trapiche, consultou sequioso a ladeira de Palácio: “Nada!” Olhou para o relógio, o ponteiro orçava pelas nove. “Ora sebo! Entendam-se lá com semelhante gente!...” A rampa já se tinha enchido e já se ia esvaziando. Grupos demorados acenavam de terra com o lenço para os escaleres que fugiam; uns choravam com o rosto escondido nas mãos; outros abraçavam-se por cortesia. Ao lado de protestos e oferecimentos oficiais, ouviam-se frases quentes de sinceridade, arrancadas pela dor; diziam-se ternuras; davam-se conselhos; faziam-se carícias; expunham-se, ali, ao ar livre, em meio do público, o amor e o desespero, como se estivessem entre família, no segredo da casa. Os botes largavam com grande algazarra dos catraieiros. Ninguém mais se entendia. Os ganhadores passavam correndo, com as costas carregadas de malas, de baús e gaiolas de papagaio. Havia grandes encontrões. Uma mulatinha escrava gritava que nem doida, lá no fim da rampa, com os pés na água, agitando os braços, soluçando, porque lhe levavam a irmã mais velha, vendida para o Rio. Os tripulantes praguejavam; os barcos enchiam-se numa confusão, e a lanchinha do Portal guinchava de instante a instante silvos que ensurdeciam. E Raimundo — nada de chegar! Pouco a pouco foram rareando os grupos. Enxugavam-se os olhos; guardavam-se os lenços, e os amigos e parentes dos que partiam retiravam-se em magotes, com o passo frouxo, a cara congestionada na ressaca das comoções. O empregado da polícia externa do porto voltou da sua visita ao navio. Só os exportadores de escravos permaneciam encostados ao portão do cais, para ver a última baforada do monstro a que confiavam um bom carregamento de negros. A rampa recaiu afinal no seu habitual sossego, e Raimundo nada de aparecer. Manuel suava. — E esta?! perguntou furioso ao cônego. O que me diz desta, seu compadre?! O cônego não respondeu. Cismava. Nisto, chegou uma carruagem, a rodar vertiginosamente. Os que esperavam Raimundo acudiram, de pescoço estirado. — Deve ser ele!... aventou o cônego. — Diabo! rosnou Manuel, ao ver saltar um homem e entrar lépido na guardamoria. Não era Raimundo. O vapor chamava, insistia com os seus guinchos impacientes e sibilantes. O recém-chegado arrastou uma pequena mala para a rua e entregou-a ao primeiro catraieiro, que pulou de uma nuvem deles. — Avia, rapaz! Pega daí — E mostrava os outros volumes. — Ligeiro! Ligeiro! O homem do bote atirou com a bagagem num escaler, gritando para um moleque que o ajudava: — Anda! mexe-te! senão arriscamos a não alcançar o vapor! Estas últimas palavras acabaram de pôr Manuel fora de si. A pobre criatura suava como o fundo de um prato de sopa. — E esta, seu compadre?! E esta?! O que me diz desta?! O cônego não dava palavra, fazia considerações íntimas, sorrindo amargamente à superfície dos lábios. — Ora! ora! ora! — E o negociante passeava a grandes pernadas na guardamoria.—Ora! ora, senhores! Esta só a mim! O cônego bateu com o chapéu-de sol no chão. — Astutos astu non capitur! Os empregados da guardamoria, vestidos de farda, e os curiosos desocupados, que ali estavam por distração, faziam perguntas a Manuel a respeito de Raimundo, satisfeitos com aquele episódio prometedor de escândalo. Arriscavam-se já os comentários e as opiniões. — Homem, dizia um. Ele, cá pra nós, nunca me pareceu grande coisa!... — Eu também, acrescentava outro, a falar verdade, nunca pude tragar aquele cara de máscara!... — Pois eu cá sabia que ele não havia de ir! — Nem irá mais! Pilhou-se aqui, adeus! — Mas que grande patife! Sim senhor! — Ora! ora, que filho da mãe! resmungava Manuel, a dar voltas no ar com o seu imenso chapéu-de-sol. Mas todos correram para a porta, porque uma nova carruagem, puxada com sofreguidão, encheu de tropel a Rua do Trapiche. É o tipo com certeza! bradou um sujeito. A boas horas! Fez-se no grupo um silêncio ansioso. A sege estacou em frente à guardamoria. Mas ainda desta vez não era Raimundo. 15 O paquete havia entrado, na véspera, às duas horas da tarde, fundeando com um tiro, a que todo o litoral da cidade respondeu com um grito alegre de “chegou vapor!” e, desde esse momento, Ana Rosa possuíra-se de um sobressalto constante que a punha enferma; sabia que nele se iria Raimundo, para sempre. “Raimundo, que ela tanto amara e tanto desejara!... Todavia, era preciso deixá-lo partir, sem uma queixa, sem uma recriminação, porque todos, até o próprio ingrato, assim o entendiam!... E que loucura de sua parte estar ainda a pensar nessas coisas!... Pois já não estava porventura tudo acabado?... para que então mortificar-se ainda com semelhante doidice?...” Não obstante, preferia perdoar-lhe tudo, antes que ele se partisse para nunca mais voltar. Passou uma noite horrível à procura de um motivo, um pretexto qualquer para absolver o amante, sentia uma irresistível vontade de fazer de si uma vítima resignada, capaz de comover o coração menos humano. Já não o queria; não contava com ele para mais nada, por Deus que não contava! mas desejava vê-lo arrependido de tamanha ingratidão, humilhado, triste, padecendo por fazê-la sofrer daquele modo e confessando as suas culpas e a sua crueldade. — Oh! se ele me tivesse dado coragem!... monologava a mísera, o que eu não faria?... porque o amava muito! muito! Sim! é preciso confessar que o amava loucamente!... Mas aquele silêncio... Silêncio? Que digo eu?... Desprezo! aquele desprezo insultuoso por mim, que era toda sua, colocou-o abaixo dos outros homens! Pois então ele, tão nobre, tão leal com todos, devia proceder assim comigo?... Abandonar-me em semelhante ocasião, quando sabia perfeitamente que eu precisava, mais do que nunca, da sua energia e da sua firmeza?... Desconfiaria de que não o amava? Não! falei-lhe com tanta franqueza... Ah! e ele sabe perfeitamente que não se pode fingir o que lhe disse, o que chorei! Sim, sim, tinha plena certeza, o miserável! o que lhe faltava era amor! Nunca me estimou sequer. Ou pensaria ele que eu seria capaz, como as outras, de sacrificar meu coração aos preconceitos sociais?... Mas, então, por que não me falou com franqueza?... não me escreveu ao menos?.. não me disse que também sofria e não me deu ânimo?... Porque, juro, tivesse-o eu, possuísse-o só meu, como marido, como escravo, como senhor, a tudo mais desprezaria! Juro que desprezaria! Que me importava lá o resto?! e o que eu não seria capaz de fazer por aquele ingrato, aquele homem mau e orgulhoso?! E Ana Rosa soluçava, sem conseguir conciliar o sono. Às seis da manhã estava de pé e vestida no seu quarto. Manuel tinha saído a ir buscar o cônego para o embarque de Raimundo. Maria Bárbara, ainda de rede, preparava os seus cachos de seda, mirando-se num espelho, que a Brígida segurava com ambas as mãos, ajoelhada defronte dela. Havia em toda a casa o triste constrangimento dos dias de enterro. Ana Rosa, ao aparecer na varanda, trazia os olhos muito pisados e a cor desbotada, um ar geral de fadiga espalhado por todo o corpo e duas rosetas de febre nas faces. Serviram-lhe uma canequinha de café. — Onde está vovó? perguntou ela com a voz fraca. — Está lá pra dentro, respondeu o moleque cruzando os braços. — Olha, Benedito! dize-lhe que... Está bom não lhe digas coisa alguma... E, arrastando vagarosamente a cauda do seu vestido de cambraia e, dando as suas tranças castanhas, pesadas e fartas ondulações de cobra preguiçosa, ia voltar, toda irresoluta, para o quarto, quando se deteve com medo de ficar lá dentro sozinha com a impetuosidade do seu amor e a feminilidade da sua razão. Agora causava-lhe terror o isolamento; receava que lhe faltasse coragem para acabar decentemente com aquilo; desfalecera-lhe de todo a energia, que ela afetara até aí; ao contrário da véspera, precisava naquele momento ouvir dizer muito mal de Raimundo, para poder consentir em perdê-lo, sem ficar com o coração inteiramente despedaçado. Compreendia que precisava de alguém que a convencesse das más qualidades de semelhante impostor; alguém que a persuadisse, por uma vez, de que o miserável nunca a merecera, de que ele fora sempre um indigno; alguém que a obrigasse a detestá-lo com desprezo, como a um ente nojento e venenoso; precisava afinal de uma alma caridosa, que lhe arrancasse de dentro, à pura força, aquele amor, como o médico arranca uma criança a ferro. E no entanto, por mais alto que reclamassem as circunstâncias e por mais forte que gritasse o raciocínio, seu coração só queria perdoar, e atrair o seu amado e dizer-lhe francamente que, apesar de tudo, o estremecia ainda, como sempre, mais que nunca! A realidade estava ali, a exigir, em honra do seu orgulho, que tudo aquilo se acabasse sem um protesto por parte dela; a exigir que Raimundo partisse, que se fosse por uma vez e que Ana Rosa ficasse tranqüila, ao abrigo de seu pai, mas uma voz chorava-lhe dentro, uma voz fraca de órfão desamparado, de criancinha sem mãe, a suplicar-lhe em segredo, com medo, que não estrangulassem aquele primeiro amor, que era a melhor coisa de toda a sua vida. E esses vagidos, tão fracos na aparência, suplantavam a voz grossa e terrível da razão. “Oh! era preciso ouvir muitas e muitas verdades contra aquele ingrato, para suportar tamanha provação sem sucumbir! Era preciso que uma lógica de ferro em brasa a convencesse de que aquele homem mau nunca a amara e nunca a merecera!” Mandou o escravo chamar a avó. Benedito foi ter com Maria Bárbara; e a moça ficou só na varanda, encostada à ombreira de uma porta, a conter e reprimir nos soluços os ímpetos dos seus desejos violentados, como se sofreasse um bando de leões feridos. Um tropel de passos rápidos, que vinham da escada, sobressaltou-a, ia fugir, mas Raimundo, aparecendo de improviso, suplicou-lhe com a voz tomada pela comoção, que o escutasse. Ana Rosa ficou estática. — Não nos veremos mais, nunca mais, balbuciou o moço, empalidecendo. O vapor sai daqui a poucas horas. Lê essa carta, depois que eu tiver partido. Adeus. Entregou-lhe uma carta e, sentindo que lhe fugia de todo o ânimo, ia a descer, muito confuso, quando se lembrou de Maria Bárbara. Perguntou por ela, que acudiu logo, e ele despediu-se, sem saber o que dizia, gaguejando. Ana Rosa, defronte de ambos, conservava-se imóvel, parecia estonteada, não dava uma palavra, não respondia, não apresentava uma objeção. — Adeus, repetiu Raimundo. E tomou, trêmulo, a mão que Ana Rosa tinha desamparada e mole; apertou-a nas suas com sofreguidão e, sem se importar com a presença de Maria Bárbara, levou-a repetidas vezes à boca, cobrindo-a de beijos rápidos e sequiosos. Depois desgalgou de uma só carreira a escada, dando encontrões pela parede e tropeçando nos degraus. — Raimundo! gritou a moça com um gemido. E abraçou-se à avó vibrando toda numa convulsão de soluços. O rapaz saiu e achou-se no meio da rua, distraído, apatetado, sem saber bem para que lado tinha de tomar. “Ah! precisava ainda fazer algumas compras...” Pôs-se a aviá-las; nem havia tempo a perder: correu às lojas. Mas, independente da sua vontade e do seu discernimento, dentro dele alimentava-se por conta própria, uma dúbia esperança de que aquela viagem não se realizaria; contava topar com qualquer obstáculo que a transtornasse; confiava num desses abençoados contratempos que nos acodem muito a propósito, quando a despeito do coração, cumprimos o que nos manda o dever. Desejava um pretexto que lhe satisfizesse a consciência. Entrou em várias casas, comprou charutos, um par de chinelas, um boné, mas fazia tudo isto como por mera formalidade, como que para justificar-se aos seus próprios olhos, cada vez mais abstrato, sem prestar atenção a coisa alguma. Foi ao armazém, em que mandara, logo ao romper do dia, depositar as suas malas; contava, ao entrar aí, receber a notícia de que elas já lá não estavam, que alguém as havia reclamado, que alguém as roubara, e esta circunstância lhe impediria de sair por aquele vapor; mas qual! todos os seus objetos se achavam intactos e respeitosamente vigiados. Mandou carregar tudo para a rampa e seguiu atrás, esperando ainda que na Agência lhe dariam a notícia de que a viagem fora transferida para o dia seguinte. Pois sim!... Não havia remédio senão ir. Estava tudo pronto, tudo concluído, só lhe faltava embarcar. Despedira-se de todos a quem devia essa fineza; nada mais tinha que fazer em terra; as suas malas estavam já a caminho do cais — era partir! Sentia um terrível desgosto em aproximar-se do mar, e contudo era para lá que ele se dirigia, vacilante, oprimido. Consultou o relógio, o ponteiro marcava pouco mais de oito horas e parecia-lhe, como nunca, disposto a adiantar-se. O desgraçado, depois disso, perdeu de todo a coragem de puxá-lo da algibeira; aquela inflexível diminuição do tempo o torturava profundamente. “Tinha de seguir! Diabo! Só lhe faltava meter-se no escaler!... Tinha de seguir! E, daí a pouco estaria a bordo, e o paquete em breve navegando, a afastar-se, a afastar-se, sem tornar atrás!... Tinha de seguir! isto é: tinha de renunciar, para sempre, a sua única felicidade completa — a posse de Ana Rosa! Ia desaparecer, deixá-la, para nunca mais a ver! para nunca mais a ouvir, abraçá-la, possuí-la! Inferno!” E, à proporção que Raimundo se aproximava da rampa, sentia escorregar-lhe das mãos um tesouro precioso. Tinha medo de prosseguir, parava, respirando alto, demorando-se, como se quisesse conservar por mais alguns instantes a posse de um objeto querido, que depois nunca mais seria seu; mas a razão o escoltava com um bando de raciocínios. “Caminha! caminha pra diante!” gritava-lhe a maldita. E ele obedecia, de cabeça baixa, como um criminoso. Entretanto, Ana Rosa nunca se lhe afigurou tão bela, tão adorável, tão completa e tão imprescindível, como naquele momento! chegou a ter ciúmes dela e a censurá-la do íntimo da sua dor, porque a orgulhosa não correra ao encontro dele, para impedir aquela separação. E ia deixá-la desamparada, exposta ao amor do primeiro ambicioso que se apresentasse, e a quem ela se daria inteira, fiel, palpitante e casta, porque todo o seu ideal era ser mãe! “Inferno! Inferno!” Inferno!” Raimundo surpreendeu-se parado na rua, a fazer estas considerações, como um tonto, observado pelos transeuntes; olhou em torno de si, e pôs-se a caminhar apressado, quase a correr, para a rampa de embarque. À medida que se aproximava do mar, ia avultando ao seu lado o número de carregadores de bagagens; pretos e pretas passavam com baús, malas de couro e de folha-de-flandres, cestas de vime de todos os feitios, cofos de pindoba, caixas de chapéu de pêlo e gaiolas de pássaros. Ele continuava a correr. Todo aquele aparato de viagem que lhe fazia mal aos nervos. De repente, estacou defronte de um raciocínio, que o puxou aos olhos um clarão de esperanças: “E se o Manuel não tivesse ido ao cais?... Sim, era bem possível que ele, sempre tão cheio de serviço, coitado! tão ocupado, não pudesse lá ir!... E seria uma dos diabos — partir assim, sem lhe dizer adeus!...” E, como em resposta à oposição de um estranho, seu pensamento acrescentou: “Oh! como não? Seria uma dos diabos! O homem podia tomar por acinte!... supor-me ridículo!... Seria, além disso, uma imperdoável grosseria, uma ingratidão até! Ele foi receber-me a bordo, hospedou-me no seio da sua família, cercou-me sempre de mil obséquios!... Não, no fim de contas devo-lhe muitas obrigações!... Não é justo que agora parta sem despedir-me dele!...” Passava um carro vazio. Raimundo consultou rapidamente o relógio. — Rua da Estrela, número 80, gritou ao cocheiro, atirando-se para cima da almofada. Toda força! Toda força! Não podemos perder um minuto! E dentro do carro, impaciente, sentiu uma alegria nervosa, que lhe punha em vibração todo o corpo; enquanto a unha do remorso continuava a esgaravunchar-lhe a consciência. “Oh! mas seria uma grande falta de minha parte!... respondia ele à importuna. Pois eu devia sair daqui, para sempre, sem me despedir do irmão de meu pai, do único amigo que encontrei na província?... juro que chego lá, despeço-me e volto incontinenti...” E a carruagem voava, soprada pela esperança de uma boa gorjeta. Ana Rosa, quando tornou a si do espasmo em que a prostara a visita de Raimundo, chorou copiosamente e depois encerrou-se na alcova com a carta, que ele lhe dera. Abriu-a logo, mas sem nenhuma esperança de consolo. Entretanto, a carta dizia: “Minha amiga, “Por mais estranho que te pareça, juro que te amo ainda, loucamente, mais do que nunca, mais do que eu próprio imaginava se pudesse amar; falo-te assim agora, com tamanha franqueza, porque esta declaração já em nada poderá prejudicar-te, visto que estarei bem longe de ti quando a leres. Para que não te arrependas de me haver escolhido por esposo e não me crimines a mim por me ter portado silencioso e covarde defronte da recusa de teu pai, sabe minha querida amiga, que o pior momento da minha pobre vida foi aquele em que vi inevitável fugir-te para sempre. Mas que fazer? — eu nasci escravo e sou filho de uma negra. Empenhei a teu pai minha palavra em como nunca procuraria casar contigo; bem pouco porém me importava o compromisso! que não teria eu sacrificado pelo teu amor? Ah! mas é que essa mesma dedicação seria a tua desgraça e transformaria o meu ídolo em minha vítima; a sociedade apontar-te-ia como a mulher de um mulato e nossos descendentes teriam casta e seriam tão desgraçados quanto eu! Entendi, pois, que fugindo, te daria a maior prova do meu amor. E vou, e parto, sem te levar comigo, minha esposa adorada, estremecida companheira dos meus sonhos de ventura! Se pudesse avaliar quanto sofro neste momento e quanto me custa a ser forte e respeitar o meu dever; se soubesses quanto me pesa a idéia de deixar-te, sem esperança de tornar a teu lado — tu me abençoarias, meu amor! “E adeus. Que o destino me arraste para onde quiser, serás sempre o imaculado arcanjo a quem votarei meus dias; serás a minha inspiração, a luz da minha estrada; eu serei bom, porque existes. Adeus, Ana Rosa. Teu escravo RAIMUNDO. “ Ao terminar a leitura, Ana Rosa levantou-se transformada. Uma enorme revolução se havia operado nela; como que vingava e crescia-lhe por dentro uma nova alma, transbordante. “Ah! Ele amava-me tanto e fugia com o segredo, ingrato! Mas por que não lhe dissera logo tudo aquilo com franqueza?...” E saltava pelo quarto, como uma criança, a rir, com os olhos arrasados de água. Foi ao espelho, sorriu para a sua figura abatida, endireitou estouvadamente o penteado, bateu palmas e soltou uma risada. Mas, de improviso, lembrou-se de que o vapor podia ter já partido, estremeceu com um sobressalto, o coração palpitou-lhe forte, com um aneurisma prestes a rebentar. Correu à varanda. — Benedito! Benedito! Ó senhores! Onde estaria aquele moleque?... — Que vossemecê queria? perguntou Brígida, com a voz muito tranqüila e compassada. — A que horas sai o vapor? perguntou a moça sem tomar fôlego. — Senhora? — Quando sai o vapor?! — Que vapor, sinhá?... — Diabo! O vapor do Sul! — Hê! Já saiu, sinhá! — Hein?! o quê? Não é possível, meu Deus! E, tremendo por uma certeza horrível, correu ao quarto da avó. — Sabe se já saiu o vapor, vovó? — Pergunta a teu pai. Ana Rosa sentiu uma impaciência medonha, infernal; desceu os primeiros degraus da escada do corredor, disposta a ir ao armazém, mas voltou logo, foi à cozinha e encarregou a Brígida de saber de Manuel se o vapor havia largado já. A criada tornou, dizendo, muito descansada, que “sinhô tinha saído de manhãzinha cedo, para o bota-fora de nhô Mundico”. — Vai para o diabo! gritou Ana Rosa colérica. E correu à janela do seu quarto, escancarou-a precipitadamente. O sossego da Rua da Estrela entorpeceu-a, como o efeito de um jato de água fria sobre um doente de febre. Depois, veio-lhe a reação; teve um apetite nervoso de gritar, morder, agatanhar. Pensou que ia ter um histérico; saiu da janela, para ficar à vontade; deu fortes pancadas frenéticas na cabeça. E sentia uma raiva mortal por tudo e por todos, pelos parentes, pela casa paterna, pela sociedade, pelas amigas, pelo padrinho; e assistiu-lhe, abrupto, uma força varonil, um ânimo estranho, um querer déspota; pensou com prazer numa responsabilidade; desejou a vida com todos os seus trabalhos, com todos os seus espinhos e com todos os seus encantos carnais; sentiu uma necessidade imperiosa, absoluta, de entender-se com Raimundo, de perdoar-lhe tudo, com beijos ardentes, com carícias doidas, selvagens, agarrar-se a ele, rangindo os dentes, e dizer-lhe cara a cara: “Casa-te comigo! Seja lá como for! Não te importes com o resto! Aqui me tens! Anda! Faze de mim o que quiseres! Sou toda tua! Dispõe do que é teu!” Nisto, rodou uma carruagem na Rua da Estrela. Ana Rosa correu à janela, assustada, palpitante. O carro parou à porta de Manuel; a moça estremeceu de medo e de esperança, e, toda excitada, convulsa, doida, viu saltar Raimundo. — Suba! suba pra cá! disse-lhe ela, já no corredor. Suba por amor de Deus! Raimundo sentiu as mãos frias da moça prenderem as suas. Gaguejou. — Seu pai? Não quis partir, sem... — Entre, entre para cá. Venha! Preciso falar-lhe. E Ana Rosa puxou-o violentamente. O rapaz deixou-se arrastar; supunha encontrar-se com Manuel. — Mas... balbuciava ele confuso, reparando, todo trêmulo, que entrava no gabinete de sua prima. Perdão, minha senhora, porém seu pai onde está?... Vinha pedir-lhe as suas ordens... Ana Rosa correu à porta, fechou-a bruscamente, e atirou-se ao pescoço de Raimundo. — Não partirás, ouviste? Não hás de partir! — Mas... — Não quero! Disseste que me amas e eu serei tua esposa, haja o que houver! —Ah! se fosse possível!... — E por que não? Que tenho eu com o preconceito dos outros? Que culpa tenho eu de te amar? Só posso ser tua mulher, de ninguém mais! Quem mandou a papai não atender ao teu pedido? Tenho culpa de que não te compreendam? Tenho culpa de que minha felicidade dependa só de ti? Ou, quem sabe, Raimundo, se és um impostor e nunca sentiste nada por mim?... — Antes assim fosse, juro-te que o desejava! Mas supões que eu seria capaz porventura de sacrificar-te ao meu amor? que eu seria capaz de condenar-te ao ódio de teu pai, ao desprezo dos teus amigos e aos comentários ridículos desta província estúpida?... Não! deixa-me ir, Ana Rosa! É muito melhor que eu vá!... E tu, minha estrela querida, fica, fica tranqüila ao lado de tua família; segue o teu caminho honesto; és virtuosa, serás a casta mulher de um branco que te mereça... Não penses mais em mim. Adeus. E Raimundo procurava arrancar-se das mãos de Ana Rosa. Ela prendeu-se-lhe ao pescoço, e, com a cabeça derreada para trás, os cabelos soltos e dependurados, perguntou-lhe, cravando-lhe de perto o olhar: — O que há de sincero na tua carta? — Tudo, meu amor, mas por que a leste antes de eu ter partido? — Então, sou tua! Olha, saiamos daqui! já! fujamos! Leva-me para onde quiseres! Fazes de mim o que entenderes! E deixou cair o rosto sobre o peito dele, e abraçou-o estreitamente. Raimundo estava imóvel, medroso de sucumbir, entalado numa profunda comoção. — Decide! exigiu ela, soltando-o. Ele não respondeu. Ofegava. — Pois olha, se não quiseres fugir, farei acreditar a meu pai que és um infame! Tens medo, não é verdade?... pois bem, eu lhe direi tudo que me vier à cabeça!... chamarei sobre ti todo o ódio e toda a responsabilidade do meu amor! porque tu és um homem mau, Raimundo, e meu pai acreditará facilmente que abusaste da hospitalidade que ele te deu. És um miserável. Sai daqui. Raimundo preciptou-se contra a porta. Ana Rosa atirou-se-lhe de novo ao pescoço, soluçando. —Perdoa, meu amor! eu não sei o que estou dizendo! Desculpa-me tudo isto, meu querido, meu senhor! Reconheço que és o melhor dos homens, mas não partas, eu te suplico pelo que mais amas! Sei que é o teu orgulho que faz mau; tens toda razão, mas não me abandoes! Eu morreria, Raimundo, porque te amo muito, muito! e nós mulheres, não temos como tu tens, outras ambições além do amor da pessoa que idolatramos! Bem vês! Eu sacrifico tudo por ti; mas não partas, tem piedade! Sacrifica também alguma coisa por mim! não sejas egoísta! não fujas! É o orgulho! mas que nos importam os outros, quando nós nos possuímos?... Só a ti vejo, só a ti respeito, só a ti procuro agradar! Anda! Leva-me contigo! Eu desprezarei tudo; mas preciso ser tua, Raimundo, preciso pertencer-te exclusivamente! E Ana Rosa caiu de joelhos, sem se desgarrar do corpo dele. — É uma escrava que chora a teus pés! é uma desgraçada que precisa da tua compaixão! Sou tua! aqui me tens, meu senhor, ama-me! Não me abandones! E soluçou, empalmando o rosto com as mãos. Raimundo, procurando erguê-la, vergava-se todo sobre ela. E o contato sensual daquela carne branca dos braços e do colo da rapariga, e o sarrafaçar daqueles lábios em brasa, e a proibição de tocar em todo aquele tesouro proibido, fustigavam-lhe o sangue e punham-lhe a cabeça a rodar, numa vertigem. — Meu Deus! Ó Ana Rosa, não chores! Levanta-te por amor de Deus! Ana Rosa continuava a chorar, e um tremor nervoso percorria o corpo inteiro de Raimundo. Foi nessa ocasião que a lanchinha do Portal soltou o seu primeiro sibilo, chamando os passageiros retardados; e aquele grito, penetrante e impertinente, chegou aos ouvidos do rapaz, ali, na doce reclusão daquele quarto, como uma nota destacada do coro de imprecações com o público maranhense, formigando lá fora nas ruas, aplaudia a sua retirada da província. Ele num relance mediu a situação, calculou a conseqüências ridículas da sua fraqueza, lembrou-se das palavras de Manuel, e afinal o seu orgulho rebentou com a impetuosidade de um temporal. — Não, gritou, repelindo bruscamente a moça. Precipitou-se para a saída. Ana Rosa caiu a meio, amparando-se numa das mãos, mas ergueu-se logo, tomando-lhe a passagem. E, com um gesto altivo, atravessou-se contra a porta, de braços abertos, sobranceira, nobre, os punhos cerrados. Estava lívida e desgrenhada; a boca contraía-se-lhe numa dolorosa expressão de sacrifício e desespero. Arfavam-lhe as narinas e o seu olhar fulgurava terrível e cheio de ameaça. Raimundo conservou-se um instante imóvel e perplexo defronte daquela inesperada energia. — Não sairás, porque eu não quero! disse ela com a voz estalada e surda. Não sairás daqui, do meu quarto, enquanto não estivermos de todo comprometidos! — Oh! Houve então um silêncio angustioso para ambos. Raimundo abaixou os olhos e pôs-se a meditar, muito aflito. Parecia arrependido e humilhado pela sua fraqueza. “Por que voltara?...” Ana Rosa foi ter com ele e passou-lhe meigamente o braço pelas costas. Era outra vez a mesquinha rola medrosa e comovida. — Tudo que de bom eu podia fazer para casar contigo, bem sabes que já o fiz... murmurou ela, agora sem ânimo de encará-lo. Papai não consentiu, na esperança de dar-me a outro... E eu não me sujeito a isso!... Hei de esgotar até o último recurso para continuar a ser só tua, meu amigo! É com essa resolução que te prendo a meu lado!... Pode ser que isso te pareça mau e desonesto, mas juro-te que nunca defendi tanto o meu pudor e a minha virtude como neste momento! Para salvar-me tenho por força de fazer-me tua esposa, e só há um meio de conseguir que o permitam, é tornando-me desvirtuada aos olhos de todos e só aos teus me conservando casta e pura... E abaixou as pálpebras, toda ela afogada em pejo. Raimundo não fez o menor movimento, nem deu uma palavra. Ana Rosa abriu a soluçar. — Agora... podes ir quando quiseres... acrescentou, desligando-se dele. Agora podes abandonar-me para sempre... fico com a minha consciência tranqüila, porque lancei mãos de todos os recursos para casar contigo... Vai-te! Nunca pensei é que, nesta última provação, ainda o covarde fosses tu! Vai-te embora por uma vez! Deixa-me! — E soluçou forte. — Se mais tarde hei de arrepender-me, é melhor mesmo que se acabe desde já com isto! Eu sou uma infeliz! uma desgraçada! E chorava. Raimundo puxou-a carinhosamente para junto dele; afagou-a, chamando-lhe a cabeça para seu peito. — Não chores, disse-lhe. Não te mortifiques desse modo... — Mas não é assim?... queixava-se a mísera, com o rosto escondido no colo do moço. Por uma outra, que não te merecesse mais, farias tudo!... Tola fui eu em confessar que te amo tanto, ingrato!... Tu não merecias a metade do que fiz por ti! És um fingido! E soluçava, mais e mais, como uma criança magoada. O rapaz abraçou-se com ela e beijou-a repetidas vezes em silêncio. — Não chores, minha flor... segredou-lhe afinal. Tens toda a razão... perdoa-me se fui grosseiro contigo! Mas que queres? todos nós temos orgulho, e a minha posição ao teu lado era tão falsa!... Acredita que ninguém te amará mais do que te amo e te desejo! Se soubesses, porém, quanto custa ouvir cara a cara: “Não lhe dou minha filha, porque o senhor é indigno dela, o senhor é filho de uma escrava!” Se me dissessem: “É porque é pobre!” que diabo! — eu trabalharia! se me dissessem: “É porque não tem uma posição social!” juro-te que a conquistaria, fosse como fosse! “É porque é um infame! um ladrão! um miserável!” eu me comprometeria a fazer de mim o melhor modelo dos homens de bem! Mas um ex-escravo, um filho de negra, um — mulato! — E, como hei de transformar todo meu sangue, gota por gota? como hei de apagar a minha história da lembrança de toda esta gente que me detesta?... Bem vês, meu amor, tenho posição definida, não me faltam recursos para viver em qualquer parte, jamais pratiquei a mínima desairosa, que me envergonhe; e, no entanto, nunca serei feliz, porque só tu és a minha felicidade e eu nada devo esperar de ti! Ah, se soubesses, Ana Rosa, quanto doem estas verdades... perdoarias todo o meu orgulho, porque o orgulho de cada homem de bem está sempre na razão do desprezo que lhe votam! Ana Rosa bebeu-lhe, boca a boca, estas últimas palavras. — Entretanto... prosseguiu ele, vencido de todo, já não tenho coragem para deixar-te!... — E abraçavam-se. — Como poderei, de hoje em diante viver, viver sem ti, minha amiga, minha esposa, minha vida?... Dize! fala! aconselha-me por piedade, porque eu já não sei pensar!... Um novo assobio de bordo veio interrompê-lo. — Não ouves, Ana Rosa?... O vapor está chamando... — Deixa-o ir, meu bem! tu ficas... E os dois estreitaram-se, fechados nos braços um do outro, unidos os lábios em mudo e nupcial delírio de um primeiro amor. Não obstante Manuel e o cônego ainda se deixavam ficar na guardamoria, depois da decepção da última carruagem. — Cachorro! exclamava o negociante fora de si, a passear de um para outro lado, ameaçando o teto com o seu enorme guarda-chuva. Grandíssimo tratante! — E parando defronte de Diogo: — Caçoou conosco, seu compadre! caçoou conosco, o desavergonhado! Também, que faça cruz, em casa não me põe mais os pés! sou eu quem o diz! Nunca mais! Ouviram-se três silvos repetidos. — É o último sinal... disse o empregado da guardamoria. O vapor vai largar. Suspendeu a escada. Manuel, com as mãos cruzadas atrás, o chapéu descaído para a nuca, o corpo a bambolear sobre as suas perninhas curtas, interrogou, muito vermelho, o cônego: — E o que me diz desta, compadre?.. Então que me diz desta?!... Ora já se viu?... — Deixe-se disso!... repreendeu o outro. E encaminhou-se para a porta, abriu o seu guarda-sol de dezoito varetas, e acrescentou, disposto a retirar-se: — Vamos indo. Meus senhores, vivam! obrigado. Puseram-se os dois a subir vagarosamente a rampa. — Ora, meta-se um homem com semelhante gente!... resmungava o negociante, batendo com a biqueira do chapéu-de-chuva nas pedras da calçada. Traste! Peralta! Mas também, pode chegar-se para quem quiser!... comigo não conte para mais nada! Canalha! E continuou a praguejar, numa verbosidade de cólera. O cônego interrompeu-o no fim de algum tempo: — Suaviter in modo, fortiter in re!... O outro calou-se logo e prestou-lhe toda a atenção; conversaram uma boa hora, em voz baixa, parados a uma esquina do Largo do Palácio, combinando sobre o que melhor convinha fazer. — Adeus, disse afinal o cônego. Não se esqueça, hein? E observe bem tudo o que ela responda. — Você aparece por lá? — Logo depois do almoço. E, ambos cabisbaixos, cada qual tomou o seu rumo. Comentava-se já o fato na Praça do Comércio e na Rua de Nazaré. Manuel chegou a casa e foi atravessando o armazém. — O doutor Raimundo esteve aí em cima? perguntou ele ao Cordeiro. — Esteve, sim senhor, porém já saiu. Metia-se no carro, justamente, quando eu chegava da cobrança. — Há muito tempo? — Há coisa de meia hora, pouco mais ou menos. — Vocês já almoçaram? — Já sim senhor. — Bem! Diga ao seu Dias, quando vier, que não se esqueça de tirar aquelas contas correntes do interior; e você vá à alfândega e veja se no manifesto do Braganza estão aqueles fardos de estopa, número 105 a 110. Olhe, tome o conhecimento. E passou-lhe um quarto de papel azulado, impresso. Depois ia subir, mas voltou ainda. — Ah! é verdade! seu Vila Rica! — Senhor! — O pequeno está aí? — Não senhor, foi ao tesouro. — Aviaram-se já aquelas encomendas de Caxias? — Já estão duas caixas de chitas arrumadas. O vapor só sai depois de amanhã. — Bom... E Manuel pensou um pouco. — Ah! Sabe se seu Cordeiro despachou os fósforos? — Ainda não senhor, porque o conferente, que está nos despachos sobre água, não os pôde fazer ontem. — Bem, diga ao Cordeiro que veja se acaba com isso hoje. E o negociante subiu afinal. A varanda estava deserta. Maria Bárbara rezava no seu quarto, agradecendo a Deus e aos santos a suposta partida de Raimundo. Manuel tomou seu cálice de conhaque ao aparador, e dirigiu-se depois para a cozinha. — Que é de Anica? — Está no quarto, deitada. — Doente? — Sim senhor, com febre. — Que tem ela? — Não sei, não senhor... Manuel bateu à porta da alcova de Ana Rosa. Veio ela mesma abrir, muito pálida, e voltou logo, para se meter de novo na rede. — Que tens tu, Anica? — Não estava boa!... Nervoso!... Mas não encarava com o pai, e suspiros estalavam-lhe na garganta. Manuel assentou-se pesadamente numa cadeira, junto dela, limpando com o lenço o rosto, o pescoço e a cabeça. — Recomendações do Mundico! disse no fim de um silêncio, disfarçadamente. — Como?! exclamou Ana Rosa, soerguendo-se em sobressalto e ferrando no pai o mais estranho e doloroso olhar. — Foi-se! explicou Manuel. O vapor deve estar saindo neste momento. Lá ficou ele a bordo! Coitado! talvez seja feliz na Corte!... — Miserável bradou a moça, com um grito desesperado. E deixou-se cair para trás, na rede, a estrebuchar. — Bonito! Ana Rosa! Então que é isto, minha filha?.. gritava Manuel, procurando conter-lhe os movimentos crônicos. D. Maria Bárbara! Brígida! Mônica! O quarto encheu-se. Escancararam-se a porta e as janelas; vieram os sais e o algodão queimado. Mas, só depois de grandes lutas, a histérica quebrou de forças e pôs-se a soluçar, extenuada e arquejante. Manuel, todo aflito, não sossegava, de um para outro lado, na ponta dos pés, falando em voz discreta, indo de vez em quando ao corredor se o cônego já tinha chegado, e voltando sempre a coçar a nuca, o que nele indicava extrema perplexidade. — Vossemecê já quer almoçar? perguntou-lhe a Brígida, — Vai para o diabo! O cônego chegou afinal, ao meio-dia, com um ar muito tranqüilo, de boa digestão; o palito ao canto da boca. — Então?... informou-se ele de Manuel, levando-o misteriosamente para um canto da varanda. — Foi o diabo... seu compadre! A pequena, logo que ouviu a peta, caiu-me com um ataque; e agora o verás! gritou e estrebuchou por um ror de tempo, até que lhe vieram os soluços! Um inferno! — E agora? Como está ela? — Mais sossegadinha, porém suponho que vai ter febre... Eu não quis chamar o médico, sem falar primeiro com você... — Fez bem. E o cônego recolheu-se a meditar. — Com os demos!... resmungou por fim. A coisa estava muito mais adiantada do que eu fazia... — E agora? —Agora, é dizer-lhe a verdade!... O que eu queria era saber em que pé estava a questão... Ela se supõe traída e, para supor tal, é preciso que tenha concertado algum plano com o melro... Eis justamente o que convém destruir quanto antes!... E, depois de uma pausa: — Aquela indiferença pela retirada de Raimundo era devida à certeza do contrário... Calou-se e perguntou, daí a um instante: — Ela acreditou logo no que você disse? — Logo, logo! gritou: “Miserável!” e zás! caiu com o ataque! — É singular... — O quê? — Ter acreditado tão facilmente... mas, enfim... conte-se-lhe a verdade!... — Então, espere um instantinho, que... — Não senhor, venha cá, compadre, vou eu; a mim talvez que a pequena diga tudo com mais franqueza. E, inspirado por uma idéia, voltou-se para Manuel: — Olhe! você, o melhor é fingir que não sabe de coisa alguma... compreende? — Como assim? — Não se dê por achado... finja que estás deveras persuadido da partida de Raimundo. — Para quê? — É cá uma coisa... E o cônego, revestindo um ar consolador e respeitoso, entrou, com passos macios, no aposento de Ana Rosa. A crise tinha cessado de todo; a doente soluçava baixinho, com o rosto escondido entre dois travesseiros. A boa Mónica, ajoelhada aos pés dela, vigiava-a com a docilidade de um cão. D. Maria Bárbara assentada perto da rede exprobrava a neta, a meia voz, aquele mal cabido pesar por um fato que nada tinha de lamentável. — Então, minha afilhada que é isso?... perguntou o padre, passando carinhosamente a mão pela cabeça da rapariga. Ela não se voltou; continuava a chorar, inconsolável, assoando de espaço a espaço o narizinho, agora vermelho do esforço do pranto. Não podia falar, os soluços secos e muito suspirados, repetiam-se quase sem intervalo. Com um sinal o cônego afastou Maria Bárbara e Mônica, e, chegando os seus lábios finos ao ouvido da afilhada, derramou nele estas palavras, doces e untuosas, como se fossem ungidas de santo óleo: — Tranqüilize-se... Ele não partiu... está aí... Sossegue... — Como? E Ana Rosa voltou-se logo. — Não faça espalhafato... Convém que seu pai não saiba de coisa alguma... Descanse! sossegue! Raimundo não partiu, ficou! — Vossemecê está me enganando dindinho!... — Com que interesse, minha desconfiada? — Não sei mas... E soluçou ainda. — Está bom! não chore e ouça o que lhe vou dizer: Saindo daqui, procuro o rapaz e faço-o ausentar-se por algum tempo, até que as coisas voltem de novo aos seus eixos; mais tarde ele se mostrará, e então nós trataremos de tudo pelo melhor... Nec semper lilia florent!... — E papai? — Deixe-o por minha conta! fie-se inteiramente em mim! Mas precisamos ter uma conferência completa, sozinhos, num lugar seguro, onde possamos falar à vontade. Para ajudá-los preciso pôr-me bem a par do que há! entregue-se pois às minhas mãos e verá que tudo se arranja com a divina proteção de Deus!... Nada de desesperos! nada de precipitações!... Calma, minha filha! sem calma nada se faz que se preste!... E, depois de uma meiguice: — Olhe, venha um dia à Sé, confessar-se comigo... Sua avó encomendou-me uma missa cantada. Não pode haver melhor ocasião... Confesso-a depois da missa. Está dito? — Mas, para quê, dindinho?... — Para quê?... é boa! para poder ajudá-la, minha afilhada!... — Ora... — Não? pois então lá se avenham vocês dois, mas duvido muito que consigam alguma coisa!... Se tem confiança em seu padrinho, vá à missa, confesse-se, e prometo que ficará tudo arranjado! Ana Rosa tinha já a fisionomia expansiva; sentia vontade até de abraçar o cônego; aquele bom anjo que lhe trouxera tão agradável notícia. — Mas não me engane, dindinho!... Diga sério! ele não foi mesmo? — Já lhe disse que não, oh! Tranqüilize-se por esse lado e venha a ter comigo à igreja! Tudo se acomodará a seu gosto! — Jure! — Ora, que exigência!... que criancice!... — Então não vou... — Está bom, juro. E o cônego beijou os indicadores, traçados em forma de cruz sobre seus lábios. — E agora? está satisfeita? — Agora sim. — E vai à confissão? — Vou. — Ainda bem! 16 A casa particular de Manuel Pescada tinha, pelo menos em aparência, recaído no seu primitivo estado de paz e esquecimento. Tanto aí, como pela cidade, já bem pouco se falava de Raimundo. Ele, ao sair do quarto da amante, havia reformado seu programa de vida. No mesmo dia partiu para Rosário; foi visitar a mãe, na esperança de trazê-la em sua companhia para a capital e viver ao lado dela, mas Domingas não se deixou apanhar e o infeliz teve de voltar só. Instalou-se no Caminho Grande, numa casinha velha, escondido como um criminoso de morte. Daí, com muita dificuldade, escreveu uma carta a Ana Rosa, confiando-lhe os seus projetos; a carta terminava assim: “O melhor é deixarmos que tudo serene completamente e que de todo se esqueçam de nós, e então eu te aparecerei na noite que combinarmos e poremos em prática o plano exposto no começo desta. Quanto a teu pai, só me entenderei com ele, no dia em que esse teimoso estiver resolvido a perdoar o genro e a filha. Adeus. Não desanimes e tem plena confiança no teu noivo extremoso. — Raimundo.” Com essa missiva Ana Rosa tranqüilizou-se tanto, que procurou dissuadir o cônego da idéia da tal confissão. “No fim de contas, se era pecadora, fora-o premeditadamente e não se arrependia. A consciência dizia-lhe que o casamento resgatava a sua falta. Dindinho, por conseguinte, que tivesse paciência, ela não sentia necessidade de perdão!...” Raciocinando deste modo, falou com franqueza ao padre e retirou a promessa que lhe fizera; mas o reverendo repontou, ameaçando-a com uma denúncia a Manuel. A rapariga chegou a suspeitar que o padrinho sabia de tudo, e amedrontou-se. — Mas, dindinho, vossemecê embirrou com este negócio da confissão!... O cônego assentou os olhos no teto, à míngua de céu, e, recorrendo aos efeitos artísticos da sua profissão, desenrolou uma prática, que terminava no seguinte: — Malos tueri haud tutum... Não sabes porventura, pecadora, vítima inocente de tentações diabólicas! que eu devo à minha consciência e a Deus duplas contas do que faço cá na terra?... Não sabes, minha afilhada, que todo sacerdote caminha neste vale de lágrimas entre dois olhos perspicazes e penetrantes, dos juízes austeros e inflexíveis, um chamado — Deus, e outro — Consciência?... Um que olha de fora para dentro, e outro de dentro para fora?... E que o segundo é o reflexo do primeiro, e que, satisfeito o primeiro, o segundo está também satisfeito?... Não sabes que terei um dia de prestar contas dos meus atos mundanos, e que, percebendo agora que uma ovelha se desgarra do rebanho e arrisca perder-se do caminho da luz e da pureza, é de minha obrigação, como pastor, correr em socorro da desgraçada e guiá-la de novo ao aprisco, ainda que se faça preciso a violência?... Por conseguinte, filha de Eva, vem à igreja! vem! confessa-te ao sacerdote de Nosso Senhor Jesus Cristo! abre tua alma de par em par defronte dele, que teu coração se fechará logo aos imundos apetites da carne! Abraça-te, como Madalena, aos pés do representante de Deus, até que este último se compadeça de ti pecadora! Deum colenti stat sua merces! E o cônego ficou ainda um instante a olhar para o teto com os braços erguidos e os olhos em branco. — Pois bem Dindinho, pois bem! disse Ana Rosa, impressionada. E desarmou sem cerimônia a posição extática do padre. — Irei a tal confissão, mas deixe-se dessas coisas e não esteja a falar desse modo, que isso me faz mal aos nervos! Bem sabe que sou nervosa. Ficou resolvido que a missa encomendada por Maria Bárbara seria no primeiro domingo do seguinte mês, e que Ana Rosa iria à confissão. Mônica, sempre desvelada e extremosa por sua filha de leite, iniciara-se nos segredos desta e, como era lavadeira, todas as vezes que ia à fonte, dava um pulo à casa de Raimundo para trazer notícias dele a laiá. Uma noite, o cônego Diogo, envolvido na sua batina de andar em casa debruçado sobre uma velha mesa de pau-santo, com os pés cruzados sobre um surrado couro de onça, ainda do tempo do Rosário, a cabeça engolida num trabalhado gorro de seda, primorosamente bordado pela afilhada, lia, defronte do seu candeeiro, um grosso volume de encadernação antiga, em cujo frontispício estava escrito: “História Eclesiástica. Tomo undécimo. Continuação dos séculos cristãos ou história do Cristianismo, nos seus estabelecimentos e progresso: Que compreende desde o ano de 1700 até o atual Pontificado de N.S.P. Pio VI. Traduzida do espanhol. Lisboa. Na Tipografia Rolandina, 1807. Com a licença da mesa do desembargo do Paço.” O bom velho perdia-se numas descrições enfadonhas sobre a seita dos Pietistas, fundada nos fins do século XVIII por Spener, cura de Francfort, quando bateram à porta do seu gabinete três pancadinhas discretas e compassadas. Marcou logo o livro, com o palito com que escarafunchava os dentes, e foi abrir. Era o Dias. Estava cada vez mais magro e mais bilioso, porém com a figura mascarada sempre por aquele inveterado sorriso de astuciosa passividade. — Venho incomodá-lo, senhor cônego... — Essa é boa!... Vá entrando. E, como a visita não se animasse a falar, acrescentou depois de uma pausa: — Mandou a carta que lhe dei?... — Já ele a tem no papo. Atirei-a eu mesmo pelas rótulas da sua janela, na véspera do tal embarque! — Já descobriu onde ele mora presentemente? — Ainda não consegui, não senhor, mas quer me parecer que o patife se aninha lá pras bandas do Caminho Grande. — Olho vivo. O traste pode surgir de repente e pregar-nos alguma partida! Olho vivo! Você tem feito o que lhe recomendei? — A que respeito? — A respeito da espionagem. — Tenho, sim senhor. — Então! o que já descobriu? — Por hora nada que valha... E creia o senhor cônego que não me descuido. Além daquela busca que dei no dia de São João, não há instantinho, que possa roubar ao serviço, que não seja para dar fé do que se passa lá por casa. Mas, do que tenho apanhado, só o que me disse respeito ao negócio foi uma conversa entre a D. Anica e a velha... — A Bárbara? — Sim senhor. — E então? — É que a pequena, depois de pedir muito à avó que se compadecesse dela e obtivesse do pai liberdade para se casar com o cabra, abriu a chorar e a lamentar-se como uma varrida! E “que era muito desgraçada; que ninguém em casa a estimava; que todos só queriam contrariá-la... E porque faria isto, e porque faria aquilo!...” — Mas o que dizia ela que faria?... Ora que diabo de maneira tem você de contar as coisas!... — Tolices, senhor cônego, tolices de moça... Que se matava! ou que fugia! ou que se metia à freira!... E porque o casamento pra cá! e porque o casamento pra lá! Enfim, queria dizer na sua, que uma mulher nunca devia casar obrigada! Afinal, atirou-se aos pés da avó, soluçando e dizendo que, se não a deixassem casar com o Raimundo, que ela não responderia por si!... — Então, a velha já sabe que o Raimundo ficou?... — Parece. A rapariga, pelo menos, disse que a avó, junto com o pai, haviam de amargar muito desgosto por mor de não consentirem no casamento!... — E o que fez ela? — Quem, a pequena? — Não, a velha. — A velha enfezou-se e pô-la do quarto pra fora, jurando que antes queria vê-la estirada debaixo da terra do que casada com um cabra, e que, se o patrão... — Que patrão senhor? — Seu Manuel, o pai! — Ah! o compadre. — Sim senhor. Mas se o patrão, por qualquer aquela, cedesse, ela é que não consentiria no casamento da neta, e romperia com o genro! — Bom, bom! Vamos bem! E a rapariga? — Ora, a rapariga lá se foi choramingando para o quarto e, se me não engano, meteu-se a rezar. — Reza, hein?! perguntou o cônego com interesse. — É! ela reza mais agora... — Muito bem! muito bem! Vamos maravilhosamente! — E está toda cheia de abusões... Ainda outro dia, dei fé que ela pendurava alguma coisa no poço; logo que pude, corri para ver se descobria o que vinha a ser. Ora o que pensa vossemecê que era?... — Um Santo Antônio. — Justo. Era um Santantoninho assinzinho!... confirmou o Dias, marcando uma polegada no index. — Bem! disse o cônego. Continue a espreitar, mas... todo cuidado e pouco! Que ninguém perceba!... principalmente minha afilhada, compreende?... Se descobrem que você anda farejando, está tudo perdido!... Finja-se tolo!... Tenha fé em Deus! E ânimo! Quando apanhar qualquer novidade, apareça-me logo! Não deixe de espiar! lembre-se de que a arma com que havemos de esmagar o bode, ainda está nas mãos dele!... — Ora, senhor cônego, mas eu já vou perdendo a fé!... Confesso-lhe que... — Não seja idiota, que você não tem razão nenhuma para desanimar! trate, mas é de ver se descobre alguma coisa, porém coisa grossa, que dê para agarrar, porque depois o mais fácil é o seu casamento! Olhe! Preste atenção para quem entra e para quem sai! Se eles ainda não se correspondem, o que duvido, virão a corresponder-se mais tarde! em todo o caso, é prudente não recorrer por ora às cartas — deixe-os escrever, que lhe direi quando é que você terá de apoderar-se de alguma delas. A fruta, para ser aproveitável, deve ser colhida de vez!... — Bem, senhor cônego, posso retirar-me?... — Viva! — Então, vou-me chegando. — Sis felix! — Como? perguntou o Dias, voltando-se. — Não se descuide. Vá! O caixeiro fez uma mesura e saiu Diogo fechou a porta e tornou à sua História Eclesiástica, até que a caseira Inácia foi chamá-lo para a ceia. Então, depois de abaixar a luz do candeeiro, passou-se à varanda e assentou-se pachorrentamente, defronte de uma tigela de canja. Veio logo um gato maltês, gordo, grande, encarapitar-se-lhe nas coxas, miando ternamente e voltando para ele a sua fosforescente pupila, que lhe suplicava carícias. Dir-se-ia que naquele canto, modesto e asseado, reinava a paz abençoada dos justos. No domingo seguinte a Sé chamava para a missa, com um alegre repinicar de sinos. Era a promessa de D. Maria Bárbara. Havia grande afluência do povo. As beatas subiam piedosamente os arruinados degraus do átrio e iam, de cabeça vergada, ajoelhar-se no corpo principal da igreja. Sentia-se o frufru de vetustas e farfalhudas saias de chamalote, restauradas com chá-preto, o estalar de fortes chinelas novas na sonora cantaria do templo, e o tilintar das contas de coco babaçu, cujos rosários deslizavam entre os trêmulos dedos das velhas, no fervoroso sussurro das orações. Viam-se-lhes as camisas de cabeção bordado e cheias de rendas e labirintos; destacavam-se também grandes toalhas de linho branco, penduradas dos ombros carnudos das cafuzas e mulatas; reluziam os seus enormes pentes de tartaruga, enfeitados de ouro, e as contas preciosas, que lhes circulavam, com muitas voltas, as tocinhudas espáduas e as roscas taurinas do cachaço. Em cima, perto do altar-mor, em lugares privilegiados, sobressaíam chapéus enfeitados de fitas e plumas, leques irrequietos, que se agitavam desordenadamente, com um ruído casquilho de varetas batendo de encontro aos broches e alfinetes de peito, numa confusão de cores espantadas; eram devotas de fino trato, velhas e moças ostentavam jóias vistosas e perfumes ativos segurando, com luva Horas Marianas encadernadas de marfim, veludo, prata e madrepérola. Recendia por toda a catedral um aroma agreste de pitangueira e trevo cheiroso. Pela porta da sacristia lobrigavam-se de relance padrecos apressados, que iam na carreira, vestindo as suas sobrepelizes dos dias de cerimônia. Havia na multidão um rumor impaciente de platéia de teatro. O sacristão, cuidando dos pertences da missa, andava de um para outro lado, ativo como um contra-regra, quando o pano de boca vai subir. Afinal, à deixa fanhosa de um padre muito magro que, aos pés do altar desafinava uns salmos da ocasião, a orquestra tocou a sinfonia e começou o espetáculo. Correu logo o surdo rumor dos corpos que se ajoelhavam; todas as vistas convergiam para a porta da sacristia; fez-se um sussurro de curiosidade, em que se destacavam ligeiras tosses e espirros; e o cônego Diogo apareceu, como se entrasse em cena, radiante, altivo, senhor do seu papel e acompanhado de um acólito que dava voltas frenéticas a um turíbulo de metal branco. E o velho artista, entre uma nuvem de incenso, que nem um deus de mágica, e coberto de galões e lantejoulas, como um rei de feira, lançou, do alto da sua solenidade, um olhar curioso e rápido sobre o público, irradiando-lhe na cara esse vitorioso sorriso dos grandes atores nunca traídos pelo sucesso. Com efeito, os espectadores adoravam-no, posto que ele agora raras vezes trabalhasse; mas nessas poucas, em que se dignava mostrar-se por condescendência a uma velha amiga, como naquela ocasião, o seu triunfo era esplêndido e certo. Vinha gente de longe para vê-lo; para admirar a imponência, a distinção, a gentileza daquele porte de homem. Incomodaram-se muitas pessoas para não perder aquela missa; sexagenárias do seu tempo mandaram espanar o palanquim, havia longos anos esquecido debaixo da escada, e espantaram a vizinhança com uma saída à rua; e ali, esses duros corpos encarquilhados, que envelheceram com Diogo, pareciam reviver por instantes, como cadáveres sujeitos a uma ação galvânica, e, trêmulos, mordiam o beiço roxo e franzido, palpitante de recordações. Em caminho para o altar, o exímio artista olhou para os lados, falou em voz baixa aos seus ajudantes, e encarou a platéia com um sorriso de discreta soberania; mas de súbito o seu sorriso dilatou-se numa feição mais acentuada de orgulho: é que distinguira Ana Rosa, entre as devotas, ajoelhada num degrau da nave, de cabeça baixa, o ar contrito, a rezar freneticamente, ao lado da avó. Os turíbulos fumegaram com mais força; espirais de incenso espreguiçavam-se, dissolvendo-se no espaço; o ambiente saturou-se de perfumes sacros, e enervantes, e as mulheres, todas, se contraíram preparadas para místicos enlevos. O celebrante chegara enfim ao altar, depois de ajoelhar-se de leve, como fazendo uma mesura apressada, defronte dos santos grandes, aprumados nos seus tronos de brocados falsos. Os janotas, separados do altar-mor por uma grade de madeira preta, tiraram da algibeira, com a ponta dos dedos, o lenço almiscarado e ajoelhavam-se sobre ele, numa atitude elegante. As moças escondiam a boca no livrinho das rezas e passeavam furtivamente o olhar para o lado dos fraques pretos. Os que até aí estiveram ajoelhados, rezando à espera da missa, mudavam de posição; os opulentos quadris das pretas-minas rangiam; os ossos dos velhos estalavam; criancinhas soltavam aclamações de aplauso pela festa, algumas choravam. Mas, finalmente, tudo tomou um sossego artificial; fez-se silêncio, e a missa principiou solene, ao som do órgão. Ao repicarem de novo os sinos, toda a gente se levantou com algazarra; os rapazes endireitavam as joelheiras das calças; as moças arranjavam os pufes e os laçarotes; as beatas sacudiam as suas eternas saias, agora entufadas pela pressão dos joelhos. A orquestra tocou uma música profana, alegre como uma farsa depois de um drama; o cônego Diogo, na sacristia, tirava o seu pitoresco vestuário de seda bordada, que o sacristão recolhia religiosamente nas suas mãos de tísico, para guardar nos extensos gavetões de pau-negro. O povo, confortado de religião, mas estalando pelo almoço, espremia-se sôfrego pelas largas portas da matriz. Mendigos, alinhados à saída, pediam, com chorosa insistência, uma esmola pelo amor de Deus ou pelas divinas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo; as devotas desapareciam pelo largo, ligeiras como baratas perseguidas; algumas senhoras, no vestíbulo, arejavam-se ao sol, esperando quem lhes dizia respeito e conversando garrulamente sobre o bom desempenho da missa, sobre a excelência das vozes, a riqueza da roupa do padre e da toalha do altar e sobre a boa observância das cerimônias. Tudo agradara. A igreja estava quase vazia. D. Maria Bárbara e a neta esperavam pelo herói da função. — Cá está sua afilhada, senhor cônego! Comungue-a; veja se lhe arranca o diabo de dentro do corpo! disse a velha ao vê-lo. E, falando-lhe mais baixo, pediu-lhe com interesse que a aconselhasse bem; que lhe sacasse da cabecinha a idéia do tal cabra. E afinal afastou-se, traçando no espaço uma cruz na direção da neta. — Vai! Deus te ponha virtude, que mau coração não tens tu, minha estonteada! E saiu, para esperá-la na sala do corredor com o Benedito, que nessa ocasião aparecia, trazendo um carro da cocheira do Porto. O cônego Diogo calculara bem. A encenação da missa, os amolecedores perfumes da igreja, o estômago em jejum, o venerando mistério dos latins, o cerimonial religioso, o esplendor dos altares, as luzes sinistramente amarelas dos círios, os sons plangentes do órgão, impressionariam a delicada sensibilidade nervosa da afilhada e quebrantariam o seu ânimo altaneiro, predispondo-a para a confissão. A pobre moça considerou-se culpada; pela primeira vez, entendeu que era um crime o que havia praticado com Raimundo, sentiu minguar-lhe aquela energia de aço, que lhe inspirara o seu amor, e ao terminar a missa, quando a avó a depusera nas mãos do velho lobo da religião, a sua vontade era chorar. Ajoelhou-se, muito comovida, na cadeira, junto ao confessionário e gaguejou, quase sem fôlego, o confiteor. Mas à proporção que rezava, os seus sentidos embaciavam-se por um acanhamento espesso. — Vamos... disse-lhe o padrinho quando ela terminou a oração. Não tenha receios, minha filha... Confie em mim, que sou seu amigo... Plus videas tuis oculis quan alinis! Por que chora?... Diga... Ana Rosa tremia. — Vamos! Não chore e abra-me o coração... Vai responder-me, como se estivesse falando com o próprio Deus, que tudo escuta e perdoa... Faça o sinal da cruz!... Ela obedeceu. — Diga-me, minha afilhada, não se tem ultimamente descuidado da religião?... — Não senhor, balbuciou Ana Rosa por detrás do lenço. — Tem rezado todas as vezes que se deita e todas as vezes que se levanta?... — Tenho, sim senhor... — E nessas rezas não promete obedecer a seus pais?... — Prometo, sim senhor... — E tem cumprido? — Tenho, sim senhor. — E sente a sua consciência tranqüila? acha que tem cumprido, à risca, tudo o que prometeu a Deus, e tudo o que lhe manda a Santa Madre Igreja?... Ana Rosa não respondeu. — Então!... Vamos... disse o padre com brandura. Não tenha medo!... Isto é apenas uma conversa que a senhora tem com a sua própria consciência, ou com Deus, que vem a dar na mesma... Conte-me tudo!... Abra-me seu coração!... Fale, minha afilhada!.. Aqui, eu represento mais do que seu pai; se fosse casada — mais do que seu marido! sou o juiz, compreende, represento Cristo! — represento o tribunal do céu! Vamos, pois, conte-me tudo com franqueza; conte-me tudo, e eu lhe conseguirei a absolvição!... eu pedirei ao Senhor Misericordioso o perdão dos seus pecados!... — Mas o que lhe hei de eu contar?... E soluçava. — Diga-me: o que é que ultimamente a tem posto triste?... Sente-se possuída de alguma paixão, que a atormenta?... Diga. — Sim, meu padrinho, respondeu ela, sem levantar os olhos. — Por quem? — Vossemecê já sabe por quem é... — Pelo Raimundo... A moça respondeu com um gesto afirmativo de cabeça. — E quais são as suas intenções a esse respeito? — Casar com ele... — E não se lembre que com isso, ofende a Deus por vários modos?... Ofende, porque desobedece a seus pais; ofende, porque agasalha no seio uma paixão reprovada por toda a sociedade e principalmente por sua família; e ofende, porque, com semelhante união, condenará seus futuros filhos a um destino ignóbil e acabrunhado de misérias! Ana Rosa, esse Raimundo tem a alma tão negra como o sangue! além de mulato, é um homem mau, sem religião, sem temor de Deus! é um — pedreiro livre! — é um ateu! Desgraçada daquela que se unir a semelhante monstro!... O inferno aí está, que o prova! o inferno aí está carregado dessas infelizes, que não tiveram, coitadas! um bom amigo que as aconselhasse, como te estou eu aconselhando neste momento!... Vê bem! repara, minha afilhada, tens o abismo a teus pés! mede, ao menos, o precipício que te ameaça!... A mim, como pastor e como padrinho, compete defender-te! Não cairás, porque eu não deixo! E, como a rapariga mostrasse um certo ar de dúvida, cônego abaixou a cabeça, e disse misteriosamente: — Sei de coisas horrorosas, praticadas por aquele esconjurado!... Não é somente o fato de cor o que levanta a oposição do teu pai... (Ana Rosa fez um gesto de surpresa). Saberás, porventura, o que precedeu ao nascimento daquele homem; saberás como veio ao mundo?!.. (E, alterando a voz, para um tom sinistro): Horrible dictu!.. É filho de um enxame de crimes e vergonhas!... Aquilo é o próprio crime feito gente!... É um diabo! É o inferno em carne e osso! Não te diria isto, minha filha, se assim não fosse preciso; sabe, porém, que ele, se quer casar contigo, é porque tem a teu pai um ódio de morte e pretende vingar-se do pobre homem na pessoa da filha!... — Mas do que quer ele vingar-se de papai?... — Do quê?... De muitas e muitas coisas, que lhe não perdoa!... São segredos de família, que ainda és muito criança para conhecer e julgar!... Mas um dos motivos é, digo-te aqui no sagrado sigilo do confessionário, o fato de haver teu pai herdado consideravelmente do irmão!... — Não é possível! exclamou Ana Rosa, tentando erguer-se. — Menina! repreendeu o cônego, obrigando-a a ficar ajoelhada. Reze já! incontinenti, para que Deus se compadeça de tamanho desatino! De joelhos, pecadora! que és muito mais culpada do que eu supunha! A moça caiu de joelhos, tonta sob o bombardear daquelas imprecações, e gaguejou: o confiteor, batendo muito no peito na ocasião de dizer o “Por mea culpa! mea maxima culpa!” E depois calaram-se ambos, por um instante. — Então?... disse afinal o padre, tornando à primitiva brandura. Ainda está na mesma ou já entrou a razão nessa cabecinha?... Fale, minha afilhada! — Não posso mudar de resolução, meu padrinho... — Ainda pensa em casar com... ? — Não posso deixar de pensar... creia! O padre velho levantou-se tragicamente, fechou as sobrancelhas e ergueu o braço como um profeta. — Pois então, declamou, sabe, infeliz, que sobre ti pesará a maldição eterna! sabe que tenho plenos poderes de teu pai para retirar-te a sua bênção! sabe que... Foi interrompido por um “Ai” de Ana Rosa que perdia os sentidos, caindo a seus pés. — Ora bolas! resmungou ele, entre dentes. E saiu do confessionário, para assentar a afilhada num dos longos bancos de madeira preta, que havia ali junto. Felizmente não era nada. A rapariga deu um profundo suspiro e encostou a cabeça ao colo do padrinho, chorando em silêncio, de olhos fechados. Ele ficou algum tempo a contemplá-la naquela posição, que a fazia mais bonita, e, perdido em saudosas reminiscências da sua mocidade, admirava a curva macia dos seios, palpitantes, sob a compressão da seda, a brancura mimosa das faces, a engraçada harmonia das feições. “Ó têmpora! Ó mores!...” disse consigo a depô-la, carinhosamente, contra o alto espaldar do banco. — Vamos... continuou, quase em segredo, como um amante sequioso pelas pazes, depois de um arrufo. Vamos... não seja teimosa... Não se faça má... Ponha-se bem com Deus e comigo... — Se para isso, balbuciou Ana Rosa, sem abrir os olhos, é preciso desistir do casamento, não posso... — Mas por que não podes, minha tolinha?... insistiu o confessor, tomando-lhe as mãos com meiguice. — Hum?... por que não podes?... — Porque estou grávida! respondeu ela, fazendo-se escarlate e cobrindo o rosto com as mãos. — Horresco referens! E o cônego deu um salto para trás, ficando de boca aberta por muito tempo, a sacudir a cabeça. — Sim senhora!... fê-la bonita!... Ana Rosa chorava, escondendo a cara. — Sim senhora!... E o velho apalpava com o olhar o corpo inteiro da afilhada, como procurando descobrir nele a confirmação material do que ela dizia. — Sim senhora!... E tomou uma pitada. — Bem vê... arriscou afinal a rapariga, entre lágrimas, que não tenho outro remédio senão... — Está muito enganada! interrompeu o cônego energicamente. Está muito enganada! O que tem a fazer é casar com o Dias! E logo! antes que a sua culpa se manifeste! Ela não deu palavra. — Quanto a isso... acrescentou o lobo velho, apontando desdenhoso, com o beiço, o ventre da afilhada, eu me encarregarei de lhe dar remédio para... Ana Rosa ergueu-se com um só movimento e ferrou o olhar no cônego... — Matar meu filho?!... exclamou lívida. E, como se temesse que o padre lho arrancasse ali mesmo das entranhas, precipitou-se correndo para fora da igreja. Saiu pelo lado que fronteia com o jardim público. Maria Bárbara só a pôde alcançar já dentro do carro. — Com efeito! disse-lhe agastada. Parece antes que vens do inferno do que da casa de Deus! — É mesmo! — Que diabos de modos são esses, Anica? repreendeu a velha. Ora vejam se no meu tempo se dava disto! Por que estás com essa cara tão fechada, criatura?! Ana Rosa, em vez de responder, virou o rosto. E não trocaram mais palavra até a casa, apesar do muito que serrazinou a avó por todo o caminho. E, no entanto, a pobre moça sentia-se horrivelmente oprimida e precisava desabafar com alguém. Um desejo doido a devorava: era correr em busca de Raimundo, contar-lhe tudo e pedir-lhe conselhos e amparo, porque nele, e só nele, confiaria inteiramente. Queimava-lhe o corpo uma necessidade carnal de vê-lo, abraçá-lo, prendê-lo a ela com todo o ardor dos seus beijos, e depois — arrastá-lo para longe para um lugar oculto, bem oculto, um canto ignorado de todos, onde os dois se entregariam exclusivamente ao egoísmo feliz daquele amor. Desde que se apercebera grávida, não podia suportar o seu acanhado quarto de menina; a sua rede de solteira causava-lhe íntimas revoltas. E agora, depois de disparatar com o padrinho, sentia-se com forças para tudo; vibrava-lhe no sangue uma energia estranha e absoluta; pensava no filho com transporte e orgulho, como se ele fora uma concepção gloriosa da sua inteligência. E, na obsessão dessa idéia, alheava-se de tudo mais, sem pensar sequer na falsidade da situação em que se avinha. Aguardava ansiosa os prazeres da maternidade, como se os conquistasse por meios lícitos, e tremia toda em sobressalto só com a lembrança de que poderia vir a faltar à criancinha o menor cuidado ou o mais dispensável conforto; vivia exclusivamente para ela; vivia para esse entezinho desconhecido que lhe habitava o corpo; o filho era o seu querido pensamento de todo o instante; passava os dias a conjeturar como seria ele, menino ou menina, grande ou pequeno, forte ou franzino; se puxaria ao pai. Tinha pressentimentos e tornava-se mais supersticiosa. Apesar, porém, de todos os perigos e dificuldades, sentia-se muito feliz com ser mãe e não trocaria a sua posição pela mais digna e segura, se para isso fosse preciso sacrificar o filho. O filho! só este valia por tudo; só este lhe merecia verdadeira importância, o mais era mesquinho, incompleto, falso ou ridículo, ao lado daquela verdade que se realizava misteriosamente dentro dela, como por milagre; aquela felicidade, que Ana Rosa sentia crescer de hora a hora, de instante a instante, no seu ventre, como um tesouro vivo que avulta; aquela outra existência, que esgalhava da sua existência e que era uma parcela palpitante do seu amado, do seu Raimundo, que ela trazia nas entranhas! Ao chegar a casa, correu logo para seu quarto, fechou-se por dentro, tomou pena e papel e escreveu, sem tomar fôlego, uma enorme carta ao rapaz. “Vem, dizia-lhe, vem quanto antes, meu amigo, que preciso de ti, para não acreditar que somos dois monstros! Se soubesses como me fazes falta! como me dóis ausente, terias pena de mim! Vem, vem buscar-me! se não vieres até o fim do mês, irei ter contigo, irei ao teu encontro, farei uma loucura!” Mas Raimundo respondeu que ainda era cedo e pediu-lhe que esperasse com resignação o momento de pôr em prática o que eles já tinham antes combinado. O rapaz vivia agora muito aborrecido e muito nervoso; estava macambúzio; não queria ver ninguém. Às vezes, assustava-se todo quando a criada lhe entrava inesperadamente no quarto. Deixou crescer a barba; já mal cuidava de si; lia pouco e ainda menos escrevia. As suas relações, granjeadas por intermédio do tio, fecharam-se logo como golpes em manteiga. Não se despregava nunca de casa, porque, sendo Ana Rosa o único motivo de sua demora no Maranhão, só ela o interessava e o atraía à rua. Ana Rosa, porém, era guardada à vista, desde a malograda partida do primo. E, não obstante, as visitas de Manuel abstinham-se de falar em Raimundo; estabeleceu-se uma hipócrita indiferença em torno do fato; ninguém dava palavra a esse respeito, mas todos sentiam perfeitamente que o escândalo ali estava ainda, abafado, mas palpitante, espreitando a primeira ocasião para rebentar de novo. E a panelinha da casa do negociante esperava, esperava, reunida à noite até as horas regimentais do chá com o pão torrado, conversando em mil assuntos, menos naquele que mais interessava a todos eles, posto que nenhum tivesse coragem de iniciá-lo. Mas a primeira semana correu sem novidade, e a segunda, a terceira, a quarta; foram-se dois meses, e a panelinha afrouxou desanimada. Eufrásia, a pouco e pouco, ausentara-se de todo; Lindoca, chumbada à sua obesidade, prendera o Freitas ao seu lado; o Campos moscara-se afinal para a roça; o José Roberto afastara-se também, e vivia por aí, na pândega; só quem não desertou, e aparecia com a mesma regularidade, era D. Amância Sousellas pronta sempre para tudo, sempre a dizer mal da vida alheia, nunca deixando de clamar que os tempos estavam outros e que hoje em dia os cabras queriam meter o nariz em tudo. — Também se lhe dão confiança!... disse ela, uma noite envesgando uma olhadela indireta sobre Ana Rosa. A filha de Manuel cruzou instintivamente os braços sobre o ventre. 17 E passaram-se três meses. Ana Rosa, ao contrário do que era de esperar, parecia mais tranqüila; a vigilância contra ela diminuíra consideravelmente: o cônego, fosse por cálculo ou fosse por cumprimento de dever, guardara o segredo da confissão. A casa de Manuel havia, enfim, recaído na sua morna e profunda tranqüilidade burguesa. De tudo isto Raimundo recebera parte fielmente; e deliberou jogar a última cartada. Escreveu à amante, marcando o dia da fuga. Ana Rosa adoeceu de contente. A coisa seria no próximo domingo; ele faria um carro esperá-la ao canto da rua, e, uma vez que estivessem juntos, fugiriam para lugar seguro. O raptor não seria facilmente reconhecido, porque as barbas lhe transformavam de todo a fisionomia. “No entanto, dizia ele na carta, domingo, às oito da noite, hora em que teu pai costuma conversar na botica do Vidal; quando os vizinhos e caixeiros ainda estão no passeio, e tua avó aos cuidados da Mônica, que é nossa, nessa ocasião, um sujeito barbado, vestido de preto, assoviará junto à tua porta uma música tua conhecida. Esse sujeito sou eu. Ao meu sinal descerás cautelosamente e sem risco algum. O resto fica por minha conta, a casa que nos há de receber e o padre que nos casará, estarão nesse momento à nossa disposição. Ânimo! e até domingo às oito horas da noite.” “P.S. — Toda a cautela é pouca!...” Ana Rosa durante os poucos dias que faltavam para a fuga, não fazia mais do que sonhar-se na futura felicidade; estava sobressaltada e ao mesmo tempo radiante de satisfação; mal se alimentava, mal dormia, cheia de uma impaciência frenética, que lhe dava vertigens de febre. No egoísmo da sua alegria materna suportava de mau humor as poucas amigas que a procuravam ou os velhos companheiros de Manuel, que às vezes apareciam para jantar. Mas ninguém parecia, nem por sombras, desconfiar dos seus planos; ao contrário, em casa falava-se, à boca cheia, na obediência daquela boa filha tão resignada à vontade do pai, e cochichava-se devotamente sobre o salutar efeito da confissão. Maria Bárbara resplandecia de triunfo e, como os outros da família, redobrava de solicitudes para com a neta; Ana Rosa era tratada como uma criança convalescente de moléstia mortal, cercavam-na de pequenas delicadezas e mimos amorosos, evitavam-lhe contrariedades, perdoavam-lhe os caprichos e as rabugices. O cônego, malgrado o que sabia, nunca se lhe mostrara tão paternal e tão meigo. E o Dias, o inalterável Dias, ia surdamente ganhando certo predomínio sobre os seus colegas, que principiavam já a respeitálo como patrão, porque viam iminente o seu casamento com Ana Rosa. — Está de dentro! Está ali, está entrando pra sociedade!... rosnavam os caixeiros do Pescada, depois de comentar os novos ares com que a menina tratava Luís. Ela com efeito, agora o acolhia com menos repugnância; uma vez chegou mesmo a sorrir para ele. Este sorriso, porém, tão mal-entendido por todos, nada mais era do que o contentamento de quem observa o precipício por onde passou e do qual se considera livre. O fato, porém, é que Manuel andava satisfeito de sua vida. Ouviam-no cantarolar ao serviço; viam-no à porta dos vizinhos, sem chapéu, às vezes em mangas de camisa, a chacotear ruidosamente, afogado em riso; e à noite, em casa, quando chegava o cônego, agora ferrava-lhe sempre um abraço. — Você é um homem dos diabos, seu compadre! Você é quem as sabe todas!... — Davus sum non Aedipus!... A panelinha discutia em particular o grande acontecimento. “Quem seriam os padrinhos?... Quais seriam os convidados?... Como seria o enxoval?... Como seria o banquete?...” E, em breve, por toda província falou-se no próximo casamento da filha do Pescada. Comentaram-no, profetizando boas e más conseqüências; riram-se muito de Raimundo; elogiaram, em geral, o procedimento de Ana Rosa: “Sim senhor! pensou como moça de juízo!...” Todos os amigos da casa começaram a preparar-se para a festa, antes mesmo do convite. O Rosinha Santos andava pouco depois preocupado com o improviso de uma poesia, com que contava reabilitar-se do seu fiasco no dia de São João; o Freitas desfazia-se em discursos, aprovando o fato, mas lastimando Raimundo, cujos artigos e cujos versos ele apreciava convictamente; o Casusa verberava contra os portugueses, furioso porque uma brasileira tão bonita e tão mimosa fosse cair nas mãos de um puça fedorento; Amância e Etelvina perdiam horas a boquejar sobre o caso, insistindo a viúva em que, só vendo, acreditaria em semelhante casamento. Afiaçavam por toda a parte que a festa seria de arromba; diziam, com assombro respeitoso, que haveria sorvetes, e constava até que o Pescada, só para aquele dia, ia fazer funcionar de novo a máquina de gelo de Santo Antônio. Mas o domingo fatal, que Raimundo destinara a fuga, chegou finalmente. Por sinal que foi um dia bem aborrecido para a gente do Manuel, porque o cônego não apareceu, como de costume, para a palestra, e ninguém sabia por onde andava o Dias. O jantar correu frio, sem pessoas de fora, mas em boa disposição de humor; à mesa, o negociante fez várias considerações sobre o futuro da filha; mostrouse bom e alegre com o seu copo de Lisboa; acudiram-lhe anedotas já conhecidas da família; vieram-lhe pilhérias a respeito de casamento; disse, a brincar com a filha, que havia de arranjar-lhe para noivo o Tinoco ou o major Cotia. Ela ria-se exageradamente; estava corada, muito inquieta e nervosa; tinha vontade de acariciar o pai, abraçá-lo, beijá-lo ao despedir-se dele. À sobremesa, sentiu um desejo absurdo de contar-lhe com franqueza todos os seus planos, pedir-lhe, pela última vez, a sua aprovação a favor de Raimundo. Às seis horas entrou D. Amância; ainda os encontrou no café. Ana Rosa teve uma pontada no coração. “Que contratempo!...” A velha declarou que estava cansada, vinha ofegante; pediu que a deixassem repousar um pouco. — Que estafa a sua, credo! Subir oito ladeiras no mesmo dia!... — Oito, hein?... E Ana Rosa mordia os beiços, sorrindo contrariada. — Coitadinhas! É de estrompar uma criatura! E conversaram largamente sobre as ladeiras do Maranhão. — Então aquela do Vira Mundo!.. Benza-te Deus! — Não é pior do que a do Largo do Palácio... — Deixe estar que a desta sua rua, seu Manuel, também tem o que se lhe diga!... — E a da Rua do Giz?... — Um inferno! resumiu a velha, ainda arquejante. Ter a gente de estar sempre a subir e a descer como uma coisa danada! Cruzes! A conversa continuou, tomando para Ana Rosa um caráter assustador. Amância parecia disposta a dar à língua; não se despregaria dali tão cedo. Os caixeiros recolhiam-se já, e a rapariga tremia de impaciência. “Diabo daquela velha não se poria ao fresco?... “ Qual! O tempo corria. Manuel declarou, daí a pouco, que não saía de casa. Foi buscar os seus jornais portugueses e pôs-se a ler, à mesa de jantar, na varanda. A pequena quase que disparava. Correu para o seu quarto, fula de raiva, chorando. “Também, diabo! tudo parecia conspirar contra ela!.. “ O relógio bateu uma badalada. Eram sete e meia. Ana Rosa soltou um murro na cabeça. “Diabo!” Manuel bocejava. Amância parecia resolvida a não sair. Ana Rosa voltou à varanda; tinha as mãos frias; o coração queria saltar-lhe de dentro. Sentia uma impaciência saturada de medo; seu desejo era gritar, descompor aquele estafermo da velha, pô-la na rua, aos empurrões, “que fosse amolar a avó!” Semelhantes obstáculos à sua fuga pareciam-lhe uma injustiça, uma falta de consideração; vinha-lhe vontade até de queixar-se ao pai; de protestar contra aquelas contrariedades que a faziam sofrer. Decorreu um quarto de hora. Manuel levantou-se, espreguiçando-se com os jamais na mão. — Bom! D. Amância dá licença!... E recolheu-se ao quarto, para dormir. — Ah! Ana Rosa criou alma nova; teve vontade de abraçar o pai, agradecendo-lhe tamanha fineza. — Eu também já me vou chegando... disse Amância. E ergueu-se. — Já?... balbuciou a moça por delicadeza. A visita tornou a assentar-se; a outra sentiu ímpetos de estrangulá-la. Maria Bárbara veio do quarto, e entabulou conversa com a amiga. Ana Rosa arfava. — Diabo! Faltavam cinco para as oito. Amância levantou-se afinal, e despediu-se. — Ora graças a Deus!... Maria Bárbara foi até o corredor. — Olhe, gritou a Sousellas. Não se esqueça, hein?... Três pingos de limão e uma colherzinha de água de flor de laranja.... Santo remédio! Ainda é receita da nossa defunta Maria do Carmo!... E desceu. Mas, já debaixo, voltou, chamando por Maria Bárbara. — Olhe, Babu! Ana Rosa quase perde os sentidos. Deixou-se cair em uma cadeira. — É verdade, você não sabe de uma?...— Pois não lhe ia esquecendo?...— A Eufrasinha estava de namoro com um estudante do Liceu?... — Que estouvada!... — Um menino de quinze anos, criatura! E contou toda a história, puxando pelos comentários, e esticando-os. Ana Rosa, assentada na varanda, em uma cadeira de balanço, rufava com as unhas nos dentes. — Bem, bem, adeus, minha vida! E Amância beijocou a cara de Maria Bárbara. — Até que enfim! Ana Rosa correu logo ao quarto. Raimundo recomendara-lhe que não levasse nada, absolutamente nada, de casa, que ele estava preparado e prevenido para recebê-la. O relógio pingou, inalteravelmente, oito badaladas roucas. Maria Bárbara afastara-se para o interior da casa; Manuel continuava a dormir no seu quarto. E daí, a instantes, no silêncio da varanda, ouvia-se o assobio forte de Raimundo, entoando um trecho italiano. Ana Rosa, cujo coração fazia do seu peito um círculo de ginástica, apanhou trêmula as saias e, com uma ligeireza de pássaro que foge da gaiola, desceu a escada na ponta dos pés, atirando-se lá embaixo nos braços de Raimundo, que a esperava nos primeiros degraus. Mas, ao transporem a porta da rua, ela soltou um grito, e o rapaz estacou, empalidecendo. Do lado de fora, o cônego Diogo e o Dias, acompanhados por quatro soldados de polícia, saíram ao seu encontro, cortando-lhes a passagem. Dias, só por si, era um pobre pedaço de asno, incapaz da mínima sutileza de inteligência e pouco destro na pontaria dos seus raciocínios; posto, porém, ao serviço do cônego Diogo, tornara-se uma arma perigosa, de grande alcance e maior certeza. Guiado pelo mestre, o imbecil nunca tinha deixado de espreitar, sempre desconfiado e atento, sondando tudo aquilo que lhe parecia suspeito, acordando, muita vez, por alta noite, para ir, tenteando as trevas, espiar e escutar, na esperança de descobrir alguma coisa. As furtivas conversas de Ana Rosa com a preta Mônica, quando esta voltava da fonte, não lhe passaram despercebidas e por aí chegou ao conhecimento da correspondência de Raimundo, desde logo as primeiras cartas. — Devo apoderar-me delas... não é verdade? perguntou ao padre. — Nada! Por ora não! É cedo ainda!... respondeu Diogo. E este continuava a freqüentar assiduamente a casa do compadre, sempre muito solícito pela saúde da sua afilhada, informando-se, com paternal interesse, das mais pequeninas coisas que lhe diziam respeito, querendo saber quais os dias em que ela comia melhor, quais em que se sentia alegre ou triste, quando chorava, quando se enfeitava, quando acordava tarde e quando rezava. Como bom velho amigo da família, exigia que lhe dessem contas de tudo, e Manuel as dava de bom grado, satisfeito por ver que as coisas iam voltando aos seus eixos e que a sua casa recaía na primitiva tranqüilidade. O cônego, nem por sombra, lhe revelara o segredo da confisão de Ana Rosa, temendo, como solidário do Dias, que o negociante, em conjuntura tão feia, esquecesse tudo e preferisse casar a filha com o homem que a desvirtuara. Quanto ao seu protegido, também não lhe quadrou dizer-lhe a verdade, porque receava que o caixeiro, por escrúpulo ou por medo do rival, desistisse do casamento... Ora, desistindo o Dias, Diogo estaria em maus lençóis, porque Ana Rosa casava-se logo com Raimundo e ele ficaria sujeito a vingança deste, a quem temia, e com razão, depois daquela pequena conferência à volta de São Brás. “Sei perfeitamente, raciocinava o finório, que o traste não tem nenhuma prova contra mim, mas convémme, a todo custo, fazê-lo sair do Maranhão!... Seguro morreu de velho!... O que o prende aqui é a esperança de obter ainda Ana Rosa; esta, uma vez casada com o basbaque do Dias, irá, mais o marido, dar um passeio à Europa, e o outro musca-se naturalmente. Mas se, por acaso, quiser antes de ir, desmoralizar-me perante o público, todos lançarão suas palavras à conta do despeito e, além de ridículo, ficará tido como um caluniador!...” E, esfregando as mãos, satisfeito com os seus desígnios, concluía: “Quem o mandou meter-se de gorra cá com o degas!...” Assim, nas ocasiões em que Dias ia preveni-lo da chegada de uma nova carta de Raimundo, o cônego tratava de estudar, com olho de mestre, a impressão que ela deixava no ânimo de afilhada e, vendo o alvoroço em que a rapariga ficara com a última, apressou-se em dizer ao caixeiro: — Chegou a vez, meu amigo, é agora! Atire-se! Precisamos desta carta! — E por que nunca precisamos das outras?... perguntou Luís estupidamente. — Por quê?... Ora eu lhe digo... (Você pilhou-me em boa maré!). As outras cartas eram simples palavrórios de namoro; não valia a pena arriscar-se a gente por elas; demais, minha afilhada podia vir a desconfiar da coisa, redobraria de cuidado, e agora a aquisição desta, que nos é imprescindível, não seria tão fácil, como há de ser, compreende? Mas a verdadeira causa não a revelou o disfarçado. O cônego não queria que o caixeiro lesse as primeiras cartas de Raimundo, por dois motivos: um, porque temia que este fizesse em alguma delas qualquer revelação a respeito do crime de São Brás; e segundo, porque receava que incidentalmente se referissem elas ao interessante estado de Ana Rosa. O certo, porém, é que semelhante medida facilitou, sem dúvida, a posse da carta, em que Raimundo marcava o dia da fuga. O caixeiro, engodando o Benedito com uma cédula de dez mil réis, obteve-a no mesmo instante; copiou-a logo, restituiu-a, e correu à casa de Diogo. Então, os dois aliados, senhores já dos planos do inimigo, trataram de cortar-lhe o vôo, recorrendo à polícia, que lhes forneceu quatro praças. O escândalo, como era de prever, reuniu povo na Rua da Estrela, e Manuel acordou sobressaltado aos gritos da sogra, da Brígida e da Mônica, que, sem darem por falta de Ana Rosa, assustavam-se com a presença dos soldados e com o alvoroço da gentalha acumulada na porta do sobrado. Maria Bárbara, toda sarapantada, correu aos gritos para seu quarto e, abraçando-se a um santo, encafuou-se na rede, porque não estava em suas mãos ver fardas e baionetas “sentia logo um formigueiro pelas pernas e o estômago num embrulho! Credo!” Raimundo, entretanto, não descoroçoou com a situação e subia a escada, sem hesitar, levando consigo Ana Rosa, meio desfalecida. Em cima, deu cara a cara com Manuel, e estacou fitando-se os dois com a mesma firmeza, porque cada um tinha plena consciência dos seus atos. O padre e o caixeiro subiram em seguida, acompanhados pelos soldados. Juntos todos, a situação tornou-se difícil; o silêncio coalhava em torno deles, imobilizando-os. Afinal o cônego puxou pelo seu farto lenço de seda da Índia, assoou-se com estrondo e declarou, depois uma máxima latina, que, na qualidade de amigo e compadre do pai de Ana Rosa, entendeu de sua obrigação evitar o criminoso rapto que o Sr. Dr. Raimundo, ali presente, tentara perpetrar contra um dos membros daquela família. A rapariga voltara a si com as palavras do padrinho e escutava-o de cabeça baixa, ainda amparada ao ombro de Raimundo. — Eu ia por minha vontade... murmurou ela, sem levantar os olhos. Fugia com meu primo, porque esse era o único meio de casar com ele... — E o senhor, como se explica?... perguntou o cônego a Raimundo, com autoridade. — Não me defendo, nem aceito o juiz; apenas declaro que esta senhora nenhuma responsabilidade tem no que se acaba de passar. O culpado sou eu: bem ou mal, entendi, e entendo, que hei de casar com ela e para isso empregarei todos os meios. Ana Rosa ia dizer alguma coisa, o cônego atalhou: — Vamos todos cá pra dentro! E, depois de despedir os soldados, seguiram para a sala, de cuja entrada Maria Bárbara os espiava, ainda corrida e espantadiça do susto. — Agora que estamos em família, acrescentou ele, fechando as portas, resolvamos, como homens de boa e sã justiça, o que nos cumpre fazer em tão melindrosa situação!... Hodie mihi, cras tibi!... Seu Manuel, primeiro você! Tem a palavra! Manuel passeava ao comprido da casa. Parou, fazendo face ao sofá, onde estavam todos, e dirigiu-se ao grupo. O pobre homem tinha uma grande tristeza na fisionomia; transparecia-lhe no olhar a sua perplexidade, impondo o respeito e a compaixão, que nos inspiram as dores resignadas. Percebiase que lhe faltavam as palavras, e que o infeliz lutava para expor as suas idéias de um modo fiel e claro. Afinal, voltou-se para o cônego e declarou que estimava bastante vê-lo, naquele momento, ao seu lado. “O compadre fora sempre o seu guia, o seu companheiro, o seu melhor amigo, como, ainda uma vez, acabava de prová-lo. Ficasse pois e ouvisse, que era da família!” Depois, pediu à sogra que se aproximasse. “A presença dela e a sua opinião eram igualmente imprescindíveis.” E passou ao caixeiro: “Ali o seu Dias também devia ficar porque não representava um simples empregado, que Manuel tinha no armazém; representava um colega zeloso, um futuro sócio, que em breve devia fazer parte dos seus por direito, que de fato já o era, havia muito tempo. Achavam-se por conseguinte na maior intimidade, e ele, para descargo da sua consciência, podia falar com franqueza ao Dr. Raimundo e dizia-lhe tudo, pão-pão, queijo- queijo, o que pensava a respeito do ocorrido!” E, depois de uma pausa, declarou que, desde o momento em que pensara no casamento de sua filha, fora sempre com sentido no futuro e na felicidade dela. “Não fossem supor que ele queria casá-la com algum príncipe encantado ou com algum sábio da Grécia!... senhor! o que queria era dá-la a um homem de bem e trabalhador como ele; mas, com os diabos! que fosse branco e que pudesse assegurar um futuro tranqüilo e decente para os seus netos! Vai ele então — pensou no Dias: lá lhe dizia não sei o que por dentro que ali estava um bom marido para Anica. Um belo dia, descobriu da parte do rapaz certa inclinação por ela e ficara satisfeito, prometendo logo, com os seus botões, dar-lhe sociedade na casa, se porventura se realizasse o casamento... Ora, bem viam os circunstantes que, em tudo aquilo, Manuel só tinha em vista o bem da rapariga... nem acreditassem que houvesse por aí pais, tão desnaturados que chegassem a desejar mal para os seus próprios filhos! Qual o quê, coitados! o que às vezes queriam era prevenir o mal, que só depois havia de aparecer! Como agora poderia ele, que só tinha aquela, que só possuía a sua Anica, que a educara o melhor que pudera, que embranquecera a cabeça a pensar na felicidade daquela filha; ele, que lhe fazia todas as vontades, todos os caprichos! ele, que seria capaz dos maiores sacrifícios por amor daquela menina!.. como poderia pois contrariá-la, causar-lhe mal, só por gosto?. . Então os senhores achavam que isso tinha cabimento?... Ele desejava vê-la casada, por Deus que desejava! não a criara pra feira!... mas, com um milhão de raios, desejava vê-la casada em sua companhia! Queria vê-la feliz, satisfeita, cercada de parentes e amigos; mas, boas! na sua terra, ao lado de seu pai! Ora essa! pois então um homem, por estar velho, já não tinha direito ao carinho de seus filhos?... Ou, quem sabe, se a filha, por estar mulher, já não devia saber do pai? — Morre p’r’aí, calhamaço, que me importa a mim! — Não! que isso também Deus não mandava!... Queria ir-se embora? queria deixar o pobre velho, ali, sozinho sem ter quem lhe quisesse bem, sem ter quem tratasse dos seus achaques?... podia ir! Que fosse! mas esperasse um instante, que ele fechasse os olhos primeiro, sua ingrata!” E Manuel, enxugando os olhos na manga do paletó conclui com a voz trêmula: — Aí têm os senhores o que eu pensava fazer; porém vai o diabo, chega do Rio um meu sobrinho bastardo, um filho do defunto mano José com a preta Domingas, que foi sua escrava! Como era de esperar, visto que sempre me encarreguei dos negócios de meu irmão e ultimamente dos de meu sobrinho, hospedei-o cá em casa; Raimundo afeiçoou-se à minha filha; ela a modos que lhe correspondeu; ele vem, pede-ma em casamento; vou eu — nego-lha! Ele quer saber o porquê, e eu dou-lhe a razão com franqueza! Pois bem! Vejam! este homem deixa de fazer uma viagem, que, para me iludir, fingiu que ia fazer, e, depois de andar por aí a esconder-se de todos, falta à sua palavra de honra, e... — Senhor, gritou Raimundo. — Senhor, não! vossemecê deu-me a sua palavra em como nunca procuraria casar com Anica! Por conseguinte, digo e sustento: depois de ter faltado à sua palavra de honra, vem astuciosamente raptar minha filha! Será isto legal?! Não haverá nos códigos desta terra uma pena para semelhante abuso?!.. — Há, disse o rapaz, reconquistando o sangue frio, há, quando o delinqüente se nega a reparar o delito com o casamento.. Eu, porém, não desejo outra coisa!... — Iche! disparatou Maria Bárbara, saltando em frente. Casar minha neta com o filho de uma negra?! Você mesmo não se enxerga! Manuel sentiu-se embaraçado. — Apelo, suplicou, para a consciência de cada um! Coloquem-se no meu lugar e digam o que fariam!... Mas parece-me que nós o que devemos é acabar com isto e evitar um escândalo maior!... Compreendo perfeitamente que o Dr. Raimundo não tem culpa da sua procedência e, como é um homem de juízo e de bastante saber, espero que a pedido de nós todos, deixará o Maranhão quanto antes!... — Amém!... aprovou o cônego — E eu, desde já, propôs Luís, obedecendo a um sinal do guia peço a mão da senhora D. Anica... — Não quero! exclamou Ana Rosa, ainda mesmo que Raimundo me abandone! — É uma injustiça que me faz, observou este último à moça. Sei perfeitamente cumprir com os meus deveres! — Como com os seus deveres?!... interrogou Maria Bárbara, refilando os dentes — Sim, minha senhora com os meus deveres! — Então, o senhor não parte, definitivamente?! interveio Manuel. — Juro que não me retirarei do Maranhão, sem ter casado com sua filha! respondeu o rapaz, calmo e resoluto. — E eu declaro, berrou a velha, que você não há de casar com minha neta enquanto eu viva for! — E eu retiro a minha benção de minha afilhada, se ela não obedecer a sua família... reforçou o cônego. Raimundo cravou-lhe um olhar, que perturbou o padre. E Ana Rosa ergueu-se, levantando a cabeça. Brilhava-lhe no rosto, embaciado pelas lágrimas, o reflexo de uma grande e dolorosa resolução. Todas as vistas se voltaram para ela; estava pálida e comovida, seus lábios tremiam; mas afinal, vencendo a onda vermelha do pudor que a sufocava, balbuciou: — Tenho por força de casar com ele... Estou grávida! Foi um choque geral. Até o próprio cônego, para quem o estado da moça não era segredo, pasmou de ouvi-la. Manuel caiu sobre uma cadeira, fulminado com os olhos abertos, arquejante. O Dias fez-se da cor de um cadáver. E Raimundo cruzou os braços: enquanto Maria Bárbara, espumando de raiva, saltava para junto da neta, escondendo-a com o corpo, como se quisesse defendê-la do amante. — Nunca! Nunca! bramiu a fera. Grávida?... Embora! Antes morta ou prostituída!... — Pchit... fez o cônego. E disse em tom misterioso e suplicante: — Mais baixo!... mais baixo!... Olhe que a podem ouvir da rua, D. Babita! ... —Tu estás de barriga?... exclamou por fim Manuel, erguendo-se, vermelho de cólera. E arrancou para a filha, com os punhos cerrados. Raimundo repeliu-o, sem lhe dar palavra. — O senhor é um malvado, invectivou o pobre pai, afastando-se para um canto a soluçar. O rapaz foi ter com ele e pediu-lhe humildemente que o perdoasse e lhe desse Ana Rosa por esposa. O negociante não respondeu e pôs-se a praguejar entre lágrimas. — Calma! calma! aconselhou o cônego, passando-lhe o braço no ombro. Vamos ver o que se pode arranjar!... só para a morte não há remédio... Mente’m hominis spectate, non frontem!... — Arranjem lá seja o que for, menos o casamento de minha neta com um negro! — Sim senhora, D. Maria Bárbara... Minima de malis!... E o cônego, depois de tomar uma pitada, voltou-se cortesmente para o Dias: — O senhor, ainda há pouco, pediu a meu compadre a mão de minha afilhada, não é verdade? — Sim senhor. — Pois o seu pedido está de pé, e eu lhe darei a resposta amanhã à tarde. Pode retirar-se. — Porém... Diogo não lhe deu tempo para mais. Conduziu-o até à porta e segredou-lhe rapidamente: — Espere por mim no canto da Prensa. Vá! O Dias fez um cumprimento e saiu. O cônego tornou a meio da sala, para dirigir-se a Raimundo. — Quanto aqui ao Sr. Doutor, diz que está disposto a reparar o seu crime. — É exato. — Sim senhor, é muito natural... é muito bonito até!... Mas,... continuou, estalando os lábios, diz por outro lado o meu compadre, diz a senhora D. Maria Bárbara e diz este seu humilde servo, que V.S.ª não está no caso de reabilitar ninguém!... Suspecta malorum beneficia!... O que V.S.ª chama reparação, longe de salvar, prejudicaria e aviltaria ainda mais a vítima!... — Canalha! gritou Raimundo, perdendo de todo a paciência e agarrando o padre pelo pescoço — Esmago-te aqui mesmo, bandido! E repulsou-o das mãos, com medo de matá-lo. Manuel e a sogra acudiram, cheios de indignação contra Raimundo; enquanto o cônego puxava para o lugar a sua volta de rendas e endireitava a batina, resmungando: — Espere lá, meu amigo! isto não vai à força!... Hoo avetart Deus!... Sabemos perfeitamente que V.S.ª é muito boa pessoa... Apre! Mas... há de concordar que não tem o direito de pretender a mão de minha afilhada! Nem a murros me obrigará a negar que o senhor é... — Um cabra! concluiu a velha com um berro. É um filho da negra Domingas! alforriado à pia! É um bode! É um mulato! — Mas afinal, com todos os diabos! a que pretendem chegar? gritou Raimundo, batendo com o pé. Desembuchem! — É que, respondeu o cônego, inalteravelmente; nós, para evitarmos que o escândalo prossiga, vamos oferecer-lhe de novo o único alvitre a seguir, e olhe que poderíamos, sem mais delongas, processálo em regra, se assim o entendêssemos!... Mas... para que negar?... não acreditamos que o senhor abusasse da inocência desta menina!... aquela declaração de há pouco nada mais foi do que um simples estratagema, urdido por V.S.ª, com o fim de realizar os seus intentos. Enganou-se! Sabemos que ela está tão pura como dantes! O que se tem a fazer, por conseguinte, é isto: O doutor vai retirar-se quanto antes desta terra, retire-se imediatamente, sob pena de ser justiçado como o entendermos melhor! Raimundo foi buscar o chapéu. O cônego atalhou-lhe à saída. — Então! Que decide? — Fomente-se! respondeu-lhe aquele, e encaminhou-se para Ana Rosa, que chorava, encostada à parede. — Ainda nos resta um meio… A senhora é maior. Amanhã terás notícias minhas. Juro que serei seu esposo! — E eu juro que sou tua! exclamou ela, lançando-se para acompanhá-lo até à porta. — Cale-se! ordenou Manuel, obrigando-a a retroceder com um empurrão. — Bem!... resmungou o padre, logo que Raimundo saiu. Seja!... Ana Rosa correu a fechar-se no quarto. Manuel deixou-se cair numa cadeira, abafando nas mãos os seus soluços; Maria Bárbara continuou a praguejar, voltando agora contra o genro todo o seu desespero; e o cônego, indo ter, ora com um, ora com outro, procurava acalmá-los, prometendo arranjar tudo. “Que se deixassem daquela arrelia... a situação não era também lá essas coisas!... Não valia a pena afligirem-se de semelhante modo!... Fiassem-se nele, que tudo se arranjaria decentemente!... O negócio da gravidez era uma patranha, engendrada à última hora!... Pois, então, se houvesse nisso alguma verdade, a pequena não lha teria confessado?… E daí a pouco descia a escada, rangendo nos degraus os seus sapatos de polimento. — Aqui estou, senhor cônego, Podemos ir? Perguntou-lhe o Dias, no canto da Prensa logo que se reuniram. — Espere! espere lá meu amigo! Para que lado seguiu o homem? — Desceu o Beco da Prensa. — Então temos ainda o que fazer por cá... E dirigiu-se ao cocheiro de um carro que estacionava na esquina, falou-lhe em voz baixa, e o carro afastou-se. — Bem, disse, tornando ao caixeiro, agora escondamo-nos aqui, por detrás deste lote de pipas. — Para quê? — Para não sermos vistos pelo cabra, quando passar. E ficaram conspirando em voz baixa, até que Raimundo apareceu de volta na entrada do beco. Fora despedir um escaler, que estava lá embaixo às suas ordens, na praia. A luz do lampião da esquina bateu-lhe em cheio no rosto, porque ele trazia o chapéu de feltro derreado para a nuca. Parou um instante, hesitando, procurou o seu carro, e afinal resolveu, com um gesto de impaciência, descer para o lado da Praça do Comércio. — Bom! murmurou misteriosamente o padre ao companheiro. Siga-o, mas em distância que não seja percebido... E, se ele demorar-se muito na rua, faça o que lhe disse! Tome! E passou-lhe, sem levantar o braço, um objeto, que o Dias teve escrúpulos em receber. — Então?! insistiu Diogo. — Mas... — Mas o que?... Ora não seja besta! Tome lá! O outro quis ainda recalcitrar, o cônego acrescentou: — Não seja tolo! Aproveite a única ocasião boa, que Deus lhe oferece! Faça o que lhe disse — será rico e feliz! Audaces fortuna juvat!... Agradeça à Providência o meio fácil que lhe depara, e que estou vendo agora que você não merecia!... A maior parte dos homens poderosos tiveram. coitados! muito maiores provações para chegar aos seus fins! Ande daí! não seja ingrato com a fortuna que o protege!... Também era só o que faltava, que, por um instante de medo infantil, você perdesse o trabalho de tantos anos!.. afianço-lhe, porém, que ele não teria para com você a mesma hesitação, como há de acontecer naturalmente … — Vossa Reverendíssima acha então que?… — Acho não, tenho plena certeza! “Quem o seu inimigo poupa, nas mãos lhe morre!” Mas, quando mesmo ele não o mate, será isto razão para que você não o extermine?… Ora, diga-me cá, mas fale com franqueza! você está ou não resolvido a casar com a minha afilhada?... — Estou sim senhor. — Bem! Pois lembro-lhe somente que um homem de cor, um mulato nascido escravo, desvirtuou a mulher que vai ser sua esposa, e isto, fique sabendo, representa para você, muito maior afronta que um adultério! Assiste-lhe, por conseguinte, todo o direito de vingar a sua honra ultrajada; direito este que se converte em obrigação perante a consciência e perante a sociedade! — Mas... — Imagine-se casado com Ana Rosa e o outro no gozo perfeito da vida; a criança, já se sabe, parecida com o pai... Pois bem! lá chega um belo dia em que o meu amigo, acompanhando sua família, topa na rua, ou dentro de qualquer casa, com o cabra!... Que papel fará você, seu Dias?... com que cara fica?... O que não dirão todos?... e, vamos lá, com razão, com toda a razão! E a criança? a criança, se continuar a viver, o que não julgará do basbaque que a educou?... Sim, porque, convença-se de uma coisa! com a existência de Raimundo, o filho deste virá fatalmente a saber de quem descendeu! Não faltará quem lho declare! — Isso é! — Mas, apesar de tudo, se os partidos fossem iguais, ainda vá! Assim, porém, não acontece; você conquistou a sua posição naquela casa com uma longa dedicação, com um esforço de todos os dias e de todos os instantes; você enterrou ali a sua mocidade e empenhou o seu futuro; você deu tudo, tudo do que dispunha, para receber agora o capital e os juros acumulados! E o outro? o outro é simplesmente um intruso que lhe surge pela frente, é um especulador de ocasião, é um aventureiro que quer apoderar-se daquilo que você ganhou! O que pois lhe compete fazer? — Repeli-lo! Fizeram-selhe todas as admoestações; ele insiste — mate-o! Qual é o direito dele? Nenhum! Um negro forro à pia não pode aspirar à mão de uma senhora branca e rica! É um crime! é um crime, que o facínora quer, a todo transe, perpetrar contra a nossa sociedade e especialmente contra a família do homem a quem você se dedicou, uma família que, por bem dizer, já é sua, porque Manuel Pedro tem sido para você um verdadeiro pai, um amigo sincero, um protetor que devia merecer-lhe, ao menos, o sacrifício que você agora duvida fazer por ele! É uma ingratidão! nada mais, nada menos! Mas a justiça divina, seu Dias, nunca dorme! Deus tentou fazer de você um instrumento dos seus sagrados desígnios, e você se recusa... Muito bem! Eu com isso nada mais tenho! é lá com a sua consciência!... Lavo as mãos! Como sacerdote, e como amigo do seu benfeitor, já fiz e já disse o que me cumpria; o resto não me pertence! Faça o que entender! — Sim... mas... — Apenas lhe observo o seguinte: ainda mesmo que Raimundo não consiga realizar o casamento com Ana Rosa, o que, aliás, é impossível, porque ela é maior e o outro tem por si a justiça, fique certo de que, enquanto viver aquele homem, a mãe do filho dele nunca fará o menor caso de você!... Isso é o que lhe afianço! — Mas o pai pode obrigá-la a casar comigo... — Não seja pedaço de asno, que uma rapariga naquelas condições não se casa senão por gosto próprio! mas, quando assim não fosse, aceitando a hipótese absurda de que o pai a obrigasse, isso então seria muito pior para você! Era só o Raimundo dizer, em qualquer tempo, a Ana Rosa: “Vem cá!” e ela, a sua esposa, meu caro amigo, seguia-o logo, como um cachorrinho! Você sabe lá o que é a mulher para o primeiro homem que a possui, principalmente quando ele a emprenha?... É um animal com dono! Acompanha-o para onde ele for e fará somente o que ele bem quiser! E um autômato! Não se pertence! Não tem vontade sua! Casada com outro? Que importa! há de correr atrás do amante, segui-lo por todas as degradações! há de rir-se à custa do pobre marido! cobri-lo de vergonhas! há de ser a primeira a chamar-lhe nomes! Você, seu palerma, servirá unicamente para apimentar o prazer dos dois, dar-lhe um travo picante de fruto proibido, de pecado! E calcule, por um instante, as terríveis conseqüências da sua covardia; não pára aqui a negra cadeia das vergonhas que o esperam! Raimundo há de, mais cedo ou mais tarde, aborrecer-se da amante, como a gente se aborrece de tudo que é ilegal; passada a quadra das ilusões, desaparecerá o ardor que o prende a Ana Rosa e todo o seu sonho será conquistar uma posição brilhante na sociedade; pois bem, desde que ele não possa associar a amiga às suas aspirações, às suas glórias políticas e literárias, ela se converterá num obstáculo à sua carreira, num estorvo para o seu futuro, num trambolho, a que ele, na primeira ocasião dará um pontapé, substituindo-a por uma esposa legítima, de quem tire partido para subir melhor! Então, Ana Rosa passará à segunda mão, depois à terceira, à quarta, à quinta; até que, por muito batida, resvale no lodo dos trapiches, na taverna dos marujos, em todo lugar, enfim, onde possa vender-se para matar a fome! E lembre-se bem que ela, por tudo isto, nunca deixará de ser sua mulher, sua senhora, recebida aos pés do altar, em face de Deus e dos homens! Ora diga-me pois, seu Dias, não lhe parece que evitar tamanhas calamidades é servir bem ao nosso criador e aos nossos semelhantes?... Ainda duvidará que pratica uma boa ação, removendo a causa única de tanta desgraça?.. Vamos, meu amigo, não seja mau, salve aquela ovelha inocente das voragens da prostituição! Salve-a em nome da igreja! em nome do bem! em nome da moral! E o grande artista levantou os braços para o céu, exclamando em voz chorosa: — Quis talia fando tempera a lacrymis?... Dias escutava-o concentrado. O cônego prosseguiu, mudando de tom: — Viremos a medalha! vejamos agora o que sucederá se você seguir o meu conselho: A rapariga chora por algum tempo, pouco, muito pouco, porque eu a consolarei com as minhas palavras; depois como precisa de um pai para o filho, casa-se com você, e aí está o meu amigo, de um dia para outro, feliz, rico, independente! sem contar o seu gozo íntimo de haver resgatado de infalível perdição a filha do seu benfeitor, a qual deixará de ser uma mulher perdida para ser o modelo das esposas! — É exato! — Pois mãos à obra! Todo aquele que encontra em casa o ladrão, que lhe vai roubar o simples dinheiro, tem direito a meter-lhe uma carga de chumbo nos miolos, e, como há de ficar de braços cruzados o que se vê ameaçado na sua honra, na sua fortuna, na sua mulher e na sua tranqüilidade?... Sim, fica! quando é um miserável! um basbaque! — Reverendo, juro-lhe que... — Então avie-se! Está a fugir a única ocasião que Deus lhe faculta!.. Amanhã será tarde!... já ele a terá por justiça e, ainda que não se casem, o escândalo será patente! Resolva-se ou deixe por uma vez o campo livre ao mais forte e mais esperto! — Adeus, senhor cônego! — Vá com a Virgem Santíssima! E o Dias, de cabeça baixa, passos largos e abafados, subiu a Rua da Estrela. De repente, voltou, chamou o padre e perguntou-lhe alguma coisa ao ouvido. — É melhor, é... O caixeiro tomou então a Rua de Santana. Daí a uma hora, o compadre de Manuel, depois de saborear a sua canja e depois de amaciar o lombo luzidio do seu maltês, fazia a oração do costume e espichava-se tranqüilamente numa rede de algodão, lavada e cheirosa, disposto a passar uma boa noite. 18 Entrementes, Ana Rosa chorava no seu quarto; Manuel continuava a passear na sala, com as mãos cruzadas atrás e a cabeça descaída sobre o peito, como se uma preocupação de chumbo a puxasse para baixo; e Maria Bárbara ceava na varanda, resmungando, embebendo fatias de pão torrado na sua xícara de chá verde. E a noite envelhecia, e as horas rendiam-se, que nem sentinelas mudas, e nenhum dos três procurava dormir; afinal, Maria Bárbara obrigou o genro a recolher-se, depois foi ter com a neta e dispôs-se a fazer-lhe companhia até amanhecer. Em breve, porém, a velha ressonava, e tanto o pai, como a filha, viram, através das suas lágrimas, nascer o dia. Raimundo, esse vagara pelas ruas da cidade, com o coração encharcado de um grande desânimo. Apoquentava-o menos a estreiteza da situação do que a brutal pertinácia daquela família, que preferia deixar a filha desonrada a ter de dá-la por esposa a um mulato. “Com efeito!... Era preciso levar muito longe o escrúpulo de sangue!...” E, malgrado o vigor e a firmeza com que ele até aí afrontara as contrariedades, sentia-se agora abatido e miserável. Na transtornada corrente das suas idéias, a do suicídio misturava-se, como uma moeda falsa que mareasse as outras. Raimundo repelia-a com repugnância, mas a teimosa reaparecia sempre. Para ele o suicídio era uma ação ridícula e vergonhosa, era uma espécie de deserção da oficina; então, para animar-se, para meter-se em brios, evocava a memória dos fortes, lembrava-se dos que lutaram muito mais contra os preconceitos de todos os tempos; e, de pensamento em pensamento, sonhava-se em plena felicidade doméstica, ao lado de uma família amorosa, cercado de filhos, e feliz, cheio de coragem, trabalhando muito, sem outra ambição além de ser um homem útil e honrado. Mas todas estas esperanças já lhe não acordavam no espírito o mesmo eco de entusiasmo; agora, o que mais o preocupava era a sua humilhação e o seu amor ultrajado; desejava esposar Ana Rosa, desejava-o, como nunca, mas por uma espécie de vingança contra aquela maldita gente que o envilecia e rebaixava; queria amarrá-la ao seu destino, como se a amarrasse a um posto infamante; queria espalhar bem o seu sangue, porque onde ele caísse, deixaria uma nódoa incandescente; precisava, para sofrer menos, ver sofrer alguém; era necessário que os outros chorassem muito, para que, por sua vez, risse um pouco. “Oh! havia de rir!.. Ana Rosa pertencer-lhe-ia de direito!... Por que não?... Ele tinha a lei por si! Quem poderia impedir-lhe de tirá-la por justiça?... Além de que, com um filho nas entranhas, ela lhe obedeceria como escrava!...” E ruminando estes projetos, fingindo-se muito senhor de si, mas com grande desespero a ladrar-lhe por dentro, Raimundo vagabundeava pelas ruas, à espera que amanhecesse, com as mãos nas algibeiras, vacilante como um ébrio. Impacientava-se pelo dia seguinte, parecia atraí-lo com a sua ansiedade crescente; aquela noite, comprida e silenciosa, pesava-lhe nas costas, que nem a mochila do soldado no meio da batalha. “Sim! urgia que amanhecesse!... queria tratar dos seus interesses, liquidar aquela maçada, aquela grande maçada!... Mais doze horas, doze horas! e estaria tudo concluído! No dia seguinte estaria tudo pronto! ele no primeiro vapor seguiria para a Corte, acompanhado da esposa, feliz, independente! sem lembrar-se, nunca mais, do Maranhão, dessa província madrasta para os filhos!” Ao chegar ao Largo do Carmo, assentou-se num banco. Um vento fresco agitava as árvores; ameaçava chuva; ouvia-se o surdo e longínquo marulhar da costa, e, por ali perto, em algum sarau, uma garganta de mulher cantava ao piano a “Traviata”. Raimundo passou a mão pela testa e reparou que estava suando frio. Deram duas horas. Um polícia aproximou-se vagarosamente e pediu-lhe um cigarro e o fogo, e seguiu depois, com ar preguiçoso de quem cumpre uma formalidade inútil e aborrecida. E Raimundo ficou a escutar os passos sonoros do rondante, cadenciados com a regularidade monótona de uma pêndula. Deram três horas. Chuviscava. Raimundo levantou-se e seguiu pela Rua Grande. “Agora talvez dormisse um pouco... Estava tão fatigado!...” Quando atravessou o campo de Ourique, pensou sentir alguém acompanhando-o, olhou para os lados e não descobriu viva alma. “Enganara-se com certeza... Era talvez o eco dos seus próprios passos...” Continuou a andar, até chegar a casa. Mas, do vão escuro, em que se formava o limite da parede, rebentou um tiro, no momento em que ele dava volta à chave. Este tiro partira de um revólver fornecido ao Dias pelo cônego Diogo. Todavia, no instante supremo, faltara ao pobre-diabo coragem para matar um homem, mas as palavras do padre ferviam-lhe na cabeça, em torno da sua idéia fixa. “Como poderia agora perder num momento o trabalho de toda uma existência, destruir o seu castelo dourado, a sua preocupação, a coisa boa da sua vida?... Perder o jogo no melhor lance!... inutilizar-se, reduzir-se a lama, quando, só com um ligeiro movimento de dedo, estaria tudo salvo!...” Isto pensava o caixeiro de Manuel escondido na treva, por detrás de um montão de pedras e barrotes, ao lado dos espeques de um casebre em ruínas. Mas o tempo corria, e Raimundo ia entrar pra casa, sumir-se numa fronteira inexpugnável, e só reapareceria no dia seguinte, à luz do sol. “Era preciso aviar!... Um instante depois seria tarde, e Ana Rosa passaria às mãos do mulato e a cidade inteira ficaria senhora do escândalo, a saboreá-lo, a rir-se do vencido! E, então, estaria tudo acabado, para sempre! sem remédio! E ele, o Dias, coberto de ridículo e... pobre! “ Nisto, rangeu a fechadura. Aquela porta ia abrir-se como um túmulo, onde o miserável sentia resvalar o seu futuro e a sua felicidade; no entanto, tamanha calamidade dependia de tão pouco! O grande obstáculo da sua vida estava ali, a dois passos, em magnífica posição para um tiro. Dias fechou os olhos e concentrou toda a energia no dedo que devia puxar o gatilho. A bala partiu, e Raimundo, com um gemido, prostrou-se contra a parede. * * * Amanhecera um dia enfadonho, cheio de chuviscos e umidade. Pouca gente pela rua; nenhum sol, e um aborrecimento geral a abrir a boca por toda parte. Grossas nuvens, grávidas e sombrias, arrastavam-se pelo espaço, no peso da sua hidropisia; o ar mal podia contê-las. Ouvia-se um trovejar ao longe, que lembrava o rolar de balas de peça por um assoalho. A casa de Manuel tinha a silenciosa quietação do luto; as janelas fechadas; os moradores tristes; a varanda e a sala de visitas totalmente desertas. Embaixo, no armazém, os caixeiros fingiam não saber de nada. Os pretos cochichavam na cozinha, com medo de falar alto, e iam dar trela à vizinhança, onde se comentava já o escândalo da véspera. Manuel só apareceu fora do quarto à hora do almoço, que nesse dia foi tarde, porque os escravos, privados da vigilância de Maria Bárbara e empenhados no mexerico, descuidaram-se das obrigações. O pobre homem trazia no rosto, fotografada, a sua dor e a sua insônia; tinha os olhos pisados e intumescidos. Mal tocou nos pratos, cruzou logo o talher e limpou com o guardanapo uma lágrima, que o lugar vazio de Ana Rosa lhe desprendera. Aquela cadeira sem dono parecia dizer-lhe com a tristeza: “Descansa, desgraçado, que filha nunca mais terás tu!...” Não quis descer ao armazém e fechou-se em cima, no seu escritório, recomendando que mandassem lá o Dias quando chegasse. O sabiá trinava desesperadamente na varanda. Tinham-se esquecido de encher-lhe o comedouro. Ana Rosa não saíra da rede; estava excitada, doente, toda nervosa, com uma irritação de estômago. A avó, cheia de mau humor, levara-lhe um bule de chá de contra-erva, para a febre, e, depois de recomendar à neta que não saísse do quarto e fizesse por dormir, fechou-se com os seus santos, a rezar. A rapariga ignorava o que ia lá por fora. Amância foi a única visita que apareceu, falando muito da palidez que lhe notara. — Até lhe achei mau hálito, disse à Mônica, logo que saiu do aposento da enferma. — É do estômago, explicou a cafuza. Ela, coitada, ainda hoje não comeu nada, e ainda não pregou olho desde ontem de manhã! A velha passou à cozinha, à procura da Brígida, para indagar que diabo havia sucedido naquela casa, que andavam todos a modos de assombrados! Ana Rosa achava-se, com efeito, muito abatida, num estado perigoso de irritação e fraqueza. Mônica obrigou-a a tomar um mingau de farinha, e ela vomitou-o logo. — Hê, Iaiá! Isto assim não está bom!... censurava maternalmente a preta. Não te fica nada no bucho! — Mãe-pretinha, pediu depois a moça, eu posso ir até à sala? Não corre vento; as vidraças estão fechadas! — Vai, Iaiá, porém mete algodão no ouvido. Espera! agasalha a cabeça! E envolveu-lhe a testa com um lenço encarnado de seda. — Iaiá quer que eu te ajude? — Não, mãe-pretinha, fique; você deve estar cansada. A preta assentou-se junto à rede, encolheu as pernas, que abrangeu com os braços, e pôs-se a cochilar, escondendo a cara contra os joelhos. Ana Rosa levantou-se muito fraca e, lentamente, apoiando-se nos móveis, atravessou por entre o desarranjo do seu quarto e foi até à sala. Fazia má impressão vê-la com aquele andar vagaroso e triste, acompanhado de suspiros e descaimentos de pálpebras. Parecia convalescente de uma longa moléstia grave; estava cor de cera, com grandes olheiras roxas; muito puxada, os cabelos, despenteados e secos, caíam-lhe por debaixo do lenço vermelho, que lhe dava à cabeça certa expressão pitoresca e graciosa. Dela toda respirava um tom melancólico e dolorido: o longo roupão, desabotoado sobre o estômago, arrastando-se negligentemente pelo chão, os braços moles, as mãos frouxas, o pescoço bambo, os lábios entreabertos, estalando de febre, o olhar morto, infeliz, mas embebido de ternura; tudo nela transpirava um tácito queixume de fundas mágoas escondidas. Seus pezinhos traziam de rastros umas chinelas de criança e, por entre a abertura do vestido, via-se-lhe a camisa de rendas amarrotada e um cordão de ouro escorrendo pela brancura do seio, com um pequeno crucifixo que se lhe balançava entre os peitos. E, com a resignação dos doentes que não podem sair do quarto, passeava pela sala o seu isolamento, procurando entreter-se a examinar os objetos de cima dos consolos, minuciosamente, como se nunca os tivera visto. Tomou entre os dedos um galgozinho de jaspe e ficou a observá-lo um tempo infinito. É que seu pensamento não estava ali; andava lá fora, em busca de Raimundo, em busca do seu cúmplice estremecido, o autor daquele delito que ela sentia dentro de si, enchendo-a de alegria e de medo. Amava-o muito mais agora, tal como se o seu amor crescesse também como o feto que se lhe agitava nas entranhas. Apesar da estreiteza da situação, achava-se cada vez mais feliz; sonhara a ventura de ser mãe e sentia-a realizar-se no seu corpo, no seu ventre, de instante a instante, com um impulso misterioso, fatal incompreensível. “Era mãe!... Ainda lhe parecia um sonho!... “ Impacientava-se por preparar o enxoval do seu filhinho. Um enxoval bom, completo, a que nada, nada, faltasse. Ah! ela sabia perfeitamente como tudo isso era feito; qual a melhor flanela para os cueiros; quais as melhores toucas e os melhores sapatinhos de lã. Via em sonhos um berço junto a sua rede, com um entezinho dentro, todo rendas e fitas cor-de-rosa, a vagir uns princípios de voz humana. E fazia-se muito pressurosa, a queimar alfazema, para defumar os panos da criança; a preparar água com açúcar, para curar-lhe as cólicas; a evitar em si mesma o abuso do café e de todo o alimento que pudesse alterar-lhe o leite, porque ela queria ser a própria a criar o seu filho, e por coisa nenhuma desta vida, o confiaria à melhor ama. E, a pensar nestas coisas, que, aliás, nunca ninguém procurara ensinar-lhe, esquecia-se inteiramente dos vexames e das dificuldades que a sua falsa posição teria de levantar; nem, sequer, lhe passava pela idéia a hipótese de não casar com Raimundo. “Oh, isso havia de ser, desse por onde desse e sofresse quem sofresse!” Assim lhe correu o dia. Só despertou dos seus devaneios às duas e meia da tarde, quando o sino da Sé badalou o dobre dos finados. “Por quem estaria dobrando?...” perguntou de si para si, tomada de compassiva estranheza. Parecia-lhe absurdo que alguém cuidasse em morrer, quando ela só pensava em dar à vida aquele outro alguém que tanto a preocupava. Todavia, o dobre continuou ao longe, rolando no espaço, como um soluço que se desdobra. E aquele som lúgubre, ali, na sala toda fechada, parecia fazer o dia mais triste e o céu mais sombrio e chuvoso. Ana Rosa sentiu um ligeiro tremor de medo indefinido arrepiar-lhe as carnes; lembrou-se de rezar, chegou mesmo a dar alguns passos na direção da alcova, mas deteve-a um rumor de vozes que vinha da rua. Foi até à janela. O zunzum do povo crescia “Alguma briga!...” pensou ela, encostando a cara na vidraça, para espiar o que se passava lá fora. O motim recrescia à proporção que um grupo imenso de homens e mulheres se aproximava cheio de curiosidade. Ana Rosa pôde então compreender a causa do ajuntamento: dois pretos traziam um corpo dentro de uma rede, cuja taboca carregavam no ombro. — Credo! Que agouro!... disse impressionada. E quis afastar-se da janela, mas deixou-se ficar, por curiosidade. “Algum pobre homem que ia doente para o hospital... ou talvez fosse algum defunto, coitado!...” E procurou pensar no filho, para desfazer a impressão desagradável que acabava de receber. O corpo estava inteiramente coberto por um lençol de linho e parecia ser de um homem de boa estatura. Algumas manchas vermelhas destacavam-se aqui e ali na brancura do pano. Ana Rosa sentia já certo interesse aterrorizado; quis de novo deixar a janela; agora, porém, o que se passava lá na rua atraía-lhe irresistivelmente o olhar. A fúnebre procissão aproximava-se entretanto, chegando-se para a parede do lado em que ela estava. Ia deixar de ver, mas não lhe convinha abrir a janela, por causa do vento; além disso ameaçava chuva; era até muito natural que estivesse chuviscando. Continuou a olhar atentamente, com o rosto achatado de encontro aos vidros. A rede adiantava-se a pouco e pouco, jogando com a irregularidade da rua e do caminhar desencontrado dos carregadores; o que obrigava o lençol a fazer e desfazer fartas rugas instantâneas. Ana Rosa sentiu-se inquieta e sobressaltada, como se aquilo lhe dissera respeito; a rede ia desaparecer de todo a seus olhos, porque, cada vez mais se aproximava da parede, já mal podia alcançá-la com a vista. Céus! Dir-se-ia que se encaminhava para a porta de Manuel! Uma rajada de nordeste esfuziou nos vidros. Os chapéus dos transeuntes saltaram como folhas secas; as janelas de diversas casas bateram contra os caixilhos num repelão de cólera; o vento zuniu com mais força e, numa segunda refrega, arrancou de uma só vez o lençol que cobria a rede. Ana Rosa estremeceu toda, deu um grito, ficou lívida, levou as mãos aos olhos. Parecia-lhe ter reconhecido Raimundo naquele corpo ensangüentado. Duvidou e, sem ânimo de formular um pensamento, abriu de súbito as vidraças. Era, com efeito, ele. O povo olhou todo para cima e viu uma coisa horrível. Ana Rosa, convulsa, doida, firmando no patamar das janelas as mãos, como duas garras, entranhava as unhas na madeira do balcão, com os olhos a rolarem sinistramente e com um riso medonho a escancarar-lhe a boca, as ventas dilatadas, os membros hirtos. De repente, soltou um novo rugido e caiu de costas. A mãe-preta acudira logo e arrastou-a para o quarto. A moça deixou atrás de si, pelo chão, um grosso rastro de sangue, que lhe escorria debaixo das saias, tingindo-lhe os pés. E, no lugar da queda, ficou no assoalho uma enorme poça vermelha. 19 No dia seguinte, por todas as ruas da cidade de São Luís do Maranhão, e nas repartições públicas, na praça do comércio, nos açougues, nas quitandas, nas salas e nas alcovas, boquejava-se largamente sobre a misteriosa morte do Dr. Raimundo. Era a ordem do dia. Contava-se o fato de mil modos; inventavam-se lendas; improvisavam-se romances. O cadáver fora recolhido pela Santa Casa de Misericórdia; procedeu-se a um corpo de delito; verificou-se que o paciente morrera a tiro de bala, mas a polícia não descobriu o assassino. Nessa mesma tarde os caixeiros de Manuel, vestidos de luto, entregavam de porta em porta a seguinte circular “Ilmo. Sr. Manuel Pedro da Silva e o cônego Diogo de Melo Freitas Santiago participam a V.S.ª que acabam de receber o profundo golpe do falecimento de seu prezado e nunca assaz chorado sobrinho e amigo Raimundo José da Silva; e, como o seu cadáver tenha de baixar ao túmulo, hoje às 4 e 1/2 horas da tarde, no cemitério da Santa Casa de Misericórdia, esperam receber de V.S.ª o piedoso obséquio de acompanhar o féretro da casa de seu inconsolável tio à Rua da Estrela n.° 80, pelo que desde já se confessam eternamente agradecidos. Maranhão, etc, etc “ A Misericórdia cedeu uma sepultura mediante a quantia de 60$000. O enterro foi a pé e bastante concorrido. Muitos negociantes acompanharam-no por consideração ao colega; grande número de pessoas por mera curiosidade. O cônego ungiu o cadáver com água benta e encomendou-o a Deus. Maria Bárbara para completo descargo de sua consciência e porque soubessem que ela não tinha mau coração, prometeu uma missa por alma do mulato. Dias só apareceu em casa à tarde, à hora do saimento. Notaram que o bom rapaz muito se sentira daquela morte e que, no ato de baixar o caixão à sepultura, afastara-se de todos, naturalmente para chorar mais à vontade. Não constou a ninguém, além dele e o cônego, tivesse chorado. De volta do cemitério, Freitas, em conversa com os caixeiros de Manuel, mais o Sebastião Campos e o Casusa, lamentou com palavras finas o lastimável falecimento do infeliz moço, e disse que sentia bastante não ter a polícia descoberto o autor do crime; mas que, segundo a sua modesta opinião, aquilo fora, nada mais, nada menos, do que um suicídio, e que Raimundo viera até à porta da rua nas agonias da morte. — Uma fatalidade! rematou ele, filosoficamente, a espanar com o lenço os seus sapatos envernizados. — Não me posso conformar com o diabo deste pó vermelho de São Pantaleão!... mas creiam que me comoveu bastante a morte do pobre Mundico! Era um moço hábil... Tinha muita habilidade para fazer versos... — E muita presunção, vamos lá! — Não, coitado! tinha seus estudos, tinha! não se lhe pode negar!... — Mas também não era lá essas coisas que queria ser!... — Ah, sim, não digo o contrário... Concordou delicadamente o pai de Lindoca porque não tinha por costume contrariar ninguém. — Uma fatalidade!... repetiu, meneando a cabeça — E talvez não fique nesta!... observou Sebastião. A pequena está bem perigosa!... — É! Ouvi dizer que sim. — O Jauffret mandou que a carregassem para fora. — Segue, num dia destes para a Ponta-d’Areia. — Não. Para o Caminho Grande. — Ah! Ela era perdida pelo Raimundo!... — Tolice... E deram de mão o assunto para ouvir Casusa, que contava alegremente o caso de um bêbedo que uma vez fora parar no cemitério e lá ficara fechado; e que, depois, acordando pelas altas horas da noite, levantara-se para ir até ao portão pedir fogo ao ronda, que fumava muito distraído, encostado de costas nas grades, e que o soldado, sentindo passar-lhe no pescoço a mão fria do borracho, deitara a correr e a pedir socorro em altos berros. Todos acharam graça e o Freitas contou logo um fato equivalente, que lhe sucedera no tempo de rapaz. Esta anedota puxou por outras, e cada qual exibiu as que sabia: de sorte que, ao entrarem na Rua Grande ainda empoeirados da terra vermelha de São Pantaleão, riam-se a bom rir, apesar da profunda tristeza do crepúsculo, que nesse dia não vestira as galas do costume. O Pescada, mal o tempo levantou, mudou-se, junto com a filha e a sogra, para um sítio ao Caminho Grande, onde Ana Rosa esteve à morte. Chegaram a fazer junta de médicos. Desde então o pobre Manuel vivia muito apoquentado. Falou-se que os seus cabelos tinham embranquecido totalmente, e que ele agora se dedicava ao trabalho como nunca, com uma espécie de furor, um desespero de quem bebe para esquecer a sua desventura. A nova firma comercial, Silva e Dias nasceu, entretanto, no meio da mais completa prosperidade. * * * Seis anos depois, em meado de fevereiro, havia uma partida no Clube Familiar. Era uma galanteria que os liberais dedicavam a um seu correligionário político, chegado da Corte por aqueles dias, com destino à presidência do Maranhão. Estava-se no rigor do inverno e chovera durante toda a tarde. As calçadas refletiam em ziguezague a luz vermelha dos lampiões. Alguns telhados ainda gotejavam melancolicamente, e o céu, todo negro, pesava sobre a cidade que nem uma tampa de chumbo. Não obstante, chegava bastante gente para a festa; velhas carruagens enfileiravam-se na Rua Formosa, despejando golfadas de seda e cambraia. As damas, finamente envolvidas nas ondas dos seus pufes, subiam, arrepanhando a cauda, aos salões do baile, pelo braço de homens sérios de casaca. Havia luxo. Os lances da escadaria mostravam-se juncados de flores desfolhadas e folhas de mangueira, e os degraus, de quatro a quatro, estavam guarnecidos por grandes vasos de pó de pedra, vazios de planta. Espelhos de bom tamanho refletiam de alto a baixo, no corredor, os pares que subiam. Em todas as portas havia alvas cortinas de labirinto. O presidente acabava de chegar, e a banda do 5.° de Infantaria tocava embaixo o Hino Nacional. Todos se agitavam para vê-lo; comentavam-lhe já, em voz soturna, a figura, os movimentos, o andar, a cor, e os botões da camisa. Na sala de honra, as senhoras, parafusadas nas suas cadeiras, numa resignação cerimoniosa, espichavam discretamente o pescoço, para ver o “Presidente novo”. Os rapazes, com o cabelo dividido em duas pastas sobre a testa, fumavam nos corredores ou bebiam nos bufetes. Na varanda jogavam em silêncio os inalteráveis pares do voltarete. A casa toda recendia a perfumaria francesa. Reinava um constrangimento pesado e estúpido; poucos se animavam a conversar, e ninguém ria. Mas de improviso, a orquestra deu o sinal da primeira quadrilha e uma onda de homens invadiu brutalmente as salas, por todas as portas. Era uma aluvião mesclada; havia o croisé de luva branca, a casaca sem luva, o fraque de três botões com o lenço de seda azul debruçado na algibeira; sobressaíam as enormes gravatas de cambraia engomada, com as pontas em bico sistematicamente espichadas sobre a negrura da lapela. Alguns tinham um tique pretensioso; outros um ar encalistrado e cheio de rubores. Principiava-se a suar. Destacavam-se os filhos dos negociantes ricos, que haviam ido à Europa “estudar comércio” e os acadêmicos de Pernambuco, Bahia e Rio, que estavam de férias na província. A dança abalava-os a todos, as senhoras iam-se já levantando; arrastavam-se cadeiras; a luz do gás mordia os ombros nus e fazia faiscar os diamantes; as rabecas começavam a gemer. As quadrilhas e as valsas sucederam-se quase sem intervalo. O entusiasmo apoderou-se dos ânimos. Tremia no ambiente o vozear frouxo dos cochichos, das coisas amorosas, dos pequeninos risos delicados, do tilintar dos braceletes, do farfalhar das saias, do rumorejar dos leques e do surdo arrastar dos pés no tapete. As mulheres rodavam, presas pela cintura, num abandono voluptuoso, com a cabeça esquecida sobre a espádua do cavalheiro. De envolta com os extratos de Lubin, saturava a atmosfera um cheiro tépido e penetrante de carnes e cabelos. Pares fatigados prostravam-se nos canapés, amolecidos por um entorpecimento sensual; dilatavam-se as narinas, ofegavam os colos e as pálpebras bambeavam num quebranto de febre. Em breve, porém, um frenesi galvânico eletrizou todos os pares “Galop!” gritaram. E um turbilhão doido, desenfreado, precipitou-se pelas salas, percorrendo-as aos saltos, numa confusão de casacas e caudas de seda; anovelando-se, abalroando-se, e rebentando afinal numa vozeria medonha, atroadora, num bramido de onda que espoca em plena tempestade. Rasgaram-se vestidos, espicaçaram-se folhos de renda, desfloraram-se penteados e soltaram-se exclamações de prazer. Um rapaz, ao terminar a quadrilha, refugiava-se, coxeando, na varanda. Tinham-lhe pisado o melhor calo. — Maus raios te partam, diabo! E foi assentar-se a um canto, segurando carinhosamente o pé. — Ó seu Rosinha, fale com os amigos velhos!... disse o Freitas, aproximando-se dele e estendendo-lhe a mão. Não sabia que o tínhamos aqui em nossa terra, doutor! Estava o mesmo homem, sempre engomado e teso, com o seu eterno colarinho à Pinaud e a sua unha de estimação. “Então!... que lhe contava o caro Sr. Rosinha, depois que se viram a última vez?... Já lá se iam três anos!...” Rosinha achava-se em férias; era terceiranista de Direito em Pernambuco. O Freitas notou que ele estava rapagão; estava muito melhor; mais desenvolvido! O Faísca sorriu. Com efeito engrossara de ombros e deitara melhor corpo. Agora tinha um par de suíças e parecia menos tolo, porém muito mais míope. Falaram superiormente contra aquele modo bárbaro de dançar. O estudante descreveu as dores que sentiu quando lhe pisaram o calo e jurou nunca mais dançar com semelhantes estouvados. Depois, conversaram a respeito do novo presidente; Freitas queixou-se do partido liberal. “Uma súcia de criançolas!... dizia ele, indignado. Era fechar os olhos e apanhar o primeiro!... O tal Gabinete de 5 de janeiro podia limpar as mãos à parede!... Incúrias! só incúrias!” Em seguida ocuparam-se do passado; lembraram-se do defunto Manuel Pescada e da falecida Maria Bárbara. — A velha Babu! .. murmurou o Freitas, cheio de recordações. Outro pediu notícias de Lindoca. Sempre gorda! Agora estava lá pela Paraíba, com o marido, o Dudu Costa, que fora removido para a alfândega dessa província. Sabe? A Eufrasinha fugiu com um cômico!... — Ah, sei! sei! Estonteada! O pobre Casusa, coitado, é que estava perdido! — Extravagâncias!... Rosinha, se o visse, não o conheceria. — Muito desfigurado, cheio de cãs! Faísca declarou que ainda não o tinha encontrado em parte alguma. — Qual encontrado o quê! Estava de cama!. entrevado! Uma perna, que era isto! E o Freitas mostrou a cintura. — E o Sebastião? perguntou o rapaz. — Metido na fazenda. Já não havia quem o visse. E acrescentou, sem transição: — Homem, quer saber quem está a decidir?... O nosso cônego Diogo! — Sim. Já ouvi dizer — Coitado! retenção de urina. Ele sempre sofreu de estreitamento! — Um santo! — Se o é!... E ambos sacudiram a cabeça, no recolhimento da mesma convicção. Faísca calculava escrever o necrológio do cônego, caso este morresse antes da sua volta para Pernambuco. Falaram também do Cordeiro, que se tinha estabelecido com Manuelzinho. O Freitas afirmava que iam muito bem, porque o Bento Cordeiro deixara o diabo do vício. É interrompeu-se, para segredar ao outro: — Você conhece este rapaz, que vai passando de braço dado a uma moça? — Não. — É o Gustavo! — Que Gustavo? — De Vila Rica! Aquele que foi caixeiro do Pescada!... Ah, sim! já sei! Mas, como ficou mudado! ele que era um rapaz tão bonito!... De fato, Gustavo perdera inteiramente as suas belas cores européias e tinha agora a cara sarapintada de funchos venéreos. Estava para casar com a moça, que levava pelo braço. Uma filha do velho Furtado da Serra. — Hum! Bravo! Está bom! Dava meia-noite e algumas famílias embrulhavam-se nas suas capas para sair O Freitas despediu-se logo do Rosinha, apressado. — Depois da meia-noite — nada! nada absolutamente!... observava ele, sempre metódico. Mas, no patamar da escada, teve de esperar um instante que descesse um casal que se despedia. Adivinhava-se que era gente de consideração pelo riso afetuoso com que todos o cumprimentavam; muitos se arredavam pressurosos, para lhe dar passagem. O próprio presidente acompanhara-o até ali e agradecia-lhe o obséquio do comparecimento ao baile, com um enérgico aperto de mão, à inglesa. O par festejado eram o Dias e Ana Rosa, casados havia quatro anos. Ele deixara crescer o bigode e aprumara-se todo; tinha até certo emproamento ricaço e um ar satisfeito e alinhado de quem espera por qualquer vapor o hábito da Rosa; a mulher engordara um pouco em demasia, mas ainda estava boa, bem torneada, com a pele limpa e a came esperta. Ia toda se saracoteando, muito preocupada em apanhar a cauda do seu vestido, e pensando, naturalmente, nos seus três filhinhos, que ficaram em casa a dormir. — Grand’chaine, double, serré! berravam nas salas O Dias tomara o seu chapéu no corredor e, ao embarcar no carro, que esperava pelos dois lá embaixo, Ana Rosa levantara-lhe carinhosamente a gola da casaca. Agasalha bem o pescoço, Lulu! Ainda ontem tossiste tanto à noite, queridinho!...
1 MINISTÉRIO DA CULTURA Fundação Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro CLARA DOS ANJOS Lima Barreto I O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas; mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora. Os velhos do Rio de Janeiro, ainda hoje, se lembram do famoso Calado e das suas polcas, uma das quais - "Cruzes, minha prima!" ¾ é uma lembrança emocionante para os cariocas que estão a roçar pelos setenta. De uns tempos a esta parte, porém, a flauta caiu de importância, e só um único flautista dos nossos dias conseguiu, por instantes, reabilitar o mavioso instrumento - delícia, que foi, dos nossos pais e avós. Quero falar do Patápio Silva. Com a morte dele a flauta voltou a ocupar um lugar secundário como instrumento musical, a que os doutores em música, quer executantes, quer os críticos eruditos, não dão nenhuma importância. Voltou a ser novamente plebeu. Apesar disso, na sua simplicidade de nascimento, origem e condição, Joaquim dos Anjos acreditava-se músico de certa ordem, pois, além de tocar flauta, compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas. Uma polca sua - "Siri sem unha" - e uma valsa - "Mágoas do coração"- tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de músicas e pianos da Rua do Ouvidor. O seu saber musical era fraco; adivinhava mais do que empregava noções teóricas que tivesse estudado. Aprendeu a "artinha" musical na terra do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em cujas festas de igreja a sua flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora gozando desta fama animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na "artinha" de Francisco Manuel, que sabia de cor; mas não saíra dela, para ir além. Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. Desgostoso com a existência medíocre na sua pequena cidade natal, um belo dia, aí pelos seus vinte e dois anos, aceitara o convite de um engenheiro inglês que, por aquelas bandas, andava a explorar terras e terrenos diamantíferos. Todos julgavam que o "seu" mister andasse fazendo isso; a verdade, porém, é que o sábio inglês fazia estudos desinteressados. Fazia puras e platônicas pesquisas geológicas e mineralógicas. O diamante não era o fim dos seus trabalhos; mas o povo, que teimava em ver, pelos arredores da cidade, o ventre da terra cheio de diamantes, não podia supor que um inglês que levava a catar pedras, pela manhã e até à noite, tomando notas e com uns instrumentos rebarbativos, não estivesse com tais gatimonhas a caçar diamantes. Não havia meio do mister convencer à simplória gente do lugar que ele não queria saber de diamantes; e dia não havia em que o súdito de Sua Graciosa Majestade não recebesse uma proposta de venda de terrenos, em que forçosamente havia de existir a preciosa pedra abundantemente, por tais ou quais indícios, seguros aos olhos de "garimpeiro" experimentado. Logo ao chegar o geólogo, Joaquim empregou-se como seu pajem, guia, encaixotador, servente, etc., e tanto foi obediente e serviu a contento o sábio, que este, ao dar por terminadas as suas pesquisas, o convidou a vir ao Rio de Janeiro, encarregando-se de movimentar a sua 2 pedregulhenta ou pedregosa bagagem, até que ela fosse posta a bordo. O sábio comprometeu-se a pagar-lhe a estadia no Rio, o que fez, até embarcar-se para a Europa. Deu-lhe dinheiro para voltar, um chapéu de cortiça, umas perneiras, um cachimbo e uma lata de fumo Navy Cut; Joaquim já se havia habituado ao Rio de Janeiro, no mês e pouco em que estivera aqui, a serviço do Senhor John Herbert Brown, da Real Sociedade de Londres; e resolveu não voltar para Diamantina. Vendeu as perneiras num belchior e o chapéu de cortiça também; e pôs-se a fumar o saboroso fumo inglês no cachimbo que lhe fora ofertado, passeando pelo Rio, enquanto teve dinheiro. Quando acabou, procurou conhecidos que já tinha; e, em breve, entrou para o serviço de empregado de escritório de um grande advogado, seu patrício, isto é, mineiro. - Não te darei coisa que valha a pena - disse-lhe logo o doutor - mas aqui irás travando conhecimentos e podes arranjar coisa melhor mais tarde. Viu bem que o "doutor" lhe falava a verdade, e toda sua ambição se cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. Conseguira, ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros, com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que mere- cera sucessivas promoções. Casara meses depois de nomeado; e, tendo morrido sua mãe, em Diamantina, como filho único, herdara-lhe a casa e umas poucas terras em Inhaí, uma freguesia daquela cidade mineira. Vendeu a modesta herança e tratou de adquirir aquela casita nos subúrbios em que ainda morava e era dele. O seu preço fora módico, mas, mesmo assim, o dinheiro da herança não chegara, e pagou o resto em prestações. Agora, porém, e mesmo há vários anos, estava em plena posse do seu buraco, como ele chamava a sua humilde casucha. Era simples. Tinha dois quartos; um que dava para a sala de visitas e outro para a sala de jantar, aquele ficava à direita e este à esquerda de quem entrava nela. À de visitas, seguia-se imediatamente a sala de jantar. Correspondendo a pouco mais de um terço da largura total da casa, havia, nos fundos, um puxadito, onde estavam a cozinha e uma despensa minúscula. Comunicava-se esse puxadito com a sala de jantar por uma porta; e a despensa, à esquerda, apertava o puxado, a jeito de um curto corredor, até à cozinha, que se alargava em toda a largura dele. A porta que o ligava à sala de jantar ficava bem junto daquela, por onde se ia dessa sala para o quintal. Era assim o plano da propriedade de Joaquim dos Anjos. Fora do corpo da casa, existia um barracão para banheiro, tanque, etc., e o quintal era de superfície razoável, onde cresciam goiabeiras, dois pés ou três de laranjeiras, um de limão-galego, mamoeiros e um grande tamarineiro copado, bem aos fundos. A rua em que estava situada a sua casa se desenvolvia no plano e, quando chovia, encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto, era povoada e se fazia caminho obrigado das margens da Central para a longínqua e habitada freguesia de Inhaúma. Carroções, carros, autocaminhões que, quase diariamente, andam por aquelas bandas a suprir os retalhistas de gêneros que os atacadistas lhes fornecem, percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública devia merecer mais atenção da edilidade. Era uma rua sossegada e toda ela, ou quase toda, edificada ao gosto antigo do subúrbio, ao gosto do chalet. Estava povoada e edificada quase inteiramente, de um lado e de outro. Dela, descortinava-se um lindo panorama de montanhas de cores cambiantes, conforme fosse a hora do dia e o estado da atmosfera. Ficavam-lhe muito distantes, mas pareciam cercá- la, e ela, a rua, ser o eixo daquele redondel de montes, em que, pelo dia em fora, pareciam ser iluminados por projeções luminosas, revestindo-se de toda a gama do verde, de tons azuis; e, pelo crepúsculo, ficavam cobertos de ouro e púrpura. Além dos clássicos chalets suburbanos, encontravam-se outros tipos de casas. Algumas relativamente recentes, uns certos requififes e galanteios modernos, para lhes encobrir a estreiteza dos cômodos e justificar o exagero dos aluguéis. Havia, porém, uma casa digna de ser vista. Erguiase quase ao centro de uma grande chácara e era a característica das casas das velhas chácaras dos outros tempos; longa fachada, pouco fundo, teto acaçapado, forrada de azulejos até a metade do pé direito. Um tanto feia, é verdade, que ela era, sem garridice; mas casando-se perfeitamente com as 3 mangueiras, com as robustas jaqueiras e os coqueiros petulantes e com todas aquelas grandes e pequenas árvores avelhantadas, que, talvez, os que as plantaram não as tivessem visto frutificar. Por entre elas, onde se podiam ver vestígios do antigo jardim, havia estatuetas de louça portuguesa, com letreiros azuis. Uma era a "Primavera"; outra era a "Aurora"; quase todas, porém, estavam mutiladas; umas, num braço; outras não tinham cabeça, e ainda outras jaziam no chão, derrubadas dos seus toscos suportes. Os muros que cercavam a casa, a razoável distância, e mesmo aquele em que se apoiava o gradil de ferro da frente do imóvel, estavam cobertos de hera, que os envolvia em todo ou em parte, não como um sudário, mas como um severo, cerimonioso e vivo manto de outras épocas e de outras gentes, a provocar saudades e evocações, animando a ruína. Hoje, é raro ver-se, no Rio de Janeiro, um muro coberto de hera; entretanto, há trinta anos, nas Laranjeiras, na Rua Conde de Bonfim, no Rio Comprido, no Andaraí, no Engenho Novo, enfim, em todos os bairros que foram antigamente estações de repouso e prazer, encontravam-se, a cada passo, longos muros cobertos de hera, exalando melancolia e sugerindo recordações. Joaquim dos Anjos ainda conhecera a "chácara" habitada pelos proprietários respectivos; mas, ultimamente, eles se tinham retirado para fora e alugado aos "bíblias". Os seus cânticos, aos sábados (era o seu dia da semana de descanso sagrado), entoados quase de hora em hora, enchiam a redondeza e punham na sua audiência uma soturna sombra de misticismo. O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas dos arredores freqüentavam-nos, já por encontrar nisso um sinal de superioridade intelectual sobre os seus iguais, já por procurarem, em outra casa religiosa que não a tradicional, lenitivo para suas pobres almas alanceadas, além das dores que seguem toda e qualquer existência humana. Alguns, entre os quais o João Pintor, justificavam freqüentar os "bíblias", porque estes - dizia ele - não eram como os padres, que, para tudo, querem dinheiro. Esse João Pintor trabalhava nas oficinas do Engenho de Dentro, no ofício de que proviera o seu apelido. Era um preto retinto, grossos lábios, malares proeminentes, testa curta, dentes muito bons e muito claros, longos braços, manoplas enormes, longas pernas e uns tais pés, que não havia calçado, nas sapatarias, que coubessem neles. Mandava-os fazer de encomenda; mas assim mesmo, mal os punha hoje, no dia seguinte tinha que os retalhar à navalha, se queria dar alguns passos e manquejar menos até o "Mafuá". Dizia o "Turuna", adepto do Padre Sodré, capelão do Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, que João Pintor se metera com os "bíblias", porque estes lhe haviam dado um quarto, na chácara, para ele morar de graça, com certas obrigações pequenas a cumprir. João Pintor contestava com veemência; o certo, porém, é que ele morava na “chácara”. Chefiava os protestantes um americano, Mr. Quick Shays, homem tenaz e cheio de uma eloqüência bíblica, que devia ser magnífica em inglês; mas que, no seu duvidoso português, se tornava simplesmente pitoresca. Era Shays Quick ou Quick Shays daquela raça curiosa de yankees fundadores de novas seitas cristãs. De quando em quando, um cidadão protestante dessa raça que deseja a felicidade de nós outros, na terra e no céu, à luz de uma sua interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, funda uma novíssima seita, põe-se a propagá-la e logo encontra dedicados adeptos, os quais não sabem muito bem por que foram para tal novíssima religiãozinha e qual a diferença que há entre esta e a de que vieram. Lá, na sua terra, como aqui, esses pequenos luteros fazem prosélitos; lá, mais do que aqui. Mr. Shays obtinha, nas vizinhanças do carteiro Joaquim dos Anjos, não prosélitos, mas muitos ouvintes, dos quais uma quinta parte afinal se convertia. Quando se tratava de iniciar uma turma, os noviços dormiam em barracas de campanha, erguidas ao redor da casa, nos vãos existentes entre as velhas árvores da chácara, maltratada e desprezada. As cerimônias preparatórias à iniciação, na religião de Mr. Quick Shays, duravam uma semana, farta de jejuns e cânticos religiosos, cheios de unção e apelos contritos a Deus, Nosso Pai; e a velha propriedade de recreio, com as barracas militares e salmodias contínuas, adquiria um aspecto esquisito e imprevisto, o de convento ao ar livre, mascarado por uma rebarbativa carranca 4 de acampamento guerreiro. Dir-se-ia um destacamento de uma ordem de cavalaria monásticoguerreira, que se preparava para combater o turco ou o mouro infiel, na Palestina ou em Marrocos. Da redondeza, não eram muitos os adeptos ortodoxos à doutrinação religiosa de Mr. Shays; entretanto, além das espécies que já foram aludidas, havia as daqueles que assistiam às suas prédicas, por mera curiosidade ou para deliciar-se com a oratória do pastor americano. O templo estava sempre cheio, nos seus dias solenes. Os freqüentadores dessa ou daquela natureza lá iam sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer uma extravagante amálgama de religiões e crenças de toda a sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes e momentâneas agruras de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia tenaz e renitente, procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há, dentre ela, quem não se zangue: "Está doido! Meu filho ficar pagão! Deus me defenda! Joaquim dos Anjos não freqüentava Mr. Shays nem o reverendo Padre Sodré, do Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, pois, apesar de ter nascido numa cidade embalsamada de incenso e plena de ecos sonoros de litanias e o contínuo repicar de sinos festivos, não era animado de grande fervor religioso. Sua mulher, Dona Engrácia, porém, o era em extremo, embora fosse pouco à igreja, devido às suas obrigações caseiras. Ambos, porém, estavam de acordo num ponto religioso católico-romano: batizar quanto antes os filhos, na Igreja Católica Apostólica Romana. Foi assim que procederam, não só com a Clara, o único filho sobrevivente, como com os demais, que haviam morrido. Eram casados há quase vinte anos, e esta Clara, sua filha, sendo o segundo filho do casal, orçava pelos seus dezessete anos. Era tratada pelos pais com muito desvelo, recato e carinho; e, a não ser com a mãe ou pai, só saía com Dona Margarida, uma viúva muito séria, que morava nas vizinhanças e ensinava a Clara bordados e costuras. No mais, isto era raro e só acontecia aos domingos, Clara deixava, às vezes, a casa paterna, para ir ao cinema do Méier ou Engenho de Dentro, quando a sua professora de costuras se prestava a acompanhá-la, porque Joaquim não se prestava, pois não gostava de sair aos domingos, dia escolhido a fim de se entregar ao seu prazer predileto de jogar o solo com os companheiros habituais; e sua mulher não só não gostava de sair aos domingos, como em outro dia da semana qualquer. Era sedentária e caseira. Os companheiros habituais do solo com Joaquim eram quase sempre estes dois: o Senhor Antônio da Silva Marramaque, seu compadre, pois era padrinho de sua filha única; e o Senhor Eduardo Lafões. Não variavam. Todos os domingos, aí pelas nove horas, lá batiam à porteira da casa do "postal"; não entravam no corpo da habitação e, pelo corredor que mediava entre ela e a vizinha, dirigiam-se ao grande tamarineiro, aos fundos do quintal, debaixo do qual estava armada a mesa, com os seus tentos, vermelhos e pupilas negras, de grão de aroeira, o seu baralho, os seus pires, um cálice e um litro de parati, ao centro, muito pimpão e arrogante, impondo um cínico desafio às conveniências protocolares. Joaquim dos Anjos já esperava, lendo o jornal de sua predileção. Mal chegavam, trocavam algumas palavras, sentavam-se, "molhavam a palavra", no litro de cachaça, e punham-se a jogar. Ficha a vintém. Horas e horas, esperando o "ajantarado", que quase sempre ia para a mesa à hora do jantar habitual, deixavam-se ficar jogando, bebericando aguardente, sem dar uma vista d'olhos sobre as montanhas circundantes, nuas e pedroucentas, que recortavam o alto horizonte. De quando em quando, mas sem grandes espaços, Joaquim gritava para a cozinha: - Clara! Engrácia! Café! De lá, respondiam, com algum amuo na voz: - Já vai! 5 É que as duas mulheres, para preparar o café, tinham que retirar, de um dos dois fogareiros de carvão vegetal, uma panela do "ajantarado" que aprontavam, a fim de aquecer o café reclamado; e isto lhes atrasava o jantar. Enquanto esperavam o café, os três suspendiam o jogo e conversavam um pouco. Marramaque era e sempre havia sido mais ou menos político, a seu modo. Embora atualmente fosse um simples contínuo de ministério, em que não fazia o serviço respectivo, nem outro qualquer, devido a seu estado de invalidez, de semi-aleijado e semiparalítico do lado esquerdo, tinha, entretanto, pertencido a uma modesta roda de boêmios literatos e poetas, na qual, a par da poesia e de coisas de literatura, se discutia muita política, hábito que lhe ficou. Quando veio a revolta de 93, a roda se dissolveu. Uns foram acompanhar o Almirante Custódio; e outros, o Marechal Floriano. Marramaque foi um destes e até obteve as honras de alferes do Exército. Por aí é que teve a primeira congestão, isto é, nos fins do governo do marechal, em 94. A sua roda não tinha ninguém de destaque, mas alguns eram estimáveis. Mesmo alguns de rodas mais cotadas procuravam a dele. Quando narrava episódios dessa parte de sua vida, tinha grande garbo e orgulho em dizer que havia conhecido Paula Nei e se dava com Luís Murat. Não mentia, enquanto não confessasse a todos em que qualidade fizera parte do grupo literário. Os que o conheciam, daquela época, não ocultavam o título com que partilhava a honra de ser membro de um cenáculo poético. Tendo tentado versejar, o seu bom senso e a integridade de seu caráter fizeram-lhe ver logo que não dava para a coisa. Abandonou e cultivou as charadas, os logogrifos, etc. Ficou sendo um hábil charadista e, como tal, figurava quase sempre como redator ou colaborador dos jornais, que os seus companheiros e amigos de boêmia literária, poetas e literatos, improvisavam do pé para a mão, quase sempre sem dinheiro para um terno novo. Envelhecendo e ficando semi-inutilizado, depois de dois ataques de apoplexia, foi obrigado a aceitar aquele humilde lugar de contínuo, para ter com que viver. Os seus méritos e saber, porém, não estavam muito acima do cargo. Aprendera muita coisa de ouvido e, de ouvido, falava de muitas delas. Tivera, em moço, uma boa convivência. Estava aí o segredo de sua ilustração. Marramaque, apesar de tudo, do seu estado de saúde, da sua dificuldade de locomover-se, não deixava a mania inócua da política e ia votar, com risco de se ver envolvido num barulho de sufrágio universal, puxado a navalha, rabo-de-arraia, cabeçadas, tiros de revólver e outras eloqüentes manifestações eleitorais, das quais, em razão do seu precário estado de pernas, não poderia fugir com segurança e a necessária rapidez. Tendo vivido em rodas de gente fina - como já vimos - não pela fortuna, mas pela educação e instrução; tendo sonhado outro destino que não o que tivera; acrescendo a tudo isto o seu aleijamento - Marramaque era naturalmente azedo e oposicionista. Naquele domingo, ele o tirara para falar mal do doutor Saulo de Clapin. - Vocês vão ver: o Clapin está aí, está morto na política. Teve o topete de ir contra a corrente popular, espetou-se. Quem ganhou foi o barbudo Melo Brandão, esse judeu mestiçado. É um safadão, mas é mestre na política. Joaquim se interessava mediocremente por essa história de política: mas Lafões tinha as suas paixões no negócio e acudiu: - Qual o quê! Então você pensa, Marramaque, que um homem inteligente, tão superior, como o doutor Clapin, vai deixar-se embrulhar por um trapaceiro de atas e coisas piores como o Melo Brandão! Qual o quê! Demais, o operariado... #NAME? #NAME? Lafões não era operário, como se poderia pensar. Era guarda das obras públicas. Português de nascimento, viera menino para o Brasil, isto há mais de quarenta anos; entrara muito cedo para a repartição de águas da cidade, chamara a atenção dos seus superiores pelo rigor de sua conduta; e, aos poucos, fizeram-no chegar a seu generalato de guarda de enca- namentos e de torneiras que vazassem nos tanques de lavagem das casas particulares. Vivia muito contente com a sua posição, a sua portaria de nomeação, a sua carta de naturalização, e, talvez, não estivesse tanto, se tivesse 6 enriquecido de centenas de contos de réis. Assim tudo fazia crer, pois era de ver a importância ingênua do campônio que se faz qualquer coisa do Estado, e a solenidade de maneiras com que ele atravessava aquelas virtuais ruas dos subúrbios. Trazia sempre a farda de cáqui e o boné com as iniciais da repartição; um chapéu-de-sol de cabo, que, quando não o trazia aberto, a protegê-lo contra os raios do sol, manejava como a bengala de um vigário de aldeia portuguesa, furando o chão e levantando-o, para pousá-lo de novo, à medida que executava as suas longas passadas. Lafões respondeu assim a Marramaque: - Muito. Em todas as comissões por que o doutor Clapin tem passado, sempre procura dar trabalho ao maior número de operários. - Grande serviço! Arrebenta as verbas; no fim de dois ou três meses, despede mais da metade... Isto não se chama proteger; chama-se engazopar. - Seja, mas ele ainda faz isso, e os outros? Não fazem nada. De resto, é um homem democrata. Desde muito que se bate pela igualdade entre os servidores da nação. Não quer distinção entre funcionários públicos e jornaleiros. Quem serve à nação, seja em que serviço for, é funcionário público. - Honrarias! Isto não enche barriga! Por que ele não trabalha para diminuir a carestia da vida e dos aluguéis de casa? - Homessa, Marramaque! Você não leu o projeto dele sobre construção de casas para famílias pobres e modestas? Você não leu, Joaquim? O carteiro, que vinha ouvindo a conversa sem dar opinião, à interpelação de Lafões, interveio: - Li, de fato; mas li também que ele havia aumentado os aluguéis de suas casas, que são inúmeras, de quarenta por cento. - É isto! - acudiu com pressa Marramaque. - Clapin é muito generoso com o dinheiro dos outros, do Estado. Com o dele, é de uma sovinice de judeu e de uma ganância de agiota. Jesuíta! Felizmente Clara chegava com o café. A conversa apaixonada cessava, e os dois convivas de Joaquim recebiam os cumprimentos da menina: - A bênção, meu padrinho; bom-dia, Seu Lafões. Eles respondiam e punham-se a pilheriar com Clara. Dizia Marramaque: - Então, minha afilhada, quando se casa? - Nem penso nisso - respondia ela, fazendo um trejeito faceiro. - Qual! - observa Lafões. - A menina já tem algum de olho. Olhe, no dia dos seus anos... É verdade, Joaquim: uma coisa. O carteiro descansou a xícara e perguntou: - O que é? - Queria pedir a você autorização para cá trazer, no dia dos anos, aqui da menina, um mestre do violão e da modinha. Clara não se conteve e perguntou apressada: - Quem é? Lafões respondeu: - É o Cassi. A menina... O guarda das obras públicas não pôde acabar a frase. Marramaque interrompeu-o furioso: - Você dá-se com semelhante pústula? É um sujeito que não pode entrar em casa de família. Na minha, pelo menos... - Por quê? - indagou o dono da casa. - Eu direi, daqui a pouco; eu direi por quê - fez Marramaque transtornado. Acabaram de tomar café. Clara afastou-se com a bandeja e as xícaras, cheia de uma forte, tenaz e malsã curiosidade: - Quem seria esse Cassi? 7 II Quem seria esse Cassi? Quem era Cassi? Cassi Jones de Azevedo era filho legítimo de Manuel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de Azevedo. O Jones é que ninguém sabia onde ele o fora buscar, mas usava-o, desde os vinte e um anos, talvez, conforme explicavam alguns, por achar bonito o apelido inglês. O certo, porém, não era isso. A mãe, nas suas crises de vaidade, dizia-se descendente de um fantástico Lord Jones, que fora cônsul da Inglaterra, em Santa Catarina; e o filho julgou de bom gosto britanizar a firma com o nome do seu problemático e fidalgo avô. Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado "modinhoso", além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da Rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão", das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio - a famosa "pastinha". Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão. Era bem misterioso esse seu violão; era bem um elixir ou talismã de amor. Fosse ele ou fosse o violão, fossem ambos conjuntamente, o certo é que, no seu ativo, o Senhor Cassi Jones, de tão pouca idade, relativamente, contava perto de dez defloramentos e a sedução de muito maior número de senhoras casadas. Todas essas proezas eram quase sempre seguidas de escândalo, nos jornais, nas delegacias, nas pretorias; mas ele, pela boca dos seus advogados, injuriando as suas vítimas, empregando os mais ignóbeis meios da prova de sua inocência, no ato incriminado, conseguia livrar-se do casamento forçado ou de alguns anos na correção. Quando a polícia ou os responsáveis pelas vítimas, pais, irmãos, tutores, punham-se em campo para processá-lo convenientemente, ele corria à mãe, Dona Salustiana, chorando e jurando a sua inocência, asseverando que a tal fulana - qualquer das vítimas - já estava perdida, por esse ou por aquele; que fora uma cilada que lhe armaram, para encobrir um mal feito por outrem, e por o saberem de boa família, etc., etc. Em geral, as moças que ele desonrava eram de humilde condição e de todas as cores. Não escolhia. A questão é que não houvesse ninguém, na parentela delas, capaz de vencer a influência do pai, mediante solicitações maternas. A mãe recebia-lhe a confissão, mas não acreditava; entretanto, como tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho casado com uma criada preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou com uma moça branca lavadeira e analfabeta. Graças a esses seus preconceitos de fidalguia e alta estirpe, não trepidava em ir empenhar-se com o marido, a fim de livrar o filho da cadeia ou do casamento pela polícia. - Mas é a sexta moça, Salustiana! - Qual o quê! Calunia-se muito... - Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um perverso, é sem-vergonha. Eu sei o nome das outras. Olhe: a Inês, aquela crioulinha que foi nossa copeira e criada por nós; a Luísa, que era empregada do doutor Camacho; a Santinha, que ajudava a mãe a costurar para fora e morava na Rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava no "Joie de Vivre"... - Mas tudo isto já passou, Maneco. Você quer que o seu filho vá para a cadeia? Porque, casar com essas biraias, ele não se casa. Eu não quero. - Era preferível que ele fosse para a cadeia, ao menos não estava desmoralizando todo o dia a casa. 8 - Pois você faça o que quiser. Se você não der os passos, eu dou. Vou procurar o meu irmão, o doutor Baeta Picanço - rematava a mulher com orgulho. O pai desse Cassi era verdadeiramente um homem sério. Estreito de idéias, familiarizado no emprego público, que, há cerca de trinta anos, exercia, ele tinha profundos sentimentos morais, que lhe guiavam a conduta no seu comércio com os filhos. Nunca fora afetuoso: evitava até todas as exibições e exageros sentimentais; era, porém, capaz de estimá-los profundamente, amá-los, sem abdicar, entretanto, do dever paterno de julgá-los lucidamente e puni-los consoante a natureza das suas respectivas faltas. Era homem de pouca altura, trazia a cabeça sempre erguida, testa reta e alta, queixo forte e largo, olhar firme, debaixo do seu pince-nez de aros de ouro. Conquanto alguma coisa obeso, era deveras um velho simpático e respeitável; e, apesar da sua imponência de antigo burocrata, dos seus modos um tanto ríspidos e secos, todos o estimavam na proporção em que seu filho era desprezado e odiado. Tinham até pena dele, confrontando a severidade de sua vida com a crapulice de Cassi. Sua mulher não era lá muito querida, nem prezada. Tinha fumaças de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo às dos seus conhecimentos. O seu orgulho provinha de duas fontes: a primeira, por ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade. Quando se lhe perguntava - seu pai, o que era? - Dona Salustiana respondia: era do Exército; e torcia a conversa. Não era seu pai exatamente do Exército. Fora simplesmente escriturário do Arsenal de Guerra. Com muito sacrífício e graças a uma pequena fortuna que lhe viera ter por acaso às mãos, pudera educar melhorzinho os dois únicos filhos que tivera. A vaidade de Dona Salustiana não deixava que ela confessasse isso; e tanto era contagioso esse seu sentimento, no que tocava a seu pai, que as suas duas filhas, Catarina e Irene, sempre se referiam ao avô, como se fosse de verdade um general do Paraguai. Eram menos vaidosas do que a mãe; mas muito mais ambiciosas, em matéria de casamento. Dona Salustiana casara-se com o Manuel, quando este ainda era praticante e revia provas, à noite, nos jornais, para acudir às despesas da casa. Catarina e Irene sonhavam casar com doutores, bem empregados ou ricos, porque elas se julgavam prestes a se "formar", a primeira em música e piano, pelo trampolineiro Instituto Nacional de Música; e a segunda, pela indigesta Escola Normal desta Capital. Escusado é dizer que ambas tinham um grande desprezo pelo irmão, não só pela baixeza de sua conduta moral - o que era merecido - mas, também, pela sua ignorância cavalar e absoluta falta de maneiras e modos educados. Em começo, o pai consentia, apesar de tudo, que Cassi, o ínclito Cassi, tomasse parte na mesa familiar. Ninguém lhe dirigia a palavra, a não ser a mãe. As moças conversavam com o pai ou com a mãe, ou entre si; e, se ele se animava a dizer qualquer coisa, o velho Manuel olhava-o severamente e as filhas calavam-se. Houve um acontecimento doloroso, provocado pela perversidade de Cassi, que fez o pai tomar a deliberação extrema de expulsá-lo de casa e da mesa doméstica. Não foi expulso de todo, devido à intervenção de Dona Salustiana; mas o foi em meio. Entre as relações de suas irmãs, havia uma moça muito pobre, que morava na redondeza. Sua mãe era viúva de um capitão do Exército, e ela, a Nair, era filha única. Com auxílio de alguns parentes, a viúva ia encaminhando a filha, nos estudos próprios de seu sexo. Ela tinha tendência para música e procurou aproximar-se de Catarina, para explicar-lhe a matéria. Contava dezoito anos, muito risonha, de um amorenado sombrio, cabelos muito negros, pequenina e viva, com os seus olhinhos irrequietos e luminosos. Cassi a viu e logo a teve como boa presa, apesar de não ser totalmente sem apoio. Quis entabular namoro, na própria casa do pai, quando Nair vinha receber lições da irmã dele. Esta, porém, percebendo a manobra, proibiu-lhe, sob ameaça de contar ao pai, que ele viesse à sala, quando estivesse dando lição a Nair. O nome do pai apavorava Cassi, não que o estimasse e, por isso, o respeitasse deveras; mas porque "o velho", severo como era, bem podia pô-lo de vez na rua. 9 Se isso viesse a acontecer, não teria para onde ir, e o pouco que ganhava, no jogo, em brigas de galos e em comissões de agente de empréstimos, etc., seria absorvido para a casa e comida, pouco ou quase nada sobrando para roupas, sapatos e gravatas. Ele, sem isto tudo, estava perdido. Adeus amor! Se o quisesse, tinha que pagar... Considerando tal hipótese, não relutou em obedecer à irmã; mas começou a cercar Nair "por fora". Quando ela ia sair, precedia-a, ficava na porta da padaria, cumprimentava. Afinal, pôde conversar e declarar-se com a fatídica carta, que era a reprodução de um modelo que lhe dera um companheiro de malandragem, o Ataliba do Timbó, o qual, por sua vez, tinha obtido de um poeta porrista que morava na Piedade. Esse poeta, a quem o "intruso" Ataliba qualificava tão superiormente e de tal maneira, era o célebre Leonardo Flores, que o Brasil todo conhece e viveu uma vida pura, inteiramente de sonhos. Enfim, a pequena Nair, inexperiente, em plena crise de confusos sentimentos, sem ninguém que lhe pudesse orientar, acreditou nas lábias de Cassi e deu o passo errado. A mãe veio a descobrir-lhe a falta, que se denunciava pelo estado do seu ventre. Correu ao Senhor Manuel, que não estava. Falou a Dona Salustiana e esta, empertigando-se toda, disse secamente: - Minha senhora, eu não posso fazer nada. Meu filho é maior. - Mas, se a senhora o aconselhasse como mãe que é, e de filhas, talvez obtivesse alguma coisa. Tenha piedade de mim e da minha, minha senhora. E pôs-se a chorar e a soluçar. Dona Salustiana respondeu amuada, sem demonstrar o mínimo enternecimento por aquela dor inqualificável: - Não posso fazer nada, no caso, minha senhora. Já lhe disse. A senhora recorra à justiça, à polícia, se quiser. É o único remédio. A mãe de Nair acalmou-se um pouco e observou: - Era o que eu queria evitar. Será uma vergonha para mim e para a senhora e família. - Nós nada temos com o que Cassi faz. Se fosse nossa filha... Não acabou a indireta injuriosa; levantou-se e estendeu a mão à desolada mãe, como que a despedindo. A viúva saiu cabisbaixa; e, dali, foi à audiência do delegado distrital e expôs tudo. O delegado disse-lhe: - Apesar de estar ainda não há seis meses neste distrito, sei bem quem é esse patife de Cassi. O meu maior desejo era embrulhá-lo num bom e sólido processo; mas não posso, no seu caso. A senhora não é miserável, possui as suas pensões de montepio e meio soldo; e eu só posso tomar a iniciativa do processo quando a vítima é filha de pais miseráveis, sem recursos. - Mas, não há remédio, doutor? - Só a senhora constituindo advogado. - Ah! Meu Deus! Onde vou buscar dinheiro para isso? Minha filha, desgraçada, meu Deus! E pôs-se a chorar copiosamente. Quando serenou, o delegado mandou que um empregado da delegacia acompanhasse a senhora até em casa e ficou a pensar nas baixezas, nas dores, nas misérias que as casas encobrem e que, todo o dia, descobria, por dever de ofício. No dia seguinte, a mãe de Nair suicidava-se com lisol. Os jornais esgravataram o acontecimento e contaram as causas do suicídio com todos os pormenores. Manuel de Azevedo, o pai de Cassi, quando leu no trem o jornal, saltou na primeira estação, voltou e entrou pela casa adentro que nem um furacão, transtornado de fisionomia, com ríctus de ódio que o fazia outro homem muito diferente daquele reservado, bondoso e simpático burocrata que era. - Quedê ele? - Quem? - perguntou-lhe a mulher. - Ele, esse Cassi - fez ele com os punhos cerrados, a errar o olhar desvairado, pelos quatro cantos da sala. - Mas que há, homem? - fez a mulher assustada. - Lê isto. 10 Deu-lhe o jornal, apontando o local do suicídio. - Mas que culpa tem... Não acabou a frase, Dona Salustiana; o marido logo a interrompeu: - Culpa! Esse biltre sem senso moral algum; esse assassino, esse desgraçado que leva a corromper todas as moças e senhoras que lhe passam debaixo dos olhos, não o quero mais aqui, não o quero mais na minha mesa. Diga-lhe isto, Salustiana; diga-lhe isto, enquanto não o mato. As filhas tinham chegado e adivinharam a causa daquela explosão de ódio e raiva, coisa rara no pai. Procuraram acalmá-lo: - Sossegue, papai; sossegue. Catarina, que passara os olhos pelo jornal, muito sofreu com a desonra de Nair. Lamentou sinceramente o trágico desfecho da mãe da sua discípula gratuita; e assim falou ao pai: - Olhe, papai; eu me sinto em alguma coisa culpada, porque trouxe Nair para aqui, a fim de estudar música comigo. Depois de uma pausa acrescentou: - Que se há de fazer? É a fatalidade. - Não o quero mais aqui - repetiu o chefe da família. Os jornais não se deixaram ficar na simples notícia do suicídio. Revolveram a vida de Cassi; contaram-lhe as proezas; e ele, a conselho de sua mãe, foi passar uns tempos na casa do tio, o doutor, que tinha uma fazendola em Guaratiba. Pela narração dos quotidianos, pôde-se organizar toda a rede de insídias, de cavilosas mentiras, de falsas promessas, com que ele tinha cercado a pobre e ingênua vítima, cuja desonra determinou o suicídio da mãe. Ele, como de hábito, não falava de seus namoros a ninguém, muito menos a seu pai e a sua mãe; entretanto, para ganhar a confiança da pobre menina, dizia na carta que dissera à mãe que muito a amava ou textualmente: "confessei a mamãe que lhe amava loucamente" e avisava-lhe: "privino-lhe que não ligues ao que lhe disserem, por isso pesso-te que preze bem o meu sofrimento"; e, assim nessa ortografia e nessa sintaxe, acabava: "Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que diçestes na tua cartinha", etc. Confessava-se um infeliz "que tanto lhe adora" e lamentava não ser correspondido. Em outra, mostrava-se interessado pela saúde de Nair; e, depois de dar instruções como devia deixar a janela para que ele a pulasse, contava: "tão de pressa soube que estavas de cama fui ao doutor R. S. saber o que você tinha, ele disse-me que você tinha feito a loucura de molhar os peis na água fria" etc., etc. Nessa altura, entrava em detalhes secretos da vida feminina e aduzia: foi uma grande tristeza em saber que o doutor R. S. sabe de teus particulares moral (sic). No fim da missiva, ou quase, dizia: "enfim que eu devo fazer ‘se você não quer ser inteiramente minha’ como eu sou teu." Não se demorou muito na casa do tio. O doutor, orgulho de sua irmã Salustiana e protetor sempre por ela posto em foco para as despudoradas aventuras do sobrinho, desconfiando que este tramava uma das suas, nos arredores do seu sítio, sem mais detença, embarcou-o para a casa da irmã, mãe de Cassi, dizendo-lhe que ficasse com o filho, porque sobrinho como aquele, ele, doutor Baeta Picanço, desejava nunca tê-lo em casa. Não foi logo diretamente para a casa paterna, que era numa das primeiras estações de quem vem da Central. Ficou pelo Engenho de Dentro, de onde mandou, por Ataliba do Timbó, um bilhete à mãe, pedindo instruções. A mãe respondeu-lhe que viesse para casa; mas evitasse, por todos os meios, encontrar-se com o pai. Tinha ela arranjado as coisas, e ele teria sempre onde comer e dormir. Foi-lhe reservado o porão, na parte dos fundos, e a chácara, como recreio, onde raramente o pai ia. Jantava, almoçava e tomava café, no compartimento do porão onde morava. Logo na primeira manhã que despertou no seu humilhante aposento familiar, pensou logo em ir ver as suas gaiolas de galos de briga - o bicho mais hediondo, mais antipático, mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Estavam em ordem; sua mãe cuidara deles, como lhe pedira. Galos de briga eram a força de suas indústrias e do seu comércio equívocos. Às vezes, ganhava bom dinheiro nas apostas de rinhadeiro, o que vinha ressarcir os prejuízos que, porventura, 11 anteriormente houvesse tido nos dados; e, assim, conseguia meios para saldar o alfaiate ou comprar sapatos catitas e gravatas vistosas. Com os galos, fazia todas as operações possíveis, a fim de ganhar dinheiro; barganhava-os, com "volta", vendia-os, chocava as galinhas, para venda dos frangos a criar e educar, presenteava pessoas importantes, das quais supusesse, algum dia, precisar do auxílio e préstimos delas, contra a polícia e a justiça. Incapaz de um trabalho continuado, causava pasmo vê-lo cuidar todas as manhãs daqueles horripilantes galináceos, das ninhadas, às quais dava milho moído, triguilho, examinando os pintainhos, um por um, a ver se tinham bouba ou gosma. Fosse se deitar a que hora fosse, pela manhã lá estava ele atrapalhado com os galos malaios e a sua descendência de frangos e pintos. Nunca suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação solta, era incapaz para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela moléstia. A mórbida ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem brasileiro. Se já era egoísta, triplicou de egoísmo. Na vida, ele só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato possível. Nenhuma consideração de amizade, de respeito pela dor dos outros, pela desgraça dos semelhantes, de ditame moral o detinha, quando procurava uma satisfação qualquer. Só se detinha diante da força, da decisão de um revólver empunhado com decisão. Então, sim... Algumas boas lhe aconteceram. Tinha ele notado que uma moçoila com livros e attirail de normalista, na viagem de trem, o olhava muito. Marcou-lhe a fisionomia e, ao dia seguinte, à mesma hora, pôs-se, na estação, à espera dela; não veio. Esperou outro trem, não veio. Assim, esperou diversos. No outro dia, após esse, foi mais feliz; ela veio. Procurou lugar conveniente e pôs-se a fazer trejeitos. A moça não lhe deu importância. Durante dias, insistiu. Um belo dia, ele vai muito calmo, à cata da ingrata, quando ela apareceu acompanhada de um rapaz, que, pela intimidade com que a tratava e pela idade que revelava à primeira vista, parecia ser irmão ou marido da moça. Habituado a lidar com parentes dessa natureza, mas fracos, não se intimidou. Os dois no banco, ao lado dele, seguem viagem, palestrando calmamente. Cassi os olha insistentemente. Chegam à Central, e o rapaz despede-se da moça, que segue para a sua escola. Volta- se o cavalheiro e procura com o olhar o Senhor Cassi. - É o senhor? Cassi Jones responde: - Sou eu. - Desejava muito falar-lhe. Vamos à confeitaria; é coisa particular, e nós lá estaremos à vontade tomando um vermouth. Cassi fica com a pulga atrás da orelha e acompanha o desconhecido, que, com ar risonho e caminhando, vai dizendo: - O senhor talvez não me conheça. Porém eu, meu caro senhor, o conheço muito bem. Nos subúrbios, todos conhecem as suas habilidades, Senhor Cassi Jones; e, embora esteja lá morando há pouco, já tive notícias do seu valimento. Cassi assustava-se com a calma do rapaz e pôs-se a medir-lhe os músculos. Não trouxera a navalha, porque tinha medo de ser preso, por causa do negócio da Nair e do suicídio da mãe dela; e armado... Mediu a musculatura do desconhecido. Era antes fraco do que forte, mas parecia disposto. Chegaram à confeitaria e sentaram-se. O caixeiro serviu vermouth; e, quando iam em meio, o outro disse ex-abrupto para Cassi: - O senhor sabe quem é aquela moça que vinha a meu lado? Colhido de surpresa, não pôde tergiversar e disse prontamente: - Não sei absolutamente. - É minha irmã - afirmou o desconhecido. - Também não sabia - respondeu docilmente o terrível Cassi. 12 - Não podia saber naturalmente - justificou o rapaz. - Saio cedo de casa para o escritório e volto tarde, pois janto e almoço na cidade. Agora, eu chamei o senhor para lhe dizer uma coisa: se o senhor continua a perseguir minha irmã, meto-lhe cinco tiros na cabeça. Ao dizer isto, foi tirando dos bolsos de dentro do paletó um magnífico Smith & Wesson, muito reluzente e com um luxuoso cabo de madrepérola. Cassi redobrou o esforço para não denunciar o susto e, simulando calma, disse: - Mas, meu caro senhor, creio que nunca faltei com o respeito devido à senhora sua irmã. - É verdade; mas é preciso deixar de persegui-la - confirmou o outro e logo acrescentou, como que dando por acabada a entrevista: - Quer tomar alguma coisa mais? - Não; muito obrigado. Despediram-se, sem se apertarem as mãos; e Cassi foi para a sua roda de Ataliba do Timbó, Zezé Mateus, Franco Sousa e Arnaldo. Um deles perguntou-lhe: - O que queria aquele sujeito contigo? - Nada. É meu vizinho e, sabendo que sou morador antigo, pediu-me que lhe arranjasse um cavalo para vender, que ele me dava uma comissão. Cassi era assim e assim mantinha a sua fama de valente. Não julguem que tinha estima e amizade por esses rapazes que andavam sempre com ele. Ele não os amava, como não amava ninguém e com ninguém simpatizava. Era uma coorte digna dele, que o iludia do vácuo feito em torno dele, por todos os rapazes daquelas bandas. Ataliba do Timbó era um mulato claro, faceiro, bem-apessoado, mas antipático pela sua falsa arrogância e fatuidade. Havia sido operário em uma oficina do Estado. Meteu-se com Cassi e, aos poucos, abandonou o emprego, abandonou a mãe, de quem era único arrimo, e quis imitar o mestre até o fim. Foi infeliz. Arranjou uma complicação policial e matrimonial de donzelas, nas quais Cassi era useiro e vezeiro, e saiu-se mal. Obrigaram-no a casar; mas teve a hombridade de ficar com a mulher, embora, resignadamente, ela sofresse toda a espécie de privações, no horrível subúrbio de Dona Clara, enquanto ele andava sempre muito suburbanamente elegante e tivesse vários uniformes de football. Tirava proventos do jogo de dados ou campista, e também do football, em que era considerado bom jogador - "plêiel", como dizem lá. De vários clubes, havia sido expulso ou se havia demitido voluntariamente, porque os companheiros suspeitavam-no ser peitado pelos adversários, para facilitar estes fazer pontos. Ultimamente, era agente de jogo de bicho, e sua mulher viera gozar de mais algum conforto. Pobre Ernestina! Era tão alegre, tão tagarela, era moça, e bonitinha, na sua fisionomia miúda e na sua tez pardo-clara, um tanto baça, é verdade, mas não a ponto de enfeá-la, quando conheceu Ataliba; e hoje? Estava escanzelada, cheia de filhos, a trair sofrimentos de toda a espécie, sempre mal calçada, quando, nos tempos de solteira, o seu luxo eram os sapatos! Quem te viu e quem te vê! Zezé Mateus era um verdadeiro imbecil. Não ligava duas idéias; não guardava coisa alguma dos acontecimentos que assistia. A sua única mania era beber e dizer-se valente. Topava todos os ofícios; capinava, vendia peixe e verdura, com cesto à cabeça; era servente de pedreiro, apanhava e vendia passarinhos, como criança; e tinha outras habilidades desse jaez. Era branco, com uma fisionomia empastada, cheia de rugas precoces, sem dentes, todo ele mole, bambo. A sua testa era deprimida, e era longo e estreito o seu crânio, do feitio daqueles a que o povo chama "cabeça de mamão-macho". Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua imbecilidade nativa e pela bebida, uma família a quem ele prestava pequenos serviços - ir às compras, ao açougue, lavar a casa - dava-lhe um barracão na chácara, onde dormia, e comida, se estivesse presente às refeições. Encontrava-se nessa ruína humana o melhor da turma e o único que não tinha maldade no coração. Era um exhomem e mais nada. 13 O Franco Sousa, este, era um malandro mais apurado, que, uma vez ou outra, aderia ao grupo de Cassi. Intitulava-se advogado e vivia de embrulhar os crédulos clientes que lhe caíam nas mãos. Todos sabiam que ele não tratava de coisa alguma, pois não podia absolutamente tratar, já por não saber coisa alguma das tricas forenses, já por não ser, de verdade, advogado. Assim mesmo, sempre apareciam ingênuos roceiros, simplórias viúvas, que, no pressuposto de que os seus serviços, na justiça, sobre a demarcação de terras litigiosas ou despejos de inquilinos relapsos, fossem mais baratos, procuravam-no. Ele recebia os adiantamentos e, em seguida, mais algum dinheiro, conforme a ingenuidade e a falta de experiência do cliente, e não fazia nada. Entretanto, vivia muito decentemente com a mulher, filhos e filhas. Cassi não lhe pisava em casa, e, aos poucos, foi se afastando do violeiro, a conselho da mulher, que zelava extremamente pela reputação das filhas, que se faziam moças. O último dos asseclas do modinheiro era um tal Arnaldo, Arnaldo tout court. Nele, talvez houvesse tipo mais nojento do que mesmo em Cassi. A sua profissão consistia em furtar, no trem, chapéus-de-sol, bengalas, embrulhos dos passageiros que estivessem a dormitar ou distraídos. De tarde, ele fazia a especialidade dos embrulhos; e, à noite, às vezes, a altas horas, postava-se na beira da plataforma de estação pouco freqüentada e, quando o trem tomava movimento e impulso, arrebatava rapidamente os chapéus dos passageiros, através da portinhola, principalmente se de palha e novos. Vendia-os, no dia seguinte, como vendia os chapéus-de-sol, as bengalas e o conteúdo dos embrulhos, se fosse de coisa vendável; roupas de lã ou branca, livros, louça, talheres, etc. Se fossem, porém, doces, frutas, queijos, biscoitos, grãos, ele levava para a casa e contava à mulher que só arranjara dinheiro para comprar aquelas guloseimas para as crianças. Usava dos mais imprevistos estratagemas, para não pagar a casa de sua moradia. Numa, tendo ficado a dever oito meses, apresentando-se-lhe o cobrador com os recibos, pediu-os para examiná-los e ficou com eles, alegando que ia consultar pessoa competente em matéria de selo, porquanto as estampilhas não lhe pareciam legais. Nunca mais os devolveu; e, apesar de todas as ameaças, ainda ficou morando na casa quatro meses. Os seus vizinhos contavam que ele tinha também o hábito de arrebatar as notas do Tesouro das mãos das crianças, quando as encontrava sós também a caminho das vendas, onde iam fazer compras para as casas paternas, levando-as à mostra, na imprevidência natural de crianças. Inútil é repetir que Cassi não tinha nenhuma espécie de amizade por esses rapazes, não pela baixeza de caráter e de moral deles, no que ele sobrelevava a todos; mas pela razão muito simples de que a sua natureza moral e sentimental era sáfara e estéril. A seus pais e às suas irmãs, não o prendia nenhuma dose de afeição, por mais pequena que fosse. Mesmo com sua mãe, que o tinha retirado muitas vezes dos xadrezes policiais, em vésperas de seguir para a detenção, ele só tinha manifestações de ternura, quando estava às voltas com a polícia ou com os juízes. O seu fundo e os seus princípios explicavam de algum modo essa sua aridez moral e sentimental. A sua educação e instrução foram deveras descuradas. Primeiro nascido do casal, quando as exigências da manutenção da família obrigavam seu pai a trabalhar dia e noite, não pôde este, pois poucas horas passava em casa, vigiá-las convenientemente. Rebelde, desde tenra idade, a doçura para com ele, por parte de sua mãe, e os prejuízos dela impediram-na que o corrigisse convenientemente, assiduamente, no tempo próprio. Não ia ao colégio; fazia "gazeta", correndo pelas matas das cercanias da residência dos pais, então em Itapiru, com outros garotos. O que faziam, pode-se bem adivinhar; mas a mãe fingia não perceber, passava a mão pela cabeça do filho querido, nada dizia ao pai, que quase mourejava durante as vinte e quatro horas do dia. Cresceu assim, sem nenhuma força moral que o comprimisse; e o pai seria a única. Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha, com o produto de uma herança que tocara à mulher, Manuel de Azevedo veio encontrar, aos treze anos, o filho completamente viciado, fumando às escâncaras, mal lendo, aos gaguejos, e escrevendo ainda muito pior. Pô-lo nos "Salesianos" de Niterói. As informações semanais eram péssimas; e, ao fim de três ou quatro meses de colégio, não sabemos 14 que torpeza cometeu no colégio que, uma bela tarde, acompanhado de um padre magro, com uma cortante figura angulosa de asceta, veio a ser entregue Cassi ao pai, em casa. Falou-lhe o reverendo em particular, e Manuel de Azevedo, quase chorando, despediu-se do reverendo, que insistia nas desculpas, e respondendo deste único feitio ao eclesiástico: - Os senhores têm razão, muita razão. Eu é que me sinto infeliz por ter um filho bastante mau e vicioso com tão pouca idade. Que castigo, meu Deus! A mulher quis saber o motivo da expulsão, mas a dignidade e a vergonha de pai fizeram que nem mesmo à sua mulher ele o dissesse. Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a aprender um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana revoltou-se e esbravejou: - Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele é sobrinho de um doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços ao país. Sempre lembrado dos seus duros começos em que ela muito o ajudara e o animara, Manuel tinha, pela mulher, uma grande e sincera afeição, evitando o quanto possível contrariá-la, e, por isso, não teimou dessa feita. Meses depois, porém, logo que chegou em casa, a mulher e as filhas, chorando, pedem que vá soltar Cassi, que estava preso em uma delegacia. O menino já roçava pelos dezesseis anos e mostrava-se assim precoce na carreira de falcatruas. Havia sido preso, pelo respectivo vigia, no interior de uma casa vazia, quando procurava arrancar encanamentos de chumbo para vender. O pai, então, voltou à idéia de pô-lo em uma oficina, a ver se o trabalho manual, já pelo cansaço, já pela convivência com pessoas honestas e de trabalho, desviava-o do mau caminho que ele estava iniciando. A mãe acedeu com grande repugnância, e ele foi ser aprendiz de tipógrafo. No fim de um mês, porém, era despedido, porque, tendo ido receber uma conta de cartões de visitas, uns cinco mil-réis ou pouco mais do que isso, voltara sem dinheiro, dizendo que o tinha perdido. Revistado convenientemente, foi-lhe o dinheiro encontrado quase intacto entre a botina e a meia. A fascinação pelo dinheiro e sua absorção nele eram o seu fraco. Queria-o; mas sem trabalho e para ele só. As menores dívidas que fazia, não pagava; não oferecia nada a ninguém. Houve quem o conhecendo e sabendo dessa sua sovinice doentia explicasse os seus desvirginamentos seguidos e as suas constantes seduções a raparigas casadas, como sendo a resultante da aridez de dinheiro, que o encaminhava a amores gratuitos; e de uma atividade sexual levada ao extremo, que a sua estupidez explicava. Seja devido a esta ou aquela causa, a este ou aquele motivo, o certo é que nele não havia nevrose ou qualquer psicopatia que fosse. Não cedia a impulsos de doença; fazia tudo muito calculadamente e com todo o vagar. Muito estúpido para tudo o mais, entretanto, ele traçava os planos de sedução e desonra com a habilidade consumada dos scrocs de outras naturezas. Tudo ele delineava lucidamente e previamente removia os obstáculos que antevia. Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor antigo, que impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres moças daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a reduzida instrução concentram a esperança de felicidade num Amor, num grande e eterno Amor, na Paixão correspondida. Sem ser psicólogo nem coisa parecida, inconscientemente, Cassi Jones sabia aproveitar o terreno propício desse mórbido estado d'alma de suas vítimas, para consumar os seus horripilantes e covardes crimes; e, quase sempre, o violão e a modinha eram seus cúmplices... III Marramaque, apesar de sua instrução defeituosa, senão rudimentar, tinha vivido em roda de pessoas de instrução desenvolvida e educação, e convivido em todas as camadas. Era de uma cidadezinha do Estado do Rio, nas proximidades da Corte, como se dizia então. Feito os seus estudos primários, os pais empregaram-no num armazém da cidade. Estávamos em plena 15 escravatura, se bem que nos fins, mas a antiga Província do Rio de Janeiro era próspera e rica, com as suas rumorosas fazendas de café, que a escravaria negra povoava e penava sob os açoites e no suplício do tronco. O armazém em que Marramaque era empregado havia de tudo: ferragens, roupas feitas, isto é, camisas, calças, ceroulas grosseiras, para trabalhadores; armas, louças, etc., etc. Comprava diretamente nos atacadistas da Corte; além disso, o seu proprietário era intermediário entre os pequenos lavradores e as grandes casas da Capital do Império, isto é, comprava as mercadorias àqueles, por conta destas, com o que ganhava comissão. Marramaque era contemplativo e melancólico, e vivia, debruçado ao balcão do armazém, ouvindo os tropeiros e peões contar histórias de todo o gênero: façanhas de valentia, maus encontros pelos caminhos desertos, proezas de desafio à viola e de amor roceiro. No gênio, não saía ao pai, que era um minhoto ativo, trabalhador, reservado e econômico. Em poucos anos de Brasil, conseguiu ajuntar dinheiro, comprar um sítio em que cultivava os chamados "gêneros de pequena lavoura", aipim, batata-doce, abóboras, tomates, quiabos, laranja, caju e melancia, dando-lhe esta última cultura, pelos fins do ano e começo do seguinte, lucros razoáveis. Com o correr do tempo, comprara um bote; e, duas vezes por semana, acompanhado de um companheiro a quem pagava, trazia ele mesmo os produtos de sua lavoura, navegando por um pequeno rio, mais ou menos canalizado, atravessando a Guanabara até o Mercado. Vinha com o terral e voltava com a "viração". O filho não seria capaz dessas proezas; mas, como sua mãe, que, embora quase branca, tinha ainda evidentes traços de índio, seria capaz de cantar o dia inteiro modinhas lânguidas e melancólicas. Havia, quando rapazola, muitas névoas na sua alma, um diluído desejo de vazar suas mágoas e os sonhos, no papel, em verso ou fosse como fosse; e um forte sentimento de justiça. O espectro da escravidão, com todo o seu cortejo de infâmias, causava-lhe secretas revoltas. Certo dia, um viajante, que pousara no armazém, deixara, por esquecimento, na mesa do quarto em que fora hospedado, um volume das Primaveras, de Casimiro de Abreu. Ele nunca havia lido versos seguidamente. Nos jornais que lhe caíam à mão, mesmo nos retalhos deles e em páginas soltas de revistas que vinham parar ao armazém para embrulho, é que lera alguns. Dessa forma, encontrando, no seu natural melancólico, cheio de uma doce tristeza e de um obscuro sentimento da mesquinhez do seu destino, terreno propício, o livro de Casimiro de Abreu caiu-lhe n'alma como uma revelação de novas terras e novos céus. Chorou e sonhou com os doridos queixumes do sabiá de São João da Barra e não deixou de notar que, entre ele e o poeta das Primaveras, havia a semelhança de começarem ambos sendo caixeiros de uma casa de negócio da roça. Cristalizada a emoção profunda que lhe causara a leitura dos versos do gaturamo fluminense, Marramaque resolveu agir, isto é, instruir-se, educar-se e... fazer versos também. Para isso, precisava sair dali, ir para a Corte. De quando em quando, pousavam no armazém, onde dormia também, caixeiros-viajantes de grandes casas da Corte que tinham negócios com o Senhor Vicente Aires, patrão de Marramaque. O seu natural bom, prestativo, a sua irradiação simpática, provinda dos seus sonhos vagos e amontoados, faziam-no estimado deles todos. Havia um, entretanto, que ele estimava mais. Era um rapaz português, o Senhor Mendonça, Henrique de Mendonça Souto. Em tudo, ele era o contrário do pobre Marramaque. Era alegre, folgazão, palrador, bebia o seu bocado; mas sempre honesto, leal e franco. Certa noite, estando ele hospedado nos fundos do armazém do Senhor Vicente Aires, de volta de uma partida de "manilha", na casa do sacristão da Matriz, o alegre "cometa" veio a encontrar o caixeiro Marramaque lendo o volume de Casimiro de Abreu. Era alta noite, passava da meia: e, como o caixeiro tinha que se erguer às cinco da manhã, para abrir o armazém e atender a tropeiros e viajantes em preparativos de partida, tal fato causou pasmo a "Seu" Mendonça: - Ainda lês, menino! E não te lembras que, daqui a pouco, deves estar de pé, filho de Deus! - Esperava o senhor. 16 - E mais esta! Então tu pensas que eu mesmo não sabia despir-me e meter-me à cama? Que lês? - Primaveras, de Casimiro de Abreu. O caixeiro-viajante acabou de vestir-se e deitou-se. Depois de cobrir- se, perguntou a Marramaque: - Tu gostas de versos, rapaz? Hesitou em responder, mas Mendonça fez rispidamente: - Dize lá, rapaz; porque nisto não vai crime algum. Está a ver-se, rapaz! Dize! - Gosto, sim senhor - fez o caixeiro timidamente. - Pois deves ir para o Rio - acudiu Mendonça com pressa - estudar e... quem sabe lá? - Se eu arranjasse um emprego na Corte... Mendonça pensou um pouco e disse: - Na casa, não te serve. Há muito serviço e tu não te acostumas... És aprendiz de poeta, tens inclinação para essas coisas de versos e te aborrecias. O que te serve, era trabalhar numa farmácia. Fala a teu pai que eu te arranjo a coisa. Escrevo-te logo que chegar ao Rio. Mendonça cumpriu a palavra, e o pai consentiu que ele viesse para o Rio. Marramaque foi trabalhar numa farmácia; e, à noite, ia completando a sua instrução, conforme podia, nas instituições filantrópicas de instrução que existiam no tempo. Logo, tratou de fazer versos; e, certa vez, foi surpreendido por um dos habitués da farmácia, compondo uma poesia. As farmácias, naquele tempo, eram o lugar de encontro de pessoas graves e sisudas da vizinhança, que, à tarde, após o jantar, iam a elas espairecer e conversar. Quem surpreendeu o jovem Marramaque, fazendo versos, foi o Senhor José Brito Condeixa, segundo oficial da Secretaria de Estrangeiros, poeta também, mas, de uns tempos para cá, somente festivo e comemorativo. Além de publicar, nos dias de gala, sonetos e outras espécies de poesias alusivas à festa, não se esquecia nunca de comemorar as datas domésticas da família imperial, em versos de um lavor chinês. Esperava o hábito da Rosa; mas, só veio a ter no fim do Império, quando retirou da Imprensa Nacional o terceiro volume da Sinópsis da Legislação Nacional, na parte que se refere ao Ministério de Estrangeiros. Lendo os versos do adolescente, Brito Condeixa gostou e jurou que havia de proteger o caixeirozinho. Falou ao patrão, e ele foi se empregar numa papelaria-livraria, na Rua da Quitanda. Freqüentada por poetas e literatos que ensaiavam os primeiros passos, nos últimos quinze anos do Império, com eles se relacionou e sempre era escolhido para secretário, gerente, tesoureiro, de suas efêmeras publicações. Deixou o emprego da papelaria, sem zanga; e atirou-se às refregas e às decepções da pequena imprensa, com ardor e entusiasmo, sangue republicano e abolicionista, sobretudo abolicionista. Esse jornalismo contrário e efêmero pouco ou quase nada lhe dava para a sua manutenção. Vivia uma vida de privações e necessidades prementes. Sem deixar os companheiros poetas, escritores, parodistas, artistas, ele se improvisou guarda-livros ambulante, fazendo escritas aqui e ali, com o que ganhava para ter casa, comida, roupa e até, às vezes, socorrer os camaradas. Manteve-se sempre absolutamente solteiro. Guardava, da sua vida de acólito da boêmia literária, recordações muito vivas, que gostava de contar, ensopando-as de comovida saudade. Anedotas deste, casos com aquele, expedientes daquele outro, ele narrava com chiste e firmeza de lembrança; mas, ao que parece, a figura de seu tempo que mais o impressionou foi a de um pequeno poeta, que nunca teve seu quarto de hora de celebridade e hoje está totalmente esquecido. A respeito dele, Marramaque se referia com o sentimento profundo de quem se lembra de um irmão muito amado: - Ah! O Aquiles! Que alma! Que poeta! O senhor - dirigindo ao interlocutor ocasional - não o conheceu? - Não; não me recordo. - Nem de nome? Ele deixou obras. O outro com quem conversava, por delicadeza, respondia: 17 - De nome, pois não, pois não! - Que alma era esse Aquiles Varejão! Morreu há pouco tempo, em 94 ou 95; e, se não me falha a memória, na Santa Casa. Morreu na maior miséria; entretanto, tudo o que ganhava - ele era tipógrafo - estava sempre disposto a distribuir com os amigos. Não pude ir vê-lo... Tinha tido o primeiro ataque e estava em tratamento. Lembro-me, porém, do seu último soneto que a Gazeta publicou. Que lindeza! Aquilo era um poeta que não forçava, nem tinha compasso e régua. Ouça só! E, com uma voz difícil, devido à semiparalisia da parte esquerda da boca, esbugalhando os olhos, devido ao esforço para pronunciar bem as palavras, recitava: Prostrado nesta enxerga, sinto a vida Ir, pouco e pouco, procurando o nada; Pra mim não há mais sol de madrugada, Mas sim tremor da luz amortecida. Prazeres onde estais? Longa avenida De amores, que trilhei nesta jornada? Tudo acabou. É justa esta pousada, Antes que dobre o sino da partida. Feliz quem tem família! Tem carinho De mãe, de esposa, e, em derredor do leito, Não sofre o horror de achar-se tão sozinho. Porém ao meu destino estou sujeito; Devo, batendo as asas, sem ter ninho, Buscar, quem sabe? um mundo mais perfeito? nan O Marramaque, quase sempre, acabava de recitar os versos do amigo com os olhos úmidos; e o ouvinte, não só pela dor demonstrada pelo declamador, mas também pelo tom elegíaco do soneto, comovia-se também e, antes de qualquer pergunta, comentava: - É bonito! É mesmo lindo. Marramaque, poeta raté, tinha uma grande virtude, como tal: não denegrir os companheiros que subiram nem os que ganharam celebridade. A todos gabava, sem que, por isso, não lhes notasse as falhas de caráter. Tendo vivido assim, em vários e diferentes meios, ganhando experiência e conhecimento dos homens e das coisas da vida, estava apto para julgar bem quem era Cassi Jones. Demais, devido à sua convivência com literatos, poetas e escritores, adquirira o hábito tirânico de ler diariamente todos os jornais que apanhava na repartição, e não fazia lá outra coisa, devido a seu estado de saúde. De quando em quando, ele encontrava notícias mais que escabrosas, às vezes sangrentas mesmo, em que estava envolvido o nome do famigerado violeiro. De umas delas, ele se lembrava perfeitamente, porque lhe havia causado, na sua alma retardada de idealista e sonhador, de poeta que quis ser amoroso e cavalheiresco, a maior revolta e um movimento de nojo irreprimível. Joaquim dos Anjos não estava a par dela, pois não tinha hábito de ler jornais e pouco tagarelava com as pessoas de suas bandas suburbanas. Marramaque apoiou-se em contador e por alto. Num dos subúrbios, na proximidade da casa de Cassi, veio a residir um casal. A mulher era moça, fruída de carnes, alta, louçã, grandes olhos negros, um tipo do Sul, ao que parece do Rio Grande. O marido, que era oficial de Marinha, maquinista, era amorenado, tirando a mulato, baixo, sempre triste, curvado e pensativo. Apesar da diferença de gênios, que se percebia, e de idade, que 18 estava à mostra, pareciam viver bem. Quase sempre saíam à tarde, iam a festas, a teatros; aos domingos, procuravam visitar os arrabaldes pitorescos e voltavam à noite. Tomavam comida fora e só tinham uma rapariguita preta, de uns dezesseis anos, para os serviços leves da casa. Não se sabe como, Cassi conseguiu conhecer a gaúcha e seduzi-la. Mal o marido saía, ele se metia em casa da moça com violão e tudo. A vizinhança murmurava contra aquela pouca-vergonha. Fosse de que fonte fosse, o marido veio a saber e um dia, de revólver em punho, furioso, fora de si, louco, totalmente louco, penetrava na casa e alvejou a mulher com dois tiros de revólver, de cujos ferimentos veio a morrer horas depois. Após ter alvejado mortalmente a mulher, correu em perseguição de Cassi, que, descalço, de calças e em mangas de camisa, saltava cercas e muros, para se pôr fora do alcance do marido indignado. Entregando-se à prisão, o oficial maquinista contou toda a sua desdita e o causador dela. O delegado mandou procurar Cassi e conseguiu pilhá-lo à noite. Os agentes deram uma batida nos matos, e o galã fugitivo foi preso e recolhido à enxovia. Por ocasião dessa prisão foi que ele veio a conhecer Lafões. Tinha este sido detido e recolhido ao xadrez, por ter feito um distúrbio, num botequim, onde tomara uma carraspana, em comemoração ao ter acertado uma centena no bicho. Quando Cassi foi recolhido, já Lafões estava no xadrez, havia quatro horas. Cassi, que fugira do revólver do oficial, sem paletó e sem colete, em cujas algibeiras estava o seu dinheiro, não pudera comprar cigarros; mas Lafões os tinha. O profissional da sedução pediulhe um, que lhe foi dado. Disse, então, para Lafões: - Vou te soltar, meu velho. Tu és uma bela alma. - Por que vosmecê está preso, meu caro senhor? Cassi respondeu com muita calma e indiferença, como se tratasse de um acontecimento vulgar: - Por nada. Coisas de mulheres, meu velho. É o meu fraco. Pela grade do xadrez, dirigiu-se a um soldado, a quem conhecia, e falou-lhe baixo qualquer coisa. Em breve, foi a praça substituída por outra. Vendo isso Cassi, disse para o velho Lafões: - Estás aqui, estás na rua. Mandei o soldado falar ao meu chefe político: e ele vai interessarse para seres solto. - E vosmecê? - Não te importes comigo. Tenho que depor... Na verdade, Lafões foi solto; não houve, porém, qualquer intervenção do chefe político de Cassi. Libertou-o o próprio comissário que o prendera e o conhecia como homem morigerado e qualificado. Entretanto, o guarda das obras públicas sempre supôs que a sua libertação tivesse sido obra de Cassi, por isso lhe era grato e o defendia com todo o ardor. Lafões era um homem simplório, que só tinha agudeza de sentidos para o dinheiro que vencia. Vivendo sempre em círculos limitados, habituado a ver o valor dos homens nas roupas e no parentesco, ele não podia conceber que torvo indivíduo era o tal Cassi; que alma suja e má era a dele, para se interessar generosamente por alguém. Muito diferente do guarda era Marramaque, cujo âmbito de vida sempre fora mais amplo e mais variado. Abraçava um maior horizonte de existência humana... Quando aquele lembrou que se convidasse o celebrizado violeiro, o contínuo viu logo os perigos que a presença do profissional da desonra das famílias podia trazer à paz e ao sossego que reinavam na casa de Joaquim dos Anjos. Além de compadre, Marramaque era profundamente amigo do carteiro, que o auxiliava nos seus transes de toda a ordem: um pouco, originados pelos hábitos boêmios que, de todo, não perdera; um pouco, pela exigüidade de seus vencimentos, com os quais sustentava uma irmã viúva e dois filhos dela, ainda menores, com os quais morava, nas proximidades de Joaquim. Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele sempre observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm 19 as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social. Se assim acontecia com as honestas, como não pensaria sobre o mesmo tema um malandro, um valdevinos, um inconsciente, um vagabundo cínico, como ele sabia ser o tal Cassi? Durante o jantar, ainda se falou muito a respeito, mas com as reservas que a assistência de uma moça pedia fossem tomadas. - Vamos experimentar, meu caro Marramaque. "Ele" sabe com quem se mete... - Eu cá, por mim, nada tenho a dizer dele. Sempre me tratou muito bem e sou-lhe grato. - É que você, Lafões, não lê os jornais. - Qual jornais! Qual nada! Tudo que lá vem neles é mentira. Clara ouvia esse diálogo com muita atenção e forte curiosidade. Num dado momento, não se conteve e perguntou: - O que é que esse Cassi faz, padrinho? A mãe acudiu ríspida, dizendo: - Não é de tua conta, bisbilhoteira! A única filha do carteiro, Clara, fora criada com o recato e os mimos que, na sua condição, talvez lhe fossem prejudiciais. Puxava a ambos os pais. O carteiro era pardo-claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso. Na tez, a filha tirava ao pai; e no cabelo, à mãe. Joaquim era alto, bem alto, acima da média, ombros quadrados e rija musculatura; a mãe, não sendo muito baixa, escapava à média da altura de nossas mulheres em geral. Tinha ela uma fisionomia medida, de traços breves, mas regular; o que não acontecia com o marido, que era possuidor de um grosso nariz, quase chato, e malares salientes. A filha, a Clara, havia ficado em tudo entre os dois; média deles, dos seus pais, era bem exatamente a filha de ambos. Habituada às musicatas do pai e dos amigos, crescera cheia de vapores de modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre e de cor com os dengues e o simplório sentimentalismo amoroso dos descantes e cantarolas populares. Raramente saía, a não ser para ir bem perto, à casa de Dona Margarida, aprender a bordar e a costurar, ou com esta ir ao cinema e a compras de fazendas e calçado. A casa dessa senhora ficava a quatro passos de distância da do carteiro. Apesar de ser uso, nos subúrbios, irem as senhoras e moças às vendas fazer compras, Dona Engrácia, sua mãe, nunca consentiu que ela o fizesse, embora de sua casa se avistasse tudo o que se passava, no armazém do "Seu" Nascimento, fornecedor da família. Essa clausura mais alanceava sua alma para sonhos vagos, cuja expansão ela encontrava nas modinhas e em certas poesias populares. Com esse estado de espírito, o seu anseio era que o pai consentisse na visita do famoso violeiro, cuja má fama ela não conhecia nem suspeitava, devido ao cerco desvelado que a mãe lhe punha à vida; entretanto, supunha que ele tirava do violão sons mágicos e cantava coisas celestiais. Joaquim dos Anjos, afinal, tendo o assentimento da mulher e também curioso de conhecer as habilidades de Cassi, no violão e na trova popular, consentiu que Lafões o trouxesse em sua casa, no dia do aniversário de Clara. Viria aquela vez e não viria mais... Lafões acolheu a resposta com viva alegria e tratou de entender-se com o tocador malafamado. Fez. Quando os seus companheiros de vagabundagem souberam, comentaram cinicamente o convite: - Conheço bem esse carteiro. Ele não trabalha aqui; mas na cidade, na zona dos bancos. Deve ter dinheiro. Tem um pancadão de filha, meu Deus! Que torrão de açúcar! - Então estás feito, hein, Cassi? - fez alvarmente Zezé Mateus, àquela tendenciosa observação de Ataliba do Timbó. Cassi, o mestre suburbano do violão, o dedo da modinha, fingiu-se aborrecido e retrucou com fingido desgosto: 20 - Vocês mesmo é que me desacreditam. Dizem coisas que não fiz e não faço, e todo mundo me enche de desprezo, senão de ódio. Não sou essas coisas que dizem de mim. Timbó teve vontade de rir à vontade, mas, embora mais forte do que Cassi, tinha este sobre ele um ascendente moral que não se explicava. Zezé Mateus, porém, com o seu peculiar meio-riso de imbecil, fez: - Estou brincando, meu "nego". Sou teu amigo - tu sabes. Eles conversavam sempre de pé, parados pelas esquinas. Raramente, sentavam-se a uma mesa de café. Aquela intempestiva observação do Ataliba, seguida do comentário de Zezé Mateus, arrefecera a palestra da sociedade. Despediram-se, e cada um foi para o seu lado. Cassi, que fingira aborrecer-se com a tendenciosa notícia de Timbó e o comentário de Zezé, ficou, ao contrário, muito contente com ela. Tinha resolvido não ir à tal festa; mas, pelo que informara Ataliba, talvez não tivesse nada a perder. Experimentaria. Mordeu os lábios e seguiu para o clube, com a consciência leve e o coração alegre... IV Veio o dia da festa; a pequena casa regurgitava; e - coisa curiosa - havia mais convidados de idade meã que moças e rapazes. Isto se explicava pela estreiteza de relações de Clara e dos seus pais, devido à vida que levavam. Entre as moças, havia duas ou três colegas de Clara, a filha de Lafões, uma sobrinha solteirona, Hermengarda, de Dona Engrácia, e poucas mais. Entre os rapazes, havia dois jovens colegas de Joaquim, Sabino e Honório; um irmão de Hermengarda e um afilhado de Lafões, que era vigia do cais do porto. Em compensação, as senhoras, mães de família, eram inúmeras. Destacava-se muito Dona Margarida Weber Pestana, pelo seu ar varonil, tendo sempre ao lado o filho único, de quatorze anos, fardado com uma fardeta de colegial. Tinha, essa senhora, um temperamento de heroína doméstica. Viera muito cedo para o Brasil, com o pai, que era alemão; ela, porém, havia nascido em Riga, russa portanto, como sua mãe o era. Antes dos dezesseis anos, ficara órfã de mãe. Seu pai emigrara para o Brasil, contratado a trabalhar no acabamento das obras da Candelária. Era estucador, marmorista, um pouco escultor; enfim, um operário fino, para essas obras especiais de revestimento e decoração interna de edifícios suntuosos. Bem cedo, mostrou ela inclinação por um tipógrafo que comia na "pensão" que havia montado, na Rua da Alfândega, e dirigia ativamente. Casaram-se, e ele morreu dois anos depois, após o casamento, de tuberculose pulmonar, deixando-lhe o filho, o Ezequiel, que não a largava. Ano e meio depois, morreu-lhe o pai, de febre amarela. Continuou com a "pensão"; mas bem cedo vendeu-a e comprou uma casita nos subúrbios, aquela em que morava, quase junto de Joaquim. Costurava para fora, bordava, criava galinhas, patos e perus, e mantinha-se serenamente honesta. O Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com ditinhos de amor chulo. Certo dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guarda-chuva com vigor. À noite, no intuito de defender as suas galinhas da sanha dos ladrões, de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela da cozinha, e fazia fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua bondade e pelo rigor de sua viuvez. O Ezequiel, seu filho, puxara muito ao pai, Florêncio Pestana, que era mulato, mas tinha os olhos glaucos, translúcidos, de sua mãe meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos - olhos tão estranhos a nós e, sobretudo, ao sangue dominante no pequeno. Afora Dona Margarida Pestana, notava-se Dona Laurentina Jácome, uma velha, sempre metida com rezas e padres, pensionista do ex-Imperador e empregada numa capelinha da vizinhança, de cuja limpeza era encarregada, inclusive da lavagem das toalhas dos altares. Não podia conversar outra coisa que não fossem acontecimentos eclesiásticos e, quase sempre, os de sua igreja: - A senhora não sabe, Dona Engrácia, de uma coisa? #NAME? - O Padre Santos, este mês, disse mais de vinte missas e só recebeu cinco. Pobre Padre Santos! É mesmo um santo! 21 E contraía a fisionomia enrugada e, erguendo-a um pouco, apertava as mãos ao jeito de quem reza. Além desta, havia uma digna de nota: era Dona Vicência. Morava na vizinhança também e vivia de deitar cartas e cortar "coisas-feitas". O seu procedimento era inatacável e exercia a sua profissão de cartomante com toda a seriedade e convicção. Havia outras sem nada de notável, como entre os cavalheiros só havia um que se destacava. Convém não esquecer que Lafões e Marramaque lá estavam a postos. O cavalheiro digno de nota era um preto baixo, um tanto corcunda, com o ombro direito levantado, uma enorme cabeça, uma testa proeminente e abaulada, a face estreitante até acabar num queixo formando, queixo e face, um V monstruoso, na parte anterior da cabeça; e, na posterior, no occipital desmedido, acaba o seu perfil monstruoso. Chamava-se Praxedes Maria dos Santos; mas gostava de ser tratado por doutor Praxedes. A monstruosidade de sua cabeça o pusera a perder. Por tê-la assim, julgou-se uma inteligência, um grande advogado, e pôs a freqüentar cartórios, servindo de testemunha, quando era preciso, indo comprar estampilhas, etc., etc. Com o tempo, tomou algumas luzes e atirou-se a tratar de papéis de casamento e organizou uma biblioteca particular de manuais jurídicos, de índices de legislação, etc., etc. Vestia-se sempre de fraque, botinas de verniz ou gaspeadas, e não dispensava a pasta indicadora de homens de leis. Quando foi moda ser de rolo, ele a usou assim; quando veio a moda de ser em saco, como a trazem agora os advogados, ele comprou uma luxuosa de marroquim com fechos de prata. Não falava senão em leis e decretos: "porque - dizia ele - a Lei 1857, de 14 de outubro de 1879, diz que a mulher casada, no regime do casamento, não pode dispor dos seus bens, ter dinheiro em bancos, na Caixa Econômica; entretanto, o Decreto 4572, de 24 de julho de 1899, determina..." Afora o seu amor a esse embrulho legislativo, gostava de versos; mas não de modinha. Era este o cavalheiro mais notável que havia vindo ao baile de anos de Clara. É que até àquele momento, com grande desgosto para as moças, o trovador Cassi não havia ainda aparecido. Clara não ocultava o seu desapontamento; e uma de suas colegas lhe dizia em confidência: - Clara, toma cuidado. Este homem não presta. A moça não respondia, encaminhava-se para a sala de jantar, a fim de disfarçar a emoção, simulando ir beber água. Clara estava bem vestidinha. Era inteiramente de crepom o seu vestido, com guarnição de renda de indústria caseira, mas bonita e bem trabalhada; o pescoço saía-lhe nu e a gola do casaco terminava numa pala debruada de rendas. Calçava sapatos de verniz e meias. Nas orelhas tinha grandes africanas e penteara-se de bandós, rematando o penteado para trás, na altura do pescoço, um coque, fixado por um grande pente de tartaruga ou coisa parecida. Quando ela foi beber água, seguiu-lhe a sua amiga Etelvina, uma crioulinha espevitada, sua antiga colega do colégio. Vestia-se esta com um mau gosto de aborrecer. Todo o vestido era azulceleste, com rendas pretas; os sapatos amarelos e as meias cor de abóbora. Ao redor da cabeça, dividindo a testa ao meio, uma fita vermelha, de um vermelho muito berrante. Os gregos chamavam este adorno feminino de stephané; e, ao que parece, as portadoras não eram lá tidas como virtuosas. Essa Etelvina era a primeira dançarina do baile, não tinha até ali perdido uma contradança. A orquestra era composta de flauta, cavaquinho e violão - um "terno", como denominam os seresteiros. O baile ia adiantado, quando a filha de Lafões veio correndo do portão do mimoseado jardim que enfrentava a casa, anunciando alegre: - Ê vem aí, "Seu" Cassi. Entrou. Houve um estremecimento que percorreu os convivas, como um choque elétrico. Todas as moças, das mais diferentes cores, que, ali, a pobreza e a humildade de condição esbatiam e harmonizavam, logo o admiraram na sua insignificância geral, tão poderosa é a fascinação da 22 perversidade nas cabeças femininas. Nem César Bórgia, entrando mascarado, num baile à fantasia, dado por seu pai, Alexandre VI, no Vaticano, causaria tanta emoção. Se não disseram: "É César! É César!" - codilharam: "É ele! É ele!" Os rapazes, porém, não ficaram contentes, pressentindo essa satisfação das damas; e, entre eles, puseram-se a contar a biografia escabrosa do modinheiro. Apresentado, por Lafões, aos donos da casa, e à filha, ninguém lhe notou o olhar guloso de grosseiro sibarita sexual que deitou para os seios empinados de Clara. O baile continuou animado; Cassi, porém, não dançava e foi reforçar o terno de cavaquinho, flauta e violão, com o seu instrumento. Dona Margarida, com o seu porte severo, olhava as damas, sentada ao sofá austríaco, tendo ao lado o filho. A polca era a dança preferida, e todos quase a dançavam com requebros próprios de samba. Os convidados que não dançavam se haviam espalhado por várias partes da casa. Joaquim, Lafões e Marramaque ouviam o doutor Praxedes explicar o que era um habeas corpus preventivo. - Exemplifico - dizia o doutor Praxedes, erguendo a mão direita catedraticamente, com o indicador apontado para o teto. - É uma medida perfeitamente jurídica de profilática, porque... Nisto acode o "doutor" Meneses, um velho hidrópico, com a mania de saber todas as ciências, vivendo na maior miséria, apesar de exercer clandestinamente a profissão de dentista. - Doutor Praxedes - acudia o doutor Meneses - não julgo a comparação própria. Cada ciência tem seu campo próprio... A discussão tomava vulto e Joaquim se levantou. Sempre que ele fazia isto, Meneses seguia com os olhos o carteiro, a ver se ele ia até a cozinha mandar pôr a ceia. O sábio dentista viera à última hora, na esperança que a houvesse. Não lograra dinheiro para tomar um caldo. Joaquim, porém, aborrecido com a discussão, fora simplesmente até à sala de visitas convidar: - Quem quiser tomar alguma coisa, comer biscoitos, é só vir cá dentro. Não façam cerimônia. Toda a vez que o anfitrião dizia isso, Meneses comia duas empadas e quatro sandwiches e bebia uma boa "talagada" de parati. O dono da casa convidava Cassi especialmente; mas este não bebia, não gostava. Não era esse o seu prazer... De uma feita, indo à sala, Joaquim convidou-o: - Por que não canta, "Seu" Cassi? Até ali, não se falara nisso, e, repinicando as cordas do violão, não deixava o famoso mestre violeiro de devorar sorrateiramente com o olhar lascivo os bamboleios de quadris de Clara, quando dançava. Ninguém se atrevia a convidá-lo; todos esperavam que o dono da casa o fizesse. Feito o convite, ele respondeu cheio de uma cerimônia afetada: - Estou sem voz: esfalfei-me muito ontem, no baile do doutor Raposo e... Vendo que seu pai o havia convidado, Clara animou-se: - Por que não canta, "Seu" Cassi? Dizem que o senhor canta tão bem... Esse - "tão bem" - foi alongado maciamente. Cassi concertou, com apurada pelintragem e com ambas as mãos, a pastinha oleosa; limpou, em seguida, os dedos no lenço e respondeu dengoso: - Qual, minha senhora! São bondades dos camaradas... Clara insistiu: - Cante, "Seu" Cassi! Vá! Ele, então, torcendo a cabeça para o lado esquerdo, cuja mão espalmada abria para o alto, e fingindo constrangimento, respondeu: - Já que a senhora manda, vou cantar. Marramaque, que tinha ouvido tudo, ficou espantado com o desembaraço da afilhada. Diabo! fez ele de si para si. O violeiro, com todo o dengue, agarrou o violão, fez estalar as cordas e avisou: 23 -- Vou cantar uma modinha velha, mas muito gentil e literária -- "Na Roça". Muitos circunstantes ficaram desapontados, porque já a conheciam; mas outros gostavam muito da modinha e aprovaram a escolha. Cassi começou: “Mostraram-me um dia Na roça dançando Mestiça formosa De olhar azougado...” nan Isto tudo era dito quase aos poucos, sem modulação alguma, enquanto o violão repinicava as mesmas notas, numa indigência musical, numa monotonia de sons, que dava sono. Quando chegava ao estribilho: “Sorria a mulata Por quem o feitor Diziam que andava Perdido de amor.” Por aí ele empregava o seu tic invencível de tocador de violão e cantor de modinha. Cantando, revirava os olhos e como que os deixava morrer. O Cardeal de Retz diz, nas suas famosas Memórias, que Mme. de Montayon, ou uma outra qualquer duquesa, ficava mais bela quando os seus olhos morriam. Cassi talvez ficasse mais, se ele tivesse alguma beleza; entretanto, esse seu tic impressionava as damas. Clara, que sempre a modinha a transfigurava, levando-a a regiões de perpétua felicidade, de amor, de satisfação, de alegria, a ponto de quase ela suspender, quando as ouvia, a vida de relação, ficar num êxtase místico, absorvida totalmente nas palavras sonoras da trova, impressionou-se profundamente com aquele jogo de olhar, com que Cassi comentava os versos da modinha. Ele sofria, por força, senão não punha tanta expressão de mágoa, quando cantava - pensava ela. Tão embevecida estava, tão longe pairava o seu pensamento que, quando Cassi acabou, se esqueceu de aplaudir o troveiro que, para o seu rudimentar gosto, lhe tinha proporcionado tão forte prazer artístico. Comentava-se ainda a execução do maestro Cassi; e ele ao lado percebia os gabos e críticas. Por esse tempo, como uma aparição em alçapão de mágica, surgiu repentinamente, no centro da sala, o "doutor" Praxedes, célebre advogado nos auditórios suburbanos. Iniciou: - Minhas senhoras e meus senhores. Peço-lhes a devida vênia, para recitar uma mimosa poesia de um nosso patrício. É uma obra-prima de chiquismo e de moralidade. O seu autor é o Major Urbano Duarte, que morreu, se não me falha a memória, general-de-brigada. Vou recitá-la, se me permitem. Chama-se "A Lágrima". Dizendo isto, o seu todo grotesco ainda mais grotesco ficava, com a gesticulação desordenada dos braços, que rodavam, duros e hirtos, em torno dos ombros, de cima para baixo. Pareciam asas de um antigo moinho de vento. Começou gritando a primeira estrofe e já se babando pelos cantos dos seus lábios violáceos: “Cismava à beira-mar, a linda Marieta, Seguindo tristemente o sulco do vapor, O qual, fugindo além, sumiu-se no horizonte, Levando a longe terra o seu primeiro amor.” O seu gritar, o seu babujar, o seu gesticular foram crescendo. Quando chegou ao primeiro terceto do soneto, quase não tinha mais voz. Da assistência, apossara-se uma louca vontade de rir; 24 muitos se contiveram; outros, porém, se retiraram para gargalhar longe. O doutor Praxedes nada via e continuava impertérrito; afinal acabou: “Depois, quando o luar banhando a natureza Em pálidos clarões de luz misteriosa, Eu vi no arrebentar do mar embravecido A lágrima a boiar na pétala de rosa.” Ao terminar, recebeu palmas, e, sentando-se, cansado de tão estúrdio esforço muscular, ainda disse: - Essa lágrima é a da Marieta de que "o verso" fala no começo. É preciso que os senhores e as senhoras não se esqueçam desse pormenor. Marramaque, que até ali, sem ser notado, seguira a insistência com que o trovador Cassi olhava Clara, resolveu pregar-lhe uma peça. Apoiado na sua bengala amiga, com a perna esquerda encolhida, devido aos ataques, e o respectivo braço fixado em ângulo reto, conseqüência também dos ataques - encaminhou-se para o centro da sala, capengando, a fim de recitar, por sua vez. A parte esquerda da boca era defeituosa também, e isso provocava-lhe muito esforço para pronunciar bem as palavras. Não atendeu a nenhuma consideração e pôs-se em pé para recitar. Assim é que ia fazer; deu o título da poesia - "Persistência" - e começou naturalmente, como quem já soubera recitar com relativa perfeição, quando estava são. Recitando, olhava sempre para Cassi, que, calado, numa reserva de moço bem-comportado, ficara de pé, encostado ao vão da janela de frente. Marramaque atacou os versos, saltitando na sala: “Se às vezes contigo esbarro e grito, esperneio e berro, que me traz de há muito zarro a paixão que aqui encerro, Tu foges. E a ti me agarro, cismando: (e nisto não erro) Se eu tenho uma alma de barro, tu mostras que a tens de ferro. E se nada mais espirro é porque, então, se não corro, a coisa já cheira a esturro. Que queres? Eu próprio embirro com este amor por que morro, mas é que sou muito burro.” O final causou uma franca hilaridade na assistência, e até Clara riu- se a perder; mas ninguém perguntou quem era o autor; e, se lhe perguntassem, Marramaque não lhe sabia o nome. Era a poesia sem assinatura, num jornal antigo, gostara dela e a decorara. O povo é avesso a guardar os nomes dos autores, mesmo os dos romances, folhetins que custam dias e dias de leitura. A obra é tudo, para o pequeno povo; o autor, nada. 25 Cassi, que, logo, antipatizara com Marramaque, percebeu que a coisa era com ele. Perceberia outro mais burro do que o gabado artista da modinha, tanto era a teimosia com que o velho aleijado o olhava. Cassi pensou, de si para si: "Este pobre-diabo me paga.” O que espantava, na ação de Marramaque, era a sua coragem. Ele, semi-aleijado, velho, pobre, lançava um solene desafio àquele valdevinos forte, são, habituado a rolos e rixas. Cassi não se demorou mais por muito tempo. Pediu o chapéu, despediu-se dos donos da casa e da filha destes, fez um cumprimento em roda e, quando deu com o rosto de Marramaque, com os olhos estranhamente fixos nele, a boca semi-aberta, o braço esquerdo fixado em ângulo reto, pela moléstia, arrastou-se. Parecia uma aparição... Deixara de ser o contínuo aleijado que ele antes tinha visto; era outra coisa, mais do que o simples Marramaque, que o espantava e o fazia tremer. Com a atitude desassombrada daquele velho aleijado em face dele e que havia adivinhado, não sabia ele como, os seus maus propósitos em relação à Clara, Cassi sentiu, apesar do seu quase congênito embotamento moral, que havia na vida, ou, por outra, nas relações entre os homens, um guia silencioso e secreto, que pesava os nossos atos e pedia, para dar- lhes apoio e encaminhar-nos para uma paz interior e um contentamento conosco mesmos, o emprego, em todas as nossas ações, do Justo, do Leal, do Verdadeiro e do Generoso; e esse guia - ele via agora com o caso de Marramaque - dava forças aos fracos, coragem aos tímidos e uma seráfica e íntima satisfação, quando cumpríamos o nosso dever com honra e dignidade. Esse guia era a Consciência. Confusamente, ele pensou isso; mas, ao passar o terror, o pavor, que lhe causara o olhar fixo, vitrificado, sobrenatural do velho Marramaque; olhar que o fizera um instante voltar-se para dentro de si mesmo e examinar-se - tornou com pressa ao que era e, fazendo um desdenhoso - ora! - , repetiu de si para si a ameaça que já fizera: "Aquele boneco de engonço me paga.” Depois da saída de Cassi, ainda se bailou até os primeiros albores da aurora. Meneses, que tinha cochilado bastante, pôde, afinal, pela madrugada, comer um pouco de galinha assada e porco, que havia sobrado do jantar; mas não encetou discussão mais alguma com o doutor Praxedes; mesmo porque este já se havia despedido, por ter de comparecer muito cedo à audiência de um pretor, a fim de inquirir testemunhas num feito importante em que funcionava como advogado. Quando todos se foram e Clara recolheu-se a seu quarto, que dava para a sala de jantar, Joaquim e a mulher ficaram nela, comendo ainda alguma coisa que sobrara. Foi então que Engrácia disse para o marido: - Tudo foi muito bem. Todos se portaram decentemente, com respeito; mas uma coisa não quero mais. - O que é? - É que esse Cassi venha mais aqui. Dona Margarida me disse que ele é, é um devasso. Você não vê como ele canta indecentemente, revirando os olhos... Não o quero mais aqui; se ele vier... - Não é preciso você se zangar, Engrácia; não gostei também dele e não porá mais os pés na minha casa. Clara, que, deitada, no quarto, havia ouvido toda a conversa, pôs- se, em silêncio, a chorar. V Quem conhecesse intimamente Engrácia, havia de ficar espantado com a atitude decisiva que tomou em relação à visita de Cassi. O seu temperamento era completamente inerte, passivo. Muito boa, muito honesta, ativa no desempenho dos trabalhos domésticos; entretanto, era incapaz de tomar uma iniciativa em qualquer emergência. Entregava tudo ao marido, que, a bem dizer, era quem dirigia a casa. Rol de compras a fazer na venda do "Seu" Nascimento, diariamente, e também o de legumes e verduras, quem os organizava era o marido, especificando tudo por escrito e deixando o dinheiro para o quitandeiro, todas as manhãs, quando ia para o trabalho. De caminho, deixava a lista de gêneros no "Seu" Nascimento, onde pagava tudo por mês. 26 Qualquer acontecimento inesperado que lhe surgisse no lar, punha-a tonta e desvairada. Quando ainda tinham a velha preta Babá, que a criara na casa dos seus protetores e antigos senhores de sua avó, talvez um deles, pai dela, ficou Engrácia quase doida, ao ser a velha Babá acometida de um ataque súbito. Não sabia o que fazer. Foi preciso que Dona Margarida interviesse, mandasse chamar o médico, fizesse aviar a receita, tomasse, enfim, as providências que o caso exigia. A velha morreu daí a pouco, de embolia cerebral. Muito Engrácia sofreu com essa morte, pois, não tendo conhecido sua mãe, que lhe morrera aos sete anos, fora Babá que a criara. Os seus protetores tinham sido abastados; eram descendentes de um alferes de milícias, que tinha terras, para as bandas de São Gonçalo, em Cubandê. Pouco depois da Maioridade, com a morte do chefe da casa, filhos e filhas se transportaram para a Corte, procurando aqueles empregaram-se nas repartições do governo. Um dos irmãos já habitava a capital do Império e era cirurgião do Exército, tendo chegado a cirurgião-mor, gozando de grande fama. Para a cidade não trouxeram nenhum escravo. Venderam a maioria e os de estimação libertaram. Com eles, só vieram os libertos que eram como da família. Pelo tempo do nascimento de Engrácia, havia poucos deles e delas em casa. Só a Babá, sua mãe e um preto ainda estavam sob o teto patriarcal dos Teles de Carvalho. Engrácia foi criada com mimo de filha, como os outros rapazes e raparigas, filhos de antigos escravos, nascidos em casa dos Teles. Por isso, corria, de boca em boca, serem filhos dos varões da casa. O cochicho não era destituído de fundamento, naquela família, composta de irmãs e irmãos, ainda abastada, que se comprazia, tanto uns como as outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuos, que viam a luz do dia, pela primeira vez, em sua casa. As senhoras, então, eram de uma meiguice de verdadeiras mães. Engrácia recebeu boa instrução, para a sua condição e sexo; mas, logo que se casou - como em geral acontece com as nossas moças -, tratou de esquecer o que tinha estudado. O seu consórcio com Joaquim, ela o efetuara na idade de dezoito anos. Fosse a educação mimosa que recebera, fosse uma fatalidade de sua compleição individual, o certo é que, a não ser para os serviços domésticos, Engrácia evitava todo o esforço de qualquer natureza. Não saía quase. Era regra que só o fizesse duas vezes por ano: no dia 15 de agosto, em que subia o outeiro da Glória, a fim de deixar uma espórtula à Nossa Senhora de sua íntima devoção; e, no dia de Nossa Senhora da Conceição, em que se confessava. Levava sempre a filha e não a largava de a vigiar. Tinha um enorme temor que sua filha errasse, se perdesse... A não ser com ela, Clara, muito a contragosto da mãe, saía de casa para ir ao cinema, no Méier e Engenho de Dentro, e outras vezes - poucas - para fazer compras nas lojas de fazendas, de sapatos e outras congêneres, acreditadas nos subúrbios. Essa reclusão e, mais do que isso, a constante vigilância com que sua mãe seguia os seus passos, longe de fazê-la fugir aos perigos a que estava exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosidade em descobrir a razão do procedimento de sua mãe. Clara via todas as moças saírem com seus pais, com suas mães, com suas amigas, passearem e divertirem-se, por que seria então que ela não o podia fazer? A pergunta ficava sempre sem resposta, porque não havia meio, naquele isolamento em que vivia, de tudo e de todos, de encontrar a que cabia. Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis e meritórios, era incapaz do que é verdadeiramente educação. Ela não sabia apontar, comentar exemplos e fatos, que iluminassem a consciência da filha e reforçassem-lhe o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria. A mulher de Joaquim dos Anjos tinha a superstição dos processos mecânicos, daí o seu proceder monástico em relação à Clara. Enganava-se com a eficiência dela; porque, reclusa, sem convivência, sem relações, a filha não podia adquirir uma pequena experiência da vida e notícia das abjeções de que está cheia, como 27 também a sua pequenina alma de mulher, por demais comprimida, havia de se extravasar em sonhos, em sonhos de amor, de um amor extra-real, com estranhas reações físicas e psíquicas. Acresce, ainda, que era geral em sua casa o gosto de modinhas. Sua mãe gostava, seu pai e seu padrinho também. Quase sempre havia sessões de modinhas e violão na sua residência. Esse gosto é contagioso e encontrava, no estado sentimental e moral de Clara, terreno propício para propagar-se. As modinhas falam muito de amor, algumas delas são lúbricas até; e ela, aos poucos, foi organizando uma teoria do amor, com os descantes do pai e de seus amigos. O amor tudo pode, para ele não há obstáculos de raça, de fortuna, de condição; ele vence, com ou sem pretor, zomba da Igreja e da Fortuna, e o estado amoroso é a maior delícia da nossa existência, que se deve procurar gozá-lo e sofrê-lo, seja como for. O martírio até dá-lhe mais requinte... As emolientes modinhas e as suas adequadas reações mentais ao áspero proceder da mãe tiraram-lhe muito da firmeza de caráter e de vontade que podia ter, tornando-a uma alma amolecida, capaz de render-se às lábias de um qualquer perverso, mais ou menos ousado, farsante e ignorante, que tivesse a animá-lo o conceito que os bordelengos fazem das raparigas de sua cor. Cassi era dessa laia: entretanto, Clara, na sua justificável ignorância do mecanismo da nossa vida social, julgava que seus pais eram com ele injustos e grosseiros. Depois do baile de seu aniversário, quinze ou vinte dias depois, num domingo, Cassi bateu à porta da casa de seus pais. Engrácia estava justamente arrumando a sala de visitas; recebeu-o com visível desgosto e gritou para a cozinha, onde estava Clara: - Chama teu pai, que está aí "Seu" Cassi. A moça ia aproximar-se para falar ao modinheiro, quando a mãe lhe disse rapidamente: - Vá chamar seu pai! Ande! Joaquim não custou a vir; e, após os cumprimentos, dirigiu-se ao rapaz: - Que é que manda nesta casa, meu caro senhor? - Nada. Fui visitar um amigo e, passando pela sua porta, resolvi cumprimentá-lo. - Muito obrigado. A partida de solo está fervendo e eu não me posso demorar. Cassi olhou um instante, com seu olhar mau, o velho mulato; mas a nada se atreveu. Estiveram calados dois ou três minutos um diante do outro, até que o famoso violeiro tomou o alvitre de despedir-se. Clara veio saber da cena, pela narração que seu pai fez à sua mãe, e ficou aborrecida, cheia de desgostos com eles e com a situação em que estava, imposta por eles, para o seu sofrimento. Avaliou em algum ressaibo de revolta o procedimento dos pais. O que queriam fazer dela? Deixá-la ficar para "tia" ou fazê-la freira? E ela precisava casar-se? Era evidente; sua mãe e seu pai tinham, pela força das coisas, que morrer antes dela; e, então, ela ficaria pelo mundo desamparada? Cochichavam que Cassi era isto e era aquilo. Dona Margarida e o padrinho eram os que mais mal falavam dele: que era um devasso, um malvado, um desencaminhador de donzelas e senhoras casadas. Como ele poderia ser tanta coisa ruim, se freqüentava casas de doutores, de coronéis, de políticos? Naturalmente havia nisso muita inveja dos méritos do rapaz, em que ela não via senão delicadeza e modéstia e, também, os suspiros e os dengues de violeiro consumado. Uma dúvida lhe veio; ele era branco; e ela, mulata. Mas que tinha isso? Havia tantos casos... Lembra-se de alguns... E ela estava tão convencida de haver uma paixão sincera no valdevinos, que, ao fazer esse inquérito, já recolhida, ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros quase estouravam de virgindade e ansiedade de amar. De resto, era preciso libertar-se, passear, conhecer a cidade, teatros, cinemas... Ela não conhecia nada disso. Até ir de um pulo à venda do "Seu" Nascimento não tinha licença. Um dia, por inadvertência, faltou sal para preparar o jantar; pois, nem mesmo assim, teve licença de ir à venda, e sua mãe não foi, para não deixá-la só. Tiveram que esperar uma hora, até que o caixeiro passasse. Entretanto, o armazém do "Seu" Nascimento não era mal freqüentado, e todos que lá paravam eram pessoas de certa consideração e sem pecha alguma. Esta última observação de Clara era inteiramente verdadeira. 28 Mesmo a Rosalina, mais conhecida pelo apelido pejorativo de Mme. Bacamarte, apesar da vida má e desgraçada que levava, no armazém se portava com todo o rigor. Era verdadeiramente infeliz, essa rapariga. Seduzida em tenra idade, a polícia obrigou o sedutor a casar-se com ela. Nos três primeiros anos, as coisas correram mais ou menos naturalmente. Ao fim deles, devido a reveses, o marido começou a embirrar com ela, a atribuir-lhe toda a sua desgraça, a espancá-la, mas dando alguma coisa com que ela se sustentasse e aos filhos. Já bebia, o marido dela; e, por esse tempo, fazia-o sem método nem medida. Bebia a mais não poder, em casa, nos botequins, em toda a parte. Faltava à oficina para beber. Rosalina "pegou" o vício do marido e, do pouco dinheiro que ele lhe dava ou com o seu trabalho obtinha, comprava parati. O marido devia seis meses de casa - um modesto barracão de madeira, com uma sala, um quarto e um pequeno adendo para a cozinha. O senhorio perseguia-o; ele fugia e deixava com a mulher o encargo de explicar os atrasos. Um belo dia, ela vê entrar o proprietário com dois homens. Nada dizem. Encostam sua escada no telhado e destelham a choupana. Deixou tudo o que tinha na mão dos desalmados. Pede a uma vizinha que fique com um filho; e uma outra, que fique com o mais moço, e correu a atirar-se debaixo do primeiro trem que passou. Sofreu escoriações e fraturas em um braço e uma perna; mas os médicos da Santa Casa conseguiram salvá-la. Saiu renovada, e o seu rostinho de mulatinha sapeca tinha recuperado um pouco o viço e a petulância que devia ter pela puberdade. Os filhos, a mãe - uma pobre lavadeira - os tinha recolhido; e o marido nunca mais o vira. Em começo, portou-se bem; mas bem depressa foi correndo de mão em mão, até que as moléstias venéreas a tomaram de todo, obrigando-a a visitas constantes à Santa Casa, para levar injeções e sofrer operações. Proibida de beber, não obedecia à prescrição médica. Quando não tinha dinheiro, obtido de que maneira fosse, esperava pacientemente que as suas galinhas ou as de sua mãe, com quem morava, "pusessem", e logo corria à venda a trocá-los, por duzentos ou trezentos réis de parati. Ela, porém, não fazia "ponto" no armazém do "Seu" Nascimento. Educado e criado na roça, tendo negociado no interior do Estado do Rio, onde ainda tinha fazenda, ele gostava que pessoas de certa ordem fossem ao seu negócio ler os jornais e conversar - hábito do interior, como todos sabemos. A sua venda tinha até aqueles tradicionais tamboretes de abrir e fechar das antigas vendas e ainda são conservados nos armazéns roceiros. Demais, a sua casa de negócio ficava num lugar pitoresco, calmo, pouco transitado, diante das velhas árvores da chácara de Mr. Quick Shays e olhando para uns cumes caprichosos de montanhas distantes. Compravam muitas pessoas, para as quais tinha freguesia certa. Um deles era o Alípio, um tipo curioso de rapaz que, conquanto pobre e ter amor à cachaça, não deixava de ser delicado e conveniente de maneiras, gestos e palavras. Tinha um aspecto de galo de briga; entretanto, estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos malaios de rinhadeiro, não possuindo - convém saber-se - nenhuma. Sem ser instruído, não era ignorante; mas era inteligente e curioso de invenções e aperfeiçoamentos mecânicos. O velho Valentim era um outro freqüentador da venda, muito curioso e pitoresco. Português, com muito mais de sessenta anos, não deixava de trabalhar, chovesse ou fizesse sol. Era chacareiro e, devido talvez ao ofício, que ele o devia exercer há bem perto de quarenta anos, tinha o corpo curvado de modo interessante. Não se sabia se era para trás ou para diante; fazia uma espécie de S, em que faltassem as extremidades. Contava longos "casos" que não se acabam mais, especialmente o João de Calais - como ele pronunciava -, pontilhando a sua longa e enfadonha narração, com rifões portugueses de uma graça saborosa e uma filosofia saloia. Era o que se aproveitava da sua conversa. Aparecia, também, em certas ocasiões, o Leonardo Flores, poeta, um verdadeiro poeta, que tivera o seu momento de celebridade no Brasil inteiro e cuja influência havia sido grande na geração de poetas que se lhe seguiram. Naquela época, porém, devido ao álcool e desgostos íntimos, nos quais predominava a loucura irremediável de um irmão, não era mais que uma triste ruína de homem, amnésico, semi-imbecilizado, a ponto de não poder seguir o fio da mais simples conversa. Havia publicado cerca de dez volumes, dez sucessos, com os quais todos ganharam 29 dinheiro, menos ele, tanto assim que, muito pobremente, ele, mulher e filhos agora viviam com o produto de uma mesquinha aposentadoria sua, do governo federal. Raro era sair, porque a mulher punha todo o esforço em que ele o não fizesse. Mandava buscar parati, comprava-lhe os jornais de sua estimação, a fim de que ele permanecesse em casa. Às mais das vezes, ele obedecia; mas, em algumas raras, recalcitrava, saía, com quinhentos réis em cobre, na algibeira, bebia aqui, ali, dormia debaixo das árvores das estradas e ruas pouco freqüentadas, e, mesmo, quando o delírio alcoólico o tornava forte, despia-se todo e gritava heroicamente numa doentia e vaidosa manifestação de personalidade: - Eu sou Leonardo Flores. O povo sabia vagamente que ele tinha celebridade. Chamava-o - o poeta. No começo, caçoava com ele, mas ao saber de sua reputação, deram em cercá-lo de uma piedosa curiosidade. - Um homem desses acabar assim - que castigo! - dizia um. - É "cosa" feita! Foi inveja da "inteligença" dele! - dizia uma preta velha -. Gentes da nossa cô não pode "tê inteligença"! Chega logo os "marvado" e lá vai reza e "fêtiço", "pa perdê" o homem - rematava a preta velha. Aparecia um circunstante mais prático na sua piedade, vestia novamente o poeta e levava-o para a casa. Era justamente a ele, Leonardo Flores, que o doutor Meneses procurava, quando, naquela manhã de dia santo e não feriado, entrou na venda de "Seu" Nascimento, mancando, devido à inchação das pernas, e com as suas barbas brancas, abundantes, mas não cerradas, aparadas e tratadas à imitação do nosso último Imperador. O doutor Meneses galgou a soleira da porta com esforço; parou um instante, logo que se viu no interior da venda, pôs as mãos nas cadeiras e respirou com força. Após os cumprimentos, perguntou: - O Flores não tem aparecido? - Há muito tempo que não vem aqui - fez o "Seu" Nascimento do interior do balcão. - Fui à casa dele, e disse-me a mulher que havia saído... Preciso tanto dele... Ao dizer isto, sentava-se no tamborete que o caixeiro lhe abrira e o pusera onde ele estava, o dentista. Descansou mais um pouco, sorveu mais uma forte dose de ar e, dirigindo-se ao Alípio, perguntou: - Como vai você, Alípio? Só estavam na venda Alípio e o velho Valentim, este em pé, encostado ao umbral de uma porta lateral; e aquele, sentado, lendo um jornal. Alípio respondeu: - Vou bem; não tão bem como o senhor, que anda agora em companhia de "almofadinhas" artistas. - Como? - fez espantado o dentista particular. - É o que dizem. Corre aqui que o senhor está toda a noite com o mestre-violeiro Cassi e vários companheiros, num botequim do Engenho Novo. - É verdade. São todos rapazes decentes, que... - Então, o Cassi, este é de colete? - Dizem - interveio "Seu" Nascimento - que esse rapaz... - É um bandido - acudiu Alípio. - Ele merecia mais do que cadeia; merecia ser queimado vivo. Tem desgraçado mais de dez moças e não sei quantas senhoras casadas. - Isto é calúnia! - protestou Meneses. - Fala-se muito por aí... - Que o quê! Os processos têm corrido, os jornais têm publicado, e ele arranja meios e modos para livrar-se das penalidades e lançar na desgraça moças e senhoras - confirmou Alípio. - Como ele consegue isso? - indagou "Seu" Nascimento. - No começo, com a proteção do pai. Ao fim do segundo ou terceiro caso que veio a público, o pai não lhe falou mais e nunca mais se interessou pela sua liberdade. Sucederam-se 30 outros, e, graças à intervenção da mãe junto a um irmão, médico do Exército, ele pôde arranjar rábulas sem escrúpulos, que, pelos meios mais nojentos, conseguiram retirá-lo das grades da detenção. Caluniava as vítimas com justificações em que eram testemunhas Timbó, Arnaldo e outros tais. Contou-me a Vicência - o senhor não a conhece, "Seu" Nascimento? - perguntou Alípio. - Quem é? - perguntou por sua vez o taberneiro. - É aquela crioula velha que vem aqui, às vezes, fazer compras, para a casa do Major Carvalho. Ela foi empregada na casa do pai de Cassi muito tempo. Um dia - ela não sabe bem por quê - o pai expulsou-o de casa. A mãe mandou-o para a casa do irmão em Guaratiba. Lá, ele fez ou pretendeu fazer uma das suas, mas o tio não esteve pelos autos; despachou-o para a irmã. A muito custo, a mãe conseguiu que ficasse num porão dos fundos, que mal tem a altura dele. Nesse socavão é que ele mora e come. Nunca sobe nas dependências superiores da casa, com medo do pai. Se, por acaso, este tiver notícia dessa sua ousadia, põe-no definitivamente na rua. - Que diz a isso, doutor Meneses? - chasqueou Nascimento. - Não sei, porque pouco me preocupo com a vida dos outros - tergiversou Meneses. - Não é da vida dos outros - fez impetuosamente Alípio; - é com a vida de um pirata como Cassi, que não respeita família, nem amizades, nem a miséria, nem a pobreza, para fazer das suas porcarias. É por isso que eu... "Seu" Nascimento interveio suasoriamente e pediu calma. Era um homem alto, claro, um tanto obeso, tipo do antigo agricultor patriarcal, das nossas velhas fazendas. Ele assim disse: - Não é necessário indignar-se, Alípio, fique calmo. O monstro não tem mais protetores, como você já disse. - Tem, "Seu" Nascimento - afirmou Alípio. - Ele é esperto, "é manata escovado". - Quem é, Alípio? - perguntou Nascimento, indo servir de açúcar a um pequeno. Os fregueses continuavam a chegar; em geral, eram crianças e mulheres. As suas compras eram pobres: dois tostões disso, quatrocentos réis daquilo - compras de gente pobre, em que raramente se via nelas incluído meio quilo de carne-seca ou um de feijão. Tudo não excedia a tostões. Mesmo atendendo aos fregueses, sozinho, pois os caixeiros tinham ido correr a clientela fixa do armazém, "Seu" Nascimento não perdia o fio da conversa, e ela continuava naturalmente. Alípio, habituado a isso, não suspendeu a narração e deu a resposta pedida. - O protetor dele, agora, é um tal Capitão Barcelos, chefe político na estação de***. Tem influência e foi por saber disso que Cassi aderiu a ele. Já nessa última eleição para uma vaga de intendente, ele funcionou com o seu rancho ao lado de Barcelos. Não houve desordens, porque não apareceu outro candidato; mas ele queria fazer uma para ganhar prestígio. Assim e aos poucos, vai ganhando a confiança de Barcelos, a ponto do Freitas, que é o subcabo deste, sentir-se magoado e preterido. - Quem é esse Barcelos? - fez Nascimento. - É um português, já com os seus cinqüenta anos, bom, bom mesmo; mas, tendo ido para a detenção, pronunciado que estava devido a uns tiros que dera em um sujeito, por lhe ter insultado a mulher, produzindo no meliante ferimentos graves, isto há vinte anos, ganhou lá o gosto pela política e lá aprendeu as primeiras noções dessa difícil ciência. Foi na detenção que... - Ué! - exclamou Nascimento. - Também você, Alípio... - fez duvidoso Meneses. Alípio continuou: - Lá, ele encontrou um político daqui da Capital, que estava na chácara, a responder processo, como mandante de um assassínio. O homem aproximou-se de Barcelos, e puseram-se a conversar. Não estavam no cubículo; estavam na enfermaria, ou na sala livre, ou em outro compartimento especial. Barcelos narrou sua vida, que, apesar daquele transtorno, não corria mal. Tinha uma venda em ***; vendia a dinheiro e a crédito, para o operariado das fábricas lá existentes; mas era feliz, pois, apesar de fazer muitos fiados, quase não os perdia. Era até estimado, pelo seu gênio folgazão e prestativo. O político, que tinha um chefete adversário, naquela estação, viu bem 31 como, para desbancá-lo, podia aproveitar os serviços de Barcelos. “Você por que não se mete na política?”, disse ele um dia. O vendeiro de *** respondeu: “Mas não sou brasileiro, doutor.” O seu alto companheiro de cárcere retrucou-lhe: “Eu faço você brasileiro naturalizado, capitão da Guarda Nacional, e você, nas eleições, trabalha para mim e os meus. Trate logo de alistar o maior número de fregueses que você puder.” Barcelos assentiu, trabalhou sempre para o tal político, por intermédio do qual arranjou melhoramentos para o lugarejo, valorizando as suas terras e prédios. - Valeu a pena ir para a detenção! - É verdade, “Seu” Nascimento. Daí, data a pouca prosperidade de Barcelos, que possui perto de duzentos contos, em casas, terrenos e apólices, afora o giro do negócio. - Você, Alípio, se diz anarquista; mas o que você é, é romancista. Isto é um romance - comentou Meneses. - Qual, doutor! O senhor é que não sabe como as coisas se fazem. Eu sei. O senhor, por exemplo, não sabe que Timbó levou uma surra de uma senhora que mora aqui perto? - Não sei - respondeu Meneses. Quase ao mesmo tempo, Nascimento perguntava: - Quem é Timbó? - É um mulatinho faceiro, jogador de football e companheiro de Cassi, testemunha sempre escolhida para depor em seu favor, caluniando as vítimas, nos seus imundos processos. - Foi ele quem levou a surra? - indagou Nascimento. - Sim; ele, na estação de Todos os Santos, após uma perseguição ignóbil a Dona Margarida ... - Que Dona Margarida? A do 74? - falou com surpresa Nascimento. - Essa mesma. Deu-lhe de rijo com o guarda-chuva; e, quando ele a quis desarmar, apareceu um cabra morrudo, que o pôs, pelas orelhas, para fora da plataforma, donde saiu debaixo de vaia. Dos companheiros de Cassi, o único perdoável é o Zezé Mateus. Este não mexe com moça alguma, com família de ninguém, não joga, não faz desordem. Quer beber e bebe à sua custa, porque, quando quer trabalhar, abandona a tudo e salda as suas dívidas. Os mais são uns piratas! Alípio calou-se, e os seus interlocutores não aventaram nenhuma observação, a não ser o velho Valetim, que havia ouvido toda a conversa, encostado ao portal de pedra, fumando displicentemente o seu cigarro São Lourenço. Ele perguntou, cheio da ingenuidade do campônio que fica sempre na primeira aventura, das preferidas por Cassi: - Mas, "Seu" Alípio, o senhor acredita que haja gente tão malvada, como esse Cassi? - Há, e não pouca. Sei de tudo que contei de fonte limpa. É a pura verdade. O doutor Meneses tinha ficado aborrecido com o tom da conversa. Tinha ido à venda, procurar Leonardo Flores, para um negócio particular; e encontrara o Alípio a par das suas relações com Cassi e inteirado da vida deste. Diabo! Estaria se comprometendo? Havia já tomado quatro copitos de parati; mas, quando se despediu, tomou um grande. Caminhando pôs- se a pensar: - Que devia fazer? Pegou diversas hipóteses e concluiu: - Ir até ao fim. A coisa não oferecia nenhum perigo para ele... Isso não o contentou de todo. Procurou distrair-se. VI A recepção que tivera Cassi, na sua segunda visita, seca, hostil, quase sendo despedido à soleira da porta, ao contrário da primeira vez que fora à casa de Joaquim dos Anjos, fizera-o meditar e açulara-lhe o desejo de remover todos os obstáculos que se opunham à sua aproximação de Clara. Por exclusão, ele só viu duas pessoas capazes de lhe estarem atrasando seu "trabalho", começado com tanta rapidez e sem esforço. Quem eram? Só podiam ser Dona Margarida, por causa do "negócio" do Timbó; e o tal aleijado, que lhe lançara a indireta, em verso, de chamá-lo de burro. 32 Se na sedução, propriamente, ele não empregava absolutamente força, no que era o contrário dos conquistadores suburbanos, a ponto dos jornais noticiarem, de quando em quando, o desespero das vítimas que se fazem assassinas, para se defenderem de tão torpes sujeitos; Cassi, entretanto, quando no decorrer de suas conquistas, encontrava obstáculos, fosse mesmo da parte do próprio irmão da vítima em alvo, logo procurava empregar violência, para arredá-lo. É bem de ver que ele sabia com quem se metia; mas, no caso, tratando-se de um quase inválido, a força a empregar seria mínima; e, no que toca a Dona Margarida, ele saberia enganá-la e embaí-la. A sua força de valente e navalhista era mais fama do que realidade; mas tinha fama, e muitos se intimidavam. Dava-lhe isso um ascendente sobre os que, de boa-fé e honestamente, podiam prevenir as moças que ele cobiçava, não as prevenindo, não as avisando, não o desmascarando totalmente. Cheios de temor, deixavam o caminho franco ao modinheiro. A tal respeito, com o seu cinismo de sedutor de quinta ordem, tinha uma oportuna teoria, condensada numa sentença: "Não se pode contrariar dois corações que se amam com sincera paixão." Colocando ao lado dessa teoria, bem sua, a consideração de que não empregava violência nem ato de força de qualquer natureza, ele, na sua singular moral de amoroso-modinheiro, não se sentia absolutamente criminoso, por ter até ali seduzido cerca de dez donzelas e muito maior número de senhoras casadas. Os suicídios, os assassínios, o povoamento de bordéis de todo o gênero, que os seus torpes atos provocaram, no seu parecer, eram acontecimentos estranhos à sua ação e se haviam de dar de qualquer forma. Disso, ele não tinha culpa. Para certificar-se quem era que, na casa do "carteiro", fermentava o seu descrédito, Cassi resolveu ir sondar Lafões, em sua casa. Lafões morava bem próximo do reservatório do Engenho de Dentro. Uma tarde, Cassi tomou o bonde de Piedade, que, para ir a essa estação, logo após o Méier, se interna para os lados da serra, toma ruas despovoadas e, por fim, a do Engenho de Dentro. O caminho era então pitoresco, não só pelos restos de capoeira grossa que ainda havia, mas também pelas casas roceiras de varanda e pequenas janelas de outros tempos. Caminho de "tropa", talvez, os engenheiros da Light só se deram ao trabalho de fazer sumários nivelamentos. Os altos e baixos, os atoleiros e atascadeiros, consolidados com gravetos e varreduras de capinas, transformaram o caminho do bonde, naquele trecho, numa montanha-russa, com a lembrança, de um lado e outro, do espetáculo do que seriam ou do que são os caminhos do nosso interior, pelos quais nos chegam os cereais e a carne que comemos. Às vezes, o bonde cruzava com uma tropa de carvoeiros de Jacarepaguá, da Serra do Mateus e outras localidades ainda com florestas aproveitáveis; e tínhamos uma imagem mais viva. Os tropeiros eram gente de sangue muito mesclado, ossudos, jarretes nervosos e finos, pés espalmados, às vezes de feições regulares, mas sempre cobertos de barbas maltratadas e de uma insondável tristeza. Não eram só homens feitos; havia crianças também, a guiar os burros em fila. Quando o bonde apontava a sacolejar as suas ferragens, estourando que nem um besouro, avisando-os da sua presença próxima com o zunido contínuo do tímpano, ou, senão, com um apito, ao grito de locomotiva, aqueles homens, vivendo tão perto da terra e da natureza espontânea, não deixavam de se assustar e tomar precauções, para sua segurança e dos seus pacientes animalejos. Encostavam bem a tropa a uma ribanceira lateral da rua, quando na encosta; ou afastavam-se para o lado, se havia terreno baldio e sem cerca, quando ela era planície; e ficavam pasmos, diante daquele monstro zunidor que se movia por intermédio de um grosso fio de arame. Os burros, quer num, quer noutro caso, permaneciam indiferentes e punham-se a roer a erva escassa do campo ou a pastar a folhagem que lhes dava sombra e crescia no alto da chanfradura do corte. Chegou Cassi Jones à casa de Lafões quase à noite. Era uma pequena casa, mas bem tratada e limpa. O pequeno jardim na frente merecia cuidados e, no quintal, aos fundos, cresciam couves e repolhos, a dar saudades de um bom caldo à portuguesa. 33 Lafões, por aquelas horas, após o jantar, tinha por hábito pôr-se em camisa de meia, tamancos e calça, e completar a leitura do jornal que iniciara pela manhã. Sentava-se a uma cadeira de balanço, austríaca, que a punha bem junto à janela, tendo, à esquerda, uma cadeira, em que repousavam o isqueiro (não usava fósforos) e os cigarros "Fuzileiros". Estava assim, naquela postura, e enrolava melhor um cigarro pacientemente, quando lhe bateram no portão de ripas de madeira. Ergueu um tanto o busto e, pondo um pouco a cabeça à mostra, quase rente ao peitoril da janela, perguntou: - Quem é? Reconheceu logo: - É o Senhor Cassi. Ergueu-se e foi ao encontro dele, abrindo a porta de entrada. Tomou- lhe o chapéu pelintra, a bengala ultra-aperfeiçoada e foi dizendo prazenteiramente: - Por aqui? Sente-se, ora esta! Seja bem-vindo! O rapaz sentou-se, respondendo: - Muito obrigado, meu caro "Seu" Lafões. - Por que não aparece mais vezes, Senhor Cassi? - continuou Lafões com amizade. - Não tenho tido tempo. Nos dias da semana, são os negócios; nos domingos, não dou para os convites. Eu vinha aqui... - Para quê, Senhor Cassi? - Pedir-lhe uma informação. - Qual é, Senhor Cassi? - Disseram-me que, no seu escritório, o inspetor está admitindo escreventes, para não sei que serviço extraordinário. O senhor não podia saber se isto é verdade? - Pois não. Indago ao Braga, que é contínuo, vivo que nem azougue, e sabe de tudo que lá se passa - explicou Lafões. - Quando posso vir buscar a resposta? - Olhe, Senhor Cassi: amanhã, à tarde, não, porque tenho que ir à sessão da minha sociedade; mas, se tem pressa, pode vir depois de amanhã, logo pelas sete ou oito horas. - Bem - fez Cassi, simulando contentamento. - Desde já agradecido. Como vão sua senhora e seus filhos? - Bem. A mulher saiu mais o mais moço; foram a não sei que ladainha por aí. É um inferno! Estes padres têm invadido estes subúrbios com mais rapidez que os "turcos" de prestações. É dinheiro para esse santo, é dinheiro para as obras da igreja... Não posso mais! Edméia, porém, está lá no fundo do quintal. Quer tomar café, Senhor Cassi? - É incômodo... Se a sua senhora estivesse, sim; mas... - Não há incômodo algum. Edméia o aquece no espírito... Só se o Senhor Cassi não gosta aquecido? - Gosto. - Pois bem, vamos a ele - e gritou pela filha, com possante voz de homem são - Edméia! Edméia! Não tardou em aparecer a filha. Era uma gentil menina de doze anos, risonha, com uma fisionomia redonda de traços firmes e finos, cabelos tirando para o louro, cortados à inglesa. Entrando, exclamou logo: - Oh! Estava aqui “Seu” Cassi. Que surpresa! Não sabia... Falou ao rapaz e este lhe disse a esmo: - Há muito que não a via. - É verdade, desde o dia de anos de Clarinha... Tem ido lá? - Não tenho podido. - Por quê? Parece que lá não gostam do senhor... Principalmente aquele "pé-pé"... - Menina - ralhou-lhe o pai. - Não te metas a intrigar os outros... Vá aquecer o café e trazenos duas xícaras. Vá. 34 Saindo a menina, Cassi julgou de bom alvitre, para preencher o fim verdadeiro de sua visita, dizer: - Podem não gostar de mim. Mas a implicância é sem motivo. Nunca... - Ora, Senhor Cassi, o senhor vai dar ouvido a crianças. Elas não sabem o que dizem. - Agora, meu caro “Seu” Lafões, eu notei no dia da festa que o compadre do Senhor Joaquim dos Anjos não me tragava - disse Cassi. - Isto se explica. Ele foi ou é poeta e tem em conta de coisa nenhuma os cantadores de modinhas. Lá na minha terra, os poetas dos fidalgos e das fidalgas não tragam os fadistas do campo, aos quais chamam de rústicos e outras coisas piores. Em cada ofício, há sempre disso. O senhor não vê como os cocheiros desprezam os barbeiros? Cocheiro que não presta é barbeiro. Marramaque, velho, doente, não sabe disfarçar o seu mau juízo pelos que apreciam o violão e o tocam, cantando modinhas. - Mas... o "Seu" Joaquim? - É que eles são compadres e amigos, meu caro Senhor Cassi. Está explicado. Vieram as xícaras de café e a conversa tomou outro rumo. Falaram sobre as festas próximas do centenário da Independência, sobre a crise financeira, mas Cassi em nada disso pensava. Pensava em Marramaque, o audacioso aleijado, que queria se intrometer no seu amor por Clara. Pagaria bem caro. Despediu-se em breve e, lentamente, deixou-se ir a pé subúrbios abaixo. Eram estranhos aquele ódio e aquela obstinação. Cassi não era absolutamente, nem mesmo de forma elementar, um amoroso. A atração por uma qualquer mulher não lhe desdobrava em sentimentos outros, às vezes contraditórios, em sonhos, em anseios e depressões desta ou daquela natureza. O seu sentimento ficava reduzido ao mais simples elemento do Amor - a posse. Obtida esta, bem cedo se enfarava, desprezava a vítima, com a qual não sentia ter mais nenhuma ligação especial; e procurava outra. A sua instrução era mais que rudimentar; mas, assim mesmo, talvez devido a uma necessidade íntima de desculpar-se, gostava de ler versos líricos, principalmente os de amor. Não lia jornais, nem coisa alguma; mas, num retalho apanhado aqui, num almanaque acolá, num livro que lhe ia ter às mãos, sem saber como, conseguia ler alguns e os entender pela metade. Deles, desses sonetos e mais poesias que, por acaso, iam parar em seu poder, ele concluía, com a sua estupidez congênita, com a sua perversidade inata, que tinha o direito de fazer o que fazia, porque os poetas proclamam o dever de amar e dão ao Amor todos os direitos, e estava acima de tudo a Paixão. Vê-se bem que ele não sentia nada do que, poetas medíocres que o guiavam nas suas torpezas, falavam; e, sem querer apelar para grandes ou pequenos poetas, percebia-se perfeitamente que nele não havia Amor de nenhuma natureza e em nenhum grau. Era concupiscência aliada à sórdida economia, com uma falta de senso moral digna de um criminoso nato - o que havia nele. O verdadeiro estado amoroso supõe um estado de semiloucura correspondente, de obsessão, determinando uma desordem emocional que vai da mais intensa alegria até à mais cruciante dor, que dá entusiasmo e abatimento, que encoraja e entibia; que faz esperar e desesperar, isto tudo, quase a um tempo, sem que a causa mude de qualquer forma. Em Cassi, nunca se dava disso. Escolhida a vítima de sua concupiscência, se, de antemão, já não as sabia, procurava inteirar-se da situação dos pais, das suas posses e das suas relações. Em seguida, tratava de encontrar-se com ela num baile ou uma sala de festas e impressioná-la com os seus dengues no violão. Se percebia que tinha obtido algum sucesso, esforçava-se em reiterar os encontros nos cinemas, nos bondes, nas estações, e, na ocasião propícia, pespegava-lhe a carta fatal. Isto tudo era feito com muita calma e discernimento, pacientemente, sem ser perturbado em nenhum movimento de impaciência ou arrebatamento. Se a moça ou a senhora aceitava-lhe os galanteios e as cartas, ele tinha o final como certo; se não, ele não perdia tempo, abandonava os esforços preliminares e esperava que outra mais suasória aparecesse. No caso de Clara, ele não estava disposto a acreditar que se houvesse dado a primeira hipótese, porquanto lhe davam certeza disso o embevecimento com que o ouvira cantar, na noite da festa dos anos dela, e a insistência que mostrara em vir falar com ele, quando lhe foi à casa do pai 35 pela segunda e última vez. O que lhe parecia, por indícios aqui e ali, é que alguém se havia interposto entre ele e ela, “entre dois corações que se amam”, denunciando aos pais dela os seus maus precedentes de conquistador contumaz, de forma a trancarem-lhe aqueles as portas de sua casa, a ele, Cassi. Agora mesmo, tivera a confirmação dessa suspeita com a ingênua denúncia de Edméia, a filha de Lafões, de que Marramaque, padrinho de Clara, não gostava dele. Era, portanto, prevenirse contra as “intrigas” do aleijado e arredá-lo de vez. Cassi sabia que, quase sempre, Marramaque parava na venda do “Seu” Nascimento, quando vinha do trabalho. Lá ficava bebericando com outros, até que o negócio se fechasse. A ele, Cassi, não convinha ir por todos os motivos; Timbó não podia também, por ser muito conhecido na localidade, devido à surra que levara; Zezé Mateus era um idiota. Quem iria, então, sondar aquele terreno? O Arnaldo, que não era conhecido no local, nem sabidas eram as suas relações com ele. Muito a contragosto, dirigiu-se para a casa dos pais. Não tinha dinheiro que prestasse, para "escorvar" o jogo. O seu "socavão" doméstico ficava bem debaixo da sala de jantar da casa, que aí acabava o seu corpo principal. As dependências restantes ocupavam um puxado longo. Quando ele entrou, percebeu que na sala de jantar, além do pai, mãe e irmãs, havia alguém que não era de hábito e dissera, ouvindo-lhe os passos: - Há alguém aí? - É Cassi - dissera a mãe. - Ele não sobe aqui? - perguntou a visita. Todos se calaram e se entreolharam, enquanto o velho Manuel de Azevedo explicava o fato em quatro palavras: - Você queria, Augusto, que eu, chefe de família, que prezo a honra das filhas dos outros como a das minhas, deixasse semelhante miserável sentar-se ao meu lado? Se não o pus de todo para a rua, foi devido à mãe. - Você tem razão, mano; mas tudo isto que se diz dele, pode ser calúnia. - É também o meu pensamento, Augusto - falou Dona Salustiana. As moças se haviam calado por pudor, mas o velho Azevedo cortou de vez o argumento da mulher e do irmão: - Você não leu esses papéis escritos à máquina, que mandaram a você, dois dias após você chegar, para o hotel? - Li. - Leu as datas, a narração dos fatos, as cartas? - Li, também, mas o tempo... - Pois tudo é verdade; e ninguém mais do que eu, infelizmente, pode assegurar isso. Em menos de dez anos, esse meu indigno filho fez tudo isso. Não o posso negar em sã consciência. Se não posso... Ao entrar, Cassi, tendo percebido que a conversa ia versar sobre ele, colocou-se de ouvido atento, embaixo da janela, nada perdendo e conseguindo ouvir esse trecho em que tomava parte o seu tio Augusto, irmão de seu pai, que, havia muito tempo, andava destacado numa alfândega do Norte. Quando o velho Manuel de Azevedo falou em papéis escritos à máquina, trazendo indicações de datas e a narração dos fatos de suas complicações com a polícia e a justiça, Cassi assustou-se. Quem estaria fazendo aquele trabalho surdo? Não era a primeira vez que tivera notícia da existência desse caderno misterioso e misteriosamente distribuído pelo correio. Dissera-lhe um investigador de uma delegacia suburbana que, logo que havia mudança de delegado ou de comissário, numa delas, o novo delegado ou o novo comissário recebia o tal caderno. Apavoravalhe essa perseguição nas trevas, talvez segura, que, aos poucos, o ia minando. Tão indiferente era ele pela sorte de suas vítimas e tão estúpido se mostrara sempre em não compreendê-las, que não podia encadear raciocínios seguros, para ter a procedência, mais ou menos provável, da remessa de tais cadernos. 36 Precisava fugir - era o que concluía; e ele se sentia ameaçado, não por duendes, mas por alçapões, homens mascarados, cárceres privados, suplícios, etc. - todo o arsenal do maravilhoso das fitas de cinema. Entretanto, queria antes resolver o caso de Clara, que, apesar de tudo, considerava em meio. Deitou-se e dormiu regaladamente, até ao alvorecer do dia. Logo que a luz do sol ganhou uma relativa nitidez, ele foi passar revista nas suas gaiolas de galos de briga. Estava tudo a postos, e foi lhes dando milho tirado de uma lata que tinha em uma das mãos, e olhando todos aqueles bichos hediondos, com a ternura de um honesto criador, que revê o seu trabalho nas travessas pesquisas ou na doçura de olhar de seus cordeiros. Aos pintos, deu milho moído, triguilho, e só não deu ovo picado porque não era dia. O seu embevecimento por aquelas horrendas aves era sincero: elas lhe faziam ganhar dinheiro. Olhou-as e perguntou de si para si: - Quanto valeriam ao todo? Alguns já lhe haviam oferecido quinhentos mil-réis e ele estava disposto a vendê-las, por esse preço, depois que a "coisa" estivesse acabada... Veio tomar café no "socavão", onde a velha Romualda lhe trazia todas as manhãs. Era velha, e a sua velhice a defendia perfeitamente contra qualquer assalto de Cassi. Perguntou-lhe este: - Meu tio ainda está aí? - Quem é seu tio, nhonhô? - Aquele moço que esteve ontem, à noite. - Ah! Foi embora logo depois do chá. Não trocaram mais palavras. Depois de servido o café e comido o pão com manteiga, a velha Romualda levou a bandeja com a xícara, e Cassi tratou de vestir-se e sair. Quase nunca parava em casa. Temia encontrar-se com o pai, que, por isto ou por aquilo, houvesse resolvido ficar no lar, e também por não poder suportar o desdém de suas irmãs. A casa era-lhe mais penosa do que os xadrezes, por onde passara dezenas de vezes. Ia à procura de Arnaldo, que, morando na Estrada Real, vinha no bonde de Cascadura, para tomar o trem no Méier. Arnaldo não deixava de um só dia ir "lá embaixo". Esperava sempre fazer um biscate e, quando não o fizesse, arranjar algum “magote” no trem. Não se enganara. Às nove e pouco, Arnaldo, com o seu nariz de tromba de tapir, os seus olhos arredios e catadores, chegara; Cassi disse-lhe que dele precisava, às cinco horas, ali; e pagoulhe o café. - Pois não, Cassi; nas ocasiões é que se vêem os amigos. Cá estarei. Fazendo o sacrifício de perder uma tarde de colheita, Arnaldo chegou na hora marcada, ao ponto ajustado. Cassi explicou-lhe então que devia ir, naquela tarde, à venda do Nascimento, cuja rua e cujo número lhe deu. Chegando lá, simularia ter ido procurar por "Seu" Meneses, que ele conhecia. - Se ele não estiver? - indagou Arnaldo. - Você diz que fica à espera e ouve o que se conversa lá. Nela, devem estar, entre outros, o aleijadinho que anda sempre fardado. Ele não conhece você, como os outros, conforme espero. O que você ouvir, guarda e me conta. Se Meneses aparecer, você diz que quero falar com ele, negócio de interesse dele. Cassi deu-lhe dois mil-réis e ele se pôs a caminho, mas a pé, para poupar o tostão do bonde. Chegou à venda de "Seu" Nascimento, teve duas decepções. Encontrara dois sujeitos, que o conheciam perfeitamente: um era um engenheiro inglês, Mr. Persons, de quem "abafara" uma capa de borracha, e o outro era o Alípio, que até o sabia da roda de Cassi. Não se deu por vencido e, atravessando por entre Alípio e o velho Marramaque, que conversavam, foi direto ao balcão e perguntou naturalmente: - O senhor não conhece um velho dentista, por nome Meneses? E acrescentou: - Ele tem vindo aqui? O taverneiro respondeu: 37 - Há dias que não - e, dirigindo-se aos circunstantes, por sua vez indagou: - vocês têm visto o doutor Meneses? Todos, porém, responderam: não. Arnaldo ia dizer obrigado, para retirar-se, quando Mr. Persons perguntou-lhe: - Sinhôr, vem cá! Arnaldo fez-se jovial. - Oh! "Seu" mister como vai? - Não diga "Seu" mister, é “error”. Bem... Onde está mia capa? - Trago por esses dias, tenho me esquecido. - Já é duas vezes que "sinhôr" diz isso. Eu precisa da capa. - Não me esquecerei. E saiu apressado. O negócio da capa fora simples. Persons não viera da cidade são de seu juízo e deixara a capa descansando no banco, ao lado, recostando-se na parede do carro. Pouco antes de certa estação, Arnaldo sentou-se a seu lado, no intento de carregar-lhe a capa. Ao pôr em prática o seu propósito, Persons despertou, mas só pôde dar com o furto, quando Arnaldo ia saindo do carro. Gritou: “minha capa”. Um condutor ainda agarrou Arnaldo com a carga, mas, quando o Persons deu com o lugar em que estavam ambos, já o auxiliar o tinha largado e o trem se pusera em movimento. Guardara, porém, a fisionomia do gatuno; e, vindo a encontrar-se com ele, perguntara-lhe por essa peça de vestuário, e Arnaldo lhe dissera que a havia levado por engano. Ele saiu corrido de vergonha; mas, vendo que ninguém vinha até às portas da venda, ele voltou e se pôs a ouvir o que diziam. O mister já acabara de contar a história da capa, quando Alípio, em tom de comentário, dissera: - Isto que saiu daí é uma peste. Não sabia dessa história de furtos nos trens; mas basta ele ser do bando do tal Cassi, para não prestar. Marramaque acudiu: - Eu ainda não conhecia este. Vou indicá-lo ao compadre. O tal Trembó ou Tipó, como é? - Timbó, fez Alípio. - O tal de Timbó já conheço e já o apontei ao compadre. Por falar nisto, o senhor sabe, Seu Nascimento e meus senhores, o que recebi, há dias, pelo correio, na secretaria? - Não - responderam todos, por sinais ou por palavras. - A vida desse Cassi. - Impressa? - Não. Copiada à máquina de escrever, com fotografias dele, cópias de notícias dos jornais do tempo, indicação das datas dos processos e dos juízes e delegados - tudo! - Quem lhe mandou? - perguntou Alípio. - Não sei. Recebi a coisa na secretaria, lá a li e dei-a ao compadre, para se prevenir. - Com uma boa garrucha - observou Nascimento. - Ou revólver - obtemperou Marramaque. Ouvindo tudo isto e percebendo que alguém se dirigia à venda, cuja hora de fechar não tardaria, Arnaldo deixou o lugar em que estava e correu ao encontro de Cassi, que devia estar no Engenho Novo. Encontraram-se, e ele, no que não tinha o menor hábito, contou-lhe toda a verdade vista e ouvida. Cassi nem Arnaldo não eram dados à bebida; mas o momento a pedia. Aquele convidou o seu dedicado companheiro a tomar uma garrafa de cerveja, o que fizeram quase sem conversar. Acabada, pagaram e levantaram-se. Arnaldo procurou o seu rumo e Cassi meteu-se pela sombria Rua do Barão de Bom Retiro. Embora não fosse tarde, já se ouviam os tiros que os suburbanos dão, de quando em quando, para afugentar os ladrões dos seus galinheiros. Um estourou bem perto dele, e Cassi, fingindo-se calmo e sem apreensões, disse à meia voz: 38 - Ainda não foi desta vez. VII O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo para eixo a linha férrea da Central. Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes. Passa-se por um lugar que supomos deserto, e olhamos, por acaso, o fundo de uma grota, donde brotam ainda árvores de capoeira, lá damos com um casebre tosco, que, para ser alcançado, se torna preciso descer uma ladeirota quase a prumo; andamos mais e levantamos o olhar para um canto do horizonte e lá vemos, em cima de uma elevação, um ou mais barracões, para os quais não topamos logo da primeira vista com a ladeira de acesso. Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato. Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes. Nelas, há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo. Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências aristocráticas: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes, “correres” de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chama- mos "avenida". As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam. Quando chega a tardinha, de cada portão se ouve o "toque de reunir": "Mimoso"! É um bode que a dona chama. "Sereia"! É uma leitoa que uma criança faz entrar em casa; e assim por diante. Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus - tudo entra pela porta principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos fundos. Se acontece faltar um dos seus "bichos", a dona da casa faz um barulho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda em pugilato entre os maridos. A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres. O estado de irritabilidade, provindo das constantes dificuldades por que passam, a incapacidade de encontrar fora do seu habitual campo de visão motivo para explicar o seu malestar, fazem-nas descarregar as suas queixas, em forma de desaforos velados, nas vizinhas com que antipatizam por lhes parecer mais felizes. Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma diferença acidental de cor é causa para que se possa julgar superior à vizinha; o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro. Um belchior de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito. Em geral, essas brigas duram pouco. Lá vem uma moléstia num dos pequenos desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de homeopatia. Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro. Nem lhes facilita a morte, isto é, o acesso aos cemitérios locais. 39 Para o de Inhaúma, procurado por uma vasta zona suburbana, os caminhos são maus, e pior do que isto: dão voltas inúteis, que poderiam ser evitadas sem grandes despesas. Os enterros da gente mais pobre são feitos a pé, e é fácil imaginar como chegam, os que carregam o morto, no campo-santo municipal. Quem passa por aqueles caminhos, quase sempre topa com um. Os de anjos são carregados por moças e os destas também pelas da sua idade. Não há, para elas, nenhuma toilette especial. Levam a mesma que para os bailes e mafuás; e lá vão de rosa, de azulceleste, de branco, carregando a pobre amiga, debaixo de um sol inclemente, e respirando uma poeira de sufocar; quando chove, ou choveu recentemente, carregam o caixão aos saltos, para evitar atoleiros e poças d'água. Os de adultos são carregados por adultos. Nestes, porém, há sempre uma modificação do indumento dos que acompanham. Os cavalheiros procuram roupas escuras, senão pretas; mas, às vezes, surge o escândalo da sua calça branca. Vão muito pouco tristes e, em cada venda que passam, "quebram o corpo", isto é, bebem uma boa dose de parati. Ao chegarem ao cemitério, aquelas cabeças não regulam bem, mas o defunto é enterrado. Houve, porém, uma ocasião, que o corpo não chegou a seu destino. Beberam tanto, que o esqueceram no caminho. Cada qual que saía da venda, olhava o caixão e dizia: Eles que estão lá dentro, que o carreguem. Chegaram ao cemitério e deram por falta do defunto. "Mas não era você que o vinha carregando?" - perguntava um. "Era você" - respondia o outro; e, assim, cada um empurrava a culpa para o outro. Estavam cansadíssimos e semi-embriagados. Resolveram alugar uma carroça e ir buscar o camarada falecido, que já tinha duas velas piedosas a arder-lhe à cabeceira. E o pobre homem, que devia receber dos amigos aquela tocante homenagem, dos camaradas levarem-no a pé ao cemitério, só a recebeu a meio, pois, o resto do caminho para a última morada, ele a fez graças aos esforços de dois burros, que estavam habituados a puxar carga bem diferente e muito menos respeitável. Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando mais longe, em Inhaúma, em Cachambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até às dez horas da manhã e há toda uma população de certo ponto da cidade no número dos que nele tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, do dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos. Nessas horas, as estações se enchem e os trens descem cheios. Mais cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com o Estado do Rio. Esses são os expressos. Há gente por toda a parte. O interior dos carros está apinhado e os vãos entre eles como que trazem quase a metade da lotação de um deles. Muitos viajam com um pé num carro e o outro no imediato, agarrando-se com as mãos às grades das plataformas. Outros descem para a cidade sentados na escada de acesso para o interior do vagão; e alguns, mais ousados, dependurados no corrimão de ferro, com um único pé no estribo do veículo. Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa. Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela Prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao Estado, tudo falta, nem nada há embrionário. 40 O viajante que se detém um pouco a olhar aqueles campos de vegetação rala e amarelada, aqueles morros escalavrados, cobertos de intrincados carrascais, onde pasta um gado magro e ossudo, fica confrangido e triste. Não há nenhuma cultura; as árvores de porte são raras; nas casas, é raro uma laranjeira virente, nem um mamoeiro semi-espontâneo desce-lhes à entrada. Os córregos são em geral vales de lama pútrida, que, quando chegam as grandes chuvas, se transformam em torrentes, a carregar os mais nauseabundos detritos. A tabatinga impermeável, o barro compacto e a falta d'água não permitem a existência de hortas; e um repolho é lá mais raro que na Avenida Central. O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa a cingi-lo todo em roda. A parte posterior, como se vê, não chega a ser um neobarbante que prenda dignamente o diadema que lhe cinge a testa olímpica... Cassi Jones, em pé, na estação do Méier, via passar aqueles trens cheios de homens de trabalho, sem considerar que, quase com trinta anos, até ali, na verdade, não havia nunca trabalhado. O seu pensamento ia para outra parte. Desde que Arnaldo lhe trouxera notícias do que ouvira na venda, ele se sentia um pouco desanimado nos seus propósitos, em relação à filha do carteiro. Ao mesmo tempo, porém, ele percebia que todas aquelas precauções contra ele eram tomadas porque a rapariga não lhe era indiferente. De modo que - concluía ele - precisava saber ao certo os sentimentos de Clara, para então agir. Era necessário ouvir-lhe a palavra; mas como? A ele, não convinha rondar a casa da filha do carteiro. Era conhecido, seria denunciado ao pai, que, naturalmente, lhe tomaria satisfações. Qualquer que fosse o desfecho do pugilato, ele só teria a perder. A sua fama, a sua má fama, se tinha corporificado naquele fantástico caderno que ia ter a todas as mãos. Não era mais formada de boquejos daqui e dali, em geral anônimos; agora, vinha documentada, com todas as indicações e referências precisas. Havia nele com o que se pudesse condenar um santo: e, se ele agredisse o carteiro Joaquim, toda a simpatia iria para o pai, que defendia até à última extremidade a honra de sua filha, e não para ele, um contumaz e cínico sedutor. Até ali, ele contava com a benevolência secreta de juízes e delegados, que, no íntimo, julgavam absurdo o casamento dele com as suas vítimas, devido à diferença de educação, de nascimento, de cor, de instrução. Quanto à segunda e terceira causa, embora nem sempre se verificasse a segunda, podia-se admitir; mas, quanto às duas outras considerações, eram errôneas, porque ele era tão ignorante e tão mal-educado como eram, em geral, as humildes raparigas que ele desgraçava irremediavelmente. De resto, ele já não contava com proteção alguma. No começo, foi seu pai; depois, seu tio, o capitão-médico - ambos solicitados tenazmente por sua mãe; mas agora? Agora, ele estava certo de que nenhum deles se abalaria e gastaria um ceitil por causa dele. Restava o Capitão Barcelos. Neste, porém, ele não depositava grande confiança. Fosse coisa pequena em que nada se gastasse, o capitão mover-se-ia; no caso contrário, porém, fugiria com o corpo. Era preciso cautela, senão... Cassi continuou a pesar os meios que podia encontrar para entender-se com Clara. Com Lafões, ele já não contava. Vira, na última visita que lhe fizera, que o velho português era matreiro. Com ele, não levaria vantagem alguma. Como havia de ser? Dos bondes continuava a descer gente aos magotes, que se encaminhava apressadamente para a plataforma da estrada de ferro. Alguns iam tomar um café, antes de se encaminharem, definitivamente, para os "varais" da repartição; outros iam até às casas de "bicho" e deixavam lá o jogo; mas todos iam afinal trabalhar, fazer alguma coisa para ganhar dinheiro. Só o Senhor Cassi Jones de Azevedo ficava... - Oh! "Seu" Cassi, como vai essa força? O menestrel suburbano da modinha lânguida e acompanhamento luxurioso de olhares revirados voltou-se e reconheceu quem falava: - Como vai você, Praxedes? 41 - Eu, "Seu" Cassi, vou bem. Mas esse negócio de foro... Ontem, apresentei uma exceção de incompetência; pensei que fosse julgada logo, mas o juiz transformou o julgamento em diligência... Borrou-me a pintura... Hoje, vou ver se uns embargos meus são recebidos. Tenho que ir lá embaixo... Às vezes, dá-se uma penada e lá vêm vinte, trinta e mesmo cinqüenta... Vendo que a conversa não interessava Cassi, mudou-a de sentido e perguntou: - Tem ido à casa do carteiro, lá na Rua Teresina? - Há muito tempo que não; e você? - Eu só fui lá a convite de um dos músicos. Não tenho relações particulares com a família. Por falar nisso: sabe quem saiu agora mesmo daqui? - Não. - O doutor Meneses, aquele velho barbado, que sabe muito - não conhece? Correu alguma coisa na cabeça de Cassi, que o fez perguntar com pressa, antes de responder: - Para onde ele foi? - Foi para a casa do carteiro. Está tratando dos dentes da filha e almoça quase sempre lá. Ele precisava, coitado do doutor Meneses! - um homem ilustrado, velho, doente - quase não comia; era só beber. Isso lhe fazia mal, estava requeimando "ele" por dentro... Pode-se beber; mas é preciso comer - não acha? Praxedes não deixava, durante toda a conversa, de mover com os braços, sem medida nem compasso, e esticar a medonha cabeça, que teimava cada vez mais em se enterrar pelos ombros adentro. - É um achado para ele - fez Cassi, reprimindo a alegria. - Tenho também um trabalho para o Meneses... Se você o encontrar, diga-lhe que eu quero falar com ele. - Não me esquecerei; mas, caso o senhor tenha pressa, pode procurá-lo à noite, ali, no botequim do Fagundes, perto do posto de bombeiros. Até logo, que tenho que chegar cedo à cidade! Cassi despediu-se também e encaminhou toda a sua esperança de entender-se diretamente com Clara, por intermédio de Meneses. Ele sabia-o velho, alquebrado, necessitado, viciado na bebida, sem dinheiro - seria fácil vencer as suas repugnâncias. Pela primeira vez, pensou o modinheiro, tinha que gastar algum... Em parte ele se enganava, porquanto, embora Meneses estivesse nas últimas extremidades, até agora não fizera ato menos liso na sua vida. Podia-se classificá-lo de puro. Meneses, José Castanho de Meneses, nascera de pais portugueses, numa cidade do litoral - sul do Estado do Rio de Janeiro. Naqueles tempos, essas cidades eram prósperas; mas, atualmente, têm, para demonstrar a sua irremediável decadência, o fato de não se ter notícia de haver sido construída em quaisquer delas, de quarenta anos a esta parte, uma única casa. O pai tinha uma loja, um bazar, que ia próspero; mas, com a decadência da localidade, de que foi um dos fatores a construção da Central, o estabelecimento comercial foi decaindo. O pai viu-se obrigado a suprimir despesas, uma das quais era a da educação e instrução dos filhos. O José, que já tinha dezessete anos, veio para a loja e os outros foram colocados aqui e ali, nas pescarias de "currais", que o pai tinha, e na salga de peixe, levada a efeito muito rudimentarmente, também do velho Meneses. Aos vinte e dois anos, José, que se aborrecia com aquela vida, pôs o pé no mundo e correu, durante uns trinta, o interior das antigas províncias do Rio, Minas e São Paulo. Tudo ele foi; tudo sofreu, mas sempre inquebrantavelmente honesto. Aqui, foi guarda-livros de um armazém; numa fazenda, administrador; num vilarejo, professor das primeiras letras; em certa idade, encontrou um boticário simpático, que se fez seu amigo, lhe ensinou a manipular drogas, também a obturar e limpar dentes, e a passar pequenas receitas. Foi onde se demorou mais; mas isto se veio a dar já no fim da sua carreira vagabunda, quando já não podia mudar de rumo. Na vizinhança da cidade, construía-se um depósito e modestas oficinas de pequenos reparos, para as máquinas de um ramal férreo que lá ia ter. José, que seguia as obras e via as máquinas, ficou assombrado com aquelas 42 maravilhas de caldeiras, fornalhas, bielas, manivelas, alavancas, que se coordenavam para mover e parar aqueles hediondos monstros de ferro - as locomotivas. Quis entrar no segredo de tudo aquilo e fazia perguntas sobre perguntas. No começo, os operários explicavam; mas as perguntas eram tais e tantas, que eles acabaram por se aborrecer com elas e com o velho perguntador. Meneses não se aborreceu, pois se sentia com a vocação de engenharia e de engenheiro. Ali, porém, não tinha onde estudar. Convinha descer para o Rio de Janeiro, freqüentar aulas teóricas e aperfeiçoar-se em oficinas adequadas. O dinheiro que tinha era pouco, mas o boticão sempre dava alguma coisa, e a renda tinha aumentado, graças à afluência de operários para acabamento da estradinha local. Demais, também receitava. Fazia alguma coisa: a questão era economizar. Assim fez e, durante um ano, poupou o dinheiro necessário para ir estabelecer-se no Rio e esperar uma colocação qualquer. O seu amigo farmacêutico não o quis dissuadir, mas disse-lhe: - Se você fosse mais moço, aconselharia até, porque se projetam grandes obras, no Rio; mas, já tendo passado dos cinqüenta, é fazer o que parecer melhor a você. Em todo o caso, vou pedir ao Coronel Carvalho uma recomendação. Durante esse longo lapso de tempo que vivera fora da família, recebera vagas notícias de seus pais e irmãos. Sabia que os pais tinham morrido e quase todos os irmãos; e que o único que lhe restava era remador da Capitania do Porto e mantinha a irmã solteira, a única que tivera. Moravam lá para a Saúde. Meneses embarcou contente; ia afinal realizar a sua vocação. Até agora, não a tinha encontrado; mas, desde que vira aquelas máquinas e maquinismos, sentira outra coisa dentro de si. Não deixou, entretanto, de levar a mala dos ferros de dentista e a carta de recomendação. No dia seguinte, depois de uma noite insípida no hotel, foi, indagando daqui, informando-se dali, até à Capitania do Porto. Perguntou pelo remador seu irmão e, sem dificuldades, lhe informaram que, em breve, ele viria. Não esperou muito. Um homenzarrão forte, tostado, com um vestuário de marinheiro, chegou-se ao porteiro e perguntou: - Quem é que me procura? O porteiro apontou Meneses, sentado a um banco, e disse: - É aquele senhor ali. O irmão não deu muitos passos em sua direção; Meneses ergueu-se logo, correu-lhe ao encontro, perguntando: - Você não me conhece mais? - Não, senhor. - Sou o seu irmão Juca. Abraçaram-se muito, e o irmão Leopoldo foi dizer ao porteiro quem era e o que havia. - Há trinta anos! - exclamou o porteiro. - Você devia ser muito criança - hein, Leopoldo? O marinheiro respondeu: - Devia ter cinco anos. - É verdade - informou Meneses. Leopoldo foi arranjar licença para acompanhar o irmão que não via há trinta anos: e Meneses ficou a conversar com o porteiro sobre coisas da roça. - Ah! Então o senhor é engenheiro? - Sim, mas mecânico. Trabalho, porém, com o nível e com o trânsito. - Agora, deve haver muito trabalho para engenheiro; vão-se fazer grandes obras... Aproveite, doutor! - Trago aqui uma carta para o Deputado Sepúlveda. Tem influência? - Muita! É o pensamento da política mineira... Não lhe deixe a aba do fraque, doutor! A conversa foi interrompida pela chegada de Leopoldo, que obtivera a licença. Pelo caminho, porém, contou a Meneses como todos morreram; como ele se empregara na Capitania e casara a irmã com um colega, o Pedro Rocha, rapaz bom, bem-comportado, do qual tinha um sobrinho, Edmundo, com seis anos, e com o qual morava, na Rua do Livramento. 43 Chegando à casa do cunhado e do irmão, a sua irmã Etelvina, que ele deixara com sete ou oito anos, não o reconheceu; e, em breve, tendo-lhe chegado o marido, foi uma festa de que só não participou o sobrinho de seis anos, sempre de nariz sujo e vestes rotas, arredio e agarrado às saias da mãe, mas sem querer tornar a bênção ao tio. A irmã logo convidou o irmão mais velho a ficar com eles. Havia um barracão no quintal, que, bem reparado, podia servir para Leopoldo, e o quarto deste ficaria para o Juca. Enquanto não estivesse em estado, ele teria a paciência de dormir com Leopoldo. Meneses aceitou o alvitre, dizendo: - Se eu tenho que gastar em outra parte... Logo foi interrompido por todos: - Oh! Não, não, Juca! - Não é esse motivo! - fez o cunhado. - Não seja essa a dúvida, mano Juca. Meneses ficou muito agradecido e acrescentou: - Mesmo porque quero que um de vocês consiga meios e modos de falar ao doutor Sarmento Sepúlveda, na Câmara. Tenho uma carta para ele. O cunhado logo exclamou: - O quê! É um bicho. Combinado tudo isto, Meneses instalou-se na casa dos parentes, com a sua mala e os seus ferros de dentista. Levou a carta do Coronel Carvalho ao deputado, que o atendeu muito bem, perguntou-lhe pelas pessoas gradas do lugar onde estivera e deu-lhe outra para o chefe da construção da avenida. No dia seguinte, estava admitido. Ganhou dinheiro, não o guardou, mas, se assim foi, motivo não houve em desperdício de sua parte. O irmão em breve adoecia e morria; o cunhado seguia-se-lhe logo. Custeou o tratamento de ambos; e, quando foi dispensado da comissão da avenida, pouco após a morte de ambos, pouco ou nada tinha. A irmã ficara com uma pequena pensão mensal da Caixa dos Remadores, cerca de trinta mil-réis, e um filho; e ele, com seus ferros de dentista. É verdade que fizera uma pequena biblioteca de engenharia mecânica: As Grandes Invenções, de Luís Figuier; As Maravilhas da Ciência, de Tirrandier; manuais de toda a sorte de ofícios e recortes de jornais que tratavam de coisas científicas ou parecidas, colados em cadernos encadernados. Dessa biblioteca, nunca se separou; e, conquanto já bebesse, com o tempo, os desgostos e a miséria atraíram-no mais para o álcool, e o furor de beber o tomou inteiramente. A toda hora, naquele casebre dos subúrbios, onde morava com a irmã e o palerma do sobrinho, ele esperava, adivinhava, construía uma catástrofe que lhe devia cair sobre os ombros; e essa visão de uma próxima catástrofe na sua vida entibiava-lhe o ânimo, descoroçoava-o e pedia-lhe para afastar - a bebida. Na rua, se só, era a mesma coisa. Só a tinha longe dos olhos, quando de súcia com outros. Contudo, apesar das duras necessidades que curtia, com a irmã e o filho desta, jamais ato algum de sua vida incidira na censura de sua consciência. O pouco dinheiro que os ferros lhe davam ou os amigos, era empregado no sustento deles, pois a casa era paga com a pensão de Etelvina, a irmã. Cassi, para vencê-lo, para ladeá-lo, tinha imaginado o plano de, aos poucos, pô-lo a seu dispor, prendê-lo de pés e mãos, como se diz, sem ele perceber. Sabendo onde encontrá-lo à noite, nessa mesma do dia em que soube, procurou-o. Meneses estava triste a um canto, lendo um jornal, com um cálice vazio ao lado. O homem das modinhas chegou-se e, sem dizer palavra, foi-se abancando: - Boa-noite, doutor! - Boa-noite, "Seu" Cassi - fez Meneses, erguendo a cabeça do periódico. - Que há de novo, por aí? Trabalha-se muito? - Alguma coisa. Agora, as coisas me correm melhor. O Joaquim dos Anjos deu-me os dentes da filha a tratar, e ele, embora pouco, sempre me paga pontualmente. É um alívio! - O doutor é um sonhador. Tem sido explorado... 44 - Nem tanto. Quando fiz aquele trabalho para uma de suas irmãs, fui muito bem pago. A minha dificuldade é não ser formado; demais, não tenho roupas... Às vezes, "Seu" Cassi, para arranjar esses sapatos de duraque que uso, por não poder usar outros, suo sangue e faço das tripas coração... - Paciência, doutor. Tome alguma coisa - fez Cassi amável. Meneses aceitou e disse amargamente: - Estou com setenta anos e não sei o que fiz na vida. Cassi regozijava-se, intimamente pensando: o homem está cheio de dificuldades. - Não desanime. O Capitão Sebastião, aquele da Prefeitura, há dias me disse que ia precisar de um dentista modesto para consertar os dentes de um filho, que, na "muda", deixou acavalar. É pouca coisa, mas, talvez, daí... - Aceito tudo... - Outra coisa, doutor Meneses. - Que há? - O senhor se dá muito com o Leonardo Flores, o poeta? - Muito. Por quê? - É que eu queria uns versos... Meneses não escondeu o espanto, que Cassi percebeu, e, sem dissimular, procurou explicarse melhor: - É coisa séria. Não há compromisso nenhum para os senhores... Eu daria alguma coisa até!... - É que o senhor não sabe como o Flores é orgulhoso. Dentro daquela sujeira toda, esfarrapado, alagado de cachaça, ele é um deus; e não lhe toque em coisas de poesia, porque senão... - Sei bem; mas sei também que o senhor tem grande influência sobre ele. Veja se me arranja? Olhe, doutor, não é para afrontar; tem aqui dez mil-réis para as primeiras despesas. Cinco são para o senhor e cinco para ele. - Não é preciso - disse Meneses, já um tanto convertido. A sua miséria lhe falava. Não havia quebra de honestidade, tanto mais que não se tratava de injúrias e insultos a ninguém. - Não, doutor; leve, leve! Tudo deve ser pago. Não é preciso grande coisa; bastam uns versos amorosos, mas delicados e finos, morais - está ouvindo, doutor? Cassi foi-se, depois que Meneses prometeu arranjar a versalhada. Já passavam das sete horas, e, logo que o violeiro desapareceu, o dentista levantou, foi a um ângulo do balcão e disse para o caixeiro, dando-lhe a nota de dez mil-réis que havia recebido das mãos de Cassi: - Paga aqueles seiscentos réis que estou devendo e me dá mais outra "lambada". Tomou-a e voltou a sentar-se na mesa. Comprou num jornaleiro os jornais da noite e foi-se deixando ficar, levantando-se, de quando em quando, para sorver às escondidas um "calisto". Aí, pelas proximidades das dez horas, sobraçando um maço de jornais, encaminhou-se para casa, no firme intuito de dar cumprimento à promessa que fizera a Cassi. A casa era um tanto longe, pelos bons caminhos; mas, cortando-se caminhos desertos, subindo e descendo morros, chegava-se a ela com mais presteza. Não hesitou e tomou os atalhos, que conhecia bem; e, quase por instinto, os seguia até à sua residência. Ficava esta numa campina nua; e só era cercada na frente, toscamente, e, do lado direito, graças ao vizinho. Tinha um cajueiro mofino, que disfarçava a casinha e dava uma escassa sombra à torneira d'água, onde a irmã lavava roupa, de casa e de fora. De onde em onde, Meneses cismava em plantar algumas árvores de rápido crescimento, para sombra; mas lá vinham os cabritos da vizinhança e matavam-lhe os brotos. A muito custo, conseguiu fazer um caramanchão tosco com que ensombrasse a sala de jantar, onde dormia, e que se prestasse a cozinha, nos dias normais. A casa só tinha dois aposentos iguais, que se comunicavam por uma porta. Não fora a rua, não teria frente nem fundos, tão semelhantes eram essas extremidades dela. A irmã habitava o aposento da 45 frente, dividido por uma cortina, que corria do portal da porta interior até ao da que dava para a rua. Era de telha-vã e de chão. Chegou em casa e comeu o feijão e arroz com pirão de fubá de milho, que a irmã lhe guardava sempre. Fez isto à luz de um "vagabundo", espécie de lanterna, de querosene, reduzida aos seus últimos elementos. Bebeu dois ou três cálices de parati, pois sempre o tinha em casa; e estirou-se num velho canapé, com um fundo de tábuas de caixões, acolchoado com jornais. A roupa, ele a tinha tirado com todo o cuidado e com todo o cuidado depositado na guarda de uma cadeira de pau, a única existente na casa. A mesa de pinho, uma carcomida velha mesa de cozinha, tomava o resto do aposento; e, nela, roncava o palerma do sobrinho. Cobriu-se com uma manta, feita de metades de duas outras, e dormiu serenamente. Logo pela manhã, no dia seguinte, a irmã despertou-o assustada: - Juca! Juca! - Que é mulher? Não se pode dormir mais nesta casa... Depois, mudando de tom: - Que há, Etelvina? - Precisamos de açúcar, café, e já devemos ao padeiro seiscentos réis. - Você vai ao bolso do colete e tira de lá todas as pratas e níqueis que encontrares. Deixa só quatrocentos réis. Julgo que deve haver uns três mil e tantos a quatro mil-réis. Fica com tudo. Dáme um cálice, aí! A irmã não parecia mais moça do que ele quinze anos. Era velha, encarquilhada, magra, quase desdentada, cabelos completamente brancos, toda ela respirando cansaço e desânimo. Ela chamou o filho - Edmundo! - que logo apareceu. Mole, bambo, a muito custo aprendera a ler e a rabiscar, a esforços do tio; mas não ficava em lugar nenhum. Tal era a sua inércia e moleza, que logo era despedido. O seu ofício era caçar preás, rãs, para vender aos estrangeiros da fábrica, apanhar passarinhos e, de onde em onde, ajudar a fazer pescarias, no porto de Inhaúma. A mãe, com o produto de suas pobres lavagens para fora, era afinal quem o vestia, porque ele bebia tudo o que ganhava, mas raramente tocava na garrafa que o tio tinha em casa e não trazia bebida para casa, absolutamente. Tendo Etelvina servido o irmão de parati, este verificou que a garrafa continha pouco e, à nota das compras a fazer, mandou que juntasse mais meia garrafa de aguardente. A que restava, passou-a para um vidro de farmácia. A irmã não se conteve, que não exclamasse: - Ah! Santo Deus! Esse parati é uma desgraça... - Não há dúvida, mana; mas, agora, não posso mais parar, senão morro... Olha o jornal! - gritou ele para Edmundo. - Sim, titio - respondeu-lhe o sobrinho, do meio da rua. Como também tivesse pressa em tomar café, Edmundo fez prestamente as compras. A fogo de gravetos, em breve o café estava pronto. Meneses, a irmã e o sobrinho tomaram-no em redor da mesa; ela, sentada na cadeira, e eles, no velho canapé. Bebericando e lendo o jornal, o velho dentista deixou-se ficar deitado. Era dia santo, quase feriado, dia de ponto facultativo - que iria fazer? Lembrou-se de procurar Leonardo Flores. Era a sua obrigação. Almoçaria e iria até à casa dele. Assim fez. Encaminhou-se imediatamente para a casa de Leonardo Flores, que não ficava muito longe, pela Estrada Real, em cujas margens residiam ele e sua irmã Etelvina com o filho. Em lá chegando, foi recebido pela mulher, Dona Castorina, que o fez entrar. Estava avelhantada, gasta, já não pela idade, que não podia ser ainda de cinqüenta anos, mas pelos trabalhos por que tinha passado com o marido, mais do que com os próprios filhos. Nunca se lhe ouvia um queixume, nunca articulou uma acusação contra Flores. Sofria todos os desmandos do marido com resignação e longanimidade. Esse seu gênio, esse seu temperamento de doçura e perdão em face da exaltação, da exacerbação, até quase delírio, do marido, fizera que este produzisse o que produziu. Não fora ela, aquela pequena mulata, magra, de olhos negros e tristes, 46 rindo-se sempre com uma profunda expressão de melancolia; não fora aquela humilde mulatinha, que estava ali defronte de Meneses, talvez Flores não fizesse nada. Este sabia disso e a amava, apesar de tudo o que pudesse depor contra eles, e ela tinha, no fundo d'alma, apesar dos desregramentos do seu marido, um grande orgulho de sua Glória. Dona Castorina informou-o que Leonardo havia saído, para visitar um amigo, em companhia de um filho; e talvez passasse o dia em casa dele. Meneses ainda conversou um pouco, tomou dois cálices de parati de Mangaratiba, que um filho seu, auxiliar de trem, trouxera para o pai. Na hipótese - e muito plausível, consoante o gênio de Leonardo - de que ele houvesse parado na venda do "Seu" Nascimento, foi até lá. Não o encontrou e saiu com a consciência dolorida pelo que ouvira da boca de Marramaque, de Alípio e demais. Teve remorso e vergonha do que estava fazendo? Para que iria ele, arranjando aqueles versos, contribuir? Dirigiu-se para o Engenho de Dentro, a ver se encontrava alguém com quem conversar e disfarçar aquele começo de acusação, que, à sua fraqueza, se debuxava na sua consciência. Encontrou um grupo de rapazes da estrada de ferro, que eram sempre generosos com ele. Estavam ruidosos e contentes. Meneses sentou-se na roda, mas não houve meio de despregar a língua. - Que é isto, Meneses? Bebe! - fez um. Ele bebia, mas o espinho não saía. Conversava afinal um pouco. Num dado momento, vendo que era demais na conversa com a sua tristeza e o seu arrependimento reprimido, despediuse. Um lhe perguntou: - Vais para casa? Tens dinheiro? Ele respondeu: - Vou já para casa; mas dinheiro não tenho. Os rapazes fizeram-lhe um rateio, que perfez dois mil-réis; e, quando saía, um outro, levantando os braços, de um dos quais pendia uma antiquada bengala de cerejeira, gritou para o caixeiro: - Antunes, dá uma garrafa de "cachaça" - "cachaça", estás ouvindo? - "cachaça"! - dá uma garrafa de "cachaça" para o nosso querido Meneses espantar as suas mágoas. Quando Meneses apareceu em casa, a irmã foi-lhe logo dizendo: - Juca, foi bom você aparecer. Estou sem dinheiro para carvão, farinha e querosene. O que você deu não chegou... Fui comprar carne-seca - lá se foi todo o dinheiro. O velho Meneses, semi-embriagado, já sem decidir perfeitamente, tirou os cinco mil-réis que estavam escondidos na algibeira e destinados a Flores, juntou mais dez tostões e disse para a irmã: - Tens aí seis mil-réis até segunda-feira. Mana, você até lá não tem direito de me pedir mais dinheiro. Hoje é sexta-feira, temos sábado e domingo garantidos. Bebeu um cálice do parati que trouxera, deitou-se e tentou ler os jornais que os rapazes lhe deram; mas não pôde. O sono o tomou até à hora do jantar. Quando abriu os olhos e se lembrou de ter dado os cinco mil-réis, destinados a Flores, em troca de versos, aborreceu-se um pouco; mas pensou e fez de si para si: Eu me arranjo. Comeu bem e, enquanto houve luz do sol, leu e releu os jornais que tinha; quando veio a noite, continuou a lê-los, sempre bebericando aguardente. No dia seguinte, logo que amanheceu, ainda não se havia feito o dia totalmente, foi até à bica, lavou-se quase inteiramente, aproveitando a escuridão, preparou o café, tomou uma xícara, seguida de alguns cálices de parati, e pôs-se na rua antes das sete horas. Era ainda cedo para ir à casa de Leonardo Flores. Foi à estação, comprou um jornal, leu-o e seguiu para a residência do amigo. Flores já se encontrava de pé e quase todos de casa. Recebeu-o vestido com uma calça velha e de camisa de meia. Estava escrevendo. Ao se lhe deparar o amigo, olhou-o muito demoradamente; e, em seguida, fazendo com os braços um gesto perfeitamente teatral, inclinando para trás a cabeça e estufando o peito, conforme o consagrado na ribalta para encontros sensacionais, falou com voz cava e solene: 47 - Tu, Meneses! És tu, Pítias da minha alma! Notícias há muitos sóis que não hei recebido de ti. Entra neste solar amigo e repousa a fadiga da jornada naquela credência de Córdova que o AbdEl-Málek, caído do Atlas, me mandou de Marrocos e foi do último rei de Granada, Boabdil, que chorou... - Flores, estás discursivo demais... - disse Meneses, sentado na tal credência de Córdova, que não era nada mais do que uma vulgar cadeira austríaca de palhinha. - Bebe tu agora o licor de boa amizade. É produto genuíno das minhas terras solarengas e avoengas de Mangaratiba. Tomaram o "licor de boa amizade"; e, após, o poeta, falando em tom natural, perguntou ao amigo: - Como vais, Meneses? - Assim; e tu? - Às vezes, bem; às vezes, mal - conforme a lua. Já tomaste café? Embora dissesse que sim, Flores teimou em servir-lhe outra xícara, que foi buscar à cozinha. A sala de visitas era a mesma de há vinte anos. Tinha resistido a todas as mudanças e todas as despesas. Um sofá austríaco, velho, esburacado; duas cadeiras de braço da mesma marca, um trio de cadeiras de todos os feitios. Pela parede, além de outros, um magnífico retrato a óleo de pintor, feito por uma celebridade, quando nos seus começos. Uma velha estante de ferro com brochuras espandongadas e uma mesa furada com toalha de aniagem, bordada a lã de várias cores. Tinteiro, canetas e o mais para escrever. Flores voltou com as xícaras cheias, pão e manteiga. Depositou tudo na mesa e sentou-se. Meneses notava com admiração que o amigo não dava nenhum sinal de desequilíbrio, nem de embriaguez. Isso fez-lhe prazer e, pondo-se a tomar café, perguntou-lhe: - Flores, tu ainda fazes versos? - Bárbaro que tu és! Pois então tu podes imaginar que eu, Leonardo Flores, deixe de fazer versos? Eu vivo de versos e no verso. Minha cabeça é um poema, interminável, que minh'alma ritma soberbamente. Não sei outra língua, senão a divina das Musas... Contraria-me falar como estou falando... Calou-se um pouco e ambos sorveram o café a grandes goles, mastigando grandes pedaços de pão com manteiga. Flores cessou de mastigar e perguntou: - Por que tu me perguntaste se eu ainda fazia versos? Ingenuamente, Meneses respondeu: - Tinha encomenda deles a fazer-te. - O quê? - fez indignado Flores, erguendo-se, num só e rápido movimento, da cadeira, e deixando a xícara sobre a mesa. - Pois tu não sabes quem sou eu, quem é Leonardo Flores? Pois tu não sabes que a poesia para mim é a minha dor e é a minha alegria, é a minha própria vida? Pois tu não sabes que tenho sofrido tudo, dores, humilhações, vexames, para atingir o meu ideal? Pois tu não sabes que abandonei todas as honrarias da vida, não dei o conforto que minha mulher merecia, não eduquei convenientemente meus filhos, unicamente para não desviar dos meus propósitos artísticos? Nasci pobre, nasci mulato, tive uma instrução rudimentar, sozinho completei-a conforme pude; dia e noite lia e relia versos e autores; dia e noite procurava na rudeza aparente das coisas achar a ordem oculta que as ligava, o pensamento que as unia; o perfume à cor, o som aos anseios de mudez de minha alma; a luz à alegoria dos pássaros pela manhã; o crepúsculo ao cicio melancólico das cigarras - tudo isto eu fiz com sacrifício de coisas mais proveitosas, não pensando em fortuna, em posição, em respeitabilidade. Humilharam-me, ridicularizaram-me, e eu, que sou homem de combate, tudo sofri resignadamente. Meu nome afinal soou, correu todo este Brasil ingrato e mesquinho; e eu fiquei cada vez mais pobre, a viver de uma aposentadoria miserável, com a cabeça cheia de imagens de ouro e a alma iluminada pela luz imaterial dos espaços celestes. O fulgor do meu ideal me cegou; a vida, quando não me fosse traduzida em poesia, aborrecia-me. Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos dos homens, por não compreender certos atos desarticulados da minha existência; entretanto, elevou-me aos meus próprios, perante a minha 48 consciência, porque cumpri o meu dever, executei a minha missão: fui poeta! Para isto, fiz todo o sacrifício. A Arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente; e eu precisava amá-la, porque ela representava, não só a minha Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor. Louco?! Haverá cabeça cujo maquinismo impunemente possa resistir a tão inesperados embates, a tão fortes conflitos, a colisões com o meio tão bruscas e imprevistas? Haverá? Flores havia falado até agora de pé, no meio da sala, sublinhando tudo com grandes e largos gestos e modulando a voz conforme a paixão lhe tocava. Fatigou-se, calou-se um pouco, cruzou os braços adiante do corpo, enterrou o queixo pontiagudo e barbado no peito e, assim, sempre calado, ficou instantes a sacudir levemente a cabeça, um tanto virada para a esquerda, olhando o amigo desoladamente. Era ele pardo-claro e cabelos negros e lisos, com abundantes fios brancos; tinha malares salientes e a boca bem-feita. Altura média. Diante da explosão do amigo, Meneses não encontrou nada que dizer. Calou-se prudentemente e evitou o olhar de Flores, onde este lhe censurava e, ao mesmo tempo, se apiedava pela incompreensão que não podia existir num velho amigo, tal como Meneses, pela verdadeira natureza e poder do seu estro e pelo seu ardor artístico. Leonardo, com menos paixão e entusiasmo, continuou: - Sim, meu velho Meneses, fui poeta, só poeta! Por isso, nada tenho e nada me deram. Se tivesse feito alambicados jeitosos, colchas de retalhos de sedas da China ou do Japão, talvez fosse embaixador ou ministro; mas fiz o que a dor me imaginou e a mágoa me ditou. A saudade escreveu e eu translado, disse Camões; e eu transladei, nos meus versos, a dor, a mágoa, o sonho que as muitas gerações que resumo escreveram com sangue e lágrimas, no sangue que me corre nas veias. Quem sente isto, meu caro Meneses, pode vender versos? Dize, Meneses! - Não. Deve sempre assiná-los. - Pois eu não vendo, passe por que passar. Sofram, sonhem e bebam cachaça, se o quiserem fazer. Isto não será bastante - disse ele com melancolia - é preciso ter nascido como eu, ter perdido todos os seus irmãos na pobreza e ter um, há vinte anos, atacado da mais estúpida forma de loucura, para os poder fazer. Isto, porém, ninguém pode obter por sua própria vontade. Bendito seja Deus! Sentou-se com os olhos úmidos, tomou uma "talagada" do "Mangaratiba" e dispôs-se a escrever, recomendando ao amigo: - Deita-te no sofá e lê os jornais, enquanto escrevo alguma coisa, até o "ajantarado". Meneses assim fez. Veio a dormir e, quando despertou, ficou admirado da amplitude da sala e ter as pernas livres. Sonhara que estava preso e acorrentado... VIII Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim dos Anjos era a confiança que depositava nos outros, e a boa-fé. Ele não tinha, como diz o povo, malícia no coração. Não era inteligente, mas também não era peco; não era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consciência. Não se diga que, às vezes, não recebesse certos conhecimentos com reservas e cautelas; tal coisa, porém, era rara, e gracioso era estar já prevenido de antemão com o sujeito. Em geral, fosse quem fosse, ele acolhia com simpatia, de braços abertos. Na sua simplicidade, a maldade, a má-fé, a perversidade, a duplicidade dos homens lhe pareciam coisas tão raras, tão difíceis de medrar numa criatura de Deus, que só topariam com elas os que lhes andassem à procura, para estudos e coleções. A sua vida se havia desenvolvido até ali na maior boa-fé e, como houvesse sido feliz, no seu ponto de vista, os seus cinqüenta anos julgavam o mundo como um reino de paz, de concórdia, de honestidade e lealdade, apesar das notícias de jornais. Jamais lera jornais habitualmente. Se tomava um e tentava ler qualquer coisa, logo lhe vinha o sono. Tudo que não viesse ferir-lhe o ouvido, não suportava e não lhe ia à inteligência. Não compreendia um desenho, uma caricatura, por mais grosseira e elementar que fosse. Para que pudesse receber qualquer sensação duradoura e agradável, era-lhe preciso o "som", o "ouvido". 49 Música, desde que fosse aquela a que estava habituado, encantava-lhe; canto, mesmo acima da trivial modinha, arrebatava-o; versos, quando recitados, apreciava muito; e um grande discurso, cujos primeiros períodos ele não seria capaz de lê-los até ao fim, entusiasmava-o, fosse qual fosse o assunto, desde que o dissesse grande orador. Era pobre de visão e o funcionamento do seu aparelho visual era limitado às necessidades rudimentares da vida. Conquanto razoavelmente empregado, nunca deixara a música. Não tocava em bandas nem em orquestras; mas tirava partes, instrumentava, compunha de quando em quando, ganhando algum dinheiro com isso. Todas as tardes, após o serviço, reunia-se com outros músicos militantes, bebericavam, conversavam, falavam sobre a "Arte", as orquestras de cinemas, a música de tal peça ou daquela outra, relembravam colegas mortos; e, às seis horas, por aí assim, encaminhava-se para a casa, sempre com um rolo de papel de música. Trabalhava nas encomendas, após o jantar. Punha-se de calças e camisa de meia, nos dias quentes, ou com um paletó velho, nos frios, e enfronhava-se nos compassos, nos sustenidos, nos acordes, até alta noite. Tinha ensinado à filha os rudimentos da arte musical e a caligrafia respectiva. Não lhe ensinara um instrumento, porque só queria piano. Flauta não era próprio, para uma moça; violino era agourento, e o violão era desmoralizado e desmoralizava. Os outros que o tocassem, sem música ou com ela; sua filha, não. Só piano, mas não tinha posses para comprar um. Podia alugar, mas tinha que pagar professora para a filha. Eram duas despesas com que não poderia arcar. O rendimento da música não era coisa certa; e os seus vencimentos tinham emprego obrigado no vestuário seu, da mulher e da filha, no armazém, etc., etc. Por isso, não levou avante os estudos musicais da filha, os quais, por falta de convivência e tempo, não passaram da pouca coisa que ele podia ensinar. Mesmo ela não tinha nenhum ardor musical, nem de repetir, de reproduzir, nem de criar; aprazia-lhe ouvir, e era o bastante para a sua natureza elementar. Nem a relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada. Não imaginava as catástrofes imprevistas da vida, que nos empurram, às vezes, para onde nunca sonhamos ter de parar. Não via que, adquirida uma pequena profissão honesta e digna do seu sexo, auxiliaria seus pais e seu marido, quando casada fosse. Ela tinha bem perto o exemplo de Dona Margarida Pestana, que, enviuvando, sem ceitil, adquirira casa, fizera-se respeitada e ia criando e educando o filho, de progresso em progresso, fazendo tudo prever que chegaria à formatura ou a coisa parecida. A muito custo, devido às insistências de Dona Margarida, consentira em ajudá-la nos bordados, trabalhados para fora, com o que ia ganhando algum dinheiro. Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha um tolo escrúpulo de ganhar dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a uma moça ou a uma mulher. Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor. Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, para poder responder cabalmente, se o tivermos que o fazer, sobre o emprego que demos a nossa existência. Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mas aproximada, de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitia meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação que recebera tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua 50 obliquada visão da vida. Para ela, a oposição que, em casa, se fazia a Cassi, era sem base. Ele tinha feito isto e aquilo; mas - interrogava ela - quem diria que ele fizesse o mesmo em casa de seu pai? Seu pai - pensava ela - estava bem empregado, relacionado, respeitado; ele, portanto, não seria tão tolo, que fosse desrespeitar uma família honesta, que tinha por chefe tal homem. De resto, esses rapazes não são culpados do que fazem; as moças são muito oferecidas... Com raciocínios desse jaez e semelhantes, Clara, na ingenuidade de sua idade e com as pretensões que a sua falta de contacto com o mundo e capacidade mental de observar e comparar justificavam, concluía que Cassi era um rapaz digno e podia bem amá-la sinceramente. O padrinho, Marramaque, parecia-lhe seu inimigo. Sempre que podia, contava mais uma proeza, mais uma falcatrua de Cassi. Não lhe cansava o assunto. Clara até tinha, às vezes, vontade de dizer a seu padrinho: "Padrinho, esse Cassi deve ser muito rico, porque compra a polícia, a justiça, para não ser preso. Olhe: se ele fosse condenado pela metade dos crimes que o senhor lhe atribui, estaria já na cadeia, por mais de trinta anos." Ela se enganava, porque não conhecia a vida. Para se escapar aos crimes de Cassi, basta um pouco de proteção e que o acusado seja bastante cínico e ousado. Vivia assim ansiosa e ofegante, querendo e não querendo ver o modinheiro; ora, convencendo-se de tudo que diziam dele; ora, não acreditando e apresentando ao seu próprio espírito dúvidas e objeções, quando Meneses veio tratar dos seus dentes, após umas fortes dores que a prostraram de cama. Um certo dia, o pai lhe havia dado, ao sair, pela manhã, um trabalho de música, para copiar, de forma que, à tarde, estivesse pronto. Não era longo, mas exigia atenção. Depois do almoço, aí pelas onze horas, pôs-se a copiar, mas, subitamente, deu-lhe uma dor de dentes que a fez gemer e até chorar. Engrácia, sua mãe, correu a acudi-la. Como sempre, porém, ficou estonteada, sem saber o que fazer, que paliativo dar; Clara, mal falando, disse-lhe que mandasse chamar Dona Margarida. Em vindo esta, aplicou remédios caseiros, mandou buscar malva, pela criada que tinha em sua casa; fez Clara bochechar e foi-se para a casa tratar dos seus bordados e costuras. Engrácia, porém, não se acomodava, andava de um lado para outro, impaciente que o marido chegasse. Todas as moléstias existentes, que a natureza cria, e os médicos, por desfastio, inventam, ela supunha poder ter sua filha. Não havia nenhuma lucidez nos seus raciocínios, quando um acontecimento de aparência grave lhe tocava, e pior ficava, quando se tratava da filha. O seu amor à Clara era um sentimento doentio, absorvente e mudo. Queria a filha sempre junto a si, mas quase não conversava com ela, não a elucidava sobre as coisas da vida, sobre os seus deveres de mulher e de moça. A não ser no caso de Cassi, que o seu instinto de mãe falara mais alto do que a sua inércia natural, nunca punha em prática uma medida eficaz que traduzisse amparo e direção de mãe na conduta da filha. Pensava, mas não chegava ao ato. O dia inteiro, quase, passavam as duas mulheres metidas cada uma consigo mesma. A mãe lavava a roupa no tanque, ao lado da casa; e a filha se encarregava dos arranjos domésticos. A cozinha era feita por ambas ou só por Clara, quando não tinha músicas do pai a copiar ou sua mãe tinha muita roupa na lavagem. Joaquim, o Quincas, como o chamava a mulher, saía, nas primeiras horas da manhã, passava pela venda, fazia as encomendas, tomava um "calisto" e conversava um pouco com o "Seu" Nascimento. - Não acredito que "ele" venha, nem também que o outro se repimpe no Catete. - Seria bom para o senhor... - dizia Nascimento. - O quê? Nem o conheço... Qual! Nada tenho com um nem com outro... - Mas é seu patrício... - Como o senhor é, como o outro é também. Somos todos brasileiros... Eu, "Seu" Nascimento, só cuido da mulher e da filha e, um pouco, da música. - Por falar em música: que tal aquele Cassi? 51 - Quer que lhe diga uma coisa? Como músico, não vale nada. Dá cada cincada... - Mas tem fama... - A fama dele vem do dengoso, do meloso que ele põe no cantar, chegando a ser até uma indecência. Ele canta que parece estar num café-concerto, no meio de mulheres de vida airada... - Por aí, apreciam-no muito. - São essas meninas bobas, que não têm quem lhes abra os olhos... Olhe, "Seu" Nascimento, na minha casa ele não me põe mais os pés. - Marramaque, seu compadre, já me tinha dito isto e... - O compadre exagera muito. O compadre tem o seu ponto de honra de poeta... O senhor sabe; ele já figurou, escreveu em jornais e revistas, teve roda e convivência de certa ordem, não pode admitir que um quase analfabeto, como Cassi, tenha fama de artista... A culpa não é deste; é do nosso meio, que não tem instrução nem preparo. - "Seu" Joaquim, o senhor já viu o caderno que mandaram a seu compadre sobre o tal Cassi? - Já. - Que pensa daquilo tudo? - Se é verdade, ele merece a forca. - Pois dizem que é. O senhor não sabe quem é a tia Vicência, que mora por aqui, na Rua da Redenção? - Não. - Conheço-a eu. Ela é pessoa da casa de Cassi e diz que tudo aquilo é verdade. Conta até mais detalhes. - E quem é que espalha o tal caderno? - É um oficial do Exército, homem preparado, parece que engenheiro, cuja mulher atual é aquela moça que Cassi desonrou, e a mãe matou-se por isso, há cinco anos. - Quem lhe disse isso? - Vicência. Ela conhece não só a família do violeiro, como muitas das vítimas. Diz que o marido dessa moça só lhe não dá cabo do canastro, para não fazer escândalo; mas, na primeira em que se meter, toma a peito a causa da vítima, seja quem for. Joaquim dos Anjos ouviu isso, calou-se um pouco e, sem nada responder, recomendou: - Não se esqueça de mandar, principalmente a lenha, que é precisa para o almoço. Estou na hora... Até logo! Saiu, pensando nesse tal Cassi, que, por mais que quisesse esquecê-lo, sempre estava presente à sua memória, sempre estavam a relembrá-lo, como se fosse uma grande coisa, um homem notável e de posição. Que é que queriam dizer com isso? Preveni-lo? O carteiro sorriu intimamente: “Ele não ousará”! E pensou na sua garrucha de dois canos, com as quais se viaja em Minas, presente ainda do inglês, seu primeiro patrão. Homem forte, leal, direito, Joaquim tanto tinha nos outros como em si uma confiança ilimitada. Não desconfiava, nem admitia que se desconfiasse; mas esse tal Cassi... Estendia essa sua confiança à sua mulher, no que tinha razão; mas não à filha, como fazia, porque, no tocante a esta, precisava contar com a crise da idade, a estreiteza de sua educação doméstica e a atmosfera de corrupção com que o meio a envolvia, admitindo tacitamente que ela estava fadada ao destino das "outras". Joaquim dos Anjos não tinha capacidade intelectual para tanto... Cessou de pensar em Cassi e pôs-se a cogitar no trabalho, nas gratificações e nos aumentos. Chegou à repartição, assinou o ponto, cumprimentou os colegas e chefes; e, à hora certa, tomou a correspondência a distribuir e lá correu para escritórios, casas de comércio, entregando cartas e pacotes. Vinha tudo isto com nomes arrevesados: franceses, ingleses, alemães, italianos, etc.; mas, como eram sempre os mesmos, acabara decorando-os e pronunciando-os mais ou menos corretamente. Gostava de lidar com aqueles homens louros, rubicundos, robustos, de olhos cor do mar, entre os quais ele não distinguia os chefes e os subalternos. Quando havia brasileiros, no meio 52 deles, logo adivinhava que não eram chefes. Almoçava frugalmente e até às cinco executava o serviço, isto é, as várias distribuições de correspondência. Terminado o trabalho, procurava os seus colegas de arte e, aí pelas cinco, cinco e meia, metia-se no trem para a casa. Naquele dia, conforme o seu costume, preencheu-o todo assim, sem nenhuma discrepância ou variante, como se obedecesse a um programa. Quando chegou em casa, já se fazia escuro, e os lampiões da iluminação pública estavam acesos e prontos a suceder, consoante o seu poder, à soberba luz do sol, que ia morrendo, num crepúsculo cambiante e lento, por detrás das montanhas, que se destacavam num fundo de prata, de ouro e de púrpura, na parte do horizonte em que ele se escondia. Veio-lhe abrir a porta a mulher, que, antes de mais nada, lhe foi dizendo: - Ah! Quincas! Você não sabe como me vi atrapalhada, hoje, aqui... Se não fosse Dona Margarida... - Mas o que houve, Engrácia? - Clara ficou doente de repente, pôs-se a gemer, e eu, sem ninguém, não sabia o que fazer. Felizmente, gritei por Dona Margarida, que acudiu. - Que é que ela teve, mulher? - Dentes, Quincas; mas uma dor muito forte. - Ora, você mesmo! Você é uma pamonha. Então dor de dentes é moléstia que assuste ninguém? - É que você não viu. - Vamos ver o que há? Dirigiu-se para o quarto da filha, que tinha o queixo amarrado num lenço dobrado, e perguntou: - Que houve, Clarinha? - Nada. Tenho aqui um dente furado, que me dói de quando em quando. Hoje doeu-me mais fortemente, gemi e tive que me deitar. Felizmente o remédio que Dona Margarida me deu, fez passar a dor, mas tenho o queixo inchado... - Não é nada? - Penso que sim - disse Clara, e acrescentou: - olhe, papai, não pude passar a limpo a música. - Não faz mal, eu mesmo passo. Depois ajuntou, voltando-se para a mulher: - É preciso levar essa menina ao dentista, Engrácia, enquanto está no começo. - Dentistas! Deus me livre! - Por que, mulher de Deus? - Porque é casa de perdição, Quincas. - Qual perdição, qual nada. Perde-se quem quer ou quem já está perdido. - Você que a leve, Quincas. Não posso sair todo o dia... Você sabe que não posso andar muito... - Eu não posso, pois tenho de ir para o serviço. Pôs-se a pensar, olhando a filha deitada, com os doces olhos negros a interrogar o pai, quando lhe surgiu um pensamento: - Vou chamar o Meneses. Ele não é formado, mas tem prática e pode certamente fazer o que se trata. Que acha, Engrácia? - Acho bom, se ele vier em casa. - Ele virá, pela manhã. Almoçará com vocês e dar-lhe-ei alguma coisa. - Você quer, Clara? - perguntou o pai. - Aceito e acho bom. Não é preciso sair e mamãe não se incomoda. Foi assim que Meneses entrou a tratar dos dentes de Clara, fato de que tão oportunamente Cassi tivera notícias pelo doutor Praxedes, no Méier. Para o velho doutor Meneses foi uma 53 salvação, porquanto, embora trabalhasse, não era pago ou o era mal e irregularmente. Com o carteiro, as coisas se passavam de outra forma; e, além disso, almoçaria todo o dia - vantagem que não era de desprezar. Sabendo que Meneses estava todos os dias com Clara, Cassi, que havia resolvido pôr cerco à rapariga, tratou de aproveitar o estado de miséria, de abatimento moral em que estava o velho dentista, para realizar os seus inconfessáveis fins. Encomendou-lhe aqueles versos que deviam ser feitos por Flores e deu-lhe dinheiro, já prevendo que Meneses gastá-lo-ia e não obteria os versos. Tudo isto aconteceu; mas Meneses, quando, no dia seguinte, se lembrou da recusa de Flores e de ter gasto o dinheiro, não achou outro alvitre senão ele mesmo fazer os versos. Ficou o dia inteiro a martelar, a riscar, a emendar e, ao fim do domingo, tinha feito algumas quadras com mais ou menos sentido. Nunca, a bem dizer, fizera versos; mas, tendo corrido montes e vales, lidara com poetas e tinha o ouvido educado. De resto, escolhera o metro popular, a quadra de sete sílabas; e tanto fez que, pela tardinha, a poesia estava pronta, e o pobre velho ficou muito contente consigo mesmo, como se tivesse feito obra de vulto. Bebeu bastante e dormiu satisfeito. Havia cumprido a sua palavra de qualquer forma. Se os versos não eram de Leonardo Flores, eram dele. Não seriam tão bons; mas, pelo menos, desculpariam o gasto dos cinco mil-réis, que lhe remordia a consciência. Na segunda-feira, à noite, depois de ter andado por toda a parte, com a sua velha mala de ferros de cirurgião-dentista, Meneses foi-se postar no botequim do Fagundes. Sentou-se, como de hábito, na última mesa, aos fundos, encostada à parede, com um jornal debaixo dos olhos e um cálice de parati na frente. Ele bebia aos goles, à vista de todos, sem vexame algum. Fazia-lhe mal, como mal faz a todo mundo; mas era solicitado a beber para se atordoar, para não se recordar, para não estar só com o seu passado, para afugentar o terror que a vida lhe inspirava, na miséria, quase indigência em que se achava, naquela idade avançada de mais de setenta anos, alquebrado, doente, sem uma amizade forte, sem um parente que o amparasse, sem uma pensão qualquer. Cassi foi encontrá-lo engolfado na leitura do jornal: - Pensei - disse ao sentar-se - que o doutor se havia esquecido. Meneses, descansando o modesto pince-nez em cima da mesa, onde já havia posto o jornal, respondeu: - Qual o quê! Sou homem de palavra... Demais, o senhor me havia dado o dinheiro, e, assim, o trato ficava mais sagrado. Cassi tinha uma grande dificuldade em ser amável, tomar a entonação de voz conveniente, adaptar o olhar a ela, ajeitar adrede os músculos da face... Não era capaz disso quando sincero, que fará quando falso! Todo ele era rude, metálico, grosseiro e áspero. Enfim, fez o que pôde e disse: - Por isso, não, doutor! Eu não me lembrava de tal fato! Aquilo foi para uns beberiques... Arranjou? - Arranjei; mas não com o Leonardo. - Ele não quis ou... - Não; estava bom. Como já lhe disse em certa ocasião, Flores é por demais orgulhoso, quando se trata de versos dele; e, ao falar-lhe no "negócio", deitou-me um discurso enorme, dizendo que era isto e aquilo, tinha feito tais e quais coisas e, por fim, que não vendia versos. - Nem dados? - Não lhe propus; mas estou certo que não daria. Pelo que disse, os versos que lhe saíam da cachola eram dele e só dele. - E com quem arranjou? - Fi-los, eu mesmo. Não serão... - Vamos ver, doutor. Meneses puxou, de dentro da algibeira do interior do fraque cinzento, um volumoso embrulho de papéis sebosos, procurou o que continha os versos, pôs o pince-nez e disse: - Vou lê-los, para o senhor compreender melhor. A minha letra é muito ruim. - Leia, doutor. 54 Meneses concertou os óculos, experimentou uma melhor posição para receber a luz e começou: A minha Querida pena Nas grades de uma prisão, Mas o Amor lhe ordena Sossego no coração. O velho dentista ambulante, afinal, acabou e olhou interrogativamente o menestrel. Tinha este tomado um ar grotesco de entendido e olhava vago, simulando que ajustava pensamentos. Após ter Meneses perguntado o que achava dos versos, o manhoso violeiro disse: - Não era bem isto que eu queria. Os versos, porém, não estão maus, antes são bons. Serve até para modinha... O doutor não sabe quem faça música para modinhas? - Conheço o Joaquim dos Anjos. - Ah! É verdade! Como há de ser? - perguntou Cassi, simulando embaraço. - O senhor não se dá com ele? - Dou-me; mas não tenho muita intimidade. Se fosse por intermédio da filha? Por que o doutor não pede? - Posso pedir a ela; mas o padrinho - não sei por quê - não gosta do senhor. Se ele sabe... Meneses arrependeu-se de ter avançado tanto, mas a sua vontade já era tão fraca que não soube, nem procurou meios e modos de fugir às conseqüências de sua confidência. Cassi aproveitou-se das aberturas do velho e disse: - Sei; mas escrevo uma carta à Dona Clara a fim de que ela evite a má vontade do padrinho e que se saiba ser a modinha... Meneses não pôde reprimir um movimento de espanto. - Não tenha susto, doutor; absolutamente não malicie no que vou fazer. A carta será lida pelo senhor. Meneses ficou mais seguro de si e continuou a beber com vontade, enquanto Cassi contavalhe os seus ganhos extraordinários no cangueiro, jogo suburbano. - Olhe, doutor - rematou ele -, quando precisar de algum, é só pedir. O dentista já estava muito adiantado na embriaguez; e, ao ouvir aquilo, olhou, desejoso e mendicante, para o violeiro, que se apressou em ir ao seu encontro: - Quanto precisa, doutor? - Dois mil-réis, só. - Não - disse Cassi, tirando um maço de notas da carteira -, leve cinco; e não se esqueça de estar aqui, amanhã, às sete horas. Preciso da música para breve. Meneses foi para a casa, sem pensar no que havia prometido; e, como guiado por instinto, subiu e desceu morros, tomou atalhos e acabou se deitando muito naturalmente no seu miserável canapé. Não quis comer; a embriaguez lhe havia tomado inteiramente. Despertou, no dia seguinte, sem saber o que tinha feito nas últimas horas em que estivera fora. Lembrava-se vagamente que parara no botequim habitual. Tendo saído para fora de casa, a fim de lavar o rosto e satisfazer as exigências do organismo, quando voltou, já encontrou sua irmã de pé a lhe dizer, como quase todas as manhãs: - Não temos nada em casa, Juca. Meneses não sabia se tinha ou deixava de ter dinheiro. Por desencargo de consciência, foi esgravatar as algibeiras. Encontrou um níquel de cruzado e pensou: "Bem! Para o café e o açúcar, já temos.” Continuou a procurar, achou, dobradinha, no fundo de um bolso, uma nota de cinco milréis. Espantou-se. Quem lha teria dado? Cogitou, forçou a memória, enquanto a irmã resmungava: - Juca, você não ouviu o que eu disse? - Ouvi; espera, que estou procurando o "cobre". Tanto forçou a memória, tanto combinou as vagas recordações, que toda a sua entrevista com Cassi foi recordada. Teve vontade de rasgar a nota, de dizer que não faria o prometido; mas já 55 estava sem força moral, temia tudo, temia o menor sopro, o mais inocente farfalhar de uma árvore. Toda a criação estava contra ele, conjugava-se para perdê-lo - que podia fazer contra tudo e contra todos? E a miséria? E a fome? Se se revoltasse, que seria dele, sem futuro, sem emprego, sem amigos, sem parentes, doente? Era bem triste o seu destino... Onde estava a sua mecânica? Onde estava a sua engenharia? Amontoara livros e notas pueris, e nada fizera. Levara bem cinqüenta anos, isto é, desde que saíra da casa dos pais, a viver uma vida vagabunda de ciganos, sem nunca se entregar seriamente a uma única profissão, experimentando hoje esta, amanhã aquela. De que lhe valera isto? De nada. Estava ali, no fim da vida, obrigado a prestar-se a papéis que, aos dezesseis anos, talvez não se sujeitasse, para disfarçadamente esmolar o que comer com os seus parentes. Teve vontade de chorar, mas a irmã gritou-lhe do quintal: - Achaste o dinheiro? - Achei. Respondeu assim, numa palavra, e deitou bem meio copo da aguardente, que sorveu toda quase de um só trago. Meneses pensou ainda nos seus setenta anos desamparados, estéreis, e teve infinita dor de si mesmo, da miséria do seu fim. Que resolver sobre o caso de Cassi e da carta? Sacudiu os ombros e pensou de si para si: Que hei de fazer? As coisas me levaram a isso e... Cassi veio ao botequim, munido da carta, que leu, conforme prometera a Meneses. Desgostoso, com aquele mau travo na consciência, o pobre dentista ambulante procurava, durante o dia, beber a mais não poder. Tinha chegado cedo em casa de Joaquim e, tendo-o ainda encontrado, pedira-lhe dinheiro. Almoçou, saiu e foi bebendo daí em diante em todo o botequim por que passava. Ao chegar à casa do Fagundes, tinha lá uma carta de um cliente. Abriu-a; mandava-lhe dez mil-réis, por conta de cinqüenta que lhe devia. Deu cinco mil-réis ao caixeiro, para guardar, e foi para a cidade. Aí não teve medida. Todos lhe pagavam, de forma que, ao se encontrar com o Cassi, não dava mostras, mas estava completamente sem discernimento. O violeiro leu o que quis, fechou a carta e deu-a ao pobre velho. A sua resolução já estava tomada. Havia forçosamente de se entregar à sorte, aos caprichos da corrente da miséria, de dor, de humilhação que o arrastava. Ela o havia levado até ali; era inútil resistir. Entregou a carta a Clara. No dia seguinte, recebeu a resposta. Entregou-a a Cassi. Assim, durante um mês e tanto, ele foi o intermediário da correspondência dos dois. Já não tinha um movimento de revolta; resignara-se àquele ignóbil papel como a uma fatalidade que o destino lhe impusesse. Contra a força não há resistência, pensou ele; o mais sábio era submeter-se. Não esperava mais que Cassi lhe oferecesse dinheiro, pedia-o. No começo, o violeiro foi satisfazendo inteiramente os pedidos; depois, fazia-o pela metade; por fim, dizia que não tinha dinheiro e não lhe dava nada. Meneses, porém, continuava passivamente a desempenhar o seu indigno papel. Se não o achava decente, conformava-se diante da sua atroz e irremediável miséria. Não se julgava mais um homem... Clara recebia aquelas cartas com uma emoção de quem recebe mensagens divinas. Entretanto, eram pessimamente escritas, a ponto de não serem, às vezes, entendidas, tão caprichosa era a ortografia delas. A filha do carteiro não via nada disso; esquecera-se até das más ausências que faziam do namorado. Para ela, ele era o modelo do cavalheirismo e da lealdade. Estava sempre a sonhar com ele, com aquele Cassi da viola. Passava da alegria para o choro. A mãe notava-lhe essas alternativas de humor e fazia-lhe perguntas. Ela as respondia, malcriadamente, desabridamente. Relaxava o serviço ou não o fazia. Quase sempre, esquecia-se disso ou daquilo. Engrácia comunicou isto tudo ao marido. Joaquim disse então: - É verdade, Engrácia. Essa menina tem alguma coisa... Antigamente, as suas cópias de música eram limpas e certas; agora, não. Vêm cheias de raspagens, erradas, borradas... Que terá ela? Vou levá-la a um médico - que achas? - Talvez faça bem. Daí a dias, Joaquim faltou à repartição e levou a filha ao doutor. Este a examinou e disse ao pai: 56 - Sua filha nada tem. São coisas da idade e do sexo... De distrações, passeios, convivência - é o que ela precisa... Em todo o caso, vou receitar... Joaquim fez a necessária comunicação à mulher, que ficou de se entender com Dona Margarida, para fazer-se acompanhar da filha, sempre que tivesse de sair, ir a lojas, etc. Ele mesmo, Joaquim, levou-a no próximo domingo, a passear em Niterói. O mar não fez bem à menina. Se a sua alma estava cheia de vago e de impalpável, com a vista do mar ficou absorta no infinito, no ilimitado do Universo. De volta, chorou toda a noite sem saber por quê. Amanheceu de olheiras roxas, corpo mole, aborrecida de tudo e de todos. A vida lhe sabia a amargo. Ela não via como se a podia adoçar. Ao mesmo tempo, lembrava-se de Cassi e enchia-se de esperanças. Saiu com Dona Margarida. A alemã, muito mais sagaz que seus pais, adivinhou o seu mal e pô-la em confissão com habilidade. Tanto fez, que Clara lhe disse francamente a origem dos seus males. - Mas este sujeito é um tipo indigno. - Não, para mim. Estou crente que... - Dizem tão mal dele... - É porque ele se deixou apanhar, enquanto outros há por aí que... Ele confessa que está arrependido do que fez, e agora quer se empregar e casar-se comigo. Dona Margarida olhou firmemente para a moça, cravou bem os seus olhos perquiridores nos da rapariga; e fez de si para si: - Será possível? Apressou-se a contar a confissão de Clara à mãe. Engrácia odiava Cassi. Se, algum dia, tinha tido um sentimento forte, era esse de ódio ao violeiro. Não sabia bem como justificá-lo; mas tinha-lhe uma raiva, uma gana de morte. Quando Dona Margarida lhe narrou a confidência da filha, ela teve uma crise surda de rancor. Já não era só contra ele, mas contra a filha, que ela criara com tantos carinhos, tantos cuidados, para, afinal, vir a se "embeiçar" por aquele borra-botas, amaldiçoado por todos, até pelo próprio pai. Serenou e tomou a resolução de contar o fato, por sua vez, a Joaquim, antes que aquele perverso de modinheiro não lhes pespegasse alguma das dele. Joaquim recebeu a notícia sem demonstrar espanto. Não gostava também de Cassi. Era, para ele, homem morigerado e trabalhador, um capadócio, um desclassificado, réu de polícia, muitas vezes, de quem tanto mal se dizia; mas, se ele quisesse casar com a filha, apesar de todos os seus maus precedentes, não se oporia. Iria falar-lhe? Ou chamá-lo-ia em casa? Não seria melhor esperar? Pensou e tomou o alvitre de pedir a opinião do compadre Marramaque. O antigo contínuo tinha um grande ascendente moral e intelectual sobre o ânimo do carteiro, que o obedecia cegamente. Tratou, portanto, de pedir-lhe conselho. Naquele domingo, a partida de solo tinha se adiantado pela noite afora. Deviam ser onze horas quando resolveram a "dar com o basta". Jogavam na sala de jantar, onde se encontravam, além dele, Joaquim, Marramaque, Lafões e Dona Engrácia também. Clara já se recolhera ao quarto. Parecendo-lhe que a filha dormia, Joaquim resolveu decidir a coisa. Expôs primeiramente o estado nervoso da filha, os passos que tinha dado para tratá-la e chegou ao ponto agudo da questão. Por aí, Marramaque ergueu-se furioso: - Pois, então, você, compadre, quer meter semelhante pústula dentro de sua casa? Você não sabe quem é este Cassi? Se o pai não quer saber dele, é porque boa coisa ele não é. Ele não só desonra a família dos outros, como envergonha a própria. As irmãs, que são moças distintas, já podiam estar bem casadas; mas ninguém quer ser cunhado de Cassi. Ele se diz sempre correspondido, que se quer casar, etc., para dar o bote. Quando fica satisfeito, escorrega pelas malhas da justiça e da polícia, e ri-se das pobrezinhas que atirou à desgraça. Você não vê que, se ele se quisesse casar, não escolheria Clara, uma mulatinha pobre, filha de um simples carteiro? Sou teu amigo, Joaquim... - É o que eu penso também - fez Dona Engrácia. - Ele pode achar muitas em melhores condições... 57 Clara, que ouvia tudo, chorando em silêncio, quis protestar e citar exemplos em contrário, que conhecia, mas se conteve. Joaquim, que escutara calado a fala apaixonada do compadre, observou: - Acho que você tem razão; mas, qual o remédio? - É continuar... Como é que minha afilhada recebeu recados dele, comadre? - perguntou Marramaque a Dona Engrácia. - Ela diz que foi uma amiga que lhe trouxe - respondeu a mulher do carteiro. - Fresca amiga! - comentou rindo-se Marramaque. - O que há a fazer, Joaquim, é continuar no que está e fazer que ele saiba que você não vê com bons olhos a insistência dele junto à filha. - Se ele teimar? - perguntou Engrácia. - Publica-se nos jornais aquele folheto que recebi, vai-se à polícia, desmoraliza-se o tipo de uma vez; e ele que faça o que quiser. Todos calaram-se. Lafões não precisou fazer isto, porque se havia mantido até então calado. O carteiro voltou-se para ele e perguntou-lhe: - Que diz a isto, Lafões? - Isso... isso é matéria delicada. Não sou da família e, por isso, não me julgo com o direito... - Eu também não sou - acudiu Marramaque. - Estou só dando com franqueza uma opinião que me pediram; mas certo de que, Joaquim, se você permitir que esse tal sujeito entre aqui, eu, apesar do muito que devo a você, não ponho mais os meus pés na sua casa. Levantou-se, tomou a bengala e saiu mergulhado na treva da noite, que estava bem escura, quase sem estrelas, caminhando devagar, no seu passo de capenga, até à sua modesta casa, onde chegou sem temor e tranqüilo de consciência. Clara não pôde conciliar o sono. As idéias mais absurdas lhe passavam pela cabeça. Pensou em fugir, em ir ter com Cassi, em matar-se... Enchia-se de raiva contra o padrinho. Por fim, resolveu relatar, por carta, tudo o que se passou ao namorado. Saiu do quarto, logo que percebeu que o pai já tinha ido para a repartição; tomou naturalmente a bênção à mãe, lavou-se e serviu-se do café matinal. Como não tivessem vindo as "compras", disse à mãe que ia copiar música, enquanto as esperava. Era um pretexto. O que ela escreveu, foi uma longa carta, narrando o que ouvira naquela noite a respeito dela e dele. Antes de Meneses começar a cuidar dos dentes, ela lhe fizera entrega da missiva, que o pobre velho, cheio de amargura, logo meteu na algibeira. Para que viver tanto? pensou ele, limpando os ferros numa toalha de alvura imaculada. Inteirado do que acontecera, vendo os seus planos fracassarem por causa daquele "João Minhoca" e, ainda mais, com a ameaça de ver toda a sua escandalosa vida publicada nos jornais - Cassi encheu-se de fúria má e, na maior fúria, tomou a firme resolução de remover aquele trambolho de "aleijado", que estava sempre estragando os seus planos, com os quais até já tinha gasto bastante dinheiro. Não subiam as despesas a mais de cinqüenta mil-réis... O seu furor foi grande; tanto que, ao ler, em voz baixa, a carta, ao lado de Meneses, no botequim, este lhe notou a profunda alteração de fisionomia que, subitamente, a leitura lhe havia produzido. Os seus olhos chamejavam, os dentes estavam rilhados e toda a sua natureza baixa, feroz e grosseira se revelava, num ríctus horrível. Pagou alguma coisa que beber a Meneses e despediu-se, sem dizer mais nada. Meneses continuou a sorver os seus consoladores "calistos" e a perguntar de si para si: - Que há? Que haverá? Que haveria? O que havia, era simples: Cassi premeditava simplesmente, friamente, cruelmente, o assassinato de Marramaque. Quando ele falou a respeito a Arnaldo, limitou-se a dizer: "Vamos darlhe uma surra." "Por quê?" perguntou o outro. Ele respondeu: "Esse velho está abusando de ser aleijado, para me insultar. Merece uma surra." Não iam sová-lo, sabiam os dois desalmados; iam matá-lo... Era sábado, dia em que Marramaque se demorava mais na venda do "Seu" Nascimento. Chovia e a noite viera logo fechada e escura. Grossas nuvens negras pairavam baixo. As luzernas de gás, tangidas pelo vento, mal iluminavam aquelas torvas ruas dos subúrbios, cheias de árvores 58 aos lados e moitas intrincadas de arbustos. Marramaque, vindo da repartição, deixara-se ficar até às oito, na venda. Por essa hora, despediu-se e tomou o caminho de casa. Para se ir ter a ela, por ali, preconiza-se, entre outras, uma rua já quase completamente edificada, que terminava numa ladeira deserta. De um lado, o esquerdo, havia um terreno baldio, cheio de moitas altas; do direito, grandes árvores dos fundos de uma chácara, cuja frente era na rua paralela. Além de deserto, esse trecho era por demais sombrio, sobretudo em noites como aquela. Marramaque, debaixo de chuviscos teimosos, embrulhado numa capa de borracha, subiu a ladeira, para depois descer o barranco e, finalmente, chegar à casa. Quando estava no alto da pequena elevação, dois sujeitos tomaram-lhe a frente e disseram-lhe: "Capenga, você vai apanhar, para não se meter onde não é chamado." Não teve tempo de dizer coisa alguma. Os dois descarregaram-lhe os cacetes em cima, pela cabeça, por todo o corpo; e o pobre Marramaque, logo à primeira paulada, caiu sobre um lado, arfando, mas já sem fala. Malharam-no ainda com toda a força e raiva, sem dó nem piedade; e fugiram, quando lhes pareceu momento azado. No dia seguinte, ao passarem os primeiros transeuntes, ele estava morto. E, assim, morreu o pobre e corajoso Antônio da Silva Marramaque, que aos dezoito anos, no fundo de um "armazém" da roça, sonhara as glórias de Casimiro de Abreu e acabara contínuo de secretaria, e assassinado, devido à grandeza do seu caráter e à sua coragem moral. Não fez versos ou os fez maus; mas, ao seu jeito, foi um herói e um poeta... Que Deus o recompense! IX Um crime, revestido das circunstâncias misteriosas e da atrocidade de que se revestiu o assassinato de Marramaque, faz sempre trabalhar todas as imaginações de uma cidade. Um homicídio banal em que se conheceu a causa, o autor, capturado ou não, e outros pormenores, deixa de oferecer interesse, para ser um acontecimento banal da vida urbana, fatal a ela, como os nascimentos, os desastres e os enterros; mas o assassinato de um pobre velho, aleijado, inofensivo, pobre, a pauladas, faz parecer a toda a gente que há, soltos e esbarrando conosco nas ruas, nas praças, nos bondes, nas lojas, nos trens, matadores, que só o são por prazer de matar, sem nenhum interesse e sem nenhuma causa. Então, todos acrescentam, aos inúmeros e insidiosos inimigos que tem a nossa vida, mais este do assassínio por divertimento, por passatempo, por esporte. Um ou muitos, seja em que número forem, é sempre uma ameaça que paira sobre cada um de nós, zombando da mais ostensiva pobreza e não tendo em consideração a pacatez mais pusilânime. Marramaque não era rico nem andava com jóias, sendo certo que não podia trazer consigo muito dinheiro. O móvel do crime, portanto, não seria o roubo. Ao contrário, o exame minucioso nos bolsos das vestes, com que fora encontrado o seu cadáver, não denunciou nenhuma tentativa de saque. O pouco dinheiro que tinha - três mil e tanto - estava intacto; uma carteira, encontrada numa das algibeiras interiores do dólmã, continha unicamente papéis. Quando foi assassinado, vestia a farda de contínuo: dólmã azul-marinho e calças da mesma cor. Tinha, por baixo do dólmã, um comum colete preto, onde trazia um relógio de prata, preso numa antiga corrente de ouro, feita de diversos trancelins de ouro, reunidos por argolas também desse metal, com um remate, em forma de estribo, cujo pedal era uma pedra negra. Pois bem: nem mesmo esta peça, de algum valor, foilhe roubada. Posta de lado a hipótese de roubo, qual poderia ter sido o móvel do crime? Amores, conquistas? O estado de saúde, a sua semi-invalidez logo afastavam tal hipótese. Política, questões de família - nada disso explicava o crime. Só na perversidade, na vontade de matar, por parte de alguém extremamente mau e sedento de sangue, encontrar-se-ia a causa. Seria isso? - perguntavam todos. A notícia do crime logo se espalhou pelo subúrbio inteiro, apesar de ser domingo o dia em que foi descoberto. A deformidade de Marramaque fazia-o notado e conhecido, de forma que, por toda a parte, se comentava o assassínio. A polícia tomou as providências de hábito; mas só iniciou as pesquisas no dia seguinte. Todos que estiveram na venda foram ouvidos; mas pouco, nada 59 adiantaram. Nem o podiam fazer. Marramaque, em lá chegando, a chuva tinha cessado. Era sábado, e todos os habitués do armazém do "Seu" Nascimento lá estavam, inclusive Meneses, que se mostrava palrador e prazenteiro. Discutia-se despreocupadamente, e até Meneses causou grande hilaridade, quando explicou a sua teoria transcendente sobre o "ovo de Colombo". No correr da discussão, alguém dissera: - Isto é ovo de Colombo. Parece que foi Marramaque a dizer, e Alípio aproveitou o ensejo, para perguntar: - Que diabo quer dizer esta história de "ovo de Colombo", na qual todo o mundo fala e não sei o que é? Entre os circunstantes estava o Senhor Monção, caixeiro-vendedor da grande casa de cereais Belmiro, Bernardes & Cia., que tinha suas luzes e gostava de palestrar, para descansar da afanosa lida de estar a "tocar realejo" aos varejistas, oferecendo-lhes feijão, arroz, milho, e por bom preço. Era um moço português, simpático, de bom porte e bem-educado. Tinha grande liberdade na roda e não houve nenhum espanto quando interveio: - Pois não sabes, Alípio, o que é o "ovo de Colombo"? - Não, "Seu" Mindela. - É simples. No meio dos sábios espanhóis, depois da primeira viagem à América, Colombo, vendo o seu trabalho criticado e tido como fácil pelos sabichões de Castela, desafiou-os a pôr um ovo em pé. - Eles puseram? - perguntou Alípio. Meneses apressou-se: - Não puseram; mas Colombo pôs. - Como? - indagou Alípio. Meneses explicou, tomando a palavra de Mindela, com todo o seu açodamento de sábio: - Colombo, dando um movimento de rotação conveniente e um de translação adequado, dissolveu a gema do centro do ovo, para a base, trazendo, para a parte inferior do ovo, o centro de gravidade, de forma que o pôde pôr em pé. Todos se entreolharam e viram o absurdo da explicação de Meneses. Ninguém se animava a contestar, mas Marramaque, tomando a dianteira de Mindela, que ia falar, saltou logo, em tom de gracejo: - Qual, "Seu" Meneses! Esta história de translação, de rotação, de centro de gravidade, é bobagem; o que... - Bobagem, Marramaque? Isto é mecânica transcendente, como é a questão do gato cair sempre sobre as patas, atirado que seja, do alto para baixo, em qualquer posição. Marramaque foi-lhe ao encontro, sem pestanejar: - Nós não temos nada com gato. Ovo se parece tanto com gato como um espeto. Bolas, Seu Meneses! Todos os circunstantes riram-se a mais não poder; Meneses pôs-se a cofiar a longa e abundante barba branca, lamentando-se da sua derrota em mecânica e tudo. De repente, cobrou coragem e desafiou o contínuo: - Quero ver, Marramaque, como é que você explica ter Colombo posto o ovo de pé? - Muito simplesmente, Meneses. Vou contar a história como a li: “Num banquete, procuravam os nobres de Espanha rebaixar o mérito da descoberta de Colombo, e dizia um: `As Índias já lá estavam e, se o senhor não as descobrisse, qualquer um outro as descobriria`. Colombo, sem responder, pediu um ovo; trouxeram-lhe e ele desafiou a que alguém o pusesse de pé. 'Impossível!' - bradaram. Então, o navegador tomou o ovo, bateu com ele, quebrando ligeiramente a mais rombuda das extremidades, e fê-lo ficar de pé. 'Ora, isto também eu faria!...' replicaram. 'Sim, depois que me viram fazer. É simples, mas é preciso pensar no caso, e achar o meio'. Está aí como foi a coisa. Não tem nada de gravidade, nem de rotação, nem de translação, nem de constelação, nem de repulsão - nada tem em "ão", Meneses! 60 De novo a gargalhada foi geral e prolongada; e Meneses, muito encafifado, limitou-se a dizer: - Isto não é científico; é uma explicação jocosa de anedota de almanaque. Podia demonstrar a minha interpretação com auxílio do cálculo, mas não é conveniente aqui... fica para outra ocasião. Assim, sem outra preocupação, naquela tarde tempestuosa, conversaram na venda, enquanto Marramaque estivera e mesmo depois da sua saída. É óbvio que nenhuma das pessoas que lá estavam, poderia adivinhar o que lhe ia acontecer pelo caminho. Chuviscava teimosamente, mas não havia o que se chama de chuva torrencial, quando o pobre contínuo se despediu. É verdade que a noite estava pavorosa de escuridão, e ameaçadoras nuvens pairavam baixo, ainda mais carregando de treva a atmosfera e ofuscando os lampiões, cuja luz oscilava sob o açoite de um vento constante e cortante. Não se via, como é costume dizer-se, um palmo diante do nariz. À polícia, pareceu que aquele misterioso assassínio, sem causa presumível, nascera de um segredo que só ele, Marramaque, podia revelar e, talvez, os seus papéis íntimos o revelassem. Resolveram, então, as autoridades perquiri-los, à cata de uma pista. Morava Marramaque com uma tia materna, pouco mais moça que ele, tendo dois filhos homens, de doze e dez anos. Após ter enviuvado na roça, com alguma coisa, tomou o alvitre de comprar aquela casa e convidar o sobrinho, para lhe fazer companhia e encaminhar a educação e a instrução dos filhos, e ajudá-la também. A sua casa era inteiramente o contrário da de Meneses. Estava sempre limpa, móveis em ordem, completamente cercada, o jardinzinho da frente bem tratado. Helena, a tia de Marramaque, era muito metódica e econômica, de forma que a vida doméstica do sobrinho era regular e plácida. Ela costurava para os arsenais do governo e, com o que Marramaque lhe dava dos seus exíguos vencimentos, a vida deles corria sem contratempos. Não eram difíceis as suas comunicações com as estações da Central, quando feitas pelo bonde de Inhaúma, que passava na esquina; e, se o contínuo, na noite fatídica do assassínio, tomava aqueles atalhos e subidas, sempre que passava pela venda do Nascimento ou ia à casa do Joaquim, procurava aquele caminho mais curto. Helena vivia para os filhos; raras vezes, a não ser para regularizar as suas costuras, saia, indo uma ou outra vez à casa do carteiro, onde se aborrecia com o gênio taciturno de Engrácia. Foi ela quem assistiu desenterrar, do fundo de baús e gavetas, as recordações do seu pobre sobrinho. As autoridades policiais pediram delicadamente autorização; e o delegado em pessoa foi examinar os papéis do infeliz contínuo. Não encontrou coisa de valia. Havia no seu arquivo cartas de família, bilhetes de amigos, rascunhos de versos, entre os quais um de Raul Braga, de quem Marramaque fora amigo, e o célebre caderno sobre Cassi, que o delegado tinha também um exemplar. A não ser esses papéis sem importância, encontraram um caderno de versos, pronto a ir para o prelo, de autoria de Marramaque, intitulado - Boninas e Sensitivas - versos ingênuos de um homem bom e honesto que não é poeta. Deram também com um retrato de mulher feita, numa pose popular, com o braço esquerdo descansando sobre uma coluna e tendo um leque enorme, pendente do direito, caindo ao longo do corpo. Era uma mulher bonita, de trinta anos, sadia e forte. Nas costas havia esta dedicatória: "Ao meu Antônio, a Eponina. 25-12-92." Mais abaixo, com letra de Marramaque, existiam estas observações: "Amor tudo vence; não pode vencer as obrigações de lealdade que devem sempre existir nas amizades perfeitas. Adeus!" Quem seria? Os policiais indagaram; mas Dona Helena não lhes pôde explicar. Naquela data, ela nem casada era ainda; seu sobrinho já tinha vindo para o Rio. Quem seria? Enfim, nada encontraram, e o crime foi sendo esquecido. Só duas pessoas podiam pôr as autoridades na pista verdadeira; eram Clara e Meneses. Clara, logo que soube do assassínio do padrinho, ficou fora de si. Lembrou-se das ameaças veladas que Cassi fazia ao padrinho, nas cartas que lhe escrevia; lembrou-se também da carta em que ela narrava ao namorado a atitude de Marramaque, quando o pai falou ao compadre na necessidade de ter um franco entendimento com o violeiro. Por aí e por outras pequenas circunstâncias, atribuía a Cassi o assassinato do padrinho e como que se julgava também sua cúmplice. Veio-lhe um medo daquele cantador meloso, dengoso, apesar de seu mau olhar de 61 folhas-de-flandres; e, num relâmpago, viu bem quanto de fingido e falso podiam conter as suas cartas ternas e cheias de protestos de boas intenções e de amor sincero e honesto. Imediatamente, porém, explicou esse seu ato de desvario criminoso como um esporádico ato de loucura, provocado pelo amor que tinha a ela. Era um obstáculo e... Agradava-lhe a interpretação. Não tardariam, entretanto, a se explicar de viva voz por que ela havia consentido afinal em conversar com ele na grade de casa, depois que seus pais se recolhessem. Então, nessa ocasião, ela avaliaria o grau de certeza de suas suspeitas. Meneses tinha levado uma carta dela nesse sentido; mas, tendo ficado atrapalhada por sentir a aproximação da mãe, não pôde, Clara, fechar a missiva convenientemente. Aberta, a moça, para não ser pilhada, passou-a precipitadamente ao velho, que assim a guardou jubilosamente. Quando se lhe ofereceu momento azado, leu-a. Como toda a mulher sem instrução, Clara pegou na pena e não tinha vontade de a largar. Contava detalhes, repisava juras e pedia juramentos. Um destes era o de que ele a respeitaria sempre; e, se não fizesse isso, romperia as relações com ele. Estava disposta a esperá-lo, às dez horas, na grade, daí a oito dias, e isso o fazia, porque "Seu" Meneses tinha dado o serviço dos dentes por terminado. De fato, Meneses, aborrecido com aquele negócio de cartas e com o desdém com que Cassi o tratava, ademais da ignóbil farsa que se prestava, resolveu dar por findo o trabalho. A leitura da carta não lhe causou nenhuma estranheza; ele já esperava por este fim. Estava forrado de uma indiferença de vencido. Sentiu-se de mãos e pés atados, para ter qualquer movimento de censura ou de conselho. É que ainda não lhe tinha chegado aos ouvidos a notícia do bárbaro assassínio de Marramaque. Quando, porém, veio a saber, teve uma forte vergonha do seu procedimento, da sua covardia. Compreendeu que aquelas meias palavras de Cassi sobre Marramaque, aquele ríctus horrendo que vira certa vez, ao se falar do contínuo, lhe desfigurar a face, eram os pródromos do assassínio do bondoso velho que o violeiro premeditava. O infeliz Meneses passou o dia todo e a noite inteira voltado para dentro de si mesmo. Não sabia mais chorar, mas o seu remorso era intenso. Ele se julgava também cúmplice daquele desalmado. Por que calara o que sabia? Por que se acovardara a ponto de servir de medianeiro? Oh! Ele não era mais homem, não tinha mais dignidade! Cassi, entretanto, não demonstrou o menor abalo. Leu as notícias dos jornais, as objurgatórias contra os assassinos de que estavam cheios; ouviu as maldições de todos, nos cafés, nos bondes, em todas as conversas e por toda a parte; mas nenhum arrependimento sentia. Só lhe faltava o orgulho íntimo de ter efetuado tão rara proeza, para ser completa a sua inumanidade e o seu abjeto sossego íntimo. Não tinha orgulho, mas havia nele como que alívio de se ver livre daquela espécie de duende, de fantasma, que vivia a persegui-lo. Com Arnaldo, já não acontecia o mesmo. Passado o fato, com a leitura dos jornais, com as censuras amargas que via em todas as bocas, até nas daqueles afeitos ao crime, o sócio de Cassi, se não viu remorsos, começou a ter susto. Não pôde reprimir o impulso que o levou a ver o cadáver. Estavam os restos de Marramaque quase tal e qual como foram encontrados. Os médicos ainda não haviam praticado a autópsia. A cabeça partida, os olhos fora das órbitas, todo o rosto coberto de uma lama sangrenta, o braço semiparalítico, partido, as roupas, ensopadas de lama e sangue... Era horrível! No necrotério, acotovelava-se uma multidão, e todos, em voz baixa, cobriam de baldões, de injúrias, de pragas, os malvados que tinham levado a efeito tão estranho e inconcebível crime... Um crioulo, muito negro, forte, com grandes "peitorais" salientes, dizia bem alto do lado de fora: - Eu não sou santo... Já fiz das minhas... Conheço a "chac'ra"; mas Deus me castigue, me ponha um raio em cima, e faça apodrecer em vida, se eu fosse capaz de fazer tão porco "trabalho"... Os que o fizeram, nem esfolados vivos pagariam... Para que mataram esse pobre velho? Arnaldo voltou do depósito fúnebre apreensivo. Não havia nele, a bem dizer, arrependimento. O que ele sentia era medo de ser descoberto, de pegar cadeia trinta anos a fio, porque não podia ser mais. Chegou aos subúrbios apavorado; e, quando topou com Cassi, disse, com olhar desvairado: 62 - Chi, Cassi! O "homem" estava horrível... O violeiro virou-se para ele, olhou-o firme com seu olhar fosco e falou-lhe com energia e fogo nos olhos: - Cala-te, miserável! Queres pôr tudo a perder... Conquanto temesse as fúrias do seu companheiro e cúmplice, não lhe passava o terror de ser descoberto pela polícia. Deu em beber; Cassi vigiava-o com medo que ele "desse com a língua nos dentes". Não o deixava só, quando estava em “rodas”. Nos botequins, não entrava um freguês, que Arnaldo não examinasse meticulosamente, cautelosamente, com o rabo dos olhos. Às vezes, não se continha e apontava: - Cassi, aquele é agente do décimo oitavo... O modinheiro, em voz baixa, mas com autoridade, repreendia-o: - Estás doido! Queres nos pôr no “x”, pelo resto da vida. No começo, Cassi teve medo que a embriaguez o fizesse denunciá-los; mas, bem cedo, percebeu que a sua bebedeira tomava uma feição choramingas, efusiva, dava para abraçar todos e, com voz de mágoa íntima, repetia de onde em onde, sem nada entender do que se dizia ao redor: Eu não sou mau... "Eu sou um bom rapaz..." "Nunca fiz mal a ninguém", etc. Então, Zezé Mateus, também já muito bêbedo, derreado completamente na cadeira, com os olhos divergentes e vidrados, babando-se todo e gaguejando, retrucava: “Meu querido Arn... ar... ar... Arnaldo, você é uma... pomba sem... sem fel.” Em seguida, depois de limpar a baba com o lenço: "Quem foi que... que disse que... você é... é mau?" E acrescentava: "Traga... Traga este su... su... sujeito aqui que... que eu parto a cara dele.” Arnaldo, por aí, levantava-se comovido e abraçava Zezé Mateus, que se mantinha na cadeira, e, com dificuldade, erguia os braços, a fim de cingir o camarada. Repetiam daí a pouco a cena, com pequenas variantes, debaixo dos motejos forçados de Cassi, a quem tais espetáculos não deixavam de fazer mal. Os outros companheiros riam-se a bom rir, sem nada suspeitar. Entretanto, o violeiro não se fiava muito que Arnaldo sempre procedesse assim. A embriaguez - ele sabia - é caprichosa, ora dá para isto, ora dá para aquilo, podia aparecer qualquer coisa a respeito do crime e era preciso que ele, Cassi, tomasse as suas precauções. A entrevista com Clara estava marcada para o fim da semana. Tinha de ir; tinha que dar fim "naquilo", que tanto trabalho lhe dera e estava dando. Antes de tudo, porém, era preciso estar preparado para o que desse e viesse. Não contava mais com a proteção; Barcelos não valia nada e só prestava pequenos serviços em vésperas de eleição. Quando elas estavam distantes, fiava com má cara um cálice de cachaça... Era preciso ter tudo pronto para fugir do Rio de Janeiro, ao primeiro sinal de alarme, tanto mais que sabia, por indiscrições de Meneses, que as ouvira na venda do "Seu" Nascimento, que o marido de Nair - aquela moça que ele desencaminhara e a mãe, por isso, se suicidara - estava disposto a persegui-lo, como já o perseguia, com os famosos cadernos, mas mais eficazmente, desde que se metesse em "alguma". Considerou bem que as coisas agora seriam mais difíceis; e as pedras que semeara no caminho, começavam a erguer-se para lapidá-lo. Tomou a extrema resolução de vender os galos de briga. O dinheiro que apurasse, depositaria na Caixa Econômica, para tê-lo sempre à mão, quando fosse necessário fugir. A mãe, vendo carroças chegarem à porta e as gaiolas e capoeiras saírem, a fim de tomarem lugar nos transportes, foi indagar-lhe o que havia: - Nada, mamãe. Vou para fora, trabalhar... - Para onde, Cassi? - Vou para Mato Grosso, empregar-me na construção de uma estrada de ferro. - Como trabalhador de picareta, meu filho? - Não, mamãe, vou ser chefe de turma e praticar nos instrumentos, até conseguir ser seccionista. Dona Salustiana assim mesmo não ficou contente. Ela conhecia a ignorância do filho, a sua inferioridade mental e a sua incapacidade para aplicar-se a alguma coisa que demandasse o menor 63 esforço intelectual; viu bem, portanto, que, numa construção de estrada de ferro, ele só podia ser simples trabalhador braçal, pegar na foice e roçar, no machado e derrubar, na picareta e cavar, mais nada! Voltou chorando para onde estavam as filhas: - Você não sabe, Catarina? Você não sabe, Irene, de uma coisa? Ai! Meu Deus! - Que é, mamãe? - perguntou Catarina. - Que há, mamãe? - indagou Irene. - Minhas filhas, vocês não sabem que desgraça para a família, Cassi... - O que houve? - assustou-se Catarina. - Cassi está doido e quer envergonhar-nos a todos nós, o meu avô que foi cônsul da Inglaterra... Ah! Se ele ressuscitasse - que vexame não passaria! - Que é que Cassi vai fazer? - fez Irene com calma. - Vai ser trabalhador de enxada, numa estrada de ferro de Mato Grosso. Irene, que era severa e nunca perdoaria ao irmão as maliciosas perguntas que as colegas da escola lhe faziam, vexando-a bastante, quando acontecia aparecer o nome dele nos jornais, nas suas habituais cavalarias - observou: - Que tem isso, mamãe! Ele tem saúde, ao invés de andar por aí a fazer das suas, a nos envergonhar por toda a parte, é melhor que ele trabalhe para ver se toma caminho. Dona Salustiana olhou espantada para a filha e disse cheia de mágoa: - É que você não é mãe; mas, em breve, você será, então... Catarina obtemperou: - Mamãe, eu não acho motivo para lástima. O que é de todo reprovável, é que ele leve toda a vida a que está levando... O melhor é aventurar... O pai veio a saber da resolução do filho, sobre quem não punha os olhos, havia dois anos. Não conteve a sua alegria e exclamou: - Que se vá! Que vá para o diabo! Já é tempo! Depois acrescentou: - Vocês vão ver que ele fez uma das suas; vai fugir e deixar-nos vexados, senão atrapalhados. Seja tudo pelo amor de Deus! Que se vá e nos deixe em paz. Vendidos os galos, galinhas, frangos e pintos, apurou quinhentos mil-réis, que se dispôs a depositar na Caixa Econômica, logo no dia seguinte ao do recebimento. Nesse dia, despertou cedo, banhou-se cuidadosamente, escolheu bem a roupa branca, viu bem se a meia não estava furada, escovou o terno cintado e, cuidadosamente, meteu mão à obra de vestir-se com apuro, para vir à "cidade". Raramente, vinha ao centro. Quando muito, descia até o Campo de Sant'Ana e daí não passava. Não gostava mesmo do centro. Implicava com aqueles elegantes que se postavam nas esquinas e nas calçadas. Achava-os ridículos, exibindo luxo de bengalas, anéis e pulseiras de relógio. É verdade, pensava consigo, que ele usava tudo aquilo; mas era com modéstia, não se exibia. Recordava que não tinha poses, mas, mesmo que as tivesse, não se daria a tal ridículo... Essa sua filosofia sobre a elegância, de elegante suburbano, ele aplicava às moças. Quanto dengue! Para que aqueles passos estudados? Aqueles modos de dizer adeus? Achava tudo ridículo, exagerado, copiado, mas não sabia bem de que modelo. O que, de fato, sentia não era isso que expunha aos amigos ou às belezas suburbanas que, porventura, requestasse. O que ele sentia diante daquilo tudo, daquelas maneiras, daqueles ademanes, daquelas conversas que não entendia, era a sua ignorância, a sua grosseria nativa, a sua falta de educação e de gosto. O seu ódio, então, ia forte para os poetas e jornalistas, sobretudo, para estes. Não perdoava as descalçadeiras, os deboches que lhe passavam, quando tinham de denunciar alguma das suas ignóbeis proezas. Uns sujos! - dizia - ; uns malandros! - continuava - que querem ditar moral. O seu primeiro ímpeto, quando lia notícias a seu respeito, era atirar-se contra um deles, naturalmente o que lhe parecesse mais fraco; e desancá-lo de pancadas. Sustinha, porém, o ímpeto, porque sabia, se tal fizesse, estaria perdido. A guerra seria sem tréguas, e “novos e velhos” da sua interminável conta sairiam à luz. Secretamente, tinha um respeito pela cidade, respeito de suburbano genuíno que ele era, mal-educado, bronco e analfabeto. 64 Mal tomou o café matinal, concertou ainda a gravata e pôs-se na rua. Era cedo, mas temia pelo dinheiro que tinha na algibeira. Não queria que ninguém soubesse da existência de avultada quantia em seu poder e, muito menos, que premeditava fugir. Embarcou no primeiro trem; e, esgueirando-se pela Central, conseguiu não encontrar conhecido que lhe fizesse perguntas indiscretas. Cassi Jones, sem mais percalços, se viu lançado em pleno Campo de Sant'Ana, no meio da multidão que jorrava das portas da Central, cheia da honesta pressa de quem vai trabalhar. A sua sensação era que estava numa cidade estranha. No subúrbio tinha os seus ódios e os seus amores; no subúrbio tinha os seus companheiros, e a sua fama de violeiro percorria todo ele, e, em qualquer parte, era apontado; no subúrbio, enfim, ele tinha personalidade, era bem Cassi Jones de Azevedo; mas, ali, sobretudo do Campo de Sant'Ana para baixo, o que era ele? Não era nada. Onde acabavam os trilhos da Central, acabava a sua fama e o seu valimento; a sua fanfarronice evaporava-se, e representava-se a si mesmo como esmagado por aqueles "caras" todos, que nem o olhavam. Fosse no Riachuelo, fosse na Piedade, fosse em Rio das Pedras, sempre encontrava um conhecido, pelo menos, simplesmente de vista; mas, no meio da cidade, se topava com uma cara já vista, num grupo da Rua do Ouvidor ou da avenida, era de um suburbano que não lhe merecia nenhuma importância. Como é que ali, naquelas ruas elegantes, tal tipo, tão mal-vestido, era festejado, enquanto ele, Cassi, passava despercebido? Atinava com a resposta, mas não queria responder a si mesmo. Mal a formulava, apressava-se em pensar noutra coisa. Na "cidade", como se diz, ele percebia toda a sua inferioridade de inteligência, de educação; a sua rusticidade, diante daqueles rapazes a conversar sobre coisas de que ele não entendia e a trocar pilhérias; em face da sofreguidão com que liam os placards dos jornais, tratando de assuntos cuja importância ele não avaliava, Cassi vexava-se de não suportar a leitura; comparando o desembaraço com que os fregueses pediam bebidas variadas e esquisitas, lembrava-se que nem mesmo o nome delas sabia pronunciar; olhando aquelas senhoras e moças que lhe pareciam rainhas e princesas, tal e qual o bárbaro que viu, no Senado de Roma, só reis, sentia-se humilde; enfim, todo aquele conjunto de coisas finas, de atitudes apuradas, de hábitos de polidez e urbanidade, de franqueza no gastar, reduziam-lhe a personalidade de medíocre suburbano, de vagabundo doméstico, a quase coisa alguma. Saltando na Central, não procurou bonde. Engolfou-se num filete de multidão que se alastrava em direitura à Prefeitura e marchou a pé até o "centro". Desde o Largo do Rossio, foi parando diante das montras. Demorava-se a ver jóias através de fortes vidros que as protegiam contra a cobiça alheia. Mirava anéis e relógios, braceletes e brincos, mais àqueles do que a estes, porquanto não lhe brotava no coração nenhuma necessidade de dar presentes às amadas. Tão caros, não valia a pena!... Uma bengala de junco, esquinada, com castão de ouro, tentou-o. Os quinhentos mil-réis que tinha na algibeira murmuraram-lhe alguma coisa ao ouvido. Prontamente repudia a tentação; precisava estar seguro... Entrou pela Rua Sete de Setembro e, daí em diante, foi admirando as roupas feitas - por toda a longa fachada do Parc Royal, foi parando diante das vitrines, onde havia roupas e outras peças de vestuário, para homens. Viu fraques, viu suspensórios, viu ligas, viu colarinhos, viu camisas... Que coisas lindas! Tomou a Rua do Ouvidor e foi descendo, sempre parando em frente das casas que tinham artigos para homens. Por desfastio, desviou-se a olhar as vitrines de uma livraria. Olhou-lhe também o interior. Livros de alto a baixo. Para que tantos livros? Aquilo tudo só seria para fazer doidos. Ele tinha livros, na verdade; mas eram alguns, livros de amor... Que livros, meu Deus! Teve vontade de tomar café; hesitou um pouco! Mas, afinal, animou-se. Estava quase na hora. A Caixa Econômica não tardaria em abrir-se. Lá chegando, teve que aguardar a abertura da porta. Já havia gente à espera. Olhou-a de relance. Fisionomias diferentes de trato e de cor: velhas de mantilha, moças de peito deprimido, barbudos portugueses de duros trabalhos, rostos de caixeiros, de condutores de bonde, de garçons de hotel e de botequim, mãos queimadas de cozinheiras de todas as cores, dedos engelhados de humildes lavadeiras - todo um mundo de gente pobre ia ali depositar 65 as economias que tanto lhes devia ter custado a realizar, ou retirá-las, para acorrer a qualquer drama das suas necessitadas vidas. Aborreceu-se com aquele contacto... Penetrando no saguão, pôs-se a ler os cartazes onde estavam as disposições legais que interessavam ao público. Diabo! A providência não lhe servia... Para confirmar, dirigiu-se a um empregado num guichet, que tinha ao alto este letreiro: "Informações." Não lhe servia absolutamente. Para retirar mais de duzentos mil-réis, tinha que avisar previamente. Não; não depositaria. O dinheiro devia estar sempre ao alcance da mão... Saiu e, a fim de não ser visto por algum conhecido, procurou alcançar o Largo de São Francisco, atravessando aqueles velhos becos imundos que se originam da Rua da Misericórdia e vão morrer na rua Dom Manuel e Largo do Moura. Penetrou naquela vetusta parte da cidade, hoje povoada de lôbregas hospedarias, mas que já passou por sua época de relativo realce e brilho. Os botequins e tascas estavam povoados do que há de mais sórdido na nossa população. Aqueles becos escuros, guarnecidos, de um e outro lado, por altos sobrados, de cujas janelas pendiam peças de roupa a enxugar, mal varridos, pouco transitados, formavam uma estranha cidade à parte, onde se iam refugiar homens e mulheres que haviam caído na mais baixa degradação e jaziam no último degrau da sociedade. Escondiam, na sombra daquelas betesgas coloniais, nas alcovas sem luz daqueles sobrados, nos fundos caliginosos das sórdidas tavernas daquele tristonho quarteirão, a sua miséria, o seu opróbrio, a sua infinita infelicidade de deserdados de tudo deste mundo. Entre os homens, porém, ainda havia alguns com ocupação definida; marítimos, carregadores, soldados; mas as mulheres que ali se viam, haviam caído irremissivelmente na última degradação. Sujas, cabelos por pentear, descalças, umas, de chinelos e tamancos, outras. Todas metiam mais pena que desejo. Como em toda e qualquer seção da nossa sociedade, aquele agrupamento de miseráveis era bem um índice dela. Havia negras, brancas, mulatas, caboclas, todas niveladas pelo mesmo relaxamento e pelo seu triste fado. Cassi Jones ia atravessando aquele bairro singular e escuro, quando, do fundo de uma tasca, lhe gritaram: - Olá! Olá! "Seu" Cassi! Ó "Seu" Cassi! Insensivelmente, ele parou para verificar quem o chamava. De dentro da taverna, com passo apressado, veio ao seu encontro uma negra suja, carapinha desgrenhada, com um caco de pente atravessado no alto da cabeça, calçando umas remendadas chinelas de tapete. Estava meio embriagada. Cassi espantou-se com aquele conhecimento; fazendo um ar de contrariedade, perguntou amuado: - Que é que você quer? A negra, bamboleando, pôs as mãos nas cadeiras e fez com olhar de desafio: - Então, você não me conhece mais, “seu canaia”? Então você não “si” lembra da Inês, aquela crioulinha que sua mãe criou e você... Lembrou-se, então, Cassi, de quem se tratava. Era a sua primeira vítima, que sua mãe, sem nenhuma consideração, tinha expulsado de casa em adiantado estado de gravidez. Reconhecendo-a e se lembrando disso, Cassi quis fugir. A rapariga pegou-o pelo braço: - Não fuja, não, "seu" patife! Você tem que "ouvi" uma "pouca" mas de "sustança". A esse tempo, já os freqüentadores habituais do lugar tinham acorrido das tascas e hospedarias e formavam roda, em torno dos dois. Havia homens e mulheres, que perguntavam: - O que há, Inês? - O que te fez esse moço? Cassi estava atarantado no meio daquelas caras antipáticas de sujeitos afeitos a brigas e assassinatos. Quis falar: - Eu não conheço essa mulher. Juro... - "Muié", não! - fez a tal Inês, gingando. - Quando você "mi" fazia "festa", "mi" beijava e mi abraçava, eu não era "muié", era outra coisa, seu "cosa" ruim! Um negro esguio, de olhar afoito, com um ar decidido de capoeira, interveio: - Mas, Inês, quem é afinal esse moço? - É o "home qui mi" fez mal; que "mi" desonrou, "mi pois" nesta "disgraça". 66 - Eu! - exclamou Cassi. - Sim! Você "memo", "seu" caradura! "Mi alembro" bem... Foi até no quarto de sua mãe... Estava arrumando a casa. Uma outra mulher, mas esta branca, com uns lindos cabelos castanhos, em que se viam lêndeas, comentou: - É sempre assim. Esses "nhonhôs gostosos" desgraçam a gente, deixam a gente com o filho e vão-se. A mulher que se fomente... Malvados! Cassi ouvia tudo isso sem saber que alvitre tornar. Estava amarelo e olhava, por baixo das pálpebras, todas as faces daquele ajuntamento. Esperava a polícia, um socorro qualquer. A preta continuava: - Você sabe onde "tá" teu "fio"? "Tá" na detenção, fique você sabendo. "Si" meteu com ladrão, é "pivete" e foi “pra chacr’a". Eis aí que você fez, "seu marvado", "home mardiçoado". Pior do que você só aquela galinha-d'angola de "tua" mãe, "seu" sem-vergonha! Cassi fez um movimento de repulsa e que a rapariga não perdeu. - "Oie" - disse ela, para os circunstantes -; ele diz que não é o tal. Agora "memo se acusouse", quando chamei a ratazana da mãe dele de galinha-d'angola... É uma "marvada", essa mãe dele - uma "véia" cheia de "imposão" de inglês. Inglês, que inglês... Soltou uma inconveniência, acompanhada de um gesto despudorado, provocando uma gargalhada geral. Cassi continuava mudo, transido de medo; e a pobre desclassificada emendava: - "Tu" é "mao", mas tua mãe é pior. Quando ela descobriu "qui" eu "tava" com "fio" na barriga, "mi pois" pela porta afora, sem pena, sem dó "di" eu não "tê pronde í". E o "fio" era neto dela e ela "mi" tinha criado... Vim da roça... Ah! Meu Deus! Se não fosse uma amiga, tinha posto o fio fora, na rua, que era serviço... Deus perdoe a "tua" mãe o que "mi" fez "i" a meu "fio", "fio" deste "qui tá i", também, Deus lhe perdoe! E a pobre negra abaixou-se para apanhar a barra da saia enlameada, a fim de enxugar as lágrimas com que chorava o seu triste destino, talvez mais que o dela, o do seu miserável filho, que, antes dos dez anos, já travara conhecimento com a Casa de Detenção... Graças à intervenção do dono da tasca, que tinha com o guarda de ronda o compromisso de manter a ordem no "reduto", o ajuntamento se desfez, e Cassi pôde continuar seu caminho. Por despedida, porém, ainda levou uma surriada das mulheres, que o descompunham em baixo calão, enquanto Inês imprecava: - "Marvado"! Desgraçado! Caradura! Hás de "mi pagá", “seu canaia!” Logo que se viu livre do perigo, Cassi respirou, compôs a fisionomia, apalpou o dinheiro na algibeira e fez de si para si: - Acontece cada uma! Para que havia de dar esta negra... Felizmente, foi em lugar que ninguém me conhece; se fosse em outro qualquer - que escândalo! Os jornais noticiariam e... Não passo mais por ali e ela que fosse para o diabo!... Fico com o dinheiro em casa. Nenhum pensamento lhe atravessou a cabeça, considerando que um seu filho, o primeiro, já conhecia a detenção... X Clara dos Anjos, meio debruçada na janela do seu quarto, olhava as árvores imotas, mergulhadas na sombra da noite, e contemplava o céu profundamente estrelado. Esperava. Fazia uma linda noite sem luar; era silenciosa e augusta. As árvores erguiam-se hirtas e se recortavam na sombra, como desenhadas. Nem uma aragem corria; mas estava fresco. Não se ouvia a mínima bulha natural. Nem o estridular de um grilo; nem o piar de uma coruja. A noite quieta e misteriosa parecia aguardar quem a interrogasse e fosse buscar no seu sossego paz para o coração. Clara contemplava o céu negro, picado de estrelas, que palpitavam. A treva não era total, por causa da poeira luminosa que peneirava das alturas. Ela, daquela janela, que dava para os fundos de sua casa, abrangia uma grande parte da abóbada celeste. Não conhecia o nome daquelas 67 jóias do céu, das quais só distinguia o Cruzeiro do Sul. Correu com o pensamento errante toda a extensão da parte do céu que avistava. Voltou ao Cruzeiro, em cujas proximidades, pela primeira vez, reparou que havia uma mancha negra, de um negro profundo e homogêneo de carvão vegetal. Perguntou de si para si: - Então, no céu, também se encontram manchas? Essa descoberta, ela a combinou com o transe por que passara. Não lhe tardaram a vir lágrimas; e, suspirando, pensou de si para si: - Que será de mim, meu Deus? Se "ele" a abandonasse, ela estava completamente desmoralizada, sem esperança de remissão, de salvação, de resgate... Moça, na flor da idade, cheia de vida, seria como aquele céu belo, sedutoramente iluminado pelas estrelas, que também tinha ao lado de tanta beleza, de tanta luz, de não sabia que sublime poesia, aquela mancha negra como carvão. Cassi a teria de fato abandonado? Ela não podia crer, embora há quase dez dias não a viesse ver. Se ele a abandonasse - o que seria dela? Veio-lhe então perguntar a si mesma como se entregou. Como foi que ela se deixou perder definitivamente? Clara não podia bem apanhar todas as fases dessa queda; ela se lembrava de poucas e sem nitidez apreciável. Tudo foi num galope para a desgraça... Em começo, a primeira impressão simpática, os gemidos do violão, os seus repinicados, seguidos dos requebros dos olhares do tocador, que os exagerava e punha neles não sei que chama estranha, doce e, ao mesmo tempo, quente. Impressionara-se muito com isso, tão preparada já estava para os efeitos do instrumento. Depois, aquela oposição de todos, aquele falar contínuo nele, para dizer mal, tanto da parte do padrinho, como da parte da mãe e de Dona Margarida. Essa insistência em denegri-lo fizeram que ela representasse, dentro de si mesma, Cassi, como um homem excepcional, que causava inveja a todos, pelas suas qualidades de bravura, pela sua habilidade no canto e na viola. Não acreditava no que diziam dele... Pareceu-lhe, na primeira vez que o viu, tão modesto, tão reservado de modos, tão delicado, que não podia ser o que diziam. Quando conversou com ele, meses depois, pela primeira vez, no gradil de sua casa, mais esse retrato se firmou; as suas conversas eram tão inocentes e honestas, falando sempre em empregar-se e casar-se com ela; removendo as objeções e dúvidas que ela punha quanto à viabilidade do casamento deles, com segurança e franqueza; contrapondo, para mostrar a sua possibilidade, à cor dela, além da grande paixão que nutria, a sua pobreza, a oposição dos pais, a sua falta de posição, de saber - o que não permitia a ele aspirar a grandes casamentos vistosos, com mulher mais bem-educada do que ele, mais instruída... O seu ideal era Clara, pobre, meiga, simples, modesta, boa dona-de-casa, econômica que seria, para o pouco que ele poderia vir a ganhar... De dia para dia, ele ganhava mais fortemente a confiança da rapariga. Ela se convencia e sonhava a toda hora com aquela "casa branca da serra", onde iria aninhar o seu amor por Cassi. Indagava, em todas as entrevistas, dos passos que ele dava para obter emprego, colocação; e ele, com blandícia, com afagos, dizia-lhe com açúcar nas palavras: - Sossega, filhinha querida! Roma não se fez num dia... É preciso esperar... Falei ao doutor Brotero, que me deu uma recomendação para o Senador Carvalhais. Procurei este e ele me disse que, para o Cais do Porto, não podia arranjar... Tinha pedido muito e muito; estava "queimado", como se diz. Ouvindo tudo isto, Clara sentia-se desfazer, ao calor, à meiguice, ao entono amoroso daquela voz. Era mesmo um bom, um sincero, um namorado, mais que isto, um noivo - esse Cassi. - Por que você não me “pede” a papai? - perguntou-lhe um dia. Cassi, sem hesitação, com o mais convincente tom de franqueza, respondeu: - Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É verdade que seu padrinho não existe mais... A estas palavras, Clara estremeceu e olhou-o medrosa; ele, porém, não percebeu o movimento da rapariga, como ainda não tinha notado as suspeitas que ela tinha, de quando em quando, da intervenção dele no assassinato do padrinho. No começo, Clara quase ficara certa de que ele estava metido no crime; mas, quando, daí a dias, conversou com ele, fosse a emoção da 68 primeira entrevista, fosse a ternura com que a cobria e se expandia por ele todo, ela afastou a convicção e perdeu o terror que ele começara a lhe inspirar. A sua débil inteligência, a sua falta de experiência e conhecimento da vida, aliado tudo isto à forte inclinação que tinha e não sopitava pelo violeiro, agiram sobre a sua consciência, de forma a inocentar, a seus olhos, o tocador de violão, no caso da morte misteriosa do padrinho. Entretanto, de quando em quando, lá lhe vinha uma suspeita, mas ele era tão bom... Cassi, sem hesitação, respondeu-lhe à pergunta, no mais persuasivo tom de franqueza: - Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É verdade que seu padrinho não existe mais; mas Dona Engrácia não me suporta. Além disso, essa Dona Margarida também não me traga... Que estranho o que se passou com ela e Timbó... - Você por que anda com ele, Cassi? - Que hei de fazer? Ele não me faz e não me fez mal; procura-me e não posso correr com ele. É por isso. - Mas é só por isso que você não me pede? Por causa da implicância que têm com você? Por isso só, não! - Não é só por isso. É porque estou ainda desempregado. Se eu estivesse empregado, desarmava todos; e - fique você certa - logo que me empregue, peço-te em casamento. Recordando-se disso, Clara, mais uma vez, contemplou o céu profusamente estrelado; mas, logo, deu com a mancha de alcatrão e ficou triste. Rememorando conversas e fatos, ela punha todo o esforço em analisar o sentimento, sem compreender o ato seu que permitiu Cassi penetrar no seu quarto, alta noite, sob o pretexto de que precisava se abrigar da chuva torrencial prestes a cair. Ela não sabia decompô-lo, não sabia compreendê-lo. Lembrando-se, parecia-lhe que, no momento, lhe dera não sei que torpor de vontade, de ânimo, como que ela deixou de ser ela mesma, para ser uma coisa, uma boneca nas mãos dele. Cerrou-se-lhe uma neblina nos olhos, veio-lhe um esquecimento de tudo, agruparam-selhe as lembranças e as recordações e toda ela se sentiu sair fora de si, ficar mais leve, aligeirada não sabia de quê; e, insensivelmente, sem brutalidade, nem violência de espécie alguma, ele a tomou para si, tomou a sua única riqueza, perdendo-a para toda a vida e vexando-a, daí em diante, perante todos, sem esperança de reabilitação. Pôs-se a chorar silenciosamente. No seio da noite, um apito de locomotiva ecoou como um gemido; as árvores como que estremeceram; por sobre um capinzal próximo, um pirilampo emitia a sua luz de prata azulada; por cima da casa, morcegos silenciosos esvoaçavam; ao longe, as montanhas tinham aspectos sinistros, de gigantes negros que montavam sentinela; tudo era silêncio, e, em vão, ela apurava o ouvido e reforçava o seu poder de visão, para ver se daquele mistério todo saía qualquer resposta sobre o seu destino - ou se via o caminho para a sua salvação... Olhou ainda o céu, recamado de estrelas, que não se cansavam de brilhar. Procurou o Cruzeiro, rogou um instante a Deus que a perdoasse e a salvasse. Andou com o olhar no céu, um pouco além; lá estava a indelével mancha de carvão... “Ele” não vinha; os galos começavam a cantar. Fechou a janela chorando e chorando foi-se deitar. Custou a conciliar o sono; e a visão ameaçadora da descoberta, por parte dos seus, da sua falta, passou-lhe pelos olhos e aterrou-a como um duende, um fantasma. Em casa e fora, ainda ninguém suspeitava. Os sintomas de gravidez, por ora, não se faziam sentir. É verdade que tinha náuseas, enjôos, sem causa nem motivo; mas ela dissimulava-os tão bem, que sua mãe nada percebia. Dona Engrácia mesmo era de seu natural pouco sagaz e tinha grande confiança na vigilância que exercia sobre a filha. Joaquim, nos dias úteis, mal via a filha, pela manhã, ao sair, e à noite, quando voltava do serviço. A morte desgraçada do seu compadre Marramaque o fizera triste, verdadeiramente triste e acabrunhado. A sua amizade era velha, e ele devia favores inolvidáveis ao pobre contínuo. Fora ele quem aperfeiçoara o pouco que ele, Joaquim, sabia, para ser carteiro. Devia-lhe esse serviço espontâneo. Mais de uma vez, arranjara-lhe recomendações para promoções, de modo que o que 69 era, devia de alguma sorte a Marramaque. As partidas de solo, aos domingos, não se realizavam mais. Lafões tinha sido transferido para os mananciais. O sagaz minhoto farejava que aquele negócio de Cassi desandaria em desgraça. Ele não a podia impedir, mas não a queria assistir, tanto mais que se sentia arrependido de ter apresentado o modinheiro em casa do carteiro. Enganou-o, o malandro! Fizera-o de boa-fé... O único que aparecia ainda, era Meneses. Estava, porém, amalucado, monomaníaco. Fugia de todas as conversas e teimava em expor o seu sistema de carro motor, sem rodas, absolutamente sem rodas. Uma grande descoberta! - arrematava ele. - A roda, meu caro Joaquim, é um atraso das nossas máquinas. No seu acionamento, devido ao atrito dos eixos nos mancais e outros meios de transmissão da força, perde-se muito do efeito útil desta, proveniente das resistências passivas. Se nós, para nos movermos; se um cavalo, um elefante e todos os animais empregassem rodas para se deslocarem de um ponto para outro, a força que despenderiam seria muitas vezes maior do que a de que efetivamente dispõem. Suprimo as rodas da minha "Andotiva" (é assim que o meu aparelho se chama) e imito o meio de locomover-se dos animais terrestres. Tenho hesitado entre os reptis e os mamíferos; mas vou tomar por modelo estes. Com juntas, jogos combinados de cadeias de distensão e contração, como as nossas cadeiras de molas, obterei uma máquina que, com o mesmo custo de força e combustível que uma locomotiva comum, produzirá o dobro do rendimento útil que esta produz. Joaquim, ouvindo tudo isto, bocejava; Meneses, inteiramente engolfado no seu sonho mecânico, não percebia que estava enfadando o amigo. Falava, falava sobre a sua sonhada - Andotiva - e bebia parati. Às vezes, jantava com o carteiro e família; mas, na mesa, pouco se dirigia à Clara. Tinha medo que, conversando, traísse o segredo que existia entre ambos. O velho dentista, mesmo, havia deixado de ver Cassi, e este, por sua vez, evitava-o, temendo que Meneses percebesse os seus propósitos de fuga e contasse a todos, levantando suspeitas em Clara. Outras vezes, o velho dentista ia procurar Leonardo Flores, para conversar e mesmo jantar com ele. Flores não passava verdadeiramente necessidade. Com a sua aposentadoria e o auxílio que os filhos lhe prestavam, sempre tinha o que comer sem se queixar da fome. A sua casa, graças à dedicação da mulher, vivia em ordem. Ele não se intrometia em nada da economia do lar. Os seus próprios vencimentos de aposentado, ele ia recebê-los, ou ela, e os entregava intactos. Roupa, jornais, fumo, parati - tudo ela comprava e lhe dava. Em começo, a boa da Dona Castorina quis ver se suprimia a cachaça; mas viu que era pior. Ele caía num abatimento, numa apatia de coisa morta. Resolveu fazer mais este sacrifício ao seu triste casamento: dar cachaça ao marido. Quando ele queria sair, ela lhe dava níqueis para a sua predileta bebida. As visitas de Meneses eram particularmente agradáveis à mulher de Flores, porque não só distraía o marido, como lhe tirava a vontade de sair. Flores tinha épocas em que não se movia de casa, senão a muito custo, para ir ao Tesouro receber a sua pensão; mas tinha outra em que se lhe tomava inteiramente o delírio ambulatório. Dona Castorina, embora compreendendo que o marido não podia ficar sempre retido em casa, procurava evitar que ele saísse, devido aos desatinos que praticava. Lá vinha, porém, um dia que... Quando Meneses ia, aos domingos, procurá-lo, Flores recebia-o com um grandiloqüente palavreado heráldico e fidalgo; mas ele dizia com grande melancolia, com uma mágoa que bem sabia não ter remédio: - Só tu me procuras, Meneses! Os outros me abandonaram... Ah! A Poesia! Ela me tem dado bons momentos, mas me fez ir longe demais no meu grande serviço... Punham-se a bebericar e, quando já estavam um tanto "esquentados", cada um dava para a sua mania. Meneses explicava a mecânica sutil da sua "Andotiva"; e Leonardo Flores recitava o seu último soneto, que, embora desconexo, ainda tinha música, uma imponderável nostalgia de coisas entrevistas em sonho, uma obsessão de perfume, que constituíam os característicos de sua poética. 70 De repente, Meneses punha-se a roncar no sofá, e Leonardo, saindo do seu mundo sonoro de versos e rimas, punha-se de pé e, contemplando o camarada, com os braços cruzados, limitava-se a dizer: - Imbecil! Dorme imbecil! Filisteu! Burguês! E voltava a fazer versos, a que era como que forçado até à hora do jantar. Por essa ocasião, despertava Meneses aos berros e debaixo de descomposturas e injúrias poéticas. O jantar, conforme o hábito das nossas pequenas famílias, nos domingos, era posto à mesa, mais cedo, constituindo o que se chama o "ajantarado". Assim se usava na casa de Flores; mas, em geral, era servido tarde, quase à hora do jantar habitual. A refeição não corria alegre. Meneses tinha a sua mania; Flores a dele; e ambos, durante ela, entregavam-se às suas extravagâncias, falando de coisas que os outros não entendiam. Meneses era calmo; mas o seu amigo comia fazendo esgares, soltando rugidos, cofiando a barba, ainda negra, que terminava num cavaignac pontiagudo. Dona Castorina, a mulher de Flores, de vez em vez, repreendia-o como a um filho menor: - Come com modos, Flores! Você parece uma criança. Raramente acontecia estar presente um dos filhos. Andavam pelo football e a mãe lhes reservava o jantar. Se acontecia o contrário, o rebento do poeta olhava o pai sem nenhuma expressão, sem ânimo de aconselhá-lo e sem insensibilidade para rir. A loucura de Flores era curiosa. Não só ela se manifestava com intermitências de grandes intervalos, como também as havia num curto espaço de um dia. O álcool tinha contribuído para ela; mas, sem ele, a sua alienação mental ter-se-ia manifestado, cedo ou tarde. Todos os que o conheceram moço, sabiamno de sobra possuidor de diátese da loucura. Os seus tics, os seus caprichos, a sua exaltação e outros sintomas confusamente percebidos levavam os seus íntimos a temerem sempre pela sua integridade mental. A tudo isso, ele juntava, ainda por cima, álcoois fortes, que sempre tomou; whisky, genebra, gim, rum, parati - para se compreender a natureza da insânia de Flores. Certa vez, após o jantar, tomando café no jardinzinho de sua casa, que ele mesmo cuidava com rara dedicação, de surpreender no seu estado - Leonardo olhou o céu e gritou para Meneses, descansando a xícara sobre uma cadeira ao lado: - Meneses! Vê só tu como esta tarde está linda! Não é só o ouro e a púrpura do crepúsculo que vêm; não é só o azul-ferrete dos morros que, com o aproximar-se a noite, se vai enegrecendo aos poucos... Há mais, caro Meneses; há verde no céu, um verde imaterial que não é o do mar, que não é o das árvores, que não é o da esmeralda, que não é o dos olhos de Minerva - é um verde celestial, diferente de todos aqueles que nós habitualmente vemos... Vamos sair, vamos gozar a natureza! - Deixa-te disso, Flores. Daqui mesmo, nós vemos... - Idiota! Não és um artista... Se não me acompanhas, saio só!... Dona Castorina interveio naturalmente: - Para que vais sair, Leonardo? Estás tão bem aqui com o "Seu" Meneses... Precisas de repouso, descanso... - Mulher! Sabes quem eu sou? - fez Flores, com o seu modo habitual de cruzar os braços e enterrar o queixo no peito, quando falava com solenidade. - Sei muito bem. És Leonardo Flores, meu marido - respondeu-lhe a mulher, sorrindo. - Não sou só isso. Sou mais! - insistiu Flores, carrancudo. - O que és, então? - perguntou-lhe Dona Castorina. - Sou um poeta! Dizendo isto, entrou pela sala adentro e encaminhou-se para o quarto de dormir. - Onde vais? - indagou-lhe a mulher. - Vou me vestir; quero ver este crepúsculo de pedraria, de metais caros, de sonhos e de quimeras. Sou um poeta, mulher! Dona Castorina já sabia que, quando lhe dava essa fúria de sair, era pior contrariá-lo. Nada disse ao marido e foi pedir a Meneses que o acompanhasse. O velho dentista não se sentia bem; o seu desejo era descansar; mas, à vista do pedido de Dona Castorina, não teve outro remédio senão 71 acompanhar o camarada. Andaram a pé por toda a parte, bebendo sempre onde encontravam lugar propício; Meneses, arrastando o passo; e Flores, dilatando as narinas, fazendo horríveis contrações com o rosto, alisando o cavaignac e dizendo: - Que beleza! Que beleza! Quero respirar, cheirar, absorver todo o perfume desse divino crepúsculo... Não fora a natureza, os céus, os pássaros, as águas múrmuras, como poderíamos viver? Depois de uma pausa, acrescentou desolado: - A vida é tão banal, tão chata... Nós somos também natureza; mas do que nos vale isto? Há os burgueses e os regulamentos que nos abafam... Já tinha anoitecido de todo. Leonardo Flores não dava mostras de querer voltar para casa; Meneses arrastava o passo a muito custo. Iam atravessando um trecho deserto de rua, quando o velho dentista disse para o amigo: - Leonardo, estou com as pernas que não posso. Vamos descansar um pouco. - Onde? - Sentados na relva, um pouco longe da estrada, ali, atrás daquela moita... Estou que não posso, meu caro. Os dois abandonaram o caminho público e procuraram a tal moita. Meneses, com muita dificuldade, sentou-se; mas Leonardo foi logo se deitando. Tinham bebido muito, e a embriaguez lhes chegava. Leonardo ainda pôde dizer, olhando as estrelas que começavam a brilhar: - Como é belo o céu! Lá não haverá por certo ministros, nem congresso, nem presidentes... Que bom será! O dentista não se demorou muito tempo sentado; deitou-se logo; e Leonardo, mal dissera aquelas palavras, ferrou no sono. Dormiram afinal, na relva, com os olhos voltados para o céu estrelado... * * * Leonardo, já dia adiantado, veio a despertar naquele capinzal, atordoado, zonzo; e, ao dar com Meneses ao lado, procurou acordá-lo. Foi em vão; o velho estava morto. Um colapso cardíaco o tinha levado. Percebendo que o amigo tinha morrido, Leonardo ergueu-se, tirou-lhe o chapéu de perto da cabeça, pôs-lhe o rosto bem à mostra, com as suas brancas barbas veneráveis, e começou a exclamar: - Sol! Sol glorioso das auroras e das ressurreições! Sol divino que conténs todos nós, homens e plantas, bestas e gênios, insetos e vampiros, lesmas e belezas! Sol que tudo fecundas e transformas! Vem tu - ó Sol! - beijar esta augusta cabeça de imperador (apontava para Meneses hirto) que vai para sempre mergulhar na treva e só te verá de novo, quando for árvore, quando for arbusto, quando for pássaro e quando de novo voltar a ser homem. Beija-o ainda mais uma vez! Beija-o, porque ele te amou e muitas vezes voou para os espaços sidéreos, desejoso de ver o teu fulgor e morrer por tê-lo visto. Não dera fé, Leonardo, que alguns transeuntes haviam parado, para ouvir as suas palavras e ver os seus estranhos trejeitos. Os mais curiosos se aproximaram e deram com aquele estranho e bizarro espetáculo de um homem, que parecia louco ou bêbedo, a pronunciar coisas incompreensíveis e a gesticular, diante de um pobre velho morto. Chamaram a polícia; e lá foi Leonardo, gesticulando e falando só, para a delegacia. Meneses tomou o caminho do necrotério, após fotografias e outras precauções policiais. O primeiro movimento do policial que recebeu Leonardo, foi removê-lo incontinenti para o hospício ou lugar equivalente. Na verdade, o poeta não dizia coisa com coisa; nem mesmo quem era, informava. Muitos o conheciam de vista, mas, para essas pessoas, era simplesmente - "o poeta". Em chegando Praxedes, as coisas mudaram. Tinha ele o hábito de ir de manhã às delegacias, ver se pegava algum biscate, alguma coisa. Indo, naquele dia, topou com Leonardo lá e soube que um velho, que bebia muito e costumava estar com ele, havia sido encontrado morto junto a Flores e fora removido para a morgue. Viu logo que se tratava de Meneses. Muito prestável, obsequioso de gênio, Praxedes, para quem a polícia não tinha segredos, informou ao comissário 72 quem era Leonardo e quem era Meneses. A autoridade policial encarregou-o de prevenir os parentes e amigos de ambos do que havia acontecido. Praxedes correu à casa de Joaquim dos Anjos, para desobrigar-se da missão. Foi recebido pela mulher e a filha. - Quincas não está aí - disse-lhe Dona Engrácia. - Ele saiu cedo... - O senhor pode telefonar para a Repartição dos Correios - lembrou Clara. - Lembrei-me disso, mas não sabia a seção. A filha disse-lhe e o doutor Praxedes, muito diplomaticamente, ergueu-se todo e, ao despedir-se das senhoras, desculpou-se: - Vossas Excelências hão de me perdoar. Não podia deixar de vir até aqui. Sabia de dois amigos íntimos do doutor Meneses; um era o Senhor Cassi, mas este está fora... Clara espantou-se: - Está fora! - Ué, Clara! - fez Dona Engrácia, - Que espanto! - Não, porque ainda há dias "Seu" Meneses disse a papai que estivera com ele - fez Clara disfarçando. - Deve ser há algum tempo, minha senhora -- aventou Praxedes, com toda a delicadeza de voz; -- porque há bem quinze dias que embarcou para São Paulo, em Cascadura. Eu até me despedi dele... Praxedes saía e Clara, logo que pôde, correu ao quarto para chorar. Estava irremediavelmente perdida; ele a abandonava de vez. Como havia de ser? Como havia de esconder a gravidez, que se ia mostrando aos poucos? Que fariam dela os seus pais? Era atroz o seu destino! Todas essas perguntas, ela formulava e não lhes dava resposta. Cassi partira, fugira... Agora, é que percebia bem quem era o tal Cassi. O que os outros diziam dele era a pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida, a sua boa-fé, e o seu ardor juvenil tinham-na completamente cegado. Era mesmo o que diziam... Por que a escolhera? Porque era pobre e, além de pobre, mulata. Seu desgraçado padrinho tinha razão... Fora Cassi quem o matara. Ele contava, já não se dirá com o apoio, mas com a indiferença de todos pela sorte de uma pobre rapariga como ela. Devia ser assim, era a regra. Nessa indiferença, nessa frouxidão de persegui-lo, de castigá-lo convenientemente, é que ele adquiria coragem para fazer o que fazia. Além de tudo, era covarde. Não cedia ao impulso do seu desejo, de seu capricho, por uma moça qualquer. Catava com cuidado as vítimas entre as pobres raparigas que pouco ou nenhum mal lhe poderiam fazer, não só no que toca à ação das autoridades, como da dos pais e responsáveis. Estava aí o seu forte; o mais eram acessórios de modinhas, de tocatas de violão, de cartas, de suspiros - todo um arsenal de simulação amorosa, que ele, sem caráter e, por demais, cínico, sabia empregar, como ninguém. Que havia de ser dela, agora, desonrada, vexada diante de todos, com aquela nódoa indelével na vida? Sentia-se só, isolada, única na vida. Seus pais não a olhariam mais como a olhavam; seus conhecidos, quando soubessem, escarneceriam dela; e não haveria devasso por aí que a não perseguisse, na persuasão de que quem faz um cesto, faz um cento. Exposta a tudo, desconsiderada por todos, a sua vontade era de fugir, esconder-se. Mas, para onde? Com a sua inexperiência, com a sua mocidade, com a sua pobreza, ela iria atirar-se à voracidade sexual de uma porção de Cassis ou piores que ele, para acabar como aquela pobre rapariga, a quem chamavam de Mme. Bacamarte, suja, bebendo parati e roída por toda a sorte de moléstias vergonhosas. Pensou em morrer; pensou em se matar; mas, por fim, chorou e rogou a Nossa Senhora que lhe desse coragem. Se pudesse esconder?... - acudiu-lhe repentinamente este pensamento. Se pudesse "desfazê-lo"? Seria um crime, havia perigo de sua vida; mas era bom tentar. Quem lhe ensinaria o remédio? Correu o rol de suas poucas amigas; e só encontrou uma: Dona Margarida. Nisto, sua mãe gritou-lhe do fundo da casa: - Clara, estás dormindo? Olha que estão batendo na porta. - Já vou, mamãe. 73 Era o estafeta dos telégrafos, que trazia um despacho do pai, comunicando que, devido a ter de fazer o enterro de Meneses, chegaria mais tarde, mas viria jantar. Ela e a mãe não esperaram; jantaram antes. Clara, muito preocupada com o "remédio" que ia ver se Dona Margarida lhe arranjava; e Dona Engrácia, aborrecida com a morte de Meneses. - Pobre Meneses! - dizia ela. - Morrer assim, no mato! Por que ele não foi pra casa? Era bem velho, não era, Clara? - Devia ter mais de setenta anos. - Isto não quer dizer nada. Há quem dure mais... Você tem reparado, Clara, que, de uns tempos para cá, está nos acontecendo uma porção de coisas más? - Nem tantas! Duas só: a morte do padrinho e... - Você acha pouco e, ainda por cima, da forma que elas nos chegam! Deus nos proteja! Tenho para mim que alguma está para nos acontecer... - Qual, mamãe! Tudo isto é doloroso, mas são fatos que se dão... - Felizmente, esse azar de Cassi se foi. Que vá pro diabo que o carregue! Clara teve vontade de chorar; mas conteve-se. Estava resolvida: amanhã, pediria um abortivo a Dona Margarida. Joaquim dos Anjos chegou e narrou tudo o que acontecera com Meneses e Leonardo. Aquele, por não ter ninguém que lhe fizesse o enterro, ele o fizera; e Leonardo, logo que foi afastada a hipótese de crime e ficou sabido o seu estado mental, entregaram-no à mulher. Ao chegar em casa, acompanhado de Dona Castorina, foi que Flores caiu em si e teve consciência perfeita do fim do amigo. Estava lúcido, bom; estava o verdadeiro Leonardo, que chorou o falecimento do camarada, sem mescla de delírio, pressentindo que, nele, havia aviso do seu próximo fim. Engrácia ouviu a narração de Quincas e, ingenuamente, perguntou-lhe: - Esse Leonardo é mesmo homem de inteligência, Quincas? - É, Engrácia. Por quê? - Por que ele então bebe tanto? - Quem sabe lá? Vício, hábito, capricho da sua natureza, desgostos, ninguém sabe! - observou o marido. - Eu vejo tanto doutor por aí que não bebe. - Você pensa que todo doutor é inteligente, Engrácia? - Pensei. Clara ficou admirada de que a opinião da mãe não fosse exata. Ela também, muito popular e estreita de idéia, admitia que toda a espécie de doutor fosse de sábios e inteligentes. Joaquim, dizendo-se cansado, fora logo deitar-se; e, em seguida, a sua mulher e filha. Em breve, tudo era silêncio na casa e na rua. Clara não esperava mais, com a janela semiaberta, a visita do sedutor. Havia-se fatigado de aguardá-lo muitas noites seguidas; e, agora então, depois da informação de Praxedes, tinha perdido toda a esperança. Ele fugira, e ela ficara com o filho a gerar-se no ventre, para a sua vergonha e para tortura de seus pais. Imediatamente, o seu pensamento se encaminhou para o "remédio" que devia "desmanchá-lo", antes que lhe descobrissem a falta. Tinha medo e tinha remorsos. Tinha medo de morrer e tinha remorsos de assassinar assim, friamente, um inocente. Mas... era preciso. Pôs-se a examinar o que lhe podia responder Dona Margarida. Pesou os prós e os contras; analisou bem o caráter da amiga russaalemã; e, na calma do quarto, percebeu bem que não lhe daria nem indicaria o "remédio" criminoso. Margarida era uma mulher séria, rigorosa de vontade, visceralmente honesta, corajosa, e não haveria rogos nem choro que a fizessem contribuir para um crime de qualquer natureza. Então, como havia de ser? Examinou a lista das conhecidas, a ver se encontrava uma que lhe prestasse esse "serviço"... Não encontrou, e também eram tão poucas... Se tivesse dinheiro, com auxílio de Mme. Bacamarte... Acudiu-lhe então uma idéia. Ela ajudava Dona Margarida nos bordados e nas costuras, com o que já ganhava algum dinheiro. Não tinha nada a haver da amiga; mas bem lhe podia pedir emprestado, sob qualquer pretexto, uns vinte ou trinta mil-réis e pagá-los com trabalho. Qual seria o pretexto? Pensou, combinou mentiras; e, afinal, encontrou-o. Diria que era para 74 comprar um presente destinado à mãe, cujo aniversário natalício estava a chegar. Sorriu de contentamento, quando organizou toda aquela mentiralhada. Julgava-se salva; mas, com o que ela não contava, era com a sagacidade da alemã. Dona Margarida era mulher alta, forte, carnuda, com uma grande cabeça de traços enérgicos, olhos azuis e cabelos castanhos tirando para louro. Toda a sua vida era marcada pelo heroísmo e pela bondade. Embora nascida em outros climas e cercada de outra gente, o seu inconsciente misticismo humanitário, herança dos avós maternos, que andavam sempre às voltas com a polícia dos czares, fê-la logo se identificar com a estranha gente que aqui veio encontrar. Aprendeu-lhe a linguagem, com seus vícios e idiotismos, tomou-lhe os hábitos, apreciou-lhe as comidas, mas sem perder nada da tenacidade, do esprit de suite, da decidida coragem da sua origem. Gostava muito da família do carteiro; mas, no seu íntimo, julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal armados para a luta entre os maus e contra as insídias da vida. Quando Clara lhe falou no empréstimo ou adiantamento, ela se espantou. Nunca a filha do correio lhe havia feito semelhante pedido - o que queria dizer aquilo? Não respondeu logo à solicitação e encarou firmemente, com o seu olhar translúcido e, no momento, duro, a filha do carteiro; e, por sua vez, indagou: - Para que você quer esse dinheiro, Clarinha? A moça, não podendo suportar a mirada da alemã, abaixara os olhos; e, com voz sumida, explicou o suposto destino que ia dar à quantia pedida. Dona Margarida não acreditou; e, continuando com o olhar a sondar inquisitorialmente Clara, observou com energia maternal: - Clara, você não fala a verdade; você está escondendo alguma coisa. A moça quis negar; mas Dona Margarida, pressentindo que ela ocultava alguma coisa de grave, cercou-a de perguntas; e Clara não teve outro remédio senão confessar tudo. Ela chorou, mas Dona Margarida, sem se deixar comover, durante toda a confissão, mais arrancada aos poucos do que mesmo narrada espontaneamente, foi pensando como agir. Encheu-se, Dona Margarida, de uma infinita pena daquela desgraçada rapariga, dos seus pais, e mais profunda se tornava a pena, quando antevia o horrível destino da pobre Clara; entretanto, não deu qualquer demonstração do que lhe ia n'alma. Num dado momento, sem dar-lhe a mínima explicação, Dona Margarida ergueu-se e, dirigindo-se à Clara, ordenou imperiosamente: - Vamos falar à sua mãe. A filha do carteiro, sem fazer a mínima objeção, obedeceu. Ao chegar à casa de Joaquim, Dona Engrácia estava no interior, inocentemente entregue aos seus afazeres domésticos. Entretanto, Dona Margarida chamou de parte a mãe de Clara e começou a narrar-lhe o que havia acontecido com a filha. Dona Engrácia não se pôde conter. Logo que compreendeu a gravidade do fato, pôs-se a chorar copiosamente, a lastimar-se, a soluçar, dizendo entre um acesso de choro e outro: - Mas, Clara!... Clara, minha filha!... Meu Deus, meu Deus! A filha aproximou-se chorando; ajoelhou-se, ajuntou as mãos, em postura de oração, aos pés da mãe e, soluçando, repetiu: - "Me perdoe", mamãe! "Me perdoe", pelo amor de Deus! Dona Margarida, de pé, nada dizia e olhava com profunda e desmedida tristeza, que não se adivinhava na sua calma e na segurança do seu olhar, aquele quadro desolador do enxovalhamento de um pobre lar honesto. Afinal, quando lhe pareceu que ambas estavam mais calmas, interveio: - Você sabe, Clara, onde mora a família desse sujeito? Clara, ainda soluçando, respondeu: - Sei. Dona Engrácia indagou: - Para quê? 75 Dona Margarida explicou que, antes de qualquer procedimento e mesmo de comunicar o fato a "Seu" Joaquim, era conveniente entender-se com a família de Cassi. Ela, Dona Margarida, iria imediatamente à casa dele, acompanhada de Clara. Mãe e filha concordaram; e Clara vestiu-se. A residência dos pais de Cassi ficava num subúrbio tido como elegante, porque lá também há estas distinções. Certas estações são assim consideradas, e certas partes de determinadas estações gozam, às vezes, dessa consideração, embora em si não o sejam. O Méier, por exemplo, em si mesmo não é tido como chique; mas a Boca do Mato é ou foi; Cascadura não goza de grande reputação de fidalguia, nem de outra qualquer prosápia distinta; mas Jacarepaguá, a que ele serve, desfruta da mais subida consideração. A casa da família do famoso violeiro não ficava nas ruas fronteiras à gare da Central; mas, numa transversal, cuidada, limpa e calçada a paralelepípedos. Nos subúrbios, há disso: ao lado de uma rua, quase oculta em seu cerrado matagal, topa-se uma catita, de ar urbano inteiramente. Indaga-se por que tal via pública mereceu tantos cuidados da edilidade, e os historiógrafos locais explicam: é porque nela, há anos, morou o deputado tal ou o ministro sicrano ou o intendente fulano. Tinha boa aparência a residência da família do Senhor Azevedo; mas quem a observasse com cuidado, concluiria que a parte imponente dela, a parte da cimalha, sacadas gradeadas e compoteiras ao alto, era nova. De fato, quando o pai de Cassi a comprou, a casa era um simples e modesto chalet, mas, com o tempo, e com ser sua vagarosa, mas segura, prosperidade, pôde ir, também devagar, aumentando o imóvel, dando um aspecto de boa burguesia remediada. Na frente, não era alto; o terreno, porém, inclinava-se rapidamente para os fundos, de forma que, nessa parte, havia um porão razoável, onde, ultimamente, habitava Cassi. O puxado, na traseira da casa, também tinha porão, porém, com maus quartos, que eram ocupados pelas galinhas do filho e por coisas velhas ou sem préstimo, que a família refugava, sem querer pôr fora de todo. Dona Margarida tocou a campainha com decisão e subiu a pequena escada que dava acesso à casa. Disse à criada que desejava falar à dona da casa. Dona Salustiana, que esperava tudo, menos aquela visita portadora de semelhante mensagem, não tardou em mandar entrar as duas mulheres. Ambas estavam bem-vestidas e nada denunciava o que as trazia ali. Só Clara tinha os olhos vermelhos de chorar, mas passava despercebido. Chegou Dona Salustiana e cumprimentou-as com grandes mostras de si mesma. Dona Margarida, sem hesitação, contou o que havia. A mãe de Cassi, depois de ouvi-la, pensou um pouco e disse com ar um tanto irônico: - Que é que a senhora quer que eu faça? Até ali, Clara não dissera palavra; e Dona Salustiana, mesmo antes de saber que aquela moça era mais uma vítima da libidinagem do filho, quase não a olhava; e, se o fazia, era com evidente desdém. A moça foi notando isso e encheu-se de raiva, de rancor por aquela humilhação por que passava, além de tudo que sofria e havia ainda de sofrer. Ao ouvir a pergunta de Dona Salustiana, não se pôde conter e respondeu como fora de si: - Que se case comigo. Dona Salustiana ficou lívida; a intervenção da mulatinha a exasperou. Olhou-a cheia de malvadez e indignação, demorando o olhar propositadamente. Por fim, expectorou: - Que é que você diz, sua negra? Dona Margarida, não dando tempo a que Clara repelisse o insulto, imediatamente, erguendo a voz, falou com energia sobranceira: - Clara tem razão. O que ela pede é justo; e fique a senhora sabendo que nós aqui estamos para pedir justiça e não para ouvir desaforos. Dona Salustiana voltou-se para Dona Margarida e perguntou, pronunciando, devagar, as palavras, como para se dar importância: - Quem é a senhora, para falar alto em minha casa? Dona Margarida não se intimidou: - Sou eu mesma, minha senhora; que, quando se decide a fazer alguma coisa de justo, nada a atemoriza. 76 Foi calmamente que Dona Margarida falou; e, à vista dessa atitude, Dona Salustiana resolveu mudar de tática. Gritou para as filhas: - Catarina! Irene! Venham cá que esta mulher está me insultando. As moças acudiram e, contemplando o ar enérgico da teuto-eslava e a figura lastimosa de Clara, compreenderam que Cassi estava no meio. Acalmaram a mãe e indagaram do sucedido; Dona Margarida explicou; mas, quando se falou em casamento de Cassi, Dona Salustiana prorrompeu: - Ora, vejam vocês, só! É possível? É possível admitir-se meu filho casado com esta... As filhas intervieram: - Que é isto, mamãe? A velha continuou: - Casado com gente dessa laia... Qual!... Que diria meu avô, Lord Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina - que diria ele, se visse tal vergonha? Qual! Parou um pouco de falar; e, após instantes, aduziu: - Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de que abusaram delas... É sempre a mesma cantiga... Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas... Dona Margarida ia perguntar: "Que decide, então?" - quando se ouviram passos na escada. Era o dono da casa. Entrando e deparando-se-lhe aquele quadro, suspendeu os passos e parou no meio da sala. Olhou tudo e todos e perguntou: - Que há? "Papai" - ia dizendo uma das filhas; - mas sabendo, por aí, quem era aquele homem, Clara correu para ele, ajoelhou-se e implorou: - Tenha pena de mim, "Seu" Azevedo! Tenha pena de uma infeliz! Seu filho me desgraçou! O velho Azevedo descansou os embrulhos, levantou a moça, fê-la sentar-se; e ele, sentandose por sua vez, pôs-se a olhar, cheio de pena, o dorido rosto da rapariga. Todos os olhos se fixaram nele; ninguém respirava. Afinal, Azevedo falou: - Minha filha, eu não te posso fazer nada. Não tenho nenhuma espécie de autoridade sobre ele... Já o amaldiçoei... Demais, "ele" fugiu e eu já esperava que essa fuga fosse para esconder mais alguma das suas ignóbeis perversidades... Tu, minha filha, te ajoelhaste diante de mim ainda agora. Era eu que devia ajoelhar-me diante de ti, para te pedir perdão por ter dado vida a esse bandido - que é o meu filho... Eu, como pai, não o perdôo; mas peço que Deus me perdoe o crime de ser pai de tão horrível homem... Minha filha, tem dó de mim, deste pobre velho, deste amargurado pai, que há dez anos sofre as ignomínias que meu filho espalha por aí, mais do que ele... Não te posso fazer nada... Perdoa-me, minha filha! Cria teu filho e me procura se... Não acabou a frase. A voz sumiu-se; ele descaiu o corpo sobre a cadeira e os olhos se foram tornando inchados. As filhas acudiram, a mulher também; e uma daquelas, chorando, pediu à Clara e à Dona Margarida: - É favor, minhas senhoras; retirem-se, sim? Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que tinha presenciado e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho! Coitado!... A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente... O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres... Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas 77 iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam... Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha vindo. Dona Margarida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha e da mãe. Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero: - Mamãe! Mamãe! - Que é minha filha? - Nós não somos nada nesta vida. Todos os Santos (Rio de Janeiro), dezembro de 1921 - janeiro de 1922 nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan nan