Autor,Texto: Emannuel,7ÍndiceNa intimidade de Emmanuel 9Primeira ParteI - Dois amigos 17II - Um escravo 32III - Em casa de Pilatos 50IV - Na Galileia 66V - O Messias de Nazaré 82VI - O rapto 98VII - As pregações do Tiberíades 117VIII - No grande dia do Calvário 132IX - A calúnia vitoriosa 147X - O Apóstolo da Samaria 169Segunda ParteI - A morte de Flamínio 216II - Sombras e núpcias 240III - Planos da treva 258 Emannuel,IV - Tragédias e esperanças 275V - Nas catacumbas da fé e no circo do martírio 302VI - Alvoradas do Reino do Senhor 345VII - Teias do infortúnio 361VIII - Na destruição de Jerusalém 390IX - Lembranças amargas 417X - Nos derradeiros minutos de Pompeia 428 Emannuel,"9Na intimidade de EmmanuelAo LeitorLeitor, antes de penetrares o limiar desta história, é justoapresentemos à tua curiosidade algumas observações de Emmanuel, o ex-senador Públio Lentulus, descendente da orgulhosa ""gens Cornelia"",recebidas desse generoso Espírito, na intimidade do grupo de estudosespiritualistas de Pedro Leopoldo, Estado de Minas Gerais.Através destas observações ficarás conhecendo as primeiraspalavras do Autor, a respeito desta obra, e suas impressões maisprofundas, no curso do trabalho, que foi levado a efeito de 24 de outubrode 1938 a 9 de fevereiro de 1939, segundo as possibilidades de tempo doseu médium e sem perturbar outras atividades do próprio Emmanuel, juntoaos sofredores que freqüentemente o procuram, e junto ao esforço depropaganda do Espiritismo cristão na Pátria do Cruzeiro.Em 7 de setembro de 1938, afirmava ele em pequena mensagemendereçada aos seus amigos encarnados:- ""Algum dia, se Deus mo permitir, falar-vos-ei do orgulhoso patrícioPúblio Lentu-" Emannuel,"lus, a fim de algo aprenderdes nas dolorosas experiências de uma almaindiferente e ingrata.""Esperemos o tempo e a permissão de Jesus.""Emmanuel não esqueceu a promessa. Com efeito, em 21 de outubrodo mesmo ano, voltava a recordar, noutro comunicado familiar:- ""Se a bondade de Jesus nos permitir, iniciaremos o nosso esforço,dentro de alguns dias, esperando eu a possibilidade de grafarmos asnossas lembranças do tempo em que se verificou a passagem do DivinoMestre sobre a face da Terra.""Não sei se conseguiremos realizar tão bem, quanto desejamos,semelhante intento. De ante-mão, todavia, quero assinalar minha confiançana Misericórdia do Nosso Pai de Infinita Bondade.""De fato, em 24 de outubro referido, recebia o médium Xavier aprimeira página deste livro e, no dia seguinte, Emmanuel voltava a dizer:- ""Iniciamos, com o amparo de Jesus, mais um despretensiosotrabalho. Permita Deus que possamos levá-lo a bom termo.""Agora verificareis a extensão de minhas fraquezas no passado,sentindo-me, porém, confortado em aparecer com toda a sinceridade domeu coração, ante o plenário de vossas consciências. Orai comigo,pedindo a Jesus para que eu possa completar esse esforço, de modo queo plenário se dilate, além do vosso meio, a fim de que a minha confissãoseja um roteiro para todos.""Durante todo o esforço de psicografia, o Autor deste livro nãoperdeu ensejo de ensinar a humildade e a fé a quantos o acompanham. Em30 de dezembro de 1938, comentava, em nova mensagem afetuosa:" Emannuel,"...- ""Agradeço, meus filhos, o precioso concurso que me vindesprestando. Tenho-me esforçado, quanto possível, para adaptar umahistória tão antiga ao sabor das expressões do mundo moderno, mas, emrelatando a verdade, somos levados a penetrar, antes de tudo, na essênciadas coisas, dos fatos e dos ensinamentos.""Para mim essas recordações têm sido muito suaves, mas tambémmuito amargas. Suaves pela rememoração das lembranças amigas, masprofundamente dolorosas, considerando o meu coração empedernido, quenão soube aproveitar o minuto radioso que soara no relógio da minha vidade Espírito, há dois mil anos.""Permita Jesus que eu possa atingir os fins a que me propus,apresentando, nesse trabalho, não uma lembrança interessante acerca deminha pobre personalidade, mas, tão somente, urna experiência para osque hoje trabalham na semeadura e na seara do Nosso Divino Mestre.""De outras vezes, Emmanuel ensinava aos seus companheirosencarnados a necessidade de nossa ligação espiritual com Jesus, nodesempenho de todos os trabalhos. No dia 4 de janeiro de 1939, grafavaele esta prece, ainda com respeito as memórias do passado remoto:""Jesus, Cordeiro Misericordioso do Pai de todas as graças, sãopassados dois mil anos e minha pobre alma ainda revive os seus diasamargurados e tristes!...""Que são dois milênios, Senhor, no relógio da Eternidade?""Sinto que a tua misericórdia nos responde em suas ignotasprofundezas... Sim, o tempo é o grande tesouro do homem e vinte séculos,como vinte existências diversas, podem ser vin-" Emannuel,"te dias de provas, de experiências e de lutas redentoras.""Só a tua bondade é infinita! Somente tua misericórdia podeabranger todos os séculos e todos os seres, porque em Ti vive a gloriosasíntese de toda a evolução terrestre, fermento divino de todas as culturas,alma sublime de todos os pensamentos.""Diante de meus pobres olhos, desenha-se a velha Roma dos meuspesares e das minhas quedas dolorosas... Sinto-me ainda envolto namiséria de minhas fraquezas e contemplo os monumentos das vaidadeshumanas... Expressões políticas, variando nas suas características deliberdade e de força, detentores da autoridade e do poder, senhores dafortuna e da inteligência, grandezas efêmeras que perduram apenas porum dia fugaz!... Tronos e púrpuras, mantos preciosos das honrariasterrestres, togas da falha justiça humana, parlamentos e decretossupostos irrevogáveis!... Em silêncio, Senhor, viste a confusão que seestabelecera entre os homens inquietos e, com o mesmo desvelado amor,salvaste sempre as criaturas no instante doloroso das ruínas supremas...Deste a mão misericordiosa e imaculada aos povos mais humildes e maisfrágeis, confundiste a ciência mentirosa de todos os tempos, humilhasteos que se consideravam grandes e poderosos!...""Sob o teu olhar compassivo, a morte abriu suas portas de sombra eas falsas glórias do mundo foram derruídas no torvelinho das ambições,reduzindo-se todas as vaidades a um acervo de cinzas!...""Ante minhalma surgem as reminiscências das construçõeselegantes das colinas célebres; vejo o Tibre que passa, recolhendo osdetritos da grande Babilônia imperial, os aquedutos, os mármorespreciosos, as termas que pareciam" Emannuel,"...indestrutíveis... Vejo ainda as ruas movimentadas, onde uma plebemiserável espera as graças dos grandes senhores, as esmolas de trigo, osfragmentos de pano para resguardarem do frio a nudez da carne.""Regurgitam os circos... Há uma aristocracia do patriciadoobservando as provas elegantes do Campo de Marte e, em tudo, das viasmais humildes até os palácios mais suntuosos, fala-se de César, oAugusto!...""Dentro dessas recordações, eu passo, Senhor, entre farraparias eesplendores, com o meu orgulho miserável! Dos véus espessos de minhassombras, também eu não te podia ver, no Alto, onde guardas o teu sólio degraças inesgotáveis...""Enquanto o grande Império se desfazia em suas lutas inquietantes,trazias o teu coração no silêncio e, como os outros, eu não percebia quevigiavas!""Permitiste que a Babel romana se levantasse muito alto, mas,quando viste que se ameaçava a própria estabilidade da vida no planeta,disseste: - ""Basta! São vindos os tempos de operar-se na seara daVerdade!"" E os grandes monumentos, com as estátuas dos deusesantigos, rolaram de seus pedestais maravilhosos! Um sopro de mortevarreu as regiões infestadas pelo vírus da ambição e do egoísmodesenfreado, despovoando-se, então, a grande metrópole do pecado.Ruíram os circos formidandos, caíram os palácios, enegreceram-se osmármores luxuosos...""Bastou uma palavra tua, Senhor, para que os grandes senhoresvoltassem às margens do Tibre, como escravos misérrimos!...Perambulamos, assim, dentro da nossa noite, até o dia em que nova luzbrotara em nossa consciência. Foi preciso que os séculos passassem," Emannuel,"para aprendermos as primeiras letras de tua ciência infinita, de perdão ede amor!""E aqui estamos, Jesus, para louvar-te a grandeza! Dá quepossamos recordar-te em cada passo, ouvir-te a voz em cada somdistraído do caminho, para fugirmos da sombra dolorosa!... Estende-nostuas mãos e fala-nos ainda do teu ....... Temos sede imensa daquela águaeterna da vida, que figuraste no ensinamento à Samaritana...""Exército de operários do teu Evangelho, nós nos movemos sob astuas determinações suaves e sacrossantas! Ampara-nos, Senhor, e nãonos retires dos ombros a cruz luminosa e redentora, mas ajuda-nos asentir, nos trabalhos de cada dia, a luz eterna e imensa do teu Reino depaz, de concórdia e de sabedoria, em nossa estrada de luta, desolidariedade e de esperança!...""Em 8 de fevereiro último, véspera do término da recepção destelivro, agradecia Emmanuel o concurso de seus companheiros encarnados,em comunicado familiar, do qual destacamos algumas frases:- ""Meus amigos, Deus vos auxilie e recompense. Nosso modestotrabalho está a terminar. Poucas páginas lhe restam e eu vos agradeço decoração.""Reencontrando os Espíritos amigos das épocas mortas, sinto ocoração satisfeito e confortado ao verificar a dedicação de todos ao firmepensamento de evolução, para a frente e para o alto, pois não é sem razãode ser que hoje laboramos na mesma oficina de esforço e boa vontade.""Jesus há-de recompensar a cota de esforço amigo e sincero queme prestastes e que a sua infinita misericórdia vos abençoe é a minhaoração de sempre.""" Emannuel,"...Aqui ficam algumas das anotações íntimas de Emmanuel, fornecidasna recepção deste livro. A humildade desse generoso Espírito vemdemonstrar que no plano invisível há, também, necessidade de esforçopróprio, de paciência e de fé para as realizações.As notas familiares do Autor são um convite para que todos nóssaibamos orar, trabalhar e esperar em Jesus-Cristo, sem desfalecimentosna luta que a bondade divina nos oferece para o nosso resgate, nocaminho da redenção.Pedro Leopoldo, 2 de março de 1939.A EDITORA" Emannuel,"17PRIMEIRA PARTEIDois amigosOs últimos clarões da tarde haviam caído sobre o casario romano.As águas do Tibre, ladeando o Aventino, deixavam retratados osderradeiros reflexos do crepúsculo, enquanto nas ruas estreitas passavamliteiras apressadas, sustidas por escravos musculosos e lépidos.Nuvens pesadas amontoavam-se na atmosfera, anunciandoaguaceiros próximos, e as últimas janelas das residências particulares ecoletivas fechavam-se com estrépito, ao sopro dos primeiros ventos danoite.Entre as construções elegantes e sóbrias, que exibiam mármorespreciosos, no sopé da colina, um edifício havia que reclamava a atençãodo forasteiro pela singularidade das suas colunas severas e majestosas.Uma vista de olhos ao seu exterior indicava a posição do proprietário,dado o aspecto artístico e imponente.Era, de fato, a residência do senador Públio Lentulus Cornelius,homem ainda moço, que, à ma-" Emannuel,"neira da época, exercia no Senado funções legislativas e judiciais, deacordo com os direitos que lhe competiam, como descendente de antigafamília de senadores e cônsules da República.O Império, fundado com Augusto, havia limitado os poderessenatoriais, cujos detentores já não exerciam nenhuma influência diretanos assuntos privativos do governo imperial, mas mantivera ahereditariedade dos títulos e dignidades das famílias patrícias,estabelecendo as mais nítidas linhas de separação das classes, nahierarquia social.Eram dezenove horas de um dia de maio de 31 da nossa era. PúblioLentulus, em companhia do seu amigo Flamínio Severus, reclinado notriclínio, terminava o jantar, enquanto Lívia, a esposa, expedia ordensdomésticas a uma jovem escrava etrusca.O anfitrião era um homem relativamente jovem, aparentando menosde trinta anos não obstante o seu perfil orgulhoso e austero, aliado àtúnica de ampla barra purpúrea, que impunha certo respeito a quantos selhe aproximavam, contrastando com o amigo que, revestindo a mesmaindumentária de senador, deixava entrever idade madura, iluminada de cãsprecoces, em penhor de bondade e experiência da vida.Deixando a jovem senhora entregue aos cuidados domésticos,ambos se dirigiram ao peristilo, por buscarem um pouco de oxigênio danoite cálida, embora o aspecto ameaçador do firmamento prenunciassechuva iminente.- A verdade, meu caro Públio - exclamava Flamínio, pensativo -, éque te consomes a olhos vistos. Trata-se de uma situação que precisamodificar-se sem perda de tempo. Já recorreste a todos os facultativos nocaso de tua filhinha?- Infelizmente - retorquia o patrício com amargura - já lancei mão detodos os recursos ao nosso alcance. Ainda nestes últimos dias, minhapobre Lívia levou-a a distrair-se em nossa vivenda" Emannuel,"...de Tibur (1), procurando um dos melhores médicos da cidade, que afirmoutratar-se de um caso sem remédio na ciência dos nossos dias. Ofacultativo não chegou a positivar o diagnóstico, certamente em razão dasua comiseração pela doentinha e pelo nosso paternal desespero; mas,segundo nossas observações, acreditamos que o médico de Tiburpresume tratar-se de um caso de lepra.- É uma presunção atrevida e absurda!- Entretanto, se não podemos admitir qualquer dúvida com relaçãoaos nossos antepassados, sabes que Roma está cheia de escravos detodas as regiões do mundo e são eles o instrumento de nossos trabalhosde cada dia.- É verdade... - concordou Flamínio, com amargura.Um laivo de perspectivas sombrias transparecia na fronte dos doisamigos, enquanto as primeiras gotas de chuva satisfaziam a sede dasroseiras floridas que enfeitavam as colunas graciosas e claras.- E o pequeno Plínio? - perguntou Públio, como desejoso deproporcionar novo rumo a conversação.- Esse, como sabes, continua sadio, demonstrando ótimasdisposições Calpúrnia atrapalha-se, a cada momento, para satisfazer-lheos caprichos dos doze anos incompletos. Às vezes, é voluntarioso erebelde, contrariando as observações do velho Parmênides, só seentregando aos exercícios da ginástica quando muito bem lhe apraz; noentanto, tem grande predileção pelos cavalos. Imagina que, num momentode irreflexão própria da idade, burlando toda a vigilância do irmão,concorreu a uma tirada de bigas realizada nos treinos comuns de umestabelecimento esportivo do Campo de Marte, obtendo um dos lugares demaior destaque. Quando contemplo meus dois filhos, lembro-me sempreda__________ (1) Hoje Tivoli. (Nota da Editora.)" Emannuel,"tua pequena Flávia Lentúlia, porque bem sabes dos meus propósitos parao futuro, no sentido de estreitar os antigos laços que prendem as nossasfamílias.Públio ouvia o amigo, calado, como se a inveja lhe espicaçasse ocoração carinhoso de pai.- Todavia - revidou -, apesar de nossos projetos, os áugures nãofavorecem nossas esperanças, porque a verdade é que minha pobre filha,com todos os nossos cuidados, mais parece uma dessas infelizescriaturinhas atiradas ao Velabro (1).- Contudo, confiemos na magnanimidade dos deuses- Dos deuses? - repetiu Públio, com mal disfarçado desalento. - Apropósito desse recurso imponderável, tenho excogitado mil teorias nocérebro fervilhante. Há tempos, em visita a tua casa, tive ocasião deconhecer mais intimamente o teu velho liberto grego. Parmênides falou-meda sua mocidade e permanência na Índia, dando-me conta das crençashindus, com as suas coisas misteriosas da alma. Acreditas que cada umde nós possa regressar, depois da morte, ao teatro da vida, em outroscorpos?- De modo algum - replicou Flamínio, energicamente. - Parmênides,não obstante o seu caráter precioso, leva muito longe as suas divagaçõesespirituais.- Entretanto, meu amigo, começo a pensar que ele tem razão. Comopoderíamos explicar a diversidade da sorte neste mundo? Porque aopulência dos nossos bairros aristocráticos e as misérias do Esquilino? Afé no poder dos deuses não consegue elucidar esses problemastorturantes. Vendo minha desventurada filhinha com a carne dilacerada eapodrecida, sinto que o teu escravo está com a verdade. Que teria feito apequena Flávia, nos__________(1) Bairro da antiga Roma e que se localizava sobre um pântano." Emannuel,"...seus sete anos incompletos, para merecer tão horrendo castigo daspotestades celestiais? Que alegria poderiam encontrar as nossasdivindades nos soluços de uma criança e nas lágrimas dolorosas que noscalcinam o coração? Não será mais compreensível e aceitável quetenhamos vindo de longe com as nossas dividas para com os poderes doCéu?Flamínio Severus meneou a cabeça, como quem deseja afastar umadúvida, mas, retomando o seu aspecto habitual, obtemperou com firmeza:- Fazes mal em alimentar semelhantes conjeturas no teu foro íntimo.Nos meus quarenta e cinco anos de existência, não conheço crenças maispreciosas do que as nossas, no culto venerável dos antepassados. Épreciso considerares que a diversidade das posições sociais é umproblema oriundo da nossa arregimentação política, a única queestabeleceu uma divisão nítida entre os valores e os esforços de cada um;quanto à questão dos sofrimentos, convém lembrar que os deuses podemexperimentar nossas virtudes morais, com as maiores ameaças àenfibratura do nosso ânimo, sem que necessitemos adotar os absurdosprincípios dos egípcios e dos gregos, princípios, aliás, que já os reduziramao aniquilamento e ao cativeiro. Já ofereceste algum sacrifício no templo,depois de tão angustiosas dúvidas?- Tenho sacrificado aos deuses, segundo os nossos hábitos -respondeu Públio, compungida mente - e ninguém mais que eu se orgulhadas gloriosas virtudes de nossas tradições familiares. Entretanto, minhasobservações não surgem tão somente a propósito da filhinha. Há muitosdias, ando torturado com o espantoso enigma de um sonho.- Um sonho? Como pode a fantasia abalar, desse modo, a fibra deum patrício?Públio Lentulus recebeu a pergunta mergulhado em profundascismas. Seus olhos parados pre-" Emannuel,"sumiam devorar uma paisagem que o tempo distanciara no transcurso dosanos.A chuva, agora em bátegas pesadas, caía continuadamente, fazendoos mais fortes transbordamentos do implúvio e represando-se na piscinaque enfeitava o pátio do peristilo.Os dois amigos haviam-se recolhido a um largo banco de mármore,reclinando-se nos estofos orientais que o forravam, prosseguindo napalestra amistosa.- Sonhos há - prosseguiu Públio - que se distinguem da fantasia, tala sua expressão de realidade irretorquívelVoltava eu de uma reunião no Senado, onde havíamos discutido umproblema de profunda delicadeza moral, quando me senti presa deinexplicável abatimento.Recolhi-me cedo e, quando parecia divisar junto de mim a imagemde Têmis, que guardamos no altar doméstico, considerando as singularesobrigações de quem exerce as funções da justiça, senti que uma forçaextraordinária me selava as pálpebras cansadas e doloridas. No entanto,via outros lugares, reconhecendo paisagens familiares ao meu espírito,das quais me havia esquecido inteiramente.Realidade ou sonho, não o sei dizer, mas vi-me revestido dasinsígnias de cônsul, ao tempo da República. Parecia-me haver retrocedidoà época de Lúcio Sergius Catilina, pois o via a meu lado, bem como aCícero, que se me figuravam duas personificações, do mal e do bem.Sentia-me ligado ao primeiro por laços fortes e indestrutíveis, como seestivesse vivendo a época tenebrosa da sua conspiração contra o Senado,e participando, com ele, da trama ignominiosa que visava à mais intimaorganização da República. Prestigiava-lhe as intenções criminosas,aderindo a todos os seus projetos com a minha autoridade administrativa,assumindo a direção de reuniões secretas, onde decretei assas-" Emannuel,"...sínios nefandos... Num relâmpago, revivi toda a tragédia, sentindo queminhas mãos estavam nodoadas do sangue e das lágrimas dos inocentes.Contemplei, atemorizado, como se estivesse regressandoinvoluntariamente a um pretérito obscuro e doloroso, a rede de infâmiasperpetradas com a revolução, em boa hora esmagada pela influência deCícero; e o detalhe mais terrível é que eu havia assumido um dos papéismais importantes e salientes na ignomínia... Todos os quadros hediondosdo tempo passaram, então, à frente dos meus olhos espantados...Todavia, o que mais me humilhava nessas visões do passadoculposo, como se a minha personalidade atual se envergonhasse desemelhantes reminiscências, é que me prevalecia da autoridade e do poderpara, aproveitando a situação, exercer as mais acerbas vinganças contrainimigos pessoais, contra quem expedia ordens de prisão, sob as maisterríveis acusações. E ao meu coração desalmado não bastava orecolhimento dos inimigos aos calabouços infectos, com a conseqüenteseparação dos afetos mais caros e mais doces, da família. Ordenei aexecução de muitos, na escuridão da noite, acrescendo a circunstância deque a muitos adversários políticos mandei arrancar os olhos, na minhapresença, contemplando-lhes os tormentos com a frieza brutal das vinditascruéis!... Ai de mim que espalhava a desolação e a desventura em tantasalmas, porque, um dia, se lembraram de eliminar o verdugo cruel!Depois de toda a série de escândalos que me afastaram doConsulado, senti o término dos meus atos infames e misérrimos, diante decarrascos inflexíveis que me condenaram ao terrível suplício doestrangulamento, experimentando, então, todos os tormentos e angústiasda morte.O mais interessante, porém, é que revi o inenarrável instante daminha passagem pelas águas escuras do Aqueronte, quando me pareciahaver" Emannuel,"descido aos lugares sombrios do Averno, onde não penetram asclaridades dos deuses. A grande multidão de vítimas acercou-se, então, deminhalma angustiada e sofredora, reclamando justiça e reparação erebentando em clamores e soluços, que me pereciam no recôndito docoração.Por quanto tempo estive, assim, prisioneiro desse martírioindefinível? Não sei dizê-lo. Apenas me recordo de haver lobrigado a figuraceleste de Lívia, que, no meio desse vórtice de pavores, estendia-me asmãos fúlgidas e carinhosas.Afigurava-se-me que minha esposa me era familiar de épocasremotíssimas, porque não hesitei um instante em lhe tomar as mãossuaves, que me conduziram a um tribunal, onde se alinhavam figurasestranhas e venerandas. Cãs respeitáveis aureolavam o semblante serenodesses juizes do Céu, emissários dos deuses para julgamento dos homensda Terra. A atmosfera caracterizava-se por estranha leveza, cheia de luzescariciosas que iluminavam, perante todos os presentes, os meuspensamentos mais secretos.Lívia devia ser o meu anjo-tutelar nesse conselho de magistradosintangíveis, porque sua destra pairava sobre minha cabeça, como a impor-me resignação e serenidade, a fim de ouvir as sentenças supremas.Desnecessário será dizer-te do meu espanto e do meu receio, diantedesse tribunal que eu desconhecia, quando a figura daquele que mepareceu a sua autoridade central me dirigiu a palavra, exclamando:- Públio Lentulus, a justiça dos deuses, na sua misericórdia,determina tua volta ao turbilhão das lutas do mundo, para que laves asnódoas de tuas culpas nos prantos remissores. Viverás numa época demaravilhosos fulgores espirituais, lutando com todas as situações edificuldades, não obstante o berço de ouro que te receberá ao renasceres,a fim de que edifiques tua consciência denegrida, nas do-" Emannuel,"...res que purificam e regeneram!... Feliz de ti se bem souberes aproveitar aoportunidade bendita da reabilitação pela renúncia e pela humildade...Determinou-se que sejas poderoso e rico, a fim de que, com o teudesprendimento dos caminhos humanos, no instante preciso, possas serelemento valioso para os teus mentores espirituais. Terás a inteligência e asaúde, a fortuna e a autoridade, como ensanchas à regeneração integral detua alma, porque chegará um momento em que serás compelido adesprezar todas as riquezas e todos os valores sociais, se bem souberespreparar o coração para a nova senda de amor e humildade, de tolerânciae perdão, que será rasgada, em breves anos, à face escura da Terra!... Avida é um jogo de circunstâncias que todo espírito deve entrosar para obem, no mecanismo do seu destino. Aproveita, pois, essas possibilidadesque a misericórdia dos deuses coloca ao serviço da tua redenção. Nãodesprezes o chamamento da verdade, quando soar a hora do testemunho edas renúncias santificadoras... Lívia seguirá contigo pela via dolorosa doaperfeiçoamento, e nela encontrarás o braço amigo e protetor para os diasde provações ríspidas e acerbas. O essencial é a tua firmeza de ânimo nocaminho escabroso, purificando tua fé e tuas obras, na reparação dopassado delituoso e obscuro!...A essa altura, a voz altiva do patrício ia-se tornando angustiada edolorosa. Amargas comoções íntimas represavam-se-lhe no coração,atormentado por incoercível desalento.Flamínio Severus ouvia-o com interesse e atenção, rebuscando omeio mais fácil de lhe desvanecer impressões tão penosas. Sentia ímpetosde desviar-lhe o curso dos pensamentos, arrancando-lhe o espíritodaquele mundo de emoções impróprias da sua formação intelectual,apelando para sua educação e para o seu orgulho; mas, ao mesmo tempo,não conseguia sopitar as próprias dúvidas íntimas, em face daquelesonho, cuja nitidez e aspecto de" Emannuel,"realidade o deixavam aturdido. Compreendia que era necessário primeirorestabelecer sua própria fortaleza de ânimo, entendendo que a lógica dabrandura deveria ser o escudo de suas palavras, para esclarecimento doamigo que ele mais considerava irmão.Foi assim que, pousando a mão esguia e branca nos seus ombros,perguntou com amável doçura:- E depois, que mais viste?Públio Lentulus, sentindo-se compreendido, recobrou energiasnovas e continuou:- Depois das exortações daquele juiz severo e venerando, não maislobriguei o vulto de Lívia a meu lado, mas outras criaturas graciosas,envolvidas em peplos que me pareciam de neve translúcida, confortavam-me o coração com os seus sorrisos acolhedores e bondosos.Atendendo-lhes ao apelo carinhoso, senti que meu Espíritoregressava à Terra.Observei Roma, que já não era bem a cidade do meu tempo; umsopro de beleza estava reconstituindo a sua parte antiga, porque notei aexistência de novos circos, teatros suntuosos, termas elegantes e paláciosencantadores, que meus olhos não haviam conhecido antes.Tive ocasião de ver meu pai entre os seus papiros e pergaminhos,estudando os processos do Senado, tal qual se verifica hoje conosco, e,depois de implorar a bênção dos deuses, no altar doméstico de nossacasa, experimentei uma sensação de angústia no recesso de minhalma.Pareceu-me haver sofrido dolorosa comoção cerebral e fiqueiadormentado numa vertigem indefinível...Não sei descrever literalmente o que se passou, mas despertei comfebre alta, como se aquela digressão do pensamento, pelos mundos deMorfeu, me houvesse trazido ao corpo dolorosa sensação de cansaço." Emannuel,"...Ignoro o teu julgamento, em face desta confidência amargurada e penosa,mas desejaria me explicasses algo a respeito.- Explicar-te? - obtemperou Flamínio, tentando imprimir à voz umatonalidade de convicção enérgica. - Bem sabes do respeito que meinspiram os áugures do templo, mas, afinal, o que te ocorreu não podepassar, simplesmente, de um sonho, e tu não ignoras como devemostemer a imaginação dentro de nossas perspectivas de homens práticos.Por sonharem excessivamente, os atenienses ilustres transformaram-seem escravos misérrimos, constituindo obrigação de nossa parte oreconhecimento da bondade dos deuses que nos concederam o senso darealidade, necessário às nossas conquistas e triunfos. Seria lícitorenunciasses ao amor de ti mesmo e à posição de tua família, tão somentelevado pela fantasia?Públio deixou que o amigo discorresse abundantemente sobre oassunto, recebendo-lhe as exortações e conselhos, mas, depois, tomando-lhe as mãos generosas, exclamou angustiado:- Meu amigo, eu seria indigno da magnanimidade dos deuses se medeixasse conduzir ao sabor dos acontecimentos. Um simples sonho nãome daria margem a tão dolorosas conjeturas, mas a verdade é que ainda tenão disse tudo.Flamínio Severus franziu o sobrolho, rematando:- Ainda não disseste tudo? Que significam estas afirmativas?No seu íntimo generoso, angustiosa dúvida fora já implantada com adescrição minuciosa daquele sonho impressionante e doloroso, e era comgrande esforço que o seu coração fraternal trabalhava por ocultar aoamigo as penosas emoções que intimamente o atormentavam.Públio, mudo, tomou-lhe do braço, conduzindo-o às galerias dotablino localizado a um canto do peristilo, nas proximidades do altardoméstico," Emannuel,"onde oficiavam os mais puros e mais santos afetos da família.Os dois amigos penetraram o escritório e a sala do arquivo comprofundo sinal de respeitoso recolhimento.A um canto, dispunham-se em ordem numerosos pergaminhos epapiros, enquanto, nas galerias, avultavam retratos de cera, deantepassados e avoengos da família.Públio Lentulus tinha os olhos úmidos e a voz trêmula, como seprofundas emoções o dominassem naquelas circunstâncias.Aproximando-se de uma imagem de cera, entre as muitas que ali seenfileiravam, chamou a atenção de Flamínio, com uma simples palavra:- Reconheces?- Sim - respondeu o amigo, estremecendo -, reconheço esta efígie.Trata-se de Públio Lentulus Sura, teu bisavó paterno, estrangulado háquase um século, na revolução de Catilina.- Faz precisamente noventa e quatro anos que o pai de meu avô foieliminado nessas tremendas circunstâncias - exclamou Públio, comênfase, como quem está de posse de toda a verdade. - Repara bem ostraços desta figura, para verificares a semelhança perfeita que existe entremim e esse longínquo antepassado. Não estaria aqui a chave do meusonho doloroso?O nobre patrício observou a notável identidade de traçosfisionômicos daquela efígie morta com o semblante do amigo presente.Suas vacilações atingiram o auge, em face daquelas demonstraçõesalucinantes. Ia elucidar o assunto, encarecendo a questão da linhagem eda hereditariedade, mas o interlocutor, como se adivinhasse os mínimosdetalhes de suas dúvidas, antecipou o julgamento, exclamando:- Eu também participei de todas as hesitações que ferem o teuraciocínio, lutando contra a razão, antes de aceitar a tese de nossasconversa-" Emannuel,"...ções desta noite. A semelhança pela imagem, ainda a mais extrema, énatural e é possível; isto, porém, não me satisfaz plenamente. Expedi,nestes últimos dias, um dos servos de nossa casa, a Taormina, em cujasadjacências possuímos antiga habitação, onde se guardava o arquivo doextinto, que fiz transportar para aqui.E, num movimento de quem estava certo de todos os seusconceitos, revirava nas mãos nervosas vários documentos, exclamando:- Repara estes papiros! São notas de meu bisavô, acerca dos seusprojetos no Consulado. Encontrei neste acervo de pergaminhos diversasminutas de sentenças de morte, as quais já havia observado nas minhasdigressões do sonho inexplicável... Confronta estas letras! Não separecem com as minhas? Que desejaríamos mais, além destas provascaligráficas? Há muitos dias, vivo este obscuro dilema no íntimo docoração... Serei eu Públio Lentulus Sura, reencarnado?Flamínio Severus deixou pender a fronte, com indisfarçávelinquietação e indizível amargura.Numerosas haviam sido as provas da lucidez e da lógica do amigo.Tudo conspirava para que o seu castelo de explicações desmoronasse,fragorosamente, diante dos fatos consumados, mas procuraria novasforças, a fim de salvaguardar o patrimônio das crenças e tradições dosseus maiores, tentando esclarecer o espírito do companheiro de tantosanos.- Meu amigo - murmurou, abraçando-o -, concordo contigo, em facedestes acontecimentos alucinantes. O fato é dos que empolgam o espíritomais frio, mas não podemos arriscar nossas responsabilidades no rumoincerto das primeiras impressões. Se ele nos parece a realidade, existemas realidades imediatas e positivas, aguardando o nosso concurso ativo.Considerando as tuas ponderações e acreditando mesmo na veracidadedo fenômeno, não acredito devamos mergulhar o raciocínio" Emannuel,"nestes assuntos misteriosos e transcendentes. Sou avesso a essasperquirições, certamente em virtude das minhas experiências da vidaprática. Concordando, de modo geral, com o teu ponto de vista,recomendo-te não estendê-lo além do círculo de nossa intimidadefraternal, mesmo porque, não obstante a propriedade de conceitos comque me dás testemunho da tua lucidez, sinto-te cansado e abatido nessetorvelinho de trabalhos do ambiente doméstico e social.Fez uma pausa nas suas observações comovidas, como quemraciocinasse procurando recurso eficaz para remediar a situação, esugeriu com doçura:- Poderias descansar um pouco na Palestina, levando a família paraessa estação de repouso.Existem ali regiões de clima adorável, que operariam, talvez, a curade tua filhinha, restabelecendo simultaneamente as. tuas forças orgânicas.Quem sabe? Esquecerias o tumulto da cidade, regressando mais tarde aonosso meio, com energias novas. O atual Procurador da Judeia é nossoamigo. Poderíamos harmonizar vários problemas do nosso interesse e denossas funções, porquanto não me seria difícil obter do Imperadordispensa dos teus trabalhos no Senado, de modo a que continuassesrecebendo os subsídios do Estado, enquanto permanecesses na Judeia.Que julgas a respeito? Poderias partir tranqüilo, pois eu tomaria a meucargo a direção de todos os teus negócios em Roma, zelando pelos teusinteresses e pelas tuas propriedades.Públio deixou transparecer no olhar uma chama de esperança, e,como quem estivesse examinando, intimamente, todas as razõesfavoráveis ou contrárias à execução do projeto, ponderou:- A idéia é providencial e generosa, mas a saúde de Lívia não meautoriza a tomar uma resolução pronta e definitiva.- Porquê?" Emannuel,"...- Esperamos, para breve, o segundo rebento do nosso lar.- E quando esperas esse advento?- Dentro de seis meses.- Interessa-te a viagem depois do inverno próximo?- Sim.- Pois bem: estarás, então, na Judeia, precisamente daqui a um ano.Os dois amigos reconheceram que a palestra havia sido longa.Cessara o aguaceiro. O firmamento esplendia de constelaçõeslavadas e límpidas.Iniciara-se já o tráfego das carroças barulhentas, com os gritospouco amáveis dos condutores, porque na Roma imperial as horas do diaeram reservadas, de modo absoluto, ao tráfego dos palanquins patrícios eao movimento dos pedestres.Flamínio despediu-se comovidamente do amigo, retomando a liteirasuntuosa, com o auxilio dos seus escravos prestos e hercúleos.Públio Lentulus, tão logo se viu só, encaminhou-se ao terraço, ondecorriam céleres as brisas da noite alta.À claridade do luar opulento, contemplou o casario romanoespalhado pelas colinas sagradas da cidade gloriosa. Espraiou os olhosna paisagem noturna, considerando os problemas profundos da vida e daalma, deixando pender a fronte, entristecido. Incoercível tristeza dominava-lhe o ânimo voluntarioso e sensível, enquanto uma onda de amor-próprio ede orgulho lhe sopitava as lágrimas íntimas do coração atormentado porangustiosos pensamentos." Emannuel,"32IIUm escravoDesde os primeiros tempos do Império, a mulher romana havia-seentregado à dissipação e ao luxo excessivo, em detrimento das obrigaçõessantificadoras do lar e da família.A facilidade na aquisição de escravos empregados nos serviçosmais grosseiros, como nos mais elevados misteres de ordem doméstica,inclusive os da própria educação e instrução, havia determinado grandequeda moral no equilíbrio das famílias patrícias, porquanto a disseminaçãodos artigos de luxo, vindos do Oriente, aliada à ociosidade, amolecera asfibras de energia e de trabalho das matronas romanas, encaminhando-aspara as frivolidades da indumenta, para as intrigas amorosas, a preludiar amais completa desorganização da família, no esquecimento de suastradições mais apreciáveis.Contudo, algumas casas haviam resistido heroicamente a essainvasão de forças perversoras e criminosas.Mulheres havia, ao tempo, que se orgulhavam do padrão das antigasvirtudes familiares, de quantas as tinham antecedido no labor construtivodas gerações de tantas almas sensíveis e nobres." Emannuel,"...As esposas de Públio e Flamínio eram desse número. Criaturasinteligentes e valorosas, ambas fugiam da onda corruptora da época,representando dois símbolos de bom-senso e simplicidade.As últimas expressões do inverno já haviam desaparecido, no anode 32, entornando pela terra, primaveril e alegre, uma taça imensa de florese perfumes...Num dia claro e ensolarado, vamos encontrar Lívia e Calpúrnia, naresidência da primeira, em amável palestra, enquanto dois rapazinhosdesenham, distraidamente, a um canto da sala.As duas senhoras organizam aprestos de viagem, corrigindodefeitos de algumas peças de lã e trocando impressões íntimas, à meiavoz, em tom amigo e discreto.Em dado momento, os dois meninos alcançam um dos quartoscontíguos, enquanto Lívia chama a atenção da amiga, nestes termos:- Teus pequenos não têm hoje os exercícios habituais?- Não, minha boa Lívia - respondeu Calpúrnia, com delicadezafraternal, adivinhando-lhe as intenções -, não só Plínio, mas, também,Agripa, consagraram o dia de hoje à doentinha. Adivinho as suasvacilações e escrúpulos maternos, considerando a boa saúde dos nossosfilhinhos; mas, os teus receios são infundados...- Sabem os deuses, todavia, como tenho vivido nestes últimostempos, desde que ouvi a opinião franca e sincera do médico de Tibur.Bem sabes que para ele o caso de minha filha é mal doloroso e sem cura.Desde então, toda a minha vida tem sido uma série de preocupações emartírios. Tomei todas as providências para que a pequena fosse isoladado círculo de nossas relações, atendendo aos imperativos da higiene e ànecessidade de circunscrever, com o nosso próprio esforço, a moléstiaterrível." Emannuel,"- Mas, quem te diz que o mal é incurável? Acaso semelhante opiniãoprovejo da palavra infalível dos deuses? Não sabes quanto é enganosa aciência dos homens?Há tempos, ambos os meus fílhinhos adoeceram com febre insidiosae destruidora. Chamados os médicos, observei que eles se revezavam nomister de salvar os dois enfermos, sem resultados apreciáveis. Depois,refleti melhor na providência dos céus e, imediatamente, ofereci umsacrifício no templo de Castor e Pólux, salvando-os de morte certa. Graçasa essa providência, hoje os vejo sorridentes e felizes.Agora que não tens somente a pequena Flávia, mas também opequenino Marcus, aconselho-te fazeres o mesmo, recorrendo aos deusesgêmeos.- É verdade, minha boa Calpúrnia, assim farei antes de nossa partidapróxima.- E por falar na viagem, como te sentes em face desta mudançaimprevista?- Bem sabes que tudo farei pela tranqüilidade de Públio e pela nossapaz doméstica. Há muito noto Públio abatido e doente, em razão de suaslutas exaustivas ao serviço do Estado. Jovial e expansivo, de tempos aesta parte tornou-se taciturno e irritadiço. Enerva-se com tudo e por tudo,acreditando eu que a saúde precária de nossa filhinha contribuadecisivamente para a sua misantropia e mau humor.Considerando essas razões disponho-me, com satisfação, aacompanhá-lo à Palestina, pesando-me apenas no íntimo a circunstânciade ser obrigada, ainda que temporariamente, a afastar-me da tuaintimidade e dos teus conselhos.- Folgo de assim te ouvir, porque a nós nos compete examinar asituação daqueles que o nosso coração elegeu para companheiros de todaa vida, tudo envidando por suavizar-lhes os aborrecimentos do mundo." Emannuel,"...Públio é um bom coração, generoso e idealista, mas, como patríciodescendente de família das mais ilustres da República, é vaidoso emdemasia. Homens dessa natureza requerem grande senso psicológico damulher, sendo justo e necessário que aparentes igualdade absoluta desentimentos, de modo a poderes conduzi-lo sempre pelo melhor caminho.Flamínio deu-me a conhecer todas as circunstâncias da tuapermanência na Judeia, mas, alguns pormenores existem que eu aindadesconheço. Ficarás, de fato, em Jerusalém?- Sim. Públio deseja que nos fixemos na mesma residência do seutio Sálvio, em Jerusalém, até que possamos eleger o melhor clima do país,de maneira a beneficiar a saúde de nossa filhinha.- Está bem - exclamou Calpúrnia, assumindo ares da maior discrição-, em face da tua inexperiência, sou obrigada a esclarecer o teu espírito,considerando a possibilidade de quaisquer complicações futuras.Lívia surpreendeu-se com a observação da amiga, mas, todaouvidos, revidou impressionada:- Mas, que queres dizer?- Sei que não tens um conhecimento mais acurado dos parentes deteu marido, que há tanto tempo se conservam ausentes de Roma -murmurou Calpúrnia, com as minudências características do espíritofeminino - e constituí um dever de amizade aclarar o teu espírito, a fim denão te conduzires com demasiada confiança por onde passares.O pretor Sálvio Lentulus, que há muitos anos foi destituído dogoverno das províncias, e agora tem simples atribuições de funcionáriojunto do atual Procurador da Judeia, não é bem um homem idêntico a teumarido, que, se tem certos defeitos de família, é um espírito muito franco esincero. Eras muito jovem quando se verificaram acontecimentosdeploráveis em nosso ambiente social, com referência às criaturas comquem agora vais conviver." Emannuel,"A esposa de Sálvio, que ainda deve ser uma mulher moça e bem cuidada, éirmã de Cláudia, mulher de Pilatos, a quem teu marido vai recomendado,em caminho da alta administração da província.Em Jerusalém vais encontrar toda essa gente, de costumes bemdiferentes dos nossos, e precisas pensar que vais conviver com criaturasdissimuladas e perigosas.Não temos o direito de reprovar os atos de ninguém, a não ser empresença daqueles que consideramos culpados ou passíveis derecriminações, mas devo prevenir-te de que o Imperador foi compelido adesignar essa gente para serviços no exterior, considerando gravesassuntos de família, na intimidade da Corte.Que os deuses me perdoem as observações da ausência, mas é que,na tua condição de romana e mulher de senador ainda jovem, seráshomenageada pelos nossos conterrâneos distantes, homenagens quereceberás em sociedade como ramalhetes de rosas cheios de perfume,mas também cheios de espinhos...Lívia ouviu a amiga, entre espantada e pensativa, exclamando emvoz discreta, como quem quisesse desfazer uma dúvida:- Mas, o pretor Sálvio não é homem idoso?- Estás enganada. É pouco mais moço que Flamínio, mas os seusapuros de cavalheiro fazem da sua personalidade um tipo de soberbaaparência.- Como poderei levar a bom termo os meus deveres, no caso de mecercarem as perfídias sociais, tão comuns em nosso tempo, sem agravar oestado espiritual de meu esposo?- Confiemos na providência dos deuses - murmurou Calpúrnia,deixando transparecer a fé magnífica do seu coração maternal.Mas, as duas não conseguiram prosseguir na conversação. Umruído mais forte denunciava a aproximação de Públio e Flamínio, queatravessavam o vestíbulo, procurando-as." Emannuel,"...- Então? - exclamou Flamínio, bem humorado, assomando à porta,com malicioso sorriso. - Entre a costura e a palestra, deve sofrer areputação de alguém nesta sala, porque já dizia meu pai que mulhersozinha pensa sempre na família; mas, se está com outra, pensa logonos... outros.Um riso sadio e geral coroou as suas palavras alegres, enquantoPúblio exclamava contente:- Estejamos sossegados, minha Lívia, porque tudo está pronto e anosso inteiro contento. O Imperador prontificou-se a auxiliar-nosgenerosamente com as suas ordens diretas, e, daqui a três dias, umagalera nos esperará nas cercanias de Óstia, de modo a viajarmostranqüilamente.Lívia sorriu satisfeita e confortada, enquanto do apartamento dapequena Flávia assomavam duas cabeças risonhas, preparando-seFlamínio para receber nos braços, de uma só vez, os dois filhinhos.- Venham cá, ilustres marotos! Porque fugiram ontem das aulas?Hoje recebi queixa do ginásio, nesse sentido, e estou muito contrariadocom esse procedimento...Plínio e Agripa ouviram a reprimenda paterna. desapontados,respondendo o mais velho, com humildade:- Mas, papai, eu não sou culpado. Como o senhor sabe, o Plíniofugiu dos exercícios, obrigando-me a sair para procurá-lo.- Isso é uma vergonha para você, Agripa - exclamou Flamínio,paternalmente -, sua idade não permite mais a participação nastraquinadas de seu irmão.Ia a cena nessa altura, quando Calpúrnia interveio apaziguando:- Tudo está muito certo, mas teremos de resolver o assunto em casa,porque a hora não comporta discussões entre pai e filhos.Ambos os meninos foram beijar a mão materna, como se lheagradecessem a intervenção carinhosa, e, daí a minutos, despediam-se asduas famí-" Emannuel,"lias, com a promessa de Flamínio, no sentido de acompanhar os amigosaté Óstia, nas proximidades da foz do Tibre, no dia do embarque.Decorridas aquelas setenta e duas horas de azáfama e preparativos,vamos encontrar nossas personagens numa galera confortável e elegante,nas águas de Óstia, onde ainda não existiam as construções do porto, aliedificadas mais tarde por Cláudio.Plínio e Agripa ajudavam a acomodar a pequena enferma no interior,instigados pelos pais, que os preparavam desde cedo para as delicadezasda vida social, enquanto Calpúrnia e Lívia instruíam uma serva, a respeitoda instalação do pequenino Marcus. Públio e Flamínio trocavamimpressões, a distância, ouvindo-se a recomendação do segundo, queelucidava o amigo confidencialmente:- Sabes que os súditos conquistados pelo Império muitas vezes nosolham com inveja e despeito, tornando-se preciso nunca desmerecermosda nossa posição de patrícios.Algumas regiões da Palestina, segundo os meus própriosconhecimentos, estão infestadas de malfeitores e é necessário estejasprecavido contra eles, principalmente na tua marcha em demanda deJerusalém. Leva contigo, tão logo aportes com a família, o maior númerode escravos para a tua garantia e dos teus, e, na hipótese de ataques, nãohesites em castigar com severidade e aspereza.Públio recebeu a exortação, atenciosamente, e, daí a minutos,movimentavam-se ambos no interior da nave, onde o viajante interpelava ochefe dos serviços:- Então, Áulus, tudo está pronto?- Sim, Ilustríssimo. Apenas aguardamos as vossas ordens para apartida. Quanto aos nossos trabalhos, podeis ficar tranqüilo, porqueescolhi a dedo os melhores cartagineses para o serviço de remos." Emannuel,"...Com efeito, começaram ali as últimas despedidas. As duas senhorasabraçavam-se com lágrimas enternecidas e afetuosas, enquanto seexpressavam promessas de perene lembrança e votos aos deuses pelatranqüilidade geral.Derradeiros abraços comovidos e largava a galera suntuosa, onde abandeira da águia romana tremulava orgulhosa, ao sopro suave dasvirações marinhas. Os ventos e os deuses eram favoráveis, porque, embreve, ao esforço hercúleo dos escravos no ritmo dos remos poderosos,os viajantes contemplavam de longe a fita esverdeada da costa italiana,como se avançassem na massa liquida para as vastidões insondáveis doInfinito.Transcorria a viagem com o máximo de serenidade e calma.Públio Lentulus, não obstante a beleza da paisagem na travessia doMediterrâneo e a novidade dos aspectos exteriores, considerada amonotonia dos seus afazeres na vida romana, junto dos numerososprocessos do Estado, tinha o coração cheio de sombras. Debalde a esposaprocurara aproximar-se do seu espírito irritado, buscando tanger assuntosdelicados de família, com o fim de conhecer e suavizar-lhe os íntimosdissabores. Experimentava ele a impressão de que caminhava paraemoções decisivas do desenrolar de sua existência. Conhecera parte daÁsia, porque, na primeira mocidade, havia servido um ano naadministração de Esmirna, de modo a integrar-se, da melhor maneira, nomecanismo dos trabalhos do Estado, mas não conhecia Jerusalém, onde oesperavam como legado do Imperador, para a solução de vários problemasadministrativos de que fôra incumbido junto ao governo da Palestina.Como encontraria o tio Sálvio, mais moço que seu pai? Há muitosanos não o via pessoalmente; entretanto, era pouco mais velho do que elepróprio. E aquela Fúlvia, leviana e caprichosa, que lhe desposara o tio notorvelinho dos seus numerosos es-" Emannuel,"cândalos sociais, tornando-se quase indesejável no seio da família?Recordava mais íntimos pormenores do passado, abstendo-se, todavia, decomunicar à mulher as mais penosas expectativas. Refletindo, igualmente,na situação da esposa e dos dois filhinhos, encarava com ansiedade osprimeiros obstáculos à sua permanência na Judeia, na qualidade depatrícios, mas também como estrangeiros, considerando que as amizadesque os aguardavam eram problemáticas.Entre as suas cismas e as preces da esposa, estava a terminar atravessia do Mediterrâneo, quando chamou a atenção do seu servo deconfiança, nestes termos:- Comênio, dentro em pouco estaremos às portas de Jerusalém;mas, antes que isso se verifique, temos de realizar pequena marcha,depois do ponto de desembarque, reclamando-se muito cuidado de minhaparte, com relação ao transporte da família. Esperam-se algunsrepresentantes da administração da Judeia, mas certamente estaremosacompanhados dos teus cuidados, pois vamos aportar a região para mimdesconhecida e estrangeira. Reúne todos os servos sob as tuas ordens, demodo a garantirmos absoluta segurança pelo caminho.- Senhor, contai com o nosso desvelo e dedicação - respondeu oservidor, entre respeitoso e comovido.No dia imediato Públio Lentulus e comitiva desembarcavam empequeno porto da Palestina, sem incidentes dignos de menção.Esperavam-no, além do legado do Procurador, alguns lictores enumerosos soldados pretorianos, comandados por Sulpício Tarquinius,munido de todos os aprestos e elementos exigidos para uma viagemtranqüila e confortável, pelas estradas de Jerusalém.Após o necessário repouso, a caravana pôs-se a caminho,parecendo antes expedição militar que" Emannuel,"...transporte de simples família, através das estações periódicas dedescanso.As armaduras dos cavalos, os capacetes romanos reluzindo ao Sol,os trajes extravagantes, palanquins enfeitados, animais de tração e oscarros pesados da bagagem davam idéia de expedição triunfal, emboraazafamada e silenciosa.Ia a caravana a bom termo, quando, nas proximidades de Jerusalém,ocorre um imprevisto. Um corpo sibilante cortou o ar fino e claro, alojando-se no palanquim do senador, ouvindo-se ao mesmo tempo um gritoestridente e lamentoso. Minúscula pedra ferira levemente o rosto de Lívia,determinando grande alarme na massa enorme de servos e cavaleiros.Entre os carros e os animais que pararam assustados, numerososescravos rodeiam os senhores, buscando, com precipitação, inteirar-se dofato. Sulpício Tarquinius, num golpe de vista, dá largas ao galope damontada, buscando prender um jovem que se afastava, receoso, dasmargens do caminho. E, culpado ou não, foi um rapaz dos seus dezoitoanos apresentado aos viajantes, para a punição necessária.Públio Lentulus recordou a recomendação de Flamínio, momentosantes da partida, e, sopitando os seus melhores sentimentos de tolerânciae generosidade, resolveu prestigiar a sua posição e autoridade aos olhosde quantos houvessem de lhe seguir a permanência naquele paísestrangeiro.Ordenou providências imediatas aos lictores que o acompanhavam,e ali mesmo, ante as claridades mordentes do Sol a pino e sob o olharespantado de algumas dezenas de escravos e centuriões numerosos,determinou que vergastassem sem comiseração o rapaz, pela sualeviandade.A cena era desagradável e dolorosa.Todos os servos acompanhavam, compungidos, o estalar do chicoteno dorso seminu daquele homem ainda moço, que gemia, em soluçosdolorosos, sob o látego despótico e cruel. Ninguém ousou con-" Emannuel,"trariar as ordens impiedosas, até que Lívia, não conseguindo contemplarpor mais tempo a rudeza do espetáculo, pediu ao esposo, em voz súplice:- Basta, Públio, porque os direitos da nossa condição não traduzemdeveres de impiedade...O senador considerou, então, a sua severidade excessiva e rigorosa,ordenou a suspensão do castigo doloroso, mas, a uma pergunta deSulpício, quanto ao novo destino do infeliz, falou em tom rude e irritado:- Para as galeras!...Os presentes estremeceram, porque as galeras significavam a morteou a escravidão para sempre.O desventurado amparava-se, exânime, nas mãos dos centuriõesque o rodeavam, porém, ao ouvir as três palavras da sentençacondenatória, deitou ao seu orgulhoso juiz um olhar de ódio supremo e desupremo desprezo No âmago de sua alma coriscavam relâmpagos devingança e de cólera, mas a caravana pôs-se novamente a caminho, entreo ruído dos carros pesados e o tilintar das armaduras, ao movimento doscavalos fogosos e irrequietos.A chegada a Jerusalém ocorreu sem outros fatos dignos de nota.A novidade dos aspectos e a diversidade das criaturas é queimpressionaram os viajantes no seu primeiro contacto com a cidade, cujafisionomia, com raras mudanças, no decurso de todos os séculos, foisempre a mesma, triste e desolada, preludiando as paisagens ressequidasdo deserto.Pilatos e sua mulher encontravam-se nas solenidades de recepçãoao senador, que ia, como legado de Tibério, junto da administração daprovíncia, encarnando o princípio da lei e da autoridade.Sálvio Lentulus e a esposa, Fúlvia Prócula, receberam os parentescom aparato e prodigalidade. Homenagens numerosas foram prestadas aPúblio Lentulus e sua mulher, salientando-se que Lívia, fosse em razão dasadvertências de Calpúrnia, ou em vista de sua acuidade psicológica,reconheceu" Emannuel,"...logo que naquele ambiente não palpitavam os corações generosos esinceros dos seus amigos de Roma, experimentando, no íntimo, dolorosasensação de amargura e ansiedade. Verificara, com satisfação, que a suapequena Flávia havia melhorado, não obstante a viagem exaustiva, mas, aomesmo tempo, torturava-se percebendo que Fúlvia não possuía amplitudede coração para acolhê-los sempre com carinho e bondade. Notara que, aolhe apresentar a filhinha enferma, a patrícia vaidosa fizera um movimentoinstintivo de recuo, afastando sua pequena Aurélia, filha única do casal, docontacto com a família, apresentando pretextos inaceitáveis. Bastou umdia de permanência naquele lar estranho, para que a pobre senhoracompreendesse a extensão das angústias que a esperavam ali, calculandoos sacrifícios que a situação exigiria do seu coração sensível e carinhoso.E não era somente o quadro familiar, nos seus detalhesimpressionantes, que lhe torturava a mente trabalhada de expectativaspungentes. Deparando-se-lhe Pôncio Pilatos, no próprio momento de suachegada, sentira, no íntimo, que havia encontrado um rude e poderosoinimigo.Forças ignoradas do mundo intuitivo falavam ao seu coração demulher, como se vozes do plano invisível lhe preparassem o espírito paraas provas aspérrimas dos dias vindouros. Sim, porque a mulher, símbolodo santuário do lar e da família, na sua espiritualidade, pode, muitas vezes,numa simples reflexão, devassar mistérios insondáveis dos caracteres edas almas, na tela espessa e sombria das reencarnações sucessivas edolorosas.Públio Lentulus, ao contrário, não experimentou as mesmasemoções da companheira. A diversidade do ambiente modificara-lhe umtanto as disposições íntimas, sentindo-se moralmente confortado em faceda tarefa que lhe competia desempenhar no cenário novo de suasatividades de homem de Estado." Emannuel,"No segundo dia de permanência na cidade, tão logo regressara daprimeira visita às instalações da Torre Antônia, onde se aquartelavamcontingentes das forças romanas, observando o movimento dos casuístase dos doutores, no Templo famoso de Jerusalém, foi procurado por umhomem humilde e relativamente moço, que apresentava como credencial,tão somente, o coração aflito e carinhoso de pai.Obedecendo mais aos imperativos de ordem política que aosentimento de generosidade do coração, o senador quebrou as etiquetasdo momento, recebendo-o no seu gabinete privado, disposto a ouvi-lo.Um judeu, pouco mais velho que ele próprio, em atitude derespeitosa humildade e expressando-se dificilmente, de modo a fazer-secompreendido, falou-lhe nestes termos:- Ilustríssimo senador, sou André, filho de Gioras, operário modestoe paupérrimo, não obstante numerosos membros de minha família terematribuições importantes no Templo e no exercício da Lei. Ouso vir até vós,reclamando o meu filho Saul, preso, há três dias, por vossa ordem eremetido diretamente para o cativeiro Perpétuo das galeras... Peço-vosclemência e caridade na reparação dessa sentença de terríveis efeitos paraa estabilidade da minha casa pobre... Saul é o meu primogênito e neledeponho toda a minha esperança paternal... Reconhecendo-lhe ainexperiência da vida, não venho inocentá-lo da culpa, mas apelar para avossa clemência e magnanimidade, em face da sua ignorância de rapaz,jurando-vos, pela Lei, encaminhá-lo doravante pela estrada do deverausteramente cumprido...Públio recordou a necessidade de fazer sentir a autoridade da suaposição, revidando com o orgulho característico das suas resoluções:- Como ousa discutir minhas determinações, quando guardo aconsciência de haver praticado a" Emannuel,"...justiça? Não posso modificar minhas deliberações, estranhando que umjudeu ponha em dúvida a ordem e a palavra de um senador do Império,formulando reclamações desta natureza.- Mas, senhor, eu sou pai...- Se o és, porque fizeste de teu filho um vagabundo e um inútil?- Não posso compreender os motivos que levaram meu pobre Saul acomprometer-se dessa maneira, mas, juro-vos que ele é o braço-forte dosmeus trabalhos de cada dia.- Não me cabe examinar as razões do teu sentimento, porque aminha palavra esta dada irrevogavelmente.André de Gioras mirou Públio Lentulus de alto a baixo, ferido na suaemotividade de pai e no seu sentimento de homem, esfuziando de dor e decólera reprimida. Seus olhos úmidos traíam íntima angústia, em facedaquela recusa formal e inapelável, mas, desprezando todos osconvencionalismos humanos, falou com orgulhosa firmeza:- Senador, eu desci da minha dignidade para implorar vossacompaixão, mas aceito a vossa recusa ignominiosa!...Acabais de comprar, com a dureza do coração, um inimigo eterno eimplacável!... Com os vossos poderes e prerrogativas, podeis eliminar-mepara sempre, seja reduzindo-me ao cativeiro ou condenando-me a perecerde morte infame; mas eu prefiro afrontar a vossa soberbia orgulhosa!...Plantastes, agora, uma árvore de espinhos, cujo fruto, um dia, amargarásem remédio o vosso coração duro e insensível, porque a minha vingançapode tardar, mas, como a vossa alma inflexível e fria, ela será tambémindefectível e tenebrosa!...O judeu não esperou a resposta do seu interlocutor, amargamenteemocionado com a veemência daquelas palavras, saindo do recinto apasso firme e de rosto erguido, como se houvesse obtido os melhoresresultados da sua curta e decisiva entrevista." Emannuel,"Num misto de orgulho e ansiedade, Públio Lentulus experimentou,naquele instante, as mais variadas gamas de sentimento a dominar-lhe ocoração Desejou determinar a prisão imediata daquele homem que lheatirara em rosto as mais duras verdades, experimentando,simultaneamente, o desejo de chamá-lo a si, prometendo-lhe o regresso dofilho querido, a quem protegeria com o seu prestígio de homem de Estado;mas a voz se lhe sumiu na garganta, naquele complexo de emoções que denovo lhe roubara a paz e a serenidade. Dolorosa opressão paralisou-lhe ascordas vocais, enquanto no coração angustiado repercutiam as palavrascandentes e amarguradas.Uma série de reflexões penosas enfileirou-se no seu mundo íntimo,assinalando os mais fortes conflitos de sentimentos. Também ele não erapai e não procurava reter os filhinhos perto do coração? Aquele homempossuía as mais fortes razões para considerá-lo um espírito injusto eperverso.Recordou o sonho inexplicável que, relatado a Flamínio, fôra a causaindireta da sua vinda para a Judeia e considerou as lágrimas decompunção que derramara, em contacto com o turbilhão de lembrançasperniciosas da sua existência passada, em face de tantos crimes edesvios.Retirou-se do gabinete com a solução mental da questão em foco,ordenando que trouxessem o jovem Saul à sua presença, com a urgênciaque o caso requeria, a fim de recambiá-lo à casa paterna, e modificando,dessa forma, as penosas impressões que havia causado ao pobre André.Suas ordens foram expedidas sem delongas; todavia, esperava-odesagradável surpresa, com as informações dos funcionários a quemcompetia a providência de semelhantes serviços.O jovem Saul desaparecera do cárcere, fazendo crer numa fugadesesperada e imprevista. Os informes foram transmitidos à autoridadesuperior, sem que Públio Lentulus viesse a saber que os maus" Emannuel,"...servidores do Estado negociavam, muitas vezes, os prisioneiros jovenscom os ambiciosos mercadores de escravos, que operavam nos centrosmais populosos da capital do mundo.Informado de que o prisioneiro se evadira, o senador sentiu aconsciência aliviada das acusações que lhe pesavam no intimo. Afinal,pensou, tratava-se de caso de somenos importância, porquanto o rapaz,distante do cárcere, procuraria imediatamente a casa paterna; e,consolidando sua tranqüilidade, expediu ordens aos dirigentes do serviçode segurança, recomendando se abstivessem de qualquer perseguição aoforagido, a quem se levaria, oportunamente, o indulto da lei.O caminho de Saul, todavia, fôra bem outro.Em quase todas as províncias romanas funcionavam terríveisagrupamentos de malfeitores, que, vivendo à sombra da máquina doEstado, haviam-se transformado em mercadores de consciências.O moço judeu, na sua juventude promissora e sadia, fora vítimadessas criaturas desalmadas. Vendido clandestinamente a poderososescravocratas de Roma, em companhia de muitos outros, foi embarcadono antigo porto de Jope, com destino à Capital do Império.Antecipando-nos na cronologia de nossas narrativas, vamosencontrá-lo, daí a meses, num grande tablado, perto do Fórum, onde sealinhavam, em penosa promiscuidade, homens, mulheres e crianças,quase todos em míseras condições de nudez, tendo cada qual um pequenocartaz pendurado ao pescoço. Olhos chispando sentimentos de vingança,lá se encontrava Saul, seminu, um barrete de lã branca a cobrir-lhe acabeça e com os pés descalços levemente untado de gesso.Junto daquela massa de criaturas desventuradas, passeava umhomem de ar ignóbil e repulsivo, que exclamava em voz gritante para amultidão de curiosos que o rodeava:" Emannuel,"- Cidadãos, tende a bondade de apreciar... Como sabeis, não tenhopressa em dispor da mercadoria, porque não devo a ninguém, mas aquiestou para servir aos ilustres romanos!...E, detendo-se no exame desse ou daquele infeliz, prosseguia na suaarenga grosseira e insultuosa:- Vede este mancebo!... É um exemplar soberbo de saúde,frugalidade e docilidade. Obedece ao primeiro sinal. Atentai bem para oaprumo da sua carne firme. Doença alguma terá força sobre o seuorganismo.Examinai este homem! Sabe falar o grego corretamente e é bem feitoda cabeça aos pés!...Nesses pruridos de negocista, continuou a propaganda individual,em face da multidão de compradores que o assediava, até que tocou a vezdo jovem Saul, que deixava transparecer, no aspecto miserável, os seusímpetos de cólera e sentimentos tigrinos:- Atentai bem neste mancebo! Acaba de chegar da Judeia, como omais belo exemplar de sobriedade e saúde, de obediência e de força. Éuma das mais ricas amostras deste meu lote de hoje. Reparai na suamocidade, ilustres romanos!... Dar-vo-lo-ei ao preço reduzido de cinco milsestércios!...O jovem escravo contemplou o mercador com a alma esfervilhantede ódio e alimentando, intimamente, as mais ferozes promessas devingança. Seu semblante judeu impressionou a multidão que estacionavana praça, aquela manhã, porque um intenso movimento de curiosidade lhecercou a figura interessante e originalíssima.Um homem destacou-se da multidão, procurando o mercador, aquem se dirigiu à meia voz, nestes termos:- Flacus, meu senhor necessita de um rapaz elegante e forte para asbigas dos filhos. Esse" Emannuel,"...jovem me interessa. Não o darias ao preço de quatro mil sestércios?- Vá lá - murmurou o outro em tom de negócio -, meu interesse ébem servir à ilustre clientela.O comprador era Valério Brutus, capataz dos serviços comuns dacasa de Flamínio Severus, que o incumbira de adquirir um escravo novo ede boa aparência, destinado ao serviço das bigas dos filhos, nos grandesdias das festas romanas.Foi assim que, imbuído de sentimentos ignóbeis e deploráveis, Saul,o filho de André, foi introduzido, pelas forças do destino, junto de Plínio ede Agripa, na residência da família Severus, no coração de Roma, ao preçomiserável de quatro mil sestércios." Emannuel,"50IIIEm casa de PilatosA secura da natureza, onde se ergue Jerusalém, proporciona àcélebre cidade uma beleza melancólica, tocada de pungente monotonia.Ao tempo do Cristo, seu aspecto era quase igual ao que hoje seobserva. Apenas a colina de Mizpa, com as suas tradições suaves e lindas,representava um recanto verde e alegre, onde repousavam os olhos doforasteiro, longe da aridez e da ingratidão das paisagens.Todavia, devemos registrar que, na época da permanência de PúblioLentulus e de sua família, Jerusalém acusava novidades e esplendores davida nova. As construções herodianas pululavam nos seus arredores,revelando novo senso estético por parte de Israel. A predileção pelosmonólitos talhados na rocha viva, característica do antigo povo israelita,fora substituída pelas adaptações do gosto judeu às normas gregas,renovando as paisagens interiores da famosa cidade. A jóia maravilhosaera, porém, o Templo, todo novo na época de Jesus. Sua reconstrução fôradeterminada por Herodes, no ano de 21, notando-se que os pórticoslevaram oito anos a edificar-se, e considerando-se, ainda," Emannuel,"...que os planos da obra grandiosa, continuados vagarosamente no curso dotempo, somente ficaram concluídos pouco antes de sua completadestruição.Nos pátios imensos, reunia-se diariamente a aristocracia dopensamento israelita, localizando-se ali o fórum, a universidade, o tribunale o templo supremo de toda uma raça.Os próprios processos civis, além das discussões engenhosas deordem teológica, ali recebiam as decisões derradeiras, resumindo-se notemplo imponente e grandioso todas as ambições e atividades de umapátria.Os romanos, respeitando a filosofia religiosa dos povos estranhos,não participavam das teses sutis e dos sofismas debatidos e examinadostodos os dias, mas a Torre Antônia, onde se aquartelavam as forçasarmadas do Império, dominava o recinto. facilitando a fiscalizaçãoconstante de todos os movimentos dos sacerdotes e das massaspopulares.Públio Lentulus, após o incidente do prisioneiro, que continuava aconsiderar como episódio sem importância, retomava certa serenidadepara o desempenho de suas obrigações consuetudinárias. Os aspectosáridos de Jerusalém tinham, para seus olhos cansados, encanto novo, noqual o pensamento repousava das numerosas e intensas fadigas de Roma.Quanto a Lívia, esta guardava o coração voltado para os seus afetosdistantes, analisando a aridez dos espíritos ao alcance do seu convívio.Como por milagre, a pequena Flávia havia melhorado, observando-senotável transformação das feridas que lhe cobriam a epiderme. Mas, asatitudes hostis de Fúlvia, que lhe não perdoava a simplicidade encantadorae os dotes preciosos de inteligência, sem perder ensejo para jogar-lhe emrosto pequeninas indiretas, por vezes irônicas e mordentes, deixavam-lheo espírito aturdido num turbilhão de expectativas alucinantes.Semelhantes acontecimentos" Emannuel,"eram desconhecidos do marido, a quem a pobre senhora se abstinha derelatar os seus mais íntimos desgostos.Esses fatos, porém, não eram os elementos que mais contribuíampara acabrunhá-la naquele ambiente de penosas incertezas.Fazia uma semana que se encontravam na cidade e notava-se que,contrariando talvez seus hábitos, Pôncio Pilatos comparecia diariamente àresidência do pretor, a pretexto de predileção pela palestra com ospatrícios recém-chegados da Corte. Horas a fio eram empregadas nessemister, mas Lívia, com as secretas intuições da sua alma, compreendia ospensamentos inconfessáveis do governador a seu respeito, recebendo deespírito prevenido os seus amáveis madrigais e alusões menos diretas.Nessas aproximações de sentimentos que prenunciam a preamardas paixões, via-se também a contrariedade de Fúlvia, tocada de venenosociúme em face da situação que a atitude de Pilatos ia criando. Por detrásdaqueles bastidores brilhantes do cenário da amizade artificial, com queforam recebidos, Públio e Lívia deveriam compreender que existia ummamei de paixões inferiores, que, certo, haveria de tisnar a tranqüilidadede suas almas. Não entenderam, todavia, os detalhes da situação epenetraram de espírito confiante e ingênuo no caminho escuro e dolorosodas provações que Jerusalém lhes reservava.Reafirmando incessantes obséquios e multiplicando gentilezas,Pilatos fez questão de oferecer um jantar, no qual toda a família sereconfortasse e a fraternidade e a alegria fossem perfeitasNo dia aprazado, Sálvio e Públio, acompanhados pelos seus,compareciam à residência senhorial do governador, onde Cláudiaigualmente os esperava com um sorriso bondoso e acolhedor.Lívia estava pálida, no seu traje simples e despretensioso, sendo denotar que, contra toda a ex-" Emannuel,"...pectativa do esposo, fizera questão de levar a filhinha doente, nopressuposto de que o seu cuidado materno representasse alguma coisacontra as pretensões do conquistador que o seu coração de mulheradivinhava, através das atitudes indiscretas e atrevidas do anfitriãodaquela noite.O jantar servia-se em condições essencialíssimas, segundo oshábitos mais rigorosos e elegantes da Corte.Lívia estava aturdida com aquelas solenidades a se desdobraremnos mais altos requintes da etiqueta romana, costumes esses oriundos deum meio do qual ela e Calpúrnia sempre se haviam afastado, na suasimplicidade de coração. Numerosa falange d escravos se movimentavaem todas as direções, como verdadeiro exército de servidores, em face detão reduzido número de comensais.Depois dos pratos preparados, chegam os vocadores recitando osnomes dos convivas, enquanto os infertores trazem os pratos dispostoscom singular simetria. Os convidados recostam-se então no triclínio,forrado de penugens cetinosas e pétalas de flores. As carnes são trazidasem pratos de ouro e os pães em açafates de prata, multiplicando-se osservos para todos os misteres, inclusive aqueles que deviam provar asiguarias, a fim de se certificar do seu paladar, para que fossem servidascom a máxima confiança. Os copeiros servem um falerno precioso eantigo, misturado de aromas, em taças incrustadas de pedras preciosas,enquanto outros servos os acompanham apresentando, em galhetas deprata, a água tépida ou fria, ao sabor dos convidados. Junto dos leitos,onde cada comensal deve recostar-se molemente, conservam-se escravosjovens, trajados com apuro e ostentando na fronte gracioso turbante,braços e pernas seminus, cada qual com a sua função definida. Algunsagitam nas mãos longos ramos de mirto, afugentando as moscas,enquanto outros, curvados aos pés dos convi-" Emannuel,"vas, são obrigados a limpar discretamente os sinais da sua gula eintemperança.Quinze serviços diferentes sucederam-se através dos esforços dosescravos dedicados e humildes, quando, após o repasto, brilham os salõescom centenas de tochas, ouvindo-se agradáveis sinfonias. Servos jovens ebem postos executam danças apaixonadas e voluptuosas em homenagemaos seus senhores, mimoseando-lhes os sentimentos inferiores com a suaarte exótica e espontânea, e, somente não foi levado a efeito um númerode gladiadores, segundo o costume nos grandes banquetes da Corte,porque Lívia, de olhos súplices, pedira que poupassem naquela festa odoloroso espetáculo do sangue humano.A noite era das mais cálidas de Jerusalém, motivo por que, findos ojantar e as cerimônias complementares, a caravana de amigos,acompanhada agora de Sulpício Tarquinius, se dirigia para o amplo e bemposto terraço, onde jovens escravas faziam deliciosa música do Oriente.- Não julgava encontrar em Jerusalém uma noite patrícia como esta -exclamou Públio, sensibilizado, dirigindo-se ao governador com respeitosacortesia. - Devo à vossa bondade fidalga e generosa a satisfação de revivero ambiente e a vida inesquecíveis da Corte, onde os romanos distantesguardam o coração e o pensamento.- Senador, esta casa vos pertence - replicou Pilatos com intimidade. -Ignoro se a minha sugestão ser-vos-á agradável, mas só teríamos razãopara agradecer aos deuses, se nos concedêsseis a honrosa alegria de voshospedar aqui, com os vossos dignos familiares. Acredito que a residênciado pretor Sálvio não vos oferece o necessário conforto, e, acrescendo acircunstância do íntimo parentesco que liga minha mulher à esposa devosso tio, sinto-me à vontade para fazer este oferecimento, sem quebra denossos costumes, em sociedade." Emannuel,"...- Lá isso não, exclamou por sua vez o pretor, que acompanharaatento a gentileza da oferta. - Eu e Fúlvia nos opomos à realização dessamedida - e, acenando confiante para a consorte, terminava a suaponderação -, não é verdade, minha querida?Fúlvia, porém, deixando transparecer uma ponta de contrariedade,redargüiu, com surpresa de todos os presentes:- De pleno acordo. Públio e Lívia são nossos hóspedes efetivos;contudo, não podemos esquecer que o objetivo de sua viagem se prende àsaúde da filhinha, objeto de todas as nossas preocupações no momento,sendo justo que os não privemos de qualquer recurso que se venha averificar, a favor da pequena enferma...E dirigindo-se instintivamente para o banco de mármore, ondedescansava a doentinha, exclamou com escândalo geral:- Aliás, esta menina representa uma séria preocupação para todosnós. Sua epiderme dilacerada acusa sintomas invulgares, recordando.. -Mas, não conseguiu terminar a exposição de seus receiosescrupulosos, porque Cláudia, alma nobre e digna, constituindo umaantítese da irmã que o destino lhe havia dado, compreendendo a situaçãopenosa que os seus conceitos iam criando, adiantou-se-lhe redargüindo:- Não vejo razões que justifiquem esses temores; suponho apequena Flávia muito melhor e mais forte. Quero crer, até, que bastará oclima de Jerusalém para a sua cura completa.E avançando para a doentinha, como quem desejasse desfazer adolorosa impressão daquelas observações indelicadas, tomou-a nosbraços, osculando-lhe o rosto infantil, coberto de tons violáceos de maldisfarçadas feridas.Lívia, que trazia o semblante afogueado pela humilhação daspalavras de Fúlvia, recebeu a gentileza como bálsamo precioso para assuas inquieta-" Emannuel,"ções maternas; quanto a Públio, este, amargamente surpreendido,considerou a necessidade de reaver a sua serenidade e energia máscula,dissimulando o desgosto que o episódio lhe causara, retomando a direçãoda palestra, sobremaneira comovido:- É verdade, amigos. A saúde da minha pobre Flávia representa oobjeto primordial da nossa longa viagem até aqui. Resolvidos osproblemas do Estado, que me trouxeram a Jerusalém, há alguns dias queexamino a possibilidade de me localizar em qualquer região do interior, demodo que a filhinha possa recuperar o precioso equilíbrio orgânico,aspirando um ar mais puro.- Pois bem - replicou Pilatos, com segurança -, em assuntos declima, sou aqui um homem entendido. Há seis anos que me encontronestas paragens em função do cargo e tenho visitado quase todos osrecantos da província e das regiões vizinhas, tendo motivos para afiançarque a Galileia está em primeiro plano. Sempre que posso repousar doslabores intensos que aqui me prendem, busco imediatamente a nossa vilados arredores de Nazaré, para gozar a serenidade da paisagem e as brisasdeliciosas do seu lago imenso. Concordo em que a distância é muitolonga, mas a verdade é que, se permanecesse nas cercanias da cidade,nas minhas estações de repouso, perderia o tempo, atendendo àssolicitações incessantes dos rabinos do templo, sempre a braços cominumeráveis pendências. Ainda agora, Sulpício terá de partir, a fim desuperintender alguns trabalhos de reparação da nossa residência, poistencionamos seguir para ali dentro de pouco tempo, a refazer as energiasesgotadas na luta cotidiana.Já que a minha hospedagem não vos será necessária em Jerusalém,quem sabe teremos o prazer de hospedar-vos, mais tarde, na vila a que merefiro?- Nobre amigo - exclamou o senador, agradecido -, devo poupar-vostanto trabalho, mas," Emannuel,"...ficar-vos-ei imensamente grato se o vosso amigo Sulpício providenciar emNazaré a aquisição de uma casa confortável e simples, que me sirva,reformando-a de conformidade com os nossos hábitos familiares, e ondepossamos residir despreocupadamente por alguns meses.- Com o máximo prazer.- Muito bem - atalhou Cláudia, com bondade, enquanto Fúlvia maldissimulava venenoso despeito -, ficarei incumbida de adaptar a nossa boaLívia à vida campestre, onde a gente se sente tão bem em contacto diretocom a Natureza.- Desde que se não transformem em judias... - disse o senador, bemhumorado, enquanto todos sorriam alegremente.Neste comenos, ouvido sobre os detalhes dos serviços que lheseriam confiados em dias próximos, Sulpício Tarquinius, homem daconfiança do governador, sentiu-se com a liberdade de intervir no assunto,exclamando, com surpresa para quantos o ouviam:- E por falar de Nazaré, já ouvistes falar do seu profeta?- Sim - continuou -, Nazaré possui agora um profeta que vemrealizando grandes coisas.- Que é isso, Sulpício? - perguntou Pilatos, ironicamente - pois nãosabes que dos judeus nascem profetas todos os dias? Acaso as lutas notemplo de Jerusalém se verificam por outra coisa? Todos os doutores daLei se consideram inspirados pelo Céu e cada qual é dono de uma novarevelação.- Mas, esse, senhor, é bem diferente.- Estarás, acaso, convertido a uma nova fé?- De modo algum, mesmo porque compreendo o fanatismo e aobcecação dessas miseráveis criaturas; mas fiquei realmente intrigadocom a figura impressionante de um Galileu ainda moço, quando passava,há alguns dias, por Cafarnaum.Ao centro de uma praça, acomodada em bancos improvisados, feitosde pedra e de areia, vi consi-" Emannuel,"derável multidão que lhe ouvia a palavra, em êxtase de admiração ecomoção...Eu também, como se fôra tocado de força misteriosa e invisível,sentei-me para ouvi-lo.De sua personalidade, extraordinária de beleza simples, vinha um""não sei quê"", dominando a turba que se aquietava, de leve, ouvindo-lhe aspromessas de um eterno reinado... Seus cabelos esvoaçavam às brisas datarde mansa, como se fossem fios de luz desconhecida nas claridadesserenas do crepúsculo; e de seus olhos compassivos parecia nascer umaonda de piedade e comiseração infinitas. Descalço e pobre, notava-se-lhe alimpeza da túnica, cuja brancura se casava à leveza dos seus traçosdelicados. Sua palavra era como um cântico de esperança para todos ossofredores do mundo, suspenso entre o céu e a terra, renovando ospensamentos de quantos o escutavam... Falava de nossas grandezas econquistas como se fossem coisas bem miseráveis, fazia amargasafirmativas acerca das obras monumentais de Herodes, em Sebasto,asseverando que acima de César está um Deus Todo-Poderoso,providência de todos os desesperados e de todos os aflitos... No seuensinamento de humildade e amor, considera todos os homens comoirmãos bem-amados, filhos desse Pai de misericórdia e justiça, que nósnão conhecemos...A voz de Sulpício estava saturada do tom emocional característicodos sentimentos filhos da verdade.O auditório se contagiara da comoção de sua narrativa, escutando-lhe a palavra com o maior interesse.Pilatos, todavia, sem perder o fio de suas vaidades de governador,interrompeu-o, exclamando:- Todos irmãos! Isso é um absurdo. A doutrina de um Deus úniconão é novidade para nós outros, nesta terra de ignorantes; mas, nãopodemos concordar com esse conceito de fraternidade" Emannuel,"...irrestrita. E os escravos? E os vassalos do Império? Onde ficam asprerrogativas do patriciado?O que mais me admira, porém - exclamou com ênfase, dirigindo-separticularmente ao narrador -, é que, sendo tu um homem prático edecidido, te tenhas deixado levar pelas palavras loucas desse novoprofeta, misturando-te com a turba para ouvi-lo. Não sabes que a anuênciade um lictor pode significar enorme prestígio para as idéias dessehomem?- Senhor - respondeu Sulpício, desapontado -, eu próprio não saberiaexplicar a razão de minhas observações daquela tarde. Considerei,igualmente, de pronto, que as doutrinas por ele pregadas são subversivase perigosas, por igualarem os servos aos senhores, mas observei,também, as suas penosas condições de pobreza, consideradas por seusdiscípulos e seguidores como um estado alegre e feliz. o que, de algummodo, não constitui motivo de receio para as autoridades provinciais.Além disso, essas pregações não prejudicam os camponeses,porque são feitas geralmente nas horas de ócio e descanso, no intervalodos trabalhos de cada dia, notando-se igualmente que os seuscompanheiros prediletos são os pescadores mais ignorantes e maishumildes do lago.- Mas, como te deixaste empolgar assim por esse homem? - retornouPilatos, com energia.- Enganais-vos, quanto a isso - respondeu o lictor, mais senhor de si- não me sinto impressionado, como supondes, tanto assim que, notando-lhe a originalidade simples e formosa, não lhe reconheço privilégiossobrenaturais e acredito que a ciência do Império elucidará o fato que vounarrar, respondendo à vossa argüição do momento.Não sei se conheceis Copônio, velho centurião destacado na cidadea que me referi, mas cumpre-me cientificar-vos do fato por mim observado.Depois que a voz do profeta de Nazaré havia deixado uma doce quietudena paisagem, o meu conhe-" Emannuel,"cido apresentou-lhe o filhinho moribundo, implorando caridade para acriança que agonizava. Vi-o elevar os olhos radiosos para o firmamento,como se obsecrasse a bênção dos nossos deuses e, depois, notei quesuas mãos tocavam o menino, que, por sua vez, parecia haverexperimentado um fluxo de vida nova, levantando-se de súbito, a chorar ebuscando o carinho paterno, após descansar no profeta os olhinhosenternecidos...- Mas, até centuriões já se metem com os judeus nas suasperlengas? Preciso comunicar-me com as autoridades de Tiberíades,sobre esses fatos - exclamou o governador, visivelmente contrariado.- O caso é curioso - disse Públio Lentulus, intrigado com a narrativa.- A verdade, contudo, meu amigo - objetou Pilatos, dirigindo-se a ele-, é que nestas paragens nascem religiões todos os dias. Este povo émuito diverso do nosso, reconhecendo-se-lhe visível deficiência deraciocínio e senso prático. Um governador, aqui, não pode deixar-seempolgar pelas figuras e sim manter rígidos os princípios, no sentido desalvaguardar a soberania inviolável do Estado. É por esse motivo que,atendendo às sábias determinações da sede do governo, não me detenhonos casos isolados, para tão somente ponderar as razões dos sacerdotesdo Sinédrio, que representam o órgão do poder legítimo, apto a harmonizarconosco a solução de todos os problemas de ordem política e social.Públio dava-se por satisfeito com o argumento, mas as senhoraspresentes, com exceção de Fúlvia, pareciam fundamente impressionadascom a descrição de Sulpício, inclusive a pequenina Flávia, que lhe beberaas palavras com o máximo de curiosidade infantil.Um véu de preocupações obscurecera a facécia de todos ospresentes, mas o governador não se resignou com a atitude geral,exclamando:" Emannuel,"...- Ora esta! um lictor que, em vez de fazer a justiça a nosso bem, agecontra nós próprios, obscurecendo o nosso ambiente alegre, merecesevera punição por suas narrativas inoportunas!...Um riso geral seguiu-lhe a palavra ruidosa e leve, enquantorematava:- Desçamos ao jardim para ouvir nova música, desanuviando ocoração desses aborrecimentos imprevistos.A idéia foi aceita com geral agrado.A pequena Flávia foi instalada pela dona da casa em apartamentoconfortável, e, em poucos minutos, os presentes se dividiam em trêsgrupos distintos, através das alamedas do jardim, aclarado de tochasbrilhantes, ao som de músicas caprichosas e lascivas.Públio e Cláudia falavam da paisagem e da natureza; Pilatosmultiplicava gentilezas junto de Lívia, enquanto Sulpício se colocava aolado de Fúlvia, tendo o pretor Lentulus resolvido permanecer no arquivo,examinando algumas obras de arte.Distanciando-se propositadamente dos demais grupos, ogovernador notava a palidez da companheira que, naquela noite, se lhefigurava mais sedutora e mais bela.O respeito que a sua formosura discreta lhe infundia nalma, pareciaaumentar, naquela hora, o ardor do coração apaixonado.- Nobre Lívia - exclamou com emoção -, não posso guardar por maistempo os sentimentos que as vossas virtudes cheias de beleza meinspiraram. Sei da natural repulsa de vossa alma digna, em face de minhaspalavras, mas lamento não me compreendais o coração tocado dessaadmiração que me avassala!...- Também eu - revidou a pobre senhora, com dignidade e energiaespontâneas - lastimo haver inspirado ao vosso espírito semelhantepaixão. Vossas palavras me surpreendem amarga-" Emannuel,"mente, não só porque partem de um patrício revestido das elevadasresponsabilidades de procurador do Estado, como por considerar aamizade confiante e nobre que vos consagra o meu esposo.- Mas, em assuntos do coração - atalhou ele, solícito - não podemprevalecer as formalidades da convenção política, mesmo as maiselevadas. Tenho dos meus deveres a mais alta compreensão e sei encarara solução de todos os problemas do meu cargo, mas não me recordo ondevos teria visto antes!... a realidade é que, há uma semana, tenho o coraçãodilacerado e oprimido... Encontrando-vos, parecia deparar-se-me estaimagem adorada e inesquecida. Tudo fiz por evitar esta cena desagradávele penosa, mas, confesso que uma força invencível me confunde ocoração!...- Enganais-vos, senhor! Entre nós não pode existir outro laço, alémdo inspirado pelo respeito à identidade de nossas condições sociais. Setendes em tão alta conta as vossas obrigações de ordem política, nãodeveis olvidar que o homem público deve cultivar as virtudes da vidaprivada, incentivando, em si mesmo, a veneração e a incorruptibilidade daprópria consciência.- Mas, a vossa personalidade me faz esquecer todos essesimperativos. Onde vos teria visto, afinal, para que me sentisse empolgadodesta maneira?- Calai-vos, pelos deuses! - murmurou Lívia, assustada eempalidecida. - Nunca vos vi, antes de nossa chegada a Jerusalém, e apelopara o vosso cavalheirismo de homem, a fim de me poupardes estasreferências que me amarguram!... Tenho razões para crer na vossa venturaconjugal, junto de uma mulher digna e pura, tal como a vejo, reputandouma loucura as propostas que vossas palavras me deixam entrever...Pilatos ia prosseguir na sua argumentação, quando a pobre senhora,amargamente surpreendida, sentiu-se desfalecer. Debalde mobilizou ela" Emannuel,"...as suas energias vitais, com o fim de evitar o delíquio.Presa de singular abatimento, encostou-se a uma árvore do jardim,onde se desenrolava a palestra que acabamos de ouvir. Receando asconseqüências, o governador tomou-lhe a mão delicada e mimosa,torturado pelos seus inconfessáveis pensamentos, mas, ao seu contactoligeiro, a natureza orgânica de Lívia parecia reagir com decisão einquebrantável firmeza.Recobrando as forças, fez com a cabeça um leve sinal deagradecimento, enquanto Públio e Cláudia se acercavam de ambos,renovando-se a palestra geral, com a satisfação de todos.Todavia, a cena provocada pelas extravasões de afeto dogovernador não ficou circunscrita apenas aos dois atores que a viveramintensamente.Fúlvia e Sulpício acompanharam-na em seus mínimos detalhes,através dos claros abertos na ramagem sombria.- Ora esta! - exclamou o lictor para a companheira, observando asminudências da palestra que acabamos de descrever. - Então, já perdesteas boas graças do procurador da Judeia?A essa pergunta, Fúlvia, que por sua vez não tirava os olhos da cena,estremeceu convulsivamente, dando guarida aos mais largos sentimentosde ciúme e despeito.- Não respondes? - continuava Sulpício, gozando o espetáculo. -Porque me recusas tantas vezes, se tenho para oferecer-te um sentimentoprofundo de dedicação e lealdade?A interpelada continuou em silêncio, no seu posto de observação,rugindo de cólera íntima, quando viu que o governador guardava, entre assuas, a mão exânime da companheira, pronunciando palavras que seusouvidos não escutavam, mas os seus sentimentos inferiores presumiamadivinhar naquele colóquio inesperado." Emannuel,"Tão logo, porém, Cláudia e Públio figuraram no cenário, Fúlviavoltou-se para o companheiro, murmurando com voz cava:- Acederei a todos os teus desejos, se me auxiliares numcometimento.- Qual?- O de levarmos ao senador, em tempo oportuno, o conhecimento dainfidelidade de sua mulher.- Mas, como?- Primeiramente, evitarás a instalação de Públio em Nazaré, paralevá-la mais distante, de modo a dificultar as relações entre Lívia e ogovernador, por ocasião de sua ausência de Jerusalém, porque estouadivinhando que ela desejará transferir-se para Nazaré, em breves dias. Emseguida, procurarei interferir, pessoalmente, de maneira que sejasdesignado para proteger o senador na sua estação de repouso e, investidonesse cargo, encaminharás os acontecimentos para consecução denossos planos. Isso feito, saberei recompensar teus esforços e bonsserviços de sempre, com a minha dedicação absoluta.O lictor ouviu a proposta, silenciando, indeciso. Mas a interlocutora,como se estivesse ansiosa por selar a aliança sinistra, interrogou em vozfirme:- Tudo combinado?- De pleno acordo!... - respondeu Sulpício, já resoluto.E as duas personificações do despeito e da lascívia reuniram-se àcaravana fraterna, com a máscara das alegrias aparentes, depois deconcluído o pacto tenebroso.As últimas horas foram consagradas às despedidas, com aafabilidade exterior do convencionalismo social.Lívia absteve-se de relatar ao esposo a cena penosa do jardim,considerando não somente a sua" Emannuel,"...necessidade de repouso íntimo, como também a importância social daspersonalidades em jogo, prometendo a si mesma evitar, a todo transe,qualquer expressão menos digna no terreno do escândalo pelas palavras." Emannuel,"66IVNa GalileiaNo dia imediato a esses acontecimentos, às primeiras horas damanhã, Públio Lentulus foi procurado, na intimidade do seu gabineteparticular, por Fúlvia, que se lhe dirigiu, criminosamente, nestes termos:- Senador, o ascendente de nossas ligações familiares obriga-me aprocurar-vos para tratar de um assunto desagradável e doloroso, mas, nasminhas experiências de mulher, cumpre-me aconselhá-lo a resguardar suaesposa da insídia dos próprios amigos, pois que, ainda ontem, tiveoportunidade de surpreendê-la em íntimo colóquio com o governador...O interpelado estranhou aquela atitude insólita, grosseira, contráriaa todos os seus métodos de homem de bem.Repeliu dignamente a investida, encarecendo a nobreza moral desua esposa, passando Fúlvia a relatar-lhe, com os mais exaltados floreiosde sua imaginação doentia, a cena da véspera, nas suas mínimasminudências." Emannuel,"...O senador ficou pensativo, mas sentiu-se com a precisa coragemmoral para repelir a insinuação caluniosa.- Pois bem - disse ela, terminando a denúncia -, muito longe levais avossa confiança e boa fé. Um homem nunca perde por ouvir os conselhosda experiência feminina. A prova de que Lívia caminha na estrada larga daprevaricação tê-la-eis muito breve, porquanto ela há-de preferir a partidaimediata para Nazaré, onde o governador buscará encontrá-la.E, dizendo-o, retirou-se apressadamente, deixando o senador algodesalentado e compungido, pensando nos corações mesquinhos que orodeavam, porque, no tribunal da consciência, não se sentia disposto aaceitar idéia que viesse conspurcar a valorosa nobreza de sua mulher.Imenso véu de sombras cobriu-lhe o espírito sensível e afetuoso.Sentiu que, em Jerusalém, conspiravam contra ele todas as forçastenebrosas do seu destino, experimentando vasto deserto no coração.Ali, não encontraria a palavra prudente e generosa de um amigocomo Flamínio, com quem pudesse desabafar as suas profundas mágoas.Absorto nessas meditações angustiosas, não viu que as pétalas dashoras rodopiavam incessantes, nos torvelinhos do tempo. Só muito depoispercebeu o vozerio de um dos serviçais de confiança, vindo a saber queSulpício Tarquinius lhe solicitava o obséquio de uma entrevista particular,pedido a que atendeu com o máximo de atenção.Admitido ao interior do gabinete, o lictor referiu-se, sem preâmbulos,aos fins da visita, explicando com desembaraço:- Senador, honrado com a vossa confiança no caso de vossatransferência para uma estação de repouso, venho sugerir-vos oarrendamento de rica propriedade pertencente a um nosso compatrício,nos arredores de Cafarnaum, encantadora cidade da" Emannuel,"Galileia, situada no caminho de Damasco. É verdade que já escolhestesNazaré, mas, ao longo da planície de Esdrelon, as casas confortáveis sãomuito raras, acrescendo que seríeis obrigado a enormes dispêndios emserviços de remodelação e benfeitorias. Em Cafarnaum, porém, o caso édiferente. Tenho ali um amigo, Caio Gratus, decidido a arrendar por tempoir determinado a sua esplêndida vila, que é uma herdade provida de todo oconforto, com pomares preciosos, num ambiente de absoluto sossego.O senador ouvia o preposto de Pilatos como se o espírito lhepairasse noutra parte; mas, como se tivesse a atenção subitamentedespertada, exclamou, na atitude de quem argumenta consigo mesmo:- De Jerusalém a Nazaré, temos setenta milhas... Onde ficaCafarnaum?...- Muito distante de Nazaré - obtemperou o lictor, com segundaintenção.- Está bem, Sulpício - respondeu Públio, com ares de quem tomouuma resolução íntima -, estou muito agradecido pela tua gentileza, que nãoesquecerei de recompensar em tempo oportuno. Aceito a tua sugestão quereputo sensata, mesmo porque, de fato, não me pode interessar aaquisição definitiva de qualquer imóvel na Galileia, atenta a necessidadede regressar a Roma, dentro em breve. Ficas autorizado a concluir onegócio, porquanto me louvo nas tuas informações, descansando,confiadamente, no teu conhecimento do assunto.Secreta satisfação transpareceu nos olhos de Sulpício, que sedespediu com fingido reconhecimento.Públio Lentulus descansou novamente os cotovelos na mesa detrabalho, submerso em profundas cismas.Aquela sugestão de Sulpício chegava no instante psicológico desuas angustiosas cogitações, porque, em face dessa nova providência,conseguiria instalar a família longe de qualquer influência da" Emannuel,"...casa do procurador da Judeia, salvando, assim, a sua reputação dossalpicos ignominiosos da maledicência.A denúncia de Fúlvia, todavia, desdobrava sucessivas preocupaçõesno seu íntimo. Fosse pelo inopinado da calúnia, ou pelo espírito deperversidade com que a mesma fôra urdida, seu pensamento mergulhouem ansiosas expectativas.À noite daquele mesmo dia, após o jantar, vamos encontrá-lo a sóscom Lívia, no terraço da residência do pretor, que, por sua vez, seausentara de casa por algumas horas, em companhia dos seus familiares,para atender a imperativos de certas pragmáticas.Notando-lhe no rosto os sinais evidentes de profunda contrariedade,rompeu a esposa com a encantadora intimidade do seu coração feminino:- Querido, pesa-me ver-te assim, dobrado ao jugo de tamanhosdesgostos, quando esta longa viagem deveria restituir-nos a tranqüilidadenecessária ao desenvolvimento dos teus encargos... Ouso pedir queapresses a nossa mudança de Jerusalém para um ambiente mais calmo,onde nos sintamos mais a sós, fora deste círculo de criaturas cujoshábitos não são os nossos, e cujos sentimentos desconhecemos. Quandopartiremos para Nazaré?...- Para Nazaré? - repetiu o senador, com voz irritada e sombria, comose o tocasse o espírito venenoso do ciúme, lembrando, involuntariamente,as acusações infundadas de Fúlvia.- Sim - prosseguiu Lívia, súplice e carinhosa -, pois não foram essasas providências ontem aventadas?- É verdade, querida! - exclamou Públio, já pesaroso, voltando a sidos maus pensamentos que havia abrigado por um instante - mas resolvidepois instalarmo-nos em Cafarnaum, contrariando as últimas decisões..." Emannuel,"E tomando a mão da companheira, como se buscasse um bálsamopara a alma ferida, sussurrou-lhe de manso:- Lívia, és tudo que me resta neste mundo!... Nossos filhos são floresda tua alma, que os deuses nos deram para minha alegria!... Perdoa-me,querida... Há quanto tempo tenho vivido absorto e taciturno, esquecendo oteu coração sensível e carinhoso! Parece-me estar despertando agora deum sono muito doloroso e muito profundo, mas despertando com a almareceosa e oprimida. Andam-me, no íntimo, amargurados vaticínios... Temoperder-te, quando quisera encerrar-te no peito, guardando-te no coraçãoeternamente... Perdoa-me...Enquanto ela o contemplava, surpresa, seus lábios sequiosos lhecobriam as mãos de beijos ardentes. E não foram apenas os ósculosafetuosos que brotaram nesse transbordamento de carinhos. Uma lágrimalhe gotejou dos olhos cansados, misturando-se às flores da sua afeição.- Que é isso, Públio? Choras? - exclamou Lívia, enternecida eangustiada.- Sim! Sinto os gênios do mal cercando-me o coração e a mente. Meuíntimo está povoado de visões sombrias, prenunciando o fim da nossafelicidade; mas eu sou um homem e sou forte... Querida, não me negues atua mão para atravessarmos juntos o caminho da vida, porque, contigo,vencerei o próprio impossível!...Ela estremeceu em face dessas observações, que lhe não eramfamiliares.Num relance, retrocedeu à noite anterior, considerando oatrevimento do governador, que dignamente repelira, experimentando, aolado da aflição pelo companheiro, soberana tranqüilidade de consciênciae, tomando ligeiramente as mãos do esposo, levou-o a um canto doterraço, onde se postou à frente de uma harpa harmoniosa e antiga,cantando" Emannuel,"...baixinho, como se a sua voz, naquela noite, fosse o gorjeio de uma cotoviaapunhalada:""Alma gêmea da minhalma,Flor de luz da minha vida,Sublime estrela caídaDas belezas da amplidão!...Quando eu errava no mundoTriste e só, no meu caminho,Chegaste, devagarinho,E encheste-me o coração.Vinhas na bênção dos deuses,Na divina claridade,Tecer-me a felicidade,Em sorrisos de esplendor!...És meu tesouro infinito,Juro-te eterna aliança,Porque eu sou tua esperança,Como és todo o meu amor!""Tratava-se de uma composição dele, na mocidade, tão ao gosto dajuventude romana, dedicada a ela própria, e que o seu talento musicalguardava sempre, para circunstâncias especiais do seu sentimento.Naquele instante, porém, sua voz tinha tonalidades diferentes, comose houvera encerrado na garganta uma toutinegra divina, exilada dosprados brilhantes do Paraíso.Na última nota, tocada de tristeza e angústia indefiníveis, Públiotomou-a brandamente de encontro ao peito, forte e resoluto, como sequisesse reter para sempre, no coração, a sua jóia de inimaginável pureza.Agora, era Lívia a chorar copiosamente nos braços do companheiro,e este a beijá-la nos transportes de sua alma leal e, por vezes, impulsiva.Depois daquele arroubo emotivo, Públio sentiu-se desanuviado esatisfeito." Emannuel,"- Porque não regressarmos a Roma quanto antes? - perguntou Lívia,como se o seu espírito estivesse clarificado por luzes proféticas, comrelação aos dias futuros. - Junto dos filhinhos retomaríamos nossasobrigações habituais, cientes de que a luta e o sofrimento estão em todosos lugares e de que toda alegria significa, neste mundo, uma bênção dosdeuses!..O senador ponderou a proposta da companheira, estabelecendo aanálise de toda a situação no seu íntimo, obtemperando, por fim:- Tua observação é justa e providencial, minha querida, mas, quediriam os nossos amigos quando soubessem que, depois de tantossacrifícios com a viagem, havíamos resolvido a permanência de apenasuma semana em região tão distante? E a nossa doentinha? Seu organismonão tem reagido de modo eficaz, em contacto com o novo clima?Estejamos confiantes e tranqüilos. Apressarei a partida para Cafarnaum e,em breves dias, estaremos em novo ambiente, segundo os nossosdesejos.Assim aconteceu, efetivamente.Reagindo às vibrações perniciosas do meio, Públio Lentulusprovidenciou a solução de todos os problemas atinentes à mudança,fazendo ouvidos moucos às indiretas de Fúlvia, enquanto Lívia,escudando-se na superioridade de sua alma, buscava insular-se dentro dopequeno mundo de amor dos dois filhinhos, fugindo à presença dogovernador, que não desistira dos seus assédios, e junto de quem a figuranobre de Cláudia sabia despertar em todos a mais sincera simpatia.Duas servas foram admitidas ao serviço do casal, na perspectiva desua transferência para Cafarnaum; não que fossem indispensáveis aodesdobramento das atividades domésticas, em face dos servosnumerosos trazidos de Roma; contudo, o senador examinara a utilidadedessa providência, considerando que ele e a família viriam a necessitar deum contacto mais direto com os costumes e" Emannuel,"...dialetos do povo, reconhecida a circunstância de que ambas conheciam aGalileia.Ana e Sêmele, recomendadas por amigos do pretor, foram recebidasao serviço de Lívia, que as acolheu com bondade e simpatia.Trinta dias se passaram nos preparativos da projetada viagem.Sulpício Tarquinius, estimulado pelas vantagens dos própriosinteresses materiais, não perdeu ensanchas de captar a plena confiançado senador, organizando a propriedade com minúcias de atenção egentileza, provocando o contentamento e o elogio de todos.Nas vésperas da partida, Públio Lentulus compareceu ao gabinetede Pilatos, para o agradecimento das despedidas.Depois de saudá-lo cordialmente, exclamou o governador, comforçada jovialidade:- É pena, caro amigo, que as circunstâncias o conduzam paraCafarnaum, quando esperava ter a satisfação de retê-lo nas vizinhanças denossa casa, em Nazaré.Mas, enquanto permanecer na Galileia, em vez de minhas habituaisvisitas a Tiberíades, procurarei o norte para nos avistarmos.Públio manifestou-lhe sua gratidão e reconhecimento e, quando sepreparava para sair, o procurador da Judeia continuou, em tom afetuoso econselheiral:- Senador, não só como responsável pela situação dos patrícios naprovíncia, como também na qualidade de amigo sincero, não posso deixá-lo partir à mercê do acaso, tão somente na companhia de escravos eservos de confiança. Acabo de designar Sulpício, homem que me mereceinteira confiança, para dirigir os serviços de segurança que vos sãodevidos. Além dele, mais um lictor e alguns centuriões partirão paraCafarnaum, onde permanecerão às suas ordens." Emannuel,"Públio agradeceu cortesmente, sentindo-se confortado com ooferecimento, embora a pessoa do governador lhe causasse poucasimpatia íntima.Afinal, terminados os aprestos de viagem, a compacta caravana sepôs em movimento, atravessando os territórios de Judá e as montanhasverdes da Samaria, em demanda da sua estação de destino.Alguns dias foram gastos através das estradas que contornammuitas vezes as águas leves e límpidas do Jordão.Prestes a chegar a Cafarnaum, à distância de meio quilômetro decaminho, entre árvores frondosas, junto ao lago de Genesaré, umaherdade imponente aguardava as nossas personagens para a sua estaçãode repouso.Sulpício Tarquinius desvelara-se nas mais íntimas minudências, noque dizia com o bom gosto da época.A propriedade estava situada em pequena elevação de terreno,rodeada de árvores frutíferas dos climas frios, pois, há dois mil anos, aGalileia, hoje transformada em poeirento deserto, era um paraíso deverdura. Nas suas paisagens maravilhosas, desabrochavam flores detodos os climas. Seu lago imenso, formado pelas águas cristalinas do riosagrado do Cristianismo, era talvez a mais piscosa bacia em todo omundo, descansando as suas vagas mansas e preguiçosas ao pé dosarbustos ricos de seiva, cujas raízes se tocavam do perfume agreste doseloendros e das flores silvestres. Nuvens de aves cariciosas cobriam, embandos compactos, aquelas águas feitas de um prodigioso azul celeste,hoje encarceradas entre rochedos adustos e ardentes.Ao norte, as eminências nevosas do Hermon figuravam-se em linhasalegres e brancas, divisando-se ao ocidente as alevantadas planícies daGaulanítida e da Pereia, envolvidas de sol, formando, juntas, um grandesocalco que se alonga de Cesareia de Filipe para o sul." Emannuel,"...Uma vegetação maravilhosa e única, operando a emanaçãoincessante do ar mais puro, temperava o calor da região, onde o lago selocaliza, muito abaixo do nível do Mediterrâneo.Públio e sua mulher sentiram uma onda de vida nova, que seuspulmões aspiravam a longos haustos.Entretanto, o mesmo não acontecia à pequenina Flávia, cujo estadogeral piorava ao extremo, contra todas as previsões.Agravaram-se as feridas que lhe cobriam o corpo magrinho e apobre criança não conseguia mais arredar pé do leito, onde se conservavaem profunda prostração.Acentuava-se, desse modo, a angústia paterna que, embalde,recorreu a todos os meios para melhorar as condições da doentinha.Um mês havia transcorrido em Cafarnaum, onde, mais em contactocom os dialetos do povo, já não lhes era desconhecida a fama das obras edas pregações de Jesus.Vezes inúmeras, pensou Públio em dirigir-se ao taumaturgo, a fim desolicitar a sua intervenção a favor da filhinha, atendendo a um apelosecreto do coração. Reconhecia no íntimo, porém, que semelhante atituderepresentava humilhação para a sua posição política e social, aos olhosdos plebeus e vassalos do Império, examinando as conseqüências quepoderiam advir de tal procedimento.Não obstante essas ponderações, permitia que numerosos servosde sua casa assistissem, aos sábados, às pregações do profeta de Nazaré,inclusive Ana, que se tomara de respeitosa veneração por aquele a quemos humildes chamavam Mestre.Dele teciam os escravos as mais encantadoras histórias, nas quais osenador nada via, além dos arrebatamentos instintivos da alma popular, sebem não deixasse de o surpreender a opinião lisonjeira de um homemcomo Sulpício." Emannuel,"Uma tarde, porém, os padecimentos da pequenina haviam atingido oauge. Além das feridas que, de muitos anos, se haviam multiplicado nocorpinho gracioso, outras úlceras surgiram nas regiões da epiderme, antesvioláceas, transformando-lhe os órgãos delicados numa pústula viva.Públio e Lívia, intimamente consternados, aguardavam um fimpróximo.Nesse dia, após o jantar muito simples, Sulpício demorou-se atémais tarde, a pretexto de confortar o senador com a sua presença.É assim que vamos encontrá-los ambos no terraço espaçoso, ondePúblio lhe fala nestes termos:- Meu amigo, que me diz desses rumores aqui propalados acerca doprofeta de Nazaré? Habituado a não dar ouvidos à palavra ignorante dopovo, gostaria de ouvir novamente as suas impressões sobre esse homemextraordinário.- Ah! sim - diz Sulpício, como quem se esforça por se lembrar dealguma coisa -, intrigado com aquela cena que há tempos presenciei e quetive ocasião de relatar na residência do governador, tenho procuradoseguir as atividades desse homem, na medida das minhas possibilidadesde tempo.Alguns compatrícios nossos o têm na conta de visionário, opiniãoque compartilho no que se refere às suas prédicas, cheias de parábolasincompreensíveis, mas não no que respeita às suas obras, que nos tocamo coração.O povo de Cafarnaum anda maravilhado com os seus milagres eposso assegurar-vos que, em torno dele, já se formou uma comunidade dediscípulos dedicados, que se dispõem a segui-lo por toda parte.- Mas, afinal, que ensina ele às multidões? - perguntou Públio,interessado.- Prega alguns princípios que ferem as nossas mais antigastradições, como, por exemplo, a doutrina do amor aos próprios inimigos ea fraternidade absoluta entre todos os homens. Exorta os" Emannuel,"ouvintes a buscarem o reino de Deus e a sua justiça, mas não se trata deJúpiter, o senhor de nossas divindades; ao contrário, fala de um Paimisericordioso e compassivo, que nos segue do Olimpo e para quem estãopatentes as nossas idéias mais secretas. De outras vezes, o profeta deNazaré se expressa acerca desse reino do céu com apólogos interessantese incompreensíveis, nos quais há reis e príncipes criados pela suaimaginação sonhadora, que nunca poderiam ter existido.O pior, todavia - rematou Sulpício, emprestando grave entono àspalavras -, é que esse homem singular, com esses princípios de um novoreino, avulta na mentalidade popular como um príncipe surgido parareivindicar prerrogativas e direitos dos judeus, dos quais, talvez, queiraassumir a direção algum dia...- Que providência adotam as autoridades da Galileia, no examedessas idéias revolucionárias? - indagou o senador, com maior interesse- Aparecem já os primeiros indícios de reação, por parte doselementos mais ligados a Ântipas. Há alguns dias, quando passei porTiberíades, notei que se formavam algumas correntes de opinião, nosentido de levar o assunto à consideração das altas autoridades.- Bem se vê - exclamou o senador - que se trata de simples homemdo povo, a quem o fanatismo dos templos judaicos encheu de pruridos dereivindicações injustificáveis. Suponho que a autoridade administrativanada tem a recear de semelhante pregador, mestre de uma humildade efraternidade incompatíveis com as conquistas contemporâneas. Por outrolado, ao ouvir de tua boca a descrição dos seus feitos, sinto que essehomem não pode ser criatura tão vulgar, como vimos supondo.- Desejaríeis conhecê-lo mais de perto? - perguntou Sulpício,atencioso." Emannuel,"- De modo algum - respondeu Públio, alardeando superioridade. - Talcometimento de minha parte viria quebrar a compostura dos deveres queme competem como homem de Estado, desmoralizando-se minhaautoridade perante o povo. Aliás, considero que os sacerdotes epregadores da Palestina deveriam fazer estágios de trabalho e de estudo,na sede do governo imperial, a fim de renovar-se esse espírito deprofetismo que aqui se observa em toda parte. Em contacto com oprogresso de Roma, haveriam de reformar suas concepções íntimasacerca da vida, da sociedade, da religião e da política.Enquanto os dois mantêm essa palestra sobre a personalidade e osensinos do mestre de Nazaré, penetremos no interior da casa.No quarto da doentinha, vamos encontrar Lívia e Ana pensando asferidas que cobriam a epiderme da pequenina enferma, agoratransformadas em uma só úlcera generalizada.Ana, coração bondoso e meigo, pouco mais velha que sua senhora,se havia transformado em companheira predileta, no círculo dos seusafazeres domésticos. Naquele deserto de corações, era naquela serva,inteligente e afetuosa, que a alma sensível de Lívia encontrara um oásispara as confidências e lutas de cada dia.- Ah! senhora - exclamava a serva, com sincero carinho a lhetransparecer dos olhos e dos gestos -, guardo no coração profunda fé nosmilagres do Mestre, acreditando mesmo que, se levássemos esta criançapara receber a bênção de suas mãos, sarariam as chagas e ela ressurgiriapara o seu amor maternal... Quem sabe?- Infelizmente - respondeu Lívia, com ponderação e tristeza - eu nãome atreveria a lembrar essa providência, consciente de que Públio haveriade recusá-la, dada a nossa posição social; mas, francamente, desejaria veresse homem caridoso e extraordinário de que sempre me falas." Emannuel,"...- Ainda no último sábado, senhora - respondeu a serva, animadapelas palavras de simpatia que acabava de ouvir -, o profeta de Nazarérecebeu nos braços numerosas crianças.Ao sair da barca de Simão, nós o esperávamos em massa, para lhebeber os ensinos consoladores. Precipitamo-nos para ele, ansiosos todosde receber ao mesmo tempo os sagrados eflúvios da sua presençaconfortadora, mas, nesse dia, muitas mães compareceram à prédica,conduzindo os filhinhos que se confundiam em algazarra ensurdecedora,como um bando de passarinhos inconscientes. Simão e mais algunsdiscípulos começaram a repreender severamente os meninos, a fim de quenão perdêssemos o encanto suave e doce das palavras do Mestre. Mas,quando menos esperávamos, sentou-se Ele na pedra costumeira eexclamou com indizível ternura: - ""Deixai vir a mim os pequeninos, porqueo reino do céu lhes pertence."" Houve, então, prodigioso silêncio entre osouvintes de Cafarnaum e os peregrinos que haviam chegado de Corazim ede Magdala, enquanto aqueles petizes trêfegos acorriam ao seu regaçoamoroso, beijando-lhe a túnica com indefinível alegria.Muitas crianças eram enfermas que as mães conduziam àspregações do lago, para que se curassem de mazelas antigas, ou dedoenças consideradas incuráveis...- O que me contas é de uma beleza edificante - exclamou Lívia,profundamente emocionada -; entretanto, possuindo à mão todos osrecursos materiais, sinto que não poderei receber os altos benefícios doteu Mestre.- E é pena, senhora, porque muitas mulheres de posição oacompanham na cidade. Não somos apenas os mais humildes quecomparecemos às suas predicações, mas numerosas senhoras dedestaque em Cafarnaum, esposas de funcionários de Herodes e depublicanos, assistem às lições carinhosas do lago, confundindo-se com ospobres e os escravos." Emannuel,"E o profeta não desdenha a ninguém. A todos convida para o reinode Deus e sua justiça. Contrariamente a todos os enviados do céu, queconhecemos, ele se esquiva dos favorecidos da sorte, para manterrelações com as criaturas mais infelizes, considerando a todos comoirmãos muito amados do seu coração...Lívia escutava a palavra da serva com atenção e embevecimento. Afigura daquele homem, famoso e bom, exercia atração singular no seuespírito.E, enquanto seus grandes olhos expressavam o maior interessepelas narrações encantadoras e simples da serva leal, não reparavamambas que a doentinha as acompanhava com aguçada curiosidade,característica das almas infantis, não obstante a febre alta que lhedevorava o organismo.Neste comenos, o senador, após as despedidas de Sulpício, busca oapartamento da pequena enferma, satisfazendo à sua ansiedade paternal.Diante dele, calam-se as duas mulheres, entregando-se tão somenteaos afazeres que as retinham junto ao leito da pequenina, agora gemendodolorosamente.Públio Lentulus debruçou-se sobre o leito da filha, com os olhosrasos de pranto.Brincou com as suas mãozinhas mirradas e feridas, fazendo-lhefestas, com o coração tocado de infinita amargura.- Filhinha, que queres hoje para dormir melhor? - perguntou com avoz estrangulada, arrancando lágrimas dos olhos de Lívia.Comprar-te-ei muitos brinquedos e muitas novidades... Dize ao papaio que desejas...Copioso suor empastava as excrescências ulcerosas da doentinha,que deixava transparecer angustiosa ansiedade. Notava-se-lhe grandeesforço, como se estivesse realizando o impossível para responder àpergunta paterna." Emannuel,"...- Fala, filhinha - murmurava Públio, sufocado, observando-lhe odesejo de expressar qualquer resposta.Buscarei tudo que quiseres... Mandarei a Roma um portador,especialmente para trazer todos os teus brinquedos...Ao cabo de visível esforço, pôde a pequenina murmurar com vozcansada e quase imperceptível:- Papai... eu quero... o profeta... de Nazaré...O senador baixou os olhos, humilhado e confundido em face doimprevisto daquela resposta, enquanto Lívia e Ana, como se fossemtocadas por força invisível e misteriosa, pelo inopinado da cena,escondiam o rosto inundado de pranto." Emannuel,"82VO Messias de NazaréO dia seguinte amanheceu trazendo as mais sérias preocupações aPúblio e sua família.Ainda cedo, vamos encontrá-lo em íntimo colóquio com a esposa,que se lhe dirige em voz súplice e afetuosa:- Considero, querido, que devias atenuar um pouco os rigores daposição em que o destino nos colocou, procurando esse homemgeneroso, para benefício de nossa filha. Todos se referem às suas ações,empolgados por sua bondade edificadora, e eu acredito que o seu coraçãose apiedará da nossa desditosa situação.O senador ouviu-a apreensivo e incerto, exclamando afinal:- Pois bem, Lívia; acederei aos teus desejos, mas só a angústia quenos vai nalma me faz transigir, de maneira tão rude, com os meusprincípios.Não procederei, todavia, conforme sugeres. Irei sozinho à cidade,como se me encontrasse em hora de simples entretenimento, passandopelo trecho do caminho que nos conduz às margens do lago, sem chegarao cúmulo de abordar pessoalmente o pro-" Emannuel,"...feta, de modo a não descer da minha dignidade social e política, e, no casode sobrevir alguma circunstância favorável, far-lhe-ei sentir o prazer quenos causaria a sua visita, com o fim de reanimar a nossa doentinha.- Muito bem! - disse Lívia, entre confortada e agradecida - guardonalma a mais sincera e profunda fé. Vai sim, querido!... Ficarei rogando abênção dos céus para a nossa iniciativa. O profeta, que agora surge comoverdadeiro médico das almas, saberá que atrás da tua posição de senadordo Império, há corações que sofrem e choram!...Públio notou que a esposa se exaltava nas suas considerações,deixando-se conduzir pelo que julgava um excesso de fraqueza epieguismo; entretanto, nada lhe admoestou a respeito, em face dasamarguras do momento, suscetível de desvairar o cérebro mais forte.Deixou que as horas movimentadas do dia se escoassem com asclaridades do poente e, quando o crepúsculo entornava as suas meias-tintas na paisagem maravilhosa, saiu, fingindo distração e alheamento,como se desejasse conhecer de perto a antiga fonte da cidade, motivo deatração para todos os forasteiros.Após haver percorrido uns trezentos metros de caminho, encontroutranseuntes e pescadores, que se recolhiam e o encaravam com maldisfarçada curiosidade.Uma hora passou sobre as suas amargas cogitações íntimas.Um velário imenso de sombras invadia toda a região, cheia devitalidade e de perfumes.Onde estaria o profeta de Nazaré naquele instante? Não seria umailusão a história dos seus milagres e da sua encantadora magia sobre asalmas? Não seria um absurdo procurá-lo ao longo dos caminhos,abstraindo-se dos imperativos da hierarquia social? Em todo caso, deveriatratar-se" Emannuel,"de homem simples e ignorante, dada a sua preferência por Cafarnaum epelos pescadores.Dando curso às idéias que lhe fluíam da mente incendiada e abatida,Públio Lentulus considerou dificílima a hipótese do seu encontro com omestre de Nazaré.Como se entenderiam?Não lhe interessara o conhecimento minucioso dos dialetos do povoe, certamente, Jesus lhe falaria no aramaico comumente usado na bacia deTiberíades.Profundas cismas entornavam-lhe do cérebro para o coração, comoas sombras do crepúsculo que precediam a noite.O céu, porém, àquela hora, era de um azul maravilhoso, enquanto asclaridades opalinas do luar não haviam esperado o fechamento absolutodo leque imenso da noite.O senador sentiu o coração perdido num abismo de cogitaçõesinfinitas, ouvindo-lhe o palpitar descompassado no peito opresso.Dolorosa emoção lhe compungia agora as fibras mais íntimas do espírito.Apoiara-se, insensivelmente, num banco de pedras enfeitado de silvas, edeixara-se ali ficar, sondando o ilimitado do pensamento.Nunca experimentara sensação idêntica, senão no sonhomemorável, relatado unicamente a Flamínio.Recordava-se dos menores feitos da sua vida terrestre, afigurando-se-lhe haver abandonado, temporariamente, o cárcere do corpo material.Sentia profundo êxtase, diante da Natureza e das suas maravilhas, semsaber como expressar a admiração e reconhecimento aos poderescelestes, tal a clausura em que sempre mantivera o coração insubmisso eorgulhoso.Das águas mansas do lago de Genesaré parecia-lhe emanaremsuavíssimos perfumes, casando-se deliciosamente ao aroma agreste dafolhagem." Emannuel,"...Foi nesse instante que, com o espírito como se estivesse sob oimpério de estranho e suave magnetismo, ouviu passos brandos dealguém que buscava aquele sítio.Diante de seus olhos ansiosos, estacara personalidadeinconfundível e única. Tratava-se de um homem ainda moço, que deixavatransparecer nos olhos, profundamente misericordiosos, uma belezasuave e indefinível. Longos e sedosos cabelos molduravam-lhe osemblante compassivo, como se fossem fios castanhos, levementedourados por luz desconhecida. Sorriso divino, revelando ao mesmotempo bondade imensa e singular energia, irradiava da sua melancólica emajestosa figura uma fascinação irresistível.Públio Lentulus não teve dificuldade em identificar aquela criaturaimpressionante, mas, no seu coração marulhavam ondas de sentimentosque, até então, lhe eram ignorados. Nem a sua apresentação a Tíbério, nasmagnificências de Capri, lhe havia imprimido tal emotividade ao coração.Lágrimas ardentes rolaram-lhe dos olhos, que raras vezes haviam chorado,e força misteriosa e invencível fê-lo ajoelhar-se na relva lavada em luar.Desejou falar, mas tinha o peito sufocado e opresso. Foi quando, então,num gesto de doce e soberana bondade, o meigo Nazareno caminhou paraele, qual visão concretizada de um dos deuses de suas antigas crenças, e,pousando carinhosamente a destra em sua fronte, exclamou em linguagemencantadora, que Públio entendeu perfeitamente, como se ouvisse oidioma patrício, dando-lhe a inesquecível impressão de que a palavra erade espírito para espírito, de coração para coração:- Senador, porque me procuras? - e, espraiando o olhar profundo napaisagem, como se desejasse que a sua voz fosse ouvida por todos oshomens do planeta, rematou com serena nobreza: - Fôra melhor que meprocurasses publicamente e na hora mais clara do dia, para que pudessesadquirir," Emannuel,"de uma só vez e para toda a vida, a lição sublime da fé e da humildade...Mas, eu não vim ao mundo para derrogar as leis supremas da Natureza evenho ao encontro do teu coração desfalecido!...Públio Lentulus nada pôde exprimir, além das suas lágrimascopiosas, pensando amargamente na filhinha; mas o profeta, como seprescindisse das suas palavras articuladas, continuou:- Sim... não venho buscar o homem de Estado, superficial eorgulhoso, que só os séculos de sofrimento podem encaminhar ao regaçode meu Pai; venho atender às súplicas de um coração desditoso eoprimido e, ainda assim, meu amigo, não é o teu sentimento que salva afilhinha leprosa e desvalida pela ciência do mundo, porque tens ainda arazão egoística e humana; é, sim, a fé e o amor de tua mulher, porque a féé divina... Basta um raio só de suas energias poderosas para que sepulverizem todos os monumentos das vaidades da Terra...Comovido e magnetizado, o senador considerou, intimamente, queseu espírito pairava numa atmosfera de sonho, tais as comoçõesdesconhecidas e imprevistas que se lhe represavam no coração, querendocrer que os seus sentidos reais se achavam travados num jogoincompreensível de completa ilusão.- Não, meu amigo, não estás sonhando... - exclamou meigo eenérgico o Mestre, adivinhando-lhe os pensamentos. - Depois de longosanos de desvio do bom caminho, pelo sendal dos erros clamorosos,encontras, hoje, um ponto de referência para a regeneração de toda a tuavida.Está, porém, no teu querer o aproveitá-lo agora, ou daqui a algunsmilênios... Se o desdobramento da vida humana está subordinado àscircunstâncias, és obrigado a considerar que elas existem de toda anatureza, cumprindo às criaturas a obrigação de exercitar o poder davontade e do" Emannuel,"...sentimento, buscando aproximar seus destinos das correntes do bem e doamor aos semelhantes.Soa para teu espírito, neste momento, um minuto glorioso, seconseguires utilizar tua liberdade para que seja ele, em teu coração,doravante, um cântico de amor, de humildade e de fé, na horaindeterminável da redenção, dentro da eternidade...Mas, ninguém poderá agir contra a tua própria consciência, sequiseres desprezar indefinidamente este minuto ditoso!Pastor das almas humanas, desde a formação deste planeta, hámuitos milênios venho procurando reunir as ovelhas tresmalhadas,tentando trazer-lhes ao coração as alegrias eternas do reinado de Deus ede sua justiça!Públio fitou aquele homem extraordinário, cujo desassombroprovocava admiração e espanto.Humildade? que credenciais lhe apresentava o profeta para lhe falarassim, a ele senador do Império, revestido de todos os poderes diante deum vassalo?Num minuto, lembrou a cidade dos césares, coberta de triunfos eglórias, cujos monumentos e poderes acreditava, naquele momento,fossem imortais.- Todos os poderes do teu império são bem fracos e todas as suasriquezas bem miseráveis.As magnificências dos césares são ilusões efêmeras de um dia,porque todos os sábios, como todos os guerreiros, são chamados nomomento oportuno aos tribunais da justiça de meu Pai que está no Céu.Um dia, deixarão de existir as suas águias poderosas, sob um punhado decinzas misérrimas. Suas ciências se transformarão ao sopro dos esforçosde outros trabalhadores mais dignos do progresso, suas leis iníquas serãotragadas no abismo tenebroso destes séculos de impiedade, porque sóuma lei existe e sobreviverá aos escombros da inquietação do homem - alei do amor, instituída por meu Pai, desde o princípio da criação..." Emannuel,"Agora, volta ao lar, consciente das responsabilidades do teudestino...Se a fé instituiu na tua casa o que consideras a alegria com orestabelecimento de tua filha, não te esqueças que isso representa umagravo de deveres para o teu coração, diante de nosso Pai, Todo-Poderoso!...O senador quis falar, mas a voz tornara-se-lhe embargada decomoção e de profundos sentimentos.Desejou retirar-se, porém, nesse momento, notou que o profeta deNazaré se transfigurava, de olhos fitos no céu...Aquele sítio deveria ser um santuário de suas meditações e de suaspreces, no coração perfumado da Natureza, porque Públio adivinhou queele orava intensamente, observando que lágrimas copiosas lhe lavavam orosto, banhado então por uma claridade branda, evidenciando a sua belezaserena e indefinível melancolia..Nesse instante, contudo, suave torpor paralisou as faculdades deobservação do patrício, que se aquietou estarrecido.Deviam ser vinte e uma horas, quando o senador sentiu quedespertava.Leve aragem acariciava-lhe os cabelos e a Lua entornava seus raiosargênteos no espelho carinhoso e imenso das águas.Guardando na memória os mínimos pormenores daquele minutoinesquecível, Públio sentiu-se humilhado e diminuído, em face da fraquezade que dera testemunho diante daquele homem extraordinário.Uma torrente de idéias antagônicas represava-se-lhe no cérebro,acerca de suas admoestações e daquelas palavras agora arquivadas parasempre no âmago da sua consciência.Também Roma não possuía os seus feiticeiros? Buscou rememorartodos os dramas misteriosos da cidade distante, com as suas figurasimpressionantes e incompreensíveis." Emannuel,"...Não seria aquele homem uma cópia fiel dos magos e adivinhos quepreocupavam igualmente a sociedade romana?Deveria ele, então, abandonar as suas mais caras tradições de pátriae família para tornar-se um homem humilde e irmão de todas as criaturas?Sorria consigo mesmo, na sua presumida superioridade, examinando ainanidade daquelas exortações que considerava desprezíveis. Entretanto,subiam-lhe do coração ao cérebro outros apelos comovedores. Não falarao profeta da oportunidade única e maravilhosa? Não prometera, comfirmeza, a cura da filhinha à conta da fé ardente de Lívia?Mergulhado nessas cogitações íntimas, abriu cautelosamente aporta da residência, encaminhando-se ansioso ao quarto da enferma e, oh!suave milagre! a filhinha repousava nos braços de Lívia, com absolutaserenidade.Sobre-humana e desconhecida força mitigara-lhe os padecimentosatrozes, porque seus olhos deixavam entrever uma doce satisfaçãoinfantil, iluminando-lhe o semblante risonho. Lívia contou-lhe, então, cheiade júbilo maternal, que, em dado momento, a pequenina disseraexperimentar na fronte o contacto de mãos carinhosas, sentando-se emseguida no leito, como se uma energia misteriosa lhe vitalizasse oorganismo de maneira imprevista. Alimentara-se, a febre desapareceracontra todas as expectativas; ela já revelava atitudes de convalescentepalestrando com a mãezinha, com a graça espontânea da sua meninice.Terminado o relato, a jovem senhora concluiu com entusiasmo:- Desde que saíste, eu e Ana oramos com fervor junto da nossadoentinha, implorando ao profeta que atendesse ao teu apelo, ouvindo osnossos rogos e, agora, eis que a nossa filhinha se restabelece!... Poderá,querido, haver felicidade maior do que esta?... Ah! Jesus deve ser umemissário direto de Júpiter, enviado a este mundo" Emannuel,"em gloriosa missão de amor e de alegria para todas as almas!...Ana, porém, que escutava comovida, interveio num gestoespontâneo e incoercível, oriundo da grata satisfação daquele momento.- Não, minha senhora!... Jesus não vem da parte de Júpiter. Ele é oFilho de Deus, seu Pai e nosso Pai que está nos céus, e cujo coração estásempre cheio de bondade e misericórdia para todos os seres, conforme oMestre nos ensina. Louvemos, pois, o Todo-Poderoso, pela graça recebida,agradecendo a Jesus com uma prece de humildade...Públio Lentulus acompanhou a cena, em silêncio, intimamentecontrariado, com o verificar a intimidade estreita de sua mulher com umasimples serva da casa. Observou, com profundo desagrado, não só aespontaneidade da gratidão entusiástica de Lívia, como a intromissão deAna na conversa, o que considerava ousadia. Num relance, mobilizoutodas as reservas do seu orgulho para restabelecer a disciplina interna dasua casa, e, retomando o aspecto altivo da sua expressão fisionômica,dirigiu-se secamente à esposa.- Lívia, torna-se preciso que te coíbas destes arrebatamentos! Afinal,não vejo nada de extraordinário no que acaba de ocorrer. Nada tem faltadoà nossa doente, no tocante ao tratamento e cuidados necessários, e eralógico que esperássemos uma reação salutar do organismo, em face danossa continuada assistência.Quanto a ti, Ana - disse, voltando-se com arrogância para a servaintimidada -, acredito já cumprida a missão que te fazia demorar nestequarto, porquanto, considerando as melhoras da menina, não vejonecessidade da tua permanência junto da patroa, que trouxe de Roma asservas do seu serviço pessoal.Ana fitou compungidamente a senhora, que mostrava no rosto ossinais evidentes da sua amargura pelo imprevisto daquelas palavrasintempes-" Emannuel,"...tivas, e, fazendo ligeira e respeitosa mesura, saiu do aposento onde haviaempregado as melhores energias da sua fraternal abnegação.- Que é isso, Públio? - perguntou Lívia, fundamente comovida. -Justamente agora, quando deveríamos mostrar à dedicada serva a alegriado nosso reconhecimento, procedes com semelhante aspereza?- Tuas infantilidades obrigam-me a fazê-lo. Que dirão da matrona quese dá de alma aberta às suas escravas mais humildes? Como se haverá oteu coração com estes excessos de confiança? Noto com desgosto queentre nós existem, agora, profundas divergências. Porque essa demasiadaconfiança no profeta de Nazaré, quando ele não é superior aos magos efeiticeiros de Roma? E, além disso, onde colocas as tradições de nossasdivindades familiares, se não sabes guardar a fé em torno do altardoméstico?- Não concordo contigo, querido, nestas ponderações. Tenho plenaconvicção de que a nossa Flávia foi curada por esse homemextraordinário... No instante de sua melhora súbita, quando ela nos falavadas mãos sublimadas que a acariciavam, vi, com os meus olhos, que oleito da doentinha estava saturado de luz diferente, como nunca haviavisto, até então...- Luz diferente? Certo desvairas, depois de tantas fadigas; ou entãoestás contagiada das alucinações deste povo de fanáticos, em cujo seiotivemos a pouca sorte de cair...- Não, meu amigo, não se trata de desvario. Não obstante as tuaspalavras, que reconheço partidas do coração que mais adoro e admiro naTerra, tenho a certeza de que o Mestre de Nazaré acaba de curar nossafilhinha; e, quanto a Ana, querido, acho injusta a tua atitude, aliás, emdesacordo com a tua proverbial generosidade com os servos de nossacasa. Não podemos nem devemos esquecer que ela tem sido de umadedicação a toda prova," Emannuel,"junto de mim e de nossa filha, nestes lugares ermos. Outras podem ser assuas crenças, mas presumo que a sua conduta honesta e santificante sópode honrar o serviço de nossa casa.O senador considerou a elevação dos conceitos da mulher,sentindo-se arrependido do seu ato de impulsividade, e capitulou diante dobom-senso daquelas palavras.- Está bem, Lívia, aprecio-te a nobreza do coração e estimarei acontinuidade de Ana nos teus serviços privados; mas, não transijo no casoda cura de nossa filhinha. Não admito que se atribua ao mago de Nazaré orestabelecimento da mesma. Quanto ao mais, deverás lembrar, sempre,que me apraz saber só a mim reservada a tua confiança e intimidade. Aservos ou desconhecidos não deve o patrício, e com especialidade amatrona romana abrir as portas do coração.- Sabes como acato as tuas ordens - disse-lhe a esposa, maisconfortada, dirigindo-lhe um olhar carinhoso e agradecido - e peço-teperdoar-me se te ofendi a alma generosa e sensível!...- Não, minha querida, se existe aqui um problema de perdão, sou euquem devo pedi-lo, mas não desconheces que esta região me atormenta eapavora. Sinto-me confortado, reconhecendo a reação benéfica danatureza orgânica da nossa filhinha, porque isto significa o nossoregresso a Roma em tempo breve. Esperaremos, apenas, mais alguns dias,e amanhã mesmo pedirei a Sulpício iniciar as providências para a nossavolta.Lívia concordou com as observações do marido, acariciando afilhinha reanimada e refeita do abatimento profundo que a prostrara porespaço de muitos dias. Intimamente, agradecia, satisfeita, a Jesus, poisfalava-lhe o coração que o acontecimento era uma bênção que o Pai dosCéus lhe enviara ao espírito maternal, através das mãos caridosas esantas do Mestre." Emannuel,"...Públio, contudo, obedecendo ao impulso de suas vaidades pessoais,não desejava recordar a figura extraordinária que tivera ante os olhosdeslumbrados. Arquitetava castelos de teorias na sua imaginaçãosuperexcitada, para afastar a interferência direta daquele homem no casoda cura da filhinha, respondendo, assim, às objeções do seu próprioespírito de observador e analista meticuloso.Não podia esquecer que o profeta o envolvera em. forças ignoradas,emudecendo-lhe a voz e fazendo-o ajoelhar-se, doendo-lhe ao orgulhodespótico essa circunstância, considerada como dolorosa humilhação.Idéias martirizantes povoavam-lhe o cérebro exausto de tantas lutasinteriores e, depois de uma invocação aos gênios protetores da família, noaltar doméstico, buscou repousar das amargas fadigas íntimas.Naquela noite, todavia, sua alma experimentava as mesmasrecordações da existência pregressa, nas asas embaladoras do sonho.Viu-se vestido com as mesmas insígnias de Cônsul ao tempo deCícero, reviu as atrocidades praticadas por Públio Lentulus Sura, suaexpulsão do Consulado, as reuniões secretas de Lúcio Sergius Catilina, asperversidades revolucionárias, sentindo-se de novo levado à presençadaquele mesmo tribunal de juizes austeros e venerandos, que no sonhoanterior lhe haviam notificado o seu renascimento na Terra, em época degrandes claridades espirituais.Diante daqueles magistrados veneráveis, ostentando togas alvas deneve, experimentou amarga sensação de angústia, batendo-lhedescompassadamente o coração.O mesmo juiz respeitável levantou-se, no ambiente sublimado deluzes espirituais, exclamando:- Públio Lentulus, porque desprezaste o minuto glorioso, com o qualpoderias ter comprado" Emannuel,"a hora interminável e radiosa da tua redenção na eternidade?Estiveste, esta noite, entre dois caminhos - o do servo de Jesus e odo servo do mundo. No primeiro, o jugo seria suave e o fardo leve; mas,escolheste o segundo, no qual não existe amor bastante para lavar toda ainiquidade... Prepara-te, pois, para trilhá-lo com destemor, porquepreferiste o caminho mais escabroso, em que faltam as flores dahumildade, para atenuar o rigor dos espinhos venenosos!...Sofrerás muito, porque nessa estrada o jugo é inflexível e o fardopesadíssimo; mas agiste com liberdade de consciência, no jogo amplo dascircunstâncias de tua vida... Conduzido a uma oportunidade maravilhosa,perseveraste no propósito de percorrer a via amarga e dolorosa dasprovações mais ríspidas e mais agudas.Não te condenamos, para tão somente lamentar o endurecimento doteu espírito em face da verdade e da luz! Retempera todas as fibras do teu""eu"", pois enorme há-de ser, doravante, a tua luta!...Ouvia, atento, aquelas exortações comovedoras, mas, nesseinstante, despertou para a"" sensações da vida material, experimentandosingular abatimento psíquico, a par de tristeza indefinível.Ainda cedo, sua atenção foi reclamada por Lívia, que lheapresentava a pequena Flávia, convalescente e feliz. A epiderme como quese alisara, submetida a processo terapêutico desconhecido e maravilhoso,desaparecendo os tons violáceos que, anteriormente, precediam as rosasde chaga viva.O senador recuperou alguma coisa da sua serenidade íntima, com overificar as melhoras positivas da filhinha, que apertou amorosamente deencontro ao coração, exclamando mais tranqüilo:- Lívia, é bem verdade que ontem, à noite, estive com o chamadomestre de Nazaré, mas, com a lógica da minha educação e dos meusconheci-" Emannuel,"...mentos, não posso admitir seja ele o autor do restabelecimento de nossafilha.E, de seguida, passou a relatar de modo superficial osacontecimentos que já conhecemos, sem referir. todavia, os pormenoresque mais o impressionaram.Lívia ouviu atenciosamente a narrativa, mas, notando-lhe as íntimasdisposições para com o profeta, que ela considerava criatura superior evenerável, não quis externar seu pensamento em torno do assunto,receosa de um atrito de opiniões, inoportuno e injustificável. No seucoração, agradecia àquele Jesus carinhoso e compassivo, que lheatendera às angustiosas súplicas maternais e, no imo dalma, acariciava aesperança de beijar-lhe a fímbria da túnica, com humildade, emtestemunho do seu sincero reconhecimento, antes de regressar a Roma.Quatro dias decorridos, a enferma apresentava sinais evidentes deseguro restabelecimento físico, dando motivo ao mais amplo júbilo detodos os corações.Em radiosa manhã, vamos encontrar a jovem Lívia acalentando ofilhinho, prestes a completar um ano, e instruindo a criada de nomeSêmele, de origem judia, designada para velar pela criancinha, tal ointeresse que demonstrara pelo pequenino Marcus, desde o instante desua admissão ao serviço. Em dado momento, exclama a serva, apontandopara o largo caminho empedrado:- Senhora, lá vêm dois cavaleiros desconhecidos, a todo galope.Ouvindo-lhe a observação, Lívia pôde vê-los, igualmente, ao longoda estrada ampla, e logo se foi para o interior, a fim de prevenir o marido.Efetivamente, daí a minutos estacavam à porta dois cavalos suadose ofegantes. Um homem trajado à romana, em companhia de um guiajudeu, apeava rápido e bem disposto." Emannuel,"Tratava-se de Quirilius, liberto de confiança de Flamínio Severus,que vinha, em nome do patrão, trazer a Públio e família algumas noticias enumerosas lembranças.Essa surpresa amável encheu o dia de gratas recordações e sadiosprazeres, motivando horas das mais inefáveis alegrias. O nobre patrícionão esquecera os amigos distantes, e, entre as notícias confortadoras econsiderável remessa de dinheiro, vieram doces lembranças de Calpúrnia,endereçadas a Lívia e aos dois fílhinhos.Naquele dia, Públio Lentulus ocupou-se tão somente de enchernumerosos rolos de pergaminho, para mandar ao companheiro de lutanotícias minuciosas de todas as ocorrências. Entre elas estava a boa-novado restabelecimento da filhinha, atribuído ao clima adorável da Galileia.Mas, como possuía naquele valoroso descendente dos Severus uma almade irmão dedicado e fiel, a cujo coração jamais deixara de confiar as maisrecônditas emoções do seu espírito, escreveu-lhe longa carta, emsuplemento. com vistas ao Senado Romano, sobre a personalidade deJesus-Cristo, encarando-a serenamente, sob o estrito ponto de vistahumano sem nenhum arrebatamento sentimental. E, por fim, Públio e Líviaanunciavam alegremente, aos seus amigos distantes, que retornariam aRoma possivelmente dentro de um mês, dado o perfeito restabelecimentoda pequena Flávia.Terminado o longo expediente, já era tarde; mas, nesse mesmo dia,ao cair da noite, quando os dois esposos se entretinham no triclínio a releras doces palavras dos queridos ausentes, tecendo as esperanças risonhasdo breve regresso, eis que Sulpício se faz anunciar em companhia de ummensageiro de Pilatos.Atendendo-os no gabinete particular, o senador recebe a visita doemissário, que se lhe dirige, respeitosamente, nestes termos:" Emannuel,"...- Ilustríssimo, o senhor governador da Judeia participa-vos haverchegado à sua residência dos arredores de Nazaré, onde espera o gratoprazer de vossas ordens e notícias.- Agradecido! - replicou Públio, bem humorado, acrescentando: -Ainda bem que o senhor procurador não está distante, ensejando-mepouca demora em Jerusalém, no meu regresso a Roma em breves dias!...Algumas expressões protocolares foram trocadas, mas PúblioLentulus não reparou nas atitudes de Sulpício, que lhe deitava olharessignificativos." Emannuel,"98VIO raptoAo tempo do Cristo, a Galileia era um vasto celeiro que abasteciaquase toda a Palestina.Nessa época, o formoso lago de Genesaré não apresentava nível tãobaixo, como na atualidade. Todo o terreno circunvizinho era de regadio,em vista das fontes numerosas, dos canais e do serviço das noras queelevavam as águas, dando origem a uma vegetação luxuriante queenfeitava de frutos e enchia de perfumes aquelas paisagens paradisíacas.O trigo, a cevada, as abóboras, as lentilhas, os figos e as uvas eramelementos de semeadura e colheita em todo o ano, dando à vida satisfaçãoe abundância. Nas eminências da terra, misturando-se aos extensosvinhedos e olivais, elevavam-se palmeiras e tamareiras preciosas, cujosfrutos eram os mais ricos da Palestina.Em Cafarnaum, além dessas riquezas, prosperava a indústria dapesca, dada a abundância do peixe no então chamado ""Mar da Galileia"", oque resumia uma vida simples e tranqüila. Dentre todos os outros povosdos centros galileus, o de Cafar-" Emannuel,"...naum se distinguia por sua beleza espiritual, despretensiosa e singela.Consciencioso e crente, aceitava a Lei de Moisés, mas estava muito longedas manifestações hipócritas do farisaísmo de Jerusalém. Foi em virtudedessa simplicidade natural e dessa fé espontânea e sincera que apaisagem de Cafarnaum serviu de palco às primeiras lições inesquecíveise imortais do Cristianismo, em sua primitiva pureza. Ali encontrou Jesus ocarinho de corações devotados e valorosos, e foi ali que o mundoespiritual encontrou os melhores elementos para a formação da escolainolvidável, onde o Divino Mestre exemplificaria os seus ensinos.Em todas as cidades da região havia sinagogas, para que as liçõesda Lei fossem ministradas aos sábados, dia que todos os indivíduosdeveriam dedicar exclusivamente ao descanso do corpo e às atividades doespírito. Nessas pequenas sinagogas, franqueava-se a palavra a quantosdesejassem utilizá-la, mas Jesus preferia o templo suave da Natureza paraa difusão dos seus ensinos.Todas as classes humildes acorriam às suas prédicas ao ar livre,cuja extraordinária beleza seduzia os corações mais empedernidos.Antiga convenção, entre os senhores, determinava o repouso dosservos no dia consagrado aos estudos da Lei, e os próprios romanosprocuravam cultivar aquelas tradições regionais, buscando a simpatia dopovo conquistado.Nessa época, grande era a afluência dos escravos às pregaçõesconsoladoras do Messias de Nazaré.Uma semana havia decorrido após o recebimento das notícias deRoma e, nesse sábado, às primeiras horas da tarde, vamos encontrar Líviae Ana em conversação íntima e carinhosa.- Sim - dizia a jovem patrícia à serva, que se encontrava em trajes desair -, se te for possível, hoje, agradecerás de viva voz ao profeta, em meunome, já que me sinto tão feliz, graças à sua" Emannuel,"infinita bondade. E dize-lhe que, se eu puder, nas vésperas de partir paraRoma procurarei conhecê-lo, a fim de lhe beijar as mãos generosas, emtestemunho do meu reconhecimento!...- Não esquecerei vossas ordens e espero que possais ir até à casade Simão para visitá-lo, antes de vos retirardes destes lugares... Ainda hoje- prosseguiu em tom confidencial - devo encontrar na cidade o velho tioSimeão, que veio de Samaria especialmente para receber a sua bênção eos seus ensinos. Não sei se a senhora sabe que entre os samaritanos e osgalileus há rixas muito antigas; mas o Mestre, muitas vezes, nas suaslições de amor e fraternidade, tem louvado os primeiros pela sua caridadeleal e sincera. Numerosos milagres já foram efetuados por ele, na Samaria,e meu tio é um desses beneficiados que hoje virá receber a bênção desuas mãos consoladoras!...Uma doce e comovente fé ungia a alma daquela mulher do povo,intensificando em Lívia o desejo de conhecer aquele homem extraordinárioque sabia iluminar, com as suas graças, os corações mais ignorantes emais singelos.- Ana, espera um pouco disse, sensibilizada, dirigindo-se aos seusaposentos. E voltando com a fisionomia radiante, satisfeita por começar alimesmo a sua fraternização cristã, deu à empregada algumas moedas,exclamando com a maior alegria:- Leva este dinheiro ao tio Simeão, em meu nome... Ele veio de longepara ver o Messias e tem necessidade de recursos!Ana recebeu a importância, que era de alguns denários, agradeceu,radiante, aquela dádiva considerada como verdadeira fortuna e, daí aminutos, com Sêmele e outras companheiras dirigiu-se pela estrada deCafarnaum, em demanda do lago, onde aguardariam o cair da tarde,quando a barca de Simão Barjona trouxesse o Messias para as pregaçõescostumeiras." Emannuel,"...Na cidade, seu primeiro cuidado foi correr a uma choupana pobre eantiga, onde o velho Simeão a estreitou carinhosamente nos braços,chorando de alegria. Grande júbilo alvoroçou em seguida aquelescorações desprotegidos da sorte, em face da generosa oferta de Lívia, aqual significava para eles um pequeno tesouro.Deixando as companheiras no local do costume, em virtude daquelacircunstância, Ana não pôde reparar que, logo após a sua ausência,Sêmele se retirou apressadamente em demanda de uma casa oculta entreoliveiras numerosas, ao fim de uma viela quase completamenteabandonada.Algumas pancadas na porta e uma senhora de boa aparência veioatendê-la, solícita.- Chegou o nosso amigo? - perguntou a empregada, fingindodespreocupação.- Sim, o senhor André aqui está desde ontem. à sua espera. Faça ofavor de esperar um pouco.Daí a minutos, uma personagem de nosso conhecimento vinha tercom Sêmele, num dos ângulos da sala, abraçando-a com efusão, corno sefosse pessoa de sua profunda estima.Era André de Gioras, que vinha a Cafarnaum para o golpe derepresália, favorecido por uma aliada que a sua sede de vindita conseguiracolocar, em Jerusalém, na casa de Públio Lentulus, através de umasagacidade cruel -Depois de longa palestra em voz muito baixa, ouçamos a serva dosenador, que lhe fala nestes termos:- Não há dúvida... Já consegui captar toda a confiança dos patrões ea simpatia do pequeno. Pode, pois, ficar tranqüilo, porque o momento éoportuno, visto que o senador pretende voltar para Roma em breves dias!- Infame! - exclamou André, cheio de cólera - já pensa, então, noregresso? Muito bem!... Aquele maldito romano conseguiu escravizar parasempre o meu pobre filho, desatendendo às minhas" Emannuel,"súplicas paternas, mas há-de pagar muito caro a sua ousadia deconquistador, porque seu filho há-de ser um servo da minha casa! Um dia,hei-de mostrar-lhe a minha desforra, provando-lhe que também sou umhomem!.Estas palavras ele as disse entre dentes, em voz soturna, de olhosparados e brilhantes, como que se apostrofasse seres invisíveis.- Então, tudo pronto? perguntou a Sêmele, denunciando umaresolução definitiva.- Perfeitamente - respondeu a serva, com a maior serenidade.- Pois bem; de hoje a três dias irei até lá, a cavalo, nas primeirashoras da madrugada.E entregando-lhe um frasco minúsculo, que ela ocultoucuidadosamente nas próprias vestes, continuou em voz abafada:- Bastam vinte gotas para que a criança adormeça e não despertesenão ao fim de doze horas... Quando for noite alta, aplique-lhe abeberagem num pouco de água levemente misturada de vinho fraco eespere o meu sinal. Estarei nas proximidades da casa, que desde ontemfiquei conhecendo, a aguardar a preciosa carga. Abrigará você a criançaadormecida, de tal maneira que o volume não denuncie o conteúdo, visto aalguma distância, e, como em assuntos dessa natureza há-de contar com apossibilidade do testemunho de olhos estranhos, irei trajado à romana,esperando que você consiga vestir uma das túnicas da patroa, de modo aevitarmos que a culpa deste rapto venha a recair sobre alguém da nossaraça, caso surja alguma testemunha inoportuna e imprevista... Dado o sinalde minha presença na estrada que margina o pomar, virá você ter comigo,entregando-me o precioso fardo.E, de olhos perdidos na visão antecipada da sua vingança, André deGioras exclamou, cerrando os punhos:" Emannuel,"...- Se os malditos romanos nos escravizam os filhos, sem piedade,podemos também escravizar os seus desgraçados descendentes!... Oshomens nasceram com iguais direitos neste mundo...Ouvindo-lhe as palavras, atenciosamente, objetou Sêmele, algoamedrontada:- Mas, e eu? Não acompanharei o pequenino Marcus na mesmanoite?- Seria grande imprudência. Você deverá ficar em Cafarnaum todo otempo necessário, até que se percam todas as pistas do futuro senador,que não passará, aliás, de futuro escravo. Sua fuga seria indício seguro,agora ou mais tarde, e nós precisamos obstruir esse caminho certo.Como sabe, tenho parentes afortunados na Judeia, e não é demaisesperar que um golpe da sorte me conceda o lugar preeminente a queaspiro, no templo de Jerusalém. Não podemos, portanto, mantercomplicações com a justiça, podendo você ficar tranqüila, pois, mais tarde,o seu esforço de hoje será largamente recompensado.A serva suspirou resignada, acedendo a todas as sugestões daqueleespírito vingativo.Daí a horas, ao cair da noite, voltavam à herdade os servos dePúblio, em palestra animada e alegre, comentando os pequeninosincidentes e preocupações do dia.Sêmele não parecia preocupada, mesmo porque, havia muito, vinhasendo instruída pacientemente por André, de modo a colaborardecididamente naquele plano de vingança. Numerosos laços ligavam-na àfamília de Gioras, e, cooperando naquela trama sinistra em favor dadesforra, mais não fazia, segundo supunha, que resgatar numerosasdívidas de ordem material.Afinal, pensava ela consigo, liquidando o caso do pequenino,regressaria a Jerusalém quando muito bem lhe aprouvesse, consciente dehaver cumprido um dever, obedecendo as tremendas exigências de André." Emannuel,"No dia seguinte, calculou todas as possibilidades de êxito docometimento, e, na data aprazada, tomou todas as providências precisas.A obtenção de uma túnica do uso particular de Lívia não lhe eradifícil. A senhora as possuía em grande número e quase que diariamenteAna se incumbia de preparar as que se encontravam fora de seusapartamentos privados, para o necessário serviço de higiene; e foi assimque, burlando a dedicação e vigilância da colega, conseguiu Sêmele umatúnica elegante e discreta, da senhora, de modo a observar, integralmente,as advertências daquele de quem se fizera cúmplice.Em casa, nunca o senador e sua mulher haviam vivido momentos detanta paz e tantas esperanças, desde que chegaram à Palestina. A cura dafilha era a doce felicidade de cada instante, ensejando os mais carinhososplanos de ventura para os dias do porvir.Lívia já organizava todos os seus apetrechos de viagem,considerando que em poucos dias estariam no antigo porto de Jope, deregresso à metrópole querida.Uma serenidade, que parecia imperturbável, descansava agora sobreo casal, fazendo-lhe os corações tranqüilos e ditosos.Públio havia esquecido totalmente as advertências do sonho, queconsiderava tão somente resultado da sua palestra impressionante com oprofeta de Nazaré, e o coração se lhe desanuviara, ponderando o valor dospoderes humanos, dentro da vaidade orgulhosa que lhe abafava todas aspreocupações de ordem espiritual. Um pensamento único lhe dominava ocoração - voltar a Roma, dentro de poucos dias.Nessa noite, porém, iam desmoronar-se todas as suas esperanças emodificar-se, para sempre, as linhas do seu destino na Terra.Quem conhecesse a trama urdida na sombra pelo espírito vingativode André, depois da meia-" Emannuel,"...-noite poderia ouvir um longo silvo que se repetiu por três vezes, nosoturno silêncio do arvoredo.Um homem trajado à romana apeara de fogoso corcel, a algunsmetros da casa, no largo caminho que separava a vegetação do campo dasárvores frutíferas. Em seguida, uma porta abriu-se furtivamente e umamulher trajada à moda patrícia veio ter com o cavaleiro que a esperavaansioso, depondo-lhe nas mãos, com o máximo cuidado, um embrulhovolumoso.- Sêmele - exclamou ele baixinho -, esta hora é decisiva em nossosdestinos!A serva de Lentulus nada pôde responder, sentindo o peito opresso.Nesse instante, os atores de cena não observaram a aproximação deum homem que estacara, à distância de alguns passos, na espessura dasramagens sombrias.- Agora - tornou a dizer o cavaleiro, antes de partir em desabaladacarreira não se esqueça que o silêncio é ouro e que, se algum dia vocêfor ingrata, pode pagar com a vida a descoberta do nosso segredo!...Dito isso, André de Gioras partiu precipitadamente, a largo trote,pelos caminhos ensombrados, levando consigo o volume para ele tãoprecioso.A serva ainda o acompanhou com a vista por alguns instantes, entreassustada e compungida, recolhendo-se a passos cambaleantes.Ambos não sabiam que os olhos de um caluniador são piores que osbraços de um ladrão e que esses olhos os espreitavam na solidão da noite.Era Sulpício que, por coincidência, se recolhia tarde naquela noite,surpreendendo a cena palidamente iluminada pelos raios da Lua.Observando, de longe, que um homem e uma mulher, trajados àromana, se encontravam na estrada em hora tão imprópria, amorteceu ospassos de felino, entre as árvores, com o fim de identificá-los mais deperto." Emannuel,"A cena fôra, todavia, muito rápida, chegando-lhe tão somente aosouvidos as últimas palavras ""nosso segredo"", proferidas por André, na suapromessa odiosa e ameaçadora.Em seguida, observou que a mulher, com a retirada do cavaleiro,regressava ao interior a passos vacilantes, como que presa de incoercívelabatimento. Estugou então os passos para surpreendê-la, reparando-lhe ovulto a poucos metros de distância. Mas, não se atreveu a aproximar-se,apenas identificando as características da vestimenta, à luz fraca da noite.Aquela túnica era-lhe conhecida. Aquela mulher, a seu ver, era Lívia, aúnica que podia trajar de tal modo, naquelas cercanias.Num instante, suas idéias rápidas de homem experimentado naspiores ações do mundo, associaram fatos, personalidades e coisas.Lembrou, em seus íntimos pormenores, a cena que tivera ocasião depresenciar no jardim de Pilatos, crendo que a esposa de Públio se fizeraamada pelo governador, cujo coração ela avassalara em poucos minutos,em virtude da sua peregrina beleza; recordou, por último, a estada doprocurador da Judeia, em Nazaré, e concluiu, monologando:- Um governador, na sua alta posição, não deixará, por isso, de serum homem, e um homem é muito capaz de cobrir toda a noite, em boamontaria, uma distância como a que vai de Cafarnaum a Nazaré, para seencontrar com a mulher amada... Ora esta!... temos agora de prosseguir,observando um casal de apaixonados... O único acontecimentoestranhável é a facilidade com que essa mulher, aparentemente tãoaustera, se deixou dominar dessa maneira! Mas, como tenho os meusinteresses com Fúlvia, vamos examinar o melhor modo de cientificar essepobre homem que, senador, tão jovem e tão rico, é um marido tãodesventurado!...E depois de assim monologar cautelosamente, Sulpício recolheu-seintimamente satisfeito, por se ver dono da situação, já antegozando oinstante em" Emannuel,"...que faria Públio conhecedor do seu segredo, a fim de exigir mais tarde, emJerusalém, o preço ignominioso da sua perversidade, segundo aspromessas de Fúlvia.O dia imediato constituiu dolorosa surpresa para o senador e suamulher, aturdidos com o inopinado acontecimento.Ninguém conhecia as circunstâncias em que se verificara o rapto dacriança, no silêncio da noite.Como louco, Públio Lentulus tomou todas as providênciaspossíveis, junto às autoridades de Cafarnaum, sem lograr resultadofavorável. Numerosos servos de sua confiança foram expedidos a fim debater os arredores, improficuamente, e, enquanto o marido se multiplicavaem ordens e providências, Lívia recolhia-se ao leito, tomada de indefinívelangústia.Sêmele, que fingia a mais profunda consternação, auxiliava osdesvelos de Ana, junto da senhora, sucumbida de dor.Naquela mesma tarde, Públio ordenou a Comênio, então com ashonras de capataz de todos os trabalhos da herdade, a reunião geral dosservos da casa, a fim de que aprendessem no castigo severo, infligido aosescravos incumbidos do serviço noturno de vigilância, e, durante todas ashoras do crepúsculo, trabalhou o açoite na carne de três homens robustos,que debalde imploravam clemência e misericórdia, protestando a suainocência. Somente diante daquelas criaturas injustamente castigadas,considerou Sêmele a extensão do seu procedimento, mas, intimamenteapavorada com as conseqüências que poderiam advir do delito, cobrouânimo para ocultar, ainda mais, a culpa e o terrível segredo.Prosseguiam as ações punitivas, até que Lívia, atormentada poraqueles gritos lancinantes e comovedores, se levantou com extremadificuldade e, chamando o esposo a um canto da varanda, de onde ele" Emannuel,"assistia impassível ao horrível sacrifício daquelas míseras criaturas, falou-lhe súplice:- Públio, basta de castigo para esses homens fracos e infelizes!...Não seria um excesso de rigor da nossa parte para com os nossos servosa causa de tão dolorosa punição dos deuses para conosco? Essesescravos não são também filhos de criaturas que muitos os amaram nestemundo? Na minha angústia materna, considero que ainda possuímosdireitos e recursos para manter junto de nós os filhinhos idolatrados; mas,como será torturante o martírio da mãe de um desventurado, e que o vêarrebatado de seus braços carinhosos para ser vendido por ignóbeismercadores de consciências humanas!...- Lívia, o sofrimento sugeriu-te singulares desvarios do coração -exclamou o senador, com serena energia.Como poderias pensar numa igualdade absurda de direitos, entre acidadã romana e a serva miserável? Não vês que entre ti e a mãe de umcativo existem consideráveis diferenças de sentimento?- Penso que te enganas - revidou a esposa, com intraduzívelamargura -, porque os próprios animais possuem os mais elevadosinstintos, em se tratando de maternidade...E ainda assim, querido, mesmo que eu não tivesse nenhuma razão,manda o raciocínio que examinemos a nossa posição de pais, paraconsiderarmos que ninguém, mais que nós próprios, é passível de culpapelo acontecido, visto que os filhos são um depósito sagrado dos deuses,que no-los confiam ao coração, impondo-nos como dever de cada minutoa multiplicação do carinho e vigilância necessários; se sofroamargamente, é por considerar o amor sublime que nos une aos filhos,sem poder atinar com a causa deste crime misterioso, sem poder imputaraos nossos servos a culpa desse tenebroso acontecimento..." Emannuel,"...A voz de Lívia, porém, extinguia-se rapidamente. Um delíquio foi oresultado de suas palavras veementes, ao findar daquele dia de tantas etão amarguradas emoções. Amparada pelas mãos carinhosas e desveladasde Ana, a pobre senhora recolheu-se ao leito com febre alta. Quanto aPúblio, este, porque sentia que as verdades amargas da mulher lhe doíamfundo no coração, mandou cessar imediatamente o castigo, com alíviogeral, recolhendo-se ao gabinete para meditar a situação.Naquela mesma noite, recebeu a visita de Sulpício, que lhe veiotrazer o infrutífero resultado de suas indagações, na pista do pequenoMarcus.Ao despedir-se, exclamou o lictor, com grande surpresa de Públio,que lhe observara o tom enigmático das palavras:- Senador, eu não posso decifrar esse doloroso enigma dodesaparecimento do vosso filhinho, mas talvez possa orientar-vosnalguma pista segura, com as minhas observações pessoais, relativas aoassunto.- Mas, se tens semelhantes elementos, abre-te sem receios -exclamou Públio, com o máximo interesse.- Meus elementos de observação não são pontos de aclaramentopositivo, e, como existem alguns remédios que em vez de curarem umaferida produzem outras úlceras incuráveis, acho melhor adiar para amanhãà noite as minhas impressões individuais sobre os fatos.Gozando com a atitude de estupefação do interlocutorprofundamente impressionado com as suas insinuações criminosas,Sulpício rematou as despedidas, acrescentando intencionalmente:- Amanhã aqui estarei a estas mesmas horas e, se hoje não vossatisfaço ao desejo, aqui permanecendo até mais tarde, é que me esperamalguns afazeres no meu gabinete de trabalho, em vista de alguns pedidosde informações das nossas autoridades administrativas." Emannuel,"Dominado pelas expressões daquele enigma, Públio Lentulusapresentou-lhe as despedidas da noite, tendo forças para murmurar:- Então, até amanhã. Esperarei o cumprimento da tua promessa, demodo a aliviarem-se-me os receios do coração.Ficando a sós, o senador submergiu-se no mar profundo de suasinquietações e receios.Justamente quando contava regressar a Roma, eis que surge oinesperado, com piores características que a própria moléstia da filha,tantos anos suportada com serenidade e resignação, porque, agora, era orapto inexplicável de uma criança, envolvendo sérias questões damoralidade de sua casa, e a própria honra da família.No íntimo, sentia-se como um homem sem inimigos na Palestina,porquanto, com exceção do jovem Saul, filho de André, que, a seu ver,deveria estar tranqüilo no lar paterno, nunca humilhara os brios denenhum israelita, visto que a todos dispensava o máximo de sua pessoalatenção.Onde a causa daquele crime misterioso?Em suas reminiscências aflorou a palavra segura de FlamínioSeverus, quando lhe aconselhou muita prudência e valor individual, naPalestina, em razão de certos malfeitores que infestavam a região; mas,por outro lado, recordava o sonho simbólico e, com os olhos daimaginação, parecia lobrigar o vulto venerando daquele juiz austero eincorrupto, que lhe profetizara existência fértil de amarguras, dado o seudesprezo e indiferença pelas verdades salvadoras de Jesus de Nazaré.Trabalhado pela dor de angustiados pensamentos, debruçou-se àmesa de trabalho e deixou que o orgulho ferido chorasse copiosamente,considerando a sua impotência para conjurar as forças ocultas eimpiedosas que conspiravam contra a sua ventura, nos caminhosensombrados do seu doloroso destino." Emannuel,"...Alta noite, procurou desabafar o coração, junto à carinhosasolicitude da esposa, trocando ambos as suas lamentações e as suaslágrimas.- Públio - exclamava ela, com a ternura característica do seu coração-, procuremos reanimar nossas energias em favor de nós mesmos... Nemtudo está perdido!... Com os direitos que nos competem, podemosdeterminar todas as providências precisas, em busca do nosso anjinho.Adiaremos o regresso a Roma, indefinidamente, se tanto for necessário, eo resto os deuses farão por nós, reconhecendo nossa angústia eabnegação.O que não é justo é que nos entreguemos, irremediavelmente, aonosso desespero, inutilizando as derradeiras forças para a luta.A pobre senhora mobilizava os últimos recursos de suas energiasmaternas no proferir aquelas palavras de esperança e consolação. SabiaDeus, porém, das suas inenarráveis torturas íntimas, naqueles momentosangustiosos, e apenas o seu sentimento acrisolado, de renúncia e deamor, transformaria em forças as fragilidades da mulher, para poderconfortar o coração angustiado do esposo, em tão penosas conjunturas.- Sim, minha querida, farei tudo que estiver ao meu alcance paraesperar a providência dos deuses - disse o senador, mais ou menosreanimado em face do valor de que lhe dava ela testemunho.O dia seguinte decorreu nas mesmas expectativas angustiosas, comos mesmos movimentos incertos de buscas infrutíferas.À noite, segundo prometera, lá estava Sulpício Tarquinius esperandoo seu momento decisivo.Após o jantar, a que Lívia não pôde comparecer, em virtude do seuprofundo abatimento físico, Públio recebeu o lictor com toda a intimidade,ali mesmo no triclínio, em cujos leitos macios ambos se estiraram para apalestra costumeira.- Então, ainda ontem - exclamou o senador, dirigindo-se ao supostoamigo -, despertaste o meu" Emannuel,"paternal interesse, falando-me de tuas observações pessoais, que somentehoje me poderias transmitir...- Ah! sim - redargüiu o lictor, com fingida surpresa -, é bem verdadeque desejaria solicitar vossa atenção para as ocorrências misteriosasdestes últimos dias. Tendes algum inimigo, aqui na Palestina, interessadona continuidade de vossa permanência em regiões pouco adaptáveis aoshábitos de um patrício romano?- De modo algum - revidou o senador, eminentemente surpreendido.- Suponho encontrar-me num ambiente de amizades sinceras, em setratando das nossas autoridades administrativas, e acredito que ninguémhaja interessado na minha ausência de Roma. Ficaria muito satisfeito seesclarecesses melhor as tuas observações.- É que na Judeia, há alguns anos, houve um caso idêntico ao vosso.Conta-se que um dos antecessores do governador atual se deixouapaixonar perdidamente pela esposa de um patrício romano, que teve apouca sorte de se fixar em Jerusalém e, conquistados seus objetivos, tudofez por obstar o regresso de suas vítimas à sede do Império. E quandonotou que de nada valiam os empecilhos de sua autoridade, cometeu ocrime de seqüestrar um filhinho do casal, fazendo acompanhar o feito deoutras atrocidades, que ficaram impunes, dado o seu prestígio políticoperante o Senado.Públio ouviu essas observações com o pensamento em brasa.Em razão da sua intensidade emotiva, o sangue afluiu-lhe aocérebro, parecendo represar-se em largas correntes junto ao dique dastêmporas. Uma palidez de cera cobriu, em seguida, o seu rosto, numafacies cadavérica, sem poder definir a emoção que lhe assaltava o íntimo,em face de tais insinuações contra a sua dignidade pessoal e contra ashonrosas tradições da família." Emannuel,"...Num instante, reviveu todas as acusações de Fúlvia e, julgando osseus semelhantes pelo estalão dos próprios sentimentos, não podiaadmitir no espírito de Sulpício uma ferocidade de tal quilate.Enquanto mergulhava o pensamento em cismas atrozes, semresponder ao lictor, que o observava gozando o efeito de suas tenebrosasrevelações, prosseguiu o caluniador, com fingida humildade:- Bem reconheço o alcance de minhas palavras, para as quais, aliás,suplico a benevolência de vossa discrição, mas eu não abriria o coraçãoneste sentido, senão tocado pelo profundo interesse que a vossa amizadeconseguiu inspirar à minhalma dedicada e sincera. Francamente, nãodesejava constituir-me delator de quem quer que seja, perante o vossoespírito justo e generoso; todavia, passarei a narrar-vos o que vi com ospróprios olhos, de modo a orientar com mais segurança o esforço devossas pesquisas em busca do menino.E Sulpício Tarquinius, com a falsa modéstia de suas palavrasvenenosas, desfiou um rosário longo de calúnias, entremeando osargumentos de consecutivos goles de vinho, o que exaltava ainda mais afonte prodigiosa das suas fantasias.Contou ao seu interlocutor, que o ouvia atônito. pela coincidência desuas observações com as denúncias de Fúlvia, os mais íntimospormenores da cena do jardim em casa de Pilatos, e, em seguida, narrou oque observara na noite do rapto, salientando a coincidência da estada dogovernador em Nazaré.O senador ouvia-lhe a narrativa, ocultando, a muito custo, o seuespanto doloroso. A prevaricação da esposa, segundo aquela denúnciaespontânea, era um fato indubitável. Entretanto, ele queria acreditar ocontrário. Durante todo o tempo da vida conjugal, Lívia manifestara o maispronunciado retraimento dos ambientes sociais, vivendo tão somente paraele e para os filhinhos idolatrados. Era na sua palavra criteriosa e sinceraque o seu" Emannuel,"espírito ia buscar as necessárias inspirações para o êxito nas lutas davida; mas aquela denúncia lhe atordoava o coração e anulava todos osfatores da antiga confiança. Além disso, penosas coincidências vinhamferir o seu raciocínio, despertando-lhe amarguradas suspeitas no íntimodalma.Não fôra ela que intercedera a favor dos escravos, no momento docastigo, súplice, como se a culpa do acontecido também lhe pesasse nocoração?Ainda na véspera, sugerira a continuidade da permanência de ambosna Palestina, demonstrando um valor pouco vulgar. Não seria isso umgesto de suposta consolação para o marido ultrajado, obedecendo aintuitos inconfessáveis?Um turbilhão de idéias antagônicas entrechocava-se no mar de suasmeditações dolorosas.Por outro lado, considerou, num relance, a sua posição de homemde Estado, as responsabilidades austeras que lhe competiam noorganismo social.O cargo proeminente, as severas obrigações a que se consagrara nomecanismo das relações de cada dia, o orgulho do nome e as tradições defamília, amalgamaram a energia precisa para o domínio das emoções domomento, e, escondendo o homem sentimental que era por natureza, paratão somente revelar o homem público, teve forças para exclamar:- Sulpício, agradeço o teu interesse, desde que as tuas palavrassejam reflexo da tua generosidade sincera, mas devo considerar, perante oconceito que acabas de expender sobre minha mulher, que não aceitonenhum argumento que lhe fira a dignidade e austera nobreza, predicadosesses que ninguém, mais que eu, deve conhecer.A entrevista no jardim de Pilatos, a que te referes, foi por mimautorizada, e as tuas observações na noite do rapto não estão bemdefinidas, dado o caráter positivo que se requer das nossas investigações." Emannuel,"...Assim, pois, agradeço-te a dedicação em meu favor, mas a tuaopinião abre entre nós, doravante, uma linha divisória que a minhaconfiança não mais ousará transpor.Ficas, assim, dispensado do serviço que te retinha junto de minhafamília, mesmo porque a perspectiva da minha volta a Roma sedesvaneceu com o desaparecimento do pequeno. Não poderemosregressar à sede do Império, enquanto não lograrmos o seureaparecimento ou a certeza dolorosa da sua morte.Deste modo, eu seria imprudente exigindo a continuidade dos teuspréstimos em Cafarnaum, sacrificando decisões de teus superioreshierárquicos, razão por que serás demitido de minha casa sem escândalosque prejudiquem a tua carreira profissional.Aguardarei o ensejo de me comunicar com o governador, a teurespeito, quando então serás desligado oficialmente do meu serviço, semnenhum prejuízo para o teu nome.Vês, assim, que, como homem de Estado, agradeço o teu interesse esei apreciar a tua dedicação, mas, como amigo, não me é mais possíveldepositar em ti o mesmo grau de confiança.O lictor, que não esperava semelhante resposta, ficou lívido no seuindisfarçável desapontamento, mas atreveu-se ainda a revidar,fingidamente:- Senhor senador, chegará o instante em que havereis de valorizar omeu zelo não só como servidor de vossa casa, mas também como amigodesvelado e sincero. E já que não tendes outra recompensa melhor que odesprezo injusto para corresponder ao meu impulso de amizade, é comprazer que me sinto desligado das obrigações que me prendiam junto devossa autoridade.Em seguida, Sulpício pronunciou algumas palavras de despedida, aque Públio respondeu secamente, atormentado pelos mais profundosdesgostos." Emannuel,"No silêncio do seu gabinete, examinou o quanto de energia ascircunstâncias haviam exigido do seu coração em tão penosasconjunturas. Bem reconhecia que adotara para com o lictor a atitude maisconveniente e consentânea com a situação, mas, no íntimo, guardavaangustiosa incerteza, acerca da conduta de Lívia. Tudo conspirava contraela, tendendo a apresentá-la, ao seu coração de marido pundonoroso,como a personificação da falsa inocência.Naquele tempo, ainda não se vulgarizara no mundo o ""orai e vigiai""dos ensinamentos eternamente doces do Cristo, e o senador, entregando-se quase que totalmente ao império das amargas emoções que oacabrunhavam, debruçou-se sobre numerosos rolos de pergaminho,entrando a chorar convulsivamente." Emannuel,"117VIIAs pregações do TiberíadesAlguns dias haviam decorrido sobre os fatos que acabamos denarrar.Em Cafarnaum, não somente o cenário, mas também os atores,guardavam a mesma fisionomia.Compelido pela atitude irrevogável e enérgica do senador, SulpícioTarquinius regressara a Jerusalém, obedecendo às ordens de Pilatos que,por sua vez, recebera a notificação de Públio Lentulus, referente àdispensa do lictor.Não devemos esquecer que Públio permanecia na Palestina compoderes amplos, na qualidade de emissário de César e do Senado, e aquem todas as autoridades da província, inclusive o governador, eramobrigados a acatar com especial atenção e máximo respeito.O procurador da Judeia não se esquecera, portanto, de substituirSulpício, do melhor modo possível, buscando conhecer, com interesse, osmotivos do seu afastamento, assunto que o senador solucionou com omais largo espírito de superioridade, do ponto de vista político. Pilatoscoadjuvou, com a melhor boa vontade, o serviço de pesquisa, quanto" Emannuel,"ao paradeiro do pequeno Marcus, movimentando funcionários de suainteira confiança, e vindo pessoalmente a Cafarnaum, a fim de conhecer nasua intimidade as diligências efetuadas.O senador recebeu-lhe a visita com as mais altas mostras deconsideração e aceitou-lhe a cooperação, sinceramente confortado, emvista de os acontecimentos desmentirem, perante o seu foro íntimo, ascaluniosas acusações de que era vítima a esposa.Sua vida doméstica, porém, sofrera as mais profundas alterações.Não sabia mais viver aquelas horas de colóquio feliz com a esposa, daqual o separava um véu de dúvidas amargas e infinitas.Várias vezes tentou, improficuamente, readquirir a antiga confiançae a sua espontaneidade afetiva.Rugas de pesar vincaram-lhe então o semblante, ordinariamentealtivo e orgulhoso, esfumando-lhe os traços fisionômicos num nevoeiro depreocupações angustiosas.Todos os seus íntimos, inclusive a esposa, atribuíam aodesaparecimento do filhinho tão singular metamorfose.Nas horas habituais das refeições, notava-se-lhe o esforço paradesanuviar a fisionomia.Dirigia-se, então, à mulher ou respondia às suas perguntascarinhosas com monossílabos apressados, acentuando as palavras comlaconismo incompreensível.Sofrendo amargamente com aquela situação, Lívia apresentava-secada vez mais abatida, tentando em vão decifrar o motivo de tantasprovações e infortúnios.Muitas vezes procurou sondar o espírito de Públio, de modo a levar-lhe um pouco de carinho e consolação, mas ele evitava as expansõesafetuosas, com pretextos decisivos. Quase que lhe aparecia tão somenteno triclínio e, feita a refeição costumeira, retirava-se, abruptamente, para ogrande" Emannuel,"...salão do arquivo, onde passava todas as suas horas de inquietadorasmeditações.De Marcus, nenhuma notícia havia, que lhe proporcionasse a maisligeira sombra de esperança.Por uma formosa manhã da Galileia, vamos encontrar Lívia empalestra íntima com a serva dedicada e amiga fiel, a quem replica nestestermos, depois de carinhosamente inquirida, acerca do seu estado desaúde:- Sinto-me bem mal, minha boa Ana!... À noite, o coração bate-medescompassadamente e, hora a hora, vejo crescer-me no íntimo dolorosaimpressão de amargura. Não poderia bem definir meu estado, ainda que oquisesse... O desaparecimento do pequeno enche-me a alma de lúgubrespresságios, multiplicando o peso das minhas aflições maternas quandonão posso vislumbrar, nem de leve, a causa de tamanhos padecimentos...E agora é, sobretudo, o estado de Públio o que mais me acabrunha.Ele foi sempre um homem puro, leal e generoso; mas, de algum tempo aesta parte, noto-lhe singulares diferenças no temperamento, agravando-se-lhe os sintomas doentios com maior intensidade, após o incompreensíveldesaparecimento do nosso filhinho.A mim se me figura que ele vem sofrendo os mais fortes distúrbiossentimentais, com sérios prejuízos para a saúde...- Bem vejo, senhora, quanto sofreis! - aventou a serva carinhosa.Sei que sou uma criatura humilde e sem nenhum valor, mas pedirei a Deusque vos proteja incessantemente, restabelecendo a paz do vosso coração.- Criatura humilde e sem valor? - diz a pobre senhora, buscandodemonstrar-lhe o grau de sua estima sincera. - Não digas isso, mesmoporque não sou dessas almas que aferem o valor de cada um pelasposições que desfruta ou pelas honras que recebe." Emannuel,"Filha única de pais que me legaram considerável fortuna, cidadãromana, com as prerrogativas de mulher de um senador, vês quanto sofronos trabalhos amargos deste mundo.Os títulos que o berço me outorgou não conseguiram eliminar asprovações que o destino também me trouxe, com a mocidade e a fortunafácil.Reconhece, pois, que, sendo eu patrícia e tu uma serva, nãopossuímos um coração diverso, mas sim o melhor sentimento defraternidade, que nos abre a porta de uma compreensão carinhosa, a valerpor asilo suave nos dias tristes da vida.De mim para comigo, sempre supus, contrariamente à educaçãorecebida, que todas as criaturas são irmãs, filhas de uma origem comum,sem conseguir atinar com as linhas divisórias entre aqueles que possuemmuitos haveres e muitos títulos e os que nada possuem neste mundo alémdo coração, onde costumo localizar os valores de cada um, nesta vida.- Senhora - exclamou a serva, tocada da mais grata surpresa -,vossas palavras me comovem, não somente por partirem dos vossoslábios, dos quais me habituei a ouvir-vos sempre com carinho eveneração, mas também porque o profeta de Nazaré nos tem dito a mesmacoisa em suas prédicas.- Jesus?!... - perguntou Lívia, de olhos brilhantes, como se aquelareferência lhe lembrasse uma fonte de consolação, da qual se houvessemomentaneamente esquecido.- Sim, minha senhora, e por falar nele, porque não buscardes umpouco de conforto nas suas divinas palavras? Juro-vos que as suasexpressões, sábias e amorosas, vos consolariam no meio de todos ospesares, proporcionando-vos sensações de vida nova!... Se quisésseis, eupoderia conduzir-vos à casa de Simeão, discretamente, a fim dereceberdes o benefício de suas lições carinhosas. Receberíeis, assim, aalegria da sua bênção, sem vos" Emannuel,"...expordes às críticas alheias, nutrindo o vosso coração dos seusluminosos ensinamentos.Lívia pensou intensamente naquele alvitre, que se lhe figuravaprovidência salvadora, respondendo, por fim:- Os sofrimentos da vida muitas vezes me têm dilacerado o coração,renovando os meus raciocínios acerca dos princípios que me foramensinados desde o berço, e é por isso que, acolhendo a tua idéia, acho demeu dever procurar a Jesus publicamente, como o fazem outras mulheresdestes lugaresEra minha intenção procurá-lo antes do nosso regresso a Roma,para lhe manifestar meu reconhecimento pela cura de Flávia, fato que medeixou profundamente impressionada, mas que não nos foi possívelcomentar, em razão da atitude hostil de meu marido; agora, novamentedesamparada, no estuar das minhas dores, recorrerei ao profeta para obterum lenitivo ao coração opresso e torturado.Mulher de um homem que, por força da sua carreira política, ocupaagora o mais alto cargo desta província, irei a Jesus como criaturadeserdada da sorte, em busca de amparo e consolação.- Senhora, e vosso esposo? - perguntou Ana, antevendo asconseqüências daquela atitude.- Procurarei cientificá-lo da minha resolução; mas, se Públioesquivar-se, ainda uma vez, à minha presença para um entendimento maisíntimo, irei mesmo sem ouvi-lo, com respeito ao assunto. Vestirei os trajeshumildes desta região de criaturas simples, irei a Cafarnaum, hospedando-me com os teus parentes, nas horas necessárias, e, no momento daspráticas, quero ouvir a palavra do Messias, de coração contrito e almacompadecida pelos infortúnios dos meus semelhantes...Sinto-me profundamente insulada nestes últimos dias e tenhonecessidade de conforto espiritual para o meu coração combalido nasprovas ásperas." Emannuel,"- Senhora, Deus abençoe os vossos bons propósitos. EmCafarnaum, os meus parentes são muito pobres e muito humildes, masvossa figura está ali no santuário da gratidão de todos, bastando umapalavra vossa para que se ponham à vossa disposição, como escravos.- Para mim não existe fortuna que se iguale a essa, da paz e dosentimento.Não procurarei o profeta para solicitar-lhe atenções especiais,porque basta a sua caridade, no caso de minha filha, hoje sadia e forte,graças à sua piedade de justo, mas tão somente para buscar conforto aomeu coração dilacerado.Pressinto que, em lhe ouvindo as exortações carinhosas e amigas,alcançarei energias novas para enfrentar as provações mais amargas erudes.Sei que ele me conhecerá nos trajes pobres da Galileia; todavia, nasua intuição divinatória, compreenderá que, dentro do peito da romana,pulsa um coração amargurado e infeliz.As duas combinaram, então, ir juntas à cidade, na tarde do primeirosábado.Embalde, procurou Lívia uma oportunidade para solicitar aambicionada permissão do marido, a favor da sua pretensão. Inúmerasvezes buscou, improficuamente, sondar o espírito de Públio, cuja frieza lheafugentava a coragem para a necessária consulta.Ela, porém, havia resolvido procurar o Mestre, de qualquer maneira.Abandonada numa região em que somente o marido podia compreendê-laintegralmente, dentro da sua esfera de educação, e rudemente provada nasfibras mais sensíveis da sua alma feminina, de esposa e mãe, a pobresenhora assim deliberou com pleno assentimento da sua consciênciahonesta e pura.Talhou uma roupa nova, de conformidade com os usos galileus, demaneira a não se fazer notada na multidão comum nas prédicas do lago, e,cientificando a Comênio da necessidade que tinha de" Emannuel,"...sair naquele dia, a fim de que o marido fosse avisado à hora do jantar,dirigiu-se, na data previamente determinada, pelos caminhos que jáconhecemos, em companhia da serva de confiança.Na residência humilde de pescadores, onde se abrigavam osfamiliares de Ana, Lívia sentiu-se envolvida em radiosas vibrações deserenidade amiga e doce. Era como se o seu coração desalentadoencontrasse uma claridade nova naquele ambiente de pobreza, dehumildade e ternura.A figura patriarcal do velho Simeão, da Samaria, porém, destacava-se a seus olhos entre todos os que a receberam com as mais elevadasdemonstrações de carinhosa bondade. Do seu olhar profundo e das cãsveneráveis emanavam as doces irradiações da maravilhosa simplicidadedo antigo povo hebreu, e a sua palavra, ungida de fé, sabia tocar oscorações nas cordas mais sensíveis, quando narrava as ações prodigiosasdo Messias de Nazaré.Lívia, acolhida por todos com simpatia franca, parecia devassar ummundo novo, até então desconhecido, na sua existência. Confortava-lhe,sobremaneira, a expressão de sinceridade e candura, daquela vida simplese humilde, sem atavios nem artifícios sociais, mas também sempreconceitos nem fingimentos perniciosos.À tardinha, confundida com os pobres e os doentes que iam receberas bênçãos do Senhor, vamos encontrá-la de coração aliviado e sereno,esperando o momento ditoso de ouvir do Mestre uma palavra de amor econsolação.O crepúsculo de um dia claro e quente emprestava um reflexo de luzdourada a todas as coisas e a todos os contornos suaves da paisagem.Encrespavam-se as águas mansas de Tiberíades ao sopro carinhoso dosfavônios da tarde, que se impregnavam do perfume das flores e dasárvores. Brisas frescas eliminavam o calor ambiente, espalhandosensações agradáveis de vida livre, no seio robusto e farto da Natureza." Emannuel,"Afinal, todos os olhares se dirigiam para um ponto escuro que sedesenhava no espelho cristalino das águas, muito ao longe, no horizonte.Era a barca de Simão, que trazia o Mestre para as dissertaçõescostumeiras.Um sorriso de ansiedade e de esperança clareou, então, todos aquelessemblantes que o aguardavam, no desconforto de seus sofrimentos.Lívia reparou aquela turba que, por sua vez, também lhe notara aestranha presença. Operários humildes, pescadores rudes, mãesnumerosas em cujos rostos macerados se podiam ler as histórias amargasdos mais incríveis padecimentos, criaturas da plebe anônima e sofredora,mulheres adúlteras, publicanos gozadores da vida, enfermosdesesperados e crianças numerosas, que traziam consigo os estigmas domais doloroso desamparo.Conservava-se Lívia ao lado do velho Simeão, cuja expressãofisionômica de firmeza e doçura inspirava o mais profundo respeito aosque se lhe aproximavam; e quantos lhe notavam o delicado perfil romano,enfiada na simplicidade do traje galileu, presumiam na sua figura algumajovem de Samaria da Judeia, que tivesse vindo igualmente de longe,atraída pela fama do Messias.A barca de Simão acostara brandamente à margem, ensejando a queo Mestre se dirigisse ao local costumeiro de suas lições divinas. Suafisionomia parecia transfigurada em resplendente beleza. Os cabelos,como de costume, caíam-lhe aos ombros, à moda dos nazarenos,esvoaçando levemente aos ósculos cariciosos dos ventos brandos datarde.A esposa do senador não pôde mais despregar os olhosdeslumbrados, daquela figura simples e maravilhosa.Começara o Mestre um sermão de beleza inconfundível e suaspalavras pareciam tocar os espíritos mais empedernidos, figurando-se queos ensinamentos ressoavam nas devesas de toda a Galileia," Emannuel,"...ecoando pelo mundo inteiro, previamente modelados para caminhar nomundo com a própria eternidade.""Bem-aventurados os humildes de espírito, porque a eles pertenceráo reino de meu Pai que está nos céus!...""Bem-aventurados os pacíficos, porque possuirão a Terra!...""Bem-aventurados os sedentos de justiça, porque serão saciados!...""Bem-aventurados os que sofrem e choram, porque serãoconsolados nas alegrias eternas do reino de Deus!...""E a sua palavra enérgica e branda disse da misericórdia do PaiCelestial; dos bens terrestres e celestes; do valor das inquietações eangústias humanas, acrescentando que viera ao mundo não para os maisricos e mais felizes, mas para consolar os mais pobres e deserdados dasorte.A assembléia heterogênea escutava-o embevecida nos seustransportes de esperança e gozo espiritual.Uma luz serena e caridosa parecia vir do Hebron, clarificando apaisagem em tonalidade de opalas e safiras eterizadas.A hora ia adiantada e alguns apóstolos do Senhor resolveram trazeralguns pães aos mais necessitados de alimento. Dois grandes cestos demerenda frugal foram trazidos, mas os ouvintes eram em demasianumerosos. Jesus, porém, abençoou-lhes o conteúdo e, como num suavemilagre, a escassa provisão foi partida em pequenos pedaços, que foramreligiosamente distribuídos por centenas de pessoas.Lívia recebeu igualmente a sua parte e, ao ingeri-la, sentiu um sabordiferente, como se houvera sorvido um remédio apto a lhe curar todos osmales da alma e do corpo, porque uma certa tranqüilidade lhe anestesiou ocoração flagelado e desiludido. Comovida até às lágrimas, viu que oMestre atendia, caridosamente, a numerosas mulheres, en-" Emannuel,"tre as quais muitas, segundo o conhecimento do povo de Cafarnaum, eramde vida dissoluta e criminosa.O velho Simeão quis também aproximar-se do Senhor, naquela horamemorável da sua passagem pelo planeta. Lívia acompanhou-oautomaticamente, e, em poucos minutos, achavam-se ambos diante doMestre, que os acolheu com o seu generoso e profundo sorriso.- Senhor - exclamou, respeitosamente, o ancião de Samaria -, quedeverei fazer para entrar, um dia, no vosso reino?- Em verdade te digo - replicou-lhe Jesus, carinhosamente - quemuitos virão do Ocidente e do Oriente, procurando as portas do Céu, massomente encontrarão o reino de Deus e de sua justiça aqueles que amaremprofundamente, acima de todas as coisas da Terra, ao nosso Pai que estános Céus, amando o próximo como a si mesmos.E espraiando o olhar compassivo e misericordioso por sobre aassembléia vasta, continuou com doçura:- Muitos, também, dos que foram aqui chamados, serão escolhidospara o grande sacrifício que se aproxima!... Esses me encontrarão no reinocelestial, porque as suas renúncias hão-de ser o sal da Terra e o sol de umnovo dia!...- Senhor - aventurou o ancião, com os olhos rasos de lágrimas -,tudo faria eu por ser um dos vossos escolhidos!...Mas Jesus, fitando fixamente o patriarca de Samaria, murmurou cominfinita ternura:- Simeão, vai em paz e não tenhas pressa, porque, em verdade,aceitarei o teu sacrifício no momento oportuno...E estendendo o raio de luz dos seus olhos até à figura de Lívia, quelhe devorava as palavras com a sede ardente da sua atenção, exclamoucom as claridades proféticas de suas exortações:" Emannuel,"...- Quanto a ti, regozija-te em Nosso Pai, porque as minhas palavras eensinamentos te tocaram para sempre o coração. Vai e não descreias,porque tempo virá em que saberei aceitar as tuas abnegaçõessantificantes!Essas palavras foram ditas numa tal atitude, que a esposa dosenador não teve dificuldade em lhes apreender o sentido profundo, paraum futuro distante.Aos poucos, dispersou-se a grande assembléia dos pobres, dosenfermos e dos aflitos.Era noite quando Lívia e Ana regressaram à casa solarenga,confortadas pelas graças recebidas das mãos caridosas do Messias.Profunda sensação de alívio e conforto inundava-lhe a alma.Penetrando, porém, nos seus aposentos, Lívia encontrou de frente afigura enérgica do marido, que deixava, transparecer na fisionomiacarregada os mais intensos sinais de irritação, como acontecia nosmomentos de seu mais ríspido mau humor. Ela notou-lhe a exacerbação deânimo, mas, ao contrário de outras vezes, parecia inteiramente preparadapara vencer as mais tremendas lutas do coração, porque, com serenidadeimperturbável, o encarou face a face, enfrentando-lhe o olhar suspeitoso.Afigurava-se-lhe que a flor de eterna paz espiritual lhe desabrochara noíntimo, ao suave calor das palavras do Cristo, porquanto lhe parecia haveratingido o terreno, até então desconhecido, de serenidade estranha esuperior.Depois de fitá-la de alto a baixo com o seu olhar duro e inquiridor,exclamou Públio, mal sopitando a cólera incompreensível:- Então, que é isso? Que poderosas razões levariam a senhora aausentar-se de casa em horas tão impróprias para as mães de família?- Públio - respondeu com humildade, estranhando aquele tratamentocerimonioso -, por mais que buscasse comunicar-te minha resolução desair" Emannuel,"na tarde de hoje, fugiste sempre de minha presença, esquivando-te àminha consulta e eu necessitava procurar o Messias de Nazaré, de modo aacalmar meu coração desventurado- E precisavas de disfarce para encontrar o profeta do povo? -atalhou o senador, com ironia.É a primeira vez que noto uma patrícia usando tais artifícios paraconsolar o coração. Vai a tanto, assim, o seu menosprezo pelas nossasmais sagradas tradições familiares?- Supus não me ficasse bem fazer-me notada na multidão daspessoas pobres e infelizes que procuram a Jesus nas margens do lago, e,identificando-me com os sofredores, não presumi desacatar nossoscostumes familiares, mas, sim, acreditei agir em favor do nosso nome,considerando a circunstância de ocupares, no momento, nesta província, amais alta expressão política do Império.- A menos que esteja disfarçando algum outro sentimento, comodissimula a posição social com a indumentária, muito errou procurando oMessias nesses trajes, porque, afinal, estou investido de poderes pararequisitar a presença de qualquer pessoa da região em minha casa!- Mas Jesus - revidou Lívia, corajosamente - deve estar para nósmuito acima dos poderes humanos, que sabemos tão precários, por vezes.Acho que a cura da nossa filhinha, diante da qual todos os nossosrecursos foram impotentes, é o bastante para fazê-lo credor da nossagratidão imperecível.- Ignorava que a sua organização mental fosse tão frágil em face dossucessos do Mestre de Nazaré, aqui em Cafarnaum - continuou o senador,asperamente.A cura de nossa filha? Como assegurar uma coisa que a suaargumentação pessoal não pode provar com dados positivos? E ainda queesse homem, revestido de forças divinas para o espírito simples eignorante dos pescadores galileus, tivesse" Emannuel,"...operado essa cura com a sua intervenção sobrenatural, vindo a estemundo da parte dos deuses, poderíamos chamar-lhe impiedoso e cruel,sarando uma menina enferma de tantos anos e permitindo que os gêniosdo mal e da perversidade nos arrebatassem o filhinho sadio e carinhoso,em cuja fronte colocava a minha ternura de pai todo um futuro brilhante epromissor!- Cala-te, Públio! - revidou ela, tomada de uma força superior que lheconservava toda a serenidade do coração. - Recorda-te que os deusespodem humilhar-nos, com dureza, a vaidade e o orgulho absurdos... SeJesus de Nazaré nos curou a filhinha bem-amada, que apertávamos nosbraços frágeis contra os poderes imensos da morte, podia permitir quefôssemos tocados no mais sagrado sentimento de nossa alma, com oincompreensível desaparecimento do nosso Marcus, para que nossentíssemos inclinados à piedade e à comiseração pelos nossossemelhantes!...- A senhora se compromete com essa demasiada tolerância, que vaiao absurdo da fraternização com os escravos - disse Públio, com rispideze austera severidade.Tal atitude de sua parte me fez pensar, seriamente, que a suapersonalidade mudou no decurso deste ano, porque as suas idéias, longedo nível social da sede do Império, baixaram ao terreno dos sentimentosmais relaxados, em face da compostura que se exige da mulher de umsenador, ou da matrona romana.Lívia ouvira, angustiadamente, as palavras injustificáveis do marido.Nunca o vira tão irritado, em todo o transcurso da vida conjugal; mas,verificara, em si própria, uma renovação singular, como se o pão rústico,abençoado pelo Mestre, lhe transfigurasse as mais recônditas fibras daconsciência. Seus olhos se enchiam de lágrimas, não por um orgulhoferido ou pela ingratidão que aquelas admoestações injustas revelavam,mas com profunda com-" Emannuel,"paixão do esposo, que não a compreendia, e adivinhando a dolorosatempestade que lhe fustigava o coração generoso, porém arbitrário, noplano de suas resoluções. Serena e silenciosa, não se justificou perante asseveras reprimendas.Foi quando, então, compreendendo que aquele atrito não deveriaprosseguir, dirigiu-se o senador para a porta de saída do apartamento,abrindo-a com estrépito, a exclamar:- Jamais fiz uma viagem tão penosa e tão infeliz! Gênios malditosparecem presidir ás minhas atividades na Palestina, porque, se curei umafilha, perdi um filhinho no desconhecido e começo a perder a mulher noabismo das irreflexões e da incoerência; e acabarei, também, perdendo-mepara sempre.Dizendo-o, bateu a porta com toda a força dos seus movimentosinstintivos, encaminhando-se ao gabinete, enquanto a esposa, de coraçãogenuflexo, dirigia o pensamento para aquele Jesus carinhoso e terno, queviera ao mundo para salvar todos os pecadores. Lágrimas dolorosasfluíam-lhe dos olhos, fixos ainda na paisagem do lago de Genesaré, aondeparecia haver regressado em espírito, novamente. Lá estava o Mestre, ematitudes doces de prece, cravando nas estrelas do céu os olhosfulgurantes.Figurou-se-lhe que Jesus também lhe notara a presença naquelahora sombria da noite, porque desviara o olhar fúlgido do firmamentoconstelado e estendia-lhe os braços compassivos e misericordiosos,exclamando com infinita doçura:- Filha, deixa que chorem os teus olhos as imperfeições da alma queo Nosso Pai destinou para gêmea da tua!... Não esperes deste mundo maisque lágrimas e padecimentos, porque é na dor que os corações selucificam para o céu... Um momento chegará em que te sentirás no acumedas aflições, mas não duvides da minha misericórdia, porque no momentooportuno, quando todos te desprezarem, eu te chamarei ao meu reino dedivinas" Emannuel,"...esperanças, onde poderás aguardar teu esposo, no curso incessante dosséculos!...Pareceu-lhe que o Mestre continuaria a embalar-lhe o coração comsuaves e carinhosas promessas de bem-aventurança, mas um ruídoqualquer a separara daquela visão de luz e de felicidade indefiníveis.Quebrara-se o quadro da sua preocupação espiritual, como se feitode tenuíssimas filigranas.Todavia, a esposa do senador compreendeu que não fôra vítima deuma perturbação alucinatória, e guardou, com amor, no âmago do coração,as doces palavras do Messias. E, enquanto despia os trajes galileus, a fimde retomar o curso de suas obrigações domésticas, de alma límpida econsolada, parecia, ainda, lobrigar o vulto sereno e amado do Senhor, naseminências verdejantes das margens do Tiberíades, através da neblinasuave, que lhe embaciava os olhos úmidos de pranto." Emannuel,"132VIIINo grande dia do CalvárioDesde a sua altercação com a esposa, fechara-se Públio Lentulus namais penosa taciturnidade.Dolorosas suspeitas lhe vergastavam o coração impulsivo, acercado procedimento daquela que o destino algemara ao seu espírito, parasempre, no instituto da vida conjugal. Não pudera compreender o disfarcede que Lívia se utilizara para o encontro com o profeta de Nazaré, pois seutemperamento orgulhoso rebelava-se contra aquela atitude da mulher,considerando a sua posição social um penhor da veneração e do respeitode todos e dando guarida, assim, às mais penosas desconfianças,intoxicado pelas calúnias de Fúlvia e Sulpício.Algum tempo decorrera e, enquanto ele se enclausurava no seumutismo e na sua melancolia, Lívia abroquelava-se na fé, nas palavrascarinhosas e persuasivas do Nazareno. Nunca mais voltara ela aCafarnaum, com o fim de ouvir as consoladoras prédicas do Messias; mas,por intermédio de Ana, que lá comparecia pontualmente, procurou auxiliar,sempre que possível, os pobres que busca-" Emannuel,"...vam a palavra de Jesus, na medida dos seus recursos materiais. Profundatristeza lhe invadia o coração sensível e generoso, ao observar as atitudesincompreensíveis do companheiro; mas, a verdade é que já não colocavasuas esperanças em qualquer realização do orbe terrestre, volvendo asmais ardentes aspirações para aquele reino de Deus, maravilhoso esublime, onde tudo devia transpirar amor, ventura e paz, no seio farto desoberanas consolações celestes.Aproximava-se a Páscoa no ano 33. Numerosos amigos de Públiohaviam aconselhado a sua volta temporária a Jerusalém, a fim deintensificar os serviços da procura do filhinho, no curso das festividadesque concentravam, na época, as maiores multidões da Palestina,estabelecendo possibilidades mais amplas ao reencontro dodesaparecido. Peregrinos incontáveis, de todas as regiões da província,dirigiam-se para Jerusalém, a participar dos grandes festejos, oferecendo,simultaneamente, os tributos de sua fé, no suntuoso templo. A nobrezaindígena também se fazia notar ali, em tais circunstâncias, através de seuselementos mais representativos. Todos os partidos políticos searregimentavam para os serviços extraordinários das solenidades quereuniam as maiores massas do judaísmo, encaminhando-se para lá oshomens mais importantes do tempo. As autoridades romanas, por sua vez,concentravam-se, igualmente, em Jerusalém, na mesma ocasião, reunindo-se na cidade quase todos os centuriões e legionários, destacados aserviço do Império, nas paragens mais remotas da província.Públio Lentulus não desdenhou o alvitre e, antes que a cidade seenchesse de romeiros e exploradores, já ali se encontrava com a família,fornecendo instruções aos servos de confiança, conhecedores dopequenino Marcus, de maneira a estabelecer um cordão de investigadoresatentos e permanentes, enquanto perdurassem os festejos." Emannuel,"Em Jerusalém, o convencionalismo social não se modificara,notando-se apenas a circunstância de Públio haver dispensado aresidência do tio Sálvio, adquirindo uma vila confortável e graciosa emplena rua movimentada, de onde pudesse observar, igualmente, asmanifestações populares.As vésperas da Páscoa chegaram com a volumosa preamar deperegrinos de todas as classes e de todas as localidades provinciais.Interessante observar-se, naqueles blocos heterogêneos de povo, oshábitos mais dispares entre si.Caravanas sem conto, revelando os mais esquisitos costumes,atravessavam as portas da cidade, patrulhadas por numerosos soldadospretorianosE enquanto o senador fazia comparações de ordem econômica,social e política, observando as massas de povo que afluíam às ruasmovimentadas, vamos encontrar Lívia em palestra íntima com a serva desua amizade e confiança.- Sabeis, senhora, que também o Messias chegou ontem à cidade? -exclamava Ana, com um raio de alegria nos grandes olhos.- Verdade? - perguntou Lívia, surpresa.- Sim, desde ontem chegou Jesus a Jerusalém, saudado por grandesmanifestações populares.A ressurreição de Lázaro, em Betânia, confirmou suas divinasvirtudes de Filho de Deus, entre os homens mais descrentes desta cidade,e acabo de saber que sua chegada foi objeto de imensas alegrias da partedo povo. Todas as janelas se enfeitaram de flores para a sua passagemtriunfal, as crianças espalharam palmas verdes e perfumadas no caminho,em homenagem a ele e aos seus discípulos!... Muita gente acompanhou oMestre desde as margens do lago de Genesaré, seguindo-o até aqui,através de todas as localidades.Quem me trouxe a notícia foi um conhecido pessoal, portador do tioSimeão, que também veio a Jerusalém, nessa grande caminhada, apesarda sua idade avançada..." Emannuel,"...- Ana, essa notícia é muito confortadora -disse-lhe a senhora, combondade - e se eu pudesse iria ouvir a palavra do Mestre, onde quer quefosse; mas, bem sabes as dificuldades para a consecução deste intento.Entretanto, ficas livre de tuas obrigações e trabalhos, durante apermanência de Jesus em Jerusalém, de modo a bem aproveitares asfestas da Páscoa, ouvindo, ao mesmo tempo, as prédicas do Messias, quetanto bem nos fazem ao coração.E, entregando à criada o indispensável auxílio pecuniário, observavaque Ana partia satisfeita em demanda das cercanias do Monte dasOliveiras, onde estacionavam massas compactas de peregrinos, entre osquais se notava a presença do velho Simeão, de Samaria, romeirodesassombrado que não trepidara, apesar da idade avançada, em aderir aomovimento das peregrinações pelos mais escabrosos e longos caminhos.Em casa de Lentulus não havia tanto interesse pelas grandesfestividades do judaísmo.Um único motivo justificava a presença do senador em Jerusalém,naqueles dias turbulentos: o da busca incessante do filho, que pareciaperdido para sempre.Diariamente ouvia os servos de confiança, após as diligênciasempreendidas e, de instante a instante, sentia-se mais acabrunhado poracerbas desilusões, considerando a luta inútil naquelas pesquisasexaustivas e infrutíferas.Na vivenda clara e ajardinada, as horas passavam vagarosas etristes. Embalde se movimentavam as ruas, patrulhadas por soldados echeias de criaturas de todos os matizes sociais. O vozerio das ruidosasmanifestações populares transpunha aquelas portas quase silenciosas,como ecos apagados de rumores longínquos.A penosa situação conjugal, em que se colocara, separava osenador da mulher, como se estivessem" Emannuel,"irremediavelmente distantes um do outro e destruídos os laços sagradosdo coração.Foi a esse retiro de calma aparente que Ana voltou, certa manhã,passados alguns dias, a fim de cientificar a senhora da inesperada prisãodo Messias.Com a simplicidade espontânea e sincera da alma popular, que elaencarnava, a serva humilde historiou, com os mais íntimos pormenores, acena provocada pela ingratidão de um dos discípulos, em virtude dodespeito e da ambição dos sacerdotes e fariseus do templo da grandecidade israelita.Amargamente compungida em face do acontecimento, Líviaconsiderou que, se fosse noutro tempo, recorreria imediatamente àproteção política do marido, de modo a evitar ao profeta de Nazaré osataques das ambições desmesuradas. Agora, porém, reconhecia não lheser possível socorrer-se do prestigio do companheiro, em taiscircunstâncias. Mesmo assim, procurou aproximar-se dele, por todos osmodos, embora improficuamente. De uma sala contígua ao seu gabinete,notou que Públio atendia a numerosas pessoas que o procuravamparticularmente, em atitude discreta; e o interessante é que, segundo assuas observações, todos expunham ao senador o mesmo assunto, isto é, aprisão inesperada de Jesus Nazareno - acontecimento que desviara todasas atenções das festividades da Páscoa, tal o interesse despertado pelosfeitos do Mestre, em todos os espíritos. Alguns solicitavam a suaintervenção no processo do acusado; outros, da parte dos fariseus ligadosaos sacerdotes do Sinédrio, encareciam aos seus olhos o perigo daspregações de Jesus, apresentado por muitos como revolucionárioinconsciente, contra os poderes políticos do Império.Debalde esperou Lívia que o marido lhe concedesse dois minutos deatenção, no compartimento próximo do seu gabinete privado." Emannuel,"...Sua ansiedade tocava o apogeu, quando lobrigou a figura deSulpício Tarquinius, que vinha da parte de Pilatos solicitar ao senador oobséquio da sua presença, imediatamente, no palácio do governoprovincial, a fim de resolver um caso de consciência.Públio Lentulus não se fez rogado.Ponderando os deveres de homem de Estado, concluiu que deveriaesquecer quaisquer prevenções da sua vida particular e privada,marchando ao encontro das obrigações que devia ao Império.Lívia perdeu, então, toda a esperança de implorar-lhe auxílio para oMestre, naquele dia. Sem saber porque, intensa amargura invadia-lhe omundo íntimo. E foi com a alma envolta em sombras que elevou ao PaiCelestial as suas preces fervorosas e sinceras, por aquele que seucoração considerava lúcido emissário dos céus, suplicando, a todas asforças do bem, livrassem o Filho de Deus da perseguição e da perfídia doshomens.Ao chegar à corte provincial romana, naquele dia inesquecível deJerusalém, Públio Lentulus foi tomado de extraordinária surpresa.Ondas compactas de povo se adensavam na praça extensa, emgritaria ensurdecedora.Pilatos recebeu-o com deferência e solicitude, conduzindo-o a umgabinete amplo, onde se reunia pequeno número de patrícios, escolhidos adedo em Jerusalém. O pretor Sálvio, funcionários de destaque, militaresgraduados e alguns poucos romanos civis, de nomeada, que passavameventualmente pela cidade, ali se aglomeravam, convocados pelogovernador, que se dirigiu a Públio Lentulus, nestes termos:- Senador, não sei se tivestes ensejo de conhecer, na Galileia, umhomem extraordinário que o povo se habituou a chamar Jesus Nazareno.Esse homem foi agora preso, em virtude da condenação dos membros doSinédrio, e a massa popular que o havia recebido, nesta cidade, compalmas e flores, pede agora, nesta praça, o seu imediato julgamento" Emannuel,"por parte das autoridades provinciais, em confirmação da sentençaproferida pelos sacerdotes de Jerusalém.Eu, francamente, não lhe vejo culpa alguma, senão a de ardentevisionário de coisas que não posso ou não sei compreender,surpreendendo-me amargamente o seu penoso estado de pobreza.Neste comenos, penetraram na sala as duas irmãs, Cláudia e Fúlvia,que tomaram assento nesse conselho íntimo de patrícios.- Ainda esta noite - continuou Pilatos, apontando para a esposa -,parece que os augúrios dos deuses se manifestaram para a minhaorientação, pois Cláudia sonhou que uma voz lhe recomendava que eu nãodeveria arriscar minha responsabilidade no julgamento desse homemjusto.Resolvi, portanto, agir em consciência, aqui reunindo todos ospatrícios e romanos notáveis de Jerusalém, para examinarmos o assunto,de modo que o meu ato não prejudique os interesses do Império, nemcolida com o meu ideal de justiça.Que dizeis, pois, dos meus escrúpulos, na qualidade derepresentante direto do Senado e do Imperador, entre nós, nestemomento?- Vossa atitude - obtemperou o senador, compenetrado de suasresponsabilidades -- revela o máximo critério nas questõesadministrativas.E, recordando, no íntimo, os bens que havia recebido do profeta coma cura da filhinha, embora as dúvidas levantadas por seu orgulho evaidade, continuou:- Conheci de perto o profeta de Nazaré, em Cafarnaum, ondeninguém o tinha na conta de conspirador ou revolucionário. Suas ações,ali, eram as de um homem superior, caridoso e justo, e jamais tiveconhecimento de que sua palavra se erguesse contra qualquer institutosocial ou político, do Império. Certamente, alguém o toma aqui comopretendendo a autoridade política da Judeia, cevando-se no seu nome asambições e o despeito dos" Emannuel,"...sacerdotes do templo. Mas, já que guardais no coração os melhoresescrúpulos, porque não enviais o prisioneiro ao julgamento de Ântipas, aquem, com mais propriedade, deve interessar a solução de semelhanteassunto? Representando, nestes dias, o governo da Galileia aqui emJerusalém, acho que ninguém, melhor que Herodes, pode resolver em sãconsciência um caso como este, considerando-se a circunstância de quejulgará um compatrício seu, já que não vos supondes de posse de todosos elementos para proferir sentença definitiva nesse processo insólito.A idéia foi unanimemente aceita, sendo o acusado conduzido àpresença de Herodes Ântipas, por alguns centuriões, obedecendo-se,rigorosamente, as determinações de Pilatos nesse sentido.Todavia, no palácio do Tetrarca da Galileia, foi Jesus de Nazarérecebido com profundo sarcasmo.Apelidado pela gente simples como ""Rei dos Judeus"" esimbolizando a esperança de certas reivindicações políticas paranumerosos de seus seguidores, entre os quais se incluía o famosodiscípulo de Kerioth, o mestre de Nazaré foi tratado pelo príncipe deTiberíades como vulgar conspirador, humilhado e vencido.Ântipas, porém, para fazer sentir ao Procurador da Judeia a conta deridículo em que tomava os seus escrúpulos, mandou que se tratasse oprisioneiro com o máximo de ironia.Vestiu-lhe uma túnica alva, igual à indumentária dos príncipes dotempo, colocando-lhe nos braços uma cana imunda à guisa de cetro, ecoroou-lhe a fronte abatida com uma auréola de venenosos espinhos,devolvendo-o à sanção de Pilatos, no turbilhão de gritarias da populaçaexacerbada.Muitos soldados romanos cercavam o acusado, protegendo-o dasinvestidas da massa furiosa e inconsciente.Jesus, trajando, por irrisão, a túnica da realeza, coroado de espinhose empunhando uma cana" Emannuel,"como símbolo do seu reinado no mundo, deixava transparecer, nos olhosprofundos, indefinível melancolia.Cientificado de que o prisioneiro era devolvido por Ântipas ao seujulgamento, o governador dirigiu-se novamente aos seus conterrâneos,exclamando:- Meus amigos, não obstante nossos esforços, Herodes apelatambém para nós outros, a fim de se confirmar a peça condenatória doprofeta Nazareno, recambiando-o com a sua situação penosamenteagravada perante o povo, porquanto, como suprema autoridade emTiberíades, tratou o prisioneiro com revoltante sarcasmo, dando-nos aentender o desprezo com que supõe deva ele ser encarado pela nossajustiça e administração.Tão amarga situação contrista-me bastante, porque o coração me dizque esse homem é um justo; mas, que fazermos em semelhanteconjuntura?Da câmara isolada, onde se reunia o apressado e reduzido conselhode patrícios, podiam observar-se os ecos rumorosos da turba amotinada,em espantosa gritaria.Um ajudante de ordens do governador, de nome Polibius, homemsensato e honesto, penetrou no recinto, pálido e quase trêmulo, dirigindo-se a Pilatos:- Senhor Governador, a multidão enfurecida ameaça invadir a casa,se não confirmardes a sentença condenatória de Jesus Nazareno, dentrodo menor prazo possível...- Mas, isso é um absurdo - retrucou Pilatos, emocionado. - E, afinal,que diz o profeta, em tais circunstâncias? Sofre tudo sem uma palavra derecriminação e sem um apelo oficial aos tribunais de justiça?- Senhor - replicou Polibius, igualmente impressionado -, oprisioneiro é extraordinário na serenidade e na resignação. Deixa-seconduzir pelos" Emannuel,"...algozes com a docilidade de um cordeiro e nada reclama, nem mesmo osupremo abandono em que o deixaram quase todos os diletos discípulosda sua doutrina!Comovido com os seus padecimentos, fui falar-lhe pessoalmente e,inquirindo-o sobre os seus martírios, afirmou que poderia invocar aslegiões de seus anjos e pulverizar toda a Jerusalém dentro de um minuto,mas que isso não estava nos desígnios divinos e, sim, a sua humilhaçãoinfamante, para que se cumprissem as determinações das Escrituras. Fiz-lhe ver, então, que poderia recorrer à vossa magnanimidade, a fim de seordenar um processo dentro de nossos dispositivos judiciários, demaneira a comprovar sua inocência e, todavia, recusou semelhanterecurso, alegando que prescinde de toda proteção política dos homens,para confiar tão somente numa justiça que diz ser a de seu Pai que estános céus!- Homem extraordinário!... - revidou Pilatos, enquanto os presentes oacompanhavam estupefatos.Polibius - continuou ele -, que poderíamos fazer para evitar-lhe amorte nefanda, nas mãos criminosas da massa inconsciente?- Senhor, em vista da necessidade de resolução rápida, sugiro apena dos açoites na praça pública, por ver se assim conseguimos amainaras iras populares, evitando ao prisioneiro a morte ignominiosa nas mãosde celerados sem consciência...- Mas, os açoites?! - diz Públio Lentulus, admirado, antevendo astorturas do horrível suplício.- Sim, meu amigo - redargüiu o governador, dirigindo-lhe a palavracom atenção respeitosa -, a idéia de Polibius é bem lembrada. Paraevitarmos ao acusado a morte ignominiosa, temos de lançar mão desterecurso. Vivendo na Judeia há quase sete anos, conheço este povo e seide suas temíveis atitudes, quando as suas paixões se desencadeiam." Emannuel,"O suplício foi, então, ordenado, no pressuposto de evitar maioresmales.Diante de todos, foi Jesus açoitado, de maneira impiedosa, aosberros estridentes da multidão amotinada.Nesse instante doloroso, Públio e alguns romanos se ausentarampor momentos da câmara privada onde se reuniam, a fim de observaremos movimentos instintivos da massa fanática e ignorante. Não parecia queos peregrinos de Jerusalém haviam acorrido à cidade para ascomemorações alegres da Páscoa, mas, tão somente, para procederem àcondenação do humilde Messias de Nazaré. De quando em quando, fazia-se mister o concurso decidido de centuriões desassombrados, quedispersavam certos grupos mais exaltados, a golpes de chanfalho.O senador fez questão de aproximar-se do supliciado, na suasprovações dolorosas e extremas.Aquele rosto enérgico e meigo, em que os seus olhos haviamdivisado uma auréola de luz suave e misericordiosa, nas margens doTiberíades, estava agora banhado de suor sangrento a manar-lhe da frontedilacerada pelos espinhos perfurantes, misturando-se de lágrimasdolorosas; seus delicados traços fisionômicos pareciam invadidos depalidez angustiada e indescritível; os cabelos caíam-lhe na mesmadisposição encantadora sobre os ombros seminus e, todavia, estavamagora desalinhados pela imposição da coroa ignominiosa; o corpovacilava, trêmulo, a cada vergastada mais forte, mas o olhar profundosaturava-se da mesma beleza inexprimível e misteriosa, revelandoamargurada e indefinível melancolia.Por um momento, seus olhos encontraram os do senador, quebaixou a fronte, tocado pela imorredoura impressão daquela sobre-humana majestade.Públio Lentulus voltou intimamente compungido ao interior dopalácio, onde, daí a poucos" Emannuel,"...minutos, retornava Polibius, cientificando o governador de que a pena doaçoite não havia saciado, infelizmente, as iras da população enfurecida,que reclamava a crucificação do condenado.Penosamente surpreendido, exclamou o senador, dirigindo-se aPilatos, com intimidade:- Não tendes, porventura, algum prisioneiro com processoconsumado, que possa substituir o profeta em tão horrorosas penas? Asmassas possuem alma caprichosa e versátil e é bem possível que a dehoje se satisfaça com a crucificação de algum criminoso, em lugar dessehomem, que pode ser um mago ou visionário, mas é um coração caridosoe justo.O governador da Judeia concentrou-se por momentos, recorrendo àmemória, com o fim de encontrar a desejada solução.Lembrou-se então de Barrabás, personalidade temível, que seencontrava no cárcere aguardando a última pena, conhecido e odiado detodos pelo seu comprovado espírito de perversidade, respondendo afinal:- Muito bem!... Temos aqui um celerado, no cárcere, para alívio detodos, e que poderia, com efeito, substituir o profeta na morte infamante!...E mandando fazer o possível silêncio, de uma das eminências doedifício, ordenou que o povo escolhesse entre o bandido e Jesus.Mas, com grande surpresa de todos os presentes, a multidãobradava com sinistro alarido, numa torrente de impropérios:- Jesus!... Jesus!... Absolvemos Barrabás!... Condenamos a Jesus!...Crucificai-o!... Crucificai-o!...Todos os romanos se aproximaram das janelas, observando ainconsciência da massa criminosa, no ímpeto de seus instintosdesencadeados.- Que fazer diante de tal quadro? - perguntou Pilatos, emocionado,ao senador que o ouvia atentamente." Emannuel,"- Meu amigo - respondeu Públio, com energia -, se a decisãodependesse tão somente de mim, fundamentá-la-ia em nossos códigosjudiciários, cuja evolução não comporta mais uma condenação tãosumária como esta, e mandava dispersar a multidão inconsciente à pata decavalo; mas, considero que as minhas atribuições transitórias, junto aovosso governo, não me outorgam direito a tais desmandos e, além disso,tendes aqui uma experiência de sete anos consecutivos.De minha parte, suponho que tudo foi feito para que as decisões nãofossem precipitadas.Antes de tudo, o prisioneiro foi enviado ao julgamento de Ântipas,que complicou a situação, diante da populaça irresponsável, dentro dassuas infelizes noções da tarefa de um governo, deixando-vos aresponsabilidade da última palavra sobre o assunto; em seguida,determinastes o suplício do açoite para satisfazer ao povo amotinado, e,agora, acabais de indicar outro criminoso para a crucificação, em lugar doacusado. Tudo inutilmente.Como homem, estou contra este povo inconsciente e infeliz e tudofaria por salvar o inocente; mas, como romano, acho que uma província,como esta, não passa de uma unidade econômica do Império, não noscompetindo, a nós outros, o direito de interferência nos seus grandesproblemas morais e presumindo, desse modo, que a responsabilidadedesta morte nefanda deve caber agora, exclusivamente, a essa turbaignorante e desesperada, e aos sacerdotes ambiciosos e egoístas que adirigem.Pilatos enterrou a fronte nas mãos, como a refletir maduramentenaquelas ponderações; mas, antes que pudesse externar sua opinião, eisque Polibius aparece aflito, exclamando em atitude discreta:- Senhor governador, é preciso apressar vossa decisão. Espíritosmaldizentes começam a duvidar da vossa fidelidade aos poderes de César,compelidos pela intriga dos sacerdotes do templo," Emannuel,"...colocando a vossa dignidade em terreno equívoco para todos... Alémdisso, a populaça tenta invadir a casa, tornando-se necessário assumirdesatitude decisiva, sem perda de um minuto.Pilatos ficou rubro de cólera, diante de semelhantes injunções,exclamando irritado, como se estivesse sob o jugo do mais singular dosdeterminismos:- Está bem! Lavarei as mãos deste ignominioso delito! O povo deJerusalém será satisfeito...E, procedendo a esse ato que o celebrizaria para sempre, dirigiualgumas palavras ao condenado, mandando, em seguida, recolhê-lo a umacela, onde pudesse permanecer alguns minutos, sem as grosseirasinvestidas da turba impetuosa, antes que a multidão o conduzisse aoGólgota, que, na linguagem usual, deverá ser traduzido por Lugar daCaveira.Um sol abrasador tornara sufocante e insuportável a atmosfera.Saciada, afinal, a fúria da multidão nos seus desvairamentosinfelizes, numerosos soldados seguiram o prisioneiro, que demandava omonte da crucificação, a passos vacilantes sob o madeiro da ignomínia,que a justiça da época destinava aos bandidos e aos ladrões.Até o momento de sua saída sob a cruz, ninguém se interessara porele, junto à autoridade ([o governador da Judeia.Depreendia daí o senador que, quantos seguiam o Mestre de Nazarénas margens do lago, em Cafarnaum, o haviam abandonado inteiramente.De uma das janelas do palácio, considerou, penalizado, o desprezoinfligido àquele homem que, um dia, o dominara com a força magnética dasua personalidade incompreensível, observando a ondulação da turbaenfurecida, ao sair o inesquecível cortejo.Ao lado do Mestre não se via mais a carinhosa assistência dosdiscípulos e seus numerosos segui-" Emannuel,"dores. Apenas algumas mulheres - entre as quais se destacava o vultoimpressionante e agoniado de sua mãe - o amparavam afetuosamente, nodoloroso e derradeiro transe.Aos poucos, a praça extensa aquietou-se ao calor sufocante da tardeque se avizinhava.A distância, ouvia-se ainda a vozearia da plebe, aliada ao relinchardos cavalos e ao tinir das armaduras.Impressionados com o espetáculo que, aliás, não era incomum naPalestina, reuniram-se os romanos em uma das salas amplas do paláciogovernamental, em animada palestra, comentando os instintos e paixõesferozes da plebe enfurecida.Daí a minutos, Cláudia mandava servir doces, vinhos e frutas, e,enquanto a conversação timbrava os problemas da província e as intrigasda corte de Tibério, mal imaginava aquele punhado de criaturas que, nacruz grosseira e humilde do Gólgota, ia acender-se uma gloriosa luz paratodos os séculos terrestres." Emannuel,"147IXA calúnia vitoriosaSe Jesus de Nazaré havia sido abandonado por seus discípulos eseguidores mais diretos, o mesmo não se verificara quanto ao grandenúmero de criaturas humildes que o acompanhavam com devoçãopurificada e sincera.É verdade que essas almas, raras, não revelaram francamente assuas simpatias perante a turba desvairada, temendo-lhe as sanhasdestruidoras, mas, muitos espíritos piedosos, como Ana e Simeão,contemplaram de perto os martírios do Senhor sob o açoite infamante,cheios de lágrimas angustiosas e esperando que, a cada momento, sepudesse manifestar a justiça de Deus contra a perversidade dos homens, afavor do Messias.Contudo, esvaeceram-se-lhes as derradeiras esperanças, quando,sob o peso da cruz, o supliciado caminhou a passos cambaleantes, para omonte da última injúria, depois de confirmada a ignóbil sentença.Foi assim que Ana e seu tio, reconhecendo inevitável o martírio dacrucificação, deliberaram" Emannuel,"seguir para a residência de Públio, para suplicar o patrocínio de Lívia,junto ao governador.Enquanto o cortejo sinistro e impressionante se punha em marchanos seus movimentos vagarosos, ambos se desviaram da massa,encaminhando-se por uma viela ensolarada, em busca do almejadosocorro.Penetrando na residência, enquanto Simeão a esperava,pacientemente, numa calçada próxima, dirige-se Ana à esposa do senador,que a recebeu surpresa e angustiada.- Senhora - diz, mal ocultando as lágrimas -, o profeta de Nazaré jáestá a caminho da morte ignominiosa na cruz, entre os ladrões!...Uma emoção mais forte embargara-lhe a voz, sufocada de pranto.- Como? - respondeu Lívia, penosamente surpreendida - se a prisãodata de tão poucas horas?- Mas é a verdade... - revidou a serva, compungida. - E em nomedaqueles mesmos sofredores que vistes consolados pela sua palavracarinhosa e amiga, Junto às águas do Tiberíades, eu e meu tio Simeãovimos implorar o vosso auxílio pessoal perante o governador, a fim defazermos um esforço derradeiro pelo Messias!...- Mas, uma condenação como essa, sem estudo, sem exame, é lápossível? Vive, então, aqui este povo sem outra lei que não a da barbaria?- exclamou a senhora, visivelmente revoltada com a inopinada notícia.Como se desejasse arrancá-la a qualquer divagação incompatívelcom o momento, a serva insistiu com decisão e amargura:- Entretanto, senhora, não podemos perder um minuto.- Antes de tudo, porém, eu precisava consultar meu marido sobre oassunto... - monologou a esposa do senador, recordando-se,repentinamente, dos seus deveres conjugais." Emannuel,"...Onde estaria Públio naquele instante? Desde a manhã, nãoregressara a casa, após o chamado insistente de Pilatos. Teria colaboradona condenação do Messias? Num relance, a pobre senhora examinou todaa situação nos seus mínimos detalhes, recordando, igualmente, os bensinfinitos que o seu coração havia recebido das mãos caridosas ecomplacentes do Mestre Nazareno, e, como se estivesse iluminada poruma força superior que lhe fazia esquecer todas as questões transitóriasda Terra, exclamou com heróica resolução:- Está bem, Ana, irei em tua companhia pedir a proteção de Pilatospara o profeta.Esperar-me-ás um momento, enquanto vou retomar aqueles trajesgalileus que me serviram naquela tarde de Cafarnaum, dirigindo-me, destemodo, ao governador, sem provocar a atenção da turbamulta desenfreada.Em poucos minutos, sem refletir nas conseqüências da suadesesperada atitude, Lívia estava na rua, novamente enfiada nos trajessimples da gente pobre da Galileia, trocando amarguradas impressõescom o ancião de Samaria e sua sobrinha, acerca dos dolorososacontecimentos.Aproximando-se da sede do governo provincial, seu coraçãopalpitou com mais força, obrigando-a a mais demorados pensamentos.Não seria uma temeridade da sua parte procurar o governador, semprévio conhecimento do marido? Mas, tudo não fizera ela, em vão, paraaproximar-se do esposo arredio e irritado, de maneira a reerguer suaantiga confiança? E Pilatos? Na sua imaginação, guardava ainda ospormenores das amargas comoções daquela noite em que lhe fôra elemais franco, quanto aos sentimentos inconfessáveis que a sua figura demulher lhe havia inspiradoLívia hesitou ao penetrar num dos ângulos da grande praça, agoraadormecida por um sol causticante, de brasas vivas." Emannuel,"Seu raciocínio contrariava a atitude que assumira aos apelos daserva, que representava, aos seus olhos, a súplica angustiada de inúmerosespíritos desvalidos; seu coração, porém, sancionava plenamente aquelederradeiro esforço em favor do emissário celeste que lhe havia curado aschagas da filhinha, enchendo de tranqüilidade inalterável o seu coraçãoatormentado de esposa e mãe, tantas vezes incompreendido. Além disso,nesse conflito interior da razão e do sentimento, este último lhe fazialembrar que Jesus, nas margens do lago, lhe falara de amarguradossacrifícios pela sua grande causa, e não seria aquela a hora sagrada dagratidão de sua fé ardente e do seu testemunho de reconhecimento?Aliviada pela íntima satisfação do cumprimento do seu carinhoso dever,avançou então, desassombradamente, deixando os dois companheiros àsua espera, num dos largos recantos da praça, enquanto procurava ganharas adjacências do edifício, com ligeiro desembaraço.Batia-lhe o coração descompassadamente.Como encontrar o governador da Judeia àquela hora? Um solardente concentrava, em tudo, calor intolerável e sufocante.O cortejo, em demanda do Gólgota, partira havia quase uma hora e opalácio parecia agora mergulhado numa atmosfera de silêncio e de sono,após as penosas confusões daquele dia.Apenas alguns centuriões montavam guarda ao edifício e, quandoLívia alcançou menor distância das portas principais de acesso ao interior,eis que se lhe depara a figura de Sulpício, a quem se dirigiu com o máximode confiança e de inocência, pedindo-lhe o obséquio de solicitar umaaudiência privada e imediata ao governador, em seu nome. a fim de falar-lhe quanto à dolorosa situação de Jesus de Nazaré.O lictor mirou-a de alto a baixo com o olhar de lascívia e cupidez quelhe eram características e, crendo piamente nas relações ilícitas daquela" Emannuel,"... 151mulher com o Procurador da Judeia, em virtude de suas observaçõespessoais, por coincidências que se lhe figuravam a realidade perfeitadaquela suposta prevaricação, presumiu, naquele ato insólito, não omotivo apresentado, que lhe pareceu ótimo pretexto para afastar quaisquerdesconfianças, mas o objetivo de se encontrar com o homem de suaspreferências.Criatura ignóbil, de que se utilizava o governador para instrumentode suas paixões malignas, entendeu que semelhante entrevista deveria serlevada a efeito na maior intimidade, e, sabendo que Públio Lentulus aindalá se encontrava em animada palestra com os companheiros, conduziuLívia a um gabinete perfumado, onde se alinhavam preciosos vasos dearomas do Oriente, saturados de fluidos sutis e entontecedores, e ondePilatos recebia, por vezes, a visita furtiva das mulheres de condutaequívoca, convidadas a participar dos seus licenciosos prazeres.Ignorando, por completo, o mecanismo de circunstâncias que aconduziam a uma penosíssima situação, Lívia acompanhou o lictor aogabinete aludido, onde, embora estranhando a suntuosidade extravagantedo ambiente, se demorou alguns minutos, a sós, aguardandoansiosamente o instante de implorar, de viva voz, ao procurador da Judeiaa sua prestigiosa interferência a favor do generoso Messias de Nazaré.Nem ela, nem Sulpício, todavia, chegaram a perceber que uns olhosperscrutadores os acompanharam com profundo interesse, desde oexterior do edifício ao gabinete privado a que nos referimos.Era Fúlvia, que, conhecendo semelhante apartamento do palácio,surpreendera a esposa do senador, sob o disfarce daquela túnica humilde,da vida rural, enchendo-se-lhe o coração de pavorosos ciúmes, ao verificaraquela visita inesperada.Enquanto Sulpício Tarquinius fazia um sinal familiar ao governador,a que este atendeu de pron-" Emannuel,"to, indo imediatamente ao seu encontro num vasto corredor, ondemurmuraram ambos algumas palavras em tom discreto, cientificando-sePilatos da almejada entrevista em particular, aquela maliciosa criaturademandava alcovas do seu íntimo conhecimento, de maneira a certificar-se, positivamente, através dos reposteiros, da presença de Lívia na câmaraprivada do governador, destinada às suas expansões licenciosas.Certificada, em absoluto, do acontecimento, a caluniadoraantegozou o instante em que tomaria Públio pelas mãos, a fim de conduzi-lo à visão direta do suposto adultério de sua mulher e, quando regressavaao vasto salão, deixando transparecer levemente a satisfação sinistra dasua alma, ainda ouviu Pilatos exclamar com delicadeza para os seusconvidados:- Meus amigos, espero me concedam alguns minutos para atender auma entrevista privada e urgente, que eu não esperava neste momento.Acredito que, consumada a condenação do Messias de Nazaré, batem já aestas portas os que não tiveram coragem para defendê-lo publicamente,no momento oportuno!. . Vamos ver!E retirando-se com o assentimento unânime dos presentes, ogovernador atingia o gabinete reservado, onde, eminentementesurpreendido, encontrou o vulto nobre de Lívia, mais bela e mais sedutoranaqueles trajes despretensiosos e simples, e que lhe falou nestes termos:- Senhor governador, embora sem o consentimento prévio de meumarido, resolvi chegar até aqui, em virtude da urgência do assunto, asuplicar o vosso amparo político para a absolvição do profeta de Nazaré.Homem humilde e bom, caridoso e justo, que mal teria praticado paramorrer assim, de morte aviltante, entre dois ladrões? É por isso que,conhecendo-o pessoalmente e tendo-o na conta de um inspirado do céu,ouso invocar as vossas" Emannuel,"...elevadas qualidades de homem público, em favor do acusado!...Sua voz era trêmula, indicando as emoções que lhe iam nalma.- Senhora - respondeu Pilatos, fazendo o possível para sensibilizar eseduzir-lhe o coração com a fingida ternura de suas palavras -, tudo fizpara evitar a Jesus a morte no madeiro infamante, vencendo todos osmeus escrúpulos de homem de governo, mas, infelizmente, tudo estáconsumado. Nossa legislação foi vencida pelas iras da multidãodelinqüente, nas explosões injustificadas do seu ódio incompreensível.- Então, não é licito esperarmos nenhuma providência mais abeneficio desse homem caridoso e justo, condenado como vulgarmalfeitor? Será ele, então, crucificado pelo crime de praticar a caridade eplantar a fé no coração dos seus semelhantes, que ainda não sabemadquiri-la por si próprios?- Infelizmente, assim é... - replicou Pilatos, contrafeito. - Tudofizemos a fim de evitar os desatinos da plebe amotinada, mas os meusescrúpulos não conseguiram vencer, sendo obrigado a confirmar a penade Jesus, a contragosto.Por um momento, entregou-se Lívia às suas meditações dolorosas,como se estivesse inquirindo, a si mesma, qualquer providência nova aadotar sem perda de um minuto.Quanto ao governador, depois de imprimir uma pausa às suaspalavras, deixou que os instintos do homem surgissem, plenamente,naquelas circunstâncias.Aquele dia havia sido de lutas penosas e intensas. Singularabatimento físico lhe dominava os centros mais poderosos da forçaorgânica, mas, diante dos seus olhos habituados à conquista e, muitasvezes, aos recursos da própria crueldade, estava aquela mulher, que lheresistira... Poderosa algema parecia imantá-lo à sua personalidade simplese carinhosa, e ele, mais que nunca, desejou" Emannuel,"possuí-la, tornando-a, como as outras, um instrumento de suastransitórias paixões. O ambiente, sobretudo, conturbava-lhe as fontes maispuras do raciocínio. Aquele gabinete era destinado, exclusivamente, àssuas extravagâncias noturnas, e fluidos entontecedores pairavam emtodos os seus escaninhos, embotando os mais nobres pensamentos.Via a mulher ambicionada, perdida por alguns segundos emgraciosas cismas, diante da sua presença dominadora.Aquela graça simples, saturada de generosidade quase infantil ealiada aos olhos límpidos e profundos de madona do lar, obscureceu-lhe ocavalheirismo que, por vezes, aflorava no modo brusco das suas injustiçase crueldades de homem da vida particular e da vida pública.Avançando como tomado por força incoercível, exclamouinopinadamente, fazendo-lhe sentir o perigo da posição em que secolocara:- Nobre Lívia - começou ele, na inquietação de seus impurospensamentos -, nunca mais olvidei aquela noite, cheia de músicas e deestrelas, em que vos revelei pela primeira vez a ardência do meu coraçãoapaixonado... Esquecei, por um momento, esses judeus incompreensíveise ouvi, ainda uma vez, a palavra sincera dos profundos sentimentos queme inspirastes com as vossas virtudes e peregrina beleza!.- Senhor!... - teve forças para exclamar a pobre senhora, procurandoaliviar-se da afronta.Mas, o governador, com a ousadia dos homens impetuosos, nãoteve outro gesto senão o de obedecer aos seus caprichos impulsivos,tomando-lhe as mãos, atrevidamente.Lívia, todavia, movimentando todas as suas energias, alcançourecursos para se desvencilhar dos seus braços longos e fortes,redargüindo, intrépida:- Para trás, senhor! Acaso será esse o tratamento de um homem deEstado para com uma" Emannuel,"...cidadã romana e esposa de um senador ilustre do Império? E, ainda queme faltassem todos esses títulos, que me deveriam dignificar aos vossosolhos cúpidos e desumanos, suponho que não deveríeis faltar, nestemomento, com o comezinho dever de cavalheirismo respeitoso, quequalquer homem é obrigado a dispensar a uma mulher!O governador estacou ante aquele gesto heróico e imprevisto, tãohabituado estava ele aos mais avançados processos de sedução.A resistência daquela mulher espicaçava os desejos de vencer-lhe oorgulho nobre e a virtude incorruptível.Tinha ímpetos de se atirar àquela criatura delicada e frágil, noturbilhão de lascívia e voluptuosidade que lhe obumbravam o raciocínio;no entanto, força incoercível parecia impor-se aos seus caprichosperigosos de apaixonado, inutilizando-lhe as forças necessárias àexecução de semelhante cometimento.Neste comenos, a esposa do senador, lançando-lhe um olhardoloroso onde se podia ler toda a. extensão do seu sofrimento e do seudesprezo em face do ultraje recebido, retirou-se profundamenteemocionada, com o cérebro fervilhante dos mais desencontradospensamentos.Antes, porém, que a vejamos sair do gabinete, somos obrigados aretroceder alguns minutos, quando Fúlvia solicitou ao sobrinho de seumarido o obséquio de uma palavra em particular, pondo-o ao corrente detudo o que se passava.O senador experimentou um choque terrível no coração,pressentindo que a prevaricação da mulher estava prestes a confirmar-sediante dos seus próprios olhos, e, contudo, hesitou ainda acreditar emsemelhante vilania.- Lívia, aqui? - perguntou soturnamente à esposa do tio, dando aentender, pela inflexão da voz, que tudo não passava de criminosa calúnia." Emannuel,"- Sim - exclamou Fúlvia, ansiosa por fornecer-lhe a prova tangível desuas asserções -, ela está em colóquio com o governador, no seucompartimento privado, sem ajuizar da situação e das circunstâncias emque se verifica tal encontro, porque, afinal, Cláudia ainda está nesta casae, perante a lei, minha irmã é a esposa legitima de Pilatos, mal habituadocom os costumes dissolutos da Corte, de onde foi enviado para cá emvirtude de sérios incidentes desta mesma natureza!Públio Lentulus arregalou os olhos, na sua ingenuidade, dandoguarida aos mais horríveis sentimentos, intoxicando-se com o veneno damais acerba desconfiança, em vista de todas as circunstâncias operaremcontra sua mulher, embora jogasse ele no assunto com os mais vastoscabedais da sua tolerância e liberalidade.Sua atitude de expectativa revelava ainda o máximo deincredulidade, com respeito às acusações que ouvira, mas, observando acaluniadora o seu angustiado silêncio, acudiu ansiosa, exclamando:- Senador, acompanhai-me através destas salas e vos entregarei achave do enigma, porquanto verificareis a leviandade de vossa esposa,com os vossos próprios olhos.- Desvairais? - perguntou ele, com serenidade terrível. - Um chefe defamília da nossa estirpe social, a menos que uma confiança mais forte lheoutorgue esse direito, não deve conhecer as intimidades domésticas deuma casa que não seja a sua própria.Percebendo que o golpe falhara, voltou Fúlvia a exclamar com amesma firmeza:- Está bem, já que não desejais fugir aos vossos princípios,aproximemo-nos de uma dessas janelas. Daqui mesmo, podereis observara veracidade de minhas palavras, com a retirada de Lívia dos apartamentosprivados deste palácio.E quase a tomar o interlocutor pelas mãos, tal o abatimento moralque se apossara dele, a" Emannuel,"...mulher do pretor aproximou-se do parapeito de uma janela próxima,seguida pelo senador, que a acompanhava, cambaleante.Não foram necessários outros argumentos que melhor oconvencessem.Chegados ao local preferido de Fúlvia, como posto de observação,em poucos segundos viram abrir-se a porta do gabinete indicado, aomesmo tempo que Lívia se retirava, nos seus disfarces galileus, deixandotransparecer na fisionomia os sinais evidentes da sua emoção, como sequisesse fugir de situação que a acabrunhava penosamente.Públio Lentulus sentiu a alma dilacerada para sempre. Considerou,num relance, que havia perdido todos os patrimônios de nobreza social epolítica, de envolta com as aspirações mais sagradas do seu coração.Diante da atitude de sua mulher, considerada por ele como indelévelignominia que lhe infamava o nome para sempre, supôs-se o maisdesventurado dos homens. Todos os seus sonhos estavam agora mortos,e perdidas, terrivelmente, todas as esperanças. Para o homem, a mulherescolhida representa a base sagrada de todas as realizações da suapersonalidade nos embates da vida, e ele experimentou que essa base lhefugia desequilibrando-lhe o cérebro e o coração.Contudo, nesse turbilhão de fantasmas da sua imaginaçãosuperexcitada, que escarneciam de suas mentirosas venturas, lobrigou ovulto suave e doce dos filhinhos, que o fitavam silenciosos e comovidos.Um deles vagava no desconhecido, mas a filha esperava-lhe o carinhopaternal e deveria ser, doravante, a razão da sua vida e a força de todas assuas esperanças.- Que dizeis, agora - exclamou Fúlvia, triunfante, arrancando-o doseu doloroso silêncio.- Vencestes! - respondeu secamente, com a voz embargada deemoção.E, dando à expressão fisionômica o máximo de energia, voltou aosalão extenso, a passos pesados e" Emannuel,"soturnos, despedindo-se heroicamente dos amigos, a pretexto de leveenxaqueca.- Senador, esperai um momento. O governador ainda não voltou dosseus aposentos particulares - exclamou um dos patrícios presentes.- Muito agradecido! - disse Públio, gravemente. Mas os prezadosamigos hão-de desculpar a insistência, apresentando minhas despedidas eagradecimentos ao nosso generoso anfitrião.E, sem mais delongas, mandou preparar a liteira que o conduziria deregresso ao lar, pelas mãos fortes dos escravos, de modo a proporcionaralgum repouso ao coração supliciado por emoções dolorosas einesquecíveis.Enquanto o senador se retira profundamente contrariado,acompanhemos Lívia, de volta à praça, a fim de notificar aos dois amigos oresultado improfícuo da sua tentativa.Profundas amarguras lhe pungiam o coração.Jamais pensara, na sua generosidade simples e confiante, que oprocurador da Judeia pudesse receber-lhe a súplica com tamanhademonstração de indiferença e impiedade pela sua situação de mulher.Procurou refazer-se daquelas emoções, em se aproximando de Anae do tio, porquanto lhe competia ocultar aquele desgosto no mais íntimodo coração.Junto de ambos os companheiros humildes, da mesma crença,deixou expandir a sua angústia, exclamando pesarosa:- Ana, infelizmente tudo está perdido! A sentença foi consumada enão há mais nenhum recurso!... O profeta carinhoso de Nazaré nunca maisvoltará a Cafarnaum para nos levar as suas consolações brandas eamigas!... A cruz de hoje será o prêmio, deste mundo, à sua bondade semlimites!...Todos os três tinham os olhos orvalhados de lágrimas." Emannuel,"...- Faça-se, então, a vontade do Pai que está nos céus - exclamou aserva, prorrompendo em soluços.- Filhas - disse, porém, o ancião de Samaria, com o olhar profundo elímpido, fito no céu, onde fulguravam as irradiações do sol ardente -, oMessias nunca nos ocultou a verdade dos seus sacrifícios, dos martíriosque o aguardavam nestes sítios, a fim de nos ensinar que o seu reino nãoestá neste mundo! Nas sombras da minha velhice, estou apto a reconhecera grande realidade das suas palavras, porque honras e vanglórias,mocidade e fortuna, bem como as alegrias passageiras do plano terrestre,de nada valem, pois tudo aqui vem a ser ilusão que desaparece nosabismos da dor e do tempo... A única realidade tangível é a de nossa almaa caminho desse reino maravilhoso, cuja beleza e cuja luz nos foramtrazidas por suas lições inesquecíveis e carinhosas...- Mas - obtemperou Ana, entre lágrimas -nunca mais veremos aJesus de Nazaré, confortando-nos o coração!...- Que dizes, filha - exclamou Simeão, com firmeza. - Não sabes,então, que o Mestre afiançou que a sua presença consoladora é sempreinalterável entre os que se reúnem e se reunirão, neste mundo, em seunome? Regressando, agora, a Samaria, erguerei uma cruz à porta da nossachoupana e reunirei, ali, a comunidade dos crentes que desejaremcontinuar as amorosas tradições do Messias.E, depois de uma pausa em que parecia despertar sob o peso depungentes preocupações, acentuou:- Mas, não temos tempo a perder... Sigamos para o Gólgota... Vamosreceber, ainda uma vez, as bênçãos de Jesus!- Muito grato me seria acompanhá-los - retrucou Lívia,impressionada -; entretanto, urge volte a casa, onde me esperam oscuidados com a" Emannuel,"filha. Sei que hão-de relevar minha ausência, porque a verdade é queestou, em pensamento, junto à cruz do Mestre, meditando nos seusmartírios e inomináveis padecimentos... Meu coração acompanhará essaagonia indescritível, e que o Pai dos céus nos conceda a força precisapara suportarmos corajosamente o angustioso transe!...- Ide, senhora, que os vossos deveres de esposa e mãe são tambémmais que sagrados - exclamou Simeão, carinhosamente.E enquanto o velho e a sobrinha se dirigiam para o Calvário,escalando as vias públicas que demandavam a colina, Lívia regressava aolar, apressadamente, buscando os caminhos mais curtos, através dasvicias estreitas, de modo a voltar, quanto antes, não só pela circunstânciainesperada de sair à rua em trajes diferentes, compelida pelos imperativosdo momento, mas também porque inexplicável angústia lhe azorragava ocoração, fazendo-lhe experimentar uma necessidade mais forte de precese meditações.Chegando ao lar, seu primeiro cuidado foi retomar a túnica habitual,buscando um recanto mais silencioso dos seus apartamentos, para orarcom fervor ao Pai de infinita misericórdia.Daí a minutos, ouviu os ruídos indicativos da volta do esposo, que,notou, se recolhia ao gabinete particular, fechando a porta com estrépito.Lembrou-se, então, que de sua casa era possível avistar ao longe osmovimentos do Gólgota, procurando um ângulo de janela, de ondeconseguisse contemplar os penosos sacrifícios do Mestre de Nazaré.Bastou buscasse fazê-lo, para que enxergasse nas eminências do monte ogrande ajuntamento de povo, enquanto levantavam as três cruzesfamosas, daquele dia inesquecível.A colina era estéril, sem beleza, e através da distância podiam seusolhos lobrigar os caminhos poeirentos e a paisagem desolada e árida, sobum sol causticante." Emannuel,"...Lívia orava com toda a intensidade emotiva do seu espírito,dominada por angustiosos pensamentos.À sua visão espiritual, surgiram ainda os quadros suaves eencantadores do ""mar"" da Galileia, conhecendo que à memória lhe revinhaaquele crepúsculo inolvidável, quando, entre criaturas humildes esofredoras, aguardava o doce momento de ouvir a confortadora palavra doMessias, pela primeira vez. Via ainda a tosca barca de Simão, encostando-se às flores mimosas das margens, enquanto a renda branca das espumaslambia os seixos claros da praia... Jesus ali estava, junto da multidão dosdesesperados e desiludidos, com seus grandes olhos ternos e profundos...Todavia, aquela cruz que se levantava, no monte da Caveira, trazia-lhe o coração em amargosas cismas.Depois de orar e meditar longamente, examinou de longe os trêsmadeiros, presumindo escutar o vozeio da multidão criminosa, que seacotovelava junto à cruz do Mestre, em terríveis impropérios.De repente, sentiu-se tocada por uma onda de consolaçõesindefiníveis. Figurava-se-lhe que o ar sufocante de Jerusalém se haviapovoado de vibrações melodiosas e intraduzíveis. Extasiada, observou, naretina espiritual, que a grande cruz do Calvário estava cercada de luzesnumerosas.Ao calor invulgar daquele dia, nuvens escuras se haviamconcentrado na atmosfera, prenunciando tempestade. Em poucos minutos,toda a abóbada celeste permanecia represada de sombras espessas. Noentanto, naquele momento, Lívia notara que se havia rasgado um longocaminho entre o Céu e a Terra, por onde desciam ao Gólgota legiões deseres graciosos e alados. Concentrando-se, aos milhares, ao redor domadeiro, pareciam transformar a cruz do Mestre em fonte de claridadesperenes e radiosas.Atraída por aquele imenso foco de luz resplandecente, sentiu quesua alma desligada do corpo" Emannuel,"carnal se transportava ao cume do Calvário, a fim de prestar a Jesus oúltimo preito do seu devotamento. Sim! via, agora, o Messias de Nazarérodeado dos seus lúcidos mensageiros e das legiões poderosas de seusanjos. Jamais supusera vê-lo tão divinizado e tão belo, de olhos voltadospara o firmamento, como em visão de gloriosas beatitudes.Ela o contemplou, por sua vez, tocada de sua maravilhosa luz, alheiaa todos os rumores que a rodeavam, implorando-lhe fortaleza, resignação,esperança e misericórdia.Em dado instante, seu espírito sentiu-se banhado de consolaçãoindefinível. Como se estivesse empolgada pela maior emoção de sua vida.notou que o Mestre desviara levemente o olhar, pousando-o nela, numaonda de amor intraduzível e de luminosa ternura. Aqueles olhos serenos emisericordiosos, nos tormentos extremos da agonia, pareciam dizer-lhe: -""Filha, aguarda as claridades eternas do meu reino, porque, na Terra, éassim que todos nós deveremos morrer!...""Desejava responder às exortações suaves do Messias, mas seucoração estava sufocado numa onda de radiosa espiritualidade. Todavia,no íntimo, afirmou, como se estivesse falando para si mesma: - ""Sim, édesse modo que deveremos morrer!... Jesus, concedei-me alento,resignação e esperança para cumprir os vossos ensinamentos, paraalcançar um dia o vosso reino de amor e de justiça!...""Lágrimas copiosas banhavam-lhe o rosto, naquela visão beatífica emaravilhosa.Nesse momento, porém, a porta abriu-se com estrépito e a vozsoturna e desesperada do marido vibrou no ar abafado, despertando-abruscamente, arrancando-a de suas visões consoladoras.- Lívia! - bradou ele, como se estivesse tocado por comoçõesdecisivas e desesperadas." Emannuel,"...Públio Lentulus, regressando ao lar, encaminhou-se imediatamenteao gabinete, onde se deixou ficar por muito tempo, engolfado em atrozespensamentos. Depois de sentir o cérebro trabalhado pelas maisantagônicas resoluções, lembrou-se de que deveria suplicar a piedade dosdeuses para os seus penosos transes. Dirigiu-se ao altar doméstico onderepousavam os símbolos inanimados de suas divindades familiares, mas,enquanto Lívia alcançara o precioso conforto, aceitando no coração osensinos de Jesus com o perdão, a humildade e a prática do bem, debalde osenador procurou esclarecimento e consolo, elevando as suas oraçõesaos pés da estátua de Júpiter, impassível e orgulhoso. Debalde suplicou ainspiração de suas divindades domésticas, porque esses deuses eram atradição corporificada do imperialismo da sua raça, tradição que seconstituía de vaidade e de orgulho, de egoísmo e de ambição.Foi assim que, intoxicado pelo ciúme, procurou a esposa, sem maisdelongas, a fim de cuspir-lhe em rosto todo o desprezo da sua amarguradadesesperação.Ao chamá-la, bruscamente, observou que seus olhos semicerradosestavam cheios de lágrimas, como a contemplar alguma visão espiritualinacessível à sua observação. Jamais Lívia lhe parecera tão espiritualizadae tão bela, como naquele instante; mas o demônio da calúnia lhe fez sentir,imediatamente, que aquele pranto nada representava senão sinal deremorso e compunção ante a falta cometida, ciente, como deveria achar-sea esposa, da sua presença no palácio governamental, depreendendo-se daíque ela deveria esperar a possibilidade da sua severa punição.Arrancada ao seu êxtase pela voz vibrante do marido, a pobresenhora observou que a sua visão se desvanecera inteiramente, e que océu de Jerusalém fôra invadido por intensa escuridão, ouvindo-se osribombos formidáveis de trovões longí-" Emannuel,"quos, enquanto relâmpagos terríveis riscavam a atmosfera em todas asdireções.- Lívia - exclamou o senador, com voz forte e pausada, dando aentender o esforço que despendia para dominar o complexo de suasemoções -, as lágrimas de arrependimento são inúteis neste momentodoloroso dos nossos destinos, porque todos os laços de afetividadecomum, que nos uniam, estão agora rotos para sempre...- Mas, que é isso? - pôde ela dizer, revelando o pavor que taispalavras lhe produziam.- Nem mais uma palavra - revidou o senador, pálido de cólera, dentrode uma serenidade feroz e implacável -, observei, com os próprios olhos, oseu nefando delito e agora conheço a finalidade dos seus disfarceshumildes de galileia... Ouvir-me-á a senhora até ao fim, eximindo-se dequalquer justificativa, porque uma traição como a sua só poderá encontrarjusto castigo no silêncio profundo da morte.Mas, não quero matá-la. Minha formação moral não se compadececom o crime. Não porque haja piedade em minha alma, à vista do possívelarrependimento do seu coração, no tempo oportuno, mas porque tenhoainda uma filha sobre cuja fronte recairia o meu gesto de crueldade contraa sua felonia, que basta para nos tornar infelizes por toda a vida...Homem honesto e pronto a desafrontar-me de qualquer ultraje, tenhomuito amor ao meu nome e ás tradições de minha família, de modo a menão tornar um pai desnaturado e criminoso.Poderia abandoná-la para sempre, na consideração do seu ato deextrema deslealdade, porém os servos desta casa se alimentamigualmente à minha mesa, e, sem reconhecer os outros títulos que meligavam à senhora, na intimidade doméstica, vejo ainda na sua pessoa amãe de meus filhos desventurados. É por isso que, doravante, desprezo,em face das provas palpáveis da sua desonestidade," Emannuel,"...neste dia nefasto do meu destino, todas as expressões morais da suapersonalidade indigna, para conservar nesta casa, tão somente, a suaexpressão de maternidade, que me habituei a respeitar nos irracionaismais humildes.Os olhos súplices da caluniada deixavam entrever os indizíveismartírios que lhe dilaceravam o coração carinhoso e sensibilíssimo.Ajoelhara-se aos pés do esposo, com humildade, enquanto lágrimasdolorosas lhe rolavam das faces pálidas.Lembrava-se Lívia, então, de Jesus nos seus intraduzíveispadecimentos. Sim... ela recordava as suas palavras e estava pronta para osacrifício. No meio de suas dores, parecia sentir ainda o gosto daquele pãode vida, abençoado por suas divinas mãos, e figurava-se lavada de todasas mundanas preocupações. A idéia do reino dos céus, onde todos osaflitos são consolados, anestesiava-lhe o coração dolorido, nas suasprimeiras reflexões a respeito da calúnia de que era vítima o seu espíritofustigado pelas provas aspérrimas.Não obstante essa atitude de serena humildade, o senadorcontinuou no auge da angústia moral:- Dei-lhe tudo que possuía de mais puro e mais sagrado nestemundo, na esperança de que correspondesse aos meus ideais maissublimes; entretanto, relegando todos os deveres que lhe competiam, nãovacilou em derramar sobre nós um punhado de lama... Preferiu, aoconvívio do meu coração, os costumes dissolutos desta época decriaturas irresponsáveis, no capítulo da família, resvalando para odesfiladeiro que conduz a mulher aos abismos do crime e da impiedade.Mas ouça bem minhas palavras que assinalam os mais terríveisdesgostos do meu coração!Nunca mais se afastará dos labores domésticos, das obrigaçõesdiárias de minha casa. Mais um ato, com que provoque as derradeirasreservas" Emannuel,"da minha tolerância, não deverá esperar outra providência que não seja amorte.Não me solicite as mãos honestas para um ato de tal natureza. Se astradições familiares desapareceram no âmago do seu espírito, continuamelas cada vez mais vivas em minhalma, que as deseja cultivarincessantemente no santuário de minhas recordações mais queridas. Vivacom o seu pensamento na ignomínia, mas abstenha-se de zombarpublicamente dos meus sentimentos mais sagrados, mesmo porque, apaciência e a liberdade também têm os seus limites.Saberei ressurgir desta queda em que as suas leviandades meatiraram!...De ora em diante, a senhora será nesta casa apenas uma serva,considerando a função maternal que hoje a exime da morte; mas, nãointervenha na solução de qualquer problema educativo de minha filha.Saberei conduzi-la sem o seu concurso e buscarei o filhinho perdido talvezpela sua inconsciência criminosa, até o fim de meus dias. Concentrareinos filhos a parcela imensa de amor que lhe reservara, dentro dagenerosidade da minha confiança, porquanto, doravante, não me deveprocurar com a intimidade da esposa, que não soube ser, pela suainjustificável deslealdade, mas com o respeito que uma escrava deve aosseus senhores!...Enquanto se verificava uma ligeira pausa na palavra acrimoniosa eamargurada do senador, Lívia dirigiu-lhe um olhar de angustia suprema.Desejava falar-lhe como dantes, entregando-lhe o coração sensível ecarinhoso; todavia, conhecendo-lhe o temperamento impulsivo, adivinhoua inutilidade de qualquer tentativa para justificar-se.Passadas as primeiras reflexões e ouvindo, amargurada de dor,aquela terrível insinuação acerca do desaparecimento do filhinho, deixouvagar no coração vacilações injustificáveis e numerosas. Ante aquelascalúnias que a faziam tão desditosa, chegava a pensar se as boas açõesnão seriam vistas" Emannuel,"...por aquele Pai de infinita bondade, que ela acreditava velar, dos céus, portodos sofredores, de conformidade com as promessas sublimes doMessias Nazareno. Não guardara ela uma conduta nobre e exemplar, comomãe dedicada e esposa carinhosa? Todo o seu coração não estava postoem tributos de esperança e de fé naquele reino de soberana justiça, que selocalizava fora da vida material? Além disso, sua ida precipitada a Pilatos,sem a audiência prévia do marido, fôra tão somente com o elevadopropósito de salvar a Jesus de Nazaré da morte infamante. Onde o socorrosobrenatural que não chegava para esclarecer a penosa situação dela emostrar tal injustiça?Lágrimas angustiosas enevoavam-lhe os olhos cansados e abatidos.Mas antes que o marido recomeçasse as acusações, viu-se de novodefronte da cruz, em pensamento.Uma brisa suave parecia amenizar as úlceras que o libelo do esposolhe abrira no coração. Uma voz, que lhe falava aos refolhos mais íntimosda consciência, lembrou-lhe ao espírito sensível que o Mestre de Nazarétambém era inocente e expirara, naquele dia, na cruz, sob os insultos dealgozes impiedosos. E ele era justo, bom e compassivo. Daqueles a quemmais havia amado, recebera a traição e o abandono na hora extrema dotestemunho e, de quantos havia servido com a sua caridade e o seu amor,tinha recebido os espinhos envenenados da mais acerba ingratidão. Ante avisão dos seus martírios infinitos, Lívia consolidou a sua fé e rogou ao PaiCelestial lhe concedesse a intrepidez necessária para vencer as provaçõesaspérrimas da vida.Suas meditações angustiosas haviam durado um momento. Umminuto apenas, após o qual, continuou Públio Lentulus com vozdesesperada:- Aguardarei mais dois dias, nas pesquisas de meu filhinhodesventurado! Decorridas estas poucas" Emannuel,"horas, voltarei a Cafarnaum para afrontar a passagem do tempo. . Ficareineste cenário maldito, enquanto for necessário e, quanto à senhora,recolha-se doravante em sua própria indignidade, porque, com o mesmoímpeto generoso com que lhe poupo a existência neste momento, nãovacilarei em lhe infligir a derradeira punição no momento oportuno!...E, abrindo a porta de saída, que estremecera aos ribombos dotrovão, exclamou com terrível acento:- Lívia, este momento doloroso assinala a perpétua separação dosnossos destinos. Não ouse transpor a fronteira que nos isola um do outro,para sempre, no mesmo lar e dentro da mesma vida, porque um gestodesses pode significar a sua inapelável sentença de morte.Atrás dele, fechara-se a porta com estrépito, abafado pelos rumoresda tempestade.Jerusalém estava sob um verdadeiro ciclone de destruição, que iadeixar, após sua passagem, sinal de ruína, desolação e morte.Ficando só, Lívia chorou amargamente.Enquanto a atmosfera se lavava com a chuva torrencial que descia acântaros no fragor das trovoadas, também a sua alma se despia dasilusões amargas e purificadoras.Sim... estava só e profundamente desventurada.Doravante, não poderia contar com o amparo do marido, nem com oafeto suave da filhinha, mas um anjo de serenidade velava à sua cabeceira,com a doçura das sentinelas que nunca se afastam do seu posto de amor,de redenção e de piedade. E foi esse Espírito luminoso que, fazendogotejar o bálsamo de esperança no cálice do seu coração angustiado, deu-lhe a sentir que ainda possuía muito: - o tesouro da fé, que a unia a Jesus,ao Messias da renúncia e da salvação, a esperá-la em seu reino de luz e demisericórdia." Emannuel,"169XO Apóstolo da SamariaNo dia seguinte, Públio Lentulus incentivou as pesquisas dofilhinho, entre quantos peregrinavam nas festas da Páscoa, em Jerusalém,instituindo o prêmio de um Grande Sestércio (1), ou sejam dois mil equinhentos asses, para quem apresentasse aos seus servos a criançadesaparecida.Não devemos esquecer que a criada Sêmele, bem como suascompanheiras de serviço foram submetidas ao mais rigoroso inquérito,por ocasião do castigo aos servos imprevidentes, encarregados davigilância noturna em casa do senador.Públio não admitia castigos físicos às mulheres, mas, no casomisterioso do desaparecimento do filhinho, submeteu as criadas a uminterrogatório francamente impiedoso.Inútil declarar que Sêmele protestara a mais absoluta inocência,nada deixando transparecer que pudesse comprometer sua conduta.Entretanto, as três servas que mais diretamente cuidavam dopequeno, entre as quais estava__________(1) Mil sestércios." Emannuel,"ela incluída, foram obrigadas a colaborar com os escravos na procura deMarcus, pelas praças e ruas de Jerusalém, embora tivessem suas horasdiárias consagradas ao descanso. Essas horas, aproveitava-as Sêmelepara visitar ou rever relações amigas, passando a maior parte do tempo nosítio onde André cultivava as suas oliveiras e vinhedos frondosos, a poucadistância da estrada para os centros principais.Nesse dia, vamos encontrá-la ai em animada palestra com o raptor esua mulher, enquanto a criança dormitava ao canto de um compartimento.- Com quê então, o senador instituiu o prêmio de um GrandeSestércio a quem lhe devolva a criancinha? - pergunta André de Gioras,admirado.- É verdade - exclamou Sêmele, pensativa. E, na realidade, trata-sede grande soma em dinheiro romano, que facilmente ninguém ganharáneste mundo.- Se não fosse o meu justo e ardente desejo de vingança - replicou oraptor com o seu malicioso sorriso -, era o caso de irmos abocanhar essarespeitável quantia. Mas, deixa estar que não precisamos de semelhantedinheiro. Nada necessitamos desses malditos patrícios!Sêmele escutava-o indiferente e quase completamente alheia àconversa; entretanto, o interlocutor não perdia de vista as característicasfisionômicas de sua cúmplice, como se tentasse descobrir no seu modosimples e humilde algum pensamento reservado.Foi assim que, no intuito de lhe sondar a atitude psicológica, disseem tom aparentemente calmo e despreocupado, como a inquirir dos seuspropósitos mais secretos:- Sêmele, quais são as últimas noticias de Benjamim?- Ora, Benjamim - respondeu ela, aludindo ao noivo - ainda não seresolveu a marcar o casa-" Emannuel,"...mento, em definitivo, atento às nossas inúmeras dificuldades.Como não ignora, todo o meu desejo no trabalho se resume naconsecução do nosso ideal de adquirir aquela casinha de Betânia, já suaconhecida, e tão logo venhamos a conseguir nosso intento estaremosunidos para sempre.- Ainda bem - disse André, com a atitude psicológica de quemencontrara a chave de um enigma -, com tempo haverão de conseguir todoo necessário à ventura de ambos. Da minha parte, pode ficar descansada,porque tudo farei por auxiliá-la paternalmente.- Muito grata! - exclamou a moça, reconhecida. - Agora há-de permitirque volte ao trabalho, porque as horas parecem adiantadas.- Ainda não - falou André resolutamente -, espere um momento.Quero dar-lhe a provar do nosso vinho velho, aberto hoje somente paracomemorar a circunstância feliz de nos acharmos com vida, depois domedonho temporal de ontem!E, correndo ao interior, penetrou na adega, onde tomou de uma bilhade vinho espumante e claro, deitando-o, com fartura, numa taça antiga. Emseguida, foi a um quarto contíguo, de onde trouxe um tubo pequenino,deixando cair na taça algumas gotas do conteúdo, monologando baixinho:- Ah! Sêmele, bem poderias viver, se não surgisse esse prêmiomaldito, que te condena à morte!... Benjamim... o casamento é umasituação de amargurosa pobreza. - Uma soma de mil sestércios constituitentação a que não poderia resistir o espírito mais bem intencionado emais puro... Enquanto foram as aperturas e outros castigos, estava certo,mas agora é o dinheiro e o dinheiro costuma condenar as criaturashumanas à morte!...E, misturando o tóxico violento no vinho que espumava, continuouresmungando:" Emannuel,"- Daqui a seis horas minha pobre amiga estará penetrando o reinodas sombras... Que fazer? Nada me resta senão desejar-lhe boa viagem! Enunca mais alguém saberá, neste mundo, que em minha casa existe umescravo com o sangue nobre dos aristocratas do Império Romano!...Em dois minutos a desventurada serva do senador ingeria satisfeitao conteúdo da taça, agradecendo a sinistra gentileza com palavrascomovidas.Da porta de sua vivenda empedrada, observou André os passosderradeiros da sua cúmplice, nas derradeiras curvas do caminho.Ninguém mais pleitearia o Grande Sestércio oferecido peladesesperação de Lentulus, porque, precisamente à noitinha, quase àsdezenove horas, Sêmele experimentou uma sensação de súbito mal-estar,recolhendo-se ao leito imediatamente.Suores abundantes e frios lavaram-lhe as faces já descoradas, ondese notava o palor característico da morte.Ana, que já havia regressado, compungida, aos afazeresdomésticos, foi chamada à pressa, a fim de ministrar-lhe os socorrosprecisos, encontrando-a, porém, no auge da aflição que assinala osmoribundos prestes a se desvencilharem do cárcere da matéria.- Ana... - exclamou a agonizante, com voz sumida -, eu morro... mastenho a... consciência... pesada... intranqüila...- Sêmele, que é isso? - replicou a outra, fundamente comovida.Confiemos em Deus, nosso Pai Celestial, e confiemos em Jesus, que aindaontem nos contemplava da cruz dos seus sofrimentos, com um olhar deinfinita piedade!- Sinto... que é... tarde... - murmurou a agonizante, nas ânsias damorte -, eu... apenas... queria... um perdão...Todavia, a voz entrecortada e rouca não pôde continuar. Um soluçomais forte abafara as últi-" Emannuel,"...mas palavras, enquanto o rosto se cobria de tons violáceos, como se ocoração houvesse parado instantaneamente, estringido por incontrastávelforça.Ana compreendeu que era o fim e suplicou a Jesus recebesse emseu reino misericordioso a alma da companheira, perdoando-lhe as faltasgraves que, por certo, haviam dado motivo às palavras angustiosas dosúltimos momentos.Chamado um médico ao exame cadavérico, verificou, no empirismoda sua ciência, que Sêmele expirara por deficiência do sistema cardíaco e,longe de se descobrir a verdadeira causa daquele fato inesperado, osegredo de André de Gioras se envolvia nas sombras espessas do túmulo.Ana e Lívia tiveram ensejo de trocar impressões sobre o dolorosoacontecimento, mas ambas, embora a funda impressão que lhes causavamas derradeiras palavras da morta, encaravam a sua passagem para a outravida, na conta dessas fatalidades irremediáveis.Públio Lentulus, em seguida a esse fato, apressou o regresso àvivenda de Cafarnaum, que adquirira ao antigo dono, em caráter definitivo,prevendo a possibilidade de longa permanência em tais lugares. Oregresso foi triste, jornada trabalhosa e sem esperanças.Os servos numerosos não chegaram a perceber a profundadivergência agora existente entre ele e a esposa, e foi assim que,verdadeiramente separados pelo coração, continuaram no lar a mesmatradição de respeito perante os subordinados.Depois de alguns dias de sua segunda instalação na cidadepróspera e alegre onde Jesus tantas vezes fizera soar doces e divinaspalavras, o senador preparou copioso expediente para o amigo FIamínio,bem como para outros elementos do Senado, enviando Comênio a Roma,como portador de sua inteira confiança.Odiando a Palestina, que tantas e tão amargas provações lhereservara, mas preso a ela pelo desa-" Emannuel,"parecimento misterioso do pequenino Marcus, o senador solicitava aFlamínio a sua intervenção particular para que seu tio Sálvio regressasse àsede dos seus serviços na Capital do Império, tentando livrar-se dapresença de Fúlvia naqueles lugares, porquanto lhe dizia o coração, naintimidade do pensamento, que aquela mulher tinha uma influência nefastano seu destino e no de sua família. Ao mesmo tempo, saturado de terrívelaversão pela personalidade de Pôncio Pilatos, punha o amigo distante apar de numerosos escândalos administrativos que ele, após o incidente daPáscoa, resolvera corrigir com o máximo de severidade. Prometia, então, aFlamínio Severus, conhecer mais de perto as necessidades da província, afim de que as autoridades romanas ficassem cientes de gravesocorrências na administração, de modo que, em tempo oportuno, fosse ogovernador removido para outro setor do Império, e prometendorelacionar, sem demora, todas as injustiças da atuação de Pilatos na vidapública, em vista das reclamações reiteradas e consecutivas que lhechegavam aos ouvidos, de todos os recantos da província.Nessas cartas particulares pedia ainda, ao amigo, as providênciasprecisas, a fim de que lhe fosse enviado um professor para a filhinha,abatendo-se, contudo, de referir-se aos dolorosos dramas da vida privada,com exceção do caso do filhinho, por ele citado nesses documentos comocausa única da sua demora indefinita, em tais lugares.Comênio partiu de Jope, com o máximo de precaução, obedecendorigorosamente às suas ordens e atingindo Roma daí a algum tempo, ondefaria chegar aquelas notícias às mãos dos seus legítimos destinatários.Em Cafarnaum, a vida corria triste e silenciosa.Públio apegara-se ao seu arquivo volumoso, aos seus processos,aos seus estudos e às suas" Emannuel,"...meditações, preparando os planos educativos da filha ou organizandoprojetos concernentes às suas atividades futuras, fazendo o possível parareerguer-se do abatimento moral em que mergulhara com os dolorosossucessos de Jerusalém.Quanto a Lívia, esta, conhecendo a inflexibilidade do caráterorgulhoso do marido, e sabendo que todas as circunstâncias aparentavama sua culpa, encontrara na alma dedicada da serva uma confidenteextremosa no afeto, vivendo quase permanentemente mergulhada emorações sucessivas e fervorosas. Os sofrimentos experimentadospatentearam-se-lhe no rosto, revelando profundos vestígios nos sulcos daface descorada. Os olhos, todavia, demonstrando a têmpera e o vigor dafé, clareavam-lhe as expressões fisionômicas de brilho singular, apesar doseu visível abatimento.Em Cafarnaum, os seguidores do Mestre de Nazaré organizaramimediatamente uma grande comunidade de crentes do Messias, tornando-se muitos em apóstolos abnegados de sua doutrina de renúncia, desacrifício e de redenção. Alguns pregavam, como Ele, na praça pública,enquanto outros curavam os enfermos em seu nome. Criaturas rústicashaviam sido tomadas, estranhamente, do mais alto sopro de inteligência einspiração celeste, porque ensinavam com a maior clareza as tradições deJesus, organizando-se com a palavra desses apóstolos os pródromos doEvangelho escrito, que ficaria mais tarde no mundo como a mensagem doSalvador da Terra a todas as raças, povos e nações do planeta, qualluminoso roteiro das almas para o Céu.Todos quantos se convertiam à idéia nova, confessavam na praçapública os erros da sua vida, em sinal da humildade que lhes era exigida,portas a dentro da comunidade cristã. E para que o meigo profeta deNazaré jamais fosse esquecido em seus martírios redentores no Calvário,o povo" Emannuel,"simples e humilde, de então, organizou o culto da cruz, crendo fosse essaa melhor homenagem à memória de Jesus Nazareno.Lívia e Ana, no seu profundo amor ao Messias, não escaparam aessa adesão natural às tradições populares. A cruz era objeto de toda asua veneração e absoluto respeito, não obstante representar. naqueletempo, o instrumento de punição para todos os criminosos e celerados.Ana continuou a freqüentar as margens do lago, onde algunsapóstolos do Senhor prosseguiam cultivando as suas lições divinas, juntodos sofredores deserdados da sorte. E era comum verem-se esses antigoscompanheiros e ouvintes do Messias, como pegureiros humildes,atravessando estradas agrestes, no mais absoluto desconforto, a fim delevarem a todos os homens as palavras consoladoras da Boa Nova. Tiposimpressionantes de homens simples e abnegados percorriam os maislongos e escabrosos caminhos, de vestes rotas e calçando alpercatasgrosseiras, pregando, porém, com perfeição e sentimento, as verdades deJesus, como se as suas frontes humildes estivessem tocadas da graçadivina. Para muitos deles, o mundo não passava da Judeia ou da Síria;mas a realidade é que as suas palavras desassombradas e serenas iampermanecer no mundo para todos os séculos.Mais de um mês decorrera sobre a Páscoa de 33, quando o senador,por uma tarde formosa e quente da Galileia, se aproximou da esposa paralhe dizer dos seus novos propósitos:- Lívia - começou ele, reservado -, tenho a comunicar-lhe quepretendo viajar algum tempo, afastando-me desta casa talvez por doismeses, em cumprimento dos meus deveres de emissário do Imperador, emcondições especiais nesta província.Como esta viagem se verificará através de pontos numerosos,porquanto tenciono estacionar um pouco em todas as cidades doitinerário, até Jerusalém, não me é possível levá-la em minha" Emannuel,"...companhia, deixando-a, neste caso, como guardiã de minha filha.Como sabe, nada mais existe entre nós que lhe outorgue o direito deconhecer minhas preocupações mais íntimas; todavia, renovo minhaspalavras do dia fatal do nosso rompimento afetivo. Conservada nesta casa,apenas pela sua tarefa maternal, confio-lhe durante minha ausência aguarda de Flávia, até que chegue de Roma o velho professor que pedi aFlamínio.Desejo firmemente acredite na confiança que deponho no seupropósito de regeneração, como mãe de família, e que procurerestabelecer sua idoneidade que, outrora, não lhe negaria em taiscircunstâncias, e espero, assim, se abstenha de qualquer ato indigno, quevenha a perder minha pobre filha para sempre.- Públio!... - pode ainda exclamar a esposa do senador, aflitamente,tentando aproveitar aquele rápido minuto de serenidade do marido, a fimde se defender das calúnias que lhe eram assacadas pelas maiscomplicadas circunstâncias; mas, afastando-se repentinamente, fechadona sua severidade orgulhosa, o senador não lhe deu tempo de continuar,integrando-a, cada vez mais, no conhecimento da sua amarguradasituação dentro do lar.Passada uma semana, partia ele para a sua viagem aventurosa.Animavam-no, acima de tudo, o desejo de aliviar o coração de tantospesares, a tentativa da procura do filhinho desaparecido e o objetivo decatalogar os erros e injustiças da administração de Pilatos, de modo aalijá-lo dos poderes públicos na Palestina, em tempo oportuno.Na sua resolução, todavia, pairava um erro grave, cujasconseqüências dolorosas não conseguira ou não pudera prever no seuíntimo atribulado. A circunstância de deixar esposa e filha expostas aosperigos de uma região, onde eram" Emannuel,"consideradas como intrusas, devia ser examinada mais detidamente pelasua visão de homem prático Além disso, ele não podia contar, nessaausência, com a dedicação vigilante de Comênio, em viagem com destinoa Roma, onde o conduziam as determinações do patrão e leal amigo.Todas essas preocupações andavam no espírito de Lívia, dotada,como mulher, de sentimento mais apurado e mais justo, no plano dasconjeturas e previsões.Foi assim, de alma aflita, que viu partir o marido, embora houvesseele recomendado a numerosos servos o máximo de vigilância nostrabalhos da casa, junto aos seus familiares.Festividades solenes foram determinadas por Herodes, emTiberíades, previamente avisado pelo senador, a respeito de sua visitapessoal àquela cidade, que representava a primeira etapa da sua longaexcursão. Todas as localidades de maior destaque constavam comopontos de parada da caravana, recebendo Públio, em todas elas, as maisexpressivas homenagens das administrações e contingentes de escolta eservos inúmeros, que lhe auxiliavam os serviços, naquela demoradaexcursão através das unidades políticas de menor importância, naPalestina.Devemos consignar, porém, que Sulpício Tarquinius se encontravajustamente em missão junto de Ântipas, quando da festiva chegada dePúblio Lentulus à grande cidade da Galileia. Procurou, todavia, não sefazer notado pelo senador, regressando no mesmo dia a Jerusalém, ondevamos encontrá-lo em conferência íntima com o governador, nestestermos:- Sabeis que o senador Lentulus - dizia Sulpício, com o prazer dequem dá uma notícia desejada e interessante - dispôs-se a efetuar longaviagem por toda a província?- Quê? - fez Pilatos grandemente surpreendido." Emannuel,"...- Pois é verdade. Deixei-o em Tiberíades, de onde se dirigirá paraSebaste em breves dias, crendo mesmo, segundo o programa da viagem,que pude conhecer graças ao concurso de um amigo, que não voltará aCafarnaum nestes quarenta dias.- Que intuito terá o senador com viagem tão incômoda e sematrativo? Alguma determinação secreta da sede do Império? - inquiriuPilatos, receoso de alguma punição aos seus atos injustos naadministração política da província.Mas, após alguns segundos de meditação, como se o homemprivado sobrepujasse as cogitações do homem público, perguntou aolictor, com interesse:- E a esposa? Não o acompanhou? Teria o senador a coragem dedeixá-la só, entregue às surpresas deste pais, onde se aninham tantosmalfeitores?- Reconhecendo que teríeis interesse em tais informes - tornouSulpício, com fingida dedicação e satisfeita malícia -, busquei inteirar-medo assunto com um amigo que segue o viajante, como elemento de suaguarda pessoal, vindo a saber que a senhora Lívia ficou em Cafarnaum, nacompanhia da filha, e ali aguardará o regresso do esposo.- Sulpício - exclamou Pilatos, pensativo -, suponho não ignorasminha simpatia pela adorável criatura a que nos referimos...- Bem o sei, mesmo porque, fui eu próprio, como deveis estarlembrado, que a introduzi no vosso gabinete particular, não há muitotempo.- É verdade!- Porque não aproveitais este ensejo para uma visita pessoal aCafarnaum? - perguntou o lictor, com segundas intenções, mas sem ferirdiretamente o melindroso assunto.- Por Júpiter! - redargüiu Pilatos, satisfeito. - Tenho um convite deCusa e outros funcionários graduados de Ântipas, naquela cidade, que meautoriza a pensar nisso. Mas, a que vem a tua sugestão neste sentido?" Emannuel,"- Senhor - exclamou Sulpício Tarquinius, com hipócrita modéstia -,antes de tudo, trata-se da vossa alegria pessoal com a realização desseprojeto e, depois, tenho igualmente grande simpatia por uma jovem servada casa, de nome Ana. cuja beleza admirável e simples é das maissedutoras que hei visto nas mulheres nascidas em Samaria.- Que é isso? Nunca te observei apaixonado. Acho que já passaste aépoca dos arrebatamentos da mocidade. Em todo caso, isso quer dizer quenão me encontro sozinho na satisfação que me traz a idéia dessa viagemimprevista - replicou Pilatos, com visível bom humor.E, como se naquele mesmo instante houvesse elaborado todos osdetalhes do seu plano, exclamou para o lictor, que o ouvia entre satisfeitoe envaidecido:- Sulpício, ficarás aqui em Jerusalém apenas o tempo preciso ao teudescanso ligeiro e imediato, regressando, depois de amanhã, para aGalileia, onde irás diretamente a Cafarnaum avisar Cusa dos meuspropósitos de visitar a cidade e, feito isso, irás até à residência do senadorLentulus, onde avisarás sua esposa da minha decisão, em tom discreto,cientificando-a do dia previsto para a minha partida e chegada até lá.Espero que, com a atitude inconsiderada do marido, deixando-a tão só emtais regiões, venha ela pessoalmente a Cafarnaum encontrar-se comigo, demodo a distrair-se da companhia dos galileus grosseiros e ignorantes, erecordar por algumas horas os seus dias felizes da Corte, junto de minhaconversação e de minha amizade.- Muito bem - redargüiu o lictor, não cabendo em si de contente. -Vossas ordens serão rigorosamente cumpridas.Sulpício Tarquinius saiu alegre e confortado nos seus sentimentosinferiores, antegozando o instante em que se aproximaria novamente dajovem samaritana, que despertara a cobiça dos seus sentidos materiais,cobiça que não tivera tempo de" Emannuel,"...manifestar quando da sua permanência no serviço pessoal de PúblioLentulus.Cumprindo as determinações recebidas, vamos encontrá-lo daí aquatro dias em Cafarnaum, onde os avisos do governador foram recebidoscom grande contentamento por parte das autoridades políticas.O mesmo, porém, não aconteceu na residência de Públio, onde suapresença foi recebida com reservas pelos empregados e escravos da casa.Ao seu chamado, apresentou-se-lhe Maximus, substituto de Comênio nachefia dos serviços usuais, mas que estava longe de possuir a sua energiae experiência.Atendido, solicitamente, pelo antigo servo, que era seu conhecidopessoal, solicitou-lhe o lictor a presença de Ana, de quem dizia ele precisarde uma entrevista pessoal para a solução de determinado assunto.O velho criado de Lentulus não hesitou em chamá-la à presença deSulpício, que a envolveu de olhares cúpidos e ardentes.A criada perguntou-lhe, entre intrigada e respeitosa, a razão da visitainesperada, ao que Tarquinius esclareceu tratar-se da necessidade de seavistar, por um momento, com Lívia, em particular, tentando ao mesmotempo colocar a pobre moça ao corrente de suas pretensõesinconfessáveis, dirigindo-lhe as propostas mais indignas e insolentes.Após alguns minutos, em que se fazia ouvir nas suas expressõesinsultuosas, em voz abafada, que Ana escutava extremamente pálida, como máximo de cuidado e paciência para evitar qualquer nota escandalosa aseu respeito, respondeu a digna serva com voz austera e valorosa:- Senhor lictor, chamarei minha senhora para atender-vos, dentro depoucos instantes. Quanto a mim, devo afirmar-vos que estais enganado,porquanto não sou a pessoa que supondes." Emannuel,"E, encaminhando-se resolutamente para o Interior, cientificou asenhora do persistente propósito de Sulpício em lhe falar pessoalmente,surpreendendo-se Lívia não só com o acontecimento inesperado, senãotambém com a expressão fisionômica da serva, presa da mais extremapalidez, depois do choque sofrido. Ana tratou de não a inteirar de pronto,do sucedido, enquanto murmurava:- Senhora, o lictor Sulpício parece apressado. Presumo que nãotendes tempo a perder.Todavia, sem se deixar empolgar pelas circunstâncias, Lívia buscouatender ao mensageiro com o máximo de sua habitual atenção.Ante a sua presença, inclinou-se o lictor com profunda reverência,dirigindo-se-lhe respeitoso, no cumprimento dos deveres que o traziam:- Senhora, venho da parte do Senhor Procurador da Judeia, que tema honra de vos comunicar a sua vinda a Cafarnaum nos primeiros dias dapróxima semana...Os olhos de Lívia brilharam de justificada indignação, enquantoinúmeras conjeturas lhe assaltaram o espírito; movimentando, porém, assuas energias, teve a precisa coragem para responder à altura dascircunstâncias:- Senhor lictor, agradeço a gentileza de vossas palavras; todavia,cumpre-me esclarecer que meu marido se encontra em viagem, nestemomento, e a nossa casa a ninguém recebe na sua ausência.E, com leve sinal, fez-lhe sentir que era tempo de se retirar, o queSulpício compreendeu, intimamente encolerizado. Despediu-se comreverências respeitosas.Surpreendido com aquela atitude, porquanto ao espírito do lictor aprevaricação de Lívia representava um fato inconteste, retirou-sesumamente desapontado, mas não sem conjeturar os acontecimentos nasua depravada malícia." Emannuel,"...Foi assim que, encontrando-se com um dos soldados de guarda àresidência, seu conhecido e amigo pessoal, observou-lhe com fingidointeresse:- Otávio, antes de uma semana talvez aqui esteja de volta e desejariaencontrar de novo, nesta casa, a jóia rara de minha felicidade e de minhasesperanças...- Que jóia é essa? - perguntou, curioso, o interpelado.- Ana...- Está bem. Fácil é o trabalho que me pedes.- Mas, ouve-me bem - exclamou o lictor, pressentindo, já, que apresa tudo faria por fugir-lhe das mãos. - Ana costuma ausentar-sefreqüentemente e, caso isso se verifique, espero que a tua amizade não mefalte com os informes necessários, no instante oportuno...- Pode contar com a minha dedicação.Acabando de ouvir o pormenor mais importante desse diálogo,voltemos ao interior, onde Lívia, de alma opressa, confia à serva amiga edevotada as conjeturas dolorosas que lhe pesavam no coração. Depois deexternar-lhe os seus justificados temores, plenamente admitidos por Anaque, por sua vez, a colocou ao corrente das insolências de Sulpício, apobre senhora desfiou à sua confidente, simples e generosa, o rosárioinfindo de suas amarguras, relatando-lhe todos os sofrimentos que lhedilaceravam a alma carinhosa e sensibilíssima, desde o primeiro dia emque a calúnia encontrara guarida no espírito orgulhoso do companheiro.As lágrimas da serva, ante a singular narrativa, eram bem o reflexo da suaalta compreensão das angústias da senhora, perdida naqueles rincõesquase selvagens, considerando-se a sua educação e a nobreza de suaorigem.Ao finalizar o penoso relato de suas desditas, a nobre Lívia acentuoucom indisfarçável amargura:" Emannuel,"- Na verdade, tudo tenho feito por evitar os escândalos injustificáveise incompreensíveis. Agora, porém, sinto que a situação se agrava cada vezmais, à vista da insistência dos meus algozes e da displicência de meumarido em face dos acontecimentos, perdendo-se o meu espírito emconjeturas amargas e dolorosas.Se mando chamá-lo por um mensageiro, pondo-o ao corrente do quese passa, a fim de que nos proteja com as suas providências imediatas,talvez não compreenda a marcha dos fatos na sua intimidade, encarandoos meus receios como sintoma de culpas anteriores, ou tomando os meusescrúpulos como desejo de regeneração por faltas que não cometi, emvirtude de suas enérgicas reprimendas e penosas ameaças; se não o avisodessas ocorrências graves, do mesmo modo se produziria o escândalo,com a vinda do governador a Cafarnaum, aproveitando o ensejo da suaausência.Tomo, unicamente, a Jesus por meu juiz nesta causa dolorosa, emque as únicas testemunhas devem ser o meu coração e a minhaconsciência!...O que mais me preocupa, agora, minha boa Ana, não é tão somentea obrigação de velar por mim, que já experimentei o fel amaríssimo dadesilusão e da calúnia impiedosa. É, justamente, por minha pobre filha,porque tenho a impressão de que aqui na Palestina os malfeitores estãonos lugares onde deveriam permanecer os homens de sentimentos purose incorruptíveis...Como não ignoras, meu desventurado filhinho já se foi, arrebatadonesse turbilhão de perigos, talvez assassinado por mãos indiferentes ecriminosas... Fala-me o coração maternal que o meu desgraçado Marcusainda vive, mas onde e como? Debalde temos procurado sabê-lo, em todosos recantos, sem o mais leve sinal da sua presença ou passagem... Agora,manda a consciência que resguarde a filhinha contra as ciladastenebrosas!..." Emannuel,"...- Senhora - exclamou a serva, com fulgor estranho no olhar, como sehouvera encontrado uma solução repentina e apreciável para o assunto -,o que dissestes revela o máximo bom-senso e prudência... Também euparticipo dos vossos temores e suponho que deveremos fazer tudo porsalvar a menina e a vós mesma das garras desses lobos assassinos...Porque não nos refugiarmos nalgum local de nossa inteira confiança, atéque os malditos abandonem estas paragens?!- Mas considero que seria inútil procurarmos abrigo em Cafarnaum,em tais circunstâncias.- Iríamos a outra parte.- Aonde? - indagou Lívia, com ansiedade.- Tenho um projeto - disse Ana esperançosa. - Caso assentísseis nasua plena realização, sairíamos ambas daqui, com a pequenina,refugiando-nos na própria Samaria da Judeia, em casa de Simeão, cujaidade respeitável nos resguardaria de qualquer perigo.- Mas, a Samaria - replicou Lívia, algo desalentada - fica muitodistante...- A realidade, contudo, minha senhora, é que necessitamos de umsítio dessa natureza. Concordo em que a viagem não será tão curta, maspartiríamos com urgência, alugando animais descansados, tão logorepousássemos um pouco, na passagem por Naim. Com um dia ou dois demarcha, atingiríamos o vale de Siquém, onde se ergue a velha propriedadede meu tio. Maximus seria cientificado da vossa deliberação, sem outropretexto que não seja o da necessidade de vossas decisões no momentoe, na hipótese do regresso imediato do senador, estaria o vosso esposointegrado no conhecimento direto da situação, procurando inteirar-se, porsi mesmo, quanto à vossa honestidade.- De fato, essa idéia é o recurso mais viável que nos resta - exclamouLívia mais ou menos confortada. - Além do mais, confio no Mestre, que nãonos abandonará em provas tão rudes." Emannuel,"Hoje mesmo, faremos nossos aprestos de viagem e irás à cidadeprovidenciar, não só quanto aos animais que nos devam conduzir atéNaim, como também quanto à partida de um dos teus familiares conosco,de modo a seguirmos com a maior simplicidade, sem provocar a atençãodos curiosos, mas igualmente bem acompanhadas contra os dissaboresde qualquer eventualidade.Não te preocupes com despesas, porque estou provida dosnecessários recursos financeiros.Assim foi feito.Na véspera da partida, Lívia chamou o servo que entãodesempenhava as funções de mordomo da casa, esclarecendo-o nestestermos:- Maximus, motivos imperiosos me lavam amanhã a Samaria daJudeia, onde me demorarei alguns dias, junto de minha filha. Levarei Anaem minha companhia e espero do teu esforço a mesma dedicação desempre aos teus senhores.O interpelado fez uma reverência, como quem se surpreendessecom semelhante atitude da patroa, pouco afeita aos ambientes exterioresdo lar, mas entendendo que não lhe assistia o direito de analisar as suasdecisões, aventou, respeitoso:- Senhora, espero designeis os servos que deverão acompanhar-vos.- Não, Maximus. Não quero as solenidades do costume nasexcursões dessa natureza. Irei com pessoas amigas, de Cafarnaum, epretendo viajar com muita simplicidade. Interessa-me avisar-te dos meuspropósitos, tão somente pela necessidade de redobrar os serviços devigilância na minha ausência, e considerando a possibilidade do regressoinopinado do teu amo, a quem cientificarás da minha resolução, nostermos em que me estou exprimindo.E, enquanto o criado se inclinava respeitoso, Lívia regressava aosaposentos, solucionando todos os problemas relativos à sua tranqüilidade.No dia imediato, antes da aurora, saia de Cafarnaum uma caravanahumilde. Compunham-na" Emannuel,"...Lívia, a filhinha, Ana e um dos seus velhos e respeitáveis familiares, que sedirigiam pela estrada que contornava o grande lago, quase em caprichososemicírculo, acompanhando o curso das águas do Jordão a desceremsussurrantes e tranqüilas para o Mar Morto.Numa breve parada em Naim, trocaram-se os animais, seguindo osviajantes o mesmo roteiro em direção do vale de Siquém, onde, à tardinha,apearam à frente da casa empedrada de Simeão, que recebeu oshóspedes, chorando de alegria.O ancião de Samaria parecia tocado de um, a graça divina, tal omovimento notável que desenvolvera em toda a região, não obstante a suaidade avançada, espalhando os consoladores ensinamentos do profeta deNazaré.Entre oliveiras umbrosas e frondejantes, erguera uma grande cruz,pesada e tosca, colocando nas suas proximidades ampla mesa rústica, emtorno da qual se assentavam os crentes, em pobres bancos improvisados,para lhe ouvirem a palavra amiga e confortadora.Cinco dias venturosos decorreram ali para as duas mulheres, que seencontravam à vontade naquele ambiente simples.De tarde, sob as carícias da Natureza livre e sadia, no seio verde dapaisagem harmoniosa, reunia-se a assembléia humilde dos samaritanos,inclinados a aceitar os pensamentos de amor e de misericórdia sublime doMessias Nazareno.Simeão, que ali vivia sem a companheira que Deus já havia levado esem os filhos que, por sua vez, já haviam constituído família, em aldeiasdistantes, assumia a direção de todos, como patriarca venerável na suacalma senectude, relatando os fatos da vida de Jesus como se ainspiração divina o bafejasse em tais instantes, tal a profunda belezafilosófica dos comentários e das preces improvisadas com a amorosasinceridade do seu coração." Emannuel,"Quase todos os presentes, naquela mesma poesia simples da Natureza,como se estivessem ainda bebendo as palavras do Mestre junto doGerizim, choravam de comoção e deslumbramento espiritual, tocados pelasua palavra profunda e carinhosa, magnetizados pela formosura das suasevocações saturadas de ensinamentos raros, de caridade e meiguice.Nessa época, os cristãos não possuíam os evangelhos escritos, quesomente um pouco depois apareciam no mundo grafados pelos Apóstolos,razão pela qual todos os pregadores da Boa Nova colecionavam asmáximas e as lições do Mestre, de próprio punho ou com a cooperaçãodos escribas do tempo, catalogando-se, desse modo, os ensinamentos deJesus para o estudo necessário nas assembléias públicas das sinagogas.Simeão, que não possuía uma sinagoga. seguia, porém, o mesmométodo.Com a paciência que o caracterizava, escreveu tudo que sabia doMestre de Nazaré, para recordá-lo nas suas reuniões humildes edespretensiosas, prontificando-se do melhor grado a registrar todas aslições novas do acervo de lembranças dos seus companheiros, oudaqueles apóstolos anônimos do Cristianismo nascente, que, depassagem por sua velha aldeia, cruzavam a Palestina em todas asdireções.Fazia seis dias que as hóspedes se retemperavam naquele ambientecaricioso, quando o respeitável ancião, naquela tarde, em suascostumeiras evocações do Messias, se afigurava tocado de influênciasespirituais das mais excelsas.As derradeiras meias-tintas do crepúsculo entornavam na paisagemum tom de esmeraldas e topázios, eterizados sob um céu azul indefinível.No seio da assembléia heterogênea, notava-se a presença decriaturas sofredoras, de todos os matizes, que ao espírito de Lívialembravam a tarde" Emannuel,"...memorável de Cafarnaum, quando ouvira o Senhor pela primeira vez.Homens esfarrapados e mulheres maltrapilhas acotovelavam-se comcrianças esquálidas, fitando, ansiosamente, o ancião que explicava,comovido, com a sua palavra simples e sincera:- Irmãos, era de ver-se a suave resignação do Senhor, no derradeiroinstante!...Olhar fixo no céu, como se já estivesse gozando a contemplação dasbeatitudes celestes, no reino de nosso Pai, vi que o Mestre perdoavacaridosamente todas as injúrias! Apenas um dos seus discípulos maisqueridos se conservava ao pé da cruz, amparando a sua mãe noangustioso transe!... Dos seus habituais seguidores, poucos estavampresentes na hora dolorosa, certamente porque nós, os que tanto oamávamos, não podíamos externar nossos sentimentos diante da turbaenfurecida, sem graves perigos para a nossa segurança pessoal. Nãoobstante, desejaríamos, todos, experimentar os mesmos padecimentos!...De vez em quando, um que outro mais atrevido de seus verdugos seaproximava do corpo chagado no martírio, dilacerando-lhe o peito com aponta das lanças impiedosas!...Uma vez por outra, o generoso ancião limpava o suor da fronte, paracontinuar com os olhos úmidos:- Notei, em dado instante, que Jesus desviara os olhos calmos elúcidos do firmamento, contemplando a multidão amotinada em criminosafúria!... Alguns soldados ébrios açoitaram-no, mais uma vez, sem que doseu peito opresso, na angústia da agonia, escapasse um único gemido!...Seus olhos suaves e misericordiosos se espraiaram, então, do monte dosacrifício para o casario da cidade maldita! Quando o vi olhandoansiosamente, com a ternura carinhosa de um pai, para quantos oinsultavam nos suplícios extremos da morte, chorei de vergonha pelasnossas impiedades e fraquezas..." Emannuel,"A massa movimentava-se, então, em altercações numerosas... Gritosensurdecedores e impropérios revoltantes o cercavam na cruz, onde se lhenotava o copioso suor do instante supremo!.. Mas o Messias, como sevisualizasse profundamente os segredos dos destinos humanos, lendo nolivro do futuro, fitou de novo as Alturas, exclamando com infinita bondade:""Perdoa-lhes, meu Pai, porque não sabem o que fazem!""O velho Simeão tinha a voz embargada de lágrimas, ao evocaraquelas lembranças, enquanto a assembléia se comovia profundamentecom a narrativa.Outros irmãos da comunidade tomaram a palavra, descansando oancião dos seus esforços.Um deles, porém, contrariamente aos temas versados naquele dia,exclamou, com surpresa para todos os circunstantes:- Meus irmãos, antes de nos retirarmos, lembremos que o Messiasrepetia sempre aos seus discípulos a necessidade da vigilância e daoração, porque os lobos rondam, neste mundo, o rebanho das ovelhas!...Simeão ouviu a advertência e pôs-se em atitude de profundameditação, de olhos fitos na grande cruz que se elevava a poucos metrosdo seu banco humilde.Ao cabo de alguns minutos de espontânea concentração, tinha osolhos transbordando de lágrimas, fixos no madeiro tosco, como se no seutopo vagasse alguma visão desconhecida de quantos o observavam...Depois, encerrando as preleções da tarde, falou comovido:- Filhos, não é sem justo motivo que o nosso irmão se refere hoje aoensino da vigilância e da prece! Alguma coisa, que não sei definir, fala-meao coração que o instante do nosso testemunho está muito próximo... Vejocom a minha vista espiritual que a nossa cruz está hoje iluminada, anun-" Emannuel,"...ciando, talvez, o glorioso minuto dos nossos sacrifícios... Meus pobresolhos se enchem de pranto, porque, entre as claridades do madeiro, ouçouma voz suave que me penetra os ouvidos numa entonação branda eamiga, exclamando: ""Simeão, ensina ao teu rebanho a lição da renúncia eda humildade, com o exemplo da tua dedicação e do teu próprio sacrifício!Ora e vigia, porque não está longe o instante ditoso de tua entrada noReino, mas preserva as ovelhas do teu aprisco das arremetidas tenebrosasdos lobos famulentos da impiedade, soltos na Terra, ao longo de todos oscaminhos, consciente, porém, de que, se a cada um se dará segundo aspróprias obras, os maus terão, igualmente, seu dia de lição e castigo, deconformidade com os próprios erros!...""O velho samaritano tinha o rosto lavado em lágrimas, mas doceserenidade irradiava do seu olhar carinhoso e compassivo, demonstrando-lhe as energias inquebrantáveis e valorosas.Foi então que, alçando as mãos emagrecidas e longas aofirmamento, onde brilhavam já as primeiras estrelas, dirigiu-se a Jesus, emprece ardente:- Senhor, perdoai nossas fraquezas e vacilações nas lutas da vidahumana, onde os nossos sentimentos são bem precários e miseráveis!...Abençoai nosso esforço de cada dia e relevai as nossas faltas, se algumde nós, que aqui nos reunimos, vem à vossa presença com o coraçãosaturado de pensamentos que não sejam os do bem e do amor que nosensinastes!... E, se chegada é a hora dos sacrifícios, auxiliai-nos com avossa misericórdia infinita, a fim de que não vacilemos em nossa fé, nosdolorosos momentos do testemunho!...A oração comovedora assinalou o fim da reunião, dispersando-se osassistentes, que regressavam, impressionados, às suas choupanashumildes e pobres." Emannuel,"O ancião, todavia, conseguiu repousar muito pouco naquela noite,tomado de preocupação por Lívia e pela sobrinha, que o haviamcientificado das graves ocorrências que as levaram a solicitar a suaproteção. Figurava-se-lhe que apelos carinhosos do mundo invisível lheenchiam o espírito de ansiedade indefinível e de singulares impressões,que lhe não era possível alijar do raciocínio para os necessários minutosde repouso.Contudo, enquanto ocorriam esses fatos no vale de Siquém,voltemos a Cafarnaum, onde. na mesma tarde, chegara o governador comgrande aparato.No burburinho das festanças numerosas, organizadas pelosprepostos de Herodes Ântipas, o primeiro pensamento do viajante ilustrenão nos pode ser olvidado.Sulpício, porém, após palestrar longamente com o seu amigo Otávio,nas proximidades da residência do senador, onde foi posto ao corrente detodos os fatos, voltou a informá-lo de que ambas as presas cobiçadashaviam fugido como aves viajoras, para os bosques da Samaria.O governador surpreendeu-se com a resistência daquela mulher, tãoacostumado estava ele às conquistas fáceis, admirando-lhe, intimamente,o nobre heroísmo e pensando que, afinal, constituía atitude injustificávelda sua parte tal obstinação no assédio, mesmo porque, não lhe faltariammulheres tentadoras e formosas, desejosas de captarem a sua estima, nocaminho da sua alta posição social na Palestina.Ao mesmo tempo que dava curso a esses pensamentos, o espíritoperverso do lictor, antegozando a trabalhosa conquista da sua vítima,murmurava-lhe ao ouvido:- Senhor governador, se consentirdes, irei a Samaria da Judeiainformar-me do assunto. Daqui ao vale de Siquém deve mediar pouco maisde trinta milhas, o que vem a ser um salto para os nossos cavalos. Levariacomigo seis soldados, bastando" Emannuel,"...esses homens para manter a ordem em qualquer lugar destas paragens.- Sulpício, por mim, não vejo mais necessidade de semelhantesprovidências exclamou Pilatos, resignado.- Mas, agora - explicou o lictor, com interesse -, se não é por vós,deve ser por mim, porque me sinto escravizado a uma mulher que devopossuir de qualquer maneira.Sou eu agora quem vos pede, humildemente, a concessão dessasprovidências - acentuou ele, desesperado, no auge dos seus pensamentosimpuros.- Está bem - murmurou Pilatos, com displicência, como quem faz umfavor a servo de confiança -, concedo-te o que me pedes. Acho que o amorde um romano deve superar qualquer afeição dos escravos deste país.Podes partir, levando contigo os elementos da tua amizade, sem teesqueceres, porém. de que devemos regressar a Nazaré, de hoje a trêsdias. Não te bastarão dois dias para esse cometimento?- Mas - continuou o lictor, maliciosamente -, e se houver algumaresistência?- Para isso levas os teus homens, autorizando-te eu a tomar asiniciativas necessárias aos teus propósitos. Em qualquer missão, jamais teesqueças prestar aos patrícios os favores da nossa consideração, mas,aos que o não sejam, faze a justiça do nosso domínio e da nossa forçaimplacáveis.Na mesma noite, Sulpício Tarquinius escolheu os homens de maisconfiança, e, pela madrugada, sete cavaleiros audaciosos puseram-se acaminho, trocando os ginetes fogosos. nas paradas mais importantes, emdemanda de Samaria.O lictor encaminhava-se para a sua aventura, como quem segue parao desconhecido, com o propósito firme de atingir os fins sem cogitar dosmeios. Turbilhonavam-lhe no cérebro pensamentos" Emannuel,"condenáveis, afogando o coração inquieto e louco numa onda de anseioscriminosos e indefiníveis.Voltando, todavia, nossa atenção para a casa humilde do vale,vamos encontrar Simeão em grandes atividades, naquela manhãinolvidável de sua vida.Após o almoço frugal, organizadas todas as suas anotações epergaminhos, depois de mais de uma hora de meditação e precesfervorosas, e quando o Sol já declinava, reuniu as hóspedas, falando-lhesgravemente:- Filhas, a visão de meus pobres olhos, em nossas preces de ontem,representa uma séria advertência para o meu coração. Ainda esta noite ehoje, durante o dia, tenho ouvido apelos suaves que me chamam e, semexplicar a justa razão deles, tenho o íntimo saturado de branda serenidade,na suposição de que não deve tardar muito a minha ida para o Reino...Algo, porém, me fala ao espírito que ainda não soou a hora da vossapartida e, considerando o ensinamento do nosso Mestre de bondade emisericórdia, sobre os lobos e as ovelhas, devo resguardar-vos dequalquer perigo. É por isso que vos peço acompanhar-me.Assim dizendo, o respeitável ancião pôs-se de pé e, caminhandopara o seu casebre, deslocou blocos de pedra duma abertura na paredeempedrada, exclamando imperativamente, na sua serena simplicidade:- Entremos.- Mas, meu tio - obtemperou Ana, com certa estranheza -, serãonecessárias tais providências?- Filha, nunca discutas o conselho daqueles que envelheceram notrabalho e no sofrimento. O dia de hoje é decisivo e Jesus não me poderiaenganar o coração.- Oh! mas será possível, então, que o Mestre nos vá privar de vossapresença carinhosa e consoladora? - exclamou a pobre rapariga banhadaem" Emannuel,"...pranto, enquanto Lívia os acompanhava sensibilizada, trazendo pela mão afilha estremecida.- Sim, para nós - revidou Simeão, com serena coragem, mirando oazul do céu -, deve existir uma só vontade, que é a de Deus. Cumpram-se,pois, nos escravos os desígnios do Senhor.Neste comenos, penetraram os quatro numa galeria que, à distânciade poucos metros, ia dar num modesto refúgio talhado em pedras rústicas,afirmando o ancião em tom solene:- Ha mais de vinte anos não abro este subterrâneo a pessoaalguma... Recordações sagradas de minha esposa fizeram-me encerrá-lopara sempre, como túmulo de minhas ilusões mais queridas; mas, hoje demanhã, o reabri resolutamente, retirei os tropeços do caminho, coloqueiaqui os apetrechos necessários ao descanso de um dia, pensando navossa segurança até à noite. Este abrigo está oculto nas rochas que, juntodas oliveiras, fazem o ornamento do nosso recanto de orações e, nãoobstante parecer abafado, o ambiente recebe o ar puro e fresco do vale,como a nossa própria casa.Ficai aqui tranqüilas. Alguma coisa me diz ao coração que estamosatravessando horas decisivas. Trouxe o alimento preciso para as três,durante as horas da tarde, e caso eu não volte até à noitinha, já sabemcomo devem mover a porta empedrada que dá para meu quarto. Daqui,ouvem-se os rumores das cercanias, o que vos possibilitará acompreensão de qualquer perigo.- E mais ninguém conhece este refúgio? -perguntou Ana, ansiosa.- Ninguém, a não ser Deus e os meus filhos ausentes.Lívia, profundamente comovida, ergueu então a voz do seu sinceroagradecimento:- Simeão - disse ela -, eu, que conheço a têmpera do inimigo,justifico os vossos temores. Jamais esquecerei vosso gesto paternal,salvando-me do verdugo impiedoso e implacável." Emannuel,"- Senhora, não agradeçais a mim, que nada valho. Agradeçamos aJesus os seus desígnios preciosos, no momento amargo das nossasprovas...Arrancando uma pequena cruz de madeira tosca das dobras datúnica humilde, entregou-a à esposa do senador, exclamando com vozserena:- Só Deus conhece o minuto que se aproxima, e esta hora podeassinalar os derradeiros momentos do nosso convívio na Terra. Se assimfor, guardai esta cruz como recordação de um servo humilde... Ela traduz agratidão do meu espírito sincero...Como Lívia e Ana começassem a chorar com as suas palavrascomovedoras, continuou o ancião com voz pausada:- Não choreis, se este minuto constitui o instante supremo! Se Jesusnos chama ao seu trabalho, uns antes dos outros, lembremo-nos de que,um dia, nos reuniremos todos nas luzes cariciosas do seu reino de amor emisericórdia, onde todos os aflitos hão-de ser consolados..E, como se o seu espírito estivesse na plena contemplação de outrasesferas, cujas claridades o enchessem de intuições divinatórias,prosseguiu, dirigindo-se à Lívia, comovidamente:- Estejamos confiantes na Providência Divina! Caso o meutestemunho esteja previsto para breves horas, confio-vos a minha pobreAna, como vos entregaria a minha recordação mais querida!... Depois queabracei as lições do Messias, todos os filhos do meu sangue medesampararam, sem me compreenderem os propósitos mais santos docoração... Ana, porém, apesar da sua juventude, entendeu, comigo, o doceCrucificado de Jerusalém!...- Quanto a ti, Ana - disse pousando a destra na fronte da sobrinha -,ama a tua patroa como se fosses a mais humilde das suas escravas!Nesse instante, porém, um ruído mais forte penetrou no recinto,como se um barulho incom-" Emannuel,"...preensível proviesse das rochas, parecendo mais um tropel de numerososcavalos que se iam aproximando.O ancião fez um gesto de despedida, enquanto Lívia e Ana seajoelharam diante da sua figura austera e carinhosa; ambas, entrelágrimas, tomaram-lhe as mãos encarquilhadas, que cobriam de beijosafetuosos.Num relance, Simeão transpôs a pequena galeria, reajustando aspedras na parede com o máximo cuidado.Em poucos minutos, abria as portas da casa humilde e generosa aSulpício Tarquinius e seus companheiros, compreendendo, afinal, que asadvertências de Jesus, no silêncio de suas orações fervorosas, nãohaviam falhado.O lictor dirigiu-lhe a palavra sem qualquer cerimônia, fazendo opossível por eliminar a impressão que lhe causava a majestosa aparênciado ancião, com os seus olhos altivos e serenos e as longas barbasencanecidas.- Meu velho - exclamou desabridamente -, por intermédio de teusconhecidos já sei que te chamas Simeão, e igualmente que hospedas aquiuma nobre senhora de Cafarnaum, com a sua serva de confiança. Venhoda parte das mais altas autoridades para falar particularmente com essassenhoras, na maior intimidade possível..Enganais-vos, lictor - murmurou Simeão, com humildade. - De fato, aesposa do senador Lentulus passou por estas paragens; todavia, apenaspela circunstância de se fazer acompanhar por uma de minhas sobrinhas-netas, deu-me a honra de repousar nesta casa algumas horas.- Mas deves saber onde se encontram neste momento.- Não posso dizê-lo.- Ignoras, porventura?- Sempre entendi - replicou o ancião corajosamente - que devoignorar todas as coisas que" Emannuel,"venham a ser conhecidas para o mal de meus semelhantes.- Isso é outra coisa - redargüiu Sulpício, encolerizado, como ummentiroso de quem se descobrissem os pensamentos mais secretos. -Quer dizer, então, que me ocultas o paradeiro dessas mulheres, porsimples caprichos da tua velhice caduca?- Não é isso. Conhecendo que no mundo somos todos irmãos, sinto-me no dever de amparar os mais fracos contra a perversidade dos maisfortes.- Mas, eu não as procuro para fazer mal algum e chamo-te a atençãopara estas insinuações insultuosas, que merecem a punição da justiça.- Lictor - revidou Simeão, com grande serenidade -, se podeisenganar os homens, não enganais a Deus com os vossos sentimentosinconfessáveis e impuros. Sei dos propósitos que vos trazem a estes sítiose lamento a vossa impulsividade criminosa...Vossa consciência estáobscurecida por pensamentos delituosos e impuros, mas todo momento éum ensejo de redenção, que Deus nos concede na Sua infinita bondade...Voltai atrás da insídia que vos trouxe e ide noutros caminhos, porqueassim como o homem deve salvar-se pelo bem que pratica, pode tambémmorrer pelo fogo devastador das paixões que o arrastam aos crimes maishediondos...- Velho infame... - exclamou Sulpício Tarquinius, rubro de cólera,enquanto os soldados observavam, admirados, a serena coragem dovaloroso ancião da Samaria -, bem me disseram teus vizinhos, ao meinformarem a teu respeito, que és o maior feiticeiro destas paragens!...Adivinho maldito, como ousas afrontar deste modo os mandatáriosdo Império, quando te posso pulverizar com uma simples palavra? Comque direito escarneces do poder?" Emannuel,"...- Com o direito das verdades de Deus, que nos mandam amar opróximo como a nós mesmos... Se sois prepostos de um Império que outralei não possui além da violência impiedosa na execução de todos oscrimes, sinto que estou subordinado a um poder mais soberano do que ovosso, cheio de misericórdia e bondade! Esse poder e esse Império são deDeus, cuja justiça misericordiosa está acima dos homens e das nações!...Compreendendo-lhe a coragem e a energia moral inquebrantáveis, olictor, embora fremente de ódio, revidou em tom fingido:- Está bem, mas eu não vim aqui para conhecer as tuas bruxarias e oteu fanatismo religioso. De uma vez por todas: queres ou não prestar-meas informações precisas, acerca das tuas hóspedas?- Não posso - replicou Simeão corajosamente -, minha palavra é umasó.- Então, prendei-o! - disse, dirigindo-se aos seus auxiliares, pálido decólera ao se ver derrotado naquele duelo de palavras.O velho cristão da Samaria foi submetido aos primeiros vexames,por parte dos soldados, entregando-se, porém, sem a mínima resistência.Aos primeiros golpes de espada, exclamou Sulpíciosarcasticamente:- Então, onde se encontram as forças do teu Deus, que te nãodefende? Seu Império é assim tão precário? Porque não te socorrem ospoderes celestiais, eliminando-nos com a morte, em teu beneficio?Uma gargalhada geral seguiu-se a essas palavras, partida dossoldados que acompanhavam, gostosamente, os ímpetos criminosos doseu chefe.Simeão, todavia, tinha as energias preparadas para o testemunho dasua fé ardente e sincera. De mãos amarradas, pôde ainda revidar, com aserenidade habitual:- Lictor, ainda que eu fosse um homem poderoso como o teu César,nunca ergueria a voz para ordenar a morte de quem quer que fosse, à" Emannuel,"face da Terra. Sou dos que negam o próprio direito da chamada legítimadefesa, porque está escrito na Lei que ""Não Matarás"", sem nenhumacláusula que autorize o homem a eliminar o seu irmão, nessa ou naquelacircunstância... Toda a nossa defesa, neste mundo, está em Deus, porquesó ele é o Criador de toda a vida e somente ele pode pôr e dispor denossos destinos.Sulpício experimentou o apogeu do seu ódio em face daquelacoragem indomável e esclarecida e, avançando para um dos prepostos,exclamou enraivecido:- Mércio, toma à tua conta este velho imbecil e feiticeiro. Guarda-ocom atenção e não te descuides. Caso tente fugir, mete-lhe o chanfalho!O venerável ancião, consciente de que atravessava as suas horassupremas, encarou o agressor com heróica humildade.Sulpício e os companheiros invadiram-lhe a casa e o quintal,expulsando-lhe uma velha serva, a palavrões e pedradas. No seu quartoencontraram as anotações evangélicas e os pergaminhos amarelecidos,além de pequenas lembranças que guardava em memória dos seus afetosmais queridos.Todos os objetos de suas recordações mais sagradas foram trazidosà sua presença, onde foram quebrados sem piedade. Perante seus olhos,serenos e bons, dilaceraram-se túnicas e papiros antigos, entre sarcasmose ironias revoltantes.Terminada a devassa, o lictor, de mãos nas costas, examinando,intimamente, a melhor maneira de arrancar-lhe a desejada confissão sobreo paradeiro de suas vítimas, andou pelas adjacências mais de duas horas,voltando à mesma sala, onde o interpelou novamente.- Simeão - disse ele, com interesse -, satisfaze os meus desejos e teconcederei a liberdade." Emannuel,"...- Por esse preço, toda a liberdade me seria penosa. Deve preferir-sea morte a transigir com o mal - respondeu o ancião com a mesmacoragem.Sulpício Tarquinius rilhou os dentes de fúria, ao mesmo tempo quegritava possesso:- Miserável! saberei arrancar-te a confissão necessária.Isso dizendo, encarou fixamente o enorme cruzeiro que se levantavaa poucos metros da porta e, como se houvesse escolhido o melhorinstrumento de martírio para arrancar-lhe a revelação desejada, dirigiu-seaos soldados em voz soturna:- Amarremo-lo à cruz, como o Mestre das suas feitiçarias.Recordando-se dos grandes momentos do Calvário, o anciãodeixou-se levar sem nenhuma relutância, agradecendo, intimamente, aJesus pelo seu aviso providencial, a tempo de salvar das mãos do inimigoaquelas que considerava como filhas muito amadas.Num ápice os soldados o amarraram na base do pesado madeiro,sem que a vítima demonstrasse um único gesto de resistência.Avizinhava-se o crepúsculo, e Simeão recordou que, horas antes,sofria o Senhor com mais intensidade. Em prece ardente, suplicou ao PaiCelestial ânimo e resignação para o angustioso transe. Lembrou-se dosfilhos ausentes, rogando a Jesus que os acolhesse no manto de suainfinita misericórdia. Foi nesse ínterim que, amarrado à base da cruz pelosbraços, pelo tronco e pelas pernas, viu que se aproximavam alguns doscompanheiros de suas preces habituais, para as reuniões do crepúsculo,os quais foram logo detidos pelos soldados e pelo chefe implacável.Inquiridos, quanto ao ancião que ali se encontrava, com o dorsoseminu para os tormentos do açoite, todos, sem exceção de um só,alegaram não conhecê-lo." Emannuel,"Mais que os ataques dos impiedosos romanos, semelhanteingratidão doeu-lhe fundo, no espírito generoso e sincero, como seenvenenado espinho lhe penetrasse o coração.Todavia, recompôs imediatamente as suas energias espirituais e,contemplando o Alto, murmurou baixinho, numa prece ansiosa e ardente:- Também vós, Senhor, fostes abandonado!... Éreis o Cordeiro deDeus, inocente e puro, e sofrestes as dores mais amargas,experimentando o fel das traições mais penosas!... Não seja pois o vossoservo, mísero e pecador, que renegue os martírios purificadores dotestemunho!...A essa hora, já o recinto se encontrava repleto de pessoas que, deconformidade com as determinações de Sulpício, deveriam permanecernos bancos grosseiros, dispostos em semicírculo, de modo a assistirem àcena selvagem, a titulo de escarmento para quantos viessem adesobedecer à justiça do Império.O primeiro soldado, à ordem do chefe, iniciou o flagício. Todavia, daterceira vez que as suas mãos brandiam as extremas tiras de couro, naexecranda tortura, sem que o ancião deixasse escapar o mais ligeirogemido, parou, subitamente, exclamando para Tarquinius em voz baixa eem tom discreto:- Senhor lictor, no alto do madeiro há uma luz que paralisa os meusesforços.Encolerizado, mandou Sulpício que um novo elemento osubstituísse, mas o mesmo se repetiu com os seus algozes chamados aotrabalho sinistro.Foi então que, desesperado de ódio incompreensível, tomouSulpício dos açoites, brandindo-os ele mesmo no corpo da vítima, que secontorcia em sofrimentos angustiosos.Simeão, banhado de suor e sangue, sentia o estalar dos ossosenvelhecidos, que se quebravam aos pedaços, cada vez que o açoite lhelambia as carnes enfraquecidas. Seus lábios murmuravam" Emannuel,"...preces fervorosas, apelos a Jesus para que os tormentos não seprolongassem ao infinito. Todos os presentes, não obstante o terror queos levara à defecção para com o velho discípulo de Jesus, viam-lhe, comlágrimas, os inomináveis padecimentos.Em dado instante, a fronte pendeu, quase desfalecida, prenunciandoo fim de toda a resistência orgânica, em face do martírio.Sulpício Tarquinius parou, então, por um minuto, a sua obra nefandae, aproximando-se do ancião, falou-lhe ao ouvido, com ansiedade:- Confessas agora?Mas o velho samaritano, temperado nas lutas terrestres, por mais desetenta anos de sofrimento, exclamou, exausto, em voz sumida:- O... cristão... deve... morrer... com Jesus... pelo... bem... e... pela...verdade...- Morre, então, miserável!... - gritou Sulpício, em voz estentórica; e,tomando da espada, enterrou-lhe a lâmina no peito deprimido.Viu-se o sangue jorrar em borbotões vermelhos e abundantes.Nessa hora, cansado já do martírio, o ancião viu sem temor o atosupremo que poria termo aos seus padecimentos. Experimentou asensação de um instrumento estranho que lhe abria o peito dolorido,sufocado por mortal angústia.Num relance, porém, lobrigou duas mãos de neve, translúcidas, quepareciam alisar-lhe carinhosamente os cabelos embranquecidos.Notou que o cenário se havia transformado, enquanto fecharaligeiramente os olhos, no momento doloroso.O céu não era o mesmo, nem mais à sua frente via traidores everdugos. O ambiente estava saturado de luz branda e reconfortante,enquanto aos seus ouvidos chegavam os ecos suaves de uma cavatina docéu, entoada, talvez, por artistas invisíveis. Ouvia cânticos esparsos,exaltando as dores de" Emannuel,"todos os desventurados, de todos os aflitos do mundo, divisando,maravilhado, o sorriso acolhedor de entidades lúcidas e formosas.Afigurava-se-lhe reconhecer a paisagem que o recebia. Supunha-setransportado aos deliciosos recantos de Cafarnaum, nos instantes suavesem que se preparava para receber a bênção do Messias, jurando haveraportado, por processo misterioso, numa Galileia de flores mais ricas e defirmamento mais belo. Havia aves de luz, como lírios alados do paraíso,cantando nas árvores fartas e frondosas, que deviam ser as do édencelestial.Buscou senhorear-se das suas emoções nas claridades dessa TerraPrometida, que, a seus olhos, deveria ser o país encantado do ""Reino doSenhor"".Por um momento, lembrou-se do orbe terrestre, das suas últimaspreocupações e das suas dores. Uma sensação de cansaço dominou-lhe,então, o espírito abatido, mas uma voz que seus ouvidos reconheceriam,entre milhares de outras vozes, falou-lhe brandamente ao coração:- Simeão, chegado é o tempo do repouso!... Descansa agora dasmágoas e das dores, porque chegaste ao meu Reino, onde desfrutaráseternamente da misericórdia infinita do Nosso Pai!...Pareceu-lhe, afinal, que alguém o tomara de encontro ao peito, como máximo de cuidado e carinho.Um bálsamo suave adormentou o seu espírito exausto eamargurado. O velho servo de Jesus fechou, então, os olhos,placidamente, acariciado por uma entidade angélica que pousou, de leve,as mãos translúcidas sobre o seu coração desfalecido.Voltando, porém, ao doloroso espetáculo, vamos encontrar, junto àcasa do ancião de Samaria, regular massa de povo que assistia, transidade pavor, à cena tenebrosa.Amarrado ao madeiro, o cadáver do velho Simeão golfava sanguepela enorme ferida aberta no coração. A fronte pendida para sempre, comose" Emannuel,"...reclamasse o repouso da terra generosa, suas barbas veneráveis setingiam de rubro, aos salpicos de sangue das vergastadas, porqueSulpício, embora sabendo que o golpe de espada era o detalhe final domonstruoso drama, continuava a açoitar o cadáver colado à cruz infamantedo martírio.Dir-se-ia que as forças desencadeadas da Treva se haviamapoderado completamente do espírito do lictor, que, tomado de fúriaepiléptica, intraduzível, vergastava o cadáver sem piedade, numa torrentede impropérios, para impressionar a massa popular que o observavaestarrecida de assombro.- Vede - gritava ele furiosamente -, vede como devem morrer ossamaritanos velhacos e os feiticeiros assassinos!... Velho miserável!...Leva para os infernos mais esta lembrança!...E o açoite caía, impiedoso, sobre os despojos destroçados davitima, reduzidos agora a uma pasta sangrenta.Nisso, porém, fosse pela pouca profundidade da base da cruz, quese abalara nos movimentos reiterados e violentos do suplício, ou pelapunição das forças poderosas do mundo invisível, viu-se que o enormemadeiro tombava ao solo na vertigem de um relâmpago.Debalde tentou o lictor eximir-se à morte horrível, examinando asituação por um milésimo de minuto, porque o tope da cruz lhe abateu acabeça de um só golpe, inutilizando-lhe o primeiro gesto de fuga. Atiradoao chão com uma rapidez espantosa, Sulpício Tarquinius não teve tempode dar um gemido. Pela base do crânio, esmigalhado, escorria a massaencefálica misturada de sangue.Num átimo, todos acorreram ao corpo abatido do lobo, trucidadodepois do sacrifício da ovelha. Um dos soldados examinou-lhe,detidamente, o peito, onde o coração ainda pulsava nas derradeirasexpressões de automatismo.A boca do verdugo estava aberta, não mais para a gritariablasfematória, mas da garganta" Emannuel," avermelhada descia uma espumarada de saliva e sangue, figurando a babarepelente e ignominiosa de um monstro. Seus olhos estavamdesmesuradamente abertos, como se fitassem, eternamente, nosespasmos do terror, uma interminável falange de fantasmas tenebrosos...Impressionados com o acidente imprevisto, no qual adivinhavam ainfluência da misteriosa luz que haviam lobrigado no topo do cruzeiro, ossoldados ignoravam como providenciar naquela conjuntura, igualmenteconfundidos na onda de espanto e surpresa geral dos primeirosmomentos.Foi nesse instante que assomou à porta a figura nobre de Lívia,pálida de amarga perplexidade.Ela e Ana, no interior da cava onde se haviam refugiado,pressentiram o perigo, permanecendo ambas em fervorosas preces,implorando a piedade de Jesus naquelas horas angustiosas.A seus ouvidos chegavam os rumores imprecisos das discussões edo vozerio do povo em altercações ruidosas, nos minutos do incidente,encarado, por quantos a ele assistiram, como castigo do céu.Ambas, aflitas e ansiosas, considerando o adiantado da hora,deliberaram sair, fossem quais fossem as conseqüências da suaresolução.Chegando à porta e observando o espetáculo horrendo do cadáverde Simeão reduzido quase a uma pasta informe, sob a base da cruz, evendo o corpo de Sulpício estendido à distância de poucos passos, com abase do crânio esfacelada, experimentaram, naturalmente, um pavorindefinível.O paroxismo das emoções, contudo, poucos minutos durou.Enquanto a serva se desfazia em soluços, Lívia, com a energia quelhe caracterizava o espírito e a fé que lhe clarificava o coração,compreendeu de relance o que se havia passado e, entendendo que asituação exigia a força de uma vontade poderosa para que o equilíbriogeral se restabelecesse, excla-" Emannuel,"...mou para a serva, entregando-lhe a filha resolutamente:- Ana, peço-te o máximo de coragem neste angustioso transe,mesmo porque, cumpre-nos lembrar que a bondade de Jesus nospreparou para suportar, dignamente, mais esta prova aspérrima edolorosa! Guarda Flávia contigo, enquanto vou providenciar para que atranqüilidade se restabeleça!.A passos rápidos, avançou para a turba que se ia aquietando à suapassagem.Aquela mulher, de beleza nobre e graciosa, deixava transparecer noolhar uma chama de profunda indignação e amargura. Seu aspecto severodenunciava a presença de um anjo vingador, surgido entre aquelascriaturas ignorantes e humildes, no momento oportuno.Aproximando-se da cruz, onde jaziam os dois cadáveres, cercadospela confusão, implorou de Jesus a coragem e fortaleza necessárias paradominar o nervosismo e a inquietação de todos os que a rodeavam. Sentiuque força sobre-humana se apossara da sua alma no momento preciso.Por um minuto, pensou no esposo, nas convenções sociais, no escândalorumoroso daqueles acontecimentos, mas o sacrifício e a morte gloriosa deSimeão eram para ela o exemplo mais confortador e mais santo. Tudoolvidou para se lembrar de que Jesus pairava acima de todas as coisastransitórias da Terra, como o mais alto símbolo de verdade e de amor, paraa felicidade imorredoura de toda a vida.Um dos soldados, tomado de veneração e conhecendo perto dequem seus olhos se encontravam, acercou-se-lhe, exclamando com omáximo respeito:- Senhora, cumpre-me apresentar-vos nossos nomes, a fim de quepossais utilizar-nos para o que julgardes necessário.- Soldados - exclamou resoluta -, não precisais declinar nomes.Agradeço a vossa dedicação espontânea, que poderia ter sido, minutosantes," Emannuel,"uma inconsciência criminosa; lamentando, apenas, que seis homensaliados a esta multidão permitissem a consumação deste ato de infâmia esuprema covardia, que a justiça divina acaba de punir perante os vossosolhos!...Todos se haviam calado, como por encanto, ao ouvirem essasenérgicas palavras.A massa popular tem dessas versatilidades misteriosas. Basta, àsvezes, um gesto para que se despenhe nos abismos do crime e dadesordem; uma palavra chicoteante para fazê-la regressar ao silêncio e aoequilíbrio necessários.Lívia compreendeu que a situação era sua, e, dirigindo-se aosprepostos de Sulpício, falou corajosamente:- Vamos, providenciemos o restabelecimento da calma, retirandoesses cadáveres.- Senhora - aventou um deles respeitosamente -, sentimo-nos naobrigação de enviar um mensageiro a Cafarnaum, de modo que o senhorgovernador seja avisado destes acontecimentos.Todavia, com a mesma expressão de serenidade, respondeu elafirmemente:- Soldado, eu não permito a retirada de nenhum de vós outros,enquanto não derdes estes corpos à sepultura. Se o vosso governadorpossui um coração de fera, sinto-me agora na obrigação de proteger a pazdas almas bem formadas. Não desejo que se repita nesta casa uma novacena de covardia e de infâmia. Se a autoridade, neste país, atingiu oterreno das crueldades mais absurdas, eu prefiro assumi-la, resgatandouma dívida do coração para com os despojos deste apóstolo venerando,assassinado com a colaboração da vossa criminosa inconsciência.- Não desejais consultar as autoridades de Sebaste, a respeito doassunto? - tornou um deles, timidamente.- De modo algum - respondeu ela, com audaciosa serenidade. -Quando o cérebro de um go-" Emannuel,"...verno está envenenado, o coração dos governados padecem da mesmapeçonha. Esperaríamos em vão qualquer providência a favor dos maishumildes e dos mais infelizes, porque a Judeia está sob a tirania de umhomem cruel e tenebroso. Ao menos hoje, quero afrontar o poder daperversidade, invocando cm meu auxílio a misericórdia infinita de Jesus.Silenciaram os soldados romanos, em face da sua atitude serena eimperturbável. E, obedecendo-lhe às ordens, colocaram os despojosinertes de Simeão sobre a mesa enorme e rústica das preces costumeiras.Foi então que os mesmos companheiros, que haviam negado ovelho mestre do Evangelho, se acercaram piedosamente do seu cadáver,beijando-lhe as mãos mirradas, com enternecimento. arrependidos da suacovardia e fraqueza, cobrindo-lhe de flores os despojos sangrentos.Anoitecia, mas as tênues claridades do crepúsculo, na formosapaisagem da Samaria, ainda não haviam abandonado, de todo, o horizonte.Uma força indefinível parecia amparar o Espírito de Lívia, alvitrando-lhe todas as providências necessárias.Em pouco, ao esforço hercúleo de numerosos samaritanos, foramretiradas pesadas pedras do grupo de rochas que protegia a cova, onde sehaviam abrigado as três fugitivas, enquanto, às ordens de Lívia, os seissoldados abriram uma sepultura rasa, longe daquele local, para o corpo deSulpício.Brilhavam, já, as primeiras constelações do firmamento, quandoterminou a improvisação dos serviços dolorosos.No instante de transportarem os despojos do ancião, que Líviaenvolveu, pessoalmente, em alvo sudário de linho, ela fez questão de orarrogando ao Senhor recebesse, no seu Reino de Luz e Verdade, a almagenerosa do seu apóstolo valoroso." Emannuel,"Ajoelhou-se como uma figura angélica junto àquele banco humilde etosco, onde tantas vezes se sentara o servidor de Jesus, entre as suasoliveiras frondosas e bem-amadas. Todos os presentes, inclusive ospróprios soldados que se sentiam empolgados de misterioso temor,prostraram-se genuflexos, acompanhando-lhe a reverência, enquanto, àclaridade de algumas tochas, sopravam perfumadas as brisas leves dasnoites formosas e estreladas da Samaria de há dois mil anos...- Irmãos - começou ela, emocionada, assumindo pela primeira vez adireção de uma assembléia de crentes -, elevemos a Jesus o coração e opensamento!...Uma sensação mais forte parecia embargar-lhe a voz, inundando-lheos olhos de lágrimas doloridas...Mas, como se forças invisíveis e poderosas a alentassem, continuouserenamente:- Jesus, meigo e divino Mestre, foi hoje o dia glorioso em que partiupara o céu um valoroso apóstolo do teu Reino... Foi ele, aqui na Terra,Senhor, a nossa proteção, o nosso amparo e a nossa esperança!... Na suafé, encontramos a precisa fortaleza, e foi em seu coração compassivo queconseguimos haurir o consolo necessário!... Mas julgaste oportuno queSimeão fosse descansar no teu regaço amoroso e compassivo! Como tu,sofreu ele os tormentos da cruz, revelando a mesma confiança naProvidência Divina, nos dolorosos sacrifícios do seu amargo testemunho...Recebe-o, Senhor, no teu Reino de Paz e de Misericórdia! Simeão tornou-se bem-aventurado por suas dores, por seu denodo moral, por suasangustiosas aflições suportadas com o valor e a fé que nos ensinaste...Ampara-o nas claridades do Paraíso do teu amor inesgotável, e que nós,exilados na saudade e na amargura, aprendamos a lição luminosa do teuvaloroso apóstolo da Samaria!... Se algum dia nos julgares também dignosdo mesmo sacrifício, forta-" Emannuel,"...lece-nos a energia, para que provemos ao mundo a excelência dos teusensinamentos, ajudando-nos a morrer com valor, pela tua paz e pela tuaverdade, como o teu missionário carinhoso a quem prestamos, nesta hora,a homenagem do nosso amor e do nosso reconhecimento...Nesse ínterim, houve na sua oração um interregno. Todavia,continuou:- Jesus, a ti que vieste a este mundo, mais para os desesperados dasalvação, levantando os mais doentes e os mais infelizes, endereçamos,igualmente, nossa súplica pelo celerado que não hesitou em tripudiarsobre tuas leis de fraternidade e amor, martirizando um inocente, e que foiarrebatado pela morte para o julgamento da tua justiça. Queremosesquecer a sua infâmia, como perdoaste aos teus algozes do alto da cruzinfamante do martírio... Ajuda-nos, Senhor, para que compreendamos epratiquemos os teus ensinos!...Levantando-se, comovida, Lívia descobriu o cadáver do apóstolo ebeijou-lhe as mãos pela última vez, exclamando em lágrimas, carinhosa:- Adeus, meu mestre, meu protetor e meu amigo... Que Jesus tereceba o espírito iluminado e justo no seu Reino de luzes imortais, e que aminha pobre alma saiba aproveitar, neste mundo, a tua lição de fé evaloroso heroísmo!...Repousado numa urna improvisada, o corpo inerte de Simeão foiconduzido ao seu último jazigo. Numerosas tochas haviam sido acesaspara o ofício amargo e doloroso.E enquanto o cadáver do lictor Sulpício descia à terra úmida, semoutro auxílio além da cooperação dos seus prepostos, o nobre ancião iarepousar à frente do seu templo e do seu ninho, entre as viraçõescariciosas do vale, à sombra fresca das oliveiras que lhe eram tãoqueridas!...Lívia dispensou, em seguida, os soldados do governador e,guardada por homens valorosos e" Emannuel,"dedicados, passou o resto da noite em companhia de Ana e da filhinha, emprofundas meditações e dolorosas cismasAo raiar da aurora, retiravam-se definitivamente do vale de Siquém,acompanhadas por um vizinho de Simeão, encaminhando-se, de volta, aCafarnaum, e levando, no íntimo, numerosas lições para toda a vida.Sabedoras de que não se fariam esperar as represálias dasautoridades administrativas, regressaram por estradas diferentes, queconstituíam atalhos preciosos, sem tocar em Naim para a troca de animais.Com algumas horas sucessivas, em marcha forçada, atingiam o solartranqüilo, onde iam descansar dos golpes sofridos.Lívia remunerou largamente o seu dedicado companheiro de viagem,retirando-se para os seus aposentos, onde fixou, em base preciosa, apequena cruz de madeira que lhe dera o apóstolo, algumas horas antes docruento martírio.Alguns dias se passaram sobre os infaustos acontecimentos.Pôncio Pilatos, contudo, informado de todos os pormenores doocorrido, rugiu de ódio selvagem. Reconhecendo que defrontavapoderosos inimigos, quais Públio Lentulus e sua mulher, buscou acionarpor outro lado o mecanismo de sinistras represálias. Recolhendo-seimediatamente ao seu palácio de Samaria, fez que todos os habitantes daregião pagassem muito caro a morte do lictor, humilhando-os através demedidas aviltantes e vexatórias. Assassínios nefandos foram praticadosentre os elementos da população pacífica do vale, propagando-se porSebaste e outros núcleos mais adiantados a rede de crimes e crueldadesda sua mentalidade vingativa e tenebrosa.Estacionemos, todavia, em Cafarnaum e aguardemos aí a chegadade um homem.Ao cabo de alguns dias, com efeito, regressava o senador de suaviagem através da Palestina." Emannuel,"...Após o seu regresso, Lívia cientificou-o de quanto ocorrera na suaausência. Públio Lentulus ouvia-lhe o relato silenciosamente. À medidaque se lhe tornavam conhecidas as ocorrências, sentia-se intimamentetomado de indignação e de revolta contra o administrador da Judeia, nãosó pela sua incorreção política, mas também pela extrema antipatiapessoal que a sua figura lhe inspirava, resolvendo, em face do acontecido,não vacilar um segundo em processá-lo acerbamente, como quem julgavadever perseguir o mais cruel dos inimigos.O leitor poderá, talvez, supor que o orgulhoso romano teria ocoração sensibilizado e modificados os sentimentos a respeito da esposa,de quem presumia possuir as mais flagrantes provas de deslealdade eperjúrio, no santuário do lar e da família. Mas, Públio Lentulus era humano,e, nessa condição precária e miserável, tinha de ser um fruto do seutempo, da sua educação e do seu meio.Ao ouvir as últimas palavras de sua mulher, pronunciadas em tomcomovido, como o de alguém que pede apoio e reclama o direito de umcarinho, replicou austeramente:- Lívia, eu me regozijo com a tua atitude e rogo aos deuses pela tuaedificação. Teus atos simbolizam para mim a realidade da tua regeneração,depois da fragorosa queda vista com os meus olhos. Bem sabes que paramim a esposa não mais deve existir; contudo, louvo a mãe de meus filhos,sentindo-me confortado porque, se não acordaste a tempo de seres feliz,despertaste ainda com a possibilidade de viver... Tua repulsa tardia poresse homem cruel me autoriza a crer na tua maternal dedicação e issobasta!...Essas palavras, pronunciadas em tom de superioridade e secura,demonstraram a Lívia que a separação afetiva de ambos deveria continuarno ambiente doméstico, irremissivelmente.Abalada nas comoções do seu martírio moral, retirou-se para oquarto, onde se prostrou diante" Emannuel,"da cruz de Simeão, com a alma desalentada e combalida. Ali, meditouangustiosamente na sua penosa situação, mas, em dado instante, viu quea lembrança humilde do apóstolo da Samaria irradiava uma luz caridosa eresplandecente, ao mesmo tempo que uma voz suave e branda murmuravaaos seus ouvidos:- Filha, não esperes da Terra a felicidade que o mundo não te podedar! Aí, todas as venturas são como neblinas fugidias, desfeitas ao calordas paixões ou destroçadas ao sopro devastador das mais sinistrasdesilusões!... Espera, porém, o Reino da misericórdia divina, porque nasmoradas do Senhor há bastante luz para que floresçam as maissantificadas esperanças do teu coração maternal!... Não aguardes, pois, daTerra, mais que a coroa de espinhos do sacrifício...A esposa do senador não se surpreendeu com o fenômeno.Conhecendo de oitiva a ressurreição do Senhor, tinha a convicção plenade que se tratava da alma redimida de Simeão, que a seu ver voltava dasluzes do Reino de Deus para lhe confortar o coração.Por semanas a fio, recebeu Públio Lentulus a visita de samaritanosnumerosos, que lhe vinham solicitar enérgicas providências contra osdesmandos de Pôncio Pilatos, então instalado no seu palácio de Samaria,onde permanecia raramente, ordenando o assassínio ou a escravidão deelementos numerosos, em sinal de vingança pela morte daquele queconsiderava como o melhor áulico da sua casa.Daí a algum tempo, regressava Comênio de sua viagem a Roma, comum professor competente para a pequena Flávia. Além desse preceptornotável, que lhe mandava a carinhosa solicitude de Flamínio Severus,chegavam-lhe também novas noticias, que o senador consideravaconfortadoras. Em virtude da sua solicitação, as altas autoridades doImpério determinaram a volta do pretor Sálvio" Emannuel,"...Lentulus, com a família, para a sede do governo imperial, pedindo-lhe oamigo, particularmente, a remessa de dados positivos quanto àadministração de Pilatos na Judeia, a fim de que o Senado pleiteasse a suaremoção.Em virtude dessas circunstâncias, daí a algum tempo voltavaComênio a Roma levando a Flamínio um volumoso processo, relacionandotodas as crueldades praticadas por Pilatos, entre os samaritanos. Em vistadas distâncias, por muito tempo rolou o processo nos gabinetesadministrativos, até que no ano de 35 foi o Procurador da Judeia chamadoa Roma, onde foi destituído de todas as funções que exercia no governoimperial, sendo banido para Viena, nas Gálias, onde se suicidou, daí a trêsanos, ralado de remorsos, de privações e de amarguras.Públio Lentulus permaneceu com as suas esperanças de pai, namesma vivenda da Galileia, dedicando-se quase que exclusivamente aosseus estudos, aos seus processos administrativos e à educação da filha,que manifestara, muito cedo, pendores literários ao lado de apreciáveisdotes de inteligência.Lívia conservou Ana junto de sua tutela e ambas continuaramorando junto à cruz que lhes dera Simeão no instante extremo, rogando aJesus a necessária força para as penosas lutas da vida.Debalde a família Lentulus esperava que o destino lhe trouxesse, denovo, o sorriso encantador do pequenino Marcus e, enquanto o senador efilhinha se preparavam para o mundo, junto de Lívia e Ana, que traziam assuas esperanças postas no Céu, deixemos passar mais de dez anos sobrea dolorosa serenidade da vila de Cafarnaum, mais de dez anos quepassaram lentos, silenciosos, tristes.FIM DA PRIMEIRA PARTE" Emannuel,"216SEGUNDA PARTEIA morte de FlamínioO ano de 46 corria calmo.Em Cafarnaum, vamos encontrar, de novo, as nossas personagensmergulhadas numa serenidade relativa.As autoridades administrativas, em Roma, não eram as mesmas.Entretanto, apoiado no prestígio do seu nome e nas consideráveisinfluências políticas de Flamínio Severus, perante o Senado, PúblioLentulus continuava comissionado na Palestina, onde gozava de todos osdireitos e regalos políticos, na administração provincial.Debalde continuara ali o senador, a despeito de todo o seu imensodesejo de voltar à sede do governo imperial, esperando o ensejo de reavero filho, que o tempo continuava a reter no domínio das sombrasmisteriosas. Nos últimos anos, perdera por completo a esperança deatingir o seu desiderato, mesmo porque, considerava, a esse tempoMarcus Lentulus deveria estar no seu primeiro período de juventude,tornando-se irreconhecível aos olhos paternos." Emannuel,"...Outras vezes, ponderava o orgulhoso patrício que o filho não maisvivia; que, certamente, as forças perversas e criminosas que o haviamarrebatado do lar teriam exterminado, igualmente, o gracioso menino sob afoice da morte, temendo uma punição inexorável. Lá dentro, porém, no imodalma, latejava a intuição de que Marcus ainda vivia, razão por que, entreas indecisões e alternativas, de todos os dias, resolvera, antes de tudo,ouvir a voz do dever paternal. lançando mão de todos os recursos parareencontrá-lo, permanecendo ali indefinidamente, contra os seus projetosmais decididos e mais sinceros.A esse tempo, vamos encontrá-lo com os traços fisionômicosligeiramente alterados, embora treze anos houvessem dobado sobre osdolorosos acontecimentos de 33. Seus cabelos ainda guardavamintegralmente a cor natural e apenas algumas rugas, quase imperceptíveis,tinham vindo acentuar a sua facies de profunda austeridade. Serenatristeza lhe pairava no semblante, invariavelmente, levando-o a isolar-sequase da vida comum, para mergulhar tão somente no oceano dos seuspapéis e dos seus estudos, com a única preocupação de maior vulto, queera a educação da filha, buscando dotá-la das mais elevadas qualidadesintelectivas e sentimentais. Sua vida no lar continuava a mesma, embora ocoração muitas vezes lhe pedisse reatar o laço conjugal, atendendoàqueles treze anos de separação íntima, com a mais absoluta renúncia deLívia a todas e quaisquer distrações que não fossem as da vida domésticae da sua crença. fervorosa e sincera. A sós com as suas meditações,Públio Lentulus deixava divagar o pensamento pelas recordações maisdoces e mais distantes e, nessas horas de introspecção, ouvia a voz daconsciência que subia do coração ao cérebro, como um apelo à razãoinflexível, tentando destruir-lhe os preconceitos, mas o orgulho venciasempre, com a sua rigidez inquebrantável. Algo lhe dizia no íntimo" Emannuel,"que sua mulher estava isenta de toda mácula, mas o espírito de vaidadepreconceituosa lhe fazia ver, imediatamente, a cena inesquecível daesposa ao deixar o gabinete privado de Pilatos, em vestes de disfarce,ouvindo ainda, sinistramente, as palavras escarninhas de Fúlvia Prócula,nas suas calúnias estranhas e ominosas...Lívia, porém, se insulara, envolta num véu de triste resignação,como quem espera as providencias sobrenaturais, que nunca aparecem noinquieto decurso de uma existência humana. O esposo a conservava juntoda filha, atendendo simplesmente à condição de mãe, não lhe permitindo,porém, de modo algum, interferir nos seus planos e trabalhos educativos.Para Lívia, aquele golpe rude fôra o maior sofrimento da sua vida. Aprópria calúnia não lhe doera tanto; mas, o reconhecer-se comodispensável junto da filha do seu coração, constituía a seus olhos a maisdolorosa humilhação da sua existência. Era por esse motivo que mais seabroquelava na fé, procurando enriquecer a alma sofredora, com as luzesda crença fervorosa e sincera.Longe de conservar as energias orgânicas, tal como acontecera aomarido, seu rosto testemunhava as injúrias do tempo, com a sua pesadabagagem de sofrimentos e amarguras. Na sua fronte, que as dores haviamsantificado, pendiam já alguns fios prateados, enquanto os olhosprofundos se tocavam de brilho misterioso, como se houvessemintensificado o próprio fulgor, de tanto se fixarem no infinito dos céus.Seus traços fisionômicos, embora atestassem velhice prematura,revelavam ainda a antiga beleza, agora transformada em indefinível enobre expressão de martírio e de virtude. Um único pedido fizera aoesposo, quando se viu isolada dos seus afetos mais queridos, no ambientedoméstico, longe do próprio contacto espiritual com a filha, circunstânciaque ainda mais lhe afligia o coração amargurado: - foi apenas que lhepermi-" Emannuel,"...tisse continuar nas suas práticas cristãs, em companhia de Ana, que tantose lhe afeiçoara, com aquele espírito de dedicação que lhe conhecemos, aponto de desprezar as oportunidades que se lhe ofereceram para constituirfamília. O senador deu-lhe ampla permissão em tal sentido, chegando afacultar-lhe recursos financeiros para atender aos numerosos operários dadoutrina que a procuravam, discretamente, amparando-se nas suaspossibilidades materiais para iniciativas renovadoras.Falta-nos, agora, apresentar Flávia Lentúlia aos que a viram nainfância, doente e tímida.No esplendor dos seus vinte e dois anos, ostentava o fruto daeducação que o pai lhe dera, com a forte expressão pessoal do seu carátere da sua formação espiritual.A filha do senador era Lívia, na encantadora graça dos seus dotesfísicos, e era Públio Lentulus, pelo coração. Educada por professoreseminentes, que se sucederam no curso dos anos, sob a escolha dosSeverus, que jamais se descuidaram dos seus amigos distantes, sabia oidioma pátrio a fundo, manejando o grego com a mesma facilidade emantendo-se em contacto com os autores mais célebres, em virtude doseu constante convívio com a intelectualidade paterna.A educação intelectual de uma jovem romana, nessa época, era semdúvida secundária e deficiente. Os espetáculos empolgantes dosanfiteatros, bem como a ausência de uma ocupação séria, para asmulheres do tempo, em face da incessante multiplicação e barateamentodos escravos, prejudicaram sensivelmente a cultura da mulher romana, nofastígio do Império, quando o espírito feminino rastejava no escândalo, nadepravação moral e na vida dissoluta.O senador, porém, fazia questão de ser um homem antigo. Nãoperdera de vista as virtudes heróicas e sublimadas das matronasinesquecíveis, das suas tradições familiares, e foi por isso que," Emannuel,"fugindo à época, buscou aparelhar a filha para a vida social, com a culturamais aprimorada possível, embora lhe enchesse igualmente o coração deorgulho e vaidade, com todos os preconceitos do tempo.A jovem amava a mãe com extrema ternura, mas à vista das ordensdo pai, que a conservava invariavelmente junto dele, nos seus gabinetesde estudo ou nas pequenas viagens costumeiras. não fazia mistério da suapredileção pelo espírito paterno, de quem presumia haver herdado asqualidades mais fulgurantes e mais nobres. sem conseguir entender adoce humildade e a resignação heróica da mãe, tão digna e tãodesventurada.O senador buscara desenvolver-lhe as tendências literárias,possibilitando-lhe as melhores aquisições de ordem intelectual,admirando-lhe a facilidade de expressão, principalmente na arte poética,tão exaltada naquela época.O tempo transcorria com relativa calma para todos os corações.De vez em quando, falava-se na possibilidade de regressar a Roma,plano esse cuja realização era sempre procrastinada, em vista daesperança de reencontrar o desaparecido.Num dia suave do mês de março, quando as árvores frondosas secobriam de flores, vamos encontrar na casa do senador um mensageiroque chegava de Roma a toda pressa.Tratava-se de um emissário de Flamínio Severus, que em longa cartacomunicava ao amigo o seu precário estado de saúde, acrescentando quedesejava abraçá-lo antes de morrer. Comovedores apelos constavamdesse documento privado, suscitando ao espírito de Públio as maisacurada ponderações. Todavia, a leitura de uma carta assinada porCalpúrnia, que viera em separado, era decisiva. Nesse desabafo, aveneranda senhora o informou do estado de saúde do marido, que, a seuver, era precaríssimo, acentuando os penosos dissabores e angustiosaspreocupações que ambos ex-" Emannuel,"...perimentavam acerca dos filhos, que, em plena mocidade, se entregavamàs maiores dissipações, seguindo a corrente de desvarios sociais daépoca. Terminava a carta comovedora, pedindo ao amigo que voltasse,que os assistisse naquele transe, de modo que a sua amizade e paternalinteresse representassem uma força moderadora junto de Plínio e deAgripa, que, homens feitos, se deixavam levar no turbilhão dos prazeresmais nefastos.Públio Lentulus não hesitou um instante.Mostrou à filha os documentos recebidos e, depois de examinarem,juntos, os pormenores do seu conteúdo, comunicou a Lívia o seupropósito de voltar a Roma na primeira oportunidade.A nobre senhora lembrou-se, então, de quão diversa lhe seria a vidana grande cidade dos césares, com as idéias que agora possuía, e pediu aJesus não lhe faltasse a coragem necessária para vencer em todos osembates que houvesse de sustentar na sociedade romana, para conservaríntegra a sua fé.A volta a Roma não reclamou, desse modo, grande demora. Omesmo emissário levou as instruções do senador para os seus amigos daCapital do Império e, daí a pouco, uma galera os esperava em Cesareia,reconduzindo a família Lentulus, de regresso, depois da permanência dequinze anos na Palestina.Desnecessário dizer dos pequeninos incidentes do retorno, tal avulgaridade das viagens antigas, com a sua monotonia, aliada àsvagarosas perspectivas e ao doloroso espetáculo do martírio dosescravos.Cumpre-nos, entretanto, acrescentar que, nas vésperas da chegada,o senador chamou a filha e a mulher, dirigindo-lhes a palavra em tomdiscreto:- Antes de aportarmos, convém lhes explique a minha resolução arespeito do nosso pobre Marcus.Há muitos anos, guardo o maior silêncio em torno do assunto, paracom os meus afeiçoados de" Emannuel,"Roma e não desejo ser considerado mau pai, em nosso ambiente social.Somente uma circunstância, como a que nos impõe esta viagem, melevaria a regressar, porquanto não se justifica que um pai abandone o filhoem tais paragens, ainda mesmo torturado pela incerteza da continuidadede sua existência.Assim, resolvi comunicar, a quantos mo perguntem, que o filho estámorto há mais de dez anos, como, de fato, deverá estar para nós outros,visto a impossibilidade de o reconhecermos, na hipótese do seureaparecimento.Se soubessem de nossas mágoas, não faltariam embusteiros quedesejassem ludibriar nossa boa fé, explorando o sentimentalismo familiar.Ambas assentiram na decisão, que lhes parecia a mais acertada, e,dai a minutos, o porto de Óstia estava à vista, agora lindamente aparelhadopelo zelo do Imperador Cláudio, que ali mandara executar obrasinteressantes e monumentais.Nessa hora, não se observava o contentamento, natural em taiscircunstâncias.A partida, quinze anos antes, havia sido um cântico de esperançanas expectativas suaves do futuro, mas o regresso estava cheio dosilêncio amargo das mais penosas realidades.Além do desencanto da vida conjugal, Públio e Lívia não viam ali,entre os rostos amigos que os esperavam, as silhuetas de Flamínio eCalpúrnia, que consideravam irmãos muito amados.Contudo, dois rapazes simpáticos e fortes, de gestosdesembaraçados, nas suas togas irrepreensíveis, dirigiram-se a elesimediatamente, em escaleres confortáveis, mal a embarcação haviaancorado, rapazes esses que o senador e esposa reconheceram de pronto,num afetuoso e comovido abraço.Tratava-se de Plínio e seu irmão que, incumbidos pelos pais, vinhamreceber os queridos ausentes." Emannuel,"...Apresentados a Flávia, ambos fizeram um movimento instintivo deadmiração, recordando o dia da partida, quando a haviam acomodado nobeliche, entre os seus gemidos e caretas de criança doente.A jovem impressionara-se, também, com a figura de ambos, de quempossuía apagadas reminiscências, entre as recordações remotas da suainfância. Principalmente Plínio Severus, o mais moço, a haviaimpressionado profundamente, com os seus vinte seis anos completos, domesmo porte elegante e distinto com que ela havia idealizado o herói dasua imaginação feminina.Notava-se, igualmente, num relance, que o rapaz não ficaraindiferente àquelas mesmas emoções, porque, trocadas as primeirasimpressões da viagem e examinada a situação da saúde de FIamínioSeverus, considerada pelos filhos como excessivamente grave, Plínioofereceu o braço à jovem, enquanto Agripa lhe observava num leve tom deciúme:- Mas que é isso, Plínio? Flávia pode suscetibilizar-se com a tuaintimidade excessiva!...- Ora, Agripa - respondeu ele, com um franco sorriso -, estás muitoprejudicado pelos formalismos da vida pública. Flávia não pode estranharos nossos costumes, na sua condição de patrícia pelo nascimento e, aodemais, não nasci para as disciplinas do Estado, tão do teu gosto!...A essas palavras, ditas com visível bom humor, acrescentou PúblioLentulus, confortado pelo ambiente da sua predileção:- Vamos, meus filhos!E dando o braço à esposa, para desempenhar a comédia da suafelicidade conjugal na vida comum da grande cidade, seguido de Plínio,que amparava a jovem no seu braço forte e conquistador em assuntos docoração, desembarcaram junto de Agripa, a fim de descansarem umpouco, antes de seguirem diretamente para Roma, e, para o que, todas asprovidências haviam sido tomadas pelos irmãos" Emannuel,"Severus, com o máximo de carinho e espontânea dedicação.Lívia não se esqueceu de Ana, providenciando para o seu confortojunto aos demais servos da casa, em todo o percurso de caminho que osseparava da residência.Em direção à cidade, pensou então o senador que, finalmente, iarever o amigo muito amado. Há longos anos acariciava a idéia deconfessar-lhe, de viva voz, todos os seus desgostos na vida conjugal,expondo lhe com franqueza e sinceridade as suas preocupações, acercados fatos que o separavam da esposa, na intimidade do lar. Tinha sede desuas palavras afetuosas e de explicações consoladoras, porque sentia queamava a mulher acima de tudo, apesar de todos os dissaboresexperimentados. Não crendo sinceramente na sua queda, apenas seuorgulho de homem o afastava de uma reconciliação que cada dia setornava mais imperiosa e necessária.Em breve defrontavam a antiga residência, lindamente ornamentadapara recebê-los. Numerosos servos se movimentavam, enquanto osrecém-vindos faziam o reconhecimento dos lugares mais íntimos e maisfamiliares.Havia quinze anos que o palácio do Aventino aguardava os donos,sob o carinho de escravos dedicados e dignos.Logo se servia uma refeição frugal no triclínio enquanto os irmãosSeverus, que participavam desse ligeiro repasto, esperavam os seusamigos, a fim de seguirem todos juntos para a residência de Flamínio,onde o enfermo os aguardava ansiosamente.Plínio, em dado instante, como quem traz à baila uma notíciainteressante e agradável, exclamou, dirigindo-se ao senador:- Há bem tempo, ficamos conhecendo vosso tio Sálvio Lentulus esua família, que residem perto do Fórum." Emannuel,"...- Meu tio? - perguntou Públio, impressionado, como se aslembranças de Fúlvia lhe trouxessem ao íntimo uma aluvião de fantasmas.Mas, ao mesmo tempo, como se estivesse fazendo o possível poradormentar as próprias mágoas, acentuou com suposta serenidade:- Ah! é verdade! Faz mais de doze anos que ele regressou daPalestina...Foi neste comenos que Agripa interveio como a vingar-se da atitudedo irmão, quando ainda não havia desembarcado, exclamandointencionalmente:- E por sinal que Plínio parece inclinado a desposar-lhe a filha, denome Aurélia, com quem mantém as melhores relações afetivas, de muitotempo.Ao ouvir essas palavras, Flávia Lentulus fitou o interpelado, como seentre o seu coração e o filho mais moço de Flamínio já houvesse os maisfortes laços de compromissos sentimentais, dentro das leis misteriosasdas afinidades psíquicas.Enquanto se passava esse duelo de emoções, Plínio fitou o irmãoquase com ódio, dando a entender a impulsividade do seu espírito erespondendo com ênfase, como a defender-se de uma acusaçãoinjustificável, perante a mulher das suas preferências:- Ainda desta vez, Agripa, estás enganado. Minhas relações comAurélia não têm outro fundamento, além do da pura amizade reciproca,mesmo porque considero muito remota qualquer possibilidade decasamento, na fase atual da minha vida.Agripa esboçou um sorriso brejeiro, enquanto o senador,compreendendo a situação, acalmava os ânimos, exclamando combondade:- Está bem, filhos; mas falaremos depois sobre meu tio. Sinto-meansioso por abraçar o querido enfermo e não temos tempo a perder." Emannuel,"Em breves minutos um grupo de liteiras encaminhava-se para anobre residência dos Severus, onde Flamínio aguardava o amigo,ansiosamente.Sua fisionomia não acusava mais aquela mobilidade antiga e aempolgante expressão de energia que a caracterizava, mas, emcompensação, grande placidez se lhe irradiava dos olhos, sensibilizando aquantos o visitavam nos seus derradeiros dias de lutas terrestres. Aexpressão do semblante era a do lutador derribado e abatido, exausto decombater as forças misteriosas da morte. Os médicos não tinham a menoresperança de cura, considerando o profundo desequilíbrio físico, aliado amui forte desorganização do sistema cardíaco. As menores emoçõesdeterminavam alterações no seu estado, ensejando as mais amplasapreensões da família.De vez em quando, os olhos serenos e tranqüilos se fixavamdetidamente na porta de entrada, como se esperassem alguém com omáximo interesse, até que rumores mais fortes, vindos do vestíbulo,anunciaram ao seu coração que ia cessar uma ausência de quinze anosconsecutivos, entre ele e os amigos sempre lembrados.Calpúrnia, igualmente muito abatida, abraçou Lívia e Públio,derramada em lágrimas e apertando Flávia nos braços, como se recebesseuma filha.Ali mesmo, no vestíbulo, trocaram impressões e falaram das suassaudades intensas e das preocupações numerosas, até que Públiodeliberou deixar as duas amigas em franca expansão afetiva e seencaminhou com Agripa a um dos compartimentos próximos do tablino,onde abraçou o grande amigo, com lágrimas de alegria.Flamínio Severus estava magríssimo e suas palavras, por vezes,eram cortadas pela dispnéia impressionante, dando a perceber que muitopouco tempo lhe restava de vida.Sabendo da satisfação do pai na companhia íntima do leal amigo,Agripa retirou-se do vasto" Emannuel,"...aposento, onde as sombras do crepúsculo começavam a penetrarcaprichosamente, como se o fizessem no silêncio sagrado das navesreligiosas.Públio Lentulus se surpreendeu, encontrando o velho companheiroem tal estado. Não supunha revê-lo tão depauperado. Agora, certificava-sede que era a ele, sim, que competia auxiliá-lo com os seus conselhos,levantando-lhe as forças orgânicas e espirituais, com as suas exortaçõesamigas e carinhosas.Uma vez a sós, contemplou o amigo e mentor, como se estivesse amirar uma criança enferma.Flamínio, por sua vez, olhou-o face a face e, olhos rasos dágua,tomou-lhe as mãos nas suas, dando-lhe a entender que recebia ali,naquele momento, um filho muito amado.Num gesto brando e delicado, procurou sentar-se maiscomodamente e, amparando-se nos ombros de Lentulus, murmuroucomovidamente ao seu ouvido:- Públio, aqui já te não recebe o companheiro enérgico e resolutodoutros tempos. Sinto que apenas te esperava para poder entregar a almaaos deuses, tranqüilamente, supondo já cumprida a missão que mecompetia na Terra, com a minha consciência retilínea e os meus honestospensamentos.Há mais de um ano pressinto o instante irremediável e fatal, que,agora, satisfeito o meu ardente desejo, deve estar avizinhando-se com avelocidade do relâmpago. Não desejava, pois, partir sem te apertar emmeus braços, fazendo-te as últimas confidências neste leito de morte...- Mas, Flamínio - respondeu-lhe o amigo, com serenidade dolorosa -,tudo me autoriza a crer nas tuas melhoras imediatas, e todos nósaguardamos a bênção dos deuses, de maneira que possamos contar coma tua companhia indispensável, por muito tempo ainda, neste mundo.- Não, meu bom amigo, não te iludas com essas suposições epensamentos. Nossa alma ja-" Emannuel,"mais se engana quando se avizinha das sombras do sepulcro... Não medemorarei em penetrar o mistério da grande noite, mas acredito,firmemente, que os deuses me saudarão com as luzes de suas auroras!...E, deixando o olhar, profundo e sereno, divagar pelo aposento, comose as paredes marmorizadas se dilatassem ao infinito, Flamínio Severusconcentrou-se um minuto em meditações íntimas, continuando a falar,como se desejasse imprimir à conversação um novo rumo:- Lembras-te daquela noite em que me confiaste os pormenores deum sonho misterioso, no auge da tua emotividade dolorosa?- Oh! se me lembro!... - revidou Públio Lentulus recordando, de modoinexplicável, não só a palestra remota que resolvera a viagem à Palestina,mas também outro sonho, no qual testemunhara os mesmos fenômenosintraduzíveis, na noite do seu encontro com Jesus de Nazaré. Ao lembrar-se daquela personalidade maravilhosa, estremeceu-lhe o coração, mastudo fez por evitar ao amigo uma impressão mais forte e dolorosa,acrescentando com aparente serenidade: - Mas, a que vem tua pergunta,se hoje estou mais que convicto, de acordo contigo mesmo, que tudoaquilo não passava de simples impressões de uma fantasia semimportância?- Fantasia? - replicou Flamínio, como se houvesse encontrado umanova fórmula da verdade. - Já modifiquei por completo as minhas idéias. Aenfermidade tem, igualmente, os seus belos e grandiosos beneficios.Retido no leito há muitos meses, habituei-me a invocar a proteção deTêmis, de modo que não chegasse a ver nos meus padecimentos mais queo resultado penoso dos meus próprios méritos, perante a incorruptíveljustiça dos deuses, até que uma noite tive impressões iguais às tuas." Emannuel,"...Não me recordo de haver guardado qualquer preocupação com a tuanarrativa, mas o certo é que, há cerca de dois meses, me senti levado emsonho à mesma época da revolução de Catilina, e observei a veracidade detodos os fatos que me relataste há dezesseis anos, chegando a ver o teupróprio ascendente, Públio Lentulus Sura, que era como que o teu retrato,tal a sua profunda semelhança contigo, mormente agora que te encontrasnos teus quarenta e quatro anos, em plena fixação de traços fisionômicos.Interessante é que me encontrava a teu lado, caminhando contigo namesma estrada de clamorosas iniquidades. Lembro-me de nos vermosassinando sentenças iníquas e impiedosas, determinando o suplício demuitos dos nossos semelhantes... Todavia, o que mais me atormentava eraobservar-te a terrível atitude, determinando a cegueira de muitos dosnossos adversários políticos e assistindo, pessoalmente, ao desenrolardas flagelações do ferro em brasa, queimando numerosas pupilas paratodo o sempre, aos gritos dolorosos das vitimas indefesas!...Públio Lentulus arregalou os olhos, de espanto, participando,igualmente, daquelas recordações que dormitavam fundo na sua almaensombrada, e replicou, por fim:- Meu bom amigo, tranqüiliza o coração... Semelhantes impressõesparecem reflexos de alguma emoção mais forte que perdurasse no âmagoda tua memória, por minhas narrativas naquela noite de há tantos anos!...Flamínio Severus esboçou, porém, um leve sorriso, como quemcompreendia a intenção generosa e consoladora, redargüindo com serenabondade:- Devo dizer-te, Públio, que esses quadros não me apavoraram eapenas te falo desse complexo de emoções, porque tenho a certeza de quevou partir desta vida e ainda ficarás, talvez por muito tempo, na crostadeste mundo. É possível" Emannuel,"que as recordações do teu espírito aflorem novamente e, então, quero queaceites a verdade religiosa dos gregos e dos egípcios. Acredito, agora, quetemos vidas numerosas, através de corpos diversos. Sinto que meu pobreorganismo está prestes a desfazer-se; entretanto, meu pensamento estávivaz como nunca e só em tais circunstâncias presumo entender o grandemistério de nossas existências. Pesa-me, no íntimo, haver praticado o malno pretérito tenebroso, embora haja decorrido mais de um século sobre ostristes acontecimentos de nossas visões espirituais; todavia, aqui estoudiante dos deuses, com a consciência tranqüila.Públio ouvia-o atentamente, entre penalizado e comovido. Procuravadirigir-lhe palavras confortadoras, mas a voz parecia morrer-lhe nagarganta, embargada pelas emoções daquele doloroso momento.Flamínio, porém, apertou-o de encontro ao coração, com os olhosrasos de pranto, sussurrando-lhe ao ouvido:- Meu amigo, não tenhas dúvidas sobre as minhas palavras... Querocrer que estas horas sejam as últimas... No meu escritório estão todos osteus documentos e o memorial dos negócios de ordem material quemovimentei em teu nome, na tua ausência e no concernente aos nossosproblemas de ordem política e financeira. Não encontrarás dificuldade paracatalogar, convenientemente, todos os papéis a que me refiro...- Mas, Flamínio - replicou Públio, com enérgica serenidade -, acreditoque teremos muito tempo para cuidar disso.Nesse momento, Lívia e a filha, Calpúrnia e os rapazes, acercaram-se do nobre enfermo, trazendo-lhe sorriso amigo e palavras consoladoras.O doente deu mostras de ânimo e alegria para cada um deles,encarecendo o abatimento de Lívia e a beleza exuberante de Flávia, compalavras meigas e quentes." Emannuel,"...Ficando a sós, novamente, o generoso senador que a moléstiadesfigurara, entre os linhos claros do leito, exclamou com bondade:- Eis, meu amigo, as borboletas risonhas do amor e da mocidade,que o tempo faz desaparecer, célere, no seu torvelinho de impiedades.E baixando a voz, como se quisesse transmitir ao amigo umadelicada confidência dalma, continuou a falar pausadamente:- Levo comigo, para o túmulo, numerosas preocupações pelos meuspobres filhos. Dei-lhes tudo que me era possível, em matéria educativa, e,embora reconhecendo que ambos possuem sentimentos generosos esinceros, noto que os seus corações são vítimas das penosas transiçõesdos tempos que passam, nos quais temos o desgosto de observar os maisaviltantes rebaixamentos da dignidade do lar e da família.Agripa vem fazendo o possível por se adaptar aos meus conselhos,entregando-se aos labores do Estado; mas Plínio teve a pouca sorte de sedeixar seduzir por amigos pérfidos e desleais, que não desejam senão asua ruína e o arrastam aos maiores desregramentos, nos ambientessuspeitos de nossas mais altas camadas sociais, levando muito longe oseu espírito de aventuras.Ambos me proporcionam os maiores dissabores com os atos quepraticam, testemunhando reduzidas noções de responsabilidadeindividual. Esbanjando grande parte da nossa fortuna própria, não sei quefuturo será o da minha pobre Calpúrnia se os deuses não me permitirem agraça de buscá-la, em breve, no exílio de sua saudade e da sua amargura,depois da minha morte!...- Mas a mim - respondeu com interesse o interpelado - eles se meafiguram dignos do pai que os deuses lhes concederam, com a suagentileza generosa e com a fidalguia de suas atitudes.- Em todo caso, meu amigo, não podes esquecer que tua ausênciade Roma foi muito longa" Emannuel,"e que muitas inovações se processaram nesse período.Parecemos caminhar vertiginosamente para um nível de absolutadecadência dos nossos costumes familiares, bem como os nossosprocessos educativos, a meu ver, desmantelados em dolorosa falência!...E como se desejasse trazer de novo a conversação para os assuntosde ordem imediata, da vida prática, acentuou- Agora que vejo tua filha esplendente de mocidade e de energia,renovo, intimamente, meus antigos projetos de trazê-la para o círculo danossa comunidade familiar.Era meu desejo que Plínio a desposasse, mas meu filho mais moçoparece inclinado a comprometer-se com a filha de Sálvio, não obstante aoposição de Calpúrnia a esse projeto; não por teu tio, sempre digno erespeitável aos nossos olhos, mas por sua mulher que não parecedisposta a abandonar as antigas idéias e iniciativas do passado. Devo,porém, considerar que me resta ainda Agripa, a fim de concretizarmos asminhas futurosas esperanças.Se puderes, algum dia, não te esqueças desta minha recomendaçãoin extremis !...- Está bem, Flamínio, mas não te canses. Dá tempo ao tempo, porquenão faltará ocasião para discutir o assunto - replicou Públio Lentulus,comovido.Neste comenos, Agripa entrou na alcova, dirigindo-se ao pai,afetuosamente:- Meu pai, o mensageiro enviado a Massília (1) acaba de chegar,trazendo as desejadas informações a respeito de Saul.- E ele nada nos manda dizer sobre a sua vinda? - perguntou oenfermo, com bondoso interesse.__________(1) Nota da Editora: atualmente, Marselha." Emannuel,"...- Não. O portador apenas comunica que Saul partiu para a Palestina,logo depois de alcançar a consolidação da sua fortuna com os últimoslucros comerciais, acrescentando haver deliberado ir à Judeia, para revero pai que reside nas cercanias de Jerusalém.- Pois sim - disse o enfermo, resignado -, a vista disso, recompensao mensageiro e não te preocupes mais com os meus anteriores desejos.Ao ouvi-los, Públio deu tratos ao cérebro para se recordar de algumacoisa que não podia definir com precisão. O nome de Saul não lhe eraestranho. Com a circunstância de se localizar a residência do pai nasproximidades de Jerusalém, lembrou-se, finalmente, das personagens desuas recordações, com fidelidade absoluta. Rememorou o incidente emque fôra obrigado a castigar um jovem judeu desse nome, nas cercaniasda cidade, remetendo-o às galeras como punição do seu ato irrefletido, erecordando, igualmente, o instante em que um agricultor israelita fôrareclamar a liberdade do prisioneiro, dando-o como seu filho.Experimentando um anseio vago no coração, exclamou intencionalmente:- Saul? Não é um nome característico da Judeia?- Sim - respondeu Flamínio com serenidade -, trata-se de um escravoliberto de minha casa. Era um cativo judeu, ainda jovem, adquirido porValério, no mercado, para as bigas dos meninos, ao ínfimo preço de quatromil sestércios. Tão bem se houve, entretanto, nos afazeres que lhe eramcomumente designados, que, após levantar vários prêmios com as suasproezas no Campo de Marte, destinados aos meus filhos, resolvi conceder-lhe a liberdade, dotando-o com os recursos necessários para viver epromover empreendimentos de sua própria conta. E parece que a mão dosdeuses o abençoou no momento preciso, porque Saul é hoje senhor deuma fortuna sólida, como resultado do seu esforço e trabalho." Emannuel,"Públio Lentulus silenciou, intimamente aliviado, pois o seuprisioneiro, segundo notícias recebidas pelos prepostos do governoprovincial, se havia evadido para o lar paterno, fugindo, desse modo, àescravidão humilhante.As horas da noite iam já avançadas.O visitante lembrou-se, então, de que esperava avistar-se comFlamínio para uma palestra substanciosa e longa, a respeito de múltiplosassuntos, como, por exemplo, a sua penosa situação conjugal, odesaparecimento misterioso do filhinho, o seu encontro com Jesus deNazaré. Mas, observava que Flamínio estava exausto, sendo justo enecessário adiar suas confidências amargas e penosas.Foi então que se retirou do aposento para aguardar o dia seguinte,cheio de esperanças consoladoras.Os dois amigos trocaram longo e significativo olhar no instantedaquelas despedidas, que agora pareciam comuns, como as afetuosassaudações diárias doutros tempos.Confortadoras exortações e promessas amigas foram trocadas,entre expressões de fraternidade e carinho, antes que Calpúrniareconduzisse as visitas ao vestíbulo, com a sua bondade generosa eacolhedora.Todavia, nas primeiras horas da manhã seguinte, um mensageiroapressado parava à porta do palacete dos Lentulus, com a notíciaalarmante e dolorosa.Flamínio Sevérus piorava inesperadamente, sem que os médicosdessem aos seus familiares a menor esperança. Todas as melhorasfictícias haviam desaparecido. Uma força inexplicável lhe desequilibrara aharmonia orgânica, sem que remédio algum lhe paralisasse as afliçõesangustiosas.Dentro de poucas horas, Públio Lentulus e os seus se encontravamde novo na vivenda confortável dos amigos." Emannuel,"...Enquanto penetra ele, ansioso, no quarto do velho companheiro delutas terrestres, Lívia, na intimidade de um apartamento, dirige-se aCalpúrnia nestes termos:- Minha amiga, já ouviste falar em Jesus de Nazaré?A orgulhosa matrona, que não perdia a linha de suas vaidades emfamília, ainda nos momentos das mais angustiosas preocupações,arregalou os olhos, exclamando:- Porque mo perguntas?- Porque Jesus - respondeu Lívia, humildemente - é a misericórdiade todos os que sofrem e não posso esquecer-me da sua bondade, agoraque nos vemos em provações tão ásperas e tão dolorosas.- Suponho, querida Lívia - redargüiu Calpúrnia, gravemente -, queesqueceste todas as recomendações que te fiz antes de partires para aPalestina, porque, pelas tuas advertências, estou deduzindo que aceitastede boa fé as teorias absurdas da igualdade e da humildade, incompatíveiscom as nossas tradições mais vulgares, deixando-te levar nas águasenganosas das crenças errôneas dos escravos.- Mas, não é isso. Refiro-me à fé cristã, que nos anima nas lutas daexistência e consola o coração atormentado nas provações mais ríspidas emais amargosas...- Essa crença está chegando agora à sede do Império e por sinal temencontrado a repulsa geral dos nossos homens mais sensatos e ilustres.- Eu, porém, conheci Jesus de perto e a sua doutrina é de amor, defraternidade e de perdão... Conhecendo os teus justos receios porFlamínio, lembrei-me de apelar para o profeta de Nazaré, que, na Galileia,era a providência de todos os aflitos e de todos os sofredores!- Ora, minha filha, sabes que a fraternidade e o perdão das faltas nãose compadecem, de modo" Emannuel,"algum, com as nossas idéias de honra, de pátria e de família, e o que maisme admira é a facilidade com que Públio te permitiu tão íntimo contactocom as concepções errôneas da Judeia, a ponto de modificares tuapersonalidade moral, segundo me deixas entrever.- Todavia...Ia Lívia esclarecer, da melhor maneira, os seus pontos de vista, comrespeito ao assunto, quando Agripa entrou inopinadamente no gabinete,exclamando com a mais forte emoção:Minha mãe, venha depressa, muito depressa!... Meu pai pareceagonizante!...Num átimo, ambas penetraram no aposento do moribundo, que tinhaos olhos parados como se fôra acometido, inesperadamente, de umdelíquio irrefreável.Públio Lentulus guardava, entre as suas, as mãos do moribundo,mirando-lhe ansiosamente o fundo das pupilas.Aos poucos, porém, o tórax de Flamínio parecia mover-se de novoaos impulsos de uma respiração profunda e dolorosa. Em seguida, osolhos revelaram forte clarão de vida e consciência, como se a lâmpada docérebro se houvesse reacendido num movimento derradeiro. Contemplou,em torno, os familiares e amigos bem-amados, que se debruçavam sobreele, inquietos e ansiosos. Um médico muito amigo, que o assistiainvariavelmente, compreendendo a gravidade do momento, retirara-se parao átrio, enquanto em volta do agonizante somente se ouvia a respiraçãoopressa dos nossos conhecidos destas páginas.Flamínio passeou o olhar brilhante e indefinível por todos os rostos,como se procurasse, mais detidamente, a esposa e os filhos, exclamandoem frases entrecortadas:- Calpúrnia, estou... na hora extrema... e dou graças aos deuses...por sentir a consciência... desanuviada e tranqüila... Esperar-te-ei na" Emannuel,"...eternidade... um dia... quando Júpiter... houver por bem... chamar-te parameu lado...A veneranda senhora ocultou o rosto nas mãos, dando expansão àslágrimas, sem conseguir articular palavra.- Não chores... - continuou ele, como a aproveitar os momentosderradeiros -, a morte... é uma solução... quando a vida... já não tem maisremédio... para as nossas dores...E olhando ambos os filhos, que o contemplavam com ansiedade, deolhos lacrimejantes, tomou a mão do mais moço, murmurando:- Desejaria... meu Plínio... ver-te feliz... muito feliz... É intenção tua...desposares a filha de Sálvio?...Plínio compreendeu as alusões paternas naquele momento grave edecisivo, fazendo um leve sinal negativo com a cabeça, ao mesmo tempoque fixava os olhos grandes e ardentes em Flávia Lentúlia, como a indicarao pai a sua preferência.O moribundo, por sua vez, com a profunda lucidez espiritual dos quese aproximam da morte, com plena consciência da situação e dos seusdeveres, entendeu a atitude silenciosa do filho estremecido e, tomando amão da jovem, que se inclinava afetuosamente sobre o seu peito, apertouas mãos de ambos de encontro ao coração, murmurando com íntimaalegria:- Isso é mais... uma razão... para que eu parta... tranqüilo... Tu,Agripa... hás-de ser também... muito feliz... e tu... meu caro... Públio... juntode Lívia... haverás de viver...Todavia, um soluço mais forte escapara-se-lhe inopinadamente e asucessão dos singultos violentos e dolorosos obrigou-o a calar-se,enquanto Calpúrnia se ajoelhava e lhe cobria as mãos de beijos...Lívia, também genuflexa, olhava para o alto como se desejassedescobrir os seus arcanos. A seus olhos, apresentava-se aquela câmaramortuária repleta de vultos luminosos e de outras sombras" Emannuel,"indefiníveis, que deslizavam tranqüilamente em torno do moribundo. Orouno imo dalma, rogando a Jesus força e paz, luz e misericórdia para ogrande amigo que partia. Nesse instante, lobrigou a radiosa figura deSimeão, rodeada de claridade azulina e resplandecente.Flamínio agonizava...À medida que transcorriam os minutos, os olhos se lhe tornavamvítreos e descoloridos. Todo o corpo transudava um suor abundante, quealagava o linho alvíssimo das cobertas.Lívia notou que todas as sombras presentes se haviam tambémajoelhado e somente o vulto imponente de Simeão ficara de pé, como sefôra uma sentinela divina, colocando as mãos radiosas na fronte abatidado moribundo. Notou, então, que seus lábios se entreabriam para a oração,ao mesmo tempo que doces palavras lhe chegavam, nítidas, aos ouvidosespirituais:- Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vossonome, venha a nós o vosso reino de misericórdia e seja feita avossa vontade, assim na Terra como nos céus!...Nesse instante, Flamínio Severus deixava escapar o último suspiro.Marmórea palidez lhe cobriu os traços fisionômicos, ao mesmo tempo queuma infinita serenidade se estampava na sua máscara cadavérica, como sea alma generosa houvesse partido para a mansão dos bem-aventurados edos justos.Somente Lívia, com a sua crença e a sua fé, pôde conservar-se deânimo sereno, entre quantos a rodeavam no doloroso transe. PúblioLentulus, entre lágrimas comovedoras, certificava-se de haver perdido omelhor e o maior dos amigos. Nunca mais a voz de Flamínio lhe falaria dasmais belas equações filosóficas, sobre os problemas grandiosos dodestino e da dor, nas correntes intermináveis da vida. E, enquanto seabriam as portas do palácio para as homenagens da sociedade ro-" Emannuel,"...mana; e enquanto se celebravam solenes exéquias implorando a proteçãodos manes do morto, seu coração de amigo considerava a realidadedolorosa de se haver rasgado, para sempre, uma das mais belas páginasafetivas, no livro da sua vida, dentro da escuridão espessa e impenetráveldos segredos de um túmulo." Emannuel,"240IISombras e núpciasÀs exéquias de Flamínio compareceram numerosos afeiçoados doextinto, além das muitas representações sociais e políticas de todas asorganizações a que radicara o seu nome digno e ilustre.Entre tantos elementos, não podia faltar a figura do pretor SálvioLentulus que, nas homenagens póstumas, se fez acompanhar da mulher eda filha, que fizeram o possível por bem representar a comédia de suasfingidas mágoas pela morte do grande senador, junto de Calpúrnia que sedebulhava nas lágrimas dos seus mais dolorosos sentimentos.Ali mesmo, no palácio dos Severus, encontraram-se os membros dafamília Lentulus, com a evidente aversão de Públio pela presença daesposa do tio, enquanto as senhoras trocavam impressões dolorosas, naafetada etiqueta das trivialidades sociais.Fúlvia e Aurélia notaram, com profundo desagrado, a expressãocarinhosa de Plínio Severus para com Flávia Lentúlia, a quem distinguiacom especial atenção, nas solenidades fúnebres, como a demonstrar aspreferências do seu coração." Emannuel,"...Eis porque, daí a algum tempo, vamos encontrar mãe e filha empalestra animada sobre o assunto, na intimidade do lar, dando a entender amesquinhez de seus sentimentos, embora os cabelos brancos infundissemveneração na fronte materna, que, apesar disso, não se deixava vencerpelos argumentos da experiência e da idade.- Eu também - exclamava Fúlvia, maliciosamente, respondendo auma interpelação da filha - muito me surpreendi com as atitudes de Plínio,por julgá-lo um rapaz cioso do cumprimento de seus deveres; mas não meinteressei pelos modos de Flávia, porquanto sempre achei que os filhostêm de herdar fatalmente as qualidades dos pais e, mais particularmenteno caso presente, quando a herança é materna, com mais bases de certezairrefutável para o nosso julgamento.- Oh! mãe, queres dizer, então, que conheces a conduta de Lívia aesse ponto? - perguntou Aurélia, com bastante interesse.- Nem duvides que seja de outra forma...E a imaginação caluniosa de Fúlvia passou a satisfazer acuriosidade da filha, com os fatos mais inverossímeis e terríveis, sobre aesposa do senador, quando de sua permanência na Palestina, glosadospelas expressões de ironia e desprezo da jovem, dominada pelos maisacerbos ciúmes, terminando a narrativa nestes termos:- Somente tua tia Cláudia poderia contar-te, literalmente, o quesofremos, em face do perjúrio dessa mulher que hoje vemos tão simples etão retraída, como se não conhecesse as experiências mais fortes destemundo. Não podemos esquecer que nos encontramos diante de pessoastão poderosas na política, como na astúcia. O sobrinho de teu pai, além demarido profundamente infeliz, é um homem público orgulhoso emalvado!...Não me consta houvesse ele corrigido a esposa descriteriosa einfiel, depois de haver verificado, com os próprios olhos, a sua traiçãoconjugal; mas," Emannuel,"bastou que ela o fizesse sofrer com as suas deslealdades para que todosnós, os romanos que nos encontrávamos na Judeia, pagássemos o fatocom os mais horríveis tributos de sofrimentos...Possuíamos um grande amigo na pessoa do lictor SulpícioTarquinius, que foi assassinado barbaramente em Samaria, em trágicascircunstâncias, sem que alguém, até hoje, pudesse identificar seusmatadores, para o merecido castigo... Nossa família, que tinha interessesvultosos em Jerusalém, foi obrigada a voltar precipitadamente para Roma,com graves prejuízos financeiros de teu pai e, por último - prosseguia apalavra venenosa da caluniadora -, o grande coração do meu cunhadoPôncio sucumbiu sob as provações mais injuriosas e mais rudes...Destituído do governo provincial e atormentado pelas mais durashumilhações, foi banido para as Gálias, suicidando-se em Viena, empenosas circunstâncias, acarretando-nos inextinguível desgosto!...Em face dos martírios suportados por Cláudia, em virtude da nefastainfluência dessa mulher, não me surpreendo, portanto, com as atitudes dafilha, procurando roubar-te o noivo futuroso!...- Urge trabalharmos para que tal não aconteça, minha mãe - replicoua moça sob a forte impressão dos seus nervos vibráteis. - Já não possoviver sem ele, sem a sua companhia... Seus beijos me ajudam a viver notorvelinho das nossas preocupações de cada dia...Fúlvia ergueu, então, os olhos, como a examinar melhor a ansiedadeque se estampara na fisionomia da filha, redargüindo com ar inteligente emalicioso:- Mas tu te vens entregando a Plínio, dessa maneira?A jovem, todavia, tremendo de cólera, recebeu a indireta dentro dosinfelizes princípios educativos a que obedecia desde o berço, exclamandoem fúria:" Emannuel,"...- Que pensas, então, que fazemos indo às festas e aos circos?Porventura, serei eu diferente das outras moças do meu tempo?E, alteando a voz como alguém que necessitasse defender-sepronunciando um libelo contra o acusador, desatou em consideraçõesinconvenientes, através de termos asquerosos, rematando:- E tu, mãe, não tens igualmente...Fúlvia, porém, de um salto, colou-se ao corpo da filha numa atitudeacrimoniosa e severa, exclamando com fria serenidade:- Cala-te! Nem mais uma palavra, pois que não era meu propósitoacalentar uma víbora no próprio seio!...Compreendendo, porém, que a situação podia tornar-se mais penosaem virtude das suas grandes culpas, como mãe, como esposa e naqualidade de mulher, exclamou com voz quase melíflua, como a dar umatriste lição à própria filha:- Ora esta, Aurélia! Não te aborreças!... Se falei desse modo foi parate insinuar que não podemos cativar um homem, para as nossas garantiasfemininas no matrimônio, dando-lhe tudo de uma só vez. Um homemnervoso e galanteador, qual o filho de Flamínio, conquista-se por etapas,fazendo-lhe poucas concessões e muitos carinhos.Bem sabes que o primeiro problema da vida de uma mulher danossa época se resume, antes de tudo, na obtenção de um marido, porqueos tempos são maus e não podemos dispensar a sombra de uma árvoreque nos abrigue de surpresas penosas, entre as asperezas do caminho...- É verdade, mãe - respondeu a jovem totalmente modificada, mercêdaquelas astuciosas ponderações -; o que me dizes é a realidade e já quesão tão grandes as tuas experiências, que me sugeres para a realizaçãodos meus desejos?- Antes de tudo - retornou Fúlvia, perversamente - devemos recorreraos argumentos do ciúme, que são sempre mais fortes, quando existe" Emannuel,"um interesse mais ou menos sincero, de conseguir alguma coisa emassuntos de amor. E já que te entregaste tanto ao filho de Flamínio, vê seaproveitas as primeiras festas do circo, provocando-lhe impulsos de invejae despeito.Não tens sido cortejada pelo protegido do questor Britanicus?- Emiliano? - perguntou a moça, interessada.- Sim, Emiliano. Trata-se igualmente de um bom partido, pois o seufuturo nas classes militares parece de ótimas perspectivas. Procuraseduzir-lhe a atenção, diante de Plínio, de modo a fazermos todo opossível por conseguir-te o descendente dos Severus, que, afinal, é opartido mais vantajoso de quantos apareçam.- Mas se o plano falhar, para nosso desgosto?- Resta-nos recorrer às ciências de Araxes, com os seus ungüentose artes mágicas...Pesado silêncio fizera-se entre ambas, no exame daquelaperspectiva de recorrer, mais tarde, às forças tenebrosas de um dos maiscélebres feiticeiros da sociedade de então.Dias se passaram sobre dias, porém o filho mais moço de Flamínionão voltou a cortejar a filha do pretor Sálvio Lentulus, e quando, daí aalgum tempo, voltou a freqüentar os circos festivos e ruidosos, não tevegrande surpresa encontrando, na intimidade de Emiliano, aquela a quemse sentia ligado tão somente pelos laços frágeis e artificiais da lascívia edos hábitos viciosos do tempo.Aurélia, todavia, não se conformava, intimamente, com o abandono aque fôra votada, planejando a melhor maneira de exercer, oportunamente,sua vingança, porque Plínio, ante as vibrações cariciosas do amor deFlávia Lentúlia, parecia um homem inteiramente modificado. Afastara-seespontaneamente das bacanais comuns da época, fugindo, igualmente,dos companheiros antigos que o arrastavam no torvelinho de todos osvícios e levianda-" Emannuel,"...des. Parecia, mesmo, que uma força nova o guiava agora para a vida,talhando-lhe de novo o coração para os ambientes caridosos e lúcidos dafamília.No palácio dos Lentulus, a vida transcorria com relativatranqüilidade.Calpúrnia passava ali os primeiros meses, depois do falecimento domarido, em companhia dos filhos, enquanto Plínio e Flávia teciam o seuromance de esperança e de amor, nas luzes da mocidade, sob a bênçãodos deuses, de quem não se esqueciam, na culminância radiosa da suadoce afeição.Alheando-se das inquietações da época, Plínio recolhia-se, sempreque possível, aos seus aposentos no palácio do Aventino, entregando-se àpintura, ou à escultura, em que era exímio, modelando em preciososmármores belos exemplares de Vênus e de Apolo, que eram dados a Fláviacomo recordação do seu intenso amor. Ela, por sua vez, compunhadelicadas jóias poéticas. musicadas na lira por suas próprias mãos,oferecendo as flores dalma ao noivo idolatrado, em cujo espírito generosocolocara os mais belos sonhos do coração.Apenas uma pessoa não tolerava aquele formoso encontro de duasalmas gêmeas. Essa pessoa era Agripa. Desde o instante em que vira afilha do senador, no porto de Óstia, pensou haver encontrado a futuraesposa. Supunha-se o único candidato ao coração daquela jovem romana,enigmática e inteligente, em cujas faces coradas brincava sempre umsorriso de bondade superior, como se a Palestina lhe houvesse impostouma beleza nova, cheia de misteriosos e singulares atrativos.Mas, à vista dos projetos de casamento do irmão com Flávia, seusplanos haviam fracassado totalmente. Debalde, presumira haverencontrado a mulher dos seus sonhos, porque a ternura, os caprichos delapertenciam ao irmão, unicamente. Foi por esse motivo que, de par com oretraimento de Plínio" Emannuel,"Severus, dentro do lar, para a organização de seus projetos futuros, Agripase desviara para uma longa série de atos impensados, acentuando, cadavez mais, a feição extravagante da sua personalidade, preferindo ascompanhias mais nocivas e os ambientes mais viciosos.No curso dos seus desvios numerosos, adoecera gravemente,inspirando cuidados à sua mãe, que se desvelava pelos filhos com omesmo carinho de sempre.Vamos encontrá-lo, desse modo, por uma bela tarde romana, nomesmo terraço onde vimos Públio Lentulus em amargas meditações, nasprimeiras páginas deste livro.Virações caridosas refrescavam o crepúsculo, ainda saturado dosclarões de sol formoso e quente.A seu lado, Calpúrnia examina algumas peças de lã, deitando-lheolhares afetuosos. Em dado momento, a veneranda senhora dirige-lhe apalavra neste termos:- Então, meu filho, rendamos graças aos deuses, porque agora tevejo muito melhor e a caminho do mais franco restabelecimento.- Sim, mãe - murmurou o moço convalescente -, estou bem melhor emais forte; todavia, espero que nos transfiramos para nossa casa dentrode dois dias, a fim de poder consolidar minha cura, procurando esquecer...- Esquecer o quê? - perguntou Calpúrnia, surpreendida.- Minha mãe - respondeu o jovem, enigmaticamente -, a saúde nãopode voltar ao corpo quando o espírito contínua enfermo!...- Ora, filho, deves abrir-me o coração com mais sinceridade e maisfranqueza. Confia-me as tuas mágoas mais íntimas, pois é possível que tepossa dar algum consolo!...- Não, mãe, não devo fazê-lo!" Emannuel,"...E, assim falando, Agripa Severus, fosse pelo estado de abatimentoem que ainda se encontrava, fosse pela necessidade de um desabafo maisintenso, desatou em pranto, surpreendendo amargamente o coraçãomaterno com a sua inesperada atitude.- Mas que é isso, filho? Que se passa em teu íntimo, para sofreresdessa forma? - perguntou-lhe Calpúrnia, extremamente penalizada,enlaçando-o nos braços carinhosos. - Dize-me tudo!... - prosseguiu aflita. -Não me ocultes tuas mágoas, Agripa, porque eu saberei remediar asituação de qualquer modo!- Mãe, minha mãe!... - disse ele, então, num longo desabafo - eusofro desde o dia em que Plínio me arrebatou a mulher desejada... Sintonalma uma atração misteriosa por Flávia e não posso conformar-me com adolorosa realidade desse casamento que se aproxima.Acredito que, se meu pai ainda vivesse, procuraria salvar minhasituação, conquistando para mim esse matrimônio, com as resoluçõesprovidenciais que lhe conhecíamos...Esperei sempre, através de todas as venturas da mocidade, que mesurgisse no caminho a criatura idealizada em meus sonhos, para organizarum lar e constituir uma família e, quando aparece a mulher de minhasaspirações, eis que ma arrebatam, e quem?!... Porque a verdade é que, sePlínio não fôra meu irmão, não vacilaria em usar e abusar dos maisviolentos processos para atingir a consecução dos meus desejos!...Calpúrnia ouvia-o em silêncio, compartilhando das suas angústias edas suas lágrimas. Ignorava aquele duelo silencioso de sentimentos esomente agora podia compreender a moléstia indefinida que lhe devoravao filho mais velho, avassaladoramente.Seu coração possuía, porém, bastante experiência da vida e doscostumes do tempo, para ajuizar com o máximo acerto a situação e,transformando" Emannuel,"a sensibilidade feminina e os receios maternais em rígida fortaleza,respondeu-lhe comovida, acariciando-lhe os cabelos numa doce atitude:- Meu Agripa, eu te compreendo o coração e sei avaliar a intensidadedos teus padecimentos morais; precisas, porém, compreender que há navida fatalidades dolorosas, cujos problemas angustiantes devemosresolver com o máximo de coragem e paciência... Nem foi para outra coisaque os deuses nos colocaram nas culminâncias sociais, de modo aensinarmos aos mais ignorantes e mais fracos as tradições da nossasuperioridade espiritual, em face de todas as penosas eventualidades davida e do destino.Sufoca no teu íntimo essa paixão injustificável, mesmo porque, sintoque Flávia e teu irmão nasceram neste mundo com os seus destinosentrelaçados... Plínio ainda era uma criança de colo, quando teu pai jáprojetava esse matrimônio, agora prestes a consumar-se.Sê forte - continuava a nobre matrona enxugando-lhe as lágrimassilenciosas e tristes -, porque a existência exige de nós, algumas vezes,esses gestos de renúncia ilimitada!...Ergamos, todavia, nossas súplicas aos deuses! De Júpiter há-dechegar, para a tua alma ulcerada, o necessário conforto.Agripa, depois de ouvir a voz materna, sentia-se mais ou menosaliviado, como se o seu íntimo houvesse serenado após uma tempestadedos mais antagônicos sentimentos.Considerou que as ponderações maternas representavam a verdadee preparava-se, intimamente, ainda com a penosa impressão psíquica queo atormentava, para se resignar, infinitamente, com a situação dolorosa eirremediável.Calpúrnia deixou passar alguns minutos, antes de lhe dirigir apalavra novamente, como se aguar" Emannuel,"...dasse o efeito salutar das suas primeiras ponderações, continuando:- Não te interessaria, agora, uma viagem à nossa propriedade doAvênio? Bem sei que, pela força da tua vocação e pelo imperativo dascircunstâncias, teu lugar é aqui, como sucessor de teu pai; mas, essaviagem representaria a solução de vários problemas urgentes, inclusive oteu caso íntimo.Agripa ouviu a sugestão com o máximo interesse, replicando afinal:- Minha mãe, tuas palavras carinhosas me confortaram e aceito asugestão, a ver se consigo encontrar o maravilhoso elixir doesquecimento; contudo, desejava partir com atribuições de Estado,porque, desse modo, poderia demorar-me em Massília, lá permanecendocom a autoridade que me será necessária em tais circunstâncias...- E não poderias conseguir facilmente esse propósito?- Acredito que não. Para demandar essa viagem com atribuiçõesoficiais, apenas conseguiria os meus intentos, em caráter militar.- E porque não movimentarmos nossas prestigiosas relações deamizade para obter o que desejas? Bem sabes que, com o auxílio dePúblio e do senador Cornélio Docus, Plínio aguarda promoção a oficial embreves dias, com amplas perspectivas de progresso e novas realizaçõesfuturas, no quadro das nossas classes armadas. Dizem mesmo que oImperador Cláudio, consolidando a centralização de poderes com a novaadministração, se mostra satisfeito quando transforma as regaliaspolíticas em regalias militares.A mim só me causaria orgulho e satisfação oferecer meus dois filhosao Império, para a consolidação de suas conquistas soberanas.- Assim o farei - replicou Agripa, já de olhos enxutos, como se assugestões maternas cons-" Emannuel,"tituíssem brando remédio para as suas penosas preocupações.Aos poucos, escoavam-se no horizonte os derradeiros clarõesrubros da tarde, que davam lugar a uma formosa noite cheia de estrelas.Amparado pelos braços maternos, o moço patrício recolheu-se maisconfortado aos aposentos, esperando o ensejo de providenciar quanto aosseus novos planos.Após acomodá-lo convenientemente, voltou Calpúrnia ao terraço,onde procurou repousar das intensas fadigas morais. Suplicando apiedade dos deuses, fixou nos céus constelados os olhos lacrimosos.Parecia que o coração lhe havia parado no peito para assistir aodesfile das recordações mais cariciosas e mais doces, embora com amente torturada por pensamentos amargos e dolorosos.Mais de seis meses haviam decorrido após a morte do esposo e anobre matrona sentia-se já completamente estranha na sociedade e nomundo. Fazia prodígios mentais para enfrentar dignamente a sua situaçãosocial, porquanto sentia, na sua velhice resignada, que o curso do tempovai insulando determinadas criaturas à margem do rio infinito da vida.Sentia, no ambiente e nos corações que a rodeavam, uma diferençasingular, como se faltasse uma peça do mecanismo do seu raciocínio, paracompletar um preciso julgamento das coisas e dos acontecimentos. Essapeça era a presença do esposo, que a morte arrebatara; era a sua palavraponderada e amorosa, meiga e sábia.Desde os primeiros dias de permanência na casa dos amigos,recebera de Lívia e Públio, em separado, as mais dolorosas confidênciassobre os fatos da Palestina, que lhes comprometeram para sempre aventura e tranqüilidade conjugal. Mobilizando, porém, todas as suasfaculdades de observação e análise, não conseguira pronunciar-se em" Emannuel,"...definitivo quanto aos acontecimentos em favor da inocência da suabondosa e leal amiga. Se, aos seus olhos, Públio Lentulus era o mesmohomem integrado no conhecimento de seus nobilíssimos deveres junto doEstado e das mais caras tradições da família patrícia, Lívia pareceu-lheexcessivamente modificada nos seus modos de crer e de sentir.Na sua concepção de orgulho e vaidade raciais, não podia admitiraqueles princípios de humildade, aquela fraternidade e aquela fé ativa deque Lívia dava pleno testemunho junto dos próprios escravos, dentro dospostulados da nova doutrina que invadia todos os departamentos dasociedade.Quanto desejava ela ter ainda o esposo a seu lado, de modo a podersubmeter-lhe aqueles assuntos íntimos, a fim de lhe adotar a opiniãosempre cheia de ponderações e sabedoria... Mas, agora, estava sozinhapara raciocinar e agir, com plena emancipação de consciência, e por maisque buscasse no íntimo uma solução para o doloroso problema conjugaldos amigos, nada podia dizer, nas suas observações e no exame dastradições familiares, cultivadas, pelo seu espírito, com o máximo deorgulho e de cuidado.No céu brilhavam miríades de constelações, dentro da noite,acentuando o mistério de suas penosas divagações, quando a seusouvidos chegaram alguns rumores de passos que se aproximavam.Era Públio que, terminada a refeição, vinha igualmente ao terraço,descansar o pensamento.- Por aqui? - perguntou a matrona com bondade.- Sim, minha amiga, apraz-me voltar, em espírito, aos dias que já seforam... Por vezes, aprecio o repouso neste terraço, a fim de contemplar océu. Para mim, é de lá, dessa cúpula imensa e estrelada, que recebemosluz e vida; é lá que deve estar o nosso inesquecível Flamínio, embaladopelo carinho dos deuses generosos!..." Emannuel,"E, de fato, nobre Calpúrnia - prosseguiu o senador, atencioso -, eraeste um dos lugares prediletos de nossas palestras e divagações, quandoo sempre lembrado amigo me dava a honra de suas visitas a esta casa. Foiainda aqui que, muitas vezes, trocamos idéias e impressões sobre a minhapartida para a Judeia, nas vésperas de minha prolongada ausência deRoma, há mais de dezesseis anos!...Longa pausa sobreveio, parecendo que os dois aproveitavam asclaridades suaves da noite, com idêntica vibração espiritual, paradescerem ao túmulo do coração, exumando as lembranças mais queridas,em resignado e doloroso silêncio.Após alguns minutos, como se desejasse modificar o curso de suasrecordações, exclamou a veneranda matrona:- Lembrando-nos de tua viagem, no passado, preciso avisar-te deque Agripa deve partir para Avênio, tão logo se sinta restabelecido.Mas, que motiva essa novidade? perguntou Públio, com grandeinteresse.- Há muitos dias venho refletindo na necessidade de examinarmos,ali, os numerosos interesses de nossas propriedades, mesmo porque,antes de morrer, era intenção do meu morto cuidar pessoalmente desteassunto.- A solução do problema, porém, é tão urgente assim? E ocasamento de Plínio? Agripa não estará presente, porventura?- Acredito que não; todavia, na hipótese de sua ausência, ele serárepresentado por Saul, antigo liberto de nossa casa, que já nos mandouum mensageiro de Massília, comunicando sua presença às cerimônias.- É pena!... - murmurou o senador, sensibilizado.- Devo dizer-te, ainda mais - continuou a matrona, com serenidade -,que espero o prestigio-" Emannuel,"...so favor da tua amizade, junto de Cornélio Docus, a fim de que consigasdo Imperador Cláudio uma boa situação para o nosso viajante, que desejapartir com atribuições oficiais, necessitando para tanto que sejamtransformados em regalias militares os direitos políticos que lhecompetem pelo nascimento.- Não será difícil consegui-lo. A atual administração interessa-semuito mais pela valorização das classes armadas.Novo silêncio verificou-se na conversação, voltando o senador aexclamar, depois de longa pausa, como se desejasse aproveitar aoportunidade para a solução decisiva do seu amargo problema:- Calpúrnia - disse ansiosamente -, ao falar de minha excursão nopassado, informaste-me da viagem forçada do nosso Agripa, no presente.E eu continuo a relembrar minha ventura desfeita, a felicidade perdida, quenunca mais voltou!...O senador observava todas as atitudes psicológicas da suavenerável amiga, ansioso por surpreender-lhe um gesto de confortosupremo. Desejava que ela, como conselheira de Lívia, quase como aprópria mãe desta, pelos laços eternos e sacrossantos do espírito, lhedissipasse todas as dúvidas, falasse da inocência da esposa,proporcionando-lhe uma certeza de que o seu coração caprichoso eegoísta de homem estava enganado; mas, em vão aguardou essa defesaespontânea, que não apareceu no instante necessário e decisivo. Arespeitável viúva de Flamínio deixara no ar o mesmo ponto de dolorosainterrogação, murmurando com voz triste, enquanto uma réstia de luar lhecoroava os cabelos brancos:- Sim, meu amigo, os deuses podem dar-nos a felicidade e podemretomá-la... Somos duas almas chorando sobre o sepulcro dos sonhosmais gratos do coração!...Aquelas palavras desalentadoras penetravam no peito sensível eorgulhoso do senador, como sabre afiado que o rasgasse vagarosamente." Emannuel,"- Mas, afinal, minha nobre amiga - exclamou ele quase enérgico,como se esperasse resposta decisiva para a angustiosa indecisão da suaalma -, que pensas atualmente de Lívia?- Públio - respondeu Calpúrnia com serenidade -, não sei se afranqueza seria um mal em certas circunstâncias, mas prefiro ser sincera.Desde as penosas confidências que me fizeste, sobre os fatos quese desenrolaram na Palestina, venho observando nossa amiga de modo apoder advogar a causa da sua inocência perante o teu coração, mas,infelizmente, noto em Lívia as mais singulares e imprevistas diferenças deordem espiritual. E humilde, meiga, inteligente e generosa, como sempre,mas parece menosprezar todas as nossas tradições familiares e as nossascrenças mais caras.Em nossas discussões e palestras íntimas, não me revela maisaquela timidez encantadora que lhe conheci noutros tempos,demonstrando, pelo contrário, demasiada desenvoltura de opinião arespeito dos problemas sociais, que ela julga haver resolvido ao contactoduma nova fé. Suas idéias me escandalizam com as mais injustificáveisconcepções de igualdade; não hesita em classificar nossos deuses comoilusões nocivas da sociedade, para a qual tem, em todas as palavras, asmais severas recriminações, revelando singulares modificações empensamento, indo ao extremo de confraternizar com as próprias servas desua casa, como se fôra uma simples plebéia...Seria uma perturbação mental, depois de alguma queda em que asua dignidade individual fosse chamada a uma rígida reação? Seriam,talvez, influências do meio ou mesmo das escravas com quem se habituoua conviver nessa prolongada ausência de Roma? Não sei... A realidade éque, em consciência, não posso manifestar-me, por enquanto, emdefinitivo, sobre as tuas amarguras conjugais, acon-" Emannuel,"...selhando-te a esperar melhor as demonstrações do tempo.Depois de ligeira pausa, terminou a velha matrona as suasobservações, inquirindo, com interesse:- Porque permitiste o ingresso de Lívia nessas idéias novas,deixando-a à mercê desse reformador judeu, conhecido como Jesus deNazaré?- Tens razão - murmurou Públio Lentulus, extremamente desalentado-, mas, o motivo baseou-se em circunstâncias imperiosas, porque Líviaacreditou que o profeta Nazareno nos havia curado a filhinha!...- Foste ingênuo, porque não podias admitir essa hipótese, em faceda evolução dos nossos conhecimentos, salvando, dessas perigosasinfluências espirituais, o espírito maleável de tua mulher. Está comprovadoque esse novo credo preconiza atitudes mentais humilhantes, subvertendoas mais íntimas disposições das criaturas que o aceitam. Homens ricos ede ciência, que se submetem a esses odiosos princípios dentro doImpério, em favor de um reino imaginário, parecem tresvariados porterrível narcótico, que os faz esquecer e desprezar a fortuna, o nome, astradições e a própria família!...Colaborarei contigo, afastando Flávia desses prejuízos morais,levando-a para a minha companhia, tão logo se realize o casamento denossos queridos filhos, porque a verdade é que, quanto a Lívia, tudo já fizpara convencê-la, inutilmente.- Entretanto, minha boa amiga - murmurou o senador, sensibilizado,como a defender-se perante a nobre patrícia -, observo que Lívia continuaa ser uma criatura simples e modesta, sem exigir de mim coisa alguma queatinja o terreno do exorbitante ou do supérfluo. Nestes quase dezesseteanos de íntima separação dentro do lar, somente me solicitou a licençaprecisa para prosseguir em suas práticas cristãs junto de uma antiga servade nossa casa, permissão essa que fui obrigado a conceder," Emannuel,"considerando a continuidade de sua renúncia silenciosa e triste, noambiente familiar.- Também considero que é pedir muito pouco, mormente agora quetodas as mulheres da cidade, segundo o costume, exigem dos maridos asmaiores extravagâncias em luxo do Oriente; contudo, cumpre-meaconselhar-te, a ti que conservas intactas as nossas tradições maisqueridas, esperares mais algum tempo antes de esqueceres aseventualidades dolorosas do passado, de modo a observarmos se Líviavirá a beneficiar-se com a continuidade de nossas atitudes, voltando,finalmente, ao seio de nossas tradições e de nossas crenças!...Doloroso silêncio se fez então sentir, entre ambos, após essaspalavras.Calpúrnia supôs haver cumprido o seu dever e Públio recolheu-se,naquela noite, desalentado como nunca.Em breves dias, conseguidos seus intentos, partia Agripa emdemanda do Avênio, não obstante as rogativas do irmão e de Flávia paraque esperasse as solenidades do matrimônio. Sua resolução era, porém,inabalável e o filho mais velho de FIamínio, enfraquecido sob o peso dassuas desilusões, ia ausentar-se de Roma, por espaço de alguns anos,prolongados e dolorosos.Passavam-se os dias celeremente e, como somos obrigados acaminhar em nossa história na companhia de todas as personagens,devemos registrar que, em se vendo completamente abandonada pelohomem de suas preferências, Aurélia, ralada de venenoso despeito,resolvera aceitar a mão abnegada e afetuosa que o jovem Emiliano Lúcioslhe oferecia.Fúlvia, que acompanhara a luta silenciosa, intoxicada pelos seussentimentos inferiores, deliberou aguardar o tempo, para exercer as suassinistras represálias.E, em tempo breve, o casamento de Plínio e Flávia realizava-se comsuntuosidade discreta, no" Emannuel,"...palácio do Aventino. O noivo, cheio de galardões militares e títuloshonoríficos, bem como a futura companheira, tocada de formosuraindefinível e de adorável simplicidade, sentiam-se venturosos como se afelicidade perfeita se resumisse tão somente na eterna fusão de seuscorações e de suas almas. Aquele dia, indubitavelmente, assinalava a horamais sagrada e mais formosa dos seus destinos.Na assistência reduzidíssima, que se compunha de relações damaior intimidade, notava-se a presença de um homem ainda jovem, querepresentava uma figura saliente naquele quadro, caracterizado,essencialmente, de acordo com a época.Seus olhos impetuosos e ardentes haviam pousado sobre a noivacom misterioso e estranho interesse.Esse homem era Saul de Gioras, que, abandonando o sobrenomepaterno, exibia agora uma nova denominação romana, segundo antigaautorização de Flamínio, de modo a valorizar, cada vez mais, a expressãosocial da sua fortuna.Debalde, o senador fez o possível para identificar aquele judeu, quese lhe figurava um velho conhecido pessoal. Saul, porém, reconhecera oseu verdugo de outrora; reconheceu e guardou silêncio, serenando asgrandes emoções do seu foro íntimo, porque, qual o pai, tinha o coraçãomergulhado nos propósitos tenebrosos de uma vindita cruel." Emannuel,"258IIIPlanos da trevaDepois das solenidades do casamento de Plínio, contrariamente aoque se podia esperar, o liberto judeu não regressou a Massília, pretextandonumerosos negócios que o retinham na Capital do Império.Instalado no palacete dos Severus, para onde se haviam transferidoos jovens nubentes, junto de Calpúrnia, Saul teve oportunidadesnumerosas de se avistar com o senador Públio Lentulus, mantendo ambosvárias palestras sobre a Judeia e as suas regiões importantes.Intrigado com aquele olhar ardente e aqueles traços fisionômicos,que lhe não eram totalmente estranhos, e lembrando-se perfeitamentedaquele pai que o procurara ansioso e aflito, em Jerusalém,acompanhemos o senador em uma de suas palestras íntimas com ointeressante desconhecido, na qual o abordou com esta perguntainesperada:- Senhor Saul, já que sois filho das cercanias de Jerusalém, vossopai, porventura, não se chamaria André de Gioras?" Emannuel,"...O liberto mordeu os lábios, diante daquele ataque direto ao assuntomais delicado da sua existência, respondendo dissimuladamente:Não, senador. Meu pai não tem esse nome. Ao tempo em que fuiescravizado por mãos impiedosas e cruéis, porquanto eu não era senãouma criança mal educada e irresponsável - acentuou com profunda ironia -, meu pai era um agricultor miserável que não possuía outra coisa alémdos seus braços para o trabalho de cada dia... Tive, contudo, a felicidadede encontrar as mãos generosas de Flamínio Severus, que me guiarampara a liberdade e para a fortuna e, hoje, o meu genitor, com o pouco quelhe forneci, aumentou as suas possibilidades de trabalho, desfrutando nãosomente certa importância social em Jerusalém, como também funçõessuperiores no Templo.Mas, porque mo perguntais?O senador franziu o sobrolho, em face de tanta desenvoltura naresposta, mas, sentindo-se aliviado, por lhe parecer que não se tratava, defato, do Saul de suas penosas lembranças, respondeu com mais desafogode consciência:- É que eu conheci, ligeiramente, um agricultor israelita, por nomeAndré de Gioras, cujos traços fisionômicos não eram muito diversos dosvossos...E a conversação seguia o ritmo normal das conversações semimportância nos ambientes de convencionalismo da vida social.Saul, entretanto, deixava transparecer fulgor estranho no olhar,como quem se encontrava extremamente satisfeito com o destino, àespera de um ensejo para executar seus tenebrosos planos de vingança.Um móvel oculto e inconfessável o retinha em Roma, quandonumerosas operações comerciais requeriam sua presença em Massília,onde seu nome se radicara a grandes interesses de ordem financeira ematerial. Esse móvel era o intenso desejo" Emannuel,"de se fazer notado pela jovem esposa de Plínio, cujo olhar parecia atrai-lopara um abismo de amor violento e irreprimível.Desde o instante em que a vira com os adornos do noivado, no diaventuroso de seu enlace, parecia haver lobrigado a criatura ideal dos seussonhos mais íntimos e remotos.Na realidade, os filhos de seus antigos senhores mereciam o seurespeito e o maior acatamento; todavia, uma força maior que todos osseus sentimentos de gratidão o levava a desejar a posse de Flávia Lentúlia,a qualquer preço, ainda que fosse o da própria vida.Aqueles olhos formosos e cismadores, a graça amorosa eespontânea, a inteligência lúcida e delicada, todos os seus predicadosfísicos e espirituais, que observara agudamente, nos poucos dias depermanência na cidade, o autorizavam a crer que aquela mulher era bem otipo das suas idealizações.E foi engolfado nesse turbilhão de pensamentos sombrios que doismeses se passaram, de expectativas inconfessáveis e angustiosas, semque perdesse a mais ligeira oportunidade para demonstrar a Flávia o graudo seu afeto, da sua admiração e estima, sob as vistas amigas e confiantesde Plínio.Na soledade de suas preocupações íntimas, considerava Saul que,se ela o amasse, se correspondesse à afeição violenta do seu espíritoimpetuoso e egoísta, jamais se lembraria de exercer a planejada vingançasobre o coração de seu pai, indo buscar o jovem Marcus Lentulus para olar paterno e liquidando o pretérito de visões tenebrosas; contudo, seacontecesse o contrário, executaria os seus diabólicos projetos, deixando-se embriagar pelo vinho odiento da morte.Nessa época, corria já o ano de 47, e sem nos esquecermos deFúlvia e sua filha, vamos encontrá-las, de novo, sob o domínio dosmesmos sentimentos cruéis e tenebrosos." Emannuel,"...Em vão desposara Aurélia a Emiliano Lúcios, que, para ela, nãorepresentava de modo algum o tipo do homem que o seu temperamentosupunha haver encontrado no filho mais moço de Flamínio.E foi assim que, depois dos primeiros desencantos e atritos noambiente doméstico, a conselho da mãe e na sua própria companhia,procurou recorrer às ciências estranhas de Araxes, célebre feiticeiroegípcio, que tinha uma loja de mercadorias exóticas nas proximidades doEsquilino.Araxes, cujo comércio criminoso todos conheciam como fonteinesgotável de filtros milagrosos do amor, da enfermidade e da morte, eraum iniciado do antigo Egito, desviado, porém, da missão sacrossanta dacaridade e da paz, na sua violenta paixão pelo dinheiro da numerosaclientela romana, então em pletora de vícios clamorosos e na dissoluçãodos mais belos costumes do sagrado instituto da família.Explorando-lhe as paixões inferiores e os hábitos viciosos, o magoegípcio empregava quase toda a sua ciência espiritual na execução detodos os malefícios e crimes, motivando enormes danos com as suasdrogas venenosas e seus estranhos conselhos.Procurado, discretamente, por Fúlvia e a filha, inteirou-se dos fins davisita e ali mesmo, entre grandes retortas e pacotes de plantas esubstâncias diversas. mergulhou a cabeça nas mãos, como se o seuespírito estivesse devassando os menores segredos do mundo invisível,ante uma trípode e outros petrechos de ciências ocultas, com que ele,psicólogo profundo, buscava impressionar a mente sugestionável dosconsulentes numerosos que lhe solicitavam a solução dos problemas davida.Ao cabo de longos minutos de concentração, com os olhos a brilharestranhamente, o mago egípcio dirigiu-se a Aurélia, afirmando-lhe empalavras impressionantes:" Emannuel,"- Senhora, vejo à minha frente dolorosos quadros da sua vidaespiritual, no passado longínquo!... Vejo Delfos, nos dias gloriosos do seuoráculo e contemplo a sua personalidade buscando seduzir um homemque lhe não pertencia... Esse homem é o mesmo da atualidade... Asmesmas almas perambulam agora em outros corpos e a senhora devepensar na realidade dos dias que se passam, conformando-se com a nítidaseparação das linhas do destino!...Aurélia ouvia, entre surpresa e assombrada, enquanto a alma argutade sua mãe acompanhava a palestra, tocada de impressão indefinível.- Que me dizeis? - replicou a jovem senhora, no auge da suasensibilidade ferida. - Outras vidas? Um homem que não me pertencia?...Que vem a ser tudo isso?- Sim, nosso espírito, neste mundo - redargüiu o feiticeiro, comimperturbável serenidade -, tem longa série de existências, queenriquecem o nosso íntimo com o máximo de conhecimento sobre osdeveres que nos competem na vida!A senhora já viveu em Atenas e em Delfos, numa grande fase deprofundas irreflexões em matéria de amor, e, sentindo-se hoje próxima doobjeto de suas ardentes e pecaminosas paixões de outrora, julga-se comas mesmas possibilidades de satisfazer seus desejos violentos eindignos!...Por aqui, hão passado inúmeras criaturas. A muitas aconselheiperseverança nos propósitos, por vezes injustificáveis e inferiores; mas,para o seu caso, há uma voz que fala mais alto à minha consciência. Se asua irreflexão for ao ponto de provocar esse homem, em consciênciahonesto até agora, é possível que o seu coração também inquieto venha acorresponder aos seus caprichos; contudo, busque não se entregar aodesvario dessa provocação, porque o destino o reuniu, agora, à almagêmea da sua e um caminho áspero de provações amargas os espera nofuturo, para a consolidação da sua con-" Emannuel,"...fiança mútua, da sua afeição e da sua grandeza espiritual!... Não seinterponha no caminho dessa mulher considerada pelo seu espírito comopoderosa rival!... Interpor-se entre ela e o esposo seria agravar a senhoraas suas próprias penas, porque a verdade é que o seu coração não seencontra preparado para as grandes renúncias santificantes, e aquilo quesupõe ser profundo e sublimado amor, nada mais é que caprichoprejudicial do seu coração de mulher voluntariosa e pouco disposta asacrificar-se pelo carinho de companheiro amoroso e leal, mas, sim, amultiplicar os amantes pelo número de suas vontades artificiais...Aurélia estava lívida, ouvindo essas palavras, que consideravaatrevidas e injuriosas.Desejava defender-se, mas uma força poderosa parecia comprimir-lhe a garganta, anulando-lhe o esforço das cordas vocais.Fúlvia, porém, tomada de rancor pelas expressões insultuosasdaquele homem, tomou a defesa da filha, argüindo-o com energia:- Araxes, feiticeiro impudico, que queres dizer com estas palavras?Insultas-nos? Poderemos fazer cair sobre tua cabeça o peso da justiça doImpério, conduzindo-te ao cárcere e revelando à sociedade os teussinistros segredos!.- E porventura não os tereis também, nobre senhora? - revidou eleimperturbavelmente -; estaríeis, assim, tão sem culpa, para não vacilar emcondenar-me?Fúlvia mordeu os lábios, tremendo de ódio e exclamando com fúria:- Cala-te, infame! Não sabes que tens diante dos olhos a esposa deum pretor?- Não me parece - murmurou o feiticeiro, com serena ironia -, pois asnobres matronas dessa estirpe não viriam a esta casa solicitar minhacooperação para um crime... E, ao demais, que diriam em Roma de umapatrícia, que descesse ao" Emannuel,"extremo de procurar, na intimidade, um velho feiticeiro do Esquilino?É verdade que muitos males tenho praticado na minha vida, mas,sabem-no todos que assim procedo e não busco a sombra das boassituações sociais para acobertar a hediondez da minha miserávelexistência!... Ainda assim, quero salvar a mocidade de tua filha do lôbregocaminho de tuas perversidades, porque na hipótese de seguir-te ela oscoleios de víbora, na senda de esposa criminosa e infiel, seu único fimserá a prostituição e o infortúnio, rematados com a morte ignominiosa naponta de uma espada...Fúlvia desejou revidar energicamente aos insultos de Araxes,repelindo aquelas expressões injuriosas, recebidas como atrevimentosupremo, mas Aurélia, receosa de novas complicações e compreendendoa culpabilidade de sua mãe, tomou-lhe do braço, retirando-se ambassilenciosamente, sob o olhar zombeteiro do velho egípcio, que voltara aempilhar pacotes de plantas entre numerosos vasos de substânciasestranhas.Pouco tempo, contudo, pôde ele empregar na sua faina solitária esilenciosa.Dentro de duas horas, nova personagem lhe batia à porta.Araxes surpreendeu-se à vista daquele judeu insinuante que oprocurava. O brilho dos olhos, o nariz característico, a harmonia dostraços israelitas, faziam daquele homem, ainda jovem, uma figura singulare sugestiva.Era Saul, que recorria aos mesmos processos misteriosos, na ânsiade possuir, a qualquer preço, a esposa de Plínio, buscando o talismã ou oelixir miraculoso do feiticeiro, a serviço de suas pretensões descabidas.Recebido nas mesmas circunstâncias em que o foram as duaspersonagens do nosso penoso drama, Saul expunha ao adivinho as suastorturas amorosas, junto daquela mulher honesta e digna." Emannuel,"...Após a habitual concentração, já do nosso conhecimento, junto datrípode em que fazia as orações costumeiras, Araxes esboçou leve ediscreto sorriso, como quem havia encontrado mais uma estranhacoincidência nos seus amplos estudos da psicologia humana. Suahesitação, todavia, durou poucos instantes, porque, em breve, se faziaouvir com voz pausada e soturna:- Judeu! - disse ele austeramente - louva o Deus de tuas crenças,porque tua face foi erguida do pó pelas mãos do homem que hoje teempenhas em trair... Mandam as leis severas da tua pátria que não venhasa desejar, nem mesmo por pensamentos, a mulher do teu próximo e muitomenos a companheira devotada e fiel de um dos teus maiores benfeitores.Dá um passo atrás no teu triste e mal-aventurado caminho! Houve tempoem que teu Espírito viveu no corpo de um sacerdote de Apolo, no temploglorioso de Delfos... Perseguiste uma jovem mulher dos misteressagrados, conduzindo-a à miséria e à morte, com os teus desvariosnefandos e dolorosos. Não ouses, agora, arrancá-la dos braços destinadosao seu amparo e proteção, à face deste mundo!... Não te intrometas nodestino de duas criaturas que as forças do céu talharam uma para aoutra!...O moço judeu, todavia, apesar de impressionado com aquelaexortação incisiva, não seguia a orientação violenta das duas mulheresque o precederam na misteriosa visita.Arrancando uma bolsa de moedas, acariciou-a nas mãos como aexcitar a concupiscência do adivinho, exclamando com voz quase súplice:- Araxes, eu tenho ouro... muito ouro, e dar-te-ei o que quiseres, pelovalioso auxílio da tua ciência... Pelo amor de teus deuses, consegue-me asimpatia dessa mulher e recompensar-te-ei generosamente a preciosidadedos esforços despendidos..." Emannuel,"Os olhos do mago egípcio faiscaram ao clarão de sentimentoestranho, contemplando a bolsa em forma de cornucópia, reluzente deouro, como se a desejasse intensamente, murmurando com maisdelicadeza:- Meu amigo, essa mulher não é cobiçada tão somente por ti esuponho que deverias contribuir para que ela não se afastasse dacompanhia do esposo!...- Mas, existe, então, ainda outro homem?- Sim, revelam-me os signos do destino que essa criatura é tambémdesejada pelo irmão do marido.Saul fez um gesto de enfado, como quem se sentia amargamenteatormentado pelos mais acerbos ciúmes, murmurando entre dentes:- Ah! sim... agora entendo melhor a viagem precipitada de Agripa, embusca de Avênio!...E, elevando a voz como quem estivesse jogando a derradeiracartada da sua ambição, falou com ansiedade:- Araxes, peço-te ainda uma vez!... Faze tudo!... pagar-te-eiregiamente!...A fronte do mago curvou-se de novo, em atitude de profundameditação, como se o espírito buscasse, no invisível, alguma forçatenebrosa, propícia aos seus sinistros desígnios.Ao cabo de alguns minutos, tornou a dizer em tom benevolente eamigo:- Parece que haverá uma oportunidade para a sua afeição, daqui aalgum tempo!...O moço judeu ouvia-o com angustiosa expectativa, enquanto asafirmações continuavam:- Dizem os signos do destino que os dois cônjuges, paraconsolidação de sua profunda afeição, de sua confiança recíproca eprogresso espiritual, estão destinados a dolorosas provas daqui a algunsanos! Dar-se-á alguma coisa que os separará dentro do próprio lar, semque eu possa precisar o que seja. Sei, tão somente, que cumpre a ambosum" Emannuel,"...grande período de ascetismo e dolorosa abnegação, no instituto sagradoda família... Nessa ocasião, talvez, quem sabe? poderá o meu amigo tentaressa afeição ardentemente cobiçada!...- Dar-se-á, então, alguma coisa? - perguntou Saul, curioso e aflito,nas suas perquirições do assunto transcendente - mas que poderáacontecer que os separe no ambiente doméstico?- Eu mesmo não saberia dizê-lo...- E cada qual será obrigado a um ascetismo fiel e a uma dedicaçãoinquebrantável?- Manda o determinismo do destino que assim seja, mas não só oesposo, como a companheira, podem interferir nessas provas, contraindonovo débito moral, ou resgatando o passado doloroso com o preciso valormoral nos sofrimentos, empregando, no determinismo das provaçõespurificadoras, sua boa ou má vontade... Saiba que as tendências humanassão mais fortes para o mal, tornando-se possível que as suas pretensõessejam satisfeitas nessa época.- E quanto tempo deverei esperar para que isso aconteça? -perguntou o liberto, fundamente preocupado.- Alguns anos.- E será inútil tentar qualquer esforço antes disso?- Perfeitamente inútil. Sei que o nobre cliente tem numerososinteresses numa cidade distante e é justo que, neste intervalo, cuide dosseus negócios materiais.Saul fixou detidamente aquele homem que parecia conhecer os maisrecônditos segredos da sua vida, passando as suas observações pelocrivo da consciência.Deu-lhe a bolsa recheada, agradecendo a atenção e prometendovoltar em tempo oportuno.Daí a alguns dias, o moço judeu, nas vésperas da despedida,aproveitando alguns minutos de pura" Emannuel,"e simples intimidade com a jovem Flávia, dirigia-lhe a palavra nestestermos:- Nobre senhora - começou em voz quase tímida, mas com o mesmoclarão estranho de sentimentos inferiores a lhe irradiar dos olhos -, ignoroa razão do fato íntimo que vos vou revelar, mas a realidade é que vou partirpara Massília, guardando a vossa imagem no mais recôndito escaninho domeu pensamento!...- Senhor - disse-lhe Flávia Lentúlia, corando, acabrunhada -, devoviver tão só no pensamento daquele com quem os deuses iluminaram omeu destino!...- Nobre Flávia - revidou o judeu arguto, percebendo que o golpe eraprematuro e inoportuno -, minha admiração não se prende a qualquersentimento menos digno. Para mim, sois duplamente respeitável, nãosomente pela vossa alta condição de patrícia, como também pelacircunstância de serdes a companheira de um dos maiores benfeitores deminha vida.Ficai tranqüila quanto às minhas palavras, porque em meu coraçãosó existe o mais leal interesse pela vossa felicidade pessoal, junto dodigno esposo que escolhestes.Sinto por vós o que um escravo deve sentir por uma benfeitora desua existência, já que, na minha triste condição de liberto, não possoapresentar-me à vossa generosidade com as credenciais de irmão quemuito vos venera e estima.- Está bem, senhor Saul - disse a jovem, mais aliviada -, meu maridovos considera como irmão muito caro e eu me honro de associar-me aosseus sentimentos.- Muito vos agradeço - exclamou Saul, fingidamente -, e já que meentendeis tão bem o pensamento fraterno, é com o interesse de irmão queme dirijo à vossa alma generosa para prevenir-vos de um perigo...- Um perigo?... - perguntou Flávia, aflita." Emannuel,"...- Sim. Falo-vos confidencialmente, solicitando que guardeis omáximo segredo desta confidência fraternal.E, enquanto a jovem o escutava com a maior atenção, Saulcontinuou com as suas pérfidas insinuações.- Sabeis que Plínio foi quase noivo da filha do pretor Sálvio Lentulus,vosso tio, hoje casada com Emiliano Lúcios?- Sim... - replicou a pobre senhora, de alma oprimida.- Pois devo avisar, como irmão, que vossa prima Aurélia, a despeitodos seus austeros compromissos matrimoniais, não renunciou ao homemde suas antigas preferências; hoje fui cientificado, por um amigo, de queela tem recorrido a diversos feiticeiros de Roma, com o fim de reaver o seuafeto de outrora, a qualquer preço!...Ouvindo essas pérfidas palavras, Flávia Lentúlia experimentou oprimeiro espinho da sua vida conjugal, sentindo-se intimamente torturadapelo mais acerbo ciúme.Plínio resumia todo o seu idealismo e toda a sua felicidade demulher jovem. Depositara no seu coração todos os sonhos femininos,todas as suas melhores e mais florentes esperanças. Assaltada pelaprimeira contrariedade da sua vida social, na grande cidade de seus pais,sentia, naquele instante, a sede devoradora de um esclarecimento amigo,de uma palavra carinhosa que viesse restabelecer o equilíbrio do coração,agora turbado pelos primeiros dissabores. Faltava-lhe alguma coisa quepudesse completar as nobres qualidades do seu coração de mulher,alguma coisa que devia ser a atuação materna na sua educação, porquePúblio Lentulus, na sua cegueira espiritual, lhe moldara o caráter noorgulho da estirpe, nas tradições vaidosas dos antepassados, semdesenvolver as suas qualidades de ponderação, que a influência de Líviacriaria, certo, para notáveis florações do sentimento." Emannuel,"A jovem patrícia sentiu o coração despedaçado por um ciúme quaseferoz; mas, compreendendo os deveres que lhe competiam em taisconjunturas, recobrou a precisa energia moral para reagir naquele primeiroembate de provas, respondendo ao moço judeu e fazendo o possível porafetar o máximo de severa e tranqüila nobreza:- Agradeço, penhorada, o interesse de vossa comunicação; todavia,nada me autoriza a suspeitar da consciência retilínea de meu esposo,mesmo porque Plínio resume todos os meus ideais de esposa e de mulher!- Senhora - revidou o judeu, mordendo os lábios -, o espíritofeminino, na sua fertilidade de imaginação, alheio à vida prática, podeenganar-se muitas vezes, pelas aparências...Folgo de ouvir-vos e louvo a vossa ilimitada confiança; porém, querofiqueis convencida de que, a qualquer tempo, encontrareis em mim umsincero defensor da vossa felicidade e das vossas virtudes!...Isso dizendo, Saul de Gioras apresentou atenciosas despedidas,deixando a pobre moça com as suas impressões de surpresa e amargura.Os primeiros infortúnios haviam atingido a vida conjugal de FláviaLentúlia, sem que ela soubesse conjurar o perigo que ameaçava a suaventura para sempreNessa noite, Plínio Severus não encontrou em casa a criaturamimosa e adorável da sua dedicação e do seu amor profundo. Naintimidade da alcova, encontrou a companheira cheia de recriminaçõesdescabidas e importunas, tocada de tristezas amarguradas eincompreensíveis, verificando-se entre ambos os primeiros atritos quepodem arruinar para sempre, no curso de uma vida, a felicidade de umcasal, quando seus corações não se encontram suficientementepreparados para a compreensão espiritual, no instituto das provasremissoras, embora" Emannuel,"...a estrada divina de suas almas gêmeas seja um caminho glorioso para osmais elevados destinos.Em breves dias, Saul regressava a Massília, esperançoso deconcretizar algumas realizações de ordem material, de modo a regressar aRoma no menor espaço de tempo.E a vida das nossas personagens continuava, na Capital do Império,quase com a mesma fisionomia de sempre.O senador Lentulus prosseguia engolfado nas suas cogitações deordem política, procurando, sempre que possível, a residência da filha,onde mantinha as mais longas palestras com Calpúrnia, sobre o passado eas necessidades do presente.Quanto a Lívia, afastada compulsoriamente da filha, pela força dascircunstâncias; longe de sua melhor amiga de outros tempos, pelaincompreensão, e prosseguindo distante do esposo no ambiente dos seusafetos mais íntimos, refugiara-se na dedicada amizade de Ana, nas precesmais fervorosas e sinceras.Diariamente, ambas procuravam orar, em dolorosa soledade, ao pédaquela mesma cruz grosseira que lhes dera Simeão no instante extremo.Muitas vezes, ambas, em êxtase, notavam que o pequenino madeirose toucava de luz tenuíssima, ao mesmo tempo que lhes parecia ouvirlonge, no santuário do coração e dos pensamentos, exortações singularese maravilhosas.Afigurava-se-lhes que a voz branda e amiga do apóstolo da Samariavoltava do Reino de Jesus para ensinar-lhes a fé, o cumprimento do deverde caridade fraterna, a resignação e a piedade. Ambas choravam, então,como se nas suas almas sensíveis e carinhosas vibrassem as harmoniasde um divino prelúdio da vida celeste.Nessa época, instruída por alguns cristãos mais humildes, Anacientificou a senhora das reuniões nas catacumbas." Emannuel,"Somente ali podiam reunir-se os adeptos do Cristianismo nascente,porquanto, desde os seus primeiros eventos na sociedade romana, foramas suas idéias consideradas subversivas e perversoras.O Império fundado com Augusto, que significou a maior expressãode um Estado forte em todas as épocas do mundo, depois das conquistasdemocráticas da República, não tolerava nenhum agrupamento partidário,em matéria de doutrinas sociais e políticas.Verificava-se em Roma o mesmo que hoje com as nações modernas,a oscilarem entre as mais variadas formas governamentais, ao longo doeixo dos extremismos e dentro da ignorância do homem, que teima em nãocompreender que a reforma das instituições tem que começar no íntimodas criaturas.As únicas associações admitidas eram, então, as cooperativasfunerárias, em vista de seus programas de piedade e proteção aos que jánão podiam perturbar os poderes temporais do César.Perseguidos pelas leis, que lhes não toleravam as idéiasrenovadoras; encarados com aversão pelas forças poderosas dastradições antigas, os adeptos de Jesus não ignoravam a sua futuraposição de angústia e sofrimento. Alguns editos mais rigorosos oscompeliam a ocultar a manifestação de crença, embora o governo deCláudio procurasse, sempre, o máximo de ordem e equilíbrio, sem grandesexcessos na execução dos seus desígnios.Alguns companheiros mais esclarecidos na fé advogavampublicamente as suas teses, em epístolas ao sabor da época; mas, muitoantes dos crimes tenebrosos de Domício Nero, a atmosfera dos cristãosprimitivos era já de aflição, angústia e trabalhos penosos. Desse modo, asreuniões das catacumbas efetuavam-se periodicamente, nada obstante oseu caráter absolutamente secreto." Emannuel,"...Grande número de apóstolos da Palestina passavam em Roma,trazendo aos irmãos da metrópole as prédicas mais edificantes econsoladoras.Ali, no silêncio dos grandes maciços de pedra, em cavernasdesprezadas pelo tempo, ouviam-se vozes profundas e moralizantes, quecomentavam o Evangelho do Senhor ou encareciam as sublimidades doseu Reino, acima de todos os precários poderes da perversidade humana.Tochas brilhantes iluminavam esses desvãos subterrâneos, que as herasprotegiam, enquanto suas portas empedradas davam a impressão deangústia, tristeza e supremo abandono.Sempre que um peregrino mais dedicado aportava à cidade, haviaum aviso comum a todos os conversos.O sinal da cruz, feito de qualquer forma, era a senha silenciosa entreos irmãos de crença, e, feito desse ou daquele modo especial, significavaum aviso, cujo sentido era imediatamente compreendido.Através dessas comunicações incessantes, Ana conhecia todo omovimento das catacumbas, colocando sua senhora a par de todos osfatos que se desenrolavam em Roma, sobre a redentora doutrina doCrucificado.Assim é que, quando se anunciava a chegada de algum apóstolo daGalileia ou das regiões que lhe são fronteiriças, Lívia fazia questão decomparecer, fazendo-se acompanhar pela serva desvelada e fiel,atravessando os caminhos a pé, embora trajasse agora a sua indumentáriapatrícia, de conformidade com a autorização do marido, para professarlivremente as suas crenças. Ela estava ciente de que, perante a sociedade,sua atitude representava grave perigo, mas o sacrifício de Simeão fôra ummarco de luz assinalando os seus destinos na Terra. Adquirira coragem,serenidade, resignação e conhecimento de si mesma, para nuncatergiversar em detrimento da sua fé ardente e pura. Se as suas" Emannuel,"antigas relações de amizade, em Roma, atribuíam suas modificaçõesinteriores à demência; se o marido não a compreendia e Calpúrnia e Plíniocavavam, ainda mais, o grande abismo que Públio havia aberto entre ela ea filha, possuía o seu espírito, na crença, um caminho divino para fugir detodas as terrenas amarguras, sentindo que o Divino Mestre de Nazaré lhedulcificava as úlceras da alma, compadecendo-se do seu coraçãoretalhado de angústias. Era-lhe a fé como um archote luminoso clareandoa estrada dolorosa, e do qual se irradiavam os clarões da confiançahumana na Providência Divina, que transforma as provações penosas daTerra em antegozo das eternas alegrias do Infinito." Emannuel,"275IVTragédias e esperançasA vida real sempre é prosaica, sem fantasia nem sonhos.Assim decorre a existência das personagens deste livro, na tela vivadas realidades nuas e dolorosas do ambiente terrestre.Os que atingem determinadas posições sociais, bem como os quese aproximam do crepúsculo da vida fragmentária da Terra, poucasnovidades têm a contar, com respeito ao curso de cada dia.Há um período na existência do homem, em que lhe parece não maishaver a precisa pressão psíquica do coração, a fim de que se lhe renovemos sonhos e as aspirações primeiras, figurando-se a sua situaçãoespiritual cristalizada ou estacionaria. No íntimo, não há mais espaço paranovas ilusões ou reflorescimento de velhas esperanças, e a alma, comoque em doloroso período de expectação e forçado silêncio, queda-se nocaminho, contemplando os que passam, presa aos cordéis da rotina, dassemanas uniformes e indiferentes.Estamos vivendo, agora, o ano 57, e a vida dos atores deste dramadoloroso apresenta-se quase" Emannuel,"invariável no desdobramento infindo dos seus episódios comuns eangustiosos.Apenas uma grande modificação se fizera na residência deCalpúrnia.Plínio Severus, nas suas radiosas expressões de vitalidade física, jáhavia recebido as maiores distinções por parte das organizações militaresque garantiam a estabilidade do Império. Longas e periódicaspermanências nas Gálias e na Espanha lhe haviam angariadohonrosíssimas condecorações, mas, no seu íntimo, a vaidade e o orgulhohaviam proliferado intensamente, não obstante a generosidade do seucoração.Os primeiros ciúmes ásperos da esposa fizeram-se acompanhar deconseqüências nefastas e dolorosas.Aos criminosos propósitos de Saul juntaram-se as pérfidasconfidências das amigas mentirosas, e Flávia Lentúlia, longe de gozar aventura conjugal a que tinha direito pelos seus elevados dotes de coração,descera, sem sentir, dados os seus ciúmes desmesurados, aos tenebrososabismos do sofrimento e da provação.Para um homem da condição de Plínio, era muito fácil a substituiçãodo ambiente doméstico pelas festividades ruidosas do circo, nacompanhia de mulheres alegres, que não faltavam em todos os lugares dametrópole do pecado.Em breve, o carinho da esposa foi substituído pelo falso amor denumerosas amantes.Debalde procurou Calpúrnia interpor seus bons ofícios e carinhososconselhos, e, em vão, prosseguia a jovem esposa do oficial romano no seumartírio imperturbável e silencioso.As raras queixas de Flávia eram guardadas pelo coração generosoda mãe do seu marido, ou, então, confiadas ao espírito do pai, emconfidências amarguradas e penosas.Públio Lentulus, compreendendo a importância da cooperaçãofeminina na regeneração dos costu-" Emannuel,"...mes e no reerguimento do lar e da família, incitava a filha ao máximo deresignação e tolerância, fazendo-lhe sentir que a esposa de um homem é ahonra do seu nome e o alimento da sua vida e que, enquanto um marido seperverte no torvelinho das paixões desenfreadas, escarnecendo de todosos bens da vida, basta, às vezes, uma lágrima da mulher para que a pazconjugal volte a brilhar no céu sem nuvens do afeto puro e recíproco.Para o espírito de Flávia, a palavra paterna tinha foros de realidadeinsofismável e ela buscava amparar-se nas suas promessas e nos seusconselhos, julgados preciosos, esperando que o esposo voltasse, um dia,ao seu amor, entre as bênçãos do caminho.Enquanto isso, Plínio Severus dissipava no jogo e nas folgançasuma verdadeira fortuna. Sua prodigalidade com as mulheres tornara-seproverbial nos centros mais elegantes da cidade, e poucas vezes buscavao ambiente familiar, onde, aliás, todos os afetos se conjugavam paraesclarecer-lhe docemente o espírito desviado do bom caminho.A morte do velho pretor Sálvio Lentulus, antes do ano 50, obrigara afamília de Públio e os remanescentes de Flamínio aos protocolos sociaisjunto de Fúlvia e da filha, por ocasião das homenagens prestadas àscinzas do morto que, envolto no mistério da sua passividade resignada eincompreensível, havia passado pelo mundo.Bastou esse ensejo para que Aurélia retomasse a oportunidadeperdida. Um olhar, um encontro, uma palavra e o filho mais moço deFlamínio, enamorado das belezas pecaminosas, restabeleceu o laçoafetivo que um amor santificado e puro havia destruído anteriormente.Em breve, ambos eram vistos com olhares significativos pelosteatros, pelos circos ou pelas grandes reuniões esportivas da época.De todas essas dores, fizera Flávia Lentúlia o seu calvário deagonias silenciosas, dentro do lar" Emannuel,"que a sua fidelidade dignificava. Nas suas meditações silenciosas, muitasvezes deplorou os antigos desabafos de ciúme injustificável, queconstituíram a primeira porta para que o marido se desviasse dossagrados deveres em família; mas, no seu orgulho de patrícia, ponderavaque era muito tarde para qualquer arrependimento dela, considerando,intimamente, que o único recurso era aguardar a volta do esposo ao seucoração fiel e dedicado, com o máximo de humildade e paciência. Nosseus instantes de contristação, escrevia páginas amarguradas eluminosas, pelos elevados conceitos que traduziam, ora implorando apiedade dos deuses, em súplicas fervorosas, ora estereotipando asíntimas angústias em versos comovedores, lidos tão somente pelos olhosde seu genitor que, a chorar de emoção, considerava, muitas vezes, se adesventura conjugal da pobre filha não era igualmente uma herançasingular e dolorosa.Por volta do ano 53, desaparecia em trágicas circunstâncias, nosescuros braços da morte, uma das figuras mais fortes desta história.Referimo-nos a Fúlvia que, dois anos após o falecimento docompanheiro, acusava as mais sérias perturbações mentais, além deinquietantes fenômenos orgânicos, provenientes de passados desvarios.Feridas cancerosas devoravam-lhe os centros vitais e, por dois anosa fio, o corpo emagrecido era forçado às mais penosas e incômodasposições de repouso, enquanto os olhos inquietos e arregaladosdançavam nas órbitas, como se nas suas alucinações fosse compelida àvidência dos quadros mais sinistros e tenebrosos.Nessas ocasiões, não encontrava a dedicação da filha, que nãosoubera educar, sempre atarefada nos seus constantes compromissos defestas, encontros e representações sociais numerosas." Emannuel,"...Mas a misericórdia divina, que não abandona os seres maisdesditosos, dera-lhe um filho carinhoso e compassivo para as doresexpiatórias.Emiliano Lúcios, o marido de Aurélia, era desses homens dignos evalorosos, raros na paciência e nas mais elevadas virtudes domésticas.Noites e noites sucessivas, velava pela velhinha infeliz, que as doresfísicas castigavam impiedosamente com o azorrague de suplícios atrozes.Nos seus últimos dias, vamos ouvir-lhe as palavras desconexas edolorosas. Noite alta, quando as próprias escravas descansavam,subjugadas pela fadiga e pelo sono, parecia que seus ouvidos de louca seaguçavam, espantosamente, para ouvir os ruídos do invisível, dirigindoimpropérios às suas antigas vitimas, que voltavam das mais baixas esferasespirituais para rodear-lhe o leito de sofrimento e morte. Olhosdesmesuradamente abertos, como se fixassem visões fatídicas ehorrorosas, exclamava a pobre velhinha abraçando-se ao genro, no augedas suas freqüentes crises de medo e desesperação inconsciente:- Emiliano!... - exclamava em atitudes de pavor supremo. - Estequarto está cheio de seres tenebrosos!... Não percebes? Ouve bem...Ouço-lhes os impropérios rijos e as sinistras gargalhadas!... ConhecesteSulpício Tarquinius, o grande lictor de Pilatos?... Ei-lo que chega com osseus legionários mascarados de treva!... Falam-me da morte, falam-me damorte!... Socorre-me, filho meu!... Sulpício Tarquinius tem um corpo dedragão que me apavora!...Crises de soluço e lágrimas sucediam-se a essas observaçõesangustiosas.- Acalma-te, mãe! - exclamava o militar, consternado até às lágrimas.- Tenhamos confiança na bondade infinita dos deuses!...- Ah!... os deuses! - gritava agora a infeliz, em histéricas gargalhadas- os deuses... - onde" Emannuel,"estariam os deuses desta casa infame? Emiliano, Emiliano, nós é quecriamos os deuses para justificar os desvarios de nossa vida! O Olimpo deJúpiter é uma mentira necessária ao Estado... Somos uma caveiraenfeitada na Terra com um punhado de pó!... O único lugar que deveexistir, de fato, é o inferno, onde se conservam os demônios com os seustridentes no braseiro!... Ei-los que chegam em falanges escuras!...E, apegando-se fortemente ao peito do oficial, gritavadisparatadamente, como se buscasse ocultar o rosto, de sombrasameaçadoras:- Nunca me levareis, malditos!... Para trás, canalhas!... Tenho umfilho que me defende de vossas investidas tenebrosas!...Emiliano Lúcios acariciava bondosamente os cabelos brancos dadesventurada senhora, incitando-a a implorar a misericórdia dos deuses,de modo a balsamizarem-se-lhe os rudes padecimentos.De outras vezes, Fúlvia Prócula, como se tivesse a consciênciadespertada por um raio divino, dizia, mais calma, ao filho que o destino lhehavia dado:- Emiliano, estou aproximando-me da morte e preciso confessar-teas minhas faltas e grandes deslizes! Perdoa-me, filho, se tamanhostrabalhos te hei proporcionado! Minha existência misérrima foi uma longaesteira de crimes, cujas manchas horrorosas não poderão ser lavadaspelas próprias lágrimas da enfermidade que ora me conduz aosimpenetráveis segredos da outra vida! Nunca, porém, consegui ponderaras amarguras terríveis que me esperavam. Hoje, nas pesadas sombrasdalma, sinto que minha consciência se tisna do carvão apagado do fogodas paixões nefastas que me devoraram o penoso destino!... Fui esposadesleal, impiedosa, e mãe desnaturada...Quem se apiedará de mim, se houver uma claridade espiritual apósas cinzas do túmulo? Deste leito de loucura e agonia desesperada, vejo odes-" Emannuel,"...file incessante de fantasmas hediondos, que parecem esperar-me nopórtico do sepulcro!... Todos profligam meus crimes passados e mostram-se jubilosos com os padecimentos que me arrastam à sepultura!Sem uma crença sincera, sinto-me entregue a esses dragões doimponderável, que me fazem evocar o passado criminoso e sombrio!...Uma torrente de lágrimas de compunção e arrependimento seguia-sea esses instantes vertiginosos, de raciocínio e lucidez.Emiliano Lúcios afagava-lhe, com carinho, a face rugosa, imergindo-se ele mesmo em cismas dolorosas.Aquele quadro lancinante era bem o fim tempestuoso de umaexistência de deslizes clamorosos.Sim... ele tudo compreendia agora. A rebeldia da esposa, a suaincompreensão, os atritos domésticos, aquela sede insaciável de festasruidosas em companhia de afetos que não eram os dele, deviam ser osfrutos amargos de educação viciada e deficiente. Mas, seu coração estavacheio de generosidade sem limites. Espírito valoroso, compreendia asituação, e quem compreende perdoa sempre.Uma noite em que a doente manifestava crises acentuadas eprofundas, o bondoso oficial ordenou que as servas se recolhessem.A pobre louca falava sempre, como se fôra tocada de energiainesgotável e incompreensível.Copioso suor inundava-lhe a fronte, tomada de febre alta econstante.- Emiliano - gritava ela desesperadamente -, onde está Aurélia, quenão busca velar à minha cabeceira nas vésperas da morte? Como as falsasamizades de minha vida, terá ela também horror do meu corpo?- Aurélia - explicou generosamente o oficial - precisava desobrigar-se hoje de um compromisso com as amigas, na organização de algunsserviços sociais!" Emannuel,"- Ah! - exclamou a demente, em sinistras gargalhadas - os serviçossociais... os serviços sociais!... Como pudeste crer nisso, filho meu? Tuamulher, a estas horas, deve estar ao lado de Plínio Severus, seu antigoamante, em algum lugar suspeito desta cidade miserável!...Emiliano Lúcios fez o possível para que a infeliz dementada nãoprosseguisse em suas revelações terríveis e impressionantes; mas Fúlviacontinuava o libelo tremendo e doloroso:- Não, não me prives de continuar... - prosseguia desesperadamente.- Ouve-me ainda! Todas as minhas acusações representam a criminosarealidade... Muitas vezes, a verdade está com aqueles queenlouqueceram!... Fui eu própria que induzi minha infeliz filha aos desviosconjugais... Plínio Severus era o inimigo que ela precisava vencer, naqualidade de mulher... Facilitei-lhe o adultério, que se consumou sob esteteto!... Certifica-te, filho meu, da enormidade das minhas faltas!...Horroriza-te, mas perdoa!... E vigia tua mulher para que não continue atrair-te com as suas perfídias torpes, e não venha um dia a apodrecer,lamentavelmente, como eu, num leito de sedas perfumosas!...O generoso militar acompanhava, boquiaberto e aflito, aquelasrevelações assombrosas.Então a esposa, além de não o compreender no seu idealismo, aindao traia vergonhosamente, no próprio ambiente sacrossanto do lar?Emoções dolorosas represavam-se-lhe no coração, mas, possivelmente,todas aquelas palavras não passavam de simples delírio febril, nademência incurável. Uma dúvida horrível e impiedosa aninhara-se-lhe nocoração angustiado. Algumas lágrimas umedeceram-lhe os grandes olhostristes, enquanto a enferma dava uma trégua às penosas revelações.Dai a minutos, porém, com voz estentórica, continuava:- E Aurélia? Que é feito de Aurélia que não vem? Por onde andaráminha pobre filha crimi-" Emannuel,"...nosa e infiel? Amanhã, meu filho, hei-de confiar-te os infames segredos danossa existência desventurada.Alguém, todavia, penetrara no aposento contíguo, cautelosa esilenciosamente. Era Aurélia, que voltava de uma festividade ruidosa, ondeo vinho e os prazeres haviam jorrado em abundância.Depois de atravessar a porta próxima, ainda ouviu as últimaspalavras da mãe, no auge da febre e da desesperação doentia. Ela, queouvira as tristes revelações de pouco antes, considerou que a doente, nodia imediato, haveria de cumprir a terrível promessa e, num relance,examinou todas as probabilidades de execução da idéia tenebrosa que lhepassara pela mente criminosa e infeliz. Seus olhos pareciam vidrados decólera, sob o azorrague de um pensamento mórbido, que lhe aflorararepentinamente no coração frio e impiedoso.Despiu os trajes da festa, reintegrando-se nos aspectos interiores dolar, e abriu uma nova porta, dirigindo-se ao leito materno, onde acariciou amãe fingidamente, enquanto o esposo incompreendido a contemplava, decérebro fervilhante e dolorido, sob o domínio das dúvidas mais acerbas.- Mãe, que é isso? - perguntou, afetando uma preocupaçãoimaginária. - Estás cansada... precisas repousar um pouco.Fúlvia fitou-a profundamente, como se um clarão de lucidez lhehouvesse clareado repentinamente o espírito abatido. A presença da filhatranqüilizava de algum modo o seu coração dorido e a consciênciadilacerada. Sentou-se com esforço, no leito, afagou os cabelos da filha,como sempre costumava fazer na intimidade, deitando-se em seguida eparecendo com boa disposição de repousar.Emiliano Lúcios retirou-se da cena, considerando que sua presença já nãoera necessária.Mas Aurélia continuava a falar com o seu fingido carinho:" Emannuel,"- Queres, mãe, uma dose do calmante para o repouso preciso?A pobre louca, na sua inconsciência espiritual, fez um sinalafirmativo com a cabeça.A jovem encaminhou-se ao seu aposento privado e, retirandominúsculo tubo de um dos móveis prediletos, deixou pingar algumas gotasnuma pequena taça de sedativo, monologando: - ""Sim!... um segredo ésempre um segredo... e só a morte pode guardá-lo convenientemente!...""Caminhou, sem hesitação, para o leito materno, onde, por mais dedois anos, jazia a infeliz, devorada pelo câncer e atormentada pelas visõesmais sinistras e tenebrosas.Num relance, o horrível envenenamento estava consumado.Ministrada a poção corrosiva e violenta, Aurélia determinou, então, queduas escravas velassem o sono da enferma, como de costume, aoregressar das noitadas ruidosas, esperando o resultado da ação criminosae injustificável.Em duas horas, a enferma apresentava os mais evidentes sinais desufocação sob a ação do corrosivo, que constituía mais um daquelesfiltros misteriosos e homicidas da época.Ao chamamento aflito das servas, todas as pessoas da casa secolocaram a postos, dado o penoso estado da enferma.Emiliano Lúcios contemplou-lhe os olhos, que se iam apagando novéu da morte, e debalde procurou fazer que a agonizante lhe dissesseainda uma palavra. Seus membros frios foram-se enrijando devagarinho eda boca começou a escapar-lhe espuma rósea.Em vão foram chamados os entendidos da medicina, naquelesderradeiros instantes. Naquela época, nem os esculápios conheciam ossegredos anatômicos do organismo, nem havia polícia técnica paraaveriguar as causas profundas das mortes misteriosas. O envenenamentode Fúlvia correu por conta das moléstias incompreensíveis que, durante" Emannuel,"...muitos meses, lhe haviam minado todos os centros de vitalidade.Contudo, aquela agonia rápida não passou despercebida a Emiliano,que juntou mais uma dúvida penosa aos amargos pensamentos que lhenegrejavam o foro íntimo.Aurélia buscou representar, do melhor modo, a comédia dasentimentalidade em tais circunstâncias, e depois das cerimôniassimplificadas e rápidas, em vista da imediata decomposição cadavérica,que forçou a incineração em breves horas, o antigo lar do pretor SálvioLentulus tornou-se o abrigo de dois corações que se odiavammutuamente.Se a esposa infiel, logo após os primeiros dias de luto, retornava àsua existência de regalados prazeres, Emiliano Lúcios nunca pôdeesquecer as revelações de Fúlvia, nas vésperas do seu desprendimento,envolvendo-se, então, num véu de tristeza que lhe cobriu o coração pormais de dois anos.Em 54, subia Domício Nero ao poder, fazendo-se acompanhar deuma depravada corte de áulicos perversos e de concubinas tão numerosasquão desalmadas.Muito tarde, reconheceu Agripina a inconveniência de sua atitudematernal obrigando o imperador Cláudio a anuir ao casamento de sua filhaOtávia com aquele que, mais tarde, iria eliminar-lhe a própria vida com osmaiores requintes de perversidade.O Fórum e o Senado receberam, tremendo, a sombria notícia daproclamação do novo César pelas legiões pretorianas, não tanto por ele,mas porque sabiam, de antemão, que aquele príncipe ignorante e cruel iatornar-se um fácil joguete dos espíritos mais ambiciosos e mais perversosda corte romana.Ninguém, todavia, ousou protestar, tal a série de crimes tenebrosos,perpetrados impunentemente, para que Domício Nero atingisse osbastidores do supremo poder." Emannuel,"No ano 56, o envenenamento do jovem Britanicus punha arrepios deterror em todos os patrícios.Medidas ignominiosas foram postas em prática para humilhar ossenadores do Império, que não conseguiram efetivar os seus protestosformais. Todas as famílias mais importantes da cidade conheciam que,diante de si, tinham os filtros venenosos de uma Locusta, a tirania e aperversidade de um Tigelinus, ou o punhal de um Aniceto.A morte inesperada de Britanicus, porém, provocara certodescontentamento, dando azo a que se manifestassem alguns espíritosmais valorosos.Entre esses, encontrava-se Emíliano Lúcios, que se viu logo emsérias perspectivas de banimento, tornando-se vigiado pelos inúmerosesbirros do Imperador.O generoso oficial buscou recolher-se o mais que lhe era possível,evitando a possibilidade de conflitos. Recrudesceram as suas angústiasíntimas e as suas meditações tornaram-se mais profundas e dolorosas...E, assim, certa vez, às primeiras horas de uma noite tranqüila,quando se recolhia ao lar, contrariamente aos seus hábitos mais antigos,notou que o aposento da esposa estava cheio de vozes animadas ealegres. Observou que Aurélia e Plínio se embriagavam no vinho de seusvenenosos prazeres e, olhos traduzindo incoercível espanto, viu que aesposa o traía no próprio tálamo conjugal.Emiliano Lúcios sentiu que espinho mais agudo lhe penetrava ocoração sensível e generoso, ao verificar, por si mesmo, aquela realidadecruel. Teve ímpetos de chamar o amante ao campo da honra para morrerou eliminar-lhe a vida, mas considerou, simultaneamente, que Aurélia nãomerecia tal sacrifício.Enojado de tudo que se referia à sua época e sentindo-se vencidonas desventuras do seu penoso destino, o nobre oficial retirou-se para oan-" Emannuel,"...tigo gabinete do pretor Sálvio, onde estabelecera a sede de seus trabalhosdiurnos e, tomado de sinistra e dolorosa resolução, abriu velho armárioonde se alinhavam pequenos frascos, retirando um deles, de configuraçãoespecial, a fim de satisfazer os amargos propósitos do seu espíritoexausto.Diante da taça de cicuta, o cérebro dorido perdeu-se, por minutos,em pungentes conjeturas, mas, estudando intimamente todas as suasprobabilidades de ventura, ponderou, no auge do desespero, que, à traiçãoda mulher, às ameaças de proscrição e de banimento ou à possibilidade deum ataque nas sombras, era preferível o que ele considerava o consoloderradeiro da morte.Num instante, sem que os amigos espirituais pudessem demovê-lodo intento terrível, tal a subitaneidade do gesto desesperado e irrefletido,sorveu o conteúdo de pequena taça, descansando depois a jovem cabeçasobre os braços, estirado num leito próprio do triclínio, mas adaptado aoseu gabinete antigo, abarrotado de mármores e pergaminhos preciosos.A morte horrível não se fez esperar muito, e, no círculo numeroso desuas relações de amizade, enquanto Aurélia representava nova farsa depesares imaginários, comentava-se o suicídio de Emiliano, não comoconsequência direta de suas profundas desilusões domésticas, mas comofruto da tirania política do novo imperador, sob cujo reinado tantos crimesforam cometidos, diariamente, nas sombras.Sozinha, agora, no seu campo de ação, Aurélia entregou-selivremente aos seus desvarios, amplificando as suas inclinações nocivas eprocurando reter, cada vez mais, junto de si o homem de suaspreferências, objeto de suas desenfreadas ambições.Em casa dos Lentulus e dos Severus, a vida continuava a desfiar orosário das desventuras.Havia mais de cinco anos, em 57, que Saul de Gioras se encontravadefinitivamente instalado" Emannuel,"em Roma, sem haver desistido dos seus desejos e propósitos a respeitoda esposa do amigo e benfeitor. Consolidada a sua fortuna no comércio depeles do Oriente, não perdia ele as mínimas oportunidades para evidenciara excelência de sua situação material à mulher cobiçada de longos anos;Flávia Lentúlia, porém, fizera da existência um calvário de resignação,comovedora e silenciosa.A vida pública do marido era, para o seu espírito, um prolongado edoloroso suplício moral. Sobre o assunto, fazia Saul, de vez em quando,referências indiretas, no intuito de chamar-lhe a atenção para o seu afeto,mas a pobre senhora nele não via outra individualidade, além de umamigo, ou irmão. Debalde, o moço judeu testemunhava-lhe sua admiraçãopessoal, em gestos de extrema gentileza, buscando oferecer-lhe a suacompanhia; mas, a verdade é que os apelos de sua alma impetuosa eapaixonada não encontravam. ressonância no coração daquela mulher,que enfeitava com a dor a dignidade do matrimônio.Tocado pelas expressões do seu dinheiro, Araxes animava-lhe asesperanças sem o deixar esmorecer nos seus perigosos instintos.Plínio Severus só vinha ao lar de vez em quando, alegando serviçosou viagens numerosas para justificar a continuidade de sua ausência. Malse precatava ele de que as despesas astronômicas lhe arruinavam, poucoa pouco, as possibilidades financeiras, conduzindo igualmente os seusfamiliares ao esgotamento de todos os recursos.Algumas vezes, mantinha colóquios afetuosos com a esposa, aquem se sentia preso pelos laços de afeição eterna e profunda, mas asseduções do mundo eram já muito fortes no seu coração, para seremextirpadas. No íntimo, desejava voltar à calma do lar, à vida carinhosa etranqüila; mas, o vinho, as mulheres e os ambientes ostentosos eram apermanente obsessão do seu espírito combalido; outras vezes, emboraamando a esposa ternamente," Emannuel,"...não lhe perdoava a circunstância da sua superioridade moral, irritando-secontra a própria humildade que ela testemunhava em face dos seusdesatinos, e regressava novamente aos braços de Aurélia, como vítimaindecisa entre as forças do bem e do mal.No ano 57, a saúde de Calpúrnia, abalada em extremo, obrigara afamília a reunir-se em torno do leito da matrona generosa. Pela primeiravez, após o casamento do irmão, voltou Agripa Severus de suas longasaventuras em Massília e em Avênio, para junto de sua mãe enferma eabatida, atendendo-lhe os sentidos apelos. Reencontrar Flávia Lentúlia eparticipar com ela das claridades do ambiente doméstico, foi o mesmo quereavivar velho vulcão adormecido.A um golpe de vista, compreendeu a situação conjugal de Plínio,procurando substituir-lhe o afeto junto da esposa desvelada e meiga.Desejava confessar-lhe todo o seu amor ardente e infeliz, mas guardava nocoração sublime respeito fraternal por aquela mulher, que confiava nelecomo irmão muito amado.Foi assim que, nas alternativas de melhora da velha enferma, Flávialhe aceitou a companhia para distrair-se nalguns espetáculos da rumorosacidade da época.Tanto bastou para que Saul envenenasse os acontecimentos,supondo nessas expansões inocentes uma ligação menos digna, que lheenchia de pavorosos ciúmes o coração violento e irascível.Na primeira oportunidade, insinuou a Plínio Severus todas as suascavilosas suspeitas, arquitetando, com a sua imaginação doentia,situações e acontecimentos que jamais se verificaram. O esposo de Fláviaera desses homens caprichosos, que, organizando um circulo de liberdadeilimitada para si próprio, nada concedem à mulher, nem mesmo no terrenodas afeições desinteressadas e puras. Dessa forma, Plínio Severuscomeçou a acatar a palavra" Emannuel,"de Saul, concedendo-lhe aos conceitos insensatos o mais largo crédito, noseu foro íntimo. Ele, que deixara a companheira afetuosa ao abandono eque, por largos anos, dera azo às mais penosas amarguras domésticas,sentiu-se, então, ralado de ciúmes acerbos e inconcebíveis, passando aespionar os menores gestos do irmão e a desconfiar dos mais secretospensamentos da esposa, esperando que a moléstia irremediável de suamãe tivesse uma solução na morte, que se presumia para breve, a fim dese pronunciar com mais força na reivindicação dos seus direitosconjugais.Entrava o ano de 58, com amarguradas perspectivas para as nossaspersonagens.Um fato, porém, começava ferir a atenção de todas as personagensdesta história real e dolorosa.A dedicação de Lívia à sua velha amiga doente era um exemplo rarode amor fraterno, de carinho e bondade indefiníveis. Oito meses a fio, suafigura franzina e silenciosa esteve a postos dia e noite, sem descanso,junto ao leito de Calpúrnia, provando-lhe com exemplos a excelência dosseus princípios religiososMuitas vezes, a nobre matrona considerou, intimamente, asuperioridade moral daquela doutrina generosa, que estava no mundo paralevantar os caídos, confortar os enfermos e os tristes, disseminando asmais formosas esperanças com os desiludidos da sorte, em confronto comos seus velhos deuses que amavam os mais ricos e os que oferecessemos melhores sacrifícios nos templos, e aquele Jesus humilde e pobre,descalço e crucificado, de que lhe falava Lívia em suas palestras íntimas ecarinhosas.Calpúrnia estava plenamente modificada, às vésperas da morte. Aconvivência contínua da velha amiga renovara-lhe todos os pensamentos ecrenças mais radicadas. Tratava melhor as escravas que lhe beiravam oleito e pedira a Lívia lhe" Emannuel,"...ensinasse as preces do profeta crucificado em Jerusalém, o que ambasfaziam de mãos postas, quando os aposentos da enferma ficavamsilenciosos e desertos. Nesses instantes, a viúva de Flamínio Severussentia que as dores abrandavam, como se bálsamo suave lhe refrescasseos centros íntimos de força; cessavam as dispneias dolorosas e arespiração quase se normalizava, como se profundas energias do planoinvisível lhe reanimassem o coração escleroso e fatigado.Ao espírito de Públio não passavam despercebidos esses sintomasde modificação moral da velha matrona, nem tampouco o nobreprocedimento da esposa, que nunca mais repousou, desde o instante emque a vira inerme e exausta. Os sofrimentos da vida haviam igualmentemodificado muito a estrutura da sua organização espiritual e, como nunca,sentia o senador a necessidade de se reconciliar com a esposa, paraenfrentar os invernos penosos da velhice que se aproximava.Não só ele, como Lívia, já haviam ultrapassado meio século deexistência, e agora, que tão bem conhecia a vida e os seus dolorososmecanismos de aperfeiçoamento, se sentia apto a perdoar todas as faltasda esposa, no pretérito, considerando que os seus vinte e cinco anos demartírio moral, no sacrossanto ambiente doméstico, bastavam para redimi-la das faltas que, porventura, houvesse cometido, nas ilusões damocidade, em terra estranha, conforme supunha em suas falsasobservações, filhas ainda da calúnia que lhe destruíra a ventura e a paz deuma existência inteira.Nos primeiros dias do ano 58, os padecimentos de Calpúrnia foramsubitamente agravados, esperando-se a cada momento o penosodesenlace.Os filhos e os mais íntimos lhe rodeavam o leito, grandementecomovidos, embora reconhecessem a necessidade de repouso paraaquele corpo doente e esgotado." Emannuel,"Na antevéspera da morte, a veneranda senhora pediu que adeixassem sozinha com o senador, por algumas horas, alegando anecessidade de confiar a Públio Lentulus algumas disposições ""inextremis"".Atendida, imediatamente, vamos encontrá-los em íntimo colóquio,como se estivessem juntos pela última vez, para decisão de assuntosimportantes e supremos.Públio, ainda em pleno vigor de sua compleição física, tinha osolhos rasos dágua, enquanto a velha matrona o contemplava, deixandotransparecer um clarão de viva lucidez nos olhos calmos e profundos.- Públio - começou ela, gravemente, como se aquelas palavrasfossem as suas últimas recomendações -, para os espíritos de nossaformação não pode existir o receio da morte, e é por esse motivo quedeliberei falar-te nas minhas horas derradeiras...- Mas, minha boa amiga - respondeu o senador, franzindo a testa eesforçando-se por dissimular a comoção que lhe ia nalma, lembrando-sede que, nas mesmas circunstâncias, lhe falara FIamínio pela última vez,entre as paredes daquele quarto -, somente os deuses podem decidir denossos destinos e só eles conhecem os nossos últimos instantes!...- Não duvido dessas verdades - acudiu a valorosa patrícia -, mas,tenho a certeza de que as minhas horas na Terra chegam a termo e nãoquero levar para o túmulo o remorso de uma falta que reconheço havercometido há mais de dez anos...- Uma falta? Nunca... Vossa vida, Calpúrnia, foi sempre um dos maisraros exemplos de virtude nesta época de transição e degenerescênciados nossos mais belos costumes...- Agradeço-te, meu grande amigo, mas tua gentileza não me eximeda penitência perante o teu espírito, afirmando que há mais de dez anoserrei" Emannuel,"...num julgamento, pedindo-te hoje recebas a minha retificação, talvez tardia,mas ainda a tempo de santificarmos, com o mais justo respeito, uma vidade sacrifícios e de abnegações!...Públio Lentulus adivinhou que se tratava de sua mulher e, com vozembargada pela comoção e pelas lágrimas, deixou que a velha amigacontinuasse, de olhos enxutos, manifestando o mais subido valor moralem face da morte que se aproximava.- Refiro-me a Lívia - continuou Calpúrnia, em tom comovido -, arespeito de quem tive a infelicidade de te transmitir uma suposição errôneae injusta, cortando-lhe a última possibilidade de ventura na Terra; mas, amorte renova as nossas concepções da vida e os que estão prestes aabandonar este mundo possuem uma visão mais clara de todos osproblemas da existência.Hoje, meu amigo, digo-te, de alma serena, que tua esposa éimaculada e inocente...O senador sentia que o pranto lhe brotava espontaneamente dosolhos, mas estava intimamente confortado por saber que a venerávelamiga confirmava, agora, as convicções que o tempo lhe aumentaraquanto à nobilíssima companheira de sua existência.- Não to digo simplesmente por uma questão de egoísmo pessoal,em penhor de agradecimento pelas supremas dedicações de Lívia paracomigo no decurso desta dolorosa enfermidade - continuou ela,valorosamente. - Um espírito do nosso estofo deve estar com a verdadeacima de tudo, e esta minha confissão não se verifica tão somente pelasobservações da minha fraqueza toda humana.A realidade, todavia, meu amigo, é que, desde aquela noite em queme pediste opinasse sobre tua esposa e minha desvelada amiga, sinto oespinho de uma dúvida cruel no meu coração dilacerado. Lívia foi semprea minha melhor companheira, e contribuir para a sua desventura,injustificada-" Emannuel,"mente, era aos meus olhos a suprema falta de toda a vida...Por onze anos, orei constantemente e ofereci numerosos sacrifíciosnos templos, para que os deuses me inspirassem a verdade sobre oassunto e, por todo esse tempo, tenho esperado pacientemente arevelação do céu... Só hoje, porém, me foi dado obtê-la, já nos pórticos dosepulcro!...É possível que minha pobre alma, já semiliberta, esteja participandodos incompreendidos mistérios da vida do além-túmulo e talvez seja porisso que, hoje pela manhã, vi a figura de Flamínio neste quarto!... Era muitocedo e eu estava só, com as minhas meditações e as minhas preces!...Nesse ínterim, a palavra da enferma tornara-se entrecortada deprofundas emoções que a dominavam, enquanto Públio Lentulus chorava,em doloroso silêncio.- Sim... - prosseguiu Calpúrnia, depois de longa pausa -, no meio deuma luz difusa e azulada, vi Flamínio a estender-me os braços carinhosose compassivos... No olhar, observei-lhe a mesma expressão habitual deternura e, na voz, o timbre familiar, inesquecível... Avisou-me que dentro dedois dias penetrarei os mistérios indevassáveis da morte, mas essarevelação do meu fim próximo não me podia surpreender... porque, parimim... que há tantos anos vivo no meu exílio de saudades e sombras...acrescido das continuadas angústias da enfermidade longa e dolorosa... acerteza da morte constitui supremo consolo... Confortada pelas docespromessas da visão, as quais me auguravam esse brando alívio parabreves horas...perguntei ao espírito de Flamínio sobre a dúvida cruel que me dilaceravahá tantos anos... Bastou que a argüísse mentalmente, para que a radiosaentidade me dissesse em alta voz... meneando a cabeça num gestodelicado... como a exprimir infinita e dolorosa tristeza: ""Calpúrnia, em máhora duvidaste daquela a quem deverias amar... e pro-" Emannuel,"...teger como a filha querida e carinhosa... porque Lívia... e uma criaturaimaculada e inocente...""Nesse instante... - continuou a enferma, com alguma dificuldade -, talfoi a impressão dolorosa de minhalma... com a surpresa da resposta... quenão mais lobriguei a visão carinhosa e consoladora... como se fosserepentinamente chamada às tristes realidades da vida prática.A velha matrona tinha os olhos marejados de lágrimas, enquanto osenador se entregava silenciosamente ao pranto de suas comoçõespenosas.Longos minutos estiveram ambos assim, na atitude de quem davacurso ao remorso e ao sofrimento...Afinal, foi ainda a valorosa patrícia quem rompeu o pesado silêncio,tomando as mãos do amigo entre as suas mãos descarnadas e brancas,exclamando:- Públio, fala-te o coração de uma velha amiga, com as verdadesserenas e tristes da morte... Acreditas piamente nas minhas dolorosasrevelações?...O senador fez um esforço para enxugar as lágrimas que lhe caiamcopiosamente dos olhos, e, movimentando o máximo de energias, replicoufirmemente:- Sim, acredito.- E que faremos agora... para reparar nossas faltas... ante o coraçãogeneroso e justo de tua mulher?...Ele deixou transparecer um clarão de ternura nos olhos, e, passandoas mãos inquietas pela fronte, como se houvera encontrado solução quasefeliz, dirigiu-se à doente, com uma irradição de alegria e de tranqüilidadeno semblante, dizendo confortado:- Sabeis da grande festa do Estado, que se realizará de hoje apoucos dias, na qual os senadores, com mais de vinte anos de serviço aoImpério, serão coroados de mirto e rosas, como os triunfadores?" Emannuel,"- Sim - respondeu a matrona -, tanto que já pedi a meus filhos que...não obstante a minha morte próxima... te acompanhem nessa justaalegria... porque serás um dos agraciados pelas nossas autoridadessupremas...- Ó, minha grande amiga, ninguém pode esperar vossa morte,mesmo porque, não poderemos prescindir da preciosa contribuição davossa vida; mas, já que cuidamos de reparar o meu erro grave no passadodoloroso, esperarei mais uma semana para levar ao espírito de Lívia aexpressão do meu reconhecimento, da minha gratidão e do meu profundoamor. Irei a essa festa, a realizar-se sob os auspícios de Sêneca, que tudotem feito por dissimular a penosa impressão causada pela conduta crueldo Imperador, seu antigo discípulo. Depois de receber a coroa da supremavitória de minha vida pública, trarei todas as condecorações aos pés deLívia, como preito justo à sua angustiada existência de penosos sacrifíciosdomésticos... Ajoelhar-me-ei ante a sua figura santificada e, retirando dafronte a auréola do Império, deporei as flores simbólicas a seus pés, quebeijarei humildemente com o meu arrependimento e as minhas lágrimas,traduzindo-lhe gratidão e amor infindos!...- Generosa idéia, meu filho - exclamou a enferma, sensibilizada -, epeço-te que a executes... no momento oportuno. E, no instante... em quetestemunhares a Lívia o teu amor supremo... dize-lhe que me perdoe...porque eu chorarei de alegria... vendo ambos felizes... lá das sombrastranqüilas do meu sepulcro.Ambos choravam, comovidos, silenciosamente.Em dado instante, a velha doente apertou as mãos do amigo, como adizer-lhe um supremo adeus. Calpúrnia fixou nele os grandes olhos claros- a desprenderem irradiações misteriosas, e, com lágrimas de emoçãoinexprimível, exclamou comovidamente:" Emannuel,"...- Públio... peço... não te esqueças... do prometido... Ajoelha-te aospés de Lívia... como aos de uma deusa... de renúncia e de bondade... Nãote importe... a minha partida deste mundo... Vai à festa do Senado...reparemos... nossa falta grave... e agora, meu amigo... um último pedido...Vela por meus filhos... como se fossem teus... Ensina-lhes ainda ahonradez... a fortaleza... a sinceridade e o bem... Um dia... todos nos... nosreuniremos... na eternidade...Públio Lentulus apertou-lhe as mãos, sensibilizado, ajeitando-lhe,nas sedosas almofadas, a cabeça encanecida, enquanto lágrimas decomoção lhe embargavam a voz.Havia muito que a enferma era atacada, subitamente, de periódicas eprolongadas dispneias.O senador abriu as portas do largo aposento aonde Lívia acorreu,pressurosa, como enfermeira de todos os instantes, enquanto Flávia ealgumas servas acudiam com ungüentos e outras panacéias da medicinado tempo.Calpúrnia, porém, parecia atacada pelas últimas aflições que alevariam ao túmulo. Por vinte e quatro horas consecutivas, o peito arfousibilante, como se a caixa toráxica estivesse prestes a rebentar sob oimpulso de uma força indomável e misteriosa.Ao fim de um dia e uma noite de azáfama e angústias, a doenteparecia haver experimentado ligeira melhora. A respiração fazia-se menospenosa e os olhos revelavam grande serenidade, embora todo o corpoestivesse salteado de manchas azuladas e violáceas, prenunciando amorte. Apenas a afonia continuava, mas, em dado instante, fez um gestocom a mão, chamando Lívia à cabeceira com a terna familiaridade dosantigos tempos. A esposa do senador atendeu ao apelo silencioso,ajoelhando-se, com os olhos cheios de lágrimas e compreendendo, pelaintuição espiritual, que era chegado o instante doloroso da despedida. Via-se" Emannuel,"que Calpúrnia desejava falar, inutilmente. Foi então que cingiu Lívia,amorosamente, contra o peito, osculando-lhe os cabelos e a fronte numesforço supremo e, colando os lábios ao seu ouvido, balbuciou cominfinita ternura: - ""Lívia, perdoa-me!"" Somente a interpelada escutara obrando cicio da agonizante. Foram essas as derradeiras palavras deCalpúrnia. Dir-se-ia que sua alma valorosa necessitava, tão somente,daquele último apelo para conseguir desvencilhar-se da Terra, elevando-seao Paraíso.Abraçada à incansável amiga, a agonizante depôs novamente acabeça nas almofadas, para sempre. Suor abundante transbordava de todoo seu corpo, que se aquietou de leve para a suprema rigidez cadavérica e,dai a minutos, seus olhos se fecharam, como se se preparassem para umgrande sono. A respiração foi-se extinguindo brandamente, enquanto umalágrima pesada e branca lhe rolava nas faces enrugadas, como um raiodivino da luz que lhe clarificava a noite do túmulo.As portas do palácio abriram-se, então, para os tributos afetuososda sociedade romana. As exéquias da valorosa matrona compareceu o quea cidade possuía de mais nobre e mais fino, em sua aristocracia espiritual,dado o elevado conceito em que eram tidas as peregrinas virtudes damorta.Terminadas as cerimônias da incineração e guardadas as cinzasilustres da nobre patrícia nas sombras do jazigo familiar, Flávia Lentúliaassumiu a direção da casa, enquanto seus pais voltavam à residência doAventino, para o necessário descanso.Faltavam somente quatro dias para a realização das grandes festas,em que mais de uma centena de senadores receberia a auréola dosupremo triunfo na vida pública. Públio Lentulus, que seria doshomenageados na festa memorável, não obstante o luto da família,aguardava o grande momento, com ansiedade. É que, recebida aexpressão supre-" Emannuel,"...ma da vitória de um homem de Estado, levá-la-ia aos pés da esposa, comosímbolo perene do seu afeto e do seu reconhecimento da vida inteira. Noseu íntimo, arquitetava a maneira mais doce de se dirigir novamente àcompanheira, no timbre caricioso e suave que a sua voz havia perdido hávinte e cinco anos, e, verificando a continuidade do seu amor, cada vezmais profundo, pela esposa, esperava ansiosamente o instante da suareintegração na felicidade doméstica.De noite, naquelas horas longas que se passavam, enquanto o velhocoração se preparava para as bênçãos da ventura conjugal, em brevesdias, ia ele até às proximidades dos apartamentos da esposa, situadosbem distantes do seus, naqueles prolongados anos de amarguras infindas.Na antevéspera das grandes festividades a que nos referimos,seriam vinte e três horas, quando a sua figura se postara em frente aosaposentos da companheira, antegozando o ditoso momento da penitência,que significava para ele uma alegria suprema.Enquanto o pensamento se afundava nos abismos do passadolongínquo, sua atenção espiritual foi repentinamente despertada pelamelodia suave de uma voz de mulher, que cantava baixinho no silêncio danoite. O senador aproximou-se, vagarosamente, da porta, colando o ouvidoà escuta... Sim! Lívia cantava em voz apagada e mansa, qual cotoviaabandonada, fazendo soar levemente as cordas harmoniosas de uma lirade suas lembranças mais queridas. Públio chorava comovido, ouvindo-lheas notas argentinas que se abafavam no ambiente restrito do quarto, comose Lívia estivesse cantando para si própria, adormentando o coraçãohumilde e desprezado, para encher de consolo as horas tristes e desertasda noite. Era a mesma composição das musas do esposo, que lheescapava dos lábios naquele instante em que a voz tinha tonalidadesestranhas e maravilhosas, de indefiní-" Emannuel,"vel melancolia, como se todo o seu canto fosse o lamento doloroso derouxinol apunhalado:Alma gêmea da minhalma,Flor de luz da minha vida,Sublime estrela caídaDas belezas da amplidão!...Quando eu errava no mundo,Triste e só, no meu caminho,Chegaste, devagarinho,E encheste-me o coração.Vinhas na bênção dos deuses,Na divina claridade,Tecer-me a felicidadeEm sorrisos de esplendor!...És meu tesouro infinito,Juro-te eterna aliança,Porque sou tua esperança,Como és todo o meu amor!Alma gêmea da minhalma,Se eu te perder, algum dia,Serei a escura agoniaDa saudade nos seus véus...Se um dia me abandonares,Luz terna dos meus amores,Hei-de esperar-te, entre as floresDa claridade dos céus...Daí a minutos, a voz harmoniosa calava, como se fôra obrigada a umdivino estacato. O senador retirou-se, então, com os olhos marejados delágrimas, refletindo consigo mesmo: - ""Sim, Lívia, de hoje a dois dias hei-de provar-te que foste sempre a luz da minha vida inteira... Beijarei teuspés com a minha humildade agradecida e saberei entornar no teu coraçãoo perfume do meu arrependimento...""Penetrando no aposento de Lívia, vamos encontrá-la genuflexa,depois de haver deposto, sobre um" Emannuel,"...móvel predileto, a lira das suas recordações. Ajoelha-se, como sempre,diante da cruz de Simeão que, nesse dia, mostrava a seus olhos espirituaisuma claridade mais intensa.No curso de suas preces, ouviu a palavra do amigo invisível, cujatonalidade profunda parecia gravar-se, para sempre, no imo da suaconsciência: ""Filha - exclamava a voz amiga, do plano espiritual -, regozija-te no Senhor, porque são chegadas as vésperas da tua ventura eterna eimorredoura! Eleva o pensamento humilde a Jesus, porque não está longeo instante ditoso da tua gloriosa entrada no seu Reino!...""Lívia deixou transparecer no olhar uma atitude de alegria e surpresa,mas, cheia de confiança e fé na providência divina, guardou, nos refolhosmais íntimos do coração, o conforto daquelas palavras sacrossantas." Emannuel,"302VNas catacumbas da fé e no circo do martírioNo dia imediato à cena que acabamos de descrever, vamosencontrar, juntas, as duas grandes amigas que, longe de serem a senhorae a serva, eram duas almas unidas pelos mesmos ideais, ligadas peloselos mais santos do coração.Ana acabava de chegar a casa, depois de cumprir algumasobrigações no Fórum Olitorium, (1) quando, encontrando Lívia mais a sós,lhe disse confidencialmente:- Senhora, hoje à noite uma nova voz se levantará no santuário dascatacumbas, para as pregações da nossa fé. Amigos nossos me avisaram,esta manhã, que, já há alguns dias, se encontra na cidade um emissário daigreja de Antioquia, chamado João de Cleofas, portador de significativasrevelações para nós outros, os cristãos desta cidade...Lívia deixou transparecer um clarão de íntimo contentamento nosolhos, exclamando:__________(1) Mercado de legumes. - Nota de Emmanuel." Emannuel,"...- Ah! sim... havemos de ir hoje às catacumbas. Tenho necessidadede comungar com os nossos irmãos de crença, nas mesmas vibrações danossa fé! Além disso, preciso agradecer ao Senhor a misericórdia dassuas graças imensas...E elevando um pouco a voz, como se desejasse comunicar à amigao santo júbilo de suas esperanças mais íntimas, exclamou com ternosorriso a lhe irradiar no semblante calmo:- Ana, desde a morte de Calpúrnia, noto que Públio está mais serenoe mais esclarecido... Nestes últimos dias, tem-me dirigido a palavra com aternura de outros tempos, havendo-me afirmado, ainda ontem, que seucoração me reserva doce surpresa para amanhã, depois da sua vitóriasuprema na vida pública. Sinto que é muito tarde para que seja novamentefeliz neste mundo, mas, em suma, estou intimamente satisfeita, porquenunca desejei morrer em desarmonia com o companheiro que Deus meconcedeu para as lutas e alegrias da vida. Acredito que nunca me perdoaráo crime de infidelidade que julga haver eu praticado há vinte e cinco anos,mas choro de contentamento ao reconhecer que Públio me sente redimida,ante a severidade de seus olhos!...E chorava, comovida, enquanto a velha criada lhe afiançava comternura:- Sim, minha senhora, talvez tenha ele reconhecido as suasabnegações santificantes no lar, nestes longos anos de sacrifíciosabençoados.- Agradeço a Jesus tamanha misericórdia - revidou Lívia,sensibilizada. - Suponho mesmo que não estou longe de partir para omundo das realidades celestes, onde todos os sofredores hão-de serconsolados...E depois de ligeira pausa, continuou:- Ainda ontem, quando orava junto à cruz singela, lá no quarto, ouviuma voz que me anunciava o Reino de Jesus para muito breve." Emannuel,"Ouvindo-a, Ana lembrou-se subitamente de Simeão e das horas queantecederam os seus sacrifícios, mergulhando-se em dolorosas cismas.Suas recordações remontavam ao passado longínquo, quando a voz deLívia novamente a despertou nestes termos:- Ana - dizia com as heróicas decisões da sua fé -, não sei comoserei chamada pelo Messias, mas, na hipótese da minha breve partida,peço-te continuares nesta casa, no teu apostolado de trabalho esacrifícios, porque Jesus há-de abençoar-te os labores santificantes.A antiga serva dos Lentulus queria dar novo rumo à conversaçãopungente e exclamou com a serenidade criteriosa que lhe conhecemos:- Senhora, sabe Deus qual de nós partirá primeiro. Esqueçamos,hoje, este assunto para pensar tão somente nas suas santificadas alegrias.E, como para encerrar a angustiada impressão daquela palestraíntima, rematou perguntando, confidencialmente:- Então, iremos hoje, de fato, às catacumbas?- Sim. Fica combinado. À noitinha, partiremos para as nossasorações e carinhosas lembranças do Messias Nazareno. Tenhonecessidade desse desafogo espiritual, após os longos meses que estiveretida junto da minha nobre Calpúrnia; além disso, desejo pedir aosnossos irmãos que orem comigo por ela, testemunhando ao mesmotempo, ao Senhor, meu sincero agradecimento pelas suas graças divinas...Ao partirmos, peço-te me atives a memória, pois quero levar ao novoapóstolo uma espórtula destinada à igreja de Antioquia.Se, amanhã, Públio vai receber o supremo galardão do homem domundo, quero rogar a Jesus não lhe abandone o coração intrépido egeneroso, para que as vaidades da Terra não o inibam de buscar, algumdia, o reino maravilhoso do céu!" Emannuel,"...Assim entendidas, separaram-se na azáfama dos misteresdomésticos. E enquanto o senador, durante todo o dia, tomavaprovidências numerosas para que nada faltasse ao brilho pessoal do seugrande triunfo no dia imediato, Lívia passava as horas, de alma voltadapara o Cristo, em preces fervorosas.À noitinha, consoante combinaram, lá se foram à secreta reuniãodas práticas primitivas do CristianismoTodos os servos graduados do palácio viram-nas sair, sempreocupação nem surpresa. Em todo o longo período da moléstia deCalpúrnia, Lívia e Ana nunca mais haviam fixado a sua presença no interiordo lar e não seria de estranhar que ambas houvessem deliberado buscar aresidência dos Severus, naquela noite, de onde, possivelmente, nãovoltariam senão no dia seguinte, depois de confortarem o espírito abatidode Flávia, no desdobramento de seus fadigosos encargos domésticos.Foi assim que as horas passaram, tranqüilas e descuidadas; equando o senador se aproximou dos aposentos da esposa, antegozandoas profundas alegrias esperadas para o dia seguinte, presumiu, no pesadosilêncio ali reinante, a significação do seu calmo repouso, nas asas leves ecariciosas do sono. Imaginando que Lívia descansava na paz soberana danoite, Públio Lentulus recolheu-se ao seu gabinete particular, com océrebro referto de radiosas esperanças, no propósito de se penitenciar detodos os seus erros do passado.Lívia, porém, em companhia de Ana, aproveitara-se das primeirassombras da noite para atingir as catacumbas.Passava das dezenove horas, quando ambas se ocultavam entre aspedras abandonadas que davam acesso aos subterrâneos, onde seamontoava a velha poeira dos mortos.Num vasto espaço abobadado, que servira outrora às assembléiasdas cooperativas funerárias," Emannuel,"reunia-se grande número de pessoas em torno da figura simpática egenerosa do culto pregador, que chegara da Síria distante. A um canto,erguia-se improvisada tribuna, para onde, dai a minutos, subia João deCleofas, dentro do halo de doçura que lhe aureolava a singularindividualidade.O apóstolo de Antioquia trazia à cabeça os primeiros cabelosbrancos e toda a sua figura estava saturada de forte magnetismo pessoal,que ligava intimamente a sua personalidade a quantos se lheaproximavam, levados pela doce afinidade da crença e dos sentimentosprofundos.Todos os presentes pareciam empolgados por sua palavra sedutorae impressionante, que se fez ouvir por quase duas horas sucessivas,caindo no coração do auditório como orvalho sublime da eloquênciaceleste. Conceitos elevados e proféticas observações ressoavam pelasarcadas silenciosas e sombrias, fracamente iluminadas pela claridade dealgumas tochas.De fato, a assembléia tinha razão de se eletrizar com aqueledoloroso e sublime profetismo, porque João de Cleofas pronunciavaprofunda alocução, mais ou menos nestes termos:- Irmãos, seja convosco a paz do Cordeiro de Deus, Nosso SenhorJesus-Cristo, na intimidade da vossa consciência e no santuário do vossocoração!...O santo patriarca de Antioquia, nas suas preces e meditações decada dia, recebeu numerosas revelações do Messias, ordenando a vindade um mensageiro ao ambiente de vossos trabalhos na capital do mundo,a fim de anunciar-vos grandes coisas...Pelas revelações do Espírito Santo, os cristãos desta cidadeimpiedosa foram escolhidos pelo Cordeiro para o grande sacrifício. E euvos venho anunciar nossa breve entrada no Reino de Jesus, em nome dosseus apóstolos bem-amados!..." Emannuel,"... 307Sim, porque aqui, onde todas as glórias divinas foram escarnecidase humilhadas pela impenitência das criaturas, se hão-de travar osprimeiros grandes embates das forças do bem e do mal, preludiando oestabelecimento definitivo, no mundo, da divina e eterna mensagem doEvangelho do Senhor!Na última reunião geral dos crentes de Antioquia, manifestaram-seas vozes do céu, em línguas de fogo, como aconteceu nos dias gloriososdo cenáculo dos apóstolos, depois da divina ressurreição do nossoSalvador; e o vosso servo, aqui presente, foi escolhido para emissáriodessas noticias confortadoras, porque as vozes celestes nos prometem oReino do Senhor, em breves dias...Amados, acredito que estamos em vésperas dos mais atrozestestemunhos da nossa fé, pelos sofrimentos remissores, mas a cruz doCalvário deverá iluminar a penosa noite dos nossos padecimentos...Eu também tive a felicidade de ouvir a palavra do Senhor, nas horasderradeiras da sua dolorosa agonia, à face deste mundo. E que pedia ele,meus queridos, senão o perdão infinito do Pai para os algozes implacáveisque o atormentavam? Sim, não duvidemos das revelações do céu...Verdugos inflexíveis rondam nossos passos e eu vos trago a mensagemdo amor e da fortaleza em Nosso Senhor Jesus-Cristo!Roma batizará sua nova fé com o sangue dos justos e dosinocentes; mas, também importa considerar que o Cordeiro imáculo deDeus Todo-Poderoso se imolou no madeiro infamante, para resgatar ospecados e aviltamentos do mundo!...Andaremos, talvez, nestas vias suntuosas, como em novas ruas deuma Jerusalém apodrecida, cheia de desolação e de amargura... Clamamas vozes celestes que, aqui, seremos desprezados, humilhados,vilipendiados e vencidos; mas, a vitória suprema do Senhor nos esperaalém das palmas espinhosas do martírio, nas claridades doces do seureino, inacessível ao sofrimento e à morte!..." Emannuel,"Lavaremos com o nosso sangue e as nossas lágrimas a iniquidadedestes mármores preciosos, mas, um dia, irmãos meus, toda estaBabilônia de inquietação e de pecado ruirá, fragorosamente, ao peso desuas misérias ignóbeis... Um furacão destruidor derrubará os falsos ídolose confundirá as pretensiosas mentiras dos seus altares... Tormentasdolorosas do extermínio e do tempo farão chover sobre este Impériopoderoso as ruínas da pobreza e do mais triste esquecimento... Os circosda impiedade hão-de desaparecer sob um punhado de cinzas, o Fórum e oSenado dos impenitentes hão-de ser confundidos pela suprema justiçadivina, e os guerreiros orgulhosos desta cidade pecadora rastejarão umdia, como vermes, pelas margens do mesmo Tibre que lhes carreia ainiquidade!...Então, novos Jeremias hão-de chorar sobre os mármores, à piedosaluz da noite... os suntuosos palácios destas colinas soberbas e donosascairão em penoso torvelinho de assombros e, sobre os seus monumentosde orgulho, de egoísmo e vaidade, gemerão os ventos tristes das noitessilenciosas e desertas...Felizes todos aqueles que chorarem agora, por amor ao DivinoMestre; venturosos todos os que derramarem seu sangue pelas sublimesverdades do Cordeiro, porque no céu existem as moradas divinas para osbem-aventurados de Jesus...Falava a voz suave e terrível do emissário da igreja de Antioquia esuas palavras ressoavam no profundo silêncio das abóbadas ermas.Cerca de duas centenas de pessoas ali se encontravam, ouvindo-oatentamente.Quase todos os cristãos presentes choravam, embevecidos. Noíntimo das almas pairava uma exaltação suave e mística, fazendo-lhessentir as doces emoções de todos aqueles apóstolos anônimos, quetombaram nas arenas ignominiosas dos circos, para cimentar com sanguee lágrima a edificação da nova fé." Emannuel,"...Depois das profecias singulares e dolorosas, que encheram todosos olhares de clarões indefiníveis de alegria interior, na antevisão doglorioso Reino de Jesus, João foi consultado por numerosos confrades arespeito de vários assuntos de interesse geral para a marcha edesenvolvimento da nova doutrina, tal como acontecia nas primitivasassembléias do Cristianismo nascente, e a todos atendia com as maisfrancas expressões de bondade fraterna.Interpelado, por um dos presentes, quanto ao motivo de sua alegriaradiosa, quando as revelações do Espírito Santo anunciavam tão grandesprovações e tantos padecimentos, o generoso emissário respondeu comsublimado otimismo:- Sim, meus amigos, não podemos esperar senão o sagradocumprimento das profecias anunciadas, mas devemos considerar comjúbilo que se Jesus permite aos ímpios a realização de monumentosmaravilhosos, como os desta cidade suntuosa e apodrecida, que nãoreservará ele, na sua infinita misericórdia, aos homens bons e justos, nasclaridades do seu Reino?Aquelas respostas consoladoras caiam na alma da numerosaassembléia, como bálsamo dulcificante.Palavras de amor e saudações afetuosas eram trocadas entre todos,com as mais doces demonstrações de júbilo e fraternidade.Lívia e Ana tinham um clarão de alegria íntima a lhes brilhar nosolhos calmos.Ao fim da reunião, todos se levantaram para as preces singelas eespontâneas das primitivas lições do Cristianismo, em fontes puras.A voz do emissário de Antioquia, ainda uma vez, se fez ouvir,brilhante e clara:- Pai Nosso, que estais nos céus, santificado seja o vosso nome,venha a nós o vosso Reino de misericórdia, seja feita a vossa vontade,assim na Terra, como nos Céus..." Emannuel,"Todavia, nesse instante, a palavra meiga e comovedora foi abafadapor sinistro tinir de armaduras.- É aqui, Luculo!... - gritava a voz estentórica do centurião ClódioVarrus, que avançava, com os seus numerosos pretorianos, para a massaatônita dos cristãos indefesos, constituída, na sua maioria, de mulheres.Alguns crentes mais inflamados começaram então a apagar astochas, provocando as trevas para a confusão e o tumulto, mas João deCleofas descera da tribuna com a sua figura radiosa e impressionante.- Irmãos - gritou com voz estranha e vibrante no seu apelo, como quesaturado de extraordinário magnetismo -, recomendou o Senhor quejamais colocássemos a luz sob o alqueire! Não apagueis a claridade quedeve iluminar o nosso exemplo de coragem e de fé!...A esse tempo, os dois centuriões presentes já haviam articulado assuas forças, em comum, organizando os cinqüenta homens que tinhamvindo, sob suas ordens, para a hipótese de uma resistência.Viu-se, então, o apóstolo de Antioquia caminhar com desassombro,sob o pasmo silencioso dos presentes, dirigindo-se a Luculo Quintilius,estendendo-lhe os braços pacificamente e solicitando com empenho:- Centurião, cumpre a tua tarefa sem receio, porque eu não vim aRoma senão para as glórias do sacrifício.O preposto do Império não se comoveu com essas palavras e,depois de brandir ao rosto do missionário os copos de sua espada, emdois tempos amarrou-lhe os braços, impossibilitando-lhe os movimentos.Dois jovens crentes, dando largas ao seu temperamento ardoroso esincero, revoltados com a crueldade, desembainharam as armas, quereluziram à claridade pálida daquele interior de penum-" Emannuel,"...bra, avançando para os soldados num gesto supremo de defesa eresistência, mas João de Cleofas advertiu ainda uma vez, com a suapalavra magnética e profunda:- Meus filhos, não repitais neste recinto a cena dolorosa da prisão doMessias. Lembrai-vos de Malcus e guardai a vossa espada na bainha,porque os que ferem com o ferro, com o ferro serão feridos...Houve, então, na assembléia, um movimento de quietude e deassombro. A coragem serena do apóstolo contagiara todos os corações.Nos grandes movimentos da vida, há sempre uma vibração espiritualque flui doutros mundos, para conforto dos míseros viajores da jornadaterrestre.Observou-se, desse modo, o inaudito e inesperado. Todos ospresentes imitaram o apóstolo valoroso, entregando os braços inermespara o sacrifício.No seu doloroso momento, Lívia enchera-se de uma coragem quenunca havia possuído. Diante da sua figura nobre e da sua indumentáriade patrícia detiveram-se, longamente, os olhares significativos dosverdugos. Naquela assembléia, era ela a única mulher que ostentava asinsígnias do patriciado romano.Clódio Varrus cumpria sua tarefa algo respeitoso e, daí a minutos, apesada caravana estava a caminho da prisão, dentro das sombrasespessas da meia-noite.O cárcere onde os cristãos iam passar tantas horas ao relento, emangustiosa promiscuidade, que.. de algum modo, representava para elessuave consolo, ficava anexo ao grande circo, sobre cujas proporçõesgigantescas somos obrigados a deter nossas vistas, dando ao leitor umafraca idéia da sua grandeza.O Circo Máximo ficava situado justamente no vale que separa oPalatino do Aventino, erguen-" Emannuel,"do-se, ali, como uma das mais belas maravilhas da cidade invicta.Edificado nos primórdios da organização romana, suas proporçõesgrandiosas se haviam desenvolvido com a cidade e, ao tempo de DomícioNero, tal era a sua extensão, que ocupava 2190 pés de comprimento, por960 de largura, terminando em semicírculo, com capacidade para trezentosmil espectadores comodamente instalados. De ambos os lados, corriamduas ordens de pórticos, superpostos, ornados de colunas preciosas ecoroadas de terraços confortáveis. Naquele luxo de construções e demasiade ornamentos, viam-se tascas numerosas e inúmeros lugares dedevassidão, a cuja sombra dormiam os miseráveis e repousava a maioriado povo, embriagado e amolecido nos prazeres mais hediondos. Seistorres quadradas, denotando as mais avançadas expressões de bom gostoda arquitetura da época, dominavam os terraços, servindo de camarotesluxuosos às personalidades mais distintas, nos espetáculos de grandegala. Largos bancos de pedra, dispostos em anfiteatro, corriam por trêslados, localizando-se, em seguida, em linha reta, o espaço ocupado peloscárceres, de onde saíam os cavalos e carros, bem como escravos eprisioneiros, feras e gladiadores, para os divertimentos preferidos dasociedade romana. Sobre os cárceres, erguia-se o suntuoso pavilhão doImperador, de onde as mais altas autoridades e áulicos acompanhavam oCésar nos seus entretenimentos. A arena era dividida longitudinalmentepor uma muralha de seis pés de altura, por doze de largura, erguendo-sesobre ela altares e estátuas preciosas, que ostentavam bronzes finos edourados. Bem no centro dessa muralha, imprimindo um traço majestosode grandeza ao ambiente, levantava-se, à altura de cento e vinte pés, ofamoso obelisco de Augusto, dominando a arena colorida de vermelho ede verde, dando a impressão de relva deliciosa que se tingissesubitamente de flores de sangue." Emannuel,"...Os míseros prisioneiros daquela caçada humana foram atirados auma larga dependência dos cárceres, nas primeiras horas da madrugada.Os soldados os despojaram, um a um, dos objetos de valor, ou daspequenas importâncias em dinheiro que traziam consigo. As própriassenhoras não escaparam ao esbulho humilhante, sendo roubadas nassuas jóias mais preciosas. Apenas Lívia, pelo respeito que inspiravamsuas vestes, foi poupada ao exame infamante.Num gabinete privado, Clódio Varrus dava ciência ao seu superior,Cornélio Rufus, do êxito da diligência que lhe fôra cometida aquela noite.- Sim - exclamava Cornélio, satisfeito -, pelo que vejo, a festa deamanhã correrá a inteiro contento do Imperador. Esta primeira caçada decristãos era essencial ao glorioso feito das grandes homenagens aossenadores.Mas, escuta - continuava ele mais discretamente, referindo-se a Lívia-, quem é essa mulher que traz a toga das matronas da mais alta classesocial?- Ignoro - respondeu o centurião, assaz pensativo. Aliás, muito meadmirei de encontrá-la em tal ambiente, mas cumpri severamente asvossas ordens.- Fizeste bem.Todavia, como se estivesse adotando intimamente uma providêncianova, Cornélio Rufus sentenciou:- Deixá-la-emos aqui até amanhã, até o momento do espetáculo,quando, então, poderá ser posta em liberdade.- E porque não a libertamos desde já?- Ela poderia, na sua condição de nobreza, provocar algummovimento de protesto contra a decisão de César e isso nos colocaria empéssima situação. E como essas miseráveis criaturas serão atiradas àsferas, na qualidade de escravos e condenados à última pena, nosderradeiros divertirem-" Emannuel,"tos da tarde, não convém nos comprometermos perante a sua família.Retendo-a aqui, satisfazemos os caprichos de Nero e, soltando-a emseguida, não nos incompatibilizaremos com os que gozam dos favores dasituação.- É verdade; essa é a solução mais razoável. Contudo, por quemotivo essas criaturas serão condenadas como escravos, quandodeveriam morrer como cristãos, pois tão somente essa é a causa de suajusta condenação? A razão de sua morte não está na humilhante doutrinaque professam?- Sim, mas temos de ponderar que o Imperador não se sente aindacom bastante força para enfrentar a opinião dos senadores, dos edis e devárias outras autoridades, que, certamente, desejariam advogar a causadestes infelizes, em desprestígio dele e no de seus mais íntimosconselheiros... Mas, não duvido de que essa perseguição aos adeptos daodiosa doutrina do Crucificado será oficializada em breves dias (1), tãologo os poderes imperiais estejam mais fortemente centralizados.Esperemos, pois, mais algum tempo e, até lá, fortifiquemos oprestigio de Nero, porque o detentor do poder deve representar sempre omelhor dos amigos.Enquanto isso ocorria, todos os cristãos se dividiam em grupos, nointerior do cárcere, trocando as mais íntimas impressões sobre oangustioso transe.Em dado momento, todavia, abriu-se uma porta, por onde surgiu afigura detestável de Clódio, exclamando, ironicamente:__________(1) A maioria dos historiadores do Império Romano assinala as primeirasperseguições ao Cristianismo somente no ano de 64; entretanto, desde 58 alguns dosfavoritos de Nero conseguiram iniciar o criminoso movimento, salientando-se que oscristãos da época, antes do grande incêndio da cidade, eram levados aos sacrifícios, naqualidade de escravos misérrimos, para divertimento do povo. - Nota de Emmanuel." Emannuel,"...- Cristãos, não há demência de César para os que professam asperigosas doutrinas do Nazareno. Se tendes alguns negócios materiais aresolver, lembrai-vos de que é muito tarde, porquanto poucas horas vosseparam das feras da arena, no circo.Novamente, a pesada porta se fechou sobre a sua figura, enquantoos míseros condenados se surpreendiam amargamente com a notíciainquietante e dolorosa.Através das grades reforçadas, podiam observar os movimentos dosnumerosos soldados que os guardavam, dando guarida, nos primeirosinstantes, às mais angustiosas conjeturas. Depressa, porém, voltara-lhes acalma e os prisioneiros se aquietaram com humildade. Alguns faziampreces fervorosas, enquanto outros trocavam pensamentos em voz baixa.Os carcereiros não tardaram a separar as mulheres, instalando-asem dependência contígua, onde cada grupo de crentes ficou de almavoltada para Jesus, nos instantes supremos em que aguardavam a morte.De manhãzinha, mal o Sol havia surgido de todo nas amplitudes doformoso firmamento romano, vamos encontrar Ana e Lívia em conversaçãoquase serena, a sós, numa espécie de biombo dos muitos existentes naespaçosa sala reservada às mulheres, enquanto numerosas companheirasaparentavam descansar, estremunhadas.- Senhora - exclamava a serva, algo preocupada -, noto que vostratam aqui com simpatia e deferência. Porque não pleiteardesimediatamente a vossa liberdade? Não sabemos o que de sinistro e terrívelnos ocorrerá nas horas penosas deste dia!...- Não, minha boa Ana - respondeu Lívia, tranqüila -, deves ficar certade que minhalma está convenientemente preparada para o sacrifício. Eainda que me não sentisse confortada, não deve-" Emannuel,"rias apresentar-me semelhante alvitre, porque Jesus, sendo embora oMestre de todos os mestres e Senhor do reino dos céus, não pleiteou sualiberdade junto aos algozes que o atormentavam e oprimiam...- Isso é verdade, senhora. Mas, acredito que Jesus saberiacompreender o vosso gesto, porque tendes ainda um esposo e uma filha...- acentuou a velha empregada, como a lhe recordar as obrigaçõeshumanas.- Um esposo? - retrucou a nobre matrona, com heróica serenidade. -Sim, agradeço a Deus a paz que me concedeu, permitindo que Públio medemonstrasse a sua contrição nestes últimos dias. Para mim, só essatranqüilidade era essencial e necessária, porque o esposo, na sua feiçãohumana, eu o perdi há longos vinte e cinco anos... Debalde sacrifiqueitodos os impulsos de minha mocidade para lhe provar o meu amor e aminha inocência, em contraposição à calúnia com que humilharam meunome. Por um quarto de século tenho vivido com as minhas orações e asminhas lágrimas... Angustiosa tem sido a minha saudade e dolorosíssimoo triste degredo espiritual a que fui relegada, no plano dos meus afetosmais puros.Não creio possa reviver para mim, no coração do velhocompanheiro, a confiança antiga, cheia de felicidade e ternura...Quanto à filha, entreguei-a a Jesus, desde os dias de sua infância,quando me vi obrigada à terrível separação do seu afeto. Afastada de suaalma por imposição de Públio, tive de sufocar os mais doces entusiasmosdo coração materno. Sabe o Senhor de minhas ansiosas angústias, nasnoites silenciosas e tristes em que lhe confiava meus amargurosospadecimentos. Além disso, Flávia tem hoje um marido que procurou isolá-la ainda mais do meu pobre espírito, receoso da minha fé, qualificada portodos de demência..." Emannuel,"...E depois de ligeira pausa, na sua confiança dolorosa, acentuou comserena tristeza:- Para mim, não pode haver o reflorescimento das esperanças aquina Terra... Só aspiro, agora, a morrer em paz confortadora com a minhaconsciência.- Mas, senhora - tornou a criada com veemência -, hoje é o dia damaior vitória do vosso esposo...- Não me esqueci dessa circunstância. Faz, porém, vinte e cincoanos que Públio segue rumo oposto ao meu caminho e não será demaisque, buscando ele hoje a suprema recompensa do mundo, como triunfofinal dos seus desejos, busque eu também não a vitória do céu, que nãomereci, mas a possibilidade de mostrar ao Senhor a sinceridade da minhafé, ansiosa pelas bênçãos lucificantes da sua infinita misericórdia.Depois, minha querida Ana, é muito grato ao coração sonhar com oseu reino santificado e misericordioso... Vermos, de novo, as mãos suavesdo Messias abençoando-nos o espírito, com os seus gestos amplos decaridade e de ternura!...Lívia tinha um clarão divino nos olhos, que se molhavam emlágrimas espontâneas, como se houvesse caído sobre o seu coração oorvalho do Paraíso.Via-se, claramente, que suas idéias não estavam na Terra, mas, sim,flutuando num mundo de radiosidades suavíssimas, cheio de recordaçõescarinhosas do passado e saturado de ternas esperanças no amor deJesus-Cristo.- Sim - continuava falando, como se fôra tão somente para a suaprópria alma, na intimidade do coração -, ultimamente, muito me tenholembrado do Divino Mestre e de suas palavras inesquecíveis... Naquelatarde inolvidável de suas pregações, ainda era crepúsculo e o céu estavarecamado de estrelas, como se as luzes do firmamento desejassemtambém ouvi-lo... As ondas do Tiberíades," Emannuel,"que se apresentavam, freqüentemente, tão rumorosas ao fustigo do vento,vinham, silenciosas, desfazer-se num leque de espumas, de encontro àsbarcas da praia, numa doce expressão de respeito, quando se faziam ouvirna paisagem os seus divinos ensinamentos! Tudo se aquietava de manso;era de ver-se o sorriso angelical das criancinhas, à claridade terna dosseus olhos de pastor dos homens e da Natureza...Nos meus anseios, minha boa Ana, desejava adotar todos aquelespetizes maltrapilhos e famintos, que surgiam nas assembléias popularesde Cafarnaum; mas, meu propósito materno de amparar aquelas mulheresdesprezadas e aquelas crianças andrajosas, que viviam ao desamparo, nãopodia realizar-se neste mundo... Todavia, suponho que hei-de realizar osideais de minha alma, se Jesus me acolher nas claridades do seu Reino...A velha serva chorava emocionada, ouvindo estas expansõestocantes, comovedoras.Depois de longa pausa, continuou como se desejasse bemaproveitar as derradeiras horas:- Ana - disse com enérgica tranqüilidade -, ambas fomos chamadasao testemunho sagrado da fé, nas horas que passam e que devem sergloriosas para o nosso espírito. Perdoa-me, querida, se algum dia te ofendio coração com alguma palavra menos digna. Antes que Simeão teentregasse à minha guarda, já eu te amava ternamente, como se fôrasminha irmã ou minha própria filha!...A serva chorava, emocionada, enquanto Lívia, carinhosa,continuava:- Agora, querida, tenho um derradeiro pedido a fazer-te...- Dizei, senhora - sussurrou a serva, com os olhos rasos de lágrimas-, antes de tudo, sou vossa escrava.- Ana, se é verdade que temos de testemunhar ainda hoje a nossa fé,eu desejava comparecer ao sacrifício como aquelas criaturasdesamparadas," Emannuel,"...que ouviam as consolações divinas junto do Tiberíades. Se puderesatender-me, troca hoje comigo a toga da senhora pela túnica da serva!Desejava participar do sacrifício com as vestes humildes e pobres daplebe, não porque me sinta humilhada perante as pessoas da minhacondição, no momento ditoso do testemunho, mas porque, arrancandopara sempre os derradeiros preconceitos do meu nascimento, daria àminha consciência cristã o conforto do último ato de humildade... Eu, quenasci entre as púrpuras da nobreza, desejava buscar o Reino de Jesuscom as vestiduras singelas dos que passaram pelo mundo no torvelinhodoloroso das provações e dos trabalhos!...- Senhora!... - obtemperou a serva, hesitante...- Não vaciles, se queres proporcionar-me a satisfação derradeira.Ana não pôde recusar, ante os piedosos propósitos da generosacriatura e, num instante, na penumbra daquele improvisado recanto que asseparava das demais companheiras, trocaram a toga e a túnica, que eramtão somente uma espécie de manto, sobre a complicada indumentária daépoca, tendo Lívia adornado a toga de lã finíssima, agora no corpo daserva, com as jóias discretas que trazia usualmente consigo. Depois deentregar-lhe dois anéis preciosos e um gracioso bracelete, apenas umadorno de valor lhe restava, mas Lívia, passando a mão pelo pescoço eacariciando um pequeno colar, com imensa ternura, exclamou comdecisão para a companheira:- Está bem, Ana, fica-me apenas este pequeno colar, em que trago ocamafeu com o perfil de Públio, em alto relevo, e que é um presente deleno dia longínquo das nossas núpcias. Morrerei com esta jóia, como se elafôra um símbolo de união entre os meus dois amores, que são meu maridoe Jesus-Cristo..." Emannuel,"Ana aceitou, sem protesto, todas as piedosas imposições dasenhora e, em breves instantes, na sua antiga beleza virginal, o porte daserva humilde estava tocado de imponente nobreza, como se ela fosseuma soberana figura de marfim velho.Para todos os prisioneiros, na terrível inquietação que os oprimia,embora as doces claridades interiores da prece que os integrava naprecisa coragem moral para o sacrifício, as horas do dia passavampesadas e vagarosas. João de Cleofas, com o resignado heroísmo do seufervor religioso, conseguiu manter aceso o calor da fé em todos oscorações: não faltaram os companheiros mais animosos que, na exaltaçãode sua confiança na Providência Divina, ensaiaram os próprios cânticos deglória espiritual, para o instante supremo do martírio.No palácio do Aventino, todos os domésticos mais íntimosacreditavam na permanência de Lívia em casa da filha; mas, um poucoantes do meio-dia, Flávia Lentúlia veio ter com o pai, a fim de beijá-lo antesdo triunfo.Informada pelo senador, quanto aos seus projetos de restabelecer aantiga felicidade doméstica, com as mais expressivas demonstraçõespúblicas de confiança e de amor pela esposa, Flávia, com grande surpresapara o pai, procurava a mãe para as manifestações de sua justificadaalegria.Angustiosa interrogação se estampou, desse modo, em todos ossemblantes.Depois de vinte e cinco anos, era a primeira vez que Lívia e Ana seausentavam de casa, de um dia para outro, provocando os maisjustificados receios.O senador sentiu o coração ferido de presságios angustiosos, masos escravos já se encontravam preparados para conduzi-lo ao Senado,onde as primeiras cerimônias teriam início depois do meio-dia, com apresença de César. Observando-lhe a aflição e os olhares ansiosos einquietos, Flávia" Emannuel,"...Lentúlia buscou tranqüilizá-lo com estas palavras, que dissimulavam assuas próprias aflições:- Vai tranqüilo, meu pai. Voltarei agora a casa, mas não medescuidarei das providências necessárias, porque, quando regressares, detarde, com a auréola do triunfo, quero abraçar-te com a mamãe, entre asflores do vestíbulo, a fim de podermos ambas receber-te com as pétalas donosso amor desvelado de todos os dias.- Sim, filha - respondeu o senador com uma sombra de angústia -,permitam os deuses que assim seja, porque as rosas do lar serão paramim as melhores recompensas!...E tomando a liteira, saudado por amigos numerosos que oesperavam, Públio Lentulus demandou o Senado, onde multidõesentusiásticas esfuziavam de alegria, em sinal de agradecimento pela fartadistribuição de trigo com que as autoridades romanas haviamcomemorado aquele evento, aplaudindo os homenageados com a gritariaensurdecedora das grande manifestações populares.Da nobre casa política, onde os mais elegantes torneios de oratóriaforam proferidos para enaltecimento da personalidade do Imperador eantecedidos pela figura impressionante do César, que nunca desdenhou ofausto retumbante dos grandes espetáculos, na sua feição de antigocomediante, dirigiram-se os senadores para o famoso Templo de Júpiter,onde os homenageados receberiam a auréola de mirto e rosas, como ostriunfadores, obedecendo à inspiração de Sêneca, que tudo envidava pordesfazer a penosa impressão do governo cruel do seu ex-discípulo, que,afinal, decretaria também a sua morte no ano 66. No Templo de Júpiter, ogrande artista que era Domício Nero coroou a fronte de mais de cemsenadores do Império, sob a bênção convencional dos sacerdotes,demorando-se as cerimônias na sua complicada feição religiosa, poralgumas horas sucessivas. Somente depois das 15 horas, saía do templo,em direção ao Circo Má-" Emannuel,"ximo, o grosso e desmesurado cortejo. A compacta procissão, tocada deaspecto solene, poucas vezes observado em Roma nos séculosposteriores, dirigiu-se primeiramente ao Fórum, atravessando pela massaformidável de povo, com o máximo respeito.Para esclarecimento dos leitores, passemos a dar pálida idéia domaravilhoso cortejo, de conformidade com as grandes cerimônias públicasda época.Na frente, vai um carro, soberba e magnificamente ornamentado,onde se instala molemente o Imperador, seguindo-se-lhe numerososcarros nos quais se aboletam os senadores homenageados, bem como osseus áulicos preferidos.Domício Nero, junto de um dos favoritos mais caros, passasobranceiro no seu traje vermelho de triunfador, com o luxo espalhafatosoque lhe caracterizava as atitudes.Em seguida, numeroso grupo de jovens de quinze anos passa, acavalo e a pé, escoltando as carruagens de honra e abrindo a marcha.Passam, depois, os cocheiros guiando as bigas, as quadrigas, asséjuges, que eram carros a dois, a quatro e a seis cavalos, para as loucasemoções das corridas tradicionais.Seguindo-se aos aurigas, quase em completa nudez, surgem osatletas, que farão os números de todos os grandes e pequenos jogos datarde; após eles, vão os três coros clássicos de dançarmos, o primeiroconstituído por adultos, o segundo dos adolescentes insinuantes, e oterceiro por graciosas crianças, todos ostentando a túnica escarlateapertada com uma cinta de cobre, espada ao lado e lança na mão,salientando-se o capacete de bronze enfeitado de penachos e cocares, quelhes completam a indumentária extravagante. Esses bailarinos passam,seguidos pelos músicos, exibindo movimentos rítmicos e executandobailados guerreiros, ao som de harpas de marfim, flautas curtas enumerosos alaúdes." Emannuel,"... 323Depois dos músicos, qual bando de sinistros histriões, surgem osSátiros e os Silenos, personagens estranhas, que apresentam máscarashorripilantes, cobertos de peles de bode, sob as quais fazem os gestosmais horrendos, provocando o riso frenético dos espectadores, com assuas contorções ridículas e estranhas. Sucedem-se novos gruposmusicais, que se fazem acompanhar de vários ministros secundários doculto de Júpiter e outros deuses, levando nas mãos grandes recipientes àguisa de turíbulos de ouro e de prata, de onde espiralam inebriantesnuvens de incenso.Seguindo os ministros, com adornos de ouro e pedras preciosas,passam as estátuas das numerosas divindades arrancadas, por ummomento, dos seus templos suntuosos e sossegados. Cada estátua, nasua expressão simbólica, faz-se acompanhar de seus devotos ou dos seusvariados colégios sacerdotais. Todas as imagens, em grande aparato, sãoconduzidas em carros de marfim ou de prata, puxados por cavalosimponentes, guiados delicadamente por meninos pobres de dez a dozeanos, que tenham pai e mãe vivos, e escoltados, com atenção, pelospatrícios mais em evidência na grande cidade.Era tudo um deslumbramento de coroas de ouro, púrpuras, luxuosostecidos do Oriente, metais brilhantes, cintilações de pedras preciosas.Fecha o cortejo a última legião de sacerdotes e ministros do culto,seguindo-lhes a massa interminável do povo anônimo e desconhecido.A gigantesca procissão penetra o Grande Circo com granderecolhimento, em observância às mais elevada solenidades. O silêncio éapenas cortado pelas aclamações parciais dos diferentes grupos decidadãos, quando passa a estátua da divindade que lhes protege asatividades e a profissão, na vida comum.Depois de um volteio solene pelo interior do circo, as silenciosasfiguras de marfim são depostas na edícula, junto aos cárceres, sob osfulgores ra-" Emannuel,"diosos do pavilhão do Imperador e onde se fazem as preces e sacrifíciosde nobres e plebeus, enquanto o César e seus áulicos, em companhia dospolíticos homenageados naquela tarde, fazem numerosas e extraordináriaslibações.Terminadas aquelas cerimônias, desaparece, igualmente, osilencioso recolhimento das multidões.Começam, então, os jogos sob os olhares ávidos de mais detrezentos mil espectadores, que não se circunscrevem às massascompactas, comprimidas nas dimensões grandiosas do luxuoso recinto.Os palácios do Aventino e do Palatino, bem como os elegantes terraços doCélio, servem também de arquibancadas para a numerosa assistência, quenão pôde ver de mais perto o formidando espetáculo.Roma diverte-se e todas as suas classes estão deslumbradas.A competição dos carros é o primeiro número a ser apresentado,mas os aplausos entusiásticos somente se verificam quando morrem naarena os primeiros cocheiros e os primeiros cavalos espatifados.Os jogadores distinguem-se pelas cores da túnica. Há os que sevestem de vermelho, de azul, de branco e de verde, representando váriospartidos, enquanto a platéia se reparte em grupos exaltados eenlouquecidos. Gritam apaixonadamente os admiradores e os sócios decada facção, traduzindo a sua alegria, o seu receio, a sua angústia ou asua impaciência. Ao fim dos primeiros números, verificam-se desoladorascenas de luta entre os adversários desse ou daquele partido, no seio daenorme assistência, havendo sérios tumultos, imediatamente degeneradosem sanha criminosa, de onde são retirados, em seguida, alguns cadáveres.Após as corridas, houve uma caçada fabulosa, levando-se a efeitoterríveis combates entre homens e feras, nos quais alguns escravosjovens perderam a vida em trágicas circunstâncias, ante as aclamaçõesdelirantes das massas inconscientes." Emannuel,"...O Imperador sorri, satisfeito, e continua nas suas libações pessoais,vagarosamente, junto de alguns amigos mais íntimos. Seis harpistasexecutam as melodias prediletas no pavilhão, enquanto os alaúdes fazemouvir, igualmente, sons maviosos e claros.Outros jogos passaram, vários, divertidos e terríveis, e, depois dealgumas danças exóticas, executadas na arena, viu-se um áulico prediletode Domício Nero inclinar-se discretamente, falando-lhe ao ouvido:- Chegou o instante, ó Augusto, da grande surpresa dos jogos destatarde!- Entrarão, agora, os cristãos na arena? - perguntou o Imperador emvoz baixa, com o seu impiedoso e frio sorriso.- Sim, já foi dada ordem para que fiquem em liberdade na arena osvinte leões africanos, tão logo se apresentem em público os condenados.- Bela homenagem aos senadores! - glosou Nero, sarcasticamente. -Esta festividade foi uma feliz lembrança de Sêneca, porque tereioportunidade de mostrar ao Senado que a lei é a força e toda a força deveestar comigo.Poucos minutos faltavam para a apresentação do númerosurpreendente da tarde, quando Clódio Varrus aconselhava a um dosauxiliares de confiança:- Aton - dizia ele circunspecto -, podes providenciar agora a entradade todos os prisioneiros na arena, mas afasta com discrição uma mulherque lá se conserva com a toga do patriciado. Deixa-a por último,expulsando-a em seguida para a rua, porque não desejamos complicaçõescom a sua família.O soldado fez sinal, como quem havia guardado fielmente a ordemrecebida, dispondo-se a cumpri-la e, daí a momentos, o numeroso grupode cristãos, sob impropérios e apupos dos mais baixos servido-" Emannuel,"res do Circo, encaminhava-se, impavidamente, para o sacrifício...Em primeiro lugar, ia João de Cleofas, murmurando intimamente asua derradeira prece.No instante, porém, de se abrir a grande porta, através da qual seouviam os rugidos ameaçadores das feras esfomeadas, Aton aproximou-se de Ana e, reparando-lhe a toga finíssima de lá, as jóias discretas que lheadornavam o porte enobrecido, bem como a delicada rede de ouro que lheprendia graciosamente os cabelos, exclamou respeitosamente, admiradoda nobreza de sua figura:- Senhora, ficareis aqui, até segunda ordem!A velha criada dos Lentulus trocou significativo e angustioso olharcom a sua senhora, respondendo, todavia, com serena altivez:- Mas, porquê? Pretendeis privar-me da glória do sacrifício?Aton e seus colegas se surpreenderam com aquela atitude deprofundo heroísmo espiritual, e aquele, depois de um gesto evasivo, queexprimia a vacilação da resposta que lhe competia dar, esclareceurespeitosamente:- Sereis a última!Aquela explicação pareceu satisfazê-la, mas Lívia e Ana, nesseinstante decisivo de separação, trocaram entre si um amoroso olhar,angustiado e inesquecível.Tudo, porém, fôra obra de alguns segundos, porque a porta sinistraestava agora aberta e as armas ameaçadoras dos prepostos de DomícioNero obrigavam os prisioneiros a demandar a arena, como um bloco decondenados ao terror da última pena.O venerável apóstolo de Antioquia entestou a fileira com serenidadevalorosa. Seu coração elevava-se ao infinito, em orações sinceras efervorosas. Em poucos instantes, todos os prisioneiros se encontravamreunidos à entrada da arena, saturados de uma força moral que, até então,lhes era" Emannuel,"...desconhecida. É que, detrás daquelas púrpuras suntuosas e alémdaqueles risos estridentes e impropérios sinistros, estava uma legião demensageiros celestes fortalecendo as energias espirituais dos que iamsucumbir de morte infamante, para regar a semente do Cristianismo comas suas lágrimas fecundas. Uma estrada luminosa, invisível aos olhosmortais, abrira-se nas claridades do firmamento e, por ela, descia todo umexército de arcanjos do Divino Mestre, para aureolar com as bênçãos dasua glória os valorosos trabalhadores da sua causa.Sob os aplausos delirantes e ensurdecedores da turba numerosa,soltaram-se os leões famintos, para a espantosa cena de impiedade, depavor e sangue, mas nenhum dos apóstolos desconhecidos, que iammorrer no depravado festim de Nero, sentiu as torturas angustiosas de tãohorrenda morte, porque o brando anestésico das potências divinas lhesbalsamizou o coração dorido e dilacerado no tormentoso momento.Fustigados pela angústia e pela aflição do instante derradeiro, ante opúblico sanguinário, os míseros sacrificados não tiveram tempo de sereunir na arena dolorosa. As feras famintas pareciam tocadas de horrívelansiedade. E enquanto se estraçalhavam corpos misérrimos, Domício Neromandava que todos os coros de dançarmos e todos os músicoscelebrassem o espetáculo com os cânticos e bailados de Roma vitoriosa.Incluindo-se a considerável assistência que se aglomerava nascolinas, quase meio milhão de pessoas vibrava em aplausosensurdecedores e espantosos, enquanto duas centenas de criaturashumanas tombavam espostejadas...Ingressando na arena, Lívia ajoelhara-se defronte do grande esuntuoso pavilhão do Imperador, onde buscou lobrigar o vulto do esposo,pela derradeira vez, a fim de guardar no fundo dalma a dolorosa expressãodaquele último quadro, junto da" Emannuel," imagem íntima de Jesus Crucificado, que inundava de emoções serenas oseu pobre coração dilacerado no minuto supremo. Pareceu-lhe divisar,confusamente, na doce claridade do crepúsculo, a figura ereta do senadorcoroado de rosas, como os triunfadores e, quando seus lábios seentreabriram numa última prece misturada de lágrimas ardentes que lheborbulhavam dos olhos, viu-se repentinamente envolvida pelas patasselvagens de um monstro. Não sentira, porém, qualquer comoção violentae rude, que assinala comumente o minuto obscuro da morte. Figurou-se-lhe haver experimentado ligeiro choque, sentindo-se agora embalada nunsbraços de névoa translúcida, que ela contemplou altamente surpreendida.Buscou certificar-se da sua posição, dentro do circo, e reconheceu, a seulado, a nobre figura de Simeão, que lhe sorria divinamente, dando-lhe asilenciosa e doce certeza de haver transposto o limiar da Eternidade.Naquele instante, dentro do camarim de honra do Imperador, PúblioLentulus sentiu no coração inexprimível angústia. No turbilhão daqueleensurdecedor vozerio, o senador nunca sentira tão fundo desalento e tãoamargo desencanto da vida. Horrorizavam-lhe agora aqueles tremendosespetáculos homicidas, de pavor e morte. Sem que pudesse explicar omotivo, seu pensamento voltou à Galileia longínqua, figurando-se-lhedivisar, novamente, a suave figura do Messias de Nazaré, quando lheafirmava: Todos os poderes do teu Império são bem fracos e todas assuas riquezas bem miseráveis!.Inclinando-se para o seu amigo Eufanilo Drusus, Públio desabafou apenosa impressão, discretamente:- Meu amigo, este espetáculo de hoje me apavora!... Sinto, aqui,emoções de angústia, como jamais experimentei em toda a vida... Serãoescravos destinados à última pena os que ora sucumbem, sob a crueldadedas feras violentas e rudes?" Emannuel,"...- Não creio - respondeu o senador Eufanilo, segredando-lhe aoouvido. - Corre o boato de que estes míseros condenados são pobrescristãos inofensivos, aprisionados nas catacumbas!...Sem saber explicar a razão do seu profundo desgosto, PúblioLentulus lembrou-se repentinamente de Lívia, mergulhando-se, aflito, nasmais penosas conjeturas.Enquanto ocorriam esses fatos, voltemos a examinar a situação deAna, logo após a entrada dos companheiros na arena do sacrifício. Certade que Jesus lhe havia reservado o último lugar no penoso momento domartírio, a antiga serva mantinha o espírito valoroso em orações sinceras eardentes. Seus olhos, porém, não abandonaram a figura de Lívia, que seafastava para um recanto da arena, onde se ajoelhara, chegando a fixar ogrande leão africano que lhe desferira um golpe fatal à altura do peito.Nesse instante, a pobre criatura sentiu algo de enfraquecimento, ante astremendas perspectivas do testemunho, mas, num relance, antes que suasidéias tomassem novo curso, Aton e mais um dos colegas acercaram-se,exclamando:- Senhora, acompanhai-nos!Observando que os soldados a faziam voltar ao interior, protestoucom energia:- Soldados, eu nada mais desejo, senão morrer igualmente, nestahora, pela fé em Jesus-Cristo!Mas, reparando-lhe a coragem indomável, o preposto do Impérioagarrou-a fortemente pelo braço, e, trazendo-a para uma passagem dointerior dos cárceres, que comunicava com a via pública, Aton dirigiu-lhe apalavra, quase ameaçadora.- Retirai-vos, mulher! Fugi sem demora, pois não desejamoscomplicações com a vossa família!E, dizendo-o, fechava a porta ampla, enquanto a antiga criada deLívia tudo compreendia agora. Angustiada, chegou imediatamente àconclusão de que a indumentária da senhora lhe salvara a vida," Emannuel,"no amargurado transe. Sentiu que o pranto lhe borbotava abundante dosolhos. Suas lágrimas eram bem um misto de inenarráveis sofrimentosmorais e no íntimo inquiria a si mesma a razão pela qual não a admitira oSenhor à glorificação dos sacrifícios daquela tarde memorável e dolorosa.Percebia o confuso rumor de mais de trezentas mil vozes, que seconcentravam em gritos retumbantes de aplauso, aclamando a corridasinistra das feras na sua caçada humana, e, passo a passo, carregandoconsigo o peso torturante de uma angústia sem termos, buscou o paláciodo Aventino, que não distava muito do circo ignominioso, lá penetrandodesalentada e silenciosa.Apenas alguns escravos mais íntimos faziam a guarda da residênciados Lentulus, como de costume nos grandes dias de festas populares, dasquais participavam quase todos os servos. Ninguém percebeu o retorno daserva, que conseguiu despojar-se da toga com a calma precisa. Alijou asjóias preciosas do vestuário, das mãos e dos cabelos e, ajoelhando-se noaposento, deixou que as lágrimas dolorosas corressem livremente, aoinfluxo das orações amargas que elevava a Jesus, sob o peso de suasangustiosas mágoas.Não chegou a saber quantos minutos infindos permaneceu naquelaatitude súplice e dolorosa, entre rogativas ardentes e amarguradasconjeturas sobre o seu inesperado afastamento das torturas do circo,sentindo-se indigna de testemunhar ao Salvador a sua fé profunda esincera, até que um rumor mais pronunciado lhe denunciava o regresso dosenador.Era quase noite e as primeiras estrelas brilhavam no azul doformoso céu romano.Penetrando no lar com o espírito inquieto e desalentado, PúblioLentulus atingiu o vestíbulo vazio, de alma opressa, sendo, porém,imediatamente procurado pelo servo Fábio Túlio, que, havia" Emannuel,"...muitos anos, substituíra Comênio, arrebatado pela morte naquele cargo deconfiança.Acercando-se do senador que entrara só, dispensando a companhiados amigos sob a alegação de que a esposa se encontrava gravementeenferma, exclamou o antigo serviçal com atencioso respeito:- Senhor, vossa filha manda comunicar, por um mensageiro, quecontinua providenciando, a fim de que tenhais notícias da senhora, dentrodo menor prazo possível.O senador agradeceu com leve sinal de cabeça, acentuando suaspenosas preocupações íntimas.Ana, contudo, na soledade de suas preces, no cômodo que lhe erareservado, verificando o regresso do amo, compreendeu o triste dever quelhe corria naquele instante inesquecível, de modo a cientificá-lo de todasas ocorrências e, em breves minutos, Fábio voltava a procurá-lo nos seusapartamentos, a fim de participar-lhe que Ana lhe pedia uma entrevista emparticular. O senador atendeu imediatamente à velha serva de sua casa,tomado de indefinível surpresa.Olhos inchados de chorar e com a voz freqüentemente entrecortadapor emoções rudes e penosas, Ana expôs todos os fatos, sem omitirnenhum detalhe dos trágicos incidentes, enquanto o senador, de olhosarregalados, tudo fazia por compreender aquelas confidências dolorosas,na sua incredulidade e no seu pavoroso espanto.Ao fim do terrível depoimento, álgido suor lhe corria da fronteatormentada, enquanto as têmporas lhe batiam assustadoramente.A princípio, desejou esmagar a criada humilde, como se o fizesse auma víbora venenosa, tomado das primeiras comoções de revolta do seuorgulho e da sua vaidade. Não queria acreditar naquela confissão horrívele angustiosa, mas o coração lhe batia apressadamente e seus nervos seexaltavam em vibrações lancinantes." Emannuel,"Públio Lentulus experimentou a dor mais terrível de sua misérrimaexistência. Todos os seus sonhos, todas as suas aspirações e carinhosasesperanças esboroavam-se penosamente, irremediavelmente, para todo osempre, sob a maré sombria das realidades tenebrosas.Sentindo-se o mais desventurado réu da justiça dos deuses, nomomento em que presumia efetivar a sua suprema ventura, nada maisenxergou à frente dos olhos, senão a realidade esmagadora da sua dorsem limites.Sob os olhares comovidos de Ana, que o observava receosa,levantou-se rígido e sem uma lágrima, com os olhos raiando pela loucura,tal a sua fixidez estranha e dolorosa, e como se fôra um fantasma derevolta, de dor, de vingança e sofrimento indefiníveis, sem nada responderà serva atônita, que rogava silenciosamente a Jesus lhe serenasse asangustiosas mágoas, deu alguns passos como um autômato em direção àporta, que abriu de par em par e por onde entraram as brisas suaves erefrigerantes da noite...Cambaleando de dor selvagem através do peristilo, caminhou,depois, resoluto, como se fosse disputar um duelo com as sombras, paradefender a esposa caluniada e traída, martirizada pelos criminososdaquela corte de infâmia, dirigindo-se com rapidez, sem observar odesalinho de suas vestes, para o circo, onde a plebe rematava as paixõesimpiedosas do seu César desalmado.Todavia, um espetáculo mais terrível se lhe deparou aos olhosagoniados, no insulamento da sua suprema angústia moral.Embriagados nos baixos instintos da sua perversa materialidade, ossoldados e o povo colocaram os restos sinistros do monstruoso banquetedas feras, naquela tarde inesquecível, nas eminências de postes e colunasimprovisados à maneira de tochas, e iluminavam todo o exterior do grande" Emannuel,"...recinto com o incêndio tétrico dos fragmentos de carne humana.Públio Lentulus sentiu toda a extensão da sua impotência diantedaquela demonstração suprema de horror e crueldade, mas avançou,cambaleante de dor, como ébrio ou louco, com espanto dos que o viam apé, em tais lugares, contemplando boquiaberto as tochas sinistras, feitasde cabeças disformes e combustas.Dava largas aos pensamentos doridos de angústia e de revolta,como se o seu espírito não passasse de um tigre encarcerado noarcabouço do peito envelhecido, quando notou a presença de doissoldados ébrios, em luta por causa de um delicado objeto, que lhe chamourepentinamente a atenção, sem que conseguisse explicar o motivo do seuinesperado interesse por alguma coisa.Era um pequeno colar de pérolas, do qual pendia precioso camafeuantigo. Seus olhos fixaram aquele objeto estranho e o coração adivinhou oresto. Ele o reconhecera. Aquela jóia fôra o presente de núpcias, feito àesposa idolatrada e somente agora se lembrava do apego carinhoso damulher ao camafeu que lhe guardava o próprio perfil da juventude,recordando a única afeição da sua mocidade.Postou-se à frente dos contendores, que se formalizaramimediatamente em atitude respeitosa, devida à sua presença.Interpelado com severidade, um dos soldados esclareceu humilde etrêmulo:- Ilustríssimo, esta jóia pertenceu a uma das mulheres condenadasàs feras, no espetáculo de hoje...- Quanto quereis pelo achado? - perguntou Públio Lentulus,sombriamente.- Comprei-a de um companheiro por dois sestércios.- Entregai-ma! - replicou o senador, em tom ameaçador e imperativo." Emannuel,"Os soldados entregaram-lhe o colar, humildemente, e o senador,revolvendo as vestes, retirou pesada bolsa de moedas de ouro, jogando-aaos contendores num gesto de nojo e de supremo desprezo.Públio Lentulus afastou-se do ambiente nefando, mal contendo aslágrimas que, agora, lhe subiam em torrente, do coração oprimido edilacerado.Apertando de encontro ao peito aquele adereço minúsculo, pareciatomado de força misteriosa. Afigurava-se-lhe que, conservando aqueleúltimo vestígio da ""toilette"" de sua mulher, arquivara, junto de si próprio epara sempre, alguma coisa da sua personalidade e do seu coração.Longe das luzes sinistras que iluminavam macabramente em toda aextensão a via pública, o senador penetrou por uma viela cheia desombras.Depois de alguns passos, notou que à sua frente se elevava para océu uma árvore gigantesca, que poetizava todo o ambiente, com a vetustezde sua majestade frondejante. Cambaleando, encostou-se ao troncoanoso, ávido de repouso e consolação. Contemplou as estrelas quematizavam de cintilações cariciosas todo o firmamento romano e lembrou-se de que, por certo, em tal momento, a alma puríssima da companheiradeveria repousar na paz sublime das claridades celestes, sob a bênçãodos deuses...Num gesto espontâneo, beijou o colar minúsculo, apertou-o comdelicado enlevo de encontro ao coração e, considerando o deserto áridoda sua vida, chorou, como nunca o fizera em qualquer outra circunstânciadolorosa da sua atribulada existência.Num retrospecto profundo de todo o passado amarguroso,considerava que todas as suas nobres aspirações haviam recebido oescárnio dos deuses e dos homens. No seu orgulho desventurado, pagaraao mundo os mais pesados tributos de angústia e de lágrimas dolorosas e,na sua vaidade de homem, recebera as mais penosas humilhações do" Emannuel,"...destino. Ponderava, tardiamente, que Lívia tudo fizera por torná-loventuroso, numa vida de amor risonho, simples e despretensiosa.Recordou os mínimos incidentes do passado doloroso, como se o seuespírito estivesse procedendo a meticulosa autópsia de todos os seussonhos, esperanças e ilusões, na caligem do tempo.Como homem, vivera unido aos processos do Estado, que lheroubavam os mais encantadores entretenimentos da vida doméstica e,como esposo, não tivera energia bastante para armar-se contra as calúniasinsidiosas. Como pai, considerava-se o mais desgraçado de todos. De quelhe valia, então, a auréola do triunfo, se ela lhe chegava como intragávelcálice de amargura? De que lhe valiam, agora, as vitórias políticas e asignificação social dos títulos de nobreza, bem como a vultosa expressãoda sua fortuna, sob a mão implacável do seu impiedoso destino nestemundo?Perdiam-se as suas meditações em profundos abismos de sombra ede dúvidas acerbas, quando lhe surgiu na mente atormentada a figurasuave e doce do sublime profeta de Nazaré, com a riqueza indestrutível dasua paz e da sua humildade.Na plenitude de suas lembranças, pareceu ouvir ainda asextraordinárias advertências que lhe dirigira com a voz carinhosa ecompassiva, junto às águas marulhentas do Tiberíades. Recordando-seintensamente de Jesus, sentiu-se tomado por uma vertigem de lágrimasdolorosas, as quais, de alguma forma, lhe balsamizavam o deserto docoração. Ajoelhando-se sob a fronde opulenta e generosa, qual o fizera umdia na Palestina, exclamou para os céus, com os olhos marejados depranto, lembrando-se da força moral que a doutrina cristã haviaproporcionado ao coração da esposa, nutrindo-a espiritualmente parareceber com dignidade e heroísmo todos os sofrimentos:- Jesus de Nazaré! disse com voz súplice e dolorosa - foi precisoperdesse eu o melhor e o" Emannuel,"mais querido de todos os meus tesouros, para recordar a concisão e adoçura de tuas palavras!... Não sei compreender a tua cruz e ainda não seiaceitar a tua humildade dentro da minha sinceridade de homem, mas, sepodes ver a enormidade de minhas chagas, vem socorrer, ainda uma vez,meu coração miserável e infeliz!...Penosa crise de lágrimas sobreveio a essa invocação tocada de umafranqueza rude, agressiva e dolorosa.Figurou-se-lhe, todavia, que uma energia indefinível e imponderávelo ajudava, agora, a atravessar o angustioso transe.Terminada a súplica que lhe fluía do imo da alma lacerada, oorgulhoso patrício observou que a presença de inexplicável forçamodificava, naquele momento inesquecível, todas as disposições maisíntimas do seu coração e, conservando-se genuflexo, notou, com a visãointerior do seu espírito, que a seu lado começava a surgir um pontoluminoso, que se desenvolveu prodigiosamente, na dolorosa serenidadedaquele penoso instante de sua vida, surpreendendo-se com o fenômenoque lhe sugeria ao pensamento as conjeturas mais inesperadas.Por fim, aquele núcleo de luz tomava forma e, diante de si, viu afigura radiosa de Flamínio Severus, que lhe vinha falar na tormentosa noiteda sua infinita amargura.Públio reconheceu-lhe a presença, surpreendido e espantado,identificando-lhe os traços fisionômicos e as saudações acolhedoras,como quando se dirigia a ele, na Terra. Seu semblante era o mesmo, nadoce expressão de serenidade, agora tocada de triste e amarguradosorriso. Ostentava a mesma toga de barra purpurina, mas não apresentavao aspecto marcial e imponente dos dias terrestres. Flamínio contemplou-ocomo se estivesse assomado de piedade infinita e de ilimitada amargura.Seu olhar penetrante de espírito lhe devassava os mais recônditosrefolhos da consciência," Emannuel,"...enquanto o senador se aquietava, reverente, sensibilizado e surpreendido.- Públio - disse-lhe carinhosamente a voz amiga do duende -, não terevoltes com a execução dos desígnios divinos, que hoje modificou todosos roteiros da tua vida!... Ouve-me bem! Falo-te com a mesma sinceridadee amor que nos une os corações, de há longos séculos!... Diante da morte,todas as nossas vaidades desaparecem... nas suas claridades sublimadas;nossos poderes terrenos são de uma fragilidade misérrima!... O orgulho,amigo meu, abre-nos além do túmulo uma porta de trevas densas, nasquais nos perdemos em nosso egoísmo e impenitência!... Volta a tua casae sorve o conteúdo da taça travosa das provas rudes, com serenidade evalor espiritual, porque ainda estás longe de esgotar o cálice de tuaspurificadoras amarguras, dentro das expiações redentoras e supremas...As grandes dores, sem remédio no mundo, hão-de abrir para o teuraciocínio um caminho novo, nos eternos horizontes da crença!... Nossosdeuses são expressões de fé respeitável e pura, mas Jesus de Nazaré é oCaminho, a Verdade e a Vida!... Enquanto nossas ilusões sobre Júpiter noslevam a render culto aos mais poderosos e aos mais fortes, consideradoscomo prediletos de nossas divindades, pela expressão valiosa dos seusricos sacrifícios, os ensinos preciosos do Messias Nazareno nos levam aponderar a miserabilidade de nossos falsos poderes à face do mundo,abraçando os mais pobres e os mais desventurados da sorte, como aimpelir todas as criaturas a caminho do seu Reino, conquistado com osacrifício e o esforço de cada um, em demanda da única vida real, que é avida do Espírito... Hoje sei que perdeste, um dia, a tua sublimeoportunidade, mas o Filho de Deus Todo-Poderoso, na sua piedade infinitae infinito amor, atende agora ao teu apelo, permitindo que a minha velhaafeição venha balsamizar as feridas dolorosas do teu coraçãoatormentado!..." Emannuel,"O senador deixou que todo o seu pensamento se perdesse natempestade das mais abençoadas lágrimas de sua vida. Arfando nossoluços de sua compunção, suplicava, mentalmente:- Sim, meu amigo e meu mestre, eu quero compreender a verdade ealmejo o perdão das minhas faltas enormes!... Flamínio, inspiração deminha alma dilacerada, sê o meu guia na tormentosa noite do meu tristedestino!... Vale-me com a tua ponderação e bondade!... Toma-me, de novo,pelas mãos e esclarece-me o coração no tenebroso caminho!... Que fazerpara alcançar do céu o esquecimento de minhas faltas?!...A serena visão, como se se houvera comovido intensamente aoreceber aquele apelo, tinha agora os olhos iluminados por piedosa e divinalágrima.Aos poucos, sem que Públio pudesse compreender o mecanismodaquele fenômeno insólito, observou que a silhueta do amigo se diluíalevemente na sombra, afastando-se da tela de suas contemplaçõesespirituais; mas, ainda assim, percebeu que seus lábios murmuravam,piedosamente, uma palavra: - Perdoa!...Aquela suave recomendação caiu-lhe nalma como bálsamodulcificante. Sentiu, então, que seus olhos estavam agora abertos para asrealidades materiais que o rodeavam, como se houvera acordado de sonhoedificante.Sentiu-se algo aliviado de suas profundas dores e levantou-se pararetomar, com decidido valor, o fardo penoso da existência terrena.Regressando a casa, por volta das vinte e duas horas, ali encontrouPlínio e Flávia, que o esperavam aflitos.Vendo-lhe a fisionomia fundamente abatida e transfigurada, a filha,ansiosa, o abraçou, num transporte de ternura indefinível, exclamando emlágrimas:- Meu pai, meu querido pai, até agora não nos foi possível obterqualquer notícia." Emannuel,"...Públio Lentulus, porém, fixou nos filhos o olhar triste e desalentado,enlaçando-os silenciosamente.Em seguida, chamou-os ao gabinete particular, para ondedeterminou, igualmente, a vinda de Ana, e os quatro, em conselho defamília, examinaram, emocionadamente, os inolvidáveis sucessos daqueledia de provações aspérrimas.À medida que o senador transmitia aos filhos as revelações penosasde Ana, que lhe acompanhava as palavras extremamente comovida, via-seque Flávia e o esposo traduziam no rosto as emoções mais singulares emais fortes, sob a angustiosa impressão daquela narrativa.Ao fim do minucioso relato, Plínio Severus exclamou no seu orgulhoirrefletido:- Mas não poderíamos imputar toda a culpa dos fatos a esta míseracriatura que há tantos anos serve indignamente em vossa casa?Assim se pronunciando, o oficial apontava a serva, que baixou acabeça humildemente, rogando a Jesus lhe fortalecesse o espírito para otestemunho daquele momento, que adivinhava penoso para ossentimentos mais delicados do seu coração.Públio Lentulus pareceu participar da opinião do genro; contudo,afigurou-se-lhe que as palavras de Flamínio ainda lhe ressoavam no áditoda consciência e respondeu com firmeza:- Filhos, esqueçamos os julgamentos apressados e, se bemreconheça a falta de Ana aceitando as vestes de sua senhora, querovenerar nesta serva a memória de Lívia, para sempre. Companheira fiel dosseus angustiosos martírios de vinte e cinco anos consecutivos, elacontinuará nesta casa com as mesmas regalias que lhe foram outorgadaspor sua benfeitora. Apenas exijo que o seu coração saiba guardar osnossos lúgubres segredos desta noite, porque desejo honrar publicamentea memória de" Emannuel,"minha mulher, depois do seu tremendo sacrifício naquela festividade dainfâmia.Plínio e Flávia observaram-lhe, surpresos, a generosidadeespontânea para com a criada que, por sua vez, agradecia a Jesus a graçado seu esclarecimento.O senador pareceu profundamente modificado naquele choqueterrível, experimentado por suas fibras espirituais.Neste comenos, interveio Plínio Severus, esclarecendo:- A vários amigos nossos, que aqui estiveram para cumprimentar-vos, declarei que, em vista do nosso luto por minha mãe, nãocomemoraríeis o vosso triunfo político na data de hoje, informando mais,no intuito de justificar vossa ausência, que a senhora Lívia se encontravagravemente enferma, em Tibur, para onde fôra em busca de melhoras,notícias essas que, aliás, eram recebidas pelos nossos íntimos com omáximo de naturalidade, porque a vossa consorte nunca mais freqüentoua sociedade desde a volta da Palestina, sendo compreensível que todos osnossos amigos a considerassem doente.O senador ouviu, com interesse, essas explicações, corno sehouvera encontrado solução para o angustioso problema que o oprimia.Ao cabo de alguns momentos, depois de examinar a possibilidadeda execução da idéia que lhe aflorara no cérebro dolorido, exclamou maisanimado:- Tua idéia, meu filho, neste particular, veio trazer-me a perspectivade solução razoável para a angustiosa questão que me acabrunha.Cumpre-me defender a memória de minha mulher - continuava osenador, de olhos úmidos -, e, se fôra possível, iria lutar corpo a corpocom a mentalidade infame do governo cruel que atualmente nos conspurcaas melhores conquistas sociais; mas, se eu fosse bradar pessoalmente aminha" Emannuel,"...indignação e a minha revolta, na praça pública, seria tachado de louco; ese fosse desafiar Domício Nero seria o mesmo que tentar a imobilidadedas águas do Tibre com o galho de uma flor. Neste sentido, pois, sabereiagir nos bastidores políticos, para derrubar o tirano e seus asseclas, aindaque isso nos custe o máximo de tempo e paciência.Agora, o que me compete urgentemente é prestar todas ashomenagens possíveis aos sentimentos imáculos da companheiraarrebatada nos torvelinhos da insânia e da crueldade.Plínio e Flávia escutavam-no, silenciosos e comovidos, sem lheperturbarem o curso rápido das palavras, enquanto ele prosseguiasensatamente:- Há mais de dez anos que a sociedade romana via em minha pobrecompanheira uma enferma e uma demente. E já que os nossos amigosforam avisados de que Lívia se encontrava em Tibur, talvez aguardando amorte, partirei para lá, ainda esta noite, levando Ana em minhacompanhia...E como se estivesse tomado por uma idéia fixa, com aquelapreocupação de homenagear a morta inesquecível, Públio Lentuluscontinuou:- Nossa casa em Tibur está agora desabitada porque, há mais devinte dias, Filopátor foi a Pompeia, obedecendo a determinações minhas...Chegarei lá com Ana, levando uma urna funerária que, para todos osefeitos, encerrará os restos da minha pobre Lívia... Nossos servos devempartir amanhã, igualmente, quando então mandarei mensageiros a Roma,cientificando-lhes do acontecimento por satisfazer as pragmáticas da vidasocial!... Em Tibur, prestaremos à memória de Lívia todas as homenagens,transladando, em seguida, publicamente, as cinzas para aqui, onde fareicelebrar as mais solenes exéquias, na visitação pública, testemunhando,assim, embora tardiamente, minha veneração pela santa criatura que sesacrificou por nós a vida inteira..." Emannuel,"- Mas... e a incineração? - perguntou Plínio Severus, prudentemente,ao conjeturar o êxito possível do projeto.O senador, porém, não hesitou, resolvendo o assunto com a habitualenergia das suas decisões:- Se essa cerimônia requer a presença dos sacerdotes, sabereiconduzir-me junto ao ministro do culto, na cidade, alegando o desejo detudo fazer no mais reduzido círculo da minha intimidade familiar.O que resta, tão somente, é esperar, de vocês que me ouvem,silêncio tumular sobre as providências dolorosas desta noite, a fim de nãoferirmos as suscetibilidades do preconceito social.Surpreso com aquela energia em tão penosas circunstâncias, PlínioSeverus fez-lhe companhia naquelas horas avançadas, para a compra daurna mortuária, que foi adquirida, em poucos minutos, de um comercianteque nada indagou do estranho cliente, atendendo à circunstância da suaposição social e política, bem como à vultosa importância da compra,efetuada com significativas vantagens para o seu interesse.Naquela mesma noite, Públio Lentulus e Ana se dirigiram comalguns escravos para a cidade de repouso dos antigos romanos, vencendoem algumas horas as sombras espessas dos caminhos e chegando com apossível tranqüilidade. de modo a ambientar as derradeiras homenagens àmemória de Lívia.Todas as providências foram adotadas com profunda surpresa paratodos os servos, que não ousavam discutir as ordens recebidas, e mesmopara os patrícios da cidade, que sabiam doente a esposa do senador, masignoravam o doloroso episódio da sua morte.Flávia e Plínio foram chamados no dia seguinte, satisfazendo-se atodos os imperativos de ordem social, naquela penosa representação decondolências." Emannuel,"...Um donativo mais rico e mais generoso de Públio Lentulus ao cultode Júpiter conquistava-lhe a plena autorização do clero tiburtino, noreferente à sua decisão de incinerar o cadáver da esposa na intimidade dafamília, sendo a memória de Lívia homenageada com todos os cerimoniaisdo antigo culto dos deuses, invocando-se a proteção dos manes edivindades domésticas.Numerosos portadores foram expedidos a Roma e daí a dois dias aurna funerária chegava à sede do Império, penetrando pomposamente nopalácio do Aventino, onde a esperava um soberbo catafalco.Durante três dias sucessivos, as cinzas simbólicas de Líviaestiveram expostos à visitação do povo, tendo o senador mandadodistribuir vultosos donativos, em alimentos e dinheiro, à plebe que viesseprestar as últimas homenagens à memória da sua morta querida. Longasromarias visitaram a residência, dia e noite, dando-lhe o aspectoimponente de um templo aberto a todas as classes sociais. Toda a nobrezaromana, inclusive o cruel Imperador, se fez representar nas pompasdaquelas exéquias, que eram como que uma expressão de remorso e umatentativa de reparação da parte do esposo amargurado. Públio Lentulusconsiderava que, somente assim, poderia agora penitenciar-se,publicamente, a respeito de sua mulher, que voltava a ocupar o lugar deveneração no círculo numeroso de amizades aristocráticas da sua família.Terminado o último número daquelas cerimônias, o senador fezquestão de que a filha e o genro, bem como Agripa, passassem a residir nopalácio do Aventino, em sua companhia, no que foi atendido, em caráterprovisório, segundo asseverava Plínio à mulher, e, naquela mesma noite,com a alma dilacerada de saudade e de angústias transportou, emcompanhia de Ana, todos os objetos de uso pessoal da esposa para osseus aposentos particulares." Emannuel,"Terminada a tarefa, Públio Lentulus exclamou para a serva, comsingular interesse:- Tudo pronto?Recebendo resposta afirmativa, insistiu, como se faltasse aindaalguma coisa, referindo-se à cruz de Simeão, guardada cuidadosamentepela dedicação de Ana, como se mais ninguém pudesse apreciar asignificação especial daquele tesouro:- Onde está uma pequena cruz de madeira tosca, que minha mulhertanto venerava?- Ah! é verdade!... - exclamou a serva, satisfeita por observar amodificação daquela alma austera.E, retirando do seu quarto a modesta lembrança do apóstolo deSamaria, entregou-lha com reverência afetuosa. O senador, então,colocou-a num móvel secreto. Todavia, quem lhe acompanhasse aexistência amargurada, poderia vê-lo, todas as noites, na solidão do seuaposento, junto do precioso símbolo das crenças da companheira.Quando as luzes do palácio se apagavam, de leve, e quando todosbuscavam o repouso no silêncio da noite, o orgulhoso patrício retirava docofre de suas lembranças mais queridas a cruz de Simeão e, ajoelhadoqual o fazia Lívia, parava a máquina do convencionalismo mundano, parameditar e chorar amargamente." Emannuel,"345VIAlvoradas do Reino do SenhorReportando-nos à dolorosa e comovedora cena do sacrifício dosmártires cristãos, na arena do circo, somos compelido a acompanhar aentidade de Lívia na sua augusta trajetória para o Reino de Jesus.Nunca os horizontes da Terra foram brindados com paisagens detanta beleza, como as que se abriram nas esferas mais próximas doplaneta, quando da partida em massa dos primeiros apóstolos doCristianismo, exterminados pela impiedade humana, nos tempos áureos egloriosos da consoladora doutrina do Nazareno.Naquele dia, quando as feras famintas estraçalhavam os indefesosadeptos das idéias novas, toda uma legião de espíritos sábios ebenevolentes, sob a égide do Divino Mestre, lhes rodeava os coraçõesdilacerados no martírio, saturando-os de força, resignação e coragem parao supremo testemunho de sua fé.Sobre as nefastas paixões desencadeadas naquela assistênciaignorante e impiedosa, desdobravam os poderes do céu o manto infinitode sua" Emannuel,"misericórdia, e além daquele vozerio sinistro e ensurdecedor havia vozesque abençoavam, proporcionando aos mártires do Senhor uma fonte desuaves e ditosas consolações.Entardecia já, quando tombavam as últimas vítimas ao choque brutaldos leões furiosos e implacáveis.Abrindo os olhos entre os braços carinhosos do seu velho egeneroso amigo, Lívia compreendera, imediatamente, a consumação doangustioso transe. Simeão tinha nos lábios um sorriso divino e lheacariciava os cabelos, paternalmente, com meiguice e doçura. Estranhaemoção vibrava, porém, na alma liberta da esposa do senador, que se viupresa de lágrimas dolorosas. A seu lado notou, com penosa surpresa, osdespojos sangrentos do corpo dilacerado e entendeu, embora o seuespanto, o doce mistério da ressurreição espiritual, de que falava Jesusnas suas lições divinas. Desejou falar, de modo a traduzir seuspensamentos mais íntimos e, todavia, tinha o coração repleto de emoçõesindefiníveis e angustiosas. Aos poucos, notou que, da arenaensangüentada, se erguiam entidades, qual a sua própria, ensaiandopassos vacilantes, amparadas, porém, por criaturas etéreas, aureoladas degraça incomparável, como jamais contemplara em qualquer circunstânciada vida. Aos seus olhos desapareceu o cenário colorido e tumultuoso docirco da ignomínia e aos ouvidos não mais ressoaram as gargalhadasirônicas e perversas dos espectadores impiedosos. Notou que, dofirmamento constelado, fluía uma luz misericordiosa e compassiva,afigurando-se-lhe que nova claridade, desconhecida na Terra, se acenderamaravilhosamente dentro da noite. Imensa multidão de seres, que lhepareciam alados, cercava-os a todos, enchendo o ambiente de vibraçõesdivinas.Deslumbrada, viu, então, que entre a Terra e o Céu se formavaradioso caminho..." Emannuel,"...Através de uma esteira de luz intraduzível, que não chegara aofuscar o brilho caricioso e terno das estrelas que bordavam, cintilando, oazul macio do firmamento, observou novas legiões espirituais quedesciam, celeremente, das maravilhosas regiões do Infinito...Empolgados com as sonoridades delicadas daquele ambienteindescritível, seus ouvidos escutaram, então, sublimes melodias do planoinvisível, como se, de envolta com liras e flautas, harpas e alaúdes,cantassem no Alto as divinas toutinegras do Paraíso, projetando asalegrias siderais nas paisagens escuras e tristes da Terra...Seu espírito, como que impulsado por energia misteriosa,conseguiu, então. manifestar as emoções mais íntimas e mais queridas.Abraçando-se ao velho e generoso amigo de Samaria, pôdemurmurar, banhada em lágrimas:- Simeão, meu benfeitor e mestre, roga comigo a Jesus para queesta hora me seja menos dolorosa...- Sim, filha - respondeu o venerável apóstolo aconchegando-a aocoração, como se o fizesse a uma criança -, o Senhor, na sua infinitamisericórdia, reserva o seu carinho a quantos lhe recorrem amagnanimidade, com a fé ardente e sincera do coração!... Acalma o teuespírito porque estás, agora, a caminho do Reino do Senhor, destinadoaos corações que muito amaram!...Naquele instante, porém, uma força incompreensível parecia impelirpara as Alturas quantos ali se conservavam sem a pesada indumentária daTerra...Lívia sentiu que o terreno lhe faltava e que todo o seu ser volitavaem pleno espaço, experimentando estranhas sensações, emborafortemente amparada pelos braços generosos do venerando amigo.Era, de fato, uma radiosa caravana de entidades puríssimas, que seelevava em conjunto," Emannuel,"através daquele cintilante caminho traçado de luz, em pleno éter!...Experimentando singulares sensações de leveza, a esposa dosenador sentiu-se mergulhada num oceano de vibrações suavíssimas.Todos os companheiros lhe sorriam e, contemplando-os, igualmenteamparados pelos mensageiros divinos, ela identificava, um a um, quantoslhe haviam sido irmãos no cárcere, no martírio e na morte infamante. Emdado instante, todavia, como se a memória fosse chamada a todos ospormenores da realidade ambiente, lembrou-se de Ana, sentindo-lhe a faltanaquela jornada de glorificação em Jesus-Cristo.Bastou que a recordação lhe aflorasse no íntimo, para que a voz deSimeão esclarecesse com a proverbial bondade:- Filha, mais tarde poderás saber tudo... Na tua saudade, porém,inclina-te sempre aos desígnios divinos, inspirados em toda a sabedoria emisericórdia... Não te impressiones com a ausência de Ana neste banquetede alegrias celestiais, porque aprouve a Jesus conservá-la ainda algumtempo na oficina de suas bênçãos, entre as sombras do degredoterrestre...Lívia ouviu e resignou-se, silenciosa.Reconheceu que seguiam sempre pela mesma estrada maravilhosa,que, a seus olhos, parecia ligar o Céu e a Terra num fraternal amplexo deluz, afigurando-se-lhe que todos os divinos componentes da luminosacaravana flutuavam num movimento de ascensão, em pleno espaço,demandando regiões gloriosas e desconhecidas. No seio dos elementosaéreos, admirava-se de conservar todo o mecanismo de suas sensaçõesfísicas, através do eterizado e radioso caminho.Ao longe, nos abismos do ilimitado, parecia divisar novosfirmamentos estrelados, que se multiplicavam maravilhosamente no seiodo Infinito," Emannuel,"...e observava radiações fulgurantes que, por vezes, lhe ofuscavam os olhosdeslumbrados...De outras vezes, olhando furtivamente para trás, via um acervo desombras compactas e movediças, onde se localizavam as esferas de vidana Terra distante.Em ambas as margens do caminho verificou a existência de floresgraciosas e perfumadas, como se os lírios terrestres, com expressõesmais delicadas, se houvessem transportado aos jardins do Paraíso.A eternidade apresentava-se-lhe com encantos e venturasindizíveis!...Simeão falava carinhosamente da sua adaptação à vida nova e dasbelezas sublimadas do reino de Jesus, recordando com alegria as penosasangústias da vida na Terra, quando aos seus ouvidos ecoaram vozesargentinas e harmônicas dos rouxinóis siderais que festejavam, nasAlturas, a redenção dos mártires do Cristianismo, como se estivessemchegando às cercanias de uma nova Galileia, saturada de melodias eperfumes deliciosos, erguida à luz plena do Infinito, como se fosse umninho de almas santificadas e puras balouçando, aos ventos perfumadosde interminável Primavera, na árvore maravilhosa e sem fim da Criação...Aquele hino suave e claro, ora se elevava às Alturas em sonoridadesprodigiosas, como se fôra um incenso sutil das almas procurando o sóliodo Sempiterno em hosanas de amor, de alegria e de reconhecimento, oradescia em melodias arrebatadoras, demandando as sombras da Terra,como se fosse um brado de fé e esperança em Jesus-Cristo, destinado aacordar no mundo os corações mais perversos e mais empedernidos...A linguagem humana não traduz fielmente as harmoniosas vibraçõesdas melodias do Invisível, mas aquele cântico de glória, ao menospalidamente, deve ser lembrado por nós outros como suave reminiscênciado Paraíso:" Emannuel,"- Glória a Ti, Senhor do Universo, Criador de todas as maravilhas!...""É por tua sabedoria inacessível que se acendem as constelaçõesnos abismos do Infinito e é por tua bondade que se desenvolve a ervatenra na crosta escura da Terra!...""Por tua grandeza inapreciável e por tua justiça misericordiosa, abreo Tempo os seus ilimitados tesouros para as almas!...""Por teu amor, sacrossanto e sublime, florescem todos os risos etodas as lágrimas no coração das criaturas!...""Abençoa, Senhor do Universo, as sagradas esperanças desteReino. Jesus é para nós o teu Verbo de amor, de paz, de caridade ebeleza!... Fortalece as nossas aspirações de cooperar em sua SearaSanta!...""Multiplica as nossas energias e faze chover sobre nós o fogosagrado da fé, para espalharmos na Terra as divinas sementes do amor deteu Filho!...""Basta uma gota do orvalho divino de tua misericórdia para que sepurifiquem todos os corações, mergulhados no lodo dos crimes e dasimpenitências terrestres, e basta um raio só do teu poder para que todosos Espíritos se convertam ao bem supremo!..""E agora, ó Jesus, Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo,recebe as nossas súplicas ardentes e fervorosas!""Abençoa, ó Divino Mestre, os que chegam redimidos com o anélitocriador de tuas bênçãos sacratíssimas!...""Vítimas da perversidade humana, cumpriram, valorosamente, osteus missionários, todas as obrigações que os prendiam ao cárcere dopenoso degredo!...""O mundo, no torvelinho de suas inquietações e iniquidades, nãolhes compreendeu o coração amantíssimo, mas, na tua bondade emisericórdia," Emannuel,"...abres aos mártires da verdade as portas divinas do teu reino de luz...""Estrofes de profunda beleza espalhavam nas estradas claras esublimadas do éter universal as bênçãos da paz e das alegriasharmoniosas!Os seres inferiores, das esferas espirituais mais próximas doplaneta, recebiam aqueles eflúvios sacrossantos do celeste banquetereservado por Jesus aos mártires da sua doutrina de redenção, como sefossem também convidados pela misericórdia do Divino Mestre, e muitosdeles, recebendo no íntimo aquelas vibrações maravilhosas, seconverteram para sempre ao amor e ao bem supremos.Harmonias suavíssimas saturavam todas as atmosferas espirituais,derramando sobre a Terra claridades augustas e soberanas.Naquela região de belezas ignotas e prodigiosas, intraduzíveis napobreza da linguagem humana, Lívia retemperou as forças morais, depoisdo austero cumprimento de sua missão divina.Ali, compreendeu a extensão do conceito de ""muitas moradas"", dosensinamentos de Jesus, contemplando junto de Simeão as mais diversasesferas de trabalho, localizadas nas cercanias da Terra, ou estudando agrandeza dos mundos disseminados pela sabedoria divina no oceanoimensurável do éter, na imortalidade. Obedecendo às tendências do seucoração, não se esqueceu das antigas amizades nos círculos espirituais,colocados nas zonas terrestres.Depois de alguns dias de emoções suaves e carinhosas, todos osEspíritos, reunidos naquela paisagem luminosa, se prepararam parareceber a visita do Senhor, como quando da sua divina presença nabucólica moldura da Galileia.Num dia de rara e indefinível beleza, em que uma claridade decambiantes divinos entornava saboroso mel de alegria em todos oscorações, descia o Cordeiro de Deus da esfera superior de suas glóriassublimes e, tomando a palavra naquele ce-" Emannuel,"náculo de maravilhas, recordava as suas inesquecíveis pregações junto àságuas tranqüilas do pequeno 'mar"" da Galileia. De modo algum se poderiatraduzir fielmente, na Terra, a beleza nova da sua palavra eterna,substância de todo o amor, de toda a verdade e de toda a vida, masconstitui para nós um dever, neste escorço, lembrar a sua ilimitadasabedoria, ousando reproduzir, imperfeitamente e de leve, a essência desua lição divina naquele momento inesquecível.Figurava-se, a todos os presentes, a cópia fiel dos quadrosgraciosos e claros do Tiberíades. A palavra do Mestre derramava-se noádito das almas, com sonoridades profundas e misteriosas, enquanto deseus olhos vinha a mesma vibração de misericórdia e de serenamajestade.- Vinde a mim, vós todos que semeastes, com lágrimas e sangue, navinha celeste do meu reino de amor e verdade!...""Nas moradas infinitas do Pai, há luz bastante para dissipar todas astrevas, consolar todas as dores, redimir todas as iniquidades...""Glorificai-vos, pois, na sabedoria e no amor de Deus Todo-Poderoso, vós que já sacudistes o pó das sandálias miseráveis da carne,nos sacrifícios purificadores da Terra! Uma paz soberana vos aguarda,para sempre, no reino dilatado e sem fim, prometido pelas divinas aleluiasda Boa Nova, porque não alimentastes outra aspiração no mundo, senão ade procurar o reino de Deus e de sua justiça.""Entre a Manjedoura e o Calvário, tracei para as minhas ovelhas oeterno e luminoso caminho... O Evangelho floresce, agora, como a searaimortal e inesgotável das bênçãos divinas. Não descansemos, contudo,meus amados, porque tempo virá na Terra, em que todas as suas liçõeshão-de ser espezinhadas e esquecidas... Depois de longa era de sacrifíciospara consolidar-se nas almas, a doutrina da redenção será chamada aesclarecer o governo" Emannuel,"...transitório dos povos; mas o orgulho e a ambição, o despotismo e acrueldade hão-de reviver os abusos nefandos de sua liberdade! O cultoantigo, com as suas ruínas pomposas, buscará restaurar os templosabomináveis do bezerro de ouro. Os preconceitos religiosos, as castasclericais e os falsos sacerdotes restabelecerão novamente o mercado dascoisas sagradas, ofendendo o amor e a sabedoria de Nosso Pai, queacalma a onda minúscula no deserto do mar, como enxuga a maisrecôndita lágrima da criatura, vertida no silêncio de suas orações ou nadolorosa serenidade de sua amargura indizível!...""Soterrando o Evangelho na abominação dos lugares santos, osabusos religiosos não poderão, todavia, sepultar o clarão de minhasverdades, roubando-as ao coração dos homens de boa vontade!...""Quando se verificar este eclipse da evolução de meusensinamentos, nem por isso deixarei de amar intensamente o rebanho dasminhas ovelhas tresmalhadas do aprisco!...""Das esferas de luz que dominam todos os círculos das atividadesterrestres, caminharei com os meus rebeldes tutelados, como outroraentre os corações impiedosos e empedernidos de Israel, que escolhi, umdia, para mensageiro das verdades divinas entre as tribos desgarradas daimensa família humana!...""Em nome de Deus Todo-Poderoso, meu Pai e vosso Pai, regozijo-me aqui convosco, pelos galardões espirituais que conquistastes no meureino de paz, com os vossos sacrifícios abençoados e com as vossasrenúncias purificadoras! Numerosos missionários de minha doutrina aindatombarão, exânimes, na arena da impiedade, mas hão-de constituirconvosco a caravana apostólica, que nunca mais se dissolverá,amparando todos os trabalhadores que perseverarem até ao fim, no longocaminho da salvação das almas!...""Quando a escuridão se fizer mais profunda nos corações da Terra,determinando a utilização" Emannuel,"de todos os progressos humanos para o extermínio, para a miséria e paraa morte, derramarei minha luz sobre toda a carne e todos os que vibraremcom o meu reino e confiarem nas minhas promessas, ouvirão as nossasvozes e apelos santificadores!...""Pela sabedoria e pela verdade, dentro das suaves revelações doConsolador, meu verbo se manifestará novamente no mundo, para ascriaturas desnorteadas no caminho escabroso, através de vossas lições,que se perpetuarão nas páginas imensas dos séculos do porvir!...""Sim! amados meus, porque o dia chegará no qual todas as mentirashumanas hão de ser confundidas pela claridade das revelações do céu.Um sopro poderoso de verdade e vida varrerá toda a Terra, que pagará,então, à evolução dos seus institutos, os mais pesados tributos desofrimentos e de sangue... Exausto de receber os fluidos venenosos daignomínia e da iniquidade de seus habitantes, o próprio planeta protestarácontra a impenitência dos homens, rasgando as entranhas em dolorososcataclismos. .. As impiedades terrestres formarão pesadas nuvens de dorque rebentarão, no instante oportuno, em tempestades de lágrimas na faceescura da Terra e, então, das claridades da minha misericórdia,contemplarei meu rebanho desditoso e direi como os meus emissários: ""ÓJerusalém, Jerusalém?...""""Mas Nosso Pai, que é a sagrada expressão de todo o amor esabedoria, não quer se perca uma só de suas criaturas, transviadas nastenebrosas sendas da impiedade!...""Trabalharemos com amor, na oficina dos séculos porvindouros,reorganizaremos todos os elementos destruídos, examinaremosdetidamente todas as ruínas buscando o material passível de novoaproveitamento e, quando as instituições terrestres reajustarem a sua vidana fraternidade e no bem, na paz e na justiça, depois da seleção naturaldos Espíritos e dentro das convulsões renovadoras da" Emannuel,"...vida planetária, organizaremos para o mundo um novo ciclo evolutivo,consolidando, com as divinas verdades do Consolador, os progressosdefinitivos do homem espiritual"".A voz do Mestre parecia encher os âmbitos do próprio Infinito, comose Ele a lançasse, qual baliza divina do seu amor, no ilimitado do espaço edo tempo, no seio radioso da Eternidade.Terminando a exposição de suas profecias augustas, sua figurasublimada elevava-se às Alturas, enquanto um oceano de luz azulada, demistura aos sons de melodias divinas e incomparáveis, invadia aquelesdomínios espirituais, com as tonalidades cariciosas das safiras terrestres.Todos os presentes, genuflexos na sua doce emoção, choravam dereconhecimento e alegria, enchendo-se de santificada coragem para aselevadas tarefas que lhes competia levar a efeito, no curso incessante dosséculos. Flores de maravilhoso azul-celeste choviam do Alto sobre todasas frontes, desfazendo-se, todavia, ao tocarem nas delicadas substânciasque formavam o solo daquela paisagem; de soberana harmonia, como sefossem lírios fluidicos, de perfumada neblina.Lívia chorava de comoção indefinível, enquanto Simeão, com seusgenerosos ensinamentos, a instruía das novas missões de trabalhosantificante, que lhe aguardavam a dedicação no plano espiritual.- Meu amigo - disse ela, entre lágrimas as agonias terrestres são umpreço misérrimo para estas recompensas radiosas e imortais!... Se todosos homens tivessem conhecimento direto de semelhantes venturas, nãopossuiriam outra preocupação além da de buscar o glorioso reino de Deuse de sua justiça.- Sim, filha - acrescentou Simeão, como se os seus olhospousassem serenamente nos quadros do futuro -, um dia, todos os seresda Terra hão-de conhecer o Evangelho do Mestre, observando-lhe" Emannuel,"os ensinos!... Para isso, haveremos de sacrificar-nos pelo Cordeiro deDeus, quantas vezes forem necessárias. Organizaremos avançados postosde trabalho entre as sombras terrestres, buscaremos acordar todos oscorações adormecidos nas reencarnações dolorosas, para as harmoniassublimes destas divinas alvoradas!...Se for preciso, voltaremos de novo ao mundo, em missõessantificadoras de paz e verdade... Sucumbiremos na cruz infamante, oudaremos o sangue em repasto às feras da ambição e do orgulho, do ódio eda impiedade, que dormitam nas almas dos nossos companheiros daexistência terrestre, convertendo todos os corações ao amor de Jesus-Cristo!...Nesse instante, todavia, Lívia notou que um grupo gracioso deentidades angélicas distribuía as graças do Senhor naquela paisagemflorida do Infinito, organizada no Além como estância de repouso,recompensando os que haviam partido das angústias terrenas, após ocumprimento de missão divina.Todos os que haviam alcançado a vitória celeste com os seusesforços, nos martírios santificantes, retemperavam agora as forçasmorais e desejavam conhecer novas esferas de gozo espiritual, novasexpressões da vida noutros mundos, recebendo outros conhecimentosnos templos radiosos e sublimes da Eternidade e restabelecendo, aomesmo tempo, o equilíbrio de suas emoções.Junto à magnanimidade dos mensageiros de Jesus, sublimadosplanos foram arquitetados. Novos cenários, novas oficinas de estudo,novas emoções no reencontro de afetos inesquecíveis, que haviamantecedido os missionários do Senhor na noite escura e fria da morte.Mas, chegando-lhe a vez de externar seus mais recônditos desejos,a nobre companheira do senador, depois de auscultar os seus sentimentosmais profundos, respondeu, entre lágrimas, ao emissário de Jesus que ainterpelava:" Emannuel,"...- Mensageiro do Bem - as maravilhas do reino do Senhor teriam paramim uma nova beleza, se eu pudesse penetrar-lhes a excelsitude, emcompanhia do coração que é metade do meu, da alma gêmea da minha,que a sabedoria de Deus, em seus profundos e doces mistérios, destinouao meu modo de ser, desde a aurora dos tempos!...Não desejo menosprezar a glória sublime destas regiões defelicidade e de paz indizíveis, mas, no meio de todas estas alegrias que merodeiam, sinto saudades da alma que é o complemento da minha própriavida!...Dai-me a graça de voltar às sombras da Terra e erguer, do lodaçal doorgulho e das vaidades impiedosas, o companheiro do meu destino!...Permiti que possa protegê-lo em espírito, a fim de um dia trazê-lo aos pésde Jesus, igualmente, de modo que também receba as suas divinasbênçãos!...A entidade angélica sorriu com profunda compreensão e ternacomplacência, exclamando:- Sim - o amor é o laço de luz eterna que une todos os mundos etodos os seres da imensidade; sem ele, a própria Criação Infinita não teriarazão de ser, porque Deus é a sua expressão suprema... As perspectivasdeslumbrantes das esferas felizes perderiam a divina beleza, se nãoguardássemos a esperança de participar, um dia, de suas ilimitadasventuras, junto dos nossos bem-amados, que se encontram na Terra ounoutros círculos de provação, do Universo...E, fixando o lúcido olhar nos olhos serenos e fulgurantes de Lívia,continuou como se lhe devassasse os pensamentos mais secretos e maisprofundos:- Conheço toda a tua história e sei de tuas lutas incessantes eredentoras, nas encarnações do passado, justificando assim os teuspropósitos de prosseguir, em espírito, trabalhando na Terra peloaperfeiçoamento daqueles a quem muito amaste!..." Emannuel,"Também o Cordeiro de Deus, por muito amar a Humanidade. nãodesdenhou a humilhação, o martírio, o sacrifício...Vai, minha filha. Poderás trabalhar livremente entre as falangesradiosas que operam na face sombria do planeta terrestre. Voltarás aqui,sempre que necessitares de novos esclarecimentos e novas energias.Regressarás junto de Simeão, logo que o desejares. Ampara o teu infelizcompanheiro na longa esteira de suas expiações rudes e amargas, mesmoporque o desventurado Públio Lentulus não está longe da sua maisangustiosa provação na atual existência, perdida, infelizmente, pelo seudesmarcado orgulho e pela sua vaidade fria e impiedosa!...Lívia sentiu-se tomada de indizível emoção em face daquelarevelação dolorosa, mas, simultaneamente, externou todo o seureconhecimento à misericórdia divina, na intimidade do seu coraçãosensível e amoroso.Naquele mesmo dia. em companhia de Simeão, a generosa criaturavoltava à Terra, afastando-se provisoriamente daqueles domíniosesplendorosos.Através da sua excursão espiritual, sublime e vertiginosa, observouas mesmas perspectivas encantadoras e deslumbrantes do caminho,recebendo, extasiada, elevados ensinamentos do venerando amigo daSamaria.Em pouco tempo aproximavam-se ambos de larga mancha escura.Já na atmosfera da Terra, Lívia sentiu a singular diversidade danatureza ambiente, experimentando os mais penosos choques fluídicos.Num ápice, notou que se encontravam na mesma Roma da suainfância, da sua juventude e das suas amargas provações.Era meia-noite. Todo o hemisfério estava mergulhado nos abismosde sombra." Emannuel,"...Amparada pelos braços e pela experiência de Simeão, chegou aoseu antigo palácio do Aventino, identificando-lhe os mármores preciosos.Em lá penetrando, Lívia e Simeão se dirigiram imediatamente aoquarto do senador, então iluminado por frouxa claridade.Com exceção das ruas, onde se movimentavam ruidosamente osescravos, nos serviços noturnos de transporte, segundo os costumes dotempo, toda a cidade repousava na sombra.De joelhos ante a relíquia de Simeão, como de seu recente costume,Públio Lentulus meditava. Seu pensamento descia aos abismostenebrosos do passado, onde buscava rever, angustiadamente as afeiçõesinesquecíveis que o haviam precedido nas sendas tristes da morte. Faziamais de um mês que a esposa havia demandado, igualmente, os mistériosdo túmulo, em trágicas circunstâncias.Mergulhado nas trevas do seu exílio de amargores e profundassaudades, o orgulhoso patrício serenava as inquietações dolorosas do dia,a fim de melhor consultar os mistérios do ser, do sofrimento e do destino...Em dado instante, quando mais fundas e melancólicas as penosasreminiscências, notou, através do véu de suas lágrimas, que a pequenacruz de madeira como que emitia delicados fios de luz prateada, qual sefôra banhada de luar misericordioso e brando.Públio Lentulus, absorto nas vibrações pesadas e obscuras dacarne, não viu a nobre silhueta de sua mulher, que ali se encontrava juntodo venerável apóstolo da Samaria, regozijando-se no Senhor, ao verificaras profundas e benéficas modificações espirituais da alma gêmea da sua,na peregrinação iterativa das encarnações terrenas. Tomada de alegria ereconhecimento para com a Providência Divina, Lívia beijou-lhe a frontenum transporte de indefinível ternura, enquanto Simeão erguia aos céusuma prece de amor e agradecimento." Emannuel,"O senador não lhes percebeu, diretamente, a presença suave eluminosa, mas no íntimo dalma sentiu-se tocado por uma força nova, aomesmo tempo que o seu coração dilacerado se viu envolto na luz cariciosade uma consolação inefável e até então desconhecida." Emannuel,"361VIITeias do infortúnioParecia que o ano 58 estava destinado a assinalar os mais penososincidentes para a vida do senador Lentulus e a de sua família.A morte de Calpúrnia e o falecimento inesperado de Lívia, dolorososacontecimentos que impuseram à casa um luto permanente, obrigaramPlínio Severus a conchegar-se um pouco mais ao ambiente doméstico,onde instituíra uma trégua aos seus desatinos de homem ainda novo, paraviver em relativa calma ao lado da esposa.Aurélia, contudo, na violência de suas pretensões, não descansava.Conseguindo introduzir uma serva astuta junto de Flávia, de conformidadecom antigo projeto da sua mentalidade doentia, iniciou a sinistra execuçãode um plano diabólico, no sentido de envenenar, vagarosamente, a rivalretraída e desditosa.A princípio, observou a filha do senador que lhe surgiam algumaserupções cutâneas que, consideradas de somenos importância, foramtratadas tão somente à pasta de miolo de pão misturado ao leite dejumenta, medicamento havido na época como específico dos mais eficazespara a conser-" Emannuel,"vação da pele. A esposa de Plínio, todavia, queixava-se incessantementede fraqueza geral, apresentando o mais profundo desânimo.Quanto a Plínio, o retomar a normalidade da vida pública e entregar-se, de novo, ao violento amor de Aurélia, foi questão de poucos dias,regressando à vida espetaculosa, com a amante e, agora, com a situaçãosentimental muito agravada pelas caluniosas denúncias de Saul, acercadas relações afetuosas de Agripa com a esposa.Plínio Severus, embora generoso, era impulsivo: no regime familiar,seu espírito era o desses tiranos domésticos, que, adotando a condutamais desregrada e incompreensível, não toleram a mínima falta nosantuário da família. A despeito de sua orientação errônea e condenável,passou a vigiar constantemente o irmão e a esposa, com a ferozimpulsividade do leão ofendido.Saul de Gioras, por sua vez, despeitado com a sublime e fraternalafeição entre Flávia e Agripa, não perdia ensejo para envenenar o coraçãoimpetuoso do oficial, levando-lhe as calúnias mais torpes e injustificáveis.Agripa, na sua generosidade e no seu sentimentalismo, não podiaadivinhar as ciladas que o enredavam na vida comum e prosseguia com apreciosa atenção de sua amizade, junto da mulher que não podia amá-losenão com sublimado amor fraterno.O ex-escravo dos Severus não perdia, contudo, as esperanças.Procurando freqüentemente o velho Araxes, que aumentava de cupidez eambição à medida que se lhe multiplicavam os anos, aguardavaansiosamente o instante de realizar sua apaixonada aspiração.Observando que Flávia Lentúlia dispensava funda afeição a Agripa,não trepidou em ver sinceramente nos seus menores gestos uma prova deamor intenso e correspondido, procurando insinuar-se por todos osmodos, a fim de captar-lhe, igualmente, o interesse e a atenção." Emannuel,"...Uma noite, depois de mais de dois meses de expectativa ansiosapara atingir seus fins ignóbeis, conseguiu aproximar-se da jovem senhora,quando sozinha, ela repousava em largo divã do espaçoso terraço.Do alto, contemplavam-se os mais belos panoramas da cidade,então clareada pelo brilho das primeiras estrelas, na languidez suave docrepúsculo. As brisas cariciosas da tarde tranqüila traziam sons dealaúdes e harpas, tangidos nas vizinhanças, como se fossem vozesharmoniosas do seio imenso da noite.Saul fixou a mulher cobiçada, observando-lhe o formoso e delicadosemblante de madona, de uma palidez de neve, sob o domínio de umlangor doentio e inexplicável!... Aquela criatura representava o objeto detodas as suas aspirações violentas e rudes, a meta da sua felicidadeimpossível e impetuosa. Na materialidade dos seus sentimentos, não apodia amar como se fôra um irmão, e sim com a brutalidade dos seusimpuros desejos.- Senhora - disse resoluto, depois de fitar-lhe o rostodemoradamente -, há muitos anos espero um minuto como este, parapoder confessar-vos a enorme afeição que vos dedico. Quero-vos acimade tudo, até da própria vida! Sei que para mim estais num planoinacessível, mas, que fazer, se não consigo dominar esta adoração, esteintenso amor de minhalma?Flávia abriu desmesuradamente os olhos serenos e tristonhos,tomada de penosa surpresa...- Senhor Saul - revidou corajosamente, triunfando da sua emoção -,serenai vosso ânimo... Se me tendes tamanha afeição, deixai-me nocaminho dos meus deveres, onde precisa conservar-se toda mulher ciosada sua virtude e do seu nome! Calai, portanto, vossas emoções nestesentido, porque o amor que me confessais não pode passar de um desejoviolento e impuro!..." Emannuel,"- Impossível, senhora! - ajuntou o liberto, desesperado. - Já fiz tudopara esquecer-vos... Tenho feito tudo que era possível para afastar-medefinitivamente de Roma, desde o dia infausto em que vos vi pela primeiravez!... Regressei para Massília decidido a nunca mais voltar, porém, quantomais me apartava da vossa presença, mais se me enchia a alma de tédio ede amargura! Fixei-me aqui, novamente, onde tenho vivido da minhadesventura e das minhas tristes esperanças!... Por mais de dez anos,senhora, tenho esperado pacientemente. Sempre tributei respeito àsvossas indiscutíveis virtudes, aguardando que um dia vos cansásseis doesposo infiel que o destino colocou, impiedosamente, no vossocaminho!...Agora, pressinto que esgotastes o cálice das amarguras domésticas,porque não hesitastes em ceder ao afeto de Agripa... Desde que vos vi nacompanhia de um homem que não é o vosso marido, tremo de ciúmes,porque sinto que fostes talhada apenas para mim... Ardo em zelos,senhora, e todas as noites sonho intensamente com os vossos carinhos ecom a doce ternura de vossas palavras, que me enchem a alma toda, comose de vós tão somente dependesse toda a felicidade da minha vida!...Atendei aos apelos da minha afeição interminável! Não me façaisesperar mais tempo, porque eu poderia morrer!...Flávia Lentúlia ouvia-o, agora, entre surpreendida e aterrada. Quislevantar-se, mas, faltou-lhe o ânimo preciso. Mesmo assim, teve a coragemnecessária para responder-lhe:- Enganais-vos! - entre mim e Agripa existe apenas uma afeiçãosantificada e pura, de irmãos que se identificam nas provações e nas lutasda vida.Não aceito as vossas insinuações acrimoniosas à vida particular demeu marido, porque, tenha" Emannuel,"...ele a conduta que lhe aprouver na existência, eu devo ser a sentinela doseu lar e a honra do seu nome...Se puderdes compreender o respeito devido a uma mulher, retirai-vos daqui, porque os vossos propósitos de traição me causam a maisfunda repugnância!- Deixar-vos? Nunca!... exclamou Saul, com terrível entono. -Esperar tantos anos e nada conseguir? Nunca, nunca!...E avançando para a senhora indefesa, que se levantara num esforçosupremo, abraçou-lhe o busto, em ânsias apaixonadas, retendo-a nosbraços impulsivos, por um rápido minuto.Saul, todavia, na sua excitação e terrível impulsividade, não teveânimo para resistir à força sobre-humana com que a pobre senhora sedefendeu naquele transe penoso para a sua alma sensível, e perdeu apresa que se lhe escapou inopinadamente das mãos criminosas, descendoimediatamente aos seus aposentos, onde se recolheu, chorando aslágrimas da sua dignidade ofendida, mas evitando qualquer notaescandalosa sobre o incidente.Só no dia seguinte, à noite, Plínio Severus regressou a casa,encontrando a esposa desalentada e abatida.Censurando-lhe a ausência, na intimidade conjugal, o esposo infielrespondeu-lhe secamente:- Mais uma cena de ciúmes? Bem sabes que isso é inútil!- Plínio, meu querido - esclareceu entre lágrimas -, não se trata deciúme, mas da justa defesa de nossa casa!...E, em rápidas palavras, a desventurada criatura o pôs ao corrente detodos os fatos; todavia, o oficial esboçou um sorriso de incredulidade,acentuando com certa indiferença:- Se esta longa história é mais um artifício de mulher ciumenta, parame reter na insipidez do ambiente doméstico, todo o esforço édispensável," Emannuel,"porque Saul é o meu melhor amigo. Ainda ontem, quando me encontravaem sérias aperturas financeiras para resgatar algumas dívidas, foi elequem me emprestou oitocentos mil sestércios. Seria melhor, portanto, queprezasses mais alto a honra do nosso nome, abandonando as tuasrelações com Agripa, já excessivamente comentadas, para que eu alimentequalquer dúvida!E, assim falando, retirou-se novamente para os prazeres da vidanoturna, enquanto a consorte sofria, em silêncio, o seu inominável martíriomoral, sentindo-se abandonada e incompreendida, sem qualqueresperança.Alguns dias correram lentos, amargos, dolorosos.Flávia, dado o seu natural retraimento feminino, não teve coragemde confiar ao pai, já de si tão acabrunhado pelos golpes da vida, a suaenorme desdita.Agripa, observando-lhe o abatimento, buscava confortar-lhe ocoração com generosas palavras, examinando as perspectivas demelhores dias no porvir.A pobre senhora, todavia, definhava a olhos vistos, sob o domíniodas moléstias inexplicáveis que lhe dominavam os centros de força e soba tortura íntima dos seus penosos segredos.Saul de Gioras, como se tivesse todos os seus instintos açuladospor aquele minuto em que tivera entre os braços impetuosos a mulher dosseus desejos impulsivos, jurava, intimamente, possuí-la a qualquer preço,enchendo-se dos mais terríveis propósitos de vingança contra o filho maisvelho de Flamínio. Foi assim que continuou a freqüentar o palácio doAventino, tomado das intenções mais sinistras.Respeitando as antigas tradições da família Severus, que semprefizera questão de proporcionar àquele liberto um perfeito tratamento deamigo íntimo, Públio Lentulus, embora a pouca simpatia" Emannuel,"...que lhe inspirava, concedia-lhe o máximo de liberdade na sua residência,sem de leve suspeitar dos seus propósitos condenáveis. Agora, Saul nãobuscava a intimidade da família nem procurava avistar-se, de modo algum,com a esposa de Plínio ou com o pai, conservando-se na companhia dosservos da casa ou permanecendo nos aposentos particulares de Agripa oudo irmão, que nunca lhe haviam negado a mais sincera confiança.Da sua permanência nas sombras, todavia, procurava observar osmínimos gestos do irmão mais velho de Plínio, que, atendendo à situaçãode abatimento de Flávia Lentúlia, se conservava horas a fio, muitas vezes,em companhia do velho senador, nos seus apartamentos privados, oraprolongando as suas tristes esperanças no futuro, com a possívelcompreensão do irmão, ora dando-lhe a conhecer os versos maisadmirados da cidade, comentando-se, fraternalmente, as bagatelasencantadoras da vida social.Diariamente, contudo, o sicofanta Saul procurava o marido de Flávia,para colocá-lo ao corrente de fatos injustificáveis e inverossímeis, arespeito da vida íntima de sua mulher.Plínio Severus dava todo o crédito aos desarrazoamentos do falsoamigo, afervorando cada vez mais sua dedicação a Aurélia, que lheempolgava o coração, assediado e enceguecido pelas mais torpestentações da vida material.Envenenado pelas intrigas criminosas e reiteradas de Saul,licenciara-se o oficial, de modo a realizar uma viagem às Gálias, com aamante, por satisfazer-lhe caprichosos desejos há muito manifestados.No dia da partida para Massília, de onde pretendia demandar ointerior da província, foi procurado por Saul na residência de Aurélia, aqual ficava próxima do Fórum, ouvindo-lhe, em febre de ódio, as maistremendas assacadilhas, terminadas com esta aleivosa sugestão:" Emannuel,"- Se quiseres verificar por ti mesmo a traição de Agripa e tua mulher,volta hoje à noite, furtivamente, a tua casa e busca penetrarinesperadamente no teu quarto. Não precisarás, então, dos zelos da minhadedicação amiga, porque encontrarás teu irmão em atitudes decisivas.Naquele momento, Plínio Severus ultimava os preparativos deviagem, tendo mesmo, pela manhã, apresentado suas despedidas emcasa, aos mais íntimos familiares; para justificar os imperativos de suaausência, alegara determinações expressas da chefia de suas atividadesmilitares, embora fossem muito diversos os verdadeiros e inconfessáveismotivos da partida.Ouvindo, entretanto, as graves denúncias do liberto judeu, o oficialpreparou-se para enfrentar qualquer eventualidade, dirigindo-se, à noite,para o palácio do Aventino, com o espírito atormentado por tigrinossentimentos.O ex-escravo, porém, que planejara executar seus projetoscriminosos, nas suas intenções impiedosas e terríveis, postou-se, ànoitinha, cem a cumplicidade natural de todos os servidores da casa, nosapartamentos particulares de Agripa, procedendo de tal modo que ospróprios escravos não poderiam atinar com a sua permanência nosaposentos referidos.À noite, Plínio Severus procurou a casa, inopinadamente, comsurpresa para alguns criados, que tinham ciência de suas despedidas e,sem dizer palavra, enceguecido pelas calúnias injuriosas do falso amigo,penetrou cautelosamente no gabinete da esposa, ouvindo a vozdespreocupada do irmão, embora não conseguisse identificar o que dizia.Abrindo um pouco a cortina sedosa e delicada, viu Agripa nos seusgestos de carinho íntimo e fraterno, acariciando as mãos de Flávia, comum leve e doce sorriso.Por muito tempo observou-lhes, ansioso, os menores gestos,surpreendendo-lhes as recíprocas de-" Emannuel,"...monstrações de suave estima fraternal, representados, agora, a seus olhoscegos de ódio e ciúme, como os mais francos indícios de prevaricação eadultério.No auge da desesperação, abriu as cortinas num gesto brusco,penetrando a câmara conjugal, como se fôra um tigre atormentado.- Infames! - acentuou em voz baixa e enérgica, procurando evitar aescandalosa assistência dos criados. - Então, é deste modo quemanifestam o respeito devido à dignidade do nosso nome?Flávia Lentúlia, com os seus padecimentos físicos fundamenteagravados, fez-se pálida de neve, enquanto Agripa enfrentava o terrívelolhar do irmão, singularmente surpreendido.- Plínio, com que direito me insultas desta forma? - perguntou eleenergicamente. - Saiamos daqui, imediatamente. Discutiremos as tuasinjuriosas interpelações no meu quarto. Aqui permanece uma pobrecriatura enferma e abandonada pelo esposo, que lhe humilha o nome e osmelindres com a vileza de um proceder criminoso e injustificável, umasenhora que requer o nosso amparo e o nosso respeito!...Os olhos de Plínio Severus fuzilavam de ódio, enquanto o irmão selevantou serenamente, retirando-se para os seus aposentos, acompanhadodo oficial que fremia de raiva, agravada pela humilhação que lhe infligia acalma superior do adversário.Chegados, porém, aos aposentos de Agripa, o impulsivo oficial,depois de numerosas acusações e reprimendas, explodia em exclamaçõesdeste jaez:- Vamos! Explica-te, traidor!... Então, lanças a lama da tua ignomíniasobre o meu nome e te acovardas nesta serenidade incompreensível?!- Plínio - disse ponderadamente Agripa, obrigando o interlocutor acalar por alguns momentos -, é tempo de pores termo aos teus desatinos.Como poderás provar semelhante calúnia contra mim, que sempre tedesejei o maior bem? Qual-" Emannuel,"quer comentário menos digno, acerca da conduta de tua mulher, é umcrime imperdoável. Falo-te, nesta hora grave dos nossos destinos,invocando a memória irrepreensível de nossos pais e o nosso passado desinceridade e confiança fraterna...O impetuoso oficial quase se imobilizara, como um leão ferido,ouvindo essas ponderações superiores e calmas, enquanto Agripacontinuava a externar suas impressões mais íntimas e mais sinceras:- E agora - prosseguia com serenidade -, já que reclamas um direitoque nunca cultivaste, em vista da sucessão interminável dos teusdesatinos na vida social, devo afirmar-te que adorei tua mulher acima detudo, em toda a vida!... Quando gastavas a tua mocidade junto do espíritoturbulento de Aurélia, vimos Flávia, na sua juventude, pela primeira vez,logo após o seu regresso da Palestina e descobri nos seus olhos aclaridade afetuosa e terna que deveria iluminar a placidez do lar que euidealizei nos dias que se foram!... Mas, descobriste, simultaneamente, amesma luz e eu não hesitei em reconhecer os direitos que te cabiam nocoração, porque ela correspondeu à intensidade do teu afeto, parecendo-me unida a ti pelos laços indefiníveis de santificado mistério!. . . Flávia teamava, como sempre te amou, e a mim só competia esquecer, buscandoocultar as minhas ansiedades torturantes e angustiosas!...Ao ensejo do teu casamento, não resisti vê-la partir nos teus braçose, depois de ouvir a palavra materna, amorosa e sábia, demandei outrasterras com o coração esfacelado! Por dez anos amargurosos e tristes,peregrinei entre Massília e a nossa propriedade de Avênio, em aventurasloucas e criminosas. Nunca mais pude acarinhar a idéia da constituição deuma família, atormentado constantemente pelas recordações da minhadesventura silenciosa e irremediável." Emannuel,"...Ultimamente, voltei a Roma com os derradeiros resquícios da minhailusão dolorosa e malograda...Encontrei-te no abismo das afeições ilícitas e não te exprobrei osdeslizes injustificáveis.Sei que gastaste três quartas partes dos nossos bens comuns,satisfazendo a louca prodigalidade de tuas aventuras infelizes edegradantes, e não te censurei o procedimento insólito.E aqui, nesta casa, sob este teto que constitui para nós ambos oprolongamento carinhoso do teto paternal, não tenho sido para a tua nobremulher senão um irmão dedicado e amigo!...Vendo-se acusado, claramente, por suas faltas e sentindo-se feridonas suas vaidades de homem, Plínio Severus reagiu com mais ferocidade,exclamando exaltadamente na sua desesperação:- Infame, é inútil aparentares esta superioridade inacreditável!Somos iguais, nos mesmos sentimentos, e não creio na tua dedicaçãodesinteressada nesta casa. Há muito tempo vives com Flávia,ostensivamente, em aventuras criminosas, mas resolveremos, agora, todaa nossa questão pela espada, porque um de nós deve desaparecer!...E, arrancando a arma de que fôra munido para qualquereventualidade, avançou decididamente para o irmão, que cruzou osbraços, serenamente, esperando-lhe o golpe implacável.- Então, onde se encontram os teus brios de homem? - exclamouPlínio, exasperado. - Esta serenidade expressa bem a tua covardia...Coloca-te em defesa da vida, porque, quando dois irmãos disputam amesma mulher, um deles deve morrer!Agripa Severus, porém, sorriu tristemente, retorquindo:- Não retardes muito a consumação dos teus propósitos, porque meprestarás o bem supremo da sepultura, já que a minha vida, com as suastorturas de cada instante, nada mais representa que um caminhoescabroso e longo para a morte." Emannuel,"Reconhecendo-lhe a nobreza e o heroísmo, mas acreditando nainfidelidade da mulher, Plínio guardou novamente a espada, exclamando:- Está bem! Eu podia eliminar-te, mas não o faço, em consideração àmemória de nossos pais inesquecíveis; todavia, continuando a acreditarna tua infâmia, partirei daqui para sempre, levando no íntimo a certeza deque tenho em teu espírito de traidor o meu maior e pior inimigo.Sem mais palavra, Plínio retirou-se a passos largos, enquanto oirmão, caminhando até à porta, lançava-lhe um derradeiro apelo afetuoso,para que não se fosse.Alguém, todavia, acompanhara a cena, detalhe por detalhe. Essealguém era Saul que, saindo do seu esconderijo e apagandoinopinadamente a luz do quarto, alcançou Agripa num salto certeiro, pelascostas, vibrando-lhe violento golpe. O pobre rapaz caiu redondamentenuma poça enorme de sangue, sem que lhe fosse possível articular umapalavra. Em seguida ao ato criminoso, fugiu o liberto, afetandodespreocupação, sem que ninguém pudesse atinar com a dolorosaocorrência.No seu quarto, porém, Flávia Lentúlia se surpreendia com a demorada solução de um caso em que se via envolvida e também considerado,por ela, à primeira vista, como um acontecimento sem importância.Levantou-se, depois de considerável esforço, dirigindo-se à portaque comunicava os apartamentos de Agripa com o peristilo, mas,surpreendida com a escuridão e silêncio reinantes, apenas escutou, vindodo interior, um leve rumor, semelhante aos sons roucos de uma respiraçãofatigada e opressa.Dominada por dolorosos pressentimentos, a desventurada criaturasentiu bater-lhe o coração descompassadamente.A ausência de luz, aquele ruído de respiração estertorosa e,sobretudo, o profundo e pavoroso silêncio, fizeram-na recuar, buscando osocorro e a" Emannuel,"...experiência de Ana, que lhe conquistara igualmente o coração, peladedicação e pela humildade, em todos os dias daquele amarguradoperíodo da sua existência.Gozando do respeito e da estima de todos, a velha criada de Líviaera, agora, quase a governanta da casa, a quem, por determinação dossenhores, todas as escravas do palácio do Aventino deviam obediência.Chamada por Flávia aos seus aposentos particulares, a velhaservidora dos Lentulus, depois de ouvir a apressada confidência dasenhora, compartilhando-lhe os receios, acompanhou-a ao quarto deAgripa, em cuja porta de entrada também parou, pensativa, embora já nãomais se ouvisse a respiração opressa, observada minutos antes pelaesposa de Plínio.- Senhora - disse afetuosa -, estais abatida e ainda necessitais derepouso. Voltai ao quarto; se algo houver que justifique os vossos receios,procurarei resolver o assunto junto de vosso pai. a quem cientificarei doque houver, lá no seu gabinete particular.- Agradecida, Ana - respondeu a senhora, visivelmente emocionada -, concordo contigo, mas esperarei aqui no peristilo o resultado de tuasprovidências.Com uma prece, a antiga criada penetrou no aposento, fazendo unipouco de luz e parando o olhar, quase estarrecida.No tapete, o cadáver de Agripa Severus, caído de borco, descansavanuma poça de sangue, que ainda corria do profundo ferimento aberto pelaarma homicida de Saul.Ana precisou mobilizar todas as reservas de serenidade da sua fé,para não gritar escandalosamente, alarmando a casa inteira. Ela, porém,que tantos padecimentos havia já experimentado em todo o curso da vida,não tinha grande dificuldade em juntar mais uma nota angustiosa aoconcerto de" Emannuel,"suas amarguras, sofridas sempre com resignação e serenidade.Todavia, sem poder dissimular a angústia e a profunda palidez,voltou novamente ao peristilo, exclamando algo inquieta, para FláviaLentúlia, que lhe observava os mínimos gestos, ansiosamente.- Senhora, não vos assusteis, mas o senhor Agripa está ferido...E aos primeiros movimentos de curiosidade angustiosa da filha dosenador, a qual se lembrava da profunda desesperação do esposo,momentos antes, Ana acalmou-a com estas palavras:- Não temos tempo a perder! Procuremos o senador, para asprimeiras providências; contudo, suponho que devo cuidar sozinha dessatarefa, aconselhando-vos a buscar a tranqüilidade do vosso quarto.Mas, silenciosas e inquietas, dirigiram-se as duas apressadamenteao gabinete de Públio, absorvido em numerosos processos políticos, noseio tranqüilo da noite.- Agripa, ferido?! - perguntou altamente surpreendido o senador,depois de se inteirar da ocorrência pela palavra de Ana. - Mas, quem teriasido o autor de semelhante atentado nesta casa?- Meu pai - respondeu Flávia, entre lágrimas -, ainda há pouco, Plínioe Agripa tiveram séria altercação no interior dos meus aposentos!...Públio Lentulus percebeu o perigo das palavras confidenciais dafilha, em tais circunstâncias, e, como não podia acreditar que os filhos deFlamínio, sempre tão unidos e generosos, fossem ao extremo das armas,acentuou decisivamente:- Minha filha, não acredito que Plínio e Agripa se abalançassem atais extremos.E como estivessem na presença de Ana, que por mais conceituadaque fosse, agora, na sua confiança pessoal, não podia modificar aestrutura de suas rígidas tradições familiares, acrescentou, como sequisesse prevenir o espírito da filha contra qual-" Emannuel,"...quer revelação inconveniente que pudesse envolver o seu nome emescândalos sociais irremediáveis:- Além disso, não me pareces muito certa em tuas lembranças,porque Plínio se despediu de manhã, seguindo viagem para Massília. Nãopodemos esquecer esta circunstância.Não se viu algum desconhecido nesta casa?- Senhor - respondeu Ana, com humildade -, há alguns minutos vique o senhor Saul se retirava apressado lá do quarto do ferido. De acordocom as minhas observações e atenta à sua familiaridade com os vossosamigos, suponho-o pessoa indicada para nos dar qualquer esclarecimento.Os olhos do velho senador brilharam estranhamente, como sehouvesse encontrado a chave do enigma.Nesse instante, porém, enquanto organizava os seus papéis,apressadamente, a fim de prestar os primeiros socorros ao ferido, FláviaLentúlia, corno se as observações de Ana lhe suscitassem novasexplicações, rompeu soluçante.- Meu pai, meu pai, só agora me recordo de que vos deveriacientificar de coisas muito graves!...- Filha - acudiu com decisão -, estás doente e fatigada. Recolhe-te aoquarto, procurarei a tudo remediar!... É muito tarde para qualquerponderação. As coisas graves são sempre más e o mal que não se cortapela raiz, com o esclarecimento oportuno, é sempre uma semente decalamidade guardada em nosso coração, para rebentar em lágrimas deamarguras, nas horas inesperadas da vida!... Falaremos, pois, mais tarde.Cumpre, agora, providenciar o que seja mais urgente e necessário.Retirando-se apressado, com a serva, em demanda dos apartamentos dorapaz, notou que Flávia obedecia, sem discussão, às suas determinações,recolhendo-se ao quarto." Emannuel,"Penetrando nos aposentos de Agripa, em companhia da velha serva,Públio Lentulus conseguiu medir toda a extensão da tragédia alidesenrolada, sob o seu teto respeitável.Fechando a porta de acesso, o senador verificou que o filho maisvelho do seu inesquecível Flamínio estava morto, restando saber osíntimos detalhes daquele drama doloroso, cujo fim sangrento era a únicacena que ali se deparava.Ajoelhando-se ao lado do cadáver, no que foi acompanhado pelaserva e amiga leal, falou compungidamente:- Ana, é muito tarde!... O meu pobre Agripa já não vive, nem haveriapossibilidade de socorro para um ferimento desta natureza!... Parece haverexpirado há poucos momentos!...Alçando ao Alto o olhar marejado de lágrimas, exclamouamarguradamente:- Ó manes de meu desventurado filho, acolhei as nossas súplicaspelo descanso perpétuo de sua alma!...Todavia, aquela prece morrera-lhe no íntimo. A voz tornara-se-lhefrouxa e oprimida. Aquele espetáculo hediondo abalara-o profundamente.Queria falar, sem o conseguir, porquanto tinha a garganta como quedilacerada e rebelde, sob a força dos singultos do coração, que lhemorriam latentes na soledade da imperiosa fortaleza espiritual.Ana o contemplou aflita, porque seus olhos nunca o haviamobservado em atitudes tão íntimas, em todo o longo tempo de serviçonaquela casa.Públio Lentulus, aos seus olhos, era sempre o homem frio eimpiedoso, em cujo peito pulsava um coração de ferro, que não podiavibrar senão para as loucas vaidades mundanas.Naquele instante, contudo, entre assustada e comovida, observavaque também o senador tinha lágrimas para chorar. De seus olhos semprealtivos, caíam lágrimas ardentes, que rolavam, silenciosas e tristes, sobrea cabeça inerte do rapaz, também con-" Emannuel,"...siderado por ele um filho, como se nada mais lhe restasse, além doconsolo supremo de abraçar carinhosamente os seus despojos, através dovéu escuro de suas dúvidas angustiosas.Ana, profundamente tocada pela amargura daquela cena íntima,exclamou com humildade, desejosa de confortar a dor imensa daquele malsem remédio:- Senhor, tenhamos coragem e serenidade. Nas minhas oraçõesobscuras, sempre peço ao profeta de Nazaré que vos ampare do céu,confortando-vos o coração sofredor e desalentado!O pensamento do senador vagava no dédalo das dúvidastenebrosas. Cotejando as observações da filha e as palavras de Ana,buscava descobrir no íntimo, a intuição sobre a culpabilidade do delito. Aqual dos dois, Plínio ou Saul, deveria imputar a autoria do atentadonefando? Ele, que decidira tantos processos difíceis na sua vida, ele, queera senador e não perdia também ensejo de participar dos esforços daedilidade romana, sentia agora a dor suprema de exercer a justiça em suaprópria casa, na perspectiva da destruição de toda a ventura dos seusfilhos muito amados!...Ouvindo, porém, as expressões consoladoras da serva, recordou afigura extraordinária de Jesus Nazareno, cuja doutrina de piedade emisericórdia a tantos fortalecia para afrontar as situações mais ríspidas davida, ou para morrer, heroicamente, como sua própria mulher. Dirigindo-se, então, à criada, com intimidade imprevista, em gesto comovedor desimplicidade generosa, qual a serva jamais lhe observara, em qualquercircunstância da vida doméstica, disse:- Ana - nunca deixei de ser um homem enérgico, em toda a vida, maschega sempre um momento em que o nosso coração se senteacabrunhado diante da rudeza das lutas que o mundo nos oferece com assuas desilusões amargas e doloro-" Emannuel,"sas! Se és tão somente uma serva, eu sei hoje apreciar-te o coração,embora tardiamente!...Uma lágrima espontânea embargava-lhe a voz, porém o velhopatrício continuava:- Em toda a minha existência, tenho julgado uma imensidade deprocessos de várias naturezas, relativos à justiça do mundo; mas, detempos a esta parte, parece-me que estou sendo julgado pela forçaincoercível de uma justiça suprema, cujos tribunais não se encontram naTerra!...Desde a morte de Lívia, sinto o coração modificado, a caminho deuma sensibilidade, para mim, até então desconhecida.A aproximação da velhice parece um prenúncio da morte de todosos nossos sonhos e esperanças!...Diante deste cadáver, que, certamente, vai aumentar a sombra dosnossos segredos de família, sinto quão dolorosa é a tarefa de justificar osnossos entes amados; e, já que te referes ao Mestre de Nazaré, cujadoutrina de paz e fraternidade a tantos tem ensinado a morrer comresignação e heroísmo supremos, pela vitória da cruz dos seus martíriosterrestres, como procederia ele num caso destes, cm que as maistremendas dúvidas me pairam no coração, quanto à culpabilidade de unifilho muito amado?- Senhor - respondeu Ana, com humildade, fundamente comovidaante aquela prova de consideração e afeto -, muitas vezes Jesus nosensinou que jamais devemos julgar, para não sermos também julgados.O senador se surpreendia, ao receber, de uma criatura tão simples etão inculta aos seus olhos, essa maravilhosa síntese da filosofia humana,repassando, no espírito, o seu doloroso pretérito.- Mas - aventou, como se quisesse justificar-se a si mesmo dos errosprofundos do seu passado de homem público - os que não julgamperdoam e esquecem; e, se mandam as leis da vida" Emannuel,"...que sejamos agradecidos ao bem que se nos faça, não podemos perdoarao mal que se nos atira no caminho!...Ana, porém, não perdeu o ensejo de consolidar o ensinamentoevangélico, acrescentando com doçura:- Mesmo na minha terra, a Lei antiga mandava que se cobrasse olhopor olho e dente por dente, mas Jesus de Nazaré, sem destruir a essênciados ensinos do Templo, esclareceu que os que mais erram no mundo sãoos mais infelizes e mais necessitados do nosso amparo espiritual,recomendando, na sua doutrina de amor e caridade, não perdoássemosuma vez só, mas setenta vezes sete vezes.Públio Lentulus admirava-se de aprender aqueles generososconceitos da sua criada, dentro dos princípios do perdão irrestrito.Perdoar? Nunca o fizera em suas porfiadas lutas no mundo. Sua educaçãonão admitia piedade ou comiseração para os inimigos, porque todo perdãoe toda humildade significavam, para os de sua classe, traição ou covardia.Lembrava-se, porém, agora, de que em numerosos processospolíticos poderia haver perdoado e que, em muitas circunstâncias da suavida, poderia ter fechado os olhos da sua severidade com amorosoesquecimento.Sem saber a razão, como se uma energia ignorada lhe reconduzisseo pensamento aos tempos idos, suas lembranças se transportaram aoperíodo remoto de sua viagem à Judeia, revendo com os olhos daimaginação a cena em que, com o seu rigorismo, escravizaraimpiedosamente um mísero rapaz. Sim, também aquele jovem se chamavaSaul e ele trazia agora o cérebro ralado por dúvidas atrozes, entre aqueleSaul, liberto dos seus amigos, e a figura de Plínio, sempre guardada noseu conceito num halo de amor e generosidade.Perdoar?" Emannuel,"E o pensamento do senador se quedava em meditações amargas epenosíssimas, naqueles minutos angustiados e longos. Era, talvez, umadas poucas vezes na vida, em que o seu cérebro duvidava, receoso defazer cair a austeridade do julgamento sobre a fronte de um filho muitoquerido.Mas, saindo dessa apatia de alguns minutos, exclamou comresolução:- Ana, o profeta Nazareno devia ser, de fato, uma figura divina aquina Terra!... Eu, porém, sou humano e careço de forças novas para viveruma existência fora de minha época... Quero perdoar e não posso... Querojulgar neste caso e não sei como fazê-lo. .. Mas, hei-de saber decidir,quanto à solução deste terrível problema! Farei o possível por observar ospreceitos do teu mestre, guardando uma atitude de silêncio, até que venhaa conhecer o verdadeiro culpado, quando, então, buscarei não julgar comoos homens, mas pedir a essa justiça divina que se manifeste, amparandomeus pensamentos e esclarecendo os meus atos...E como se retomasse a sua energia usual para as lutas da vida, ovelho patrício sentenciou:- Agora, tratemos da vida nas suas realidades dolorosas.Colocou o cadáver de Agripa no leito, e, recomendando à serva quepreparasse o espírito da filha, amparando-lhe o coração no angustiosotranse, abriu as portas do aposento, requisitou a presença de todos osfâmulos da casa, levando a ocorrência ao conhecimento das autoridades eprocedendo, simultaneamente, a rigoroso inquérito, a fim de apurar aprocedência do crime, embora um episódio daquela natureza fosseconsiderado vulgaríssimo nos dias atribulados da Roma de Domício Nero.Alguns criados alegavam ter visto Plínio Severus com o irmão,durante a noite; mas a palavra do senador anulava-lhes as informações,com a afirmativa de que o irmão da vítima havia partido, durante o dia, emdemanda do porto de Massília." Emannuel,"...Saul era, desse modo, a pessoa naturalmente indicada para prestardeclarações e, antes mesmo que se realizassem as cerimônias fúnebres, osenador, interrogando-o particularmente, supunha ter razões para crer nasua culpa, observando-lhe as evasivas e alusões descabidas, que nãosatisfaziam às exigências da sua perquirição psicológica. Suas afirmaçõese indiretas não coincidiam com asseverações incisivas de Ana, cujaretidão de palavra ele bem conhecia. Em alguns tópicos de suasinformações, negou estivesse presente nos aposentos de Agripa e isso foio bastante para que o senador verificasse que mentia.Quanto a Plínio, não fôra de fato encontrado, obtendo-se tãosomente a lacônica participação da sua partida para Massília, o querealmente ocorrera na mesma noite da tragédia, depois da altercaçãodecisiva com o irmão, no palácio do Aventino.E, assim, em companhia de Aurélia, demandava ele as Gálias, emsuntuosa galera, singrando as águas calmas do antigo mar romano.O senador, porém, apenas desejava ouvir melhor as confidências dafilha, para arrancar a confissão suprema do mísero liberto de Flamínio, decuja culpabilidade não tinha mais dúvida.Procurou, dessarte, realizar com a maior discrição os funerais dofilho do seu inesquecível amigo, aos quais Saul de Gioras teve adesfaçatez de assistir, com toda a serenidade venenosa do seu espíritomesquinho.Sob o efeito pernicioso de tóxicos letais, que lhe haviam sidoaplicado por Ateia, a serva traidora, paga por Aurélia, a qual, na suainconsciência, havia envenenado todos os cosméticos de uso da sua ama,destinados ao tratamento da pele e dos cílios, Flávia Lentúlia tinha, agora,todos os padecimentos físicos singularmente agravados, além da terrívelsituação moral em face da penosa ocorrência e de seu acabrunhamentopor força de insolúveis dúvidas." Emannuel,"Aquele mal da infância parecia reviver, porque o corpo novamente seabria em chagas dolorosas, enquanto os olhos pareciam seriamenteatacados de moléstia implacável.Três dias depois das exéquias de Agripa, Públio Lentulus,fundamente penalizado, ouviu-lhe o depoimento íntimo e angustioso, como máximo de atenção amorosa e interessada. Findo o relato minucioso dafilha, cujas desventuras conjugais lhe tocavam o âmago do coração, ovelho senador requereu novo interrogatório de Saul, com a sua presença,mas, enviando emissário à procura do liberto de Flamínio, ficara atônitocom uma nova surpresa.Saul de Gioras, depois de responder às argüições particulares dePúblio Lentulus, quando ainda não se haviam realizado os funerais deAgripa Severus, percebeu claramente a atitude mental daquele paraconsigo, concluindo que lhe não seria possível enganar o tato psicológicodo velho senador.Dois dias após as cerimônias fúnebres, o liberto procurou Araxes noseu miserável refúgio do Esquilino, com o espírito exacerbado e inquieto.Crendo sinceramente nas intervenções maravilhosas do mago, àvista das suas faculdades divinatórias, aproveitadas, aliás, por forçastenebrosas do plano invisível, ligadas às suas sinistras ambições dedinheiro, notou Saul que o adivinho o recebia com a misteriosa fleuma desempre. Deixou bem visível a volumosa bolsa, recheada, como ademonstrar-lhe as ricas possibilidades financeiras, para aquisição dotalismã de sua ventura.O velho feiticeiro, encarquilhado pelos anos, reconhecendo-lhe asdisposições generosas, desfazia-se em sorrisos de benevolênciaambiciosa e enigmática, parecendo devassar-lhe o olhar assustadiço einquieto, com seus olhos móveis e penetrantes.- Araxes - exclamou Saul, com voz quase súplice -, estou cansado deesperar o amor da" Emannuel,"...mulher que adoro! Estou aflito e preocupado... Preciso serenar minhaspenosas aflições. Ouve-me! Quero de tuas mãos o talismã da felicidadepara o meu amor desventurado!..O velho adivinho guardou por minutos a cabeça entre as mãos, nogesto que lhe era peculiar e, depois, respondeu em voz quase sumida:- Senhor, dizem-me as vozes do invisível que as vossas aflições nãosão resultantes de um amor incompreendido e desesperado...Mas o liberto de Flamínio, que sofria o mais fundo desespero deconsciência por haver eliminado um amigo e benfeitor, em plena floraçãode juventude, cortou-lhe a palavra, exclamando incisivamente:- Como ousas contradizer-me, feiticeiro infame?Araxes, todavia, com um brilho estranho nos olhos buliçosos,revidou com presteza:- Julgais-me, então, um feiticeiro infame? Nem por isso, todavia,deixarei de falar a verdade, quando a verdade me convenha.- Pois repito o que disse! Mas, a que verdades misteriosas aludes emtuas vagas afirmativas? - falou o liberto, fundamente exasperado.- A verdade, meu amigo - dizia o mago, com serenidade quasesinistra -, é que se estais tão perturbado é somente porque sois umcriminoso. Assassinastes, friamente, um benfeitor e um amigo, e aconsciência do celerado teme a implacável ação da justiça!- Cala-te, miserável! Como o soubeste? - exclamou Saul,excitadíssimo, ao mesmo tempo que arrancava o punhal de entre asdobras do manto.E avançando para o velho indefeso, acrescentava com vozcavernosa:- Já que as tuas ciências ocultas te proporcionam conhecimentosperniciosos à tranqüilidade alheia, deves também desaparecer!..." Emannuel,"Araxes compreendeu que o momento era decisivo. Aquele homemarrebatado era capaz de eliminá-lo de um só golpe. Medindo a situaçãonum relance e movimentando toda a sua argúcia para conservar os bensda vida, esboçou um sorriso fingido e complacente, exclamando:- Ora, ora, se falei a verdade foi somente para poderdes avaliar osmeus poderes espirituais, porquanto, se é do vosso desejo, podereiintegrar-vos, imediatamente, na posse do necessário talismã. Com ele,sereis profundamente amado pela mulher de vossas preferencias... Comele, modificareis os mais íntimos sentimentos dessa criatura que adorais eque vos fará, então, a felicidade de toda a vida. Quanto ao mais, não sois oprimeiro a tirar a vida de um semelhante, porque todos os dias meaparecem fregueses nas vossas condições, batendo a estas portas. Alémdisso, entre nós deve existir grande confiança recíproca, porque sois meucliente há mais de dez anos.Ouvindo-lhe as palavras benevolentes e serenas, o liberto deFlamínio guardou novamente a arma, considerando novas perspectivas defelicidade e concordando em tudo com o adivinho, que, fazendo-o sentar-se, lhe ocupou a atenção por mais de uma hora com a descrição de fatosidênticos aos que lhe ocorriam, demonstrando teoricamente a eficiênciados seus amuletos miraculosos. Ia a palestra em boa forma, quando Saullhe solicitou a entrega imediata do talismã, porquanto desejavaexperimentar-lhe o efeito naquele mesmo dia, ao que Araxes respondeupressuroso:- O vosso talismã está pronto. Posso entregar-vos essa preciosidadeagora mesmo, dependendo tão somente de vós mesmo, porque precisareisbeber o filtro mágico, que vos colocará na situação espiritual requeridapelo cometimento.Saul não fez questão de submeter-se às imposições do velhoegípcio, nas suas manobras estranhas e misteriosas, penetrando umacâmara, orna-" Emannuel,"...mentada de vários símbolos extravagantes, que lhe eram totalmentedesconhecidos.Araxes levava a efeito as encenações mais sugestivas. Vestiu-lhe,sobre a toga comum, larga túnica igual à sua e, depois de fingidasposições de magia incompreensível, foi ao interior do pequeno laboratório,onde tomou de um tóxico violento, monologando intimamente de si paraconsigo: - ""Vais receber o talismã que mais te convém neste mundo"".Deitou algumas gotas do perigoso filtro numa taça de vinho e, comlargos gestos espetaculosos, como se estivesse obedecendo a ritualignorado, deu-lhe a beber o conteúdo, prosseguindo nos gestos exóticos,que eram bem as expressões pitorescas e sinistras de extravagante magiade morte.Ingerindo o vinho na melhor intenção de guardar o amuleto da suafelicidade, o perigoso liberto sentiu que os membros se relaxavam sob oimpério de uma força desconhecida e destruidora, porquanto lhe faltava aprópria voz para externar as emoções mais íntimas. Quis gritar, mas não oconseguiu, e inúteis foram todos os esforços para levantar-se. Aospoucos, os olhos turvaram-se lugubremente, como enevoados por sombraespessa e indefinível. Desejou manifestar seu ódio ao mago assassino,defender-se daquela angústia que lhe sufocava a garganta, mas a línguaestava hirta e um frio penetrante invadiu-lhe os centros vitais. Deixandopender a cabeça sobre os cotovelos apoiados ao longo da mesa ampla,compreendeu que a morte violenta lhe destruía todas as forças vivas doorganismo.Araxes fechou tranqüilamente o quarto, como se nada houvesseacontecido, e voltou à loja, atendendo solícito à clientela numerosa, semquebra da habitual serenidade.Antes da noite, porém, penetrou na câmara mortuária e esvaziou abolsa do cadáver, guardando as moedas silenciosamente entre as suasfartas reservas de avarento." Emannuel,"Depois das vinte e três horas, quando a cidade dormia, o velhofeiticeiro do Esquilino misturava-se aos escravos que faziam o serviçonoturno dos transportes, conduzindo uma pequena carroça de mão, dentroda qual ia um grande volume.Após longo trajeto, ganhava as cercanias do Fórum, entre oCapitólio e o Palatino, onde descansou, esperando o derradeiro quarto damadrugada, quando, então, despejou a carga num ângulo escuro da viapública, voltando tranqüilamente para o seu sono de cada noite.De manhã, o cadáver de Saul foi facilmente identificado e, quando osenador buscava o liberto para declarações, recebeu a surpresa daquelanotícia, inquirindo a si mesmo as razões daquela morte imprevista eestranha, aturdido com a entrosagem do mecanismo da justiça divina eperguntando intimamente, à própria consciência, se Saul não seriadaqueles criminosos imediatamente justiçados pela lei dascompensações, no caminho infinito dos destinos.Seu coração, mais que nunca inclinado ao exame das profundasquestões filosóficas, perdia-se num abismo de conjecturas, recordando arecomendação do espírito de Flamínio e as elevadas lições de Ana,calcadas no Evangelho: procurava, com a maior boa vontade resolver oproblema do perdão e da piedade. Desejoso de satisfazer a própriaconsciência nas atividades da vida prática, buscou contrariar suastradições e costumes em face do acontecimento, e, dirigindo-se àresidência do algoz de seus filhos, tomou todas as providências para quenão lhe faltassem a decência e o respeito nas cerimônias fúnebres. Algunsescravos e servos de confiança estavam habilitados a resolver todos osproblemas atinentes aos negócios deixados pelo morto, mas, cooperandonas exéquias, Públio Lentulus se sentia satisfeito por vencer a aversãopessoal, homenageando, ao mesmo tempo, a memória de FIamínio." Emannuel,"...Localizando-se com a nova companheira em Avênio, Plínio Severussoube, por intermédio de amigos, da tragédia que se desenrolara em Romana noite de sua ausência, sendo igualmente cientificado das dúvidaspenosas que pairavam a seu respeito. Profundamente tocado nas suasfibras emotivas, lembrando-se do irmão que, tantas vezes, lhetestemunhara as mais altas provas de afeto, desejou regressar, de maneiraa esclarecer convenientemente o assunto, vingando-lhe a morte; todavia,amolecido nos braços de Aurélia e receoso do julgamento do velhosenador, respeitado como um pai, além da suspeita que lhe causava anotícia da inexplicável enfermidade da esposa, deixou-se ficar na sua vidaincompreensível, através de Avênio, Massília, Arelate, Antípolis e Nice,buscando esquecer no vinho dos prazeres as grandes responsabilidadesque lhe cabiam.Junto de Aurélia, a vida do oficial decorreu em tranqüilidadecondenável, por três longos anos, quando um dia teve a dolorosa surpresade encontrar a companheira pérfida e insensível nos braços do músico ecantor Sérgio Acerronius, chegado a Massília com as ruidosas alegrias daCapital do Império.Nesse dia amargurado da sua existência, o filho de Flamínio investiusobre a mulher traidora, de arma na mão, disposto a tirar-lhe a vidacriminosa e dissoluta. No instante, porém, da sua desforra, considerouintimamente que o assassínio de uma mulher, ainda que diabolicamenteperversa, não deveria entrar nos trâmites da sua vida, supondo ainda que,deixá-la viver no caminho escabroso de suas crueldades, seria a melhorvindita do seu coração traído e desventurado.Abandonou, então, para sempre, aquela mísera criatura, que foieliminada mais tarde, em Âncio, pelo punhal implacável de Sérgio, que lhenão tolerou a infidelidade e a pervicácia no crime." Emannuel,"Sentindo-se só, Plínio Severus considerou, amarguradamente, oserros clamorosos da sua vida. Reviu o passado de futilidades condenáveise atitudes loucas. Quase pobre, viu-se misérrimo para voltar ao ambienteromano, onde tantas vezes brilhara na mocidade, em aventuras pródigas efelizes.Debalde lhe enviara o senador apelos afetuosos. Chamado a briospelas lições dolorosas do próprio destino, o oficial, amparado por algunsamigos de Roma, preferiu esforçar-se pela reabilitação nas cidades dasGálias, onde permaneceria longos anos em trabalho silencioso e rude,pelo reerguimento do seu nome diante dos parentes e amigos maisíntimos.Já entrado na idade madura, das profundas reflexões, grande lhe foio esforço de reabilitação, distante dos entes mais caros.Quanto ao velho senador, resistiu, decididamente, dentro da suarígida estrutura espiritual, aos golpes aspérrimos do destino. Fazendo daluta de cada dia o melhor caminho de esclarecimento, viu passar os anossem desânimo e sem ociosidade.Desde os trágicos acontecimentos em que Agripa e Saul haviamperdido a vida misteriosamente, com o abandono definitivo do marido,Flávia Lentúlia tinha a saúde abalada para sempre. Na epiderme, osvenenos de Ateia haviam sido anulados e vencidos pelas substânciasmedicamentosas aplicadas, mas a luz dos seus olhos fôra aniquilada paratodo o sempre. Desalentada e cega, encontrou, porém, no coraçãogeneroso de Ana, o carinho materno que lhe faltava em tão penosascircunstâncias da vida.A constituição física do senador, contudo, resistia a todos osembates e infortúnios.Entre os esforços de carinhosa assistência à filha e as lides políticasque lhe tomavam o máximo de atenção, seus dias decorreram cheios delutas acerbas, mas silenciosos e tristes, como sempre. Em seu espírito,havia agora as melhores e mais" Emannuel,"...sinceras disposições para apreender a essência sagrada dosensinamentos do Cristianismo e foi assim que o seu coração penetrou ocrepúsculo da velhice, como se as sombras fossem clarificadas porestrelas cariciosas e suaves. No seu íntimo, permanecia uma serenidadeimperturbável, mas, na vida do homem, corria o sopro inquieto do esforçopelas realizações do seu tempo. O coração estava resignado com asdesilusões penosas e amargas do destino, mas no poder supremo doImpério estava um tirano, que precisava cair, em benefício dasconstruções do direito e da família; e por isso, junto de numerososcompanheiros, entregou-se ao trabalho sutil da política interna, para aqueda de Domício Nero, que prosseguia avassalando a cidade com osespetáculos odiosos do seu nefando reinado.Caius Pisão, Sêneca, bem como outras figuras veneráveis da época,mais exaltadas no patriotismo e amor pela justiça, caíram sob as mãoscriminosas do celerado que cingia a coroa, mas Públio Lentulus, ao ladode outros irmãos de ideal que trabalharam no silêncio e na sombra dadiplomacia secreta, junto dos militares e do povo, esperou pela morte oupelo banimento do tirano, aguardando as claridades do futuro, surgidascom o efêmero reinado de Sérgio Sulpício Galba, que, no dizer de Tácíto,teria sido por todos considerado digno do governo supremo do Império, senão houvesse sido Imperador." Emannuel,"390VIIINa destruição de JerusalémMais de dez anos correram, silenciosamente amargurados, depoisde 58, sobre a vida comum das personagens desta história.Somente em 68, conseguira a política conciliatória de grandenúmero de patrícios, entre os quais Públio Lentulus, o definitivoafastamento de Domício Nero e suas nefandas crueldades. Todavia, aascensão de Galba durara poucos meses e aquele ano de 69 ia definirgrandes acontecimentos na vida do império.Lutas numerosas encheram a cidade de pavor e sangue.A terrível contenda entre Otão e Vitélio dividira todas as classes dafamília romana em facções hostis, que se odiavam ao extremo.Afinal, a famosa batalha de Bedriaco dava o trono a Vitélio, queinstaurou novo círculo de crueldades em todos os setores políticos.A diplomacia interna, porém, vigiava na sombra, examinandoatentamente a situação, de modo" Emannuel,"...a não permitir a continuidade de novo surto de extermínio e de infâmia.Vitélio apenas conservou o governo por oito meses e dias. porque,no mesmo ano de 69, as legiões do território africano, trabalhadas pelaorientação sutil dos que haviam derribado Nero e seus asseclas,proclamaram Vespasiano para a suprema investidura do Império. O novoimperador, que ainda se encontrava no campo de seus feitos de armas,empenhado na pacificação da Judeia distante satisfazia as exigênciasmais avançadas de todas as classes civis e militares, sendo recebido emtriunfo para o posto supremo, iniciando-se, assim, a era prestigiosa dosFlávios.Vespasiano integrava aquele grupo de patrícios operosos quecontribuíra, sem alardes, para a queda dos tiranos.Amigo pessoal de Públio Lentulus, o imperador se tornara famoso,não só por suas vitórias militares, mas também por seu criterioso tirocíniopolítico, evidenciado em Roma desde os dias turbulentos de Calígula.Sob a sua orientação administrativa, ia abrir-se uma trégua nasimoralidades governamentais, inaugurar-se-ia novo período decompreensão das necessidades populares e, na rota dos seus planoseconômico-financeiros, o Império ia caminhar para os dias regeneradoresde uma era nova.Públio recebeu todos os acontecimentos com a velada alegriapossível aos seus 67 anos de lutas e fortes experiências da vida. Sob aclaridade serena da velhice, todavia, sua fibra moral e resistência físicaeram as mesmas de sempre.Dentro da perspectiva de melhores dias para as realizaçõespatrióticas, considerava, agora, como bem empregado, todo o tempo queroubara à filha cega, para atender ao trabalho do bem coletivo; e foi nesseestado de espírito, com a consciência satisfeita pelo dever cumprido, deconformidade com as suas concepções, que se dirigiu a palácio para" Emannuel,"atender a chamado especial do imperador, que, muitas vezes, não deixoude recorrer ao conselho dos seus mais antigos companheiros de ideal.- Senador - disse-lhe Vespasiano, na intimidade tranqüila de um dosmagníficos gabinetes da residência imperial -, mandei chamá-lo para meamparar com a sua tradicional dedicação ao Império, na solução deassunto que julgo de suma importância. (1)- Dizei, Augusto!... - respondeu Públio, comovido.Mas o imperador, gentil, cortou-lhe a palavra:- Não, meu caro, entendamo-nos com a velha intimidade de outrostempos. Deixemos, por um instante, os protocolos.E, vendo que o senador esboçava um sorriso de reconhecimento àsua palavra fluente e generosa, continuou a expor a questão que ointeressava:- Chamado a Roma para o cargo supremo, não ousei desobedecer àssagradas injunções que me impeliam ao cumprimento desse grande dever,embora obrigado a deixar meu filho na obra de pacificação da Judeiaamotinada, trabalho esse que considerarei, em toda a vida, o meu melhoresforço pela vitalidade do Império, no desdobramento de suas gloriosastradições.Acontece, todavia, que o cerco de Jerusalém se vai prolongandodemasiado, acarretando as mais sérias conseqüências para meus projetoseconômicos, no programa restaurador que me propus realizar no governo.Suponho que o meu valoroso Tito esteja necessitando de umconselho de civis, além dos assistentes militares que o acompanham naarrojada empresa, e lembrei-me de organizá-lo tão somente__________(1) Vespasiano esteve em Roma logo após a sua proclamação - Nota de Emmanuel." Emannuel,"...com os amigos mais íntimos, que conheçam Jerusalém e suas cercanias.Quando das minhas primeiras incursões na edilidade, tiveconhecimento dos seus processos na reforma administrativa da Judeia,sabendo, portanto, da sua permanência em Jerusalém há mais de vinteanos.Era, pois, meu desejo que aceitasse, com outros poucoscompanheiros nossos, a incumbência de orientar melhor a tática militar demeu filho. Tito está necessitando da cooperação política de quem conheçaa cidade nos seus menores recantos, bem como os seus idiomaspopulares, de maneira a vencer a situação que se vai tornando cada vezmais penosa.Públio Lentulus pensou na filha doente, um instante, mas,recordando-se da dedicação absoluta de Ana, que poderia perfeitamentesubstituir seus zelos por algum tempo, respondeu com decisão e energia:- Meu nobre imperador, vossa palavra augusta é a palavra doimpério. O Império manda e eu obedeço, honrando-me em cumprir vossasdeterminações e correspondendo aos impulsos generosos da vossaconfiança.- Muito agradecido! - falou Vespasiano, estendendo-lhe a mão,extremamente satisfeito. Tudo estará pronto, de modo que sua partida, ede mais dois ou três amigos nossos, se verifique dentro de duas semanas,o mais tardar.Assim aconteceu.Depois das dolorosas despedidas da filha, que ficara aos cuidadosda serva dedicada, no palácio do Aventino, o senador tomava. a suntuosagalera que, largando de Óstia, penetrou depressa o mar largo, rumo àJudeia.O velho patrício reviveu, com penosa serenidade, as peripécias daviagem dos seus tempos de juventude venturosa, quando a felicidade erapara" Emannuel,"ele incompreensível, em companhia da esposa e dos dois filhinhos.Sim, a pequenina figura de Marcus, o filho desaparecido, pareciasurgir novamente a seus olhos, sob uma auréola de radioso e santificadoenlevo.Um dia, em Cafarnaum, levado pelas palavras caluniosas de SulpícioTarquinius, duvidou da honorabilidade da mulher, acreditando, mais tarde,que o rapto da criança fosse uma consequência da sua infidelidade. MasLívia agora estava redimida de todas as culpas, no tribunal da suaconsciência. Seus sacrifícios domésticos e a morte heróica no circoconstituíam a prova máxima da sublimada pureza do seu coração.Naqueles instantes de meditação, figurava-se-lhe que voltava ao passadocom os seus sofrimentos intermináveis, esbarrando sempre na sombrapesada do mistério, quando tentava reler as páginas desse dolorosocapítulo da sua existência.A que abismos insondáveis e desconhecidos teria sido levado opequenino que lhe perpetuaria a estirpe nobre?Suas emoções paternais pareciam alarmar-se de novo, depois detantos anos e tantos padecimentos em família.Mas, embora lhe flutuassem no íntimo as mais penosas dúvidas, osenador, na rigidez da sua enfibratura moral, preferia crer, consigomesmo, que Marcus Lentulus havia sido assassinado por malfeitoresvulgares, dados ao roubo e ao terrorismo, para nunca mais requisitar osseus desvelos paternais.Assim quereria crer, mas aquela viagem afigurava-se-lhe umaanálise de suas lembranças mais queridas e mais pungentes.De tarde, ao suave clarão do crepúsculo no Mediterrâneo, parecia-lhe ver ainda o vulto de Lívia acalentando o pequenino, ou falando-lhe aocoração em termos afetuosos de consolação, supondo lobri-" Emannuel,"...gar, igualmente, a figura de Comênio, o servo de confiança, entre ossubalternos e escravos.Em companhia de três outros conselheiros civis, chegou sem maiordificuldade ao destino, colocando-se esse reduzido conselho de íntimosdo imperador à imediata disposição de Tito, que lhe aproveitou ospareceres, utilizando com grande êxito as suas opiniões, filhas de largaexperiência da região e dos costumes.O filho do imperador era generoso e leal para com todos oscompatriotas, que o consideravam como benfeitor e amigo. Mas, para osadversários, Tito era de uma crueldade sem nome.Em torno da sua figura ardente e desassombrada, desdobravam-selegiões numerosas de soldados que combatiam encarniçadamente.O cerco de Jerusalém, terminado em 70, foi um dos maisimpressionantes da história da humanidade.A cidade foi sitiada, justamente quando intermináveis multidões deperegrinos, vindos de todos os pontos da província, se haviam reunidojunto ao templo famoso, para as festas dos pães ázimos. Daí, o excessivonúmero de vítimas e as lutas acérrimas da célebre resistência.O número de mortos nos terríveis recontros elevou-se a mais de ummilhão, fazendo os romanos quase cem mil prisioneiros, dos quais onzemil foram massacrados pelas legiões vitoriosas, depois da escolha doshomens válidos, entre cenas penosas de sangue e de selvageria por partedos soldados.O velho senador sentia-se amargurado com aqueles pavorososespetáculos de carnificina, mas cumpria-lhe desempenhar a palavra dada eera com o melhor espírito de coragem que dava pleno cumprimento ao seumandato.Seus pareceres e conhecimentos foram, muitas vezes, utilizadoscom êxito, tornando-se íntimo conselheiro do filho do imperador." Emannuel,"Diariamente, em companhia de um amigo, o senador PompílioCrasso, visitava os postos mais avançados das forças atacantes,verificando a eficácia da nova orientação observada pela estratégia militardos seus patrícios Os chefes de operações várias vezes lhes chamaram aatenção, para não avançarem muito em suas atitudes de desassombro,mas, Públio Lentulus não manifestava o menor receio, realizando, na suaidade, minuciosos serviços de reconhecimento topográfico da famosacidade.Afinal, na véspera da queda de Jerusalém, já se lutava quase corpo acorpo em todos os pontos de penetração, havendo incursões de parte aparte nos campos inimigos, com reciprocas crueldades contra todos osque tivessem a infelicidade de cair prisioneiros.Apesar do zelo de que eram cercados, Públio e o amigo, em virtudeda coragem de que davam testemunho, caíram nas mãos de algunsadversários que, ao lhes observarem a indumentária de altos dignitários daCorte Imperial, os conduziram imediatamente a um dos chefes dadesesperada resistência, instalado num casarão à guisa de quartel,próximo da Torre Antônia.Públio Lentulus, observando as cenas de selvajaria e sangue daplebe anônima e amotinada, que exterminava numerosos cidadãosromanos sob as suas vistas, lembrou a tarde dolorosa do Calvário, em queo piedoso profeta de Nazaré sucumbira na cruz, sob a vozeada terrificantedas multidões enfurecidas. Enquanto caminhava tangido com brutalidadee aspereza, o velho senador considerava, igualmente, que, se aquelemomento assinalasse a sua morte, devia morrer heroicamente, como suaprópria mulher, em holocausto aos seus princípios, embora houvessefundamental diferença entre o reino de Jesus e o império de César. A idéiade deixar Flávia Lentúlia órfã do seu afeto preocupava-lhe o íntimo;todavia, ponderava que a filha teria" Emannuel,"...no mundo a dedicação generosa e assídua de Ana, bem como o amparomaterial da sua fortuna.Foi nesse estado de espírito, surpreso com a sucessão dosacontecimentos, que atravessou longas ruas cheias de movimento, degritos, de impropérios e de sangue.Jerusalém, tomada de assombro, mobilizava as derradeiras energiaspara evitar a ruína completa.Ao cabo de algumas horas, extenuados de fadiga e sede, Públio e oamigo foram introduzidos no sombrio gabinete de um chefe judeu, queexpedia as mais impiedosas ordens de suplício e morte para todos osromanos presos, revidando às atrocidades do inimigo.Bastou que Públio fitasse aquele velho israelita de traçoscaracterísticos, para procurar, sofregamente, uma figura semelhante noacervo de suas lembranças mais íntimas e mais remotas.Não pôde, porém, de pronto, identificar aquela personagem.O velho chefe, contudo, pousou nele o olhar astuto e, fazendo umgesto de satisfação, exclamou com uma chispa de ódio a lhe transparecerde cada palavra:- Ilustríssimos senadores - enfatizou com ironia e desprezo -, eu vosconheço de longos anos...E, fixando Públio, acentuou com malícia:- Sobretudo, honro-me com a presença do orgulhoso senador PúblioLentulus, antigo legado de Tíbério e de seus sucessores nesta provínciaperseguida e flagelada pelas pragas romanas. Ainda bem que as forças dodestino não me permitiram partir para a outra vida, na minha velhicetrabalhosa, sem me desafrontar de uma injúria inolvidável.Avançando para o velho patrício que o contemplava supinamentesurpreendido, repetia com insistência irritante:- Não me reconheceis?..." Emannuel,"O senador, porém, tinha o semblante a evidenciar o seu penosoabatimento físico, em face daquela rude provação da sua vida; debalde,encarava a figura franzina e maquiavélica de André de Gioras, agora comelevado ascendente nos trabalhos do templo famoso, em vista da fortunaque Conseguira amealhar.Verificando a impossibilidade de ser identificado pelo prisioneiro,cuja presença, ali, mais o interessava e que lhe respondera a todas asperguntas com silencioso gesto negativo, o velho judeu retornou comsarcasmo:- Públio Lentulus, sou André de Gioras, o pai a quem insultaste umdia com o excesso da tua autoridade orgulhosa. Lembras-te agora?O prisioneiro fez um sinal afirmativo com a cabeça.Vendo, porém, que o seu atrevimento não o intimidava, o chefe deJerusalém insistia exasperado:- E porque não te humilhas neste momento, diante de minhaautoridade? Ignoras, porventura, que posso hoje decidir dos teusdestinos?... Qual a razão por que não me pedes comiseração?Públio estava exausto. Lembrou os seus primeiros dias emJerusalém, recordou a visita daquele agricultor inteligente e revoltado.Procurou rememorar, intimamente, as providências que adotara naqualidade de homem público, a fim de que o filho do judeu voltasse ao larpaterno, não se lembrando de haver destilado tanto fel naquele coraçãoirresignado. Deliberara nada dizer, diante da sua figura exasperada etruculenta, atendendo às suas íntimas disposições espirituais, mas, emface da ousada insistência, sem abdicar as antigas tradições de orgulho evaidade que o caracterizavam noutros tempos, e como se desejassedemonstrar desassombro em tão penosas circunstâncias, replicou, afinal,com energia:" Emannuel,"...- Se vos julgais aqui no cumprimento de uma obrigação sagrada,acima de qualquer sentimento particular e menos digno, não espereis quese vos peça comiseração, pelo fato de cumprirdes o vosso dever.André de Gioras franziu o sobrolho, exasperado com a respostaimprevista, andando de um lado para outro no amplo gabinete, como seestivesse a cogitar o melhor meio de executar a tremenda vingança.Depois de alguns momentos de sombrio silêncio, como se houvessechegado a uma solução condigna dos seus tigrinos projetos, chamou comvoz soturna um dos guardas numerosos, ordenando:- Vai depressa e dize a Ítalo, de minha parte, que deve aqui estaramanhã, às primeiras horas, de modo a cumprir minhas determinações.E enquanto o emissário saía, dirigiu-se aos dois prisioneiros nestestermos:- A queda de Jerusalém está iminente, mas darei a última gota desangue da minha velhice para exterminar as víboras do vosso povo. Vossaraça maldita veio cevar-se na cidade eleita, mas eu exulto com a minhavingança em vós ambos, orgulhosos dignitários do império da impiedade edo crime! Quando se abrirem as portas de Jerusalém, terei executadomeus implacáveis desígnios!Calando-se, bastou um gesto para que os dois amigos fossematirados numa enxovia escura e úmida, onde passaram uma noite terrívelde conjeturas dolorosas, trocando amarguradas confidências.Na manhã seguinte, eram chamados à prova suprema.Já se ouviam na cidade os primeiros rumores das forças romanasvitoriosas, entregando-se ao terror e ao saque da população humilhada einerme.Por toda parte, o êxodo precipitado de mulheres e crianças emgritaria infernal e angustiosa; mas, naquele casarão de grossas paredes depedra," Emannuel,"refugiara-se considerável número de chefes e combatentes, para aresistência suprema.Públio e Pompílio foram conduzidos a uma sala ampla, de ondepodiam ouvir o ruído crescente da vitória das armas imperiais, depois delances dramáticos e cruentos, em tanto tempo de terror, de rapina e deluta; todavia, ali, naquele compartimento espaçoso e fortificado, tinha àfrente centenas de guerreiros armados e alguns chefes políticos daresistência israelita, que os contemplavam.Diante do avanço vitorioso das legiões romanas, era de notar ainquietação e o pavor que dominavam todos os semblantes, mas havia uminteresse geral pelos dois prisioneiros importantes do Império, como seeles representassem o último objeto em que se pudessem cevar o ódio e avingança.Modificando, todavia, aquela situação indecisa, André de Giorastomou a palavra em voz estranha e sinistra, que retumbou por todos osângulos da casa:- Senhores! estamos chegando ao fim da nossa desesperada defesa,mas temos o consolo de guardar dois grandes chefes da amaldiçoadapolítica de rapina do império Romano!... Um deles é Pompílio Crasso, quecomeçou a sua carreira de homem público nesta província desventurada,inaugurando um longo período de terror entre os nossos compatriotasinfelizes! O outro, senhores, é Públio Lentulus, orgulhoso legado deTibério e de seus sucessores na Judeia humilhada de todos os tempos;que escravizou nossos filhos ainda jovens e organizou processoscriminosos em todas as zonas provinciais, fomentando o pavor de nossosirmãos perseguidos e flagelados, lá da sua residência senhorial daGalileia!... Pois bem! antes que os malditos soldados da pilhagem imperialnos aprisionem e aniquilem, cumpramos nossos desígnios!...Todos os presentes ouviram-lhe a palavra, como se fôra a ordemsuprema de um chefe a quem se devesse obedecer cegamente." Emannuel,"...Os dois senadores foram, então, amarrados com pesadas peças deferro aos postes do suplício, sem liberdade para qualquer movimento,restringindo suas expressões de mobilidade aos olhos silenciosos eserenos no sacrifício.- Nossa vingança - voltava o odiento israelita a explicar - deveobedecer ao critério da antigüidade. Primeiramente, deverá morrerPompílio Crasso, por ser o mais velho e para que o vaidoso senador PúblioLentulus compreenda o nosso esforço para eliminar a vitalidade do seuimpério maldito.Pompílio fitou longamente o amigo, como se estivesse fazendo suasdespedidas angustiosas e mudas, na hora extrema.- Nicandro, este trabalho te compete - exclamou André, voltando-separa um dos companheiros.E dando ao vigoroso soldado uma espada sinistra, acrescentou comprofunda ironia:- Tira-lhe o coração para o amigo, que deverá conservar a cena dehoje na sua memória, para sempre.Os olhos do condenado brilharam de intensa angústia, enquanto asfaces descoravam ao extremo, acusando as emoções dolorosas que lheiam na alma. Entre ele e o companheiro de amargura, foi trocado, então,um olhar inesquecível.Em minutos rápidos, Públio Lentulus assistiu ao desenrolar daoperação nefanda.A cabeça branca do supliciado pendeu ao primeiro golpe de espadae do seu tórax encarquilhado foi arrancado violentamente o coraçãopalpitante, sangrento.Entretanto, o senador sobrevivente ouvia já o rumor dos patríciosvitoriosos que se aproximavam afigurando-se-lhe que já se lutava corpo acorpo, às portas daquela turbulenta assembléia da vindita e do crime. Amonstruosa cena estarrecia-lhe o ânimo, sempre otimista e decidido, masnão perdeu" Emannuel,"a compostura altiva e rígida que ele a si mesmo se impunha, naqueleangustioso transe.Terminada a execução de Pompílio, feita à pressa, porquanto todosos presentes tinham consciência da horrorosa situação que os esperavadiante dos triunfadores, André de Gioras levantou novamente a voz:- Meus amigos - afirmou soturnamente -, ao mais velho, a penalidademisericordiosa da morte; mas, a este patrício infame que nos ouve,concederemos a pena amarga da vida, dentro do sepulcro das suasilusões desvairadas, de vaidade e orgulho!... Públio Lentulus, o antigoemissário dos imperadores, deverá viver!... Sim, mas sem os olhos que lheclarearam o caminho do egoísmo supremo sobre os nossos grandesinfortúnios!... Deixá-lo-emos com vida, para que nas trevas da sua noitebusque ver com os olhos dos escravos que ele espezinhou no curso davida.Havia um penoso silêncio interior, embora se ouvisse, lá fora, opatear dos cavalos e o tinir das armaduras, aliados ao rumor sinistro devozes praguejantes no ataque e na resistência desesperada do últimoreduto.André de Gioras parecia, porém, embriagado com a volúpia de suavingança e, mantendo o equilíbrio da assistência naquela hora trágica dodestino que a todos aguardava, com a palavra magnética e persuasivaexclamou energicamente:- Ítalo, compete ás tuas mãos a tarefa deste momento.Da assistência compacta e inquieta destacou-se um homem,aparentando quase quarenta anos de idade, surpreendendo o senadorpelos seus traços finos de patrício. Seus olhares encontraram-se e elesupôs descobrir naquela alma um laço de afinidade estranha eincompreensível.Ítalo? Aquele nome não lhe recordava alguma coisa dasproximidades da sua Roma inesquecida? Por que motivo estaria ali aquelehomem, eviden-" Emannuel,"...temente de sangue nobre, combatendo ao lado dos judeus amotinados eintoxicados de ódio? Por sua vez, o verdugo, indicado pela voz soberanade André, parecia inclinado à ternura e à piedade por aquele homem velhoe sereno, de mãos e pés amarrados ao poste da injúria, como que hesitavasobre se devia cumprir o sinistro e despiedado desígnio do seu chefe.Daí a minutos, surgia, de uma porta larga e sombria, um guerreiroisraelita, trazendo em ampla bandeja de bronze uma lâmina de ferroincandescente, cuja ponta aguçada repousava entre brasas vivas.Contemplando com interesse a enigmática figura de Ítalo, navitalidade da idade adulta, o senador, silencioso, não podia dissimular acuriosidade em face do seu vulto ereto e delicado.André, porém, gozando o quadro e percebendo a acurada atenção docondenado, arrancou-o daquele estado de conjetura e surpresa,ironizando:- Então, senador, estais admirando o porte nobre de Ítalo?...Lembrai-vos de que se os patrícios se dão ao luxo de possuir escravosisraelitas, os senhores da Judeia também apreciam os servos de tiporomano. Aliás, sou obrigado a considerar que é sempre perigosoguardarmos um escravo como este, na cidade, em vista da praga dopatriciado, hoje excessivo por toda a parte; mas eu consegui manter estehomem de trabalho no ambiente rural, até agora...Públio Lentulus mal poderia decifrar o sentido oculto daquelasirônicas palavras, não lhe sobrando tempo, ali, para qualquerintrospecção. Observou que André se calara, atendendo à urgência comque devia ser levada a efeito a operação em perspectiva, de modo a não seperder o vermelho incandescente da lâmina fatídica. Diante de muitosolhares atônitos e desesperados, que não sabiam se fixavam a cenamacabra ou se atentavam para a ruidosa penetração das forças de Tito aquebrarem naquele ins-" Emannuel,"tante os obstáculos do último reduto, o algoz implacável entregou a Ítalo oterrível instrumento do sacrifício.- Ítalo - recomendou com a máxima energia -, este minuto éprecioso... Vamos queimar-lhe as pupilas, de modo a lhe proporcionarmosuma sepultura de sombras eternas, dentro da vida.O pobre homem, todavia, sensibilizado até às lágrimas, em face dosuplício que deveria infligir por suas mãos, parecia indeciso e titubeante.- Senhor... - disse súplice, sem conseguir formular objeções.- Porque hesitas?... - revidou André, tiranicamente, cortando-lhe apalavra. - Será preciso o chicote para que me obedeças?Ítalo tomou, então, da lâmina, humildemente. Aproximou-se de levedo condenado cheio de resignação e de fortaleza interior. Antes doinstante supremo, seus olhares se encontraram, trocando vibrações desimpatia recíproca. Públio Lentulus ainda lhe fixou o porte, tocado deincontestável nobreza, esfacelada em suas linhas mais característicaspelos trabalhos mais impiedosos e mais rudes; e tão grande foi a atraçãoque experimentou por aquele homem, fixado pelos seus olhos em plenaluz, pela vez derradeira, que chegou a se recordar, inexplicavelmente, doseu pequenino Marcus, considerando que, se ele ainda vivesse numambiente tão hostil, deveria ter aquele porte e aquela idade.As mãos de Ítalo, trêmulas e hesitantes, aproximaram-se dos seusolhos exaustos, como se o fizessem numa doce atitude de carinho; mas oferro incandescente, com a rapidez do relâmpago, feriu-lhe as pupilasorgulhosas e claras, mergulhando-as na treva para todo o sempre.Nisso, observou a vítima que uma gritaria infernal reboava em toda asala.Uma dor indefinível irradiava-se da queimadura, fazendo-lheexperimentar atrozes padecimentos." Emannuel,"...Ele nada mais divisava, além das trevas espessas que lhe cobriam oespírito, mas adivinhava que as forças vitoriosas chegavam tardiamentepara libertá-lo.No meio dos ruídos ensurdecedores, André de Gioras ainda seaproximou do condenado, falando-lhe ao ouvido:- Poderia matar-te, senador infame, mas quero que vivas. Vourevelar-te, agora, quem é Ítalo, teu algoz do último instante!...Mas um golpe violento de espada, brandida por um legionárioromano, fizera o velho israelita cair ao solo sem sentidos, enquantocerteira punhalada atingia Ítalo, indeciso na sua estupefação, que caiupesadamente junto do supliciado, abraçando--lhe os pés, num gestosignificativo e supremo.Vozes amigas rodearam, então, Públio Lentulus, naquele ambientetumultuário. Desataram-lhe imediatamente os pés e as mãos, restituindo-lhe a liberdade dos movimentos, enquanto outros legionários retiravam ocadáver de Pompílio Crasso, com o peito vazio, num quadro pavoroso deselvajaria sanguinosa.Serenados os primeiros tumultos e guardando as mais penosasdúvidas sobre as palavras reticenciosas do inimigo implacável, PúblioLentulus, antes de ser levado pelo braço dos companheiros ao comandodas forças em operações, onde receberia os primeiros socorros,recomendou que tratassem com o máximo respeito o cadáver de Ítalo, quejazia ao lado de um montão de despojos sangrentos, no que foi atendido,obtemperando-lhe, porém, um companheiro:- Senador, antes de tudo, não vos esqueçais do vosso estado, queestá requerendo de todos nós os mais urgentes cuidados.E como se quisesse provocar uma explicação espontânea do ferido,quanto ao seu interesse pelo morto, acentuou delicadamente:" Emannuel,"- Não foi esse homem quem vos infligiu o horrendo suplício?À vista da pergunta inopinada e necessitando justificar sua atitudeperante os compatriotas que o ouviam, Públio exclamou com vozpungente:- Enganais-vos, meu amigo. Esse homem cujo cadáver agora nãovejo, era nosso conterrâneo, prisioneiro de muito tempo pela sanhavingativa de um poderoso senhor de Jerusalém... Observai-lhe os traçosnobres e concordareis comigo!...E enquanto se retirava amparado pelos amigos, a fim de recebersocorros imediatos e imprescindíveis, supôs haver cumprido um dever, empronunciando aquelas palavras, porque misteriosas vozes lhe falavam aocoração, acerca daquele olhar generoso que pousara em seus olhos pelaúltima vez.Vários dias esteve Jerusalém entregue ao saque e à desordem,levados a efeito pela soldadesca do império, faminta de prazeres eenvenenada no vinho sinistro do triunfo. Todos os chefes da resistênciaisraelita foram presos, a fim de comparecerem a Roma para o últimosacrifício, em homenagem às festas comemorativas da vitória. Entre elesincluía-se André de Gioras, que, restabelecido das escoriações recebidas,representava um dos que deveriam ser exterminados para gáudio daassistência festiva na Capital do império.Depois da matança de onze mil prisioneiros feridos ou inválidos,massacrados pelas legiões vencedoras; depois dos pavorososespetáculos da destruição e saque do templo magnífico, no qual Israeljulgava contemplar a sua obra eterna e divina para todas as gerações dasua posteridade prolífica, voltou a caravana compacta dos vencidos evencedores, cheia de riquezas ilícitas e troféus maravilhosos, de modo aexibir em Roma todos os ornamentos ilustrativos da vitória, entrevibrações tumultuárias e cânticos de triunfo.Numa galera confortável e tranqüila, viajou Públio Lentulus,resignado dentro da noite cerrada" Emannuel,"...da sua cegueira, rodeado de amigos prestimosos que tudo faziam porminorar-lhe os sofrimentos morais.Antes de chegar a Roma, vezes muitas cogitou da melhor maneira dese dirigir diretamente a André, para arrancar-lhe a verdade e serenar asdúvidas íntimas, quanto à identidade do escravo de tipo romano, que oferira para sempre, nos preciosos dons da vista. Ele, porém, agora, estavacego, e para realizar esse desejo teria de empregar um largo processo deprovidências, de colaboração estranha, e, assim, não havia atinado com amelhor maneira de ouvir o judeu sem ferir as tradições de dignidadepessoal, mantida em todos os tempos da vida pública.Foi, ainda, nesse impasse que chegou, novamente, ao palácio doAventino, acompanhado de numerosos companheiros de labores políticos,surpreendendo amarguradamente o coração da filha com a notícia trágicae dolorosa da sua cegueira.Ana, qual anjo fraterno, valorosa irmã de todos os infortunados,sincera discípula do Cristianismo, esperou carinhosamente o seu senhorjunto de Flávia que exclamava cheia de incoercível desalento:- Meu pai, meu pai, mas que desgraça!...O velho patrício, todavia, no seu otimismo, confortava-lhe o espírito,obtemperando:- Filha, não te dês ao trabalho de conjeturar a fundo os problemas dodestino. Em todos os acontecimentos da vida temos de louvar ossoberanos desígnios dos céus e espero que te encorajes de novo, porquesomente assim viverei agora, junto de ti, em consolação afetuosa erecíproca! Foi o próprio destino que me afastou compulsoriamente daslides do Estado, a fim de viver doravante somente por ti.Abraçaram-se então efusivamente, fundiram-se em beijos do mesmoinfortúnio, vibrações de duas almas presas aos mesmos padecimentos." Emannuel,"Públio Lentulus, porém, embora o necessário descanso, e apesar dacegueira que lhe impossibilitava as iniciativas, não perdeu a esperança deouvir a palavra do inimigo implacável, ainda uma vez, e, para isso,aguardou o dia ansiosamente esperado pelo povo romano, das soberanasfestas do triunfo.Convém acentuar que o velho senador foi conduzido à cidadeimediatamente, em virtude da sua especialíssima situação; mas ovencedor e as suas legiões infindáveis entrariam em Roma com todos osfaustosos protocolos dos triunfadores, de conformidade com osnumerosos regulamentos da própria antiga República.No dia aprazado, toda a Capital, com a sua população de um milhãoe meio de habitantes, aproximadamente, aguardava as magníficascomemorações da vitória.Desde as primeiras horas do dia, começaram a grupar-se ás portasda cidade as legiões vencedoras, desarmadas, vestindo delicadas túnicasde seda, ostentando soberbas auréolas de louro. Transpondo as portas dacidade, sob os aplausos estrondosos de multidões sem fim, foi-lhesoferecido esplêndido banquete, presidido pelo próprio imperador e seufilho.Vespasiano e Tito, logo após as cerimônias do Senado, no Pórticode Otávia, encaminharam-se para a Porta Triunfal. Ali, ofereceram umsacrifício aos deuses e tomaram os símbolos do triunfo nas aparatosasfestividades imperiais. Realizada essa cerimônia, pôs-se em marcha ogrande cortejo, ao qual Públio Lentulus não faltou, com a secreta intençãode ouvir a palavra reveladora do chefe prisioneiro, cujo cadáver, depoisdos sacrifícios daquele dia, seria atirado às águas do Tibre, de acordo comas tradições vigentes.Todos os troféus das batalhas sanguinolentas e todos os vencidos,em número considerável, eram levados igualmente em procissão, na festaindescritível." Emannuel,"...À frente do cortejo imenso, seguia incalculável quantidade de obrasde ouro puro, enfeitadas de cores variadas e berrantes, e, logo após,pedras preciosas em número incontável, não só em coroas de fulgurantebeleza, como também em estofos que maravilhavam os espectadores pelavariedade, sendo de notar que todos esses tesouros eram carregados porjovens legionários trajando túnicas de púrpura, com graciosos ornamentosdourados.Depois da exibição dos tesouros conquistados pelo triunfador,vinham, às centenas, as estátuas dos deuses, talhadas em marfim, emouro, em prata, de tamanhos prodigiosos.Em seguida aos deuses, todo um exército de animais, das maisvariadas espécies, entre os quais se distinguiam numerosos dromedáriose elefantes cobertos de magníficas pedrarias.Acompanhando os animais, a multidão compacta e acabrunhada dosprisioneiros vulgares, exibindo sua miséria e olhares tristes, procurandoocultar dos espectadores impiedosos e irreverentes os ferros pesados queos manietavam.Após os prisioneiros sucumbidos, passavam os simulacros dascidades vencidas e humilhadas, confeccionados com grande esmero,sustentados nos ombros de soldados numerosos, semelhantes aosmodernos carros alegóricos das festas carnavalescas. Haviarepresentações de todas as cidades destruídas e saqueadas, de batalhasvitoriosas, sem faltar o arrasamento dos campos, a queda de muralhas eos incêndios devastadores.Depois desses símbolos, eram os despojos riquíssimos dos povosvencidos e das cidades conquistadas, principalmente os de Jerusalém,carregados com muito desvelo pelos legionários. Sob os aplausosgritantes e irreverentes da turba que se apinhava por toda a parte,desfilaram as estátuas representando as figuras de Abraão e Sara, bemcomo de todas as personalidades reais da família de David, e mais todosos objetos sagrados do famoso" Emannuel,"templo de Jerusalém, tais a mesa dos Pães de Proposição, feita de ouromaciço, as trombetas do Jubileu, o castiçal de ouro com sete braços, o'paramentos de alto valor intrínseco, os véus sagrados do Templo, e, porfim, a Lei dos judeus, que seguia atrás de todos os despojos materiais,pilhados pelas forças triunfadoras. Cada objeto era carregado em andorespreciosos e bem ornamentados, ao ombro dos legionários romanoscoroados de louros.Após os textos da Lei, seguia Simão, o desventurado chefe supremode todos os movimentos da resistência de Jerusalém, acompanhado dosseus três auxiliares diretos, inclusive André de Gioras. Todos esses chefesda longa e desesperada resistência vestiam de preto e caminhavamsolenemente para o sacrifício, depois de exibidos em todas ascomemorações festivas do triunfo.Em seguida, vinham os carros soberbos e magníficos dostriunfadores. Após a passagem deslumbrante de Vespasiano, desfilavaTito num oceano de púrpura, de sedas e de vermelhão, simbolizando opróprio Júpiter, na embriaguez da sua vitória.No séquito de honra, passava igualmente o senador valetudinário ecego, não mais pelo prazer das homenagens, mas com o secreto desejo deouvir a palavra de André, antes do trágico momento em que o seu corpobalançasse sobre as águas lodosas do Tibre, no instante da consumaçãodo último suplício, sob os aplausos delirantes do povo.Após os carros imperiais dos vencedores e seus áulicos maisíntimos, vinha o exército compacto, entoando os hinos da vitória, enquantotodas as ruas e praças, foros e pórticos, terraços e janelas, se pejavam deincalculáveis multidões curiosas.O cortejo movimentou-se solenemente, desde a Porta Triunfal até aoCapitólio. Longas horas foram gastas no trajeto, através do sinuosocaminho, porquanto a festividade era consumada de molde a levar seusesplendores pelos recantos mais aristocráticos do patriciado romano." Emannuel,"...Em dado momento, todavia, antes de se elevar à colina, todo ocortejo parou e os olhos ansiosos da multidão convergiram para Simão eseus três companheiros, auxiliares diretos da sua chefia na resistência dacidade famosa.Públio Lentulus, embora cego, mas afeito ao tradicionalismodaquelas comemorações, compreendeu que era chegado o instantesupremo.Em virtude do seu caso especialíssimo e considerando a deferência que aautoridade julgava dever-lhe, o imperador preocupava-se com a suasituação no cortejo, recomendando ao filho, Domiciano, atender aquaisquer providências de que viesse a precisar em tais circunstâncias.Naquele momento, debaixo das vibrações ruidosas do delíriopopular, procedia-se ao flagício de Simão, diante de toda a Romaembriagada e vitoriosa, enquanto André de Gioras e os dois companheiroseram conduzidos à Prisão Mamertina, onde aguardariam o chefe, após aflagelação, para a morte em conjunto, de maneira que os cadáverespudessem ser arrastados através das Gemônias e, sob as vistas do povo,atirados às correntes do Tibre.De alma ansiosa, mas disposto a realizar seus desígnios, o senadorchamou o príncipe a cuja assistência fora recomendado, expressando-lheo desejo de dirigir a palavra a um dos prisioneiros, em particular e emcondições secretas, no que foi imediatamente atendido.Domiciano tomou-lhe do braço com atenção e, conduzindo-o a umadependência da prisão sinistra, determinou a vinda de André a umcubículo isolado e secreto, conforme o desejo de Públio, aguardando o fimda entrevista numa sala próxima, juntamente com alguns guardas, tão logopenetrou o condenado para o interrogatório do antigo político do Senado.Defrontando-se, os dois inimigos tiveram estranha sensação de mal-estar. Públio Lentulus não mais podia vê-lo, mas se os seus olhos já não ti-" Emannuel,"nham expressão emotiva, crestadas para sempre as pupilas claras eenérgicas, seu perfil ereto manifestava as emoções que o dominavam.- Senhor André - exclamou o senador, profundamente emocionado -,contra todos os meus hábitos provoquei este encontro secreto, de modo aesclarecer minhas dúvidas sobre as palavras reticenciosas em Jerusalém,no dia em que consumastes vossas impiedosas determinações a meurespeito. Não quero, agora, entrar em pormenores sobre a vossa atitude,mas tão somente informar-vos, neste momento em que a justiça doImpério vos toma à sua conta, que tudo fiz por devolver-vos o filhoprisioneiro, cumprindo um dever de humanidade, ao receber as vossassúplicas. Lamento que as minhas providências tardias não alcançassem oefeito desejado, fermentando tão violenta odiosidade no vosso coração.Agora, porém, não mais ordeno. Um cego não pode determinarprovidências de qualquer natureza, em face das penosas injunções da suaprópria vida, mas solicito o vosso esclarecimento, sobre a personalidadedo escravo que me crestou a vista para sempre!...André de Gioras estava igualmente abatidíssimo na sua decrepitudeenfermiça. Comovido pela atitude daquele pai humilhado e infeliz efazendo o íntimo retrospecto dos seus atos criminosos, naquelas horassupremas de sua vida, respondeu extremamente compungido:- Senador Lentulus, a hora da morte é diferente de todas as outrasque o destino concede à nossa existência à face deste mundo... É por isso,talvez, que sinto o meu ódio agora transformado em piedade, avaliando ovosso sofrimento amargo e rude. Desde que fui preso, venho considerandoos erros da minha vida criminosa... Trabalhando no Templo e vivendo parao culto da Lei de Moisés, só agora reconheço que Deus concede liberdadede ação a todos os seus filhos, mormente aos seus sacerdotes, tocando-lhes, porém, a cons-" Emannuel,"...ciência, no momento da morte, quando nada mais resta senão aapresentação da alma falida, diante de um tribunal a que ninguém podementir ou subornar!... Sei que é tarde para reagir no caminho percorrido, afim de refazer os nossos atos; mas um sentimento novo me faz falar-vosaqui com a sinceridade do coração, que, acicatado pelo julgamento divino,já não pode enganar a ninguém.Há quase quarenta anos, vossa austeridade orgulhosa determinou aprisão do meu único filho, remetendo-o impiedosamente para as galeras, edebalde implorei a vossa demência de homem público, para o meu espíritodesamparado... Das galeras, contudo, meu pobre Saul foi remetido paraRoma, onde foi vendido, miseravelmente, num mercado de escravos, aoSenador Flamínio Severus...Nesse instante, o cego, que escutava atenta e eminentementeemocionado, ao identificar, naquela narrativa, o algoz da filha,interrompeu-a perguntando:- Flamínio Severus?- Sim, era também, como vós, um senador do Império.Profundamente emocionado, ao ligar os fatos dolorosos de suafamília à pessoa do antigo liberto, mas necessitando de todas as energiasmorais para dominar-se, o senador recalcou no íntimo a sua amargura,conservando-se em atitude de expressivo silêncio, enquanto o condenadoprosseguia:- Saul, todavia, foi feliz... Abraçou a liberdade e fez fortuna, voltandode vez em quando a Jerusalém, onde me ajudou a prosperar; mas, devorevelar-vos que, não obstante os textos da Lei por mim pregada muitasvezes, que nos manda desejar ao próximo o que desejaríamos para nósmesmos, não cruzei os braços ante a vossa arbitrariedade criminosa,jurando vingar-me a qualquer preço; para isto, numa noite tranqüila, roubeio vosso pequenino Marcus na vossa residência de Cafarnaum, decumplicidade com uma de vossas" Emannuel,"servas, que mais tarde tive de envenenar, para que não viesse a revelar osegredo e tolher meus sinistros propósitos, quando a vossa ansiedadepaterna instituiu, em Jerusalém, o prêmio de um Grande Sestércio a quemdescobrisse o paradeiro do pequenino... Lembrareis, por certo, da criadaSêmele, que morreu repentinamente em vossa casa...Enquanto André do Gioras se detinha na triste confissão que lhetocava as fibras mais íntimas da alma, representando cada palavra umestilete de amargura a lhe retalhar o coração, Públio Lentulus chegavatardiamente ao conhecimento de todos os fatos, recordando osangustiosos martírios da companheira, como esposa caluniada e mãecarinhosa.Impressionado, porém, com o seu silêncio doloroso, Andrécontinuava:- Pois bem, senador; obedecendo aos meus sentimentoscondenáveis, raptei vosso filhinho, que cresceu humilhado nos mais rudestrabalhos da lavoura... aniquilei-lhe a inteligência... favoreci-lhe o ingressonos vícios mais desprezíveis, pelo prazer diabólico de humilhar umromano inimigo, até que culminei na minha vindita em nosso encontroinesperado! Mas, agora, estou diante da morte e não sei enxergar mais anossa situação, senão como pais desventurados... Sei que voucomparecer breve no tribunal do mais íntegro dos juízes, e, se vos fossepossível, eu desejava que me désseis um pouco de paz com o vossoperdão!O velho senador do Império não saberia explicar as suas profundasdores, ouvindo aquelas revelações angustiosas e amargas. OuvindoAndré, sentia ímpetos de perguntar pelo filhinho em criança, por suastendências, pelas suas aspirações da mocidade; desejava inteirar-se dosseus trabalhos, das suas predileções, mas cada palavra daquela confissãoamargurosa era uma punhalada nos seus sentimentos mais sagrados.Qual estátua muda do infortúnio, ainda ouviu o prisioneiro repetir, quase" Emannuel,"...em lágrimas, arrancando-o das suas divagações sombrias e tormentosas:- Senador - insistia ele, suplicando tristemente -, perdoai-me! Querocompreender o espírito da minha Lei, apesar do último instante!... Relevaimeu crime e dai-me forças para comparecer diante da luz de Deus!...Públio ouvia-lhe a voz súplice, enquanto uma lágrima de dorindescritível rolava dos seus olhos tristes e apagados.Perdoar? Mas, como? Não fôra ele, Públio, o ofendido e a vítima deuma existência inteira? Singulares emoções abalavam-lhe o íntimo,enquanto numerosos soluços lhe morriam na garganta opressa.Diante dele estava o inimigo implacável que procurara em vão, porconsecutivos e longos anos de infelicidade. Mas, na sua introspecção,sabia entender, igualmente, as próprias culpas, recordando os excessosda sua severidade vaidosa. Também ele ali estava como um cadáverambulante, no seio das sombras espessas. De que valeram as honrarias eo orgulho desenfreado? Todas as suas esperanças de ventura estavammortas. Todos os seus sonhos aniquilados. Senhor de fortunaconsiderável, não viveria mais, no mundo, senão para carregar o esquifenegro das ilusões despedaçadas. Todavia, seu íntimo se recusava aoperdão da hora extrema. Foi então que se lembrou de Jesus e da suadoutrina de amor e piedade pelos inimigos. O Mestre de Nazaré perdoara atodos os seus algozes e ensinara aos discípulos que o homem deveperdoar setenta vezes sete vezes. Recordou, igualmente, que, por Jesus,sua esposa imaculada morrera nas ignomínias do circo infamante; porJesus voltara FIamínio do reino das sombras, para incliná-lo, um dia, aoperdão e à piedade...Os ruídos de fora denunciavam que a hora derradeira de Andréestava próxima. O próprio Simão já caminhava vacilante e ensangüentado,depois do" Emannuel,"açoite, para o interior da prisão, epilogando o suplício.Foi então que Públio Lentulus, abandonando todas as tradições deorgulho e vaidade, sentiu que no íntimo dalma brotava uma fonte de linfacristalina. Copiosas lágrimas desceram-lhe às faces rugosas e macilentas,das órbitas sem expressão, dos olhos mortos e, como se desejasse fitar oinimigo com os olhos espirituais, a fim de mostrar-lhe a sua comiseração,exclamou em voz firme:- Estais perdoado...Voltando imediatamente à sala contígua e sem esperar qualquerresposta, compreendeu que era chegada a última hora do inimigo.Daí a minutos, o cadáver de André de Gioras era arrastado àsGemônias, para ser atirado ao Tibre silencioso.O senador nada mais percebeu do restante das numerosascerimônias no Templo de Júpiter.O cortejo era agora iluminado pela claridade de mil fachoscolocados pelos escravos em quarenta elefantes, por ordem de Tito, aocair das primeiras sombras da noite, mas o senador, acabrunhado nosseus padecimentos morais, regressava em liteira ao palácio do Aventino,onde se fechou nos seus apartamentos particulares, alegando grandecansaço.Tateando na sua noite, abraçou-se à cruz de Simeão, que lhe fôradeixada pela crença da esposa, molhando-a com as lágrimas da suadesventura.Em meditações profundas e dolorosas, pôde então compreender queLívia vivera para Deus e ele para César, recebendo ambos compensaçõesdiversas na estrada do destino. E enquanto o jugo de Jesus fôra suave eleve para sua mulher, seu altivo coração estava preso ao terrível jugo domundo, sepultado nas suas dores irremediáveis, sem claridade e semesperanças." Emannuel,"417IXLembranças amargasLogo após os penosos acontecimentos de 70 e de conformidadecom os desejos de Flávia, o senador passou a residir na vivendaconfortável que ele possuía em Pompeia, longe dos bulícios da Capital. Alipoderia entregar-se melhor às suas meditações.Para lá transportara então, o velho político, todo o seu volumosoarquivo, bem como as lembranças mais carinhosas e mais importantes dasua vida.Dois libertos gregos, extremamente cultos, foram contratados paraos trabalhos de escrita e leitura, e assim é que, no seu retiro, se mantinhaao corrente de todas as novidades políticas e literárias de Roma.Nesses tempos recuados, quando o homem se encontrava aindalonge dos benefícios preciosos da invenção de Gutenberg, os manuscritosromanos eram raros e sumamente disputados pelas elites intelectuais daépoca. Uma casa editora dispunha, quase sempre, de uma centena deescravos calígrafos, inteligentes, que confeccionavam mais ou menos millivros por ano." Emannuel,"Públio, além disso possuía em Roma sinceras e numerosasamizades ao seu serviço, recebendo em Pompeia todos os ecos dosacontecimentos da cidade que lhe absorvera as melhores energias da vida.Amiudadamente, recebia também notícias de Plínio Severus, porintermédio de amigos desvelados, confortando-se com as informaçõessobre sua conduta, agora digna, porquanto, pelos méritos conquistadosnas Gálias, fôra transferido, depois de 73, para Roma, onde, pela correçãodo proceder, embora tardiamente, conquistara posição respeitável ebrilhante, prosseguindo nas tradições da probidade paterna, nos cargosadministrativos do Império.Plínio, todavia, não mais voltara a procurar a esposa nem aquele queo destino o compelia a considerar como um pai dedicado e carinhoso,embora não ignorasse o supremo infortúnio dos seus familiares. Noíntimo, o antigo oficial romano não desdenhava a idéia de regressar aoseio dos entes queridos; contudo, desejava fazê-lo em condições dedissipar todas as dúvidas quanto no considerável esforço próprio, de suaregeneração. Galgando postos de confiança na administração dosFlavianos, queria uma posição de maiores vantagens morais, de maneira alevar aos seus íntimos a certeza da sua reabilitação espiritual.Corria o ano de 78, na placidez das paisagens formosas daCampânia. Enquanto Tibur representava uma estação de cura e descansoregenerador para os romanos mais ricos, Pompeia era bem a cidade dosromanos mais sadios e mais felizes. Em suas vias públicas encontravam-se, a cada passo, os mármores soberbos e o bom gosto das mais belasconstruções da capital aristocrática do Império. Em seus templossuntuosos, aglomeravam-se assembléias brilhantes, de patrícios educadose cultos, que se instalavam na linda cidade, povoada de cantores e poetas,ao pé do Vesúvio, e iluminada por" Emannuel,"...um céu de maravilhas, cheio de ridente sol ou bordado de estrelascintilantes.Públio Lentulus, agora, sobremaneira apreciava a palavra simples econvincente de Ana, que envelhecera ao lado de Flávia, qual bela figura demarfim antigo. Era de lhe ver o interesse, a comoção, a alegria ao ouvi-lasobre a excelência dos princípios cristãos, quando se entretinham emrecordações da Judeia distante.Nessas amáveis palestras, entre os três, logo após o jantar, discutia-se a figura do Cristo e as sublimadas ilações da sua doutrina, conseguindoo senador, pela força das circunstâncias, meditar melhor os grandiosospostulados do Evangelho, ainda fragmentário e quase desconhecido, paraligar os princípios generosos e santos do Cristianismo à personalidade doseu divino fundador.Longas horas ficavam ali, no terraço amplo, sob a luz branda dasestrelas e usufruindo a carícia das brisas da noite, que eram como quebafejos de inspirações celestes, aquelas três criaturas, em cujas frontes sevincavam as experiências dos anos.Por vezes, Flávia fazia um pouco de música, que lhe saía da harpacomo vibrante gemido de dor e de saudade, alcançando o coração paternomergulhado no abismo das reminiscências dolorosas. É que a música doscegos é sempre mais espiritualizada e mais pura, porque, na sua arte, falaa alma profundamente, sem as emoções dispersas dos sentidos materiais.Uma noite, obedecendo ao hábito de muitos anos, vamos encontraraquelas três criaturas no espaçoso terraço da vila de Pompeia, em docesrememorações.Havia mais de sete anos que quase todas as palestras versavam, ali,sobre a personalidade do Messias e a excelsa pureza da sua doutrina,observada, antes de tudo, a precisa discrição, porquanto os adeptos doCristianismo continuavam perseguidos, embora com menos crueldade." Emannuel,"Em todo caso, invariavelmente, a conversação era de enfermos e develhos, sem provocar o interesse dos amigos mais moços e mais felizes.Depois de algumas lembranças e comentários de Ana, a respeito daangustiosa tarde do Calvário, exclamava o velho senador em tomconvencido:- De mim para comigo, tenho a certeza de que Jesus ficará parasempre no mundo, como o mais elevado símbolo de consolação e fortalezamoral para todos os sofredores e para todos os tristes!...Desde os primeiros dias de minha cegueira material procuro,intimamente, compreender-lhe n grandeza e não consigo apreender toda aextensão da sua excelsitude e dos seus ensinos.Lembro-me, como se fosse ontem, do crepúsculo formoso em que ovi pela primeira vez, ao longo das margens do Tiberíades...- Eu também - murmurou Ana - não consigo olvidar aquelas tardesdeliciosas e claras em que todos os servos e sofredores de Cafarnaum nosreuníamos à margem do grande lago, esperando o suave enlevo das suaspalavras.E como se estivesse contemplando o desfile de suas recordaçõesmais queridas, com os olhos da imaginação, a velha serva continuava:- O Mestre apreciava a companhia de Simão e dos filhos de Zebedeue, quase sempre, era em uma de suas barcas que ele vinha, solicito,atender às nossas rogativas...- O que mais me assombrava - dizia Públio Lentulus, impressionado- é que Jesus não era, que se soubesse, um doutor da Lei ou sacerdoteformado pelas escolas humanas. Sua palavra, entretanto, estava como queungida de uma graça divina. O olhar sereno e indefinível penetrava o fundoda alma e o sorriso generoso tinha a complacência de quem, possuindotoda a verdade, sabia compreender e perdoar os erros humanos. Seusensinos, diariamente meditados por mim, nestes" Emannuel,"...últimos anos, são revolucionários e novos, pois arrasam todos ospreconceitos de raça e de família, unindo as almas num grande amplexoespiritual de fraternidade e tolerância. A filosofia humana jamais nos disseque os aflitos e pacíficos são bem-aventurados no céu; entretanto, com assuas lições renovadoras, modificamos o conceito de virtude, que, para oDeus soberano e misericordioso das Alturas, não está no homem mais ricoe poderoso do mundo, mas no mais justo e mais puro, embora humilde epobre.Sua palavra compassiva e carinhosa espalhou ensinamentos quesomente hoje posso compreender, na sombra espessa e triste dos meussofrimentos..- Meu pai - perguntou Flávia Lentúlia, extremamente interessada naconversação -, chegastes a ver o profeta muitas vezes?...- Não, filha. Antes do dia nefasto de sua morte infamante na cruz,somente o vi uma vez, ao tempo em que eras pequenina e doente. Issobastou, contudo, para que eu recebesse, nas suas palavras sublimes,luminosas lições para toda a vida. Só hoje entendo as suas exortaçõesamigas, compreendendo que a minha existência foi bem uma oportunidadeperdida!... Aliás, já naquele tempo, sua profunda palavra me dizia que eudefrontava, no minuto do nosso encontro, o maravilhoso ensejo de todosos meus dias, acrescentando, na sua extraordinária benevolência, que eupoderia aproveitá-lo naquela época ou daí a milênios, sem que me fossepossível apreender o sentido simbólico de suas palavras...- Todas as concessões de Jesus se esteavam na Verdade santificadae consoladora - acrescentou Ana, agora gozando de toda a intimidade comos seus senhores.- Sim - exclamou Públio Lentulus, concentrado nas suasreminiscências -, minhas observações pessoais autorizam-me a crer damesma forma." Emannuel,"Se eu tivesse aproveitado a exortação de Jesus naquele dia, talvezhouvesse alijado mais de metade das provações amargas que a Terra mereserva... Se houvesse buscado compreender sua lição de amor ehumildade, teria procurado André de Gioras, pessoalmente, reparando omal que lhe havia feito, com a prisão do filho ignorante, demonstrando-lheo meu interesse individual, sem confiar tão somente nos funcionáriosirresponsáveis que se encontravam a meu serviço... Guiado por esseinteresse, teria encontrado Saul facilmente, pois Flamínio Severus seria,em Roma, o confidente dos meus desejos de reparação, evitando dessamaneira a dolorosa tragédia da minha vida paternal.Se houvesse entendido bastante a sua caridade, na cura de minhafilha, teria conhecido melhor o tesouro espiritual do coração de Lívia,vibrando com o seu espírito na mesma fé, ou caindo juntamente com elana arena ignominiosa do circo, o que seria suave, em comparação com aslentas agonias do meu destino; teria sido menos vaidoso e mais humano,se lhe houvesse entendido a preceito a lição de fraternidade...- Meu pai - exclamava, porém, a filha, de molde a confortar-lhe asagruras do coração -, se Jesus é a sabedoria e a verdade, de qualquermodo ele saberia compreender as razões da vossa atitude, sabendo quefostes forçado pelas circunstâncias a manter esse ou aquele princípio emvossa vida.- Minha filha, nestes últimos anos - revidou Públio ponderadamente -tenho a presunção de haver chegado as mais seguras conclusões arespeito dos problemas da dor e do destino...Acredito hoje, com a experiência própria que as atividades penosasdo mundo me ofertaram, que nós contribuímos, sobretudo, para agravar ouatenuar os rigores da situação espiritual, nas tarefas desta vida.Admitindo, agora, a existência de um Deus Todo-Poderoso, fonte de toda amisericórdia e todo o amor, creio que a Sua Lei é a do bem" Emannuel,"...supremo para todas as criaturas. Esse código de solidariedade e de amordeve reger todos os seres e, dentro dos seus dispositivos divinos, afelicidade é o determinismo do céu para todas as almas. Toda vez quecaímos ao longo do caminho, favorecendo o mal ou praticando-o,efetuamos uma intervenção indébita na Lei de Deus, com a nossaliberdade relativa, contraindo uma dívida com o peso dos infortúnios...Não me referindo aos meus atos pessoais, que agravaram as minhasangustiosas dores íntimas, e considerando Jesus como medianeiro entrenós e Aquele a quem a sua profunda palavra chamava Pai-Nosso, fico hojea pensar se não cometi um erro, forçando a sua misericórdia com a minhasúplica paternal, a fim de que continuasses a viver neste mundo, para onosso amor em família, quando eras pequenina!...Flávia Lentúlia e Ana, que acompanhavam os raciocínios dosenador, desde muitos anos, lhe seguiam as conclusões morais, cheias desurpresa, em face da facilidade íntima com que sabia aliar as liçõespenosas do seu destino aos princípios pregados pelo profeta Nazareno.- Na verdade, meu pai - disse Flávia Lentúlia, depois de longa pausa -, tenho a impressão de que as forças divinas haviam deliberado arrebatar-me do mundo, considerando as dores penosas que me esperavam naestrada escabrosa do meu destino desventurado...- Sim - ajuntou o senador, cortando-lhe a palavra -, ainda bem queme compreendeste. A vida e o sofrimento nos ensinam a entender melhoro plano das determinações de ordem divina.Antigos iniciados das religiões misteriosas do Egito e da Índiaacreditam que voltamos várias vezes à Terra, noutros corpos!...Nesse instante, o velho patrício fez uma pausa.Lembrou-se dos seus antigos sonhos, quando, em se vendo com aindumentária de Cônsul nos" Emannuel,"tempos de Catilina, infligia aos inimigos políticos o suplício da cegueira, aferro incandescente, quando se chamava Públio Lentulus Sura.Nos seus pensamentos caia como que uma torrente de ilaçõesnovas e sublimadas, como se fossem renovadoras inspirações dasabedoria divina.Mas, depois de alguns instantes, como se o relógio da imaginaçãohouvesse parado alguns minutos. para que o coração pudesse escutar otropel das lembranças no deserto do seu mundo subjetivo, murmurava,confortado, na posse tardia do roteiro do seu amargurado destino:- Hoje creio, minha filha, que, se as energias sábias do céu haviamdecidido a tua morte, em pequenina - determinação essa que eupossivelmente contrariei com a minha súplica angustiosa de pai,descoberta em silêncio pelo Messias de Nazaré no recôndito do meuorgulhoso e infeliz coração - e que deverias ficar livre do cárcere que teprendia, de modo a te preparares melhor para a resignação, para afortaleza e para os sofrimentos. Certamente, renascerias mais tarde eencontrarias as mesmas circunstâncias e os mesmos inimigos, mas teriasum organismo mais forte para resistir aos embates penosos da existênciaterrestre.Reconhecemos hoje, portanto, que há uma lei soberana emisericordiosa a que devemos obedecer, sem interferir no seu mecanismofeito de misericórdia e sabedoria...Quanto a mim, que tive organismo resistente e fibra espiritualsaturada de energia, sinto que, em outras vidas, procedi mal e cometicrimes nefandos.Minha atual existência teria de ser um imenso rosário de infinitasamarguras, mas vejo tardiamente que, se houvesse ingressado nocaminho do bem, teria resgatado um montão de pecados do pretéritoobscuro e delituoso. Agora entendo a lição do Cristo como ensinamentoimortal da humildade e do amor, da caridade e do perdão - caminhos" Emannuel,"...seguros para todas as conquistas do espírito, longe dos círculostenebrosos do sofrimento!E lembrando o sonho que relatara a Flamínio, nos tempos idos,concluía:- A expiação não seria necessária no mundo, para burilamento daalma, se compreendêssemos o bem, praticando-o por atos, palavras epensamentos. Se é verdade que nasci condenado ao suplício da cegueira,em tão trágicas circunstâncias, talvez tivesse evitado a consumação destaprova, se abandonasse o meu orgulho para ser um homem humilde e bom.Um gesto de generosidade de minha parte teria modificado asíntimas disposições de André de Gioras; mas, a realidade é que, nãoobstante todos os preciosos alvitres do Alto, continuei com o meuegoísmo, com a minha vaidade e com a minha criminosa impenitência.Agravei, desse modo, meus débitos clamorosos perante a Justiça Divina, enão posso esperar magnanimidade dos juizes que me aguardam...O velho Públio Lentulus tinha uma lágrima dolorosa no canto dosolhos apagados, mas Ana. que ansiosa lhe escutara as palavras econceitos, e que se regozijava intimamente verificando que o orgulhososenhor atingira as mais justas conclusões de ordem evangélica, ilações aque também ela havia chegado nas meditações da velhice, esclarecia,bondosamente, como se as suas afirmativas simples e incisivaschegassem no momento justo para consolação de todos:- Senador - todas as vossas observações são criteriosas e justas.Essa lei das vidas múltiplas, em favor do nosso aprendizado nas lutaspenosas do mundo, eu a aceito plenamente, pois, nas suas divinas lições,Jesus asseverou que ninguém poderá penetrar o reino dos céus semrenascer de novo. Presumo, todavia, apesar da vossa cegueira material edos vossos padecimentos, que sei compreender em toda a sua angustiosaintensidade, deveis" Emannuel,"trazer a alma plena de crença e de esperanças no futuro espiritual, porquetambém o Cristo nos afiançou que Nosso Pai não quer que se perca umasó de suas ovelhas!...Públio Lentulus sentiu que uma força inexplicável lhe brotava noíntimo, como se fôra manancial desconhecido, de estranho conforto,preparando-o para enfrentar dignamente todos os amargores.- Sim - murmurou de leve -, sempre Jesus!... Sempre Jesus!... Semele e sem os ensinos de suas palavras que nos enchem de coragem e de fépara alcançar um reino de paz no porvir da alma, não sei bem o que seriadas criaturas humanas, agrilhoadas ao cárcere dos sofrimentosterrestres... Sete anos de padecimentos infinitos na soledade dos meusolhos mortos, figuram-se-me sete séculos de aprendizado cruel edoloroso! Somente assim, porém, poderia chegar a entender a lição doCrucificado!O velho patrício, todavia, ao pronunciar a palavra ""crucificado"",reconduziu o pensamento a Jerusalém, na Páscoa do ano 33. Recordouque tivera em mãos o processo do Emissário Divino e, só então, ponderoua tremenda responsabilidade em que se vira envolvido naquele diainolvidável e doloroso, exclamando depois de longa pausa:- E pensar que, para um espírito como aquele, não houve sequer umgesto decisivo de defesa, da nossa parte, no angustioso momento da cruzinfamante... . A mim, que agora vivo tão somente das minhas recordaçõesamargas, parece-me vê-lo ainda à frente dos meus olhos, com os tristesestigmas da flagelação!...Nele, concentrava-se todo o amor supremo do céu para redençãodas misérias da Terra e, entretanto, não vi pessoa alguma trabalhar pelasua liberdade, ou agir efetivamente em seu favor!...- Menos alguém... - exclamou Ana, inopinadamente." Emannuel,"...Quem chegou a ter esse gesto nobre? - perguntou o velho cego,admirado. - Não me constou que alguém o defendesse.- É porque ignorastes, até hoje, que vossa digna consorte e minhainesquecível benfeitora, atendendo aos nossos rogos, se dirigiuimediatamente a Pôncio Pilatos, tão logo o triste cortejo havia saído dacorte provincial romana, para interceder pelo Messias de Nazaré,injustamente condenado pela multidão enfurecida. Recebida pelogovernador no seu gabinete particular, foi em vão que a nobre senhoraimplorou compaixão e piedade para o Divino Mestre.- Então Lívia chegou a dirigir-se a Pilatos para suplicar por Jesus? -perguntou o senador, interessado e perplexo, recordando aquela tardeangustiosa da sua vida e rememorando as calúnias de Fúlvia, a respeito daesposa.- Sim - respondeu a serva -, por Jesus, seu coração magnânimodesprezou todas as convenções e todos os preconceitos, não vacilandoem atender às nossas súplicas, tudo fazendo por salvar o Messias damorte infamante!...Públio Lentulus sentiu, então, grande dificuldade para externar seuspensamentos, com a garganta sufocada de emoção, dentro de suasamargas lembranças, e com os olhos mortos, marejados de lágrimas...Ana, porém, recordou todos os pormenores daquele dia doloroso,relatando suas passadas emoções, enquanto o senador e a filha lheescutavam a palavra, tomados de pranto no caminho da dor, da gratidão eda saudade.E era desse modo que, ao fim de cada dia, sob o céu brilhante eperfumado de Pompeia, aquelas três almas se preparavam para asrealidades consoladoras da morte, dentro da claridade terna e triste daslições amargas do destino, na esteira das recordações amigas." Emannuel,"428XNos derradeiros minutos de PompeiaEm radiosa manhã do ano de 79, toda a Pompeia despertou emrumores festivos.A cidade havia recebido a visita de um ilustre questor do Império e,naquele dia, todas as ruas se movimentavam em alacridade barulhenta,aguardando-se, para breves horas, as festas deslumbrantes do anfiteatro,com que a administração desejava celebrar o evento, em meio da alegriageral.Para o velho senador Públio Lentulus, o acontecimento se revestiade importância especial, porquanto o distinto hóspede de Pompeia lhetrazia significativa mensagem, bem como honrosas deferências de TitoFlavius Vespasiano, então imperador, na sucessão de seu pai.Ainda mais.No séquito do questor ilustre vinha, igualmente, Plínio Severus, emplenitude de maturidade, totalmente regenerado e julgando-se agoraredimido no conceito da esposa e daquele que seu coração consideravacomo pai." Emannuel,"...Nesse dia, enquanto Ana comandava, verbalmente, as atividadesdomésticas nos preparativos da recepção, mobilizando escravos e servosnumerosos, Públio e filha se abraçavam comovidos, em face da surpresaque o destino lhes reservara, embora tardiamente. Avisados pormensageiros da caravana de patrícios ilustres, davam larga às emoçõesmais gratas do espírito, na doce perspectiva de acolherem o filho pródigo,tantos anos distante de seus braços amigos.Antes do meio-dia, um deslumbramento de viaturas, de cavalosajaezados e de jóias faiscantes sobre vestiduras reluzentes se deparava àsportas da vila plácida e graciosa, provocando a admiração e o interessecurioso das vizinhanças. E, em seguida, foi um turbilhão de abraços,carinhos, palavras confortadoras e generosas.Quase todos os patrícios, em excursão pela Campânia, conheciam osenador e sua família, representando esse acontecimento um suaveencontro de corações.Públio Lentulus abraçou Plínio, demoradamente, como se fizesse aum filho bem-amado, que voltasse de longe e cuja ausência houvera sidoexcessivamente prolongada. Experimentava no íntimo impulsos deextravasão de afeto, que o seu coração dominou, para não provocar aadmiração injustificada dos circunstantes.- Meu pai, meu pai! - disse o filho de FIamínio em tom discreto equase imperceptível aos seus ouvidos, quando lhe beijava a fronteencanecida - já me perdoastes?Ó filho, como tardaste tanto?!... Quero-te como sempre e que o céute abençoe!... - respondeu o velho cego, emocionado.Daí a instante, após o doce encontro de Plínio e sua mulher,exclamou o questor em meio do silêncio geral:- Senador, honro-me em trazer-vos preciosa lembrança de César,acompanhada de uma mensa-" Emannuel,"gem de reconhecimento da alta administração política do Império, um dosmais fortes e mais justos motivos de minha permanência em Pompeia, eincumbo o nosso amigo Plínio Severus de vos entregar, neste momento,estas relíquias que representam uma das mais significativas homenagensdo Império ao esforço de um dos seus mais dedicados servidores!...Públio Lentulus sentia bem a suprema emoção daquela hora.A homenagem do imperador, a carinhosa presença dos amigos, avolta do genro aos seus braços paternos, representavam para o seucoração uma alegria entontecedora.Seus olhos, entretanto, nada podiam ver. Do seio da sua noite, ouviaaqueles apelos generosos, como um desterrado da luz, de quem seexumassem as recordações mais queridas e mais doces.- Amigos - disse, enxugando uma lágrima furtiva nos olhosapagados -, tudo isso é para mim a maior recompensa de uma vida inteira.Nosso imperador é um espírito excessivamente generoso, porque averdade é que nada fiz para merecer o reconhecimento da pátria.Minhalma, todavia, exulta convosco, meus patrícios, porque a nossareunião nesta casa é símbolo de união e trabalho, nos elevados encargosdo Império!...Nesse instante, contudo, alguém lhe tomava as mãosencarquilhadas, levando-as aos lábios úmidos, deixando, porém, naspequeninas conchas das rugas, duas lágrimas ardentes.Plínio Severus, num gesto espontâneo, ajoelhara-se e, osculando-lheas mãos, dava expansão ao seu afeto e reconhecimento, ao mesmo tempoque lhe fazia entrega da mensagem imperial que o velho senador não maispodia ler.Públio Lentulus chorava, sem poder pronunciar uma única palavra,tal a emoção que lhe oprimia o íntimo, enquanto os circunstantes lheacom-" Emannuel,"...panhavam as atitudes com os olhos rociados de pranto.Nesse ínterim, o filho de Flamínio não mais se conteve e,consagrando a sua regeneração espiritual, exclamava enternecido:- Meu querido pai, não choreis, se aqui nos achamos todos paracompartilhar vossa alegria! Diante de todos os nossos amigos romanos,com a homenagem do Império, eu vos entrego o meu coração regeneradopara sempre!... Se estais agora cego, meu pai, não o estais pelo espíritoque sempre procurou dissipar as sombras e remover tropeços do nossocaminho!... Continuareis guiando os meus, ou, melhor, os nossos passos,com as vossas antigas tradições de sinceridade e de esforço, na retidãodo proceder!... Voltareis comigo para Roma e, junto de vosso filhoreabilitado, organizareis novamente o palácio do Aventino... Serei, então,para todo o sempre, uma sentinela do vosso espírito, para vos amar eproteger!... Tomarei minha esposa a meu inteiro cuidado e, dia a dia,tecerei para nós três uma auréola de venturas novas e indefiníveis, com osmilagres da minha afeição imorredoura! Em nossa casa do Aventinoflorescerá uma alegria nova, porque hei-de prover todas as vossas horascom o amor grande e santo de quem, conhecendo todas as durasexperiências da vida, sabe agora valorizar seus próprios tesouros!...O velho senador, alquebrado pelos anos e pelos mais rudessofrimentos, conservava-se de pé, acariciando os cabelos do genro,igualmente prateados pelos invernos da vida, enquanto pesadas lágrimasrompiam a muralha da sua noite para enternecer o coração de todos, numaangustiosa e indefinível emotividade. Flávia Lentúlia chorava, igualmente,dominada por íntimas sensações de felicidade, ao cabo de tão longas edesalentadas esperanças!... Alguns amigos desejavam quebrar asolenidade dolorosa daquele quadro imprevisto, mas o próprio questor,que chefiava a caravana de patrícios ilus-" Emannuel,"tres, se ocultara num recanto, sensibilizado até às lágrimas.Públio Lentulus, contudo, compreendendo que somente ele própriopoderia modificar as disposições daquela paisagem sentimental, reagiu àsemoções, exclamando:- Levanta-te, meu filho!... Nada fiz para me agradeceres de joelhos...Porque me falas deste modo?... Voltaremos para Roma, sim, em brevesdias, pois todos os teus desejos são os nossos... regressaremos à nossacasa do Aventino, onde, juntos, viveremos para relembrar o pretérito evenerar a memória dos nossos antepassados!E, depois de uma pausa, continuou, em exclamações quaseotimistas:- Meus amigos, sinto-me comovido e grato pela gentileza e afeto detodos vós! Mas, que é isso? Todos silenciosos? Lembrai-vos de que nãovos vejo senão através das palavras. E a festa de hoje?...As exclamações do senador quebraram o silêncio geral, voltando-seaos intensos ruídos de minutos antes. A torrente das palestras casava-seao tinir das taças de vinho, em seus pesados estilos da época.Enquanto as visitas se reuniam no triclínio espaçoso para libaçõesligeiras, Plínio Severus e a esposa trocavam confidências ternas, ora sobreos projetos em perspectiva para os anos que ainda lhes restavam nomundo, ora quanto às recordações dos dias lentos e amargurados dopassado distante.Insistentes chamados, porém, requeriam a presença do questor ecomitiva, no local dos festejos.O circo fôra preparado a rigor e não se perdera nenhumaoportunidade para a realização das menores minudências próprias dasgrandes festividades romanas.E ao mesmo tempo que todos se despediam do senador e de suafilha, num deslumbramento de" Emannuel,"...felicidade mundana, Plínio Severus dirigia-se a Públio nestes termos,depois de abraçar ternamente a companheira:- Meu pai, levado pelas circunstâncias, sou compelido a acompanharo questor nas festividades populares, mas estarei de regresso em breveshoras, para ficar convosco um mês, de modo a tratarmos do nossoregresso a Roma.- Muito bem, meu filho - respondia o velho senador, sumamenteconfortado -, acompanha os nossos amigos e representa-me junto dasautoridades. Dize a todos da minha emoção e do meu agradecimentosincero.A sós novamente, o senador sentiu que aquelas comoçõescariciosas e alegres eram, talvez, as últimas da sua vida. No velho peito, ocoração batia-lhe descompassado, como se pesada nuvem depensamentos tristes o envolvesse. Sim, a volta de Plínio aos seus braçospaternos era a alegria suprema da sua velhice desalentada. Sabia, agora,que a filha poderia contar com o esposo, nas estradas do seu tormentosodestino, e que a ele, Públio, somente competia aguardar a morte,resignado. Ponderando as palavras afetuosas do filho de FIamínio e osseus apelos ao passado remoto, Públio Lentulus considerou, intimamente,que era muito tarde para regressar ao Aventino e que a volta a Romaapenas devia significar, para o seu espírito precito, o símbolo da sepultura.Em pleno espetáculo, Plínio Severus, já no outono da vida,arquitetava os planos de futuro. Procuraria resgatar todas as faltasantigas, perante os seus parentes afetuosos e queridos; assumiria adireção de todos os negócios do velho pai pelo coração, aliviando-o detodas as angustiosas preocupações da vida material.De vez em quando, os aplausos da multidão lhe interrompiam osdevaneios. A maioria da população de Pompeia ali estava em plena festa,ovacionando os triunfadores. Gente de toda a re-" Emannuel," dondeza e muito particularmente de Herculanum, acorrera pressurosa aodivertimento predileto daquelas épocas recuadas. De permeio com osatletas e gladiadores, estavam os músicos, os cantores e os dançarinos.Tudo era um farfalhar de sedas, um delicioso chocalhar de alegriasruidosas, ao som de flautas e alaúdes.Em dado instante, porém, a atenção geral foi solicitada por um fatoestranho e incompreensível. Do cimo do Vesúvio elevava-se grossapirâmide de fumo, sem que ninguém atinasse com a causa do fenômenoinsólito.Continuavam os jogos animadamente, mas agora, no seio da colunafumarenta que se elevava em caprichosos rolos para o alto, surgiamimpressionantes labaredas...Plínio Severus, como todos os presentes, se surpreendia com ofenômeno estranho e inexplicável.Em minutos breves, no entanto, estabeleciam-se no anfiteatro aconfusão e o terror.Em meio da perturbação geral e imprevista, o filho de Flamínio aindateve tempo de se aproximar do questor, então rodeado dos seus familiaresque residiam na cidade, o qual lhe falou com otimismo, embora nãoconseguisse dissimular de todo as Íntimas inquietações:- Meu amigo, tenhamos calma! Pelas barbas de Júpiter!... Então, poronde andarão a nossa coragem e a nossa fibra?Mas, em breves instantes a terra lhes tremia sob os pés, emvibrações desconhecidas e sinistras. Algumas colunas tombavam ao solo,pesadamente, enquanto numerosas estátuas rolavam dos nichosimprovisados, recamados de ouro e pedrarias.Abraçando-se, então, à filha e cercado de numerosas senhoras, oquestor disse altamente preocupado:- Plínio, demandemos as galeras, sem demora!..." Emannuel,"...Mas, o oficial romano não mais ouviu os apelos. Ansiosamente,atirou-se à faina de romper a multidão, que desejava retirar-se em massado circo, motivando o esmagamento de crianças e pessoas mais idosas.Ao cabo de sobre-humano esforço, conseguiu alcançar a rua, mastodos os lugares estavam tomados por gente que saía de casa,desarvorada, aos gritos de ""Fogo, Fogo!... O Vesúvio...""Plínio verificou que todas as vias públicas estavam repletas de gentedesesperada, de viaturas e de animais espavoridos.Com enorme dificuldade, vencia todos os obstáculos, mas o Vesúviolançava agora, para o céu, uma fogueira indescritível e imensa, como se aprópria Terra houvera incendiado as entranhas mais profundas.Uma chuva de cinza, a princípio quase imperceptível, começou acair, enquanto o solo continuava a tremer com ruídos surdos, aterradores.De instante a instante, ouvia-se o estrondo pavoroso de colunasderribadas ou de edifícios desmoronados pelos abalos sísmicos, aomesmo tempo que o fumo do vulcão ia eclipsando a confortadoraclaridade solar.Mergulhada em penumbra espessa e tomada de terror indizível,Pompeia assistia aos seus últimos instantes, numa aflição desesperada...(1)Na vila de Lentulus, os escravos perceberam imediatamente o perigopróximo. Nos primeiros momentos, os cavalos relinchavam estranhamentee as aves inquietas fugiam em desespero.Após a queda das primeiras colunas que sustentavam o edifício,todos os servos do senador__________(1) Este trecho desperta interesse e atenção do leitor curioso e inteligente, pelasimilitude que oferece com a descritiva de outro romance mediúnico e também precioso,qual o Herculanum, do Conde de Rochester. - Nota da Editora." Emannuel,"abandonaram precipitadamente os postos, desejosos de conservar noutraparte os bens preciosos da vida. Somente Ana ficara junto dos amos,dando-lhes conhecimento dos horrores do ambiente.Os três, numa justificada inquietude, escutaram o rumor horrível dainolvidável catástrofe do Império. A própria vila estava já meio destruída,penetrando as cinzas pelos desvãos abertos pela queda dos telhados ecomeçando a sua obra de lenta sufocação. Ansiavam todos pelo regressoimediato de Plínio, a fim de resolverem as providências a adotar, mas ovelho senador, cujo coração não se iludia nos seus amarguradospressentimentos, exclamou em tom quase resignado:- Ana, traze a cruz de Simeão e vamos à prece que te foi ensinadapelos discípulos do Messias!... Diz-me o coração que é chegado o fim danossa romagem pela Terra!Enquanto a serva buscava apressadamente a relíquia do ancião deSamaria, afrontando o perigo das paredes oscilantes, Públio Lentulusouvia o surdo rumor da terra dilacerada e os gritos apavorantes e sinistrosdo povo, misturados ao barulho tremendo do vulcão que, transformado emfornalha imensa e indescritível, enchia toda a cidade de cinzas e lavasferventes. Lembrou-se, então, o senador, das afirmativas do Cristo nosdias idos da Galileia, quando lhe asseverava que toda a grandeza romanaera bem miserável e num minuto breve poderia o Império ser reduzido aum punhado de pó. O coração batia-lhe descompassado naquele minutoextremo, mas a velha serva havia regressado e ajoelhara-se, serena,guardando nas mãos a lembrança de Simeão e de Lívia, orando em vozcomovedora e profunda:""Pai Nosso, que estais no céu... santificado seja o vosso nome...venha a nós o vosso reino... seja feita a vossa vontade... assim na Terracomo nos céus...""" Emannuel,"...Nesse instante, porém, a voz da serva emudeceu subitamente,enquanto seu corpo rolava sob novos escombros, sentindo-se elaamparada, espiritualmente, pelo venerável samaritano que a conduziu,imediatamente, às mais elevadas esferas espirituais, tal a natureza do seucoração iluminado nas dores e testemunhos mais angustiosos doaprendizado terrestre.- Ana!... Ana!... - exclamavam Públio e Flávia, soluçantes, sentindoambos pela primeira vez o infortúnio do insulamento supremo, sem umaluz e sem um guia, em pleno desamparo!Alguém, contudo, rompera todos os destroços e chegava, rápido, atéàquela câmara interior, e, abraçando Públio e sua filha gritava em vozopressa: - ""Flávia! meu pai! aqui estou...""Plínio chegava, afinal, para o instante derradeiro. Flávia Lentúliaapertou-o carinhosamente nos braços, enquanto o velho senador semi-asfixiado tomava as mãos do filho, abraçando-se os três num amplexoderradeiro.Flávia e Plínio quiseram falar, mas grossa camada de cinzaspenetrava o interior, pelas fendas enormes da vila meio destruída...Mais um estremeção do solo e as colunas que ainda restavam de pése abateram sobre os três, roubando-lhes as últimas energias e fazendo-oscair assim, enlaçados para sempre, sob um montão de escombros...Naquelas sombras espessas, todavia, pairavam criaturas aladas eleves, em atitudes de prece, ou confortando ativamente o coração abatidodos míseros condenados à destruição.Sobre os três corpos soterrados permanecia a entidade radiosa deLívia, junto de numerosos companheiros que cooperavam, comdevotamento e precisão, nos serviços de desprendimento total dosmoribundos.Pousando as mãos luminosas e puras na fronte abatida docompanheiro exausto e agonizante, Lívia" Emannuel,"elevou os olhos ao firmamento enegrecido e orou com a suavidade da suafé e dos seus sentimentos diamantinos.- Jesus, meigo e divino Mestre - esta hora angustiosa é bem umsímbolo dos nossos erros e crimes, através de avatares tenebrosos; mas,vós, Senhor, sois toda a esperança, toda a sabedoria e toda amisericórdia!... Abençoai nossos espíritos neste momento ríspido edoloroso!... Suavizai os tormentos da alma gêmea da minha, concedendo-lhe neste instante o alvará da liberdade!... Aliviai, magnânimo Salvador domundo, todas as suas magoas pungentes, suas desoladoras amarguras!...Concedei-lhe repouso ao coração angustiado e dolorido, antes do seunovo regresso à trama escura das reencarnações no planeta do exílio edas lágrimas dolorosas... Ele já não é mais, Senhor, o vaidoso déspota deoutrora, mas um coração inclinado ao bem e â piedade pregados pelavossa doutrina de amor e redenção; sob o peso das provações amargas eremissoras, seus pendores se espiritualizaram a caminho da vossaVerdade e da vossa Vida!...E, enquanto Lívia orava, o senador abraçado aos filhos, jácadáveres, desferia o último gemido, com pesada lágrima a lhe cintilar nosolhos mortos...Numerosas legiões de seres espirituais volitaram por vários dias,nos céus caliginosos e tristes de Pompeia.Ao cabo de longas perturbações, Públio Lentulus e filhosdespertaram, ali mesmo, sobre o túmulo nevoento da cidade morta.Em vão o senador invocou a presença de Ana ou de algum outroservo, na penosa ilusão da vida material, persistindo em seu organismopsíquico as impressões da cegueira material, que representara o longosuplício dos seus anos derradeiros, na indumenta da carne.Contudo, após as primeiras lamentações, ouviu uma voz que lhedizia brandamente:" Emannuel,"...- Públio, meu amigo, não apeles mais para os recursos do planetaterreno, porque todos os teus poderes terminaram com os teus despojos,na face escura e triste da Terra! Apela para Deus Todo-Poderoso, cujamisericórdia e sabedoria nos são dadas pelo amor do seu Cordeiro, que éJesus-Cristo!...Públio Lentulus não chegou a lobrigar o interlocutor, mas identificoua voz de Flamínio Severus, desabafando, então, numa torrente de preces ede lágrimas fervorosas.Embora as dedicações constantes de Lívia, havia já alguns dias queseu espírito se encontrava presa de pesadelos angustiosos, nos primeirosinstantes da vida do Além, assistido, porém, continuamente por Flamínio eoutros companheiros abnegados, que o aguardavam no plano espiritual.Contudo, depois daquelas súplicas sinceras que lhe fluíam do maisrecôndito do coração, sentiu que seu mundo interior se desanuviara...Junto dos filhos queridos, recobrou a visão e reconheceu os entesamados, com lágrimas de amor e reconhecimento, nos pórticos do além-túmulo.Ali se conservavam numerosas personagens desta história, comoFlamínio, Calpúrnia, Agripa, Pompílio Crasso, Emiliano Lucius e muitosoutros; mas, em vão, os olhos angustiosos do ex-senador procuravamalguém na assembléia afetuosa e amiga.Depois de todas as expansões de carinho e alegria dirigiu-se-lheFlamínio, intencionalmente.- Estranhas a ausência de Lívia - dizia ele com o seu olharcomplacente e generoso -, mas não poderás vê-la, enquanto nãoconseguires despir, pela prece e pelos bons desejos, todas as impressõespenosas e nocivas da Terra. Ela se tem conservado junto ao teu coração,em rogativas sinceras e fervorosas pelo teu reerguimento, mas o nossogrupo ainda é de espíritos muito apegados ao orbe, e esperávamos oregresso dos seus últimos componentes, ainda na Terra, para podermos,em conjunto, esta-" Emannuel,"belecer novo roteiro às reencarnações vindouras.. Séculos de trabalho ede dor nos esperam na senda da redenção e do aperfeiçoamento, masprecisamos, antes de tudo, buscar a fortaleza precisa em Jesus, fonte detodo o amor e de toda a fé, para as elevadas realizações do nossopensamento!..Públio Lentulus chorava, tocado por emoções estranhas eindefiníveis.- Meu amigo - continuou Flamínio, amoroso -, pede a Jesus, portodos nós, a misericórdia dessa claridade de um novo dia!...Públio, então, ajoelhou-se e, banhado em lágrimas, concentrou ocoração em Jesus numa rogativa ardente e silenciosa... Ali, na soledade dasua alma intrépida e sincera, apresentava ao Cordeiro de Deus o seuarrependimento, suas esperanças para o porvir, suas promessas de fé e detrabalho para os séculos porvindouros!...Todos os presentes lhe acompanharam a oração, tomados de prantoe mergulhados em vibrações de consolação inefável.Viram, então, rasgar-se um caminho luminoso e florido nos céusescuros e tristes da Campânia, e, por ele, como se descessem dos jardinsfulgurantes do Paraíso, surgiram Lívia e Ana abraçadas, como se ainda alienviasse Jesus um ensinamento simbólico àquelas almas prisioneiras daTerra, de modo a lhes revelar que, em qualquer posição, pode a almaencarnada buscar o seu reino de luz e de paz, de vida e de amor, tanto natúnica humilde do escravo, como na pomposa indumentária dos senhores.O velho patrício contemplou a figura radiosa da companheira e,extasiado, fechou os olhos banhados no pranto da compunção e doarrependimento; mas, em breve, dois lábios de névoa pousavam-lhe nafronte, qual o leve roçar de um lírio divino. E, enquanto seu coraçãomaravilhado se lavava nas lágrimas da alegria e do reconhecimento aJesus, toda a caravana, ao impulso poderoso das" Emannuel,"...preces fervorosas daquelas duas almas redimidas, elevava-se a esferasmais altas, para repouso e aprendizado, antes de novas etapas deregeneração e trabalhos purificadores, a lembrar um grupo maravilhoso deluminosas falenas do Infinito!...FIMAVISO DOS EDITORESSe lhe agradou a leitura deste livro, deverá conhecer a reencarnaçãode Publius, em ""50 Anos Depois"", outro romance do mesmo Autor." Humberto de Campos," 27 de março de 1935 Muitas vezes pensei que outras fossem as surpresas que aguardassem um morto, depois de entregar à terra os seus despojos. Como um menino que vai pela primeira vez a uma feira de amostras, imaginava o conhecido chaveiro dos grandes palácios celestiais. Via S. Pedro de mãos enclavinhadas debaixo do queixo. Óculos de tartaruga, como os de Nilo Peçanha, assestados no nariz, percorrendo com as suas vistas sonolentas e cansadas os estudos técnicos, os relatórios, os mapas e livros imensos, enunciadores do movimento das almas que regressavam da Terra, como destacado amanuense de secretaria. Presumia-o um velhote bem conservado, igual aos senadores do tempo da monarquia no Brasil, cofiando os longos bigodes e os fios grisalhos da barba respeitável. Talvez que o bom apóstolo, desentulhando o baú de suas memórias, me contasse algo de novo: algumas anedotas a respeito de sua vida, segundo a versão popular; fatos do seu tempo de pescarias, certamente cheios das estroinices de rapazola. As jovens de Séforis e de Cafarnaum, na Galiléia, eram criaturas tentadoras com os seus lábios de romã amadurecida. S. Pedro por certo diria algo de suas aventuras, ocorridas, está claro, antes da sua conversão à doutrina do Nazareno. Não encontrei, porém, o chaveiro do Céu. Nessa decepção, cheguei a supor que a região dos bem-aventurados deveria ficar encravada em alguma cordilheira de nuvens inacessíveis. Tratava-se, certamente, de um recanto de maravilhas, onde todos os lugares tomariam denominações religiosas, na sua mais alta expressão simbólica: Praça das Almas Benditas, Avenida das Potências Angélicas. No coração da cidade prodigiosa, em paços resplandecentes, Santa Cecília deveria tanger a sua harpa acompanhando o coro das onze mil virgens, cantando ao som de harmonias deliciosas para acalentar o sono das filhas de Aqueronte e da Noite, a fim de que não viessem, com as suas achas incandescentes e víboras malditas, perturbar a paz dos que ali esqueciam os sofrimentos, em repouso beatífico. De vez em quando se organizaram, nessa região maravilhosa, solenidades e festas comemorativas dos mais importantes acontecimentos da Igreja. Os papas desencarnados seriam os oficiantes das missas e Te-Deuns de grande gala, a que compareceriam todos os santos do calendário; S. Francisco Xavier, com o mesmo hábito esfarrapado com que andou pregando nas Índias; S. José, na sua indumentária de carpinteiro; S. Sebastião na sua armadura de soldado romano; Santa Clara, com seu perfil lindo e severo de madona, sustentada pelas mãos minúsculas e inquietas dos arcanjos, como rosas de carne loura. As almas bem conceituadas representariam, nas galerias deslumbrantes, os santos que a Igreja inventou para o seu hagiológio. Mas... não me foi possível encontrar o Céu. " Humberto de Campos,"Julguei, então, que os espíritas estavam mais acertados em seus pareceres. Deveria reencontrar os que haviam abandonado as suas carcaças na Terra, continuando a mesma vida. Busquei relacionar-me com as falanges de brasileiros emigrados do outro mundo. Idealizei a sociedade antiga, os patrícios ilustres aí refugiados, imaginando encontrá-los em uma residência principesca como a do Marquês de Abrantes, instalada na antiga chácara de Dona Carlota, em Botafogo, onde recebiam a mais fina flor da sociedade carioca das últimas décadas do segundo reinado, cujas reuniões, compostas de fidalgos escravocratas da época, ofuscavam a simplicidade monacal dos Paços de S. Cristóvão. E pensei de mim para comigo: Os rabinos do Sinédrio, que exararam a sentença condenatória de Jesus-Cristo, quererão saber as novidades de Hitler, na sua fúria contra os judeus. Os remanescentes do príncipe de Bismarck, que perderam a última guerra, desejariam saber qual a situação do negócios franco-alemães. Contaria aos israelitas a história da esterilização, e aos seguidores do ilustre filho de schoenhausen as questões do plebiscito do Sarre. Cada bem-aventurado me viria fazer uma solicitação, às quais eu atenderia com as habilidades de um porta-novas acostumado aos prazeres maliciosos do boato. Enganara-me, todavia. Ninguém de preocupava com a Terra, ou com as coisas da sua gente. Tranqüilizem-se, contudo, os que ficaram, porque, se não encontrei o Padre Eterno com as suas longas barbas de neve, como se fossem feitas de paina alva e macia, segundo as gravuras católicas, não vi também o Diabo. Logo que tomei conta de mim, conduziram-me a um solar confortável, como a Casa dos Bernardelli, na praia de Copacabana. Semelhante a uma abadia de frades na Estíria, espanta-me o seu aspecto imponente e grandioso. Procurei saber nos anais desse casarão do outro mundo as notícias relativas ao planeta terreno. Examinei os seus infólios. Nenhum relato havia a respeito dos santos da corte celestial, como eu os imaginava, nem alusões a Mefistófeles e ao Amaldiçoado. Ignorava-se a história do fruto proibido a condenação dos anjos rebelados, o decreto do dilúvio, as espantosas visões do evangelista no Apocalipse. As religiões estão na Terra muito prejudicadas pelo abuso dos símbolos. Poucos fatos relacionados com elas estavam naqueles documentos. O nosso muno é insignificante demais, pelo que pude observar na outra vida. Conforta-me, porém, haver descoberto alguns amigos velhos, entre muitas caras novas. Encontrei o Emílio radicalmente transformado. Contudo, às vezes, faz questão de aparecer-me de ventre rotundo e rosto bonacheirão, como recebia os amigos na Pascoal, para falar da vida alheia. - “Ah! Filho- exclama sempre -, há momentos nos quais eu desejaria descer ao Rio, como o homem invisível de Wells, e dar muita paulada nos bandidos de nossa terra.” E, na graça de quem, esvaziando copos, andou enchendo o tonel das Danaides, desfolha o caderno de suas anedotas mais recentes. " Humberto de Campos,"A vida, entretanto, não é mais idêntica à da Terra. Novos hábitos. Novas preocupações e panoramas novos. A minha situação é a de um enfermo pobre que se visse de uma hora para outra em luxuosa estação de águas, com as despesas custeadas pelos amigos. Restabelecendo a saúde, estudo e medito. E meu coração, ao descerrar as folhas diferentes dos compêndios do infinito, pulsa como o do estudante novo. Sinto-me novamente na infância. Calço os meus tamanquinhos, visto as minhas calças curtas, arranjo-m à pressa, com a má vontade dos garotos incorrigíveis, e vejo-me outra vez diante da Mestra Sinhá, que me olha com indulgência, através de sua tristeza de virgem desamada, e repito, apontando as letras na cartilha: _ A B C...A B C D E ... Ah!! Meu Deus, estou aprendendo agora os luminosos alfabetos que os teus imensos escreveram com giz de ouro resplandecente os livros da Natureza. Faze-me novamente menino para compreender a lição que me ensina! Sei hoje, relendo os capítulos da tua glória, por que vicejam na Terra os cardos e os jasmineiros, os cedros e as ervas, por que vivem os bons e os maus, recebendo, numa atividade promíscua da tua casa. Não trago do mundo, Senhor, nenhuma oferenda para a tua grandeza! Não possuo senão o coração, exausto de sentir e bater, como um vaso de iniqüidades. Mas, no dia em que te lembrares do mísero pecador que te contempla no teu doce mistério como lâmpada de luz eterna, em torno da qual bailam os sis como pirilampos acesos dentro da noite, fecha os teus olhos misericordiosos para as minhas fraquezas e deixa cair nesse vaso imundo uma raiz de açucenas. Então, Senhor, como já puseste lume nos meus olhos, que ainda choram, plantarás o lírio da paz no meu coração que ainda sofre e ainda ama. " Humberto de Campos," 28 de Março de 1935 No antigo Paço da Boa vista, nas audiências dos sábados, quando recebia toda gente, atendeu D.Pedro II a um negro velho, de carapinha branca, e em cujo rosto, enrugado pelo frio de muitos invernos, se descobria o sinal de muita penas e muitos maus-tratos. -Ah! Meu Senhor grande – exclamou o infeliz – como é duro ser escravo!... O magnânimo imperador encarou suas mãos cansadas no leme da direção do povo e aquelas outras, engelhadas, na excrescência dos calos adquiridos na rude tarefa das senzalas, e tranqüilizando-o comovido: -Ó meu filho, tem paciência! Também sou escravo dos meus deveres e eles são bem pesados... Teus infortúnios vão diminuir... E mandou libertar o preto. Mais tarde, nos primeiros tempos do seu desterro, o bondoso monarca, a bordo do Alagoas, recebeu a visita do seu ex-ministro; às primeiras interpelações de Ouro Preto, respondeu-lhe o grande exilado: -Em suma, estou satisfeito e tranqüilo. E, aludindo à sua expatriação: É a minha carta de alforria... Agora posso ir onde quero. A coroa era pesada demais para a cabeça do monarca republicano. Aos que perguntarem no mundo sobre a minha posição em face da morte, direi que ele teve para mim a fulguração de um Treze de Maio para os filhos de Angola. A morte não veio buscar a minha alma, quando esta se comprazia nas redes douradas da ilusão. A sua tesoura não me cortou fios da mocidade e de sonho, porque eu não possuía senão neves brancas à espera do sol para se desfazerem. O gelo dos meus desenganos necessitava desse calor de realidade, que a morte espalha no caminho em que passa com a sua foice derrubadora. Resisti, porém ao seu cerco como Aquiles no heroísmo indomável de quem vê a destruição de suas muralhas e redutos. Na minha trincheira de sacos de água quente, eu a vi chegar quase todos os dias... Mirava-me nas pupilas chamejantes dos seus " Humberto de Campos,"olhos, pedindo-lhe complacência e ela me sorria consoladora nas suas promessas. Eu não podia, porém adivinhar o seu fundo mistério, porque a dúvida obsidiava o meu espírito, enrodilhando-se no meu raciocínio como tentáculos de um polvo. E, na alegria bárbara, sentia-me encurralado no sofrimento, como um lutador romano aureolado de rosas. Triunfava da morte e como Ájax recolhi as últimas esperanças no rochedo da minha dor, desafiando o tridente dos deuses. A minha excessiva vigilância trouxe-me a insônia, que arruinou a tranqüilidade dos meus últimos dias. Perseguido pela surdez, já os meus olhos se apagavam como as derradeiras luzes de um navio soçobrando em mar encapelado no silêncio da noite. Sombra, movendo-se dentro das sombras, não me acovardei diante do abismo. Sem esmorecimentos atirei-me ao combate, não para repelir mouros na costa, mas para erguer muito alto o coração, retalhado nas pedras do caminho como um livro de experiências para os que vinham depois dos meus passos, ou como a réstia luminosa que os faroleiros desabotoam na superfície das águas, prevenindo os incautos dos perigos das sirtes traiçoeiras do oceano. Muitos me supuseram corroído da lepra e de vermina como se fosse Bento de Labre, raspando-me com a escudela de Jô. Eu, porém estava apenas refletindo a claridade das estrelas do meu imenso crepúsculo. Quando, me encontrava nessa faina de semear a resignação, a primeira e última flor dos que atravessam o deserto das incertezas da vida, a morte abeirou-se do meu leito; devagarinho, como alguém que temesse acordar um menino doente. Esperou que tapassem com anestesia todas as janelas e interstícios dos meus sentimentos. E quando o caos mais absoluto no meu cérebro, záz! Cortou as algemas a que me conservava retido por amor aos outros condenados, irmãos meus, reclusos no calabouço da vida. Adormeci nos seus braços como um ébrio nas mãos de uma deusa. Despertando dessa letargia momentânea, compreendi a realidade da vida, que eu negara, além dos ossos que se enfeitam com os cravos rubros da carne. -Humberto!... Humberto... exclamou uma voz longínqua – recebe os que te enviam da Terra! Arregalei os olhos com horror e com enfado: -Não! Não quero saber de panegíricos e agora não me interessam as seções necrológicas dos jornais. Enganas-te – repetiu – as homenagens da convenção não se equilibram até aqui. A hipocrisia é como certos micróbios de vida muito efêmera. Toma as preces que se elevaram por ti a Deus, dos peitos sufocados, onde penetraste com as tuas exortações e conselhos. O sofrimento retornou sobre o teu coração um cântaro de mel. Vi descer de um ponto indeterminado do espaço, braçadas de flores inebriantes como se fossem feitas de neblina resplandecente, e escutei, envolvendo o meu nome pobre, orações tecidas com suavidade e doçura. Ah! Eu não vira o céu e a sua corte de bem-aventurados; mas Deus receberia aquelas deprecações no seu sólio de estrelas encantadas como a hóstia " Humberto de Campos,"simbólica do catolicismo se perfuma na onda envolvente dos aromas de um turíbulo. Nossa Senhora deveria ouvi-las no seu trono de jasmins bordados de ouro, contornado dos anjos que eternizam a sua glória. Aspirei com força aqueles perfumes. Pude locomover-me para investigar o reino das sobras, onde penso sem miolos na cabeça. Amava e ainda sofria, reconhecendo-me no pórtico de uma nova luta. Encontrei alguns amigos a quem apertei fraternalmente as mãos. E voltei cá. Voltei para falar com os humildes e infortunados, confundidos na poeira da estrada de suas existências, como frangalhos de papel, rodopiando ao vento. Voltei para dizer aos que não pude interpretar no meu ceticismo de sofredor: -Não sois os candidatos ao casarão da Praia Vermelha.[Hospício Nacional]. Plantai pois nas almas a palmeira da esperança. Mais tarde ela descobrirá sobre as vossas cabeças encanecidas os seus leques enseivados e verdes... E posso acrescentar, como o neto de Marco Aurélio, no tocante à morte que me arrebatou da prisão nevoenta da Terra: -É a minha carta de alforria... Agora posso ir onde quero. Os amargores do mundo eram pesados demais para o meu coração. " Humberto de Campos," 08 de Abril de 1935 Meus filhos venho falar a vocês como alguém que abandonasse a noite de Tirésias, no carro fulgurante de Apolo, subindo aos cumes dourados e perfumados do Hélicon. Tudo é harmonia e beleza na companhia dos numes e dos gênios, mas o pensamento de um cego, em reabrindo os olhos nas rutilâncias da luz, é para os que ficaram, lá longe dentro da noite onde apenas a esperança é uma estrela de luz doce e triste. Não venho da minha casa subterrânea de São João Batista [O espírito se refere ao cemitério de São João], como os mortos que os larápios, às vezes, fazem regressar aos tormentos da Terra, por mal dos seus pecados. Na derradeira morada do meu corpo ficaram os meus olhos enfermos e as minhas disposições orgânicas. Cá estou como se houvesse sorvido um néctar de juventude no banquete dos deuses. Entretanto, meus filhos, levanta-se entre nós um rochedo de mistério e de silêncio. Eu sou eu. Fui o pai de vocês e vocês foram meus filhos. Agora somos irmãos. Nada há de mais belo do que a lei de solidariedade fraterna, delineada pelo Criador na sua glória inacessível. A morte não suprimiu a minha afetividade e a ainda possuo o meu coração de homem para o qual vocês são as melhores criaturas desse mundo. Dizem que Orfeu, quando tangia as cordas de sua lira, sensibilizava as feras que agrupavam enternecidas para escutá-lo. As árvores vinham de longe, transportadas na sua harmonia. Os rios sustavam o curso nas suas correntes impetuosas, quedando-se para ouvi-lo. Havia deslumbramento na paisagem musicalizada. A morte, meus filhos, cantou para mim, tocando o seu alaúde. Todas as minhas convicções deixaram os seus lugares primitivos para sentir a grandeza do seu canto. Não posso transmitir esse mistério maravilhoso através dos métodos imperfeitos de que disponho. E, se pudesse, existe agora entre nós o fantasma da dúvida. Convidado pelo Senhor, eu também estive no banquete da vida. Não nos palácios da popularidade ou da juventude efêmera, mas no átrio pobre e triste do sofrimento onde se conservam temporariamente os mendigos da sua casa. Minha primeira dor foi a minha primeira luz. E quando os infortúnios formaram uma teia imensa de amarguras para o meu destino, senti-me na posse do celeiro de claridades da sabedoria. Minhas dores eram minha prosperidade. Porém qual o cortesão de Dionísio, vi a dúvida como a espada afiadíssima balouçando-se sobre a minha cabeça. Aí na Terra, entre a crença e a descrença, está sempre ela, a espada de Dâmocles. Isso é uma fatalidade. " Humberto de Campos,"Venho até vocês cheio de amorosa ternura e se não posso me individualizar, apresentando-me como o pai carinhoso, não podem vocês garantir a impossibilidade da minha sobrevivência. A dúvida entre nós é como a noite. O amor, entretanto, luariza estas sombras. Um morto, como eu, não pode esperar a certeza ou a negação dos vivos que receberem a sua mensagem para a qual há de prevalecer o argumento dubitativo. E nem pode exigir outra coisa quem no mundo não procederia de outra forma. Sinto hoje, mais que nunca, a necessidade de me impessoalizar, de ser novamente o filho ignorado de dona Anica, a boa e santa velhinha, que continua sendo para mim a mais santa das mães. Tenho necessidade de me esquecer de mim mesmo. Todavia, antes que se cumpra este meu desejo, volto para falar a vocês paternalmente como no tempo em que destruía o fosfato do cérebro a fim de adquirir combustível para o combustível para o estômago. -Meus filhos!... Meus filhos!... Estou vivendo... Não me vêem?... Mas olhem, olhem o meu coração como ainda está batendo por vocês!... Aqui, meus filhos, não me perguntaram se eu havia descido gloriosamente as escadas do Petit Trianon; não fui inquirido a respeito dos meus triunfos literários e não me solicitaram informes sobre o meu fardão acadêmico. Em compensação, fui argüido acerca das causas dos humildes e dos infortunados pelos quais me bati. Vivam pois com prudência na superfície desse mundo de futilidades e de glórias vãs. Num dos mais delicados poemas de Wilde, as Órcades lamentara a morte de Narciso junto de sua fonte predileta, transformada numa taça de lágrimas. -Não nos admira – suspiram elas – que tanto tenhas chorado!... Era tão lindo!... -Era belo Narciso? – perguntou o lago. -Quem melhor do que tu poderás sabê-lo, se nos desprezavas a todas para estender-se nas relvas da tua margem, baixando os olhos para contemplar, no diamante da tua onda, a sua formosura?... A fonte respondeu: -Eu adorava Narciso porque, quando me procurava com os olhos, eu via, no espelho das suas pupilas, o reflexo da minha própria beleza. Em sua generalidade, meus filhos, os homens, quando não são Narciso, enamorados de sua própria formosura, são as fontes de Narciso. Não venho exortar a vocês como sacerdote; conheço de sobra às fraquezas humanas. Vivam, porém a vida do trabalho e da saúde, longe da vaidade corruptora. E, na religião da consciência retilínea, não se esqueçam de rezar. " Humberto de Campos,"Eu, que era um homem tão perverso e tão triste, estou aprendendo de novo a minha prece, como fazia na infância, ao pé de minha mãe, na Parnaíba. -Venham, meus filhos!... Ajoelhemos de mãos postas... Não vêem que cheguei de tão longe?! Fui mais feliz que o Rico e o Lázaro da parábola, que não puderam voltar... Ajoelhemos no templo do Espírito; inclinem vocês a fronte sobre o meu coração. Cabem todos nos meus braços? Cabem, sim... Vamos rezar com o pensamento em Deus, com a alma no infinito. Pai nosso... que estais no céu... santificado seja o vosso nome... " Humberto de Campos," 09 de Abril de 1935 - O amigo sabe que os fotógrafos ingleses registraram a presença de sir Conan Doyle no enterro de lady Gaillard? Esta pergunta me foi dirigida pelo coronel C... da C..., (1) que eu conhecera numa das minhas viagens pelo Nordeste. O coronel lia por desfastio as minhas crônicas e em poucos minutos nos tornamos camaradas. Há muito tempo, todavia, soubera eu da sua passagem para o outro mundo em virtude de uma arteriosclerose generalizada. Tempo vai, tempo vem, defrontamo-nos de novo no vagão infinito da Vida, em que todos viajamos, através da eternidade. E, como o melhor abraço que podemos dar longe dos vivos, ali estávamos os dois tête à tête, sem pensar no relógio que regulava os nossos atos no presídio da Terra, nem nos ponteiros do estômago, que aí trabalham com demasiada pressa. C. tinha no mundo idéias espíritas e continuava, na outra vida, a interessar-se pelas coisas de sua doutrina. Então, coronel, a vida que levaremos por aqui não será muito diversa da que observávamos lá em baixo? Um morto, pode apresentar-se nas solenidades dos vivos, participar das suas alegrias e das suas tristezas, como no presente caso? Aliás, já sabemos do capítulo evangélico que manda os mortos enterrar os mortos. -Pode, sim, menino – replicou o meu amigo como quem evocasse uma cena dolorosa – mas, isso de acompanhar enterros, sobra-me experiência para não mais fazê-lo. Costumamos observar que, se os vivos têem medo dos que já regressaram para cá, nós igualmente, às vezes, sentimos repulsa de topar os vivos. Porém, o que lhe vou contar ocorreu entre os considerados mortos. Tié medo de dois espectros num ambiente soturno de cemitério. E o meu amigo, com o olhar mergulhado no pretérito longínquo, monologava: -Desde essa noite, nunca mais acompanhei enterros de amigos... Deixo isso para os encarnados, que vivem brincando de cabra-cega no seu temporário esquecimento... -Conte-me, coronel, o acontecimento – disse eu, mal sopitando a curiosidade. -Lembra-se – começou ele – da admiração que eu sempre manifestava pelo Dr. A.F., que você não chegou a conhecer em pessoa? -Vagamente... " Humberto de Campos,"-Pois bem, o Antonico, nome pelo qual respondia na intimidade, era um dos meus amigos do peito. Advogado de renome na minha terra, já o conheci na elevada posição que usufruía no seio da sociedade que lhe acatava todas as ações e pareceres. Pardavasco, insinuante, era o tipo do mulato brasileiro. Simpático, inteligente, captava a confiança de quantos se lhe aproximavam. Era de uma felicidade única. Ganhava todas as causas que lhe eram entregues. O crime mais negro apresentava para a sua palavra percuciente uma argumentação infalível na defesa. Os réus, absolvidos com a sua colaboração, retiravam-se da sala de sessões da justiça quase canonizados. O Antonico se metera em alguma pendência? O triunfo era dele. Gozava de toda a nossa consideração e estima. Criara a sua família com irrepreensível moralidade. Em algumas cerimônias religiosas a que compareci, recordo-me de lá o haver encontrado, como bom católico, em cuja personalidade o nosso vigário via um dos mais prestigiosos dos seus paroquianos. Chefiava iniciativas de caridade, presidia a associação religiosa e primava pela austeridade intransigente dos seus costumes. Quando voltei desse mundo, que hoje representa para nós uma penitenciaria, trouxe dele saudosas recordações. Imagine, pois o meu desejo de reencontrá-lo, quando vim a saber, nestas paragens, que ele se achava às portas da morte. Obtive permissão para excursionar à Terra e fui revê-lo na sua cama de luxo, rodeado de zelos extremos, numa alcova ensombrada de sua confortável residência. As poções eram ingeridas. Injeções eram aplicadas. Os médicos eram atenciosamente ouvidos. Contudo, a morte rondava o leito de rendas, com o seu passo silencioso. Depois de ter o abdômen rasgado por um bisturi, uma infecção sobreviera inesperadamente. Apareceu uma pleurisia e todas as punções foram inúteis. Antonico agonizava. Vi-o nos seus derradeiros momentos, sem que ele me visse na sua semi-inconsciência. Os médicos à sua cabeceira, deploravam o desaparecimento do homem probo. O padre, que sustinha naquelas mãos de cera u delicado crucifixo, recitando a oração dos moribundos, fazia ao céu piedosas recomendações. A esposa chorava o esposo, os filhos o pai! Aos meus olhos, aquele quadro era o da morte do justo. Transcorridas algumas horas, acompanhei o fúnebre cortejo que ia entregar à terra aqueles despojos frios. Desnecessário é que lhe diga das pomposas exéquias que a igreja dispensou ao morto, em virtude da sua posição eminente. Preces. Aspersões com hissopes ensopados nágua benta e latim agradável. Mas, como nem todos os que morrem desapegam imediatamente dos humores e das vísceras, esperei que o meu amigo acordasse para ser o primeiro a abraçá-lo. Era crepúsculo. E, naquela tarde de agosto, as nuvens estavam enrubescidas, em meio do fumo das queimaduras, parecendo uma espumarada de sangue. Havia um cheiro de terra brava, entre as lousas silenciosas, ao pé dos salgueiros e dos ciprestes. Eu esperava. De vez em quando, o vento agitava a ramaria dos chorões, que pareciam soluçar, numa toada " Humberto de Campos,"esquisita. Os coveiros abandonaram a sua tarefa sinistra e eu vi um vulto de mulher, esgueirando-se entre as lápides enegrecidas. Parou junto daquela cova fresca. Não se tratava de nenhuma alma encarnada. Aquela mulher pertencia também aos reinos das sombras. Observei-a de longe. Todavia, gritos estentóricos ecoaram aos meus ouvidos. -A. F. – exclamou o espectro – chegou o momento da minha vingança! Ninguém poderá advogar a tua causa. Nem Deus, nem o Demônio poderão interceder pela tua sorte, como não puderam cicatrizar no mundo as feridas que abriste em meu coração. Todas as nossas testemunhas agora são mudas. Os anjos aqui são de pedra e as capelas de mármore, cheias de cruzes caladas, são estojos de carne apodrecida. Lembras-te de mim? Sou a R. S., que infelicitaste com a tua infâmia! Já não és aquele moreno insinuante que surrupiou a fortuna de meus pais, destruindo-lhes a vida e atirando-me no meretrício abominável. A fortuna que te deu um nome foi edificada no pedestal do crime. Recordas-te das promessas mentirosas que me fizeste? Envergonhada, abandonei a terra que me vira nascer para ganhar o pão no mais horrendo comércio. Corri mundo, sem esquecer a tua perversidade e sem conseguir afogar o meu infortúnio na taça dos prazeres. Entretanto, o mundo foi teu. Réu de um crime nefando, foste sacerdote da justiça; eu, a vítima desconhecida, fui obrigada a sufocar a minha fraqueza nas sentinas sociais, onde os homens pagam o tributo das suas misérias. Tiveste a sociedade, eu os bordéis. O triunfo e a consideração te pertenceram; a mim coube o desprezo e a condenação. Meu lar foi o hospital, donde se escapou o último gemido do meu peito. Meus braços, que haviam nascidos para acariciar os anjos de Deus, como dois galhos de árvores cheios de passarinhos, foram por ti transformados em tentáculos de perdição. Eu poderia ter possuído um lar, onde as crianças abençoassem os meus carinhos e onde um companheiro laborioso se reconfortasse com o beijo da minha afeição. Venho te condenar, ó desalmado assassino, em nome da justiça eterna que nos rege, acima dos homens. Há mais de um lustro, espero-te nesta solidão indevassável, onde não poderás comprar a consciência dos juizes... Viveste com o teu conforto, enquanto eu penava com a minha miséria; mas, o inferno agora será de nós dois!... O coronel fez uma pausa, enquanto eu meditava naquela história. -A mulher chorava – continuou ele – de meter dó. Aproximei-me dela, não sendo notada, porém, minha presença. Olhei a cruz modesta e carcomida que havia que havia sido arrancada poucas horas antes, daqueles sete palmos de terra, para que ali fosse aberto um novo sepulcro, e, não sei se por artes do acaso, nela estava escrito um nome com pregos amarelos, já desfigurados pela ferrugem: R. S. – Orai por ela. Por uma coincidência sinistra, reencontravam-se os dois corpos e as duas almas. Procurei fazer tudo pelo Antonico, mas quando atravessei com o olhar a terra que lhe cobria os despojos, afigurou-se-me ver um monte de ossos que se moviam. Crânio, tíbias, úmero, " Humberto de Campos,"clavículas, se reuniam sob uma ação misteriosa e vi uma caveira chocalhando os dentes de fúria, ao mesmo tempo em que umas falangetas de aço pareciam apertar o pescoço do cadáver do meu amigo. -E ele, coronel, isto é, o Espírito, estava presente? -Estava, sim. Presente e desperto. Lá o deixei, sentindo os horrores daquela sufocação. -Mas, e Deus, coronel? Onde estava Deus que não se compadeceu do pecador arrependido? O coronel me olhou, como se estivesse interrogando a si mesmo, e declarou por fim: -Homem, sei lá!... Acredito que Deus tenha criado o mundo; porém, acho que a Terra ficou mesmo sob administração do Diabo. ------------------ (1) No original da mensagem foram dados por extenso os nomes das pessoas nela mencionados. Como, porém, essas pessoas deixaram descendentes, que poderiam molestar-se com as referências que lhes fez Humberto de Campos, resolvemos indicá-las apenas pelas suas iniciais. " Humberto de Campos," 19 de Abril de 1935 Silêncio augusto cai sobre a Cidade Santa. A antiga capital da Judéia parece dormir o seu sono de muitos séculos. Além descansa Getsêmani, onde o Divino Mestre chorou numa longa noite de agonia, acolá está o Gólgota sagrado e em cada coisa silenciosa há um traço da Paixão que as épocas guardarão para sempre. E, em meio de todo o cenário, como um veio cristalino de lágrimas, passa o Jordão silencioso, como se as suas águas mudas, buscando o Mar Morto, quisessem esconder das coisas tumultuosas dos homens os segredos insondáveis do Nazareno. Foi assim, numa destas noites que vi Jerusalém, vivendo a sua eternidade de maldições. Os espíritos podem vibrar em contacto direto com a história. Buscando uma relação íntima com a cidade dos profetas, procurava observar o passado vivo dos Lugares Santos. Parece que as mãos iconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de um decreto irrevogável. Por toda a parte ainda persiste um sopro de destruição e desgraça. Legiões de duendes, embuçados nas suas vestimentas antigas, percorrem as ruínas sagradas e no meio das fatalidades que pesam sobre o empório morto dos judeus, não ouvem os homens os gemidos da humanidade invisível. Nas margens caladas do Jordão, não longe talvez do lugar sagrado, onde Precursor batizou Jesus Cristo, divisei um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se uma simpatia cativante. - Sabe quem é este? – murmurou alguém aos meus ouvidos. – Este é Judas. - Judas?!... - Sim. Os espíritos apreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás, visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se momentaneamente transportados aos tempos idos. Então mergulham o pensamento no passado, regressando ao presente, dispostos ao heroísmo necessário do futuro. Judas costuma vir à Terra, nos dias em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor, meditando nos seus atos de antanho... Aquela figura de homem magnetizava-me. Eu não estou ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. O meu atrevimento, porém, e a santa humildade de seu coração, ligaram-se para que eu o atravessasse, procurando ouvi-lo. -O senhor é, de fato, o ex-filho de Iscariot? – Sim, sou Judas – respondeu aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica. Como o Jeremias, das " Humberto de Campos,"Lamentações, contemplo às vezes esta Jerusalém arruinada, meditando no juízo dos homens transitórios... - É uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito à sua personalidade na tragédia da condenação de Jesus? - Em parte... Os escribas que redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e às tricas políticas que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação. Pôncio Pilatos e o tetrarca da Galiléia, além dos seus interesses individuais na questão, tinham ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer as aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história. O Sanedrim desejava o reino do céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra. Jesus estava entre essas forças antagônicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um dos apaixonados pelas idéias socialistas do Mestre, porém o meu excessivo zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a política, única arma com a qual poderia triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória. Com as suas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder já que, no seu manto de pobre, se sentia possuído de um santo horror à propriedade. Planejei então uma revolta surda como se projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica como a que fez mais tarde Constantino Primeiro, o Grande, depois de vencer Maxêncio às portas de Roma, o que aliás apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifás, não julguei que as coisas atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio era a única maneira de me redimir aos seus olhos. - E chegou a salvar-se pelo arrependimento? - Não. Não consegui. O remorso é uma força preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e as minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde imitando o Mestre, fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição deixei na Terra os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV. Desde esse dia, em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me aviltavam, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentido na fronte o ósculo de perdão da minha própria consciência... - E está hoje meditando nos dias que se foram... - pensei com tristeza. - Sim... Estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus divinos passos. Vejo-O ainda na Cruz entregando a Deus o seu destino... Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vem uma recordação carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso transe... Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor... Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra... Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios de miséria e de " Humberto de Campos,"infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência no tribunal dos suplícios redentores. Quanto ao Divino Mestre – continuou Judas com os seus prantos – infinita é a sua misericórdia e não só para comigo, porque se recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus algozes, há muitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e a retalho, por todos os preços em todos os padrões do ouro amoedado... - É verdade – concluí – e os novos negociadores do Cristo não se enforcam depois de vendê-lo. Judas afastou-se tomando a direção do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes, enquanto o Jordão rolava na sua quietude como um lençol de águas mortas, procurando um mar morto. " Humberto de Campos," 23 de Abril de 1935 Antigamente eu escrevia nas sombras para os que se conservavam nas claridades da Vida. Hoje, escrevo na luz branca da espiritualidade para quantos ainda se acham mergulhados nas sombras do mundo. Quero crer, porém que tão dura tarefa me foi imposta nas mansões da Morte, como esquisita penitência ao meu bom gosto de homem que colheu quando pôde dos frutos saborosos na árvore paradisíaca dos nossos primeiros pais, segundo as Escrituras. Contudo não desejo imitar aquele velho Tirésias que à força de proferir alvitres e sentenças conquistou dos deuses o dom divinatório em troca dos preciosos dons da vista. Por esta razão o meu pensamento não se manifesta entre vocês que aqui acorreram para ouvi-lo como o daquelas entidades batedoras, que em Hydesville, na América do Norte, por intermédio das irmãs Fox, viviam nos primórdios do Espiritismo, contando histórias e dando respostas surpreendentes com as suas pancadas ruidosas e alegres. Devo também esclarecer ao sentimento de curiosidade que os tangeu até aqui, que não estou exercendo ilegalmente a medicina como a grande parte dos defuntos, os quais, hoje em dia, vivem diagnosticando e receitando mezinhas e águas milagrosas para os enfermos. Tampouco, na minha qualidade de repórter “falecido” sou portador de alguma mensagem sensacional dos paredros comunistas que já se foram dessa vida para a melhor, êmulos dos Lenine, dos Kropotkine, cujos cérebros, a esta hora, devem estar transbordando teorias momentosas para o instante amargo que o mundo está vivendo. O objetivo das minhas palavras póstumas é somente demonstrar o homem... desencarnado e a imortalidade dos seus atributos. O fato é que vocês não me viram. Mas contem lá fora eu enxergaram o médium. Não afirmam que ele se parece com o Mahatma Gandhi em virtude de lhe faltar uma tanga, uma cabra e a experiência “anosa” do “líder” nacionalista da Índia. Mas historiem, com sinceridade, o caso das suas roupas remendadas e tristes de proletário e da sua pobreza limpa e honesta que anda por esse mundo arrastando tamancos para a remissão de suas faltas nas anteriores encarnações. Quanto a mim, digam que eu estava por detrás do véu de Ísis. Mesmo assim, na minha condição de intangibilidade, não me furto ao desejo de lhes contar algo a respeito desta “outra vida” para onde todos têm de regressar. Se não estou nos infernos de que fala a teologia dos cristãos, não me acho no sétimo paraíso de Maomé. Não sei contar as minhas aperturas na amarga perspectiva de completo abandono em que me encontrei, logo após abrir os meus olhos no reino extravagante da Morte. Afigurou-se-me que eu ia, diretamente consignado ao Aqueronte, cujas águas amargosas deveria transpor como " Humberto de Campos,"as sombras para nunca mais voltar, porque não cheguei a presenciar nenhuma luta entre São Gabriel e os Demônios, com as suas balanças trágicas, pela posse de minha alma. Passados, porém, os primeiros instantes de “inusitado” receio, divisei a figura miúda e simples do meu Tio Antoninho, que me recebeu nos seus braços carinhosos de santo. Em companhia, pois, de afeições ternas, no reconto fabuloso, que é a minha temporária morada, ainda estou como aparvalhado entre todos os fenômenos da sobrevivência. Ainda não cheguei a encontrar os sóis maravilhosos, as esferas, os mundos comentários, portentos celestes, que descreve Flammarion na sua “Pluralidade dos Mundos”. Para o meu espírito, a Lua ainda prossegue na sua carreira como esfinge eterna do espaço, embuçada no seu burel de freira morta. Uma saudade doida e uma ânsia sem termo fazem um turbilhão no meu cérebro: é a vontade de rever, no reino das sombras, o meu pai e a minha irmã. Ainda não pude fazê-lo. Mas em um movimento de maravilhosa retrospecção pude volver à minha infância, na Miritiba longínqua. Revi as suas velhas ruas, semi-arruinadas pelas águas do Piriá e pelas areias implacáveis... Revi os dias que se foram e senti novamente a alma expansiva de meu pai como um galho forte e alegre do tronco robusto dos Veras à minha frente, nos quadros vivos da memória, abracei a minha irmãzinha inesquecida, que era em nossa casa modesta como um anjo pequenino da Assunção de Murilo, que se tivesse corporificado de uma hora para outra sobre as lamas da terra... Descansei à sombra das árvores largas e fartas, escutando ainda as violas caboclas, repinicando os sambas da gente das praias nortistas e que tão bem ficaram arquivadas na poesia encantadora e simples de Juvenal Galeno. Da Miritiba distante transportei-me à Parnaíba, onde vibrei com o meu grande mundo liliputiano... Em espírito, contemplei com a minha mãe as folhas enseivadas do meu cajueiro derramando-se na Terra entre as harmonias do canto choroso das rolas morenas dos recantos distantes de minha terra. De almas entrelaçadas contemplei o vulto de marfim antigo daquela santa que, como um anjo, espalmou muitas vezes sobre o meu espírito cansado as suas asas brancas. Beijei-lhe as mãos encarquilhadas genuflexo e segurei as contas do seu rosário e as contas miúdas e claras que corriam furtivamente dos seus olhos, acompanhando a sua oração... Ave Maria... Cheia de graça... Santa Maria... Mãe de Deus... Ah! de cada vez que o meu olhar se espraia tristemente sobre a superfície do mundo, volvo a minha alma aos firmamentos, tomada de espanto e de assombro... Ainda há pouco, nas minhas surpresas de recém-desencarnado, encontrei na existência dos espaços, onde não se contam as horas, uma figura de velho, um espírito ancião, em cujo coração milenário presumo refugiadas todas as experiências. Longas barbas de neve, olhos transudando piedade infinita doçura, da sua fisionomia de Doutor da Lei, nos tempos apostólicos, irradiava-se uma corrente de profunda simpatia. " Humberto de Campos,"- Mestre! – disse-lhe eu na falta de outro nome – que podemos fazer para melhorar a situação do orbe terreno? O espetáculo do mundo me desola e espanta... A família parece se dissolve... o lar está balançando como os frutos podres, na iminência de cair... a Civilização, com os seus numerosos séculos de leis e instituições afigura-se haver tocado os seus apogeus... De um lado existem os que se submergem num gozo aparente e fictício, e do outro estão as multidões famintas, aos milhares, que não têm senão rasgado no peito o sinal da cruz, desenhado por Deus com a suas mãos prestigiosas como os símbolos que Constantino gravara nos seus estandartes... E, sobretudo Mestre, é a perspectiva horrorosa da guerra... Não há tranqüilidade e a Terra parece mais um fogareiro imenso, cheio de matérias em combustão... Mas o bondoso espírito-ancião me respondeu com humildade e brandura: - Meu filho... Esquece o mundo e deixa o homem guerrear em paz!... Achei graça no seu paradoxo, porém só me resta acrescentar: - Deixem o mundo em paz com a sua guerra e a sua indiferença! Não será minha boca quem vá soprar na trombeta de Josafá. Cada um guarde aí a sua crença ou o seu preconceito. " Humberto de Campos,"ÇÃO 31 de julho de 1935 - Foi Wells que, em uma das suas audaciosas fantasias, descreveu o vale escuro e triste onde um punhado de homens havia' perdido as faculdades visuais. Tudo para eles era a mesma noite uniforme, onde se arrastavam como sombras da vida. As gerações se haviam sucedido incessantemente, os séculos passaram e aqueles seres apagaram da lembrança as tradições dos antepassados que lhes falavam do estranho poder dos olhos, os quais, em seus organismos, nada mais eram que duas conchas de treva. O mundo para eles estava circunscrito àquela prisão escura. Os trovões e o vozerio lamentoso dos ventos da tarde significavam, para a sua acuidade auditiva, as advertências das bruxas que povoavam o seu deserto, e o chilrear dos passarinhos o suave consolo que lhes prodigalizavam os gênios carinhosos e alegres. Eis, porém, que, um dia, desce ao vale misterioso um homem que vê. Fala aos filhos da treva das grandes maravilhas do mundo, dos tesouros amontoados nos seus impérios, das faiscantes grinaldas de luz dos plenilúnios, do entusiasmo colorido das auroras de primavera, de tudo o que as mãos dadivosas do Senhor puseram nas páginas imensas do livro da Natureza, para o encanto fugitivo dos homens. Em resposta, porém, ouve-se no calabouço um clamor de gargalhadas e de apreensões. O homem da noite examina com as suas mãos o homem do dia e supõe descobrir a origem dos seus disparates, descrevendo coisas inverossímeis para ele, atribuindo aos seus olhos a causa da sua loucura, concluindo pela necessidade de se lhe arrancarem esses órgãos incômodos, como excrescências daninhas. Essa fantasia é aplicável ao mundo terreno, em se tratando das verdades novas. Eu sei disso porque também perambulei entre as furnas sombrias desse vale de treva misteriosa, onde se reúnem os que tiveram a infelicidade de perder os olhos da1ma, desviando-se do progresso moral. Envergando a minha camisa pobre na penitenciária do mundo, ri-me dos que me vinham contar as maravilhas deslumbrantes da pátria das almas. E, readquirindo os meus olhos nos países da Morte, aonde não cheguei a encontrar as águas tenebrosas do Tártaro e do Estige, venho hoje, como o viajante incompreendido, falar aos que são objeto da ação inibitória de uma cegueira cruel. Não acredito na compreensão dos outros, com respeito aos meus argumentos de agora. Um morto nada tem que fazer no mundo daqueles que se presumem os únicos sobreviventes do " Humberto de Campos,"Universo e preferi, por isso, o retraimento, quando os jornais abriram as suas colunas aos debates em torno das minhas palavras póstumas, recompensa justa ao meu péssimo gosto de voltar a essa prisão nevoenta da Vida. Cheguei mesmo a ponderar que, na passagem evangélica em que o Senhor não permitiu a caridosa atenção de Lázaro para com a súplica do Rico, não foi com o objetivo de justiçá-los na balança do mérito e do demérito. Ainda aí, nessa hora de surpresas da lei das compensações, não poderia o Senhor fazer a apologia da indelicadeza. Nem o Rico voltou das labaredas fumegantes da sua consciência culpada e nem o Pobre do seu banquete de delícias, porque não valeria a pena transpor-se imensuráveis distâncias para dizer aos encarnados apenas aquilo que constitui para o seu entendimento uma verdade inacessível. Muito antes de Hermes Tot, os homens já se curvavam ante os mistérios indevassados da Morte. Todos conhecem as suas realidades terríveis. Alexandre tinha conhecimento de que, sob o seu látego impiedoso, teria de apodrecer, apesar da opulência da sua glória, da pompa de suas conquistas, tendo as suas cinzas nobres confundidas, talvez, com a poeira do último dos miseráveis. Mas, se há essa vida onde predominam a Justiça e o Amor, com o divino característico da eternidade esplendorosa, os homens estão absortos no Letes, afogados na carne para chorar e esquecer. Os vivos são os vivos. Os mortos são os mortos. Toda a lógica da ciência humana está nessas frases curtas. Quando, porém, me entregava aos solilóquios do meu espírito, que nunca se considerou um vencido, ouvi a voz solene dos gênios que velam por nós das regiões azuladas para onde se elevam todas as nossas aspirações como fios de rosa e de ouro: - ""Não desanimes, tu que vieste da luta insana na amargurada existência das provas! Leva aos teus irmãos que sofrem o lenitivo da tua mensagem!... Dize-lhes da Misericórdia de Deus e da Suprema Justiça que rege os destinos! Se, na Terra, inúmeros Espíritos se perdem nos desfiladeiros do orgulho e da impiedade, lembra o microcosmo em que viveste, onde os mais pesados tributos são pagos ao Céu, em súplicas e esperanças..."" Energias novas infiltraram-se no meu ser. Uma atração incoercível conduziu-me a Sebastianópolis, que faiscava. As luzes do dia arrancavam das suas praias uma paisagem fulgurante. E gritei a todos, do alto do meu deslumbramento: - ""Não me vêem?.. Eu estou vivendo sem a tutela de espíritos malignos. Quase já não sou mais o homem carrancudo e triste, fechado na sua amargura de sofredor. É verdade que não poderei comparecer às reuniões de Espiritismo, como às sessões das quintas-feiras na Academia; mas, a morte não aniquilou a minha vida. Penso, luto e sofro como dantes, crendo, porém, na eternidade luminosa!. . ."" " Humberto de Campos,"Ninguém, no entanto, me ouvia. Não pude fazer-me sentir nas avenidas ruidosas, regurgitando de transeuntes, parecendo-me, sob a influência das impressões físicas, que estava prestes a ser esmagado pelos automóveis de luxo. Na minha desilusão, porém, ouço uma voz humilde e saltitante: . - “Olhem as Mensagens de Além Túmulo”!... Mensagens de Humberto de Campos!... Era a figura miúda do Vendedor de jornais. Mãos generosas entendiam,-lhe os seus níqueis em troca da minha lembrança. O seu mercado, nesse dia, foi certamente farto de compensações, porque um sorriso triunfante lhe aflorava nos lábios, enfeitando-lhe o corpo magrinho. Bastou a tua alegria, oh! Menino amargurado dos morros que és triste ornamento da Cidade Maravilhosa, para que eu me sentisse compensado de muitas labutas, porque, se os meus companheiros não me compreenderam no patrimônio rico da sua intelectualidade, tu tiveste nesse dia, em memória do meu humilde nome, um pouco de alegria, de conforto e de pão. " Humberto de Campos,"ÉM TÚMULO 5 de agosto de 1935 Dizem que os fantasmas dos mortos têm preferência pelas sombras da noite, para trazerem aos vos um reflexo esbatido do mistério em que se lhes fecharam os olhos. Em todos os lugares, conhece-se a história das almas aflitas, que, agrilhoadas ao mundo pelo pensamento obsedante acerca dos que ficaram para trás, regressam dos orbes indevassados, onde quase todas as religiões colocaram o seu inferno e o seu céu. Eu não venho, nessa ""hora que apavora"", copiando as deliberações das ""damas brancas"", que surgem nas casas solarengas como abantesmas de luar e de neblina, contrastando com a pesada escuridão da meia-noite. É até muito cedo para que um ""morto"" apareça, contrariando as opiniões gerais. Ainda há réstias de sol evadindo-se entre os arvoredos, como as rolas morenas e ariscas fugindo à noite cheia de sombras. Há uma grandiosa placidez na paisagem que se aquieta como ovelha mansa para ouvir a voz carinhosa do pastor. Vem aos olhos do meu pensamento aquele quadro de há dois mil anos. Quando o Cristo pregou o Sermão da Montanha, especificando as bem-aventuranças celestes, devia ser assim o crepúsculo. A mesma paz evangélica, os mesmos perfumes entornando-se da taça imensa do céu, a mesma esperança florindo no coração atormentado dos homens, beduínos extenuados desses desertos. Um alvoroço suave de recordações me conduz ao passado. . . É debalde, porém, essa tentativa de confinarmos a Palestina nas montanhas do sertão brasileiro. Se é verdade que os Espíritos sempre falaram sobre os pontos alcantilados da Terra, como no Sinai e no Tabor, nós não somos o. Divino Mestre. Há quem afirme que nós, os desencarnados, somos precursores, como João Batista. Mas, ainda não encontrei aqui viva alma nessa situação especialíssima. Corôo os que hoje andam aí atribulados com o progresso, estamos longe da época messiânica, em que os homens puros, para viverem sob a guarda de Deus, nada mais precisavam que um cântaro de mel. Mas, não venho hoje para tecer considerações dentro da mística religiosa. Venho para falar a quantos estranham as minhas palavras depois da morte, admirando-se, de que eu não apareça clamando perdão e misericórdia, penitenciando-me dos mais nefandos pecados. Desejariam que o Senhor derramasse sobre mim todas as suas cóleras sagradas; todas as torturas do Averno seriam poucas para me consumir a alma. Os vermes que corroeram o corpo leproso do patriarca da Bíblia seriam, para as minhas culpas, como leves carícias. Meus tormentos de Além-Túmulo deveriam exceder os de Tântalo. E tudo porque andei " Humberto de Campos,"espalhando umas anedotas lidas pelas consciências que, condenando-me hoje lá das suas sacristias, vivem pensando no Céu, sentindo na boca um gosto rubro de pecado. São as almas imaculadas que se esqueceram das minhas feições humanas, olvidando que os palhaços também divertem o público para conquistar os vinténs negros da vida. Se existem aí os que se confortam no luxo dos seus automóveis, deslizando no asfalto das avenidas, outros, para baterem à porta de uma padaria, é preciso que hajam passado através de um picadeiro. Já tive ocasião de afirmar que não encontrei o paraíso muçulmano. Encontrei, nesse ""outro mundo"", a minha própria bagagem. Meus pensamentos, minhas obras, frutos dos meus labores, da minha regeneração no sofrimento. Sem estar na beatitude do Céu, não conheço igualmente a topografia do inferno. Os uivos de Cérbero ainda não ecoaram aos meus ouvidos. O ""nessun maggior dolore"", que Dante escutou dos lábios de Francesca da Rimini, em sua peregrinação pelas masmorras do tormento, constituiu provavelmente um resultado da perturbação dos seus nervos auditivos, porque eu afirmo o contrário. Não há maior prazer que recordar, na paz daqui, as nossas dores na Terra. E todos aqueles que vêm à ribalta, lamentando o meu relativo sossego, cuidem de conservar a sua pureza. A Terra é tão inçada de abismos que, às vezes, procurando olhar em excesso pelos que nos acompanham, costumamos cair neles. Eu sou, de fato, grande culpado, não pelos meus esgares de caveira para arrancar o riso dos outros, mas diante da minha consciência, pela minha teimosia e incompreensão referentes aos problemas da Verdade. Todavia, Deus é a misericórdia suprema e, sem me acorrentar as colunas incandescentes, já prendeu meu coração de filho pródigo nas algemas suaves do seu amor. " Humberto de Campos,"! JERUSALÉM ... JERUSALÉM ... 11 de agosto de 1935 É possível a estranheza dos que vivem na Terra, com respeito à atitude dos desencarnados, esmiuçando-lhes as questões e opinando sobre os problemas que os inquietam. É lógico, porém, que os recém-libertos do mundo falem mais com o seu cabedal de experiências de passado, do que com a sua ciência do presente adquirida à custa de faculdades novas, que o homem não está ainda à altura de compreender. Podem imaginar-se, na Terra, determinadas condições da vida sobre a superfície de Marte; mas que interessam, por enquanto, ao mundo semelhantes descobertas, se os enigmas que o assoberbam ainda não foram decifrados? Para o exilado da Terra não vale a psicologia do homem desencarnado. Tateando na prisão escura da sua vida, seria quase um crime aumentar-lhe as preocupações e ansiedades. Eu teria muitas coisas novas a dizer; todavia, apraz-me, com o objeto de me fazer compreendido, debruçar nas bordas do abismo em que andei vacilando, subjugado nos tormentos, perquirindo os seus logogrifos inextricáveis, para arrancar as lições da sua inutilidade. Também o homem nada tolera que venha infringir o metro da sua rotina. Presumindo-se rei da Criação, não admite as verdades novas que esfacelam a sua coroa de argila. Os mortos, para serem reconhecidos, deverão tanger a tecla da mesma vida que abandonaram. Isso é intuitivo. O jornalista, para alinhavar os argumentos da sua crônica, busca os noticiários, aproveita-se dos acontecimentos do dia, tirando a sua ilação das ocorrências do momento. E meu espírito volve a contemplar o espetáculo angustioso dessa Abissínia abandonada no seio dos povos, como o derradeiro reduto da liberdade de uma raça infeliz, cobiçada pelo imperialismo do século, lembrando-me de Castro Alves nas suas amarguradas “Vozes da África"": Deus, Ó Deus, onde estás que não respondes? Em que mundo, em que estrela tu te escondes, Embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito, " Humberto de Campos,"Que embalde, desde então, corre o infinito. Onde estás, Senhor Deus? Da Roma poderosa partem as caravanas de guerreiros.Cartago agoniza no seu desgraçado heroísmo. Públio Cornélio consegue a mais estrondosa das vitórias. Os cérebros dos patrícios ilustres embriagam-se no vinho do triunfo; e nas galeras suntuosas, onde as águias simbolizam ,o orgulhoso poder da Roma eterna, lamentam-se os escravos nos seus nefandos martírios. Os Césares enchem a cidade das sabinas de troféus e glórias. Todos os deuses são venerados. Os países são submetidos e os povos entoam o hino da obediência à senhora do mundo. Já não se ouve a melodiosa flauta de Pan nos bosques da Tessália, e nas margens do Nilo apagam-se as luzes dos mais suaves mistérios. Vítima, porém, dos seus próprios excessos, o grande império vê apressar-se a sua decadência. No esboroamento dos séculos, a invencível potência dos Césares é um montão de ruínas. Sobre os seus mármores suntuosos crescem as destruições. Roma dormiu o seu grande sono. Ei-la, contudo, que desperta. Mussolini deixa escapar um grito do seu peito de ferro e a Roma antiga acorda do letargo, reconhecendo a perda dos seus imensos domínios. Urge, porém, recuperar o poderio, empenhando-se em alargar o seu império colonial. Onde e como? O mundo está cheio de leis, de tratados de amparo recíproco entre as nações. A França já ocupou todos os territórios ao alcance das suas possibilidades, a Alemanha está fortificada para as suas aventuras, o Japão tem as suas vistas sobre a China e a Inglaterra, calculista e poderosa, não pode ceder um milímetro no terreno das suas conquistas. Mas, Roma quer a expansão dá sua força econômica e prepara-se para roubar a derradeira ilusão de um povo desgraçado, ao qual não basta a lembrança amarga dos cativeiros multisseculares, julgando-se livre na obscura faixa de terra para onde recuou, batido pela crueldade das potências imperialistas. Que mal fizeste à civilização corrompida dos brancos, ó pequena Abissínia, grande pela expressão resignada do teu ardente heroísmo?! " Humberto de Campos,"Como pudeste, das areias calcinantes do deserto, onde apuras o teu espírito de sacrifício, penetrar nas instituições européias, provocando a fúria das suas armas? Deixa que passem sob o teu sol de fogo as hordas de vândalos, sedentas de chacina e de sangue. Sobre as tuas esperanças malbaratadas derramará o Senhor o perfume da sua misericórdia. Os humildes têm o seu dia de bem-aventurança e de glória. Não importa sejas o joguete dos caprichos condenáveis dos teus verdugos, porque, sobre o mundo, todas as frontes orgulhosas desceram do pináculo da sua grandeza para o esterquilínio e para o pó. Se tanto for preciso, recebe sobre os teus ombros a mortalha de sangue, porque, junto do maravilhoso império da Civilização apodrecida dos brancos, ouve-se a voz lamentosa de um novo Jeremias: - Oh! Jerusalém!... Jerusalém!... . " Humberto de Campos," 18 de agosto de 1935 Tive ensejo de afirmar aí no mundo que, se algum dia conseguisse liquidar todo o meu débito para com a terra maranhense e o Senhor decidisse mergulhar meu espírito no Letes da carne, eu desejaria ser paulista ou baiano. São Paulo e Bahia foram os dois braços fortes que me ampararam na provação. Minha dívida para com ambos é sagrada e irresgatável. Era do seio afetuoso da Bahia, terra mãe do Brasil, que me chegavam os brados de incitamento para a luta; e dos celeiros fartos e generosos de São Paulo vinha a maior parte do meu pão. Em seu território vivem os meus melhores amigos e do santuário do seu afeto subiram para Deus, em favor do escritor humilde e enfermo, as preces mais comovedoras e mais sinceras, as quais não lhe iluminaram apenas as estradas pedregosas da Vida, mas constituíram igualmente uma lâmpada suave no seu caminho da Morte. Ignoro quando o Senhor resolverá o retorno do meu espírito aos tormentos da Terra, mas quero, antes de meditar nos calabouços da carne, falar do reconhecimento do meu coração. Todas as coisas do Brasil falam particularmente à nossa alma: Piratininga é, porém, o poema de ouro e de aço das energias do seu povo. Sua história, dentro da história da Pátria, é uma afirmação gloriosa de heroísmo sagrado. O mesmo espírito de liberdade e de autonomia, que nos primórdios de sua organização lhe motivou o desejo de aureolar a fronte de Amador Bueno com uma coroa de rei, emancipando-se da sua condição subalterna, trabalha hoje, como trabalhou no passado, para eternizar com o braço realizador a epopéia da sua grandeza. Entre as energias moças da terra há um delírio contagioso de ação e de trabalho. O esforço carinhoso do homem une-se à exuberância da seiva e São Paulo - desfralda, nas linhas vanguardeiras, o lábaro do seu progresso e das suas conquistas. Do conforto de suas cidades modernas eleva-se para o céu a oração do labor que Deus escuta, premiando-lhe a operosidade com as alegrias da fartura. E dizem que Anchieta, ainda hoje, em companhia daqueles que lançaram a primeira pedra na base do glorioso edifício piratiningano, passeia, entre as bênçãos dos seus cafezais e das suas estradas, enviando sagrada exortação aos que pelejam. Ele, que soube aliar, no mundo, a energia do homem às virtudes do apóstolo vê do espaço infinito, a sublimidade da sua obra, e quando se aproxima das praias antigamente desertas e dos lugares onde as florestas desapareceram, sob os milagres do progresso, as juritis morenas da terra fremem as asas de arminho, tecendo um pálio inesperado para cobrir a fronte do homem prodigioso que lhes levou a palavra do Evangelho. Abençoam-no das alturas os indígenas redimidos pela sua fraterna solicitude, e, sob a proteção afetuosa das aves, Anchieta sorri, contemplando a sua Piratininga que trabalha e floresce. " Humberto de Campos,"Sempre me referi às coisas de São Paulo com o carinhoso enternecimento da minha admiração. E agora, longe das perturbações a que nos submete a carne, infligindo-nos a mais amargosa das escravidões, posso apreciar melhormente as suas afirmações de grandeza. Tenho a visão nítida dos seus valorosos feitos, da enérgica projeção dos ideais da sua gente intrépida, cuja atividade se desdobra no ambiente da confraternização de todas as raças, fundindo-se no seu seio os mais enobrecedores sentimentos da fraternidade humana. São Paulo de hoje é a bússola dos que hão de estudar amanhã a etnologia brasileira. Ao lado dos seus numerosos institutos de civilização e cultura, Piratininga terá a sua ""Sociedade de Estudos Psíquicos"" como realidade nova do ideal espiritualista, que, arregimentando as fileiras dos estudiosos, se prepara a fim de constituir a luz da humanidade futura. Abre-se, desse modo, no cenário da sua evolução, mais um centro de beneméritos, cuja ação não estará circunscrita à pesquisa científica, mas também ao levantamento do nível moral da sociedade, intensificando os elos da fraternidade cristã; por que os verdadeiros estudiosos sabem que, se a ciência contemporânea não está falida, não pode, nas suas condições do momento, oferecer ao homem a chave das felicidades imortais. A Humanidade está faminta desse amor que só Deus pode outorgar. Um frio terrível de desespero e desgraça sopra entre os homens, que se esqueceram da meditação e da prece. E a Ciência é a figura do Édipo eletrizado sob os fatalismos inelutáveis do destino. O erro dos que investigam é buscar a sabedoria sem preparar o coração, invertendo as determinações imperiosas da Vida. Piratininga está, pois, preparando o coração de seus filhos, e das suas arcas ricas e generosas se derramará muito pão espiritual para os celeiros empobrecidos. Dos empórios da sua grandeza saíram no passado as bandeiras civilizadoras, rasgando o coração das selvas compactas e, na atualidade, novas bandeiras sairão, rompendo o cipoal da descrença em que os homens se emaranharam, para dizer a palavra da verdade e do amor. As suas armas de agora serão os ensinos do Evangelho, e o seu objetivo, a descoberta do filão do ouro espiritual. Um júbilo inexprimível entorna-se do meu coração, dirigindo aos paulistas a minha palavra inexpressiva da tribuna da Morte; e tomado de orgulhosa alegria, posso hoje exclamar: - ""Eu te agradeço, ó Senhor! tão preciosos favores, porque, graças à tua bondade, pude hoje falar com S. Paulo, no momento em que se entregava com valoroso desassombro à obra da imortalidade, que é a obra do Evangelho. . ."" " Humberto de Campos,"ÇÃO DE MÃE 23 de agosto de 1935 Dolorosa e comovedora é a carta dessa mulher maranhense que te chegou às mãos, trazida nas asas de um avião trepidante e ruidoso. Mãe desesperada, apela para os sentimentos de paternidade que não me abandonaram no túmulo, e grita aflitivamente corno se as suas letras tremidas fossem vestígios arroxeados do sangue do seu coração: “Eu peço a Humberto de Campos que, mesmo do Além, salve o meu filho”! Ele, que não se esqueceu dos que deixou na Terra, não pode negar urna esmola à minha alma de mãe extremosa! E eu me lembro, comovido, dos apelos que me eram dirigidos pelos sofredores, nos derradeiros tempos da minha vida, enquanto eu naufragava devagarzinho no veleiro da Dor, entre as águas pesadas do oceano da Morte. Eu daria tudo para enviar, a essa mulher sofredora da terra que foi minha, a certeza de que o seu filho é uma criatura predileta dos deuses. Tudo faria para imitar aquelas mãos ternas e misericordiosas que descansaram sobre a fronte abatida do órfão da viúva de Naim, ressuscitando para um coração maravilhoso de Mãe as energias do filho que padece sob as provações mais penosas. A Morte, porém, não afasta do nosso caminho a visão estranha da fatalidade e do destino. Há um determinismo no cenário das nossas existências, criado por nós mesmos. O mal, com o seu cortejo de horrores, não está dentro dessa corrente impetuosa e irrefreável, mas todos os seus elos são formados pelos sofrimentos. Os homens de barro têm de batalhar a vida inteira, repelindo o Crime e o Pecado, mas inevitavelmente andarão atolados no pantanal da Dor e da Morte. O que mais me pungia, depois de haver perquirido as lições dos sábios daí, era a inutilidade dos seus argumentos ante as determinações irrevogáveis do destino. Após haver atravessado as estradas da ignorância despretensiosa, no limiar do imenso palácio das experiências alheias, presumia encontrar a solução dos enigmas que confundem o cérebro humano. Mas, em todas achei o mesmo tormento, as mesmas ansiedades angustiosas. Frente a frente ao pulso inflexível da Morte, toda a ciência do mundo é de uma insignificância irremediável. Nesse particular, todo o portentoso edifício da filosofia de Pitágoras não valia mais que as extravagantes teorias doutrinárias propaladas no mundo. " Humberto de Campos,"Todos quantos laboram em favor do homem da Terra esbarram nos muros indevassáveis da Sombra. O Cristo foi o único que espalhou, na masmorra da carne, uma claridade suave, porque não se dirigiu à criatura terrena, mas à criatura espiritual. Assombrava-me o espetáculo pavoroso do mundo, onde as leis, liberalíssimas para a aristocracia do ouro e severas em face dos infortunados que palmilham o caminho espinhoso com os pés descalços e feridos, refletem o caráter humano com os seus incorrigíveis defeitos. E, despertando de longos pesadelos na porta de claridade da sepultura, a minha primeira inquirição, com respeito aos problemas que me atormentavam, foi uma pergunta dolorosa acerca dos contrastes amargos do mundo. Ainda aqui, porém, os gênios carinhosos da Sabedoria abençoam, a sorrir, os que os interpelam, porque a decifração dos enigmas das nossas existências está em nós mesmos. Apesar do destino inflexível, há uma força em nós que dele independe, como origem de todas as nossas ações e pensamentos. Somos obreiros da trama caprichosa das nossas próprias vidas. As mãos, que hoje cortam as felicidades alheias, amanhã se recolherão como galhos - ressequidos nas frondes verdes da Vida. As iniqüidades de um Herodes podem desaparecer sob o manto de renúncias de um Vicente de Paulo. O sensualismo de Madalena foi expurgado nos prantos amargosos da expiação e do arrependimento. Quando pudermos ver o passado em todo o seu desdobramento, depois de contemplarmos a Messalina em sua noite de regalados prazeres, vê-la-emos de novo, arrastando-se nas margens do Tibre, enfiada num vestido horripilante de negras monstruosidades. Faltou-me na vida terrena semelhante compreensão, para entender a Verdade. Que essa pobre mãe maranhense considere esses realismos que nos edificam e nos salvam. E, como um anjo de Dor à cabeceira do seu filho, eleve o seu apelo ao coração augusto d’Aquele que remove as montanhas com o sopro suave do seu amor. Sua oração subirá ao Infinito como um cálice de perfume derramado ao clarão das estrelas que enfeitam o trono invisível do Altíssimo, e, certamente, os anjos da Piedade e da Doçura levarão a sua prece, como cândida oferta da sua alma sofredora, à magnanimidade daquela que foi a Rosa Mística de Nazaré. Então, nesse momento, talvez que o coração angustiado da mãe que chora, na Terra, se ilumine de uma claridade estranha e misericordiosa. Seu lar desditoso e humilde será, por instantes, um altar dessa luz invisível para os olhos mortais. Duas mãos de névoa translúcida pousarão como açucenas sobre a sua alma oprimida e uma voz carinhosa, embaladora, murmurará aos seus ouvidos: ""Sim, minha filha!... ouvi a tua prece e vim suavizar o teu martírio, porque também tive um filho que morreu ignominiosamente na cruz."" " Humberto de Campos,"""TÊTE À TÊTE"" DAS SOMBRAS 28 de agosto de 1935 Quando ainda no mundo, não me era dado avaliar o ""tête-à-tête"" amigável dos Espíritos, à maneira dos homens, apenas com a diferença de que as suas palestras não se desdobram à porta dos cafés ou das livrarias. E é com surpresa que me reúno àqueles que estimo, quando se me apresentam oportunidade: para uns dedos de prosa. Estávamos nós, quatro almas desencarnadas como se fôssemos no mundo quatro figuras apocalípticas, discutindo ainda as coisas mesquinhas da Terra, e a palestra versava justamente sobre a evolução das idéias espíritas no Brasil. - ""Infelizmente - exclama um do grupo, provecta figura dessas doutrinas, desencarnado há bons anos no Rio de Janeiro - o que infesta o Espiritismo em nossa terra é o mau gosto pelas discussões estéreis. O nosso trabalho é contínuo para que muitos confrades não se engalfinhem pela imprensa, demonstrando-lhes, com lições indiretas, a inutilidade das suas polêmicas. Mesmo assim, a doutrina tem realizado muito. Suas obras de caridade cristã estão multiplicadas por toda parte, atestando o labor do Evangelho."" Foi lembrada, então, a figura respeitável de Bittencourt Sampaio, no princípio da organização espírita no país, recordando-se igualmente a covardia de alguns companheiros que, guindados a prestigiosas posições na sociedade e na política, depressa esqueceram o seu entusiasmo de crentes, bandeando-se para o oportunismo das ideologias novas Ia a conversação nessa altura, quando o Doutor... C..., um dos mais caridosos facultativos do Rio, recentemente desencarnado e cujo nome não deve mencionar, respeitando os preconceitos que se estendem às vezes até aqui, explicou: - “É pena que venhamos a compreender tão tarde o Espiritismo, reconhecendo a sua lógica e grandeza moral só depois do nosso regresso de mundo”. ""Nós, os médicos, temos sempre o cérebro trabalhado de canseiras, na impossibilidade de resolver o problema da sobrevivência.. É certo que nunca se encontrará o ser na autópsia de um cadáver mas, tudo na vida é uma vibração profunda de espiritualidade. Como, porém, a Ciência vigia as sua: conquistas do Passado, ciosa dos seus domínios ainda que sejamos inclinados às verdades novas, somos obrigados, muitas vezes, a nos retrair, temendo os Zaratustras da sua infalibilidade.” " Humberto de Campos,"""Eu mesmo, nos meus tempos de clínica no Rio de Janeiro, fui testemunha de casos extraordinários, desenrolados sob as minhas vistas. Todavia, fui também presa do comodismo e do preconceito."" E o Dr. C. . ., como se mergulhasse os olhos no abismo das coisas que passaram, continuou pausadamente: - ""Eu já me encontrava com residência na praia de Botafogo, quando lavrou na cidade um surto epidêmico de gripe, aliás com mínima repercussão, comparado à epidemia de após a guerra. E como sempre contava, entre aqueles que recorriam à minha atividade profissional, diversos amigos pobres dos morros e particularmente da Prainha, foi sem surpresa que, numa noite-fria e. nevoenta, abri a porta para receber a visita de uma garota de seus dez anos, humilde e descalça, que vinha, trêmula e' acanhada, solicitar os meus serviços. - ""Doutor - dizia ela -, a mamãe está muito mal e só o senhor pode salvá-la. . . Quer fazer a caridade de vir comigo?"" ""Impressionaram-me a sua graça infantil e o estranho fulgor dos olhos, bem como o sorriso melancólico que lhe brincava na boca miúda. ""Considerei tudo quanto esperava a minha atenção urgente e procurei convencê-la da impossibilidade de a seguir, prometendo atendê-la no dia imediato. Todavia, a minha pequena interlocutora exclamou com os olhos rasos d’água: - ""Oh! doutor, não nos abandone. Ninguém, a não ser a proteção de Deus, vela por nós neste mundo. Se o senhor não nos quiser auxiliar, a mamãe estará perdida e ela não pode morrer agora. Venha!... o senhor não teve também uma mãe que foi o anjo de sua vida?"" A última frase dessa menina tocou fundo o meu coração e lembrei-me dos tempos longínquos, em que minha mãe embalava os sonhos da minha existência, comprando-me com o suor da sua pobreza honesta os alfarrábios e o pão. Eu devia auxiliar aquela pequena, fosse onde fosse. A Medicina era o meu sacerdócio e dentro da noite chuvosa que amortalhava todas as coisas, como se o Céu invisível chorasse sobre as trevas do mundo, o táxi rolava conosco, como fantasma barulhento, atravessando as ruas alagadas e desertas. Aquela menina, triste e silenciosa, tinha os olhos brilhantes, perdidos no vácuo. Seu corpo magrinho recostava-se inteiramente nas almofadas, enquanto os pés minúsculos se escondiam nas franjas do tapete. Lembrando as suas frases significativas, quis reatar Q fio do nosso diálogo: ""Há muito tempo que sua mãe se acha doente?"" - ""Não, senhor. Primeiro, fui eu; enquanto estive mal, tanto a mamãe cuidou de mim que até caiu cansada e enferma, também."" - ""Que sente a sua mãe?"" " Humberto de Campos,"- ""Muita febre. As noites são passadas sem dormir. Às vezes, grito para os vizinhos, mas parece que não me ouvem, pois estamos sempre as duas isoladas... Costumamos chorar muito com esse abandono; mas, diz à mamãe que a gente precisa sofrer, entregando a Deus o coração."" - ""E como soube você onde moro?"" - ""Foi a visita de um homem que eu não conhecia. Chegou devagarzinho à nossa porta, chamando-me à rua, dizendo-se amigo que o senhor muito estima; e, ensinando-me a sua casa. Prometeu que o senhor me atenderia, porque também havia tido uma mãe boa e carinhosa."" ""Nosso diálogo foi interrompido. A pequena enigmática mandou parar o carro. Apontou o local de sua residência, estendendo a mão descarnada e miúda e, com poucos passos, batíamos à porta modesta de uma choupana miserável. - ""Espere, doutor - disse ela -, eu lhe abrirei a porta passando pelos fundos."" ""E, já inquieta, desembaraçada, desapareceu das minhas vistas. Uma taramela deslizou com cuidado, no meio da noite, e entrei no casebre. Uma lamparina bruxuleante e humilde, que iluminava a saleta com o seu clarão pálido, deixava ver, no catre limpo, um corpo de mulher, desfigurado e disforme. Seu rosto, sulcado de lágrimas, era o atestado vivo das mais cruéis privações e dificuldades. Níobe estava ali petrificada na sua dor. Todos os martírios se concentravam naquele pardieiro abandonado. ÀS minhas primeiras perguntas, respondeu numa voz suave e débil: - ""Não, doutor, não tente arrancar minha alma desesperada das garras da Morte! Nunca precisei tanto, como agora, deixar para sempre o calabouço da Vida."" ""E prosseguia, delirando: - ""Nada me resta. . .Deixem-me morrer!. . ."" ""Sobrepus, porém, minha voz às suas lamentações e exclamei com energia: - ""Minha senhora, vou tomar todas as providências que o seu caso está exigindo. Hoje mesmo cessará esse desamparo. Urge reanimar-se! Resta-lhe muita coisa no mundo, resta-lhe essa filha afetuosa, que espera o seu carinho de mãe extremosa!. . ."" - ""Minha filha? :- retrucou aquela criatura, meio-mulher e meio-cadáver, enquanto duas grossas-lágrimas feriram fundo as suas faces empalidecidas - minha filha está morta desde anteontem!. . . Olhe, doutor, aí no quarto e não procure devolver a saúde a quem tanto necessita morrer!. . . ""Então, espantado, passei ao apartamento contíguo. O corpo de cera daquela criança misteriosa, que me chamara nas sombras da noite, ali estava envolvido em panos pobres e claros. Seu rosto imóvel, de boneca magrinha, era um retrato da privação e da fome. Os " Humberto de Campos,"grandes olhos fulgurantes estavam agora fechados, e na boca miúda pairava o mesmo sorriso suave das almas resignadas e tristes. ""Eu deslizara nas avenidas com uma sombra dos mortos."" E, cobrindo melancolicamente o painel das suas lembranças, o nosso amigo terminou: - ""Decorridos tantos anos, ainda ouço a voz do fantasma pequenino e gracioso; e, na luta da Vida, muita vez me ocorreu o seu conselho suave, que me ensinou a sofrer, entregando a Deus o coração. "" " Humberto de Campos,"ÁTRIA 7 de setembro de 1935 O Brasil celebra hoje o seu ""Dia da Pátria"". As bandeiras ouro e verde serão desfraldadas aos quatro ventos. Nas grandes cidades serão ouvidos os ecos dos clarins, nas paradas militares, e uma vibração de entusiasmo percorrerá o coração dos patriotas. Sei também que muitas personalidades desencarnadas, que antigamente lutaram pela organização da nacionalidade, hoje se voltam para São Sebastião do Rio de Janeiro, onde pretendem participar das cerimônias comemorativas; muitos dos chefes tapuias e tupis, legítimos donos da terra conquistada pelos portugueses, ainda no espaço não desdenharão igualmente de passear os olhos pelo cenário das suas passadas existências, recordando hoje as suas tabas solitárias, os seus costumes, que os brancos perverteram, a imensidade das selvas e as belezas melancólicas das suas praias desertas. Todavia, lembrando Paicolás, reconhecerão alguns benefícios de sua influência, ao lado de seus inumeráveis defeitos. Hão de contemplar, enlevados, a Avenida Central, a Avenida Atlântica, a praia de Copacabana, o Rússel, o Leblon, as obras de saneamento e o casario imenso da cidade maravilhosa, derramando-se pelos vales, pelas serras e planícies, numa alucinação de progresso vertiginoso. Os homens e os Espíritos desencarnados se reunirão, celebrando a data festiva. Essas solenidades são sempre lindas e alegres, quando encaradas dentro da sua formosa significação. As pátrias devem ser as casas imensas das famílias enormes. Unidas fraternalmente, realizariam o sonho da Canaã das Escrituras, na face da Terra. Contudo, quanto mais avançou a civilização nas suas estradas, mais o conceito de pátria foi viciado . na essência da sua legítima expressão. O progresso científico eliminou quase todos os problemas da incomunicabilidade. A radiotelefonia fez do Planeta uma sala minúscula, onde os países conversam, como as pessoas. Os paquetes para as. viagens transoceânicas são cidades flutuantes, como hífens gigantescos, unindo os povos. As máquinas aéreas, aperfeiçoadas e admiravelmente dispostas, sulcam os ares devorando as distâncias. Por toda parte rasgam-se estradas. Há uma ânsia de comunhão em todas as coisas. Tudo tende a unir-se, aproximando-se. Entretanto, nunca as pátrias estiveram tão afastadas umas das outras, como agora. Jamais se fez uma apologia tão grande da política de isolamento. As pátrias andam esquecidas de que a existência depende de trocas incessantes. Os maiores. desequilíbrios financeiros e econômicos são infligidos às nações, no seu egoísmo coletivo. " Humberto de Campos,"Deslumbrada, num período esplendoroso de sua evolução, e sentindo-se no limiar de transformações radicais em todos os setores de sua atividade, a sociedade humana escuta a voz dos seus gênios e dos seus apóstolos, desejando eliminar as fronteiras de todos os matizes que separam os seus membros, fundindo-se nesse abraço de Unidade que ela começa a compreender. Mas, a política representa o passado multimilenário. Os governos se concentram à base da força e o antagonismo que impera entre todos os elementos da atualidade apresenta um espetáculo interessantíssimo. Todos os pactos de paz são mentirosos. Haverá maior contradição que a de um instituto de paz, que deve ser pura e espontânea, guardado por exércitos armados até os dentes? Em todos os sistemas políticos dos tempos modernos predominam, apenas, os pruridos da hegemonia internacional. Em virtude de semelhantes disparates, a guerra é inevitável. Não haverá confabulações diplomáticas que a eliminem, por enquanto, dó caminho dos homens. E a guerra de agora será mais dolorosa e terrível. Todas as conquistas da ciência serão mobilizadas a seu serviço. A bacteriologia, a eletricidade, a mecânica, a química, todos os elementos serão requeridos pelo polvo insaciável. Deus criou a Paz, o Amor, a Fraternidade,mas os homens criaram os seus próprios destinos. Confundidos no labirinto de suas maldades, só têm podido iluminar os caminhos °da Vida com os fachos incendiados da Morte. Na atualidade, a guerra das pátrias representa a guerra dos sentimentos; porque uma era nova, de fraternidade cristã, desabrochará nos horizontes do mundo. Todos os Espíritos falam nessa renovação e ela aparecerá, clareando o dia novo da Humanidade. . Nessa época de ouro espiritual, que talvez não venha longe, o mundo entenderá a mensagem de paz do Divino Cordeiro. Uma brisa suave de conforto e de alívio descerá do Céu sobre as 'frontes atormentadas das criaturas. Terminará o dilúvio de expiações em que o homem há séculos está envolvido, e um pássaro simbólico trará novamente a oliva da esperança. E o Brasil que, embora com sacrifícios ingentes, vem colaborando na disseminação da mensagem da imortalidade e da esperança, nessa era nova entoará, com as nações irmanadas, o hino da Paz, compreendendo, pela evolução moral dos seus filhos, a beleza maravilhosa da Pátria Universal. " Humberto de Campos,"ÉPTICO 13 de Dezembro de 1935 Ainda não me encontro bastante desapegado desse mundo para que não me sentisse tentado a voltar a ele, no dia que assinalou o meu desprendimento da carcaça de ossos. Se o vinte e sete de outubro marcou o meu ingresso no reino das sombras, que é a vida daí, o cinco de dezembro representou a. minha volta ao país de claridades benditas, cujas portas de ouro são escancaradas pelas mãos poderosas da morte. Nessa noite, o ambiente do cemitério de São João Batista parecia sufocante. Havia um ""quê"" de mistérios, entre catacumbas silenciosas, que me enervava, apesar da ausência dos nervos tangíveis no meu corpo estranho de espírito. Todavia, toquei as flores cariciosas que a Saudade me levara, piedosa e compungidamente. O seu aroma penetrava o meu coração como um consolo brando, conduzindo-me, num retrospecto maravilhoso, às minhas afeições comovidas, que haviam ficado a distância. E foi entregue a essas cogitações, a que são levados os mortos quando penetram o mundo dos vivos, que vi, acocorado sobre a terra, um dos companheiros que me ficavam próximos ao bangalô subterrâneo com que fui mimoseado na terra carioca. . - O senhor é o dono desses ossos que estão por aí apodrecendo? - interpelou-me. - Sim, e a que vem a sua pergunta? - Ora, é que me lembro do dia de sua chegada ao seu palacete subterrâneo. Recordo-me bem, apesar de sair pouco dessa toca para onde fui relegado há mais de trinta anos... - O senhor se lembra? A urna funerária, portadora dos seus despojos, saiu solenemente da Academia de Letras, altas personalidades da política dominante se fizeram representar nas suas exéquias e ouvi sentidos panegíricos pronunciados em sua homenagem. Muito trabalho tiveram as máquinas fotográficas na camaradagem dos homens da imprensa e tudo fazia sobressair à importância do seu nome ilustre. Procurei aproximar-me de si e notei que as suas mãos, que tanto haviam acariciado o espadim acadêmico, estavam inermes e que os seus miolos, que tanto haviam vibrado, tentando aprofundar os problemas humanos, estavam reduzidos a um punhado de massa informe, onde apenas os vermes encontrariam algo de útil. Entretanto, embora as homenagens, as honrarias, a celebridade, o senhor veio humildemente repousar entre as tíbias e os úmeros daqueles que o antecederam na jornada da Morte. Lembra-se o senhor de tudo isso? - Não me lembro bem... Tinha o meu espírito perturbado pelas dores e emoções sucessivas. - Pois eu me lembro de tudo. Daqui, quase nunca me afasto, como um olho de Argos, avivando a memória dos meus vizinhos. O senhor conhece as criptas de Palermo? " Humberto de Campos,"- Não. - Pois nessa cidade os monges, um dia, conjugando a piedade com o interesse, inventaram um cemitério bizarro. Os mortos eram mumificados e não baixavam à sepultura. Prosseguiam de pé a sua jornada de silêncio e de nudez espantosa. Milhares de esqueletos ali ficaram, em marcha, vestidos ao seu tempo, segundo os seus gostos e opiniões. Muito rumor causou essa parada de caveiras e de canelas, até que um dia um inspetor da higiene, visitando essa casa de sombras da vida e enojado com a presença dos ratos que roíam displicentemente as costelas dos traspassados ricos e ilustres que se davam ao gosto de comprar ali um lugar de descanso, mandou cerrar-lhe as portas pelo ministro Crispi, em 1888. Ora bem: eu sou uma espécie dos defuntos de Palermo. Aqui estou sempre de pé, apesar dos meus ossos estarem dissolvidos na terra, onde se encontraram com os ossos dos que foram meus inimigos. - A vida é assim disse-lhe eu; mas, por que se dá o amigo a essa inglória tarefa na solidão em que se martiriza? Não teria vindo do orbe com bastante fé, ou com alguma credencial que o recomendasse a este mundo cujas fileiras agora integramos? - Credenciais? Trouxe muitas. Além da honorabilidade de velho político do Rio de Janeiro, trazia as insígnias da minha fé católica, apostólica romana. Morri com todos os sacramentos da igreja; porém, apesar das palavras sacramentais, da liturgia e das felicitações dos hissopes, não encontrei viva alma que me buscasse para o caminho do Céu, ou mesmo do inferno. Na minha condição de defunto incompreendido, procurei os templos católicos, que certamente estavam na obrigação de me esclarecer. Contudo, depressa me convenci da inutilidade do meu esforço. As igrejas estão cheias de mistificações. Se Jesus voltasse agora ao mundo, não poderia tomar um átomo de tempo pregando as virtudes cristãs, na base, luminosa da humildade. Teria de tomar, incontinenti, ao regressar a este mundo, um látego do fogo e trabalhar anos afio no saneamento de sua casa. Os vendilhões estão muito multiplicados e a época não comporta mais o Sermão da Montanha. O que se faz necessário, no tempo atual, no tocante a esse problema, é a creolina de que falava Guerra Junqueiro nas suas blasfêmias. - Mas, o irmão está muito cético. É preciso esperança e crença... -Esperança e crença? Não acredito que elas salvem o mundo, com essa geração de condenados. Parece que maldições infinitas perseguem a moderna civilização. Os homens falam de fé e de religião, dentro do esnobismo e da elegância da época. A religião é para uso externo, perdendo-se o espírito nas materialidades do século. As criaturas parecem muito satisfeitas sob a tutela estranha do diabo. O nome de Deus, na atualidade, não deve ser evocado senão como máscara para que os enigmas do demônio sejam resolvidos. Não estamos nós aqui dentro da terra da Guanabara, paraíso dos turistas, cidade maravilhosa? Percorra o senhor, ainda depois de morto, as grandes avenidas, as artérias gigantescas da capital e verá as crianças famintas, as mãos nauseantes dos leprosos, os rostos desfigurados e pálidos das mães sofredoras, enquanto o governo remodela os teatros, incentiva as orgias carnavalescas e multiplica regalos e distrações. Vá ver como o câncer devora os corpos enfermos no hospital da Gamboa; ande pelos morros, para onde fugiu a " Humberto de Campos,"miséria e o infortúnio; visite os hospícios e leprosários. Há de se convencer da inutilidade de todo o serviço em favor da esperança e da crença. Em matéria de religião, tente materializar-se e corra aos prédios elegantes e aos bangalôs adoráveis de Copacabana e do Leblon, suba a Petrópolis e grite a verdade. O seu fantasma seria corrido a pedradas. Todos os homens sabem que hão de chocalhar os ossos, como nós, algum dia, mas um vinho diabólico envenenou no berço essa geração de infelizes e de descrentes. - Por que o amigo não tenta o Espiritismo? Essa doutrina representa hoje toda nossa esperança. - Já o fiz. É verdade que não compareci em uma reunião de sabedores da doutrina, conhecedores do terreno que perquiriam; mas estive em uma assembléia de adeptos e procurei falar-lhes dos grandes problemas da existência das almas. Exprobrei os meus erros do passado, penitenciando-me das minhas culpas para escarmentá-los; mostrei-lhes as vantagens da prática do bem, como base única para encontrarmos a senda da felicidade, relatando-lhes a verdade terrível, na qual me achei um dia, com os ossos confundidos com os ossos dos miseráveis. Todavia, um dos componentes da reunião interpelou-me a respeito das suas tricas domésticas, acrescentando uma pergunta quanto à marcha dos seus negócios. Desiludi-me. Não tentarei coisa alguma. Desde que temos vida depois da morte, prefiro esperar a hora do Juízo Final, hora essa em que deverei buscar um outro mundo, porque, com respeito a Terra, não quero chafurdar-me na sua lama. Por estranho paradoxo vivo depois da morte, serei adepto da congregação dos descrentes. . - Então, nada o convence? - Nada. Ficarei aqui até à consumação dos evos, se a mão do Diabo não se lembrar, de me arrancar dessa toca de ossos moídos e cinzas asquerosas. E, quanto ao senhor, não procure afastar-me dessa misantropia. Continue gritando para o mundo que lhe guarda os despojos. Eu não o farei. E o singular personagem, recolheu-se à escuridão do seu canto imundo, enquanto pesava no meu espírito a certeza dolorosa da existência dessas almas vazias e incompreendidas na parada eterna dos túmulos silenciosos para onde os vivos levam de vez em quando as flores perfumadas da sua saudade e da sua afeição. " Humberto de Campos," 20 de Dezembro de 1935 Avizinhando-se o Natal, havia também no Céu um rebuliço de alegrias suaves. Os Anjos acendiam estrelas nos cômoros de neblinas douradas e vibravam no ar as harmonias misteriosas que encheram um dia de encantadora suavidade a noite de Belém. Os pastores do paraíso cantavam e, enquanto as harpas divinas tangiam suas cordas sob o esforço caricioso dos zéfiros da imensidade, o Senhor chamou o Discípulo Bem-Amado ao seu trono de jasmins matizados de estrelas. O vidente de Patmos não trazia o estigma da decrepitude como nos seus últimos dias entre as Espórades. Na sua fisionomia pairava aquela mesma candura adolescente que o caracterizava no princípio do seu apostolado. - João – disse-lhe o Mestre – lembras-te do meu aparecimento na Terra? - Recordo-me, Senhor. Foi no ano 749 da era romana, apesar da arbitrariedade de frei Dionísios, que colocou erradamente o vosso natalício em 754, calculando no século VI da era cristã. - Não, meu João – retornou docemente o Senhor – não é a questão cronológica que me interessa em te argüindo sobre o passado. É que nessas suaves comemorações vem até mim o murmúrio doce das lembranças!... - Ah! sim, Mestre Amado – retrucou pressuroso o Discípulo – compreendo-vos. Falais da significação moral do acontecimento. Oh!...se me lembro... a manjedoira, a estrela guiando os poderosos ao estábulo humilde, os cânticos harmoniosos dos pastores, a alegria ressoante dos inocentes, afigurando-se-nos que os animais vos compreendiam mais que os homens, aos quais ofertáveis a lição da humildade com o tesouro da fé e da esperança. Naquela noite divina, todas as potências angélicas do paraíso se inclinaram sobre a Terra cheia de gemidos e de amargura para exaltar a mansidão e a piedade do Cordeiro. Uma promessa de paz desabrochava para todas as coisas com o vosso aparecimento sobre o mundo. Estabelecera-se um noivado meigo entre a Terra e o Céu e recordo-me do júbilo com que Vossa Mãe vos recebeu nos seus braços feitos de amor e de misericórdia. Dir-se-ia, Mestre, que as estrelas de ouro do paraíso fabricaram, naquela noite de aromas e de radiosidades indefiníveis um mel divino no coração piedoso de Maria!... Retrocedendo no tempo, meu Senhor bem-amado, vejo o transcurso da vossa infância, sentindo o martírio de que fostes objeto; o extermínio das crianças de Vossa idade, a fuga nos braços carinhosos da Vossa progenitora, os trabalhos manuais em companhia de José, as vossas visões maravilhosas no Infinito, em comunhão constante com o Vosso e nosso Pai, preparando-Vos para o desempenho da missão única que Vos fez abandonar por alguns momentos os palácios de sol da mansão celestial para descer sobre as lamas da Terra. " Humberto de Campos,"- Sim, meu João, e, por falar nos meus deveres, como seguem no mundo as coisas atinentes à minha doutrina? - Vão mal, meu Senhor. Desde o concílio ecumênico de Nicéia, efetuado para combater o cisma de Ario em 325, as vossas verdades são deturpadas. Ao arianismo seguiu-se o movimento dos inconoclastas em 787 e tanto contrariaram os homens o Vosso ensinamento de pureza e de simplicidade, que eles próprios nunca mais se entenderam na interpretação dos textos evangélicos. - Mas não te recordas, João, que a minha doutrina era sempre acessível a todos os entendimentos? Deixei aos homens a lição do caminho, da verdade e da vida sem lhes haver escrito uma só palavra. - Tudo isso é verdade, Senhor, mas logo que regressastes aos vossos impérios resplandecentes, reconhecemos a necessidade de legar à posteridade os vossos ensinamentos. Os evangelhos constituem a vossa biografia na Terra; contudo, os homens não dispensam, em suas atividades, o véu da matéria e do símbolo. A todas as coisas puras da espiritualidade adicionam a extravagância de suas concepções. Nem nós e nem os evangelhos poderíamos escapar. Em diversas basílicas de Rávena e de Roma, Mateus é representado por um jo0vem, Marcos por um leão, Lucas por um touro e eu, Senhor, estou ali sob o símbolo estranho de uma águia. - E os meus representante, João, que fazem eles? - Mestre, envengonho-me de o dizer. Andam quase todos mergulhados nos interesses da vida material. Em sua maioria, aproveitam-se das oportunidades para explorar o vosso nome e, quando se voltam para o campo religioso, é quase que apenas para se condenarem uns aos outros, esquecendo-se de que lhes ensinastes a se amarem como irmãos. - As discussões e os símbolos, meu querido – disse-lhe suavemente o Mestre – não me impressionam tanto. Tiveste, como eu, necessidade destes últimos, para as predicações e, sobre a luta das idéias, não te lembras quanta autoridade fui obrigado a despender, mesmo depois da minha volta da Terra, para que Pedro e Paulo não se tornassem inimigos? Se entre meus apóstolos prevaleciam semelhantes desuniões, como poderíamos eliminá-las do ambiente dos homens, que não me viram, sempre inquietos nas suas indagações? ... O que me contrista é o apego dos meus missionários aos prazeres fugitivos do mundo! - É verdade, Senhor. - Qual o núcleo de minha doutrina que detém no momento maior força de expressão? - É o departamento dos bispos romanos, que se recolheram dentro de uma organização admirável pela sua disciplina, mas altamente perniciosa pelos seus desvios da verdade. O Vaticano, Senhor, que não conheceis, é um amontoado suntuoso das riquezas das traças e dos vermes da Terra. Dos seus palácios confortáveis e maravilhosos irradia-se todo um movimento de escravização das consciências. Enquanto vós não tínheis uma pedra onde repousar a cabeça, dolorida os vossos representantes dormem a sua sesta sobre almofadas " Humberto de Campos,"de veludo e de ouro; enquanto trazíeis os vossos pés macerados nas pedras do caminho escabroso, quem se inculca como vosso embaixador traz a vossa imagem nas sandálias matizadas de pérolas e de brilhantes. E junto de semelhantes superfluidades e absurdos, surpreendemos os pobres chorando de cansaço e de fome; ao lado do luxo nababesco das basílicas suntuosas, erigidas no mundo como um insulto à glória da vossa humildade e do vosso amor, choram as crianças desamparadas, os mesmos pequeninos a quem estendíeis os vossos braços compassivos e misericordiosos. Enquanto sobram as lágrimas e os soluços entre os infortunados, nos templos, onde se cultua a vossa memória, transbordam moedas em mãos cheias, parecendo, com amarga ironia, que o dinheiro é uma defecação do demônio no chão acolhedor da vossa casa. - Então, meu Discípulo, não poderemos alimentar nenhuma esperança? - Infelizmente, Senhor, é preciso que nos desenganemos. Por um estranho contraste, há mais ateus benquistos no Céu do que aqueles religiosos que falavam em vosso nome na Terra. - Entretanto – sussurraram os lábios divinos docemente – consagro o mesmo amor à humanidade sofredora. Não obstante a negativa dos filósofos, as ousadias da ciência, o apodo dos ingratos, a minha piedade é inalterável... Que sugeres, meu João, para solucionar tão amargo problema? - Já não dissestes, um dia, Mestre, que cada qual tomasse a sua cruz e vos seguisse? - Mas prometi ao mundo um Consolador em tempo oportuno!... E os olhos claros e límpidos, postos na visão piedosa do amor de seu Pai Celestial, Jesus exclamou: - Se os vivos nos traíram, meu Discípulo Bem-Amado, se traficam com o objeto sagrado da vossa casa, profligando a fraternidade e o amor, mandarei que os mortos falem na Terra em meu nome. Deste Natal em diante, meu João, descerrarás mais um fragmento dos véus misteriosos que cobrem a noite triste dos túmulos para que a verdade ressurja das mansões silenciosas da Morte. Os que já voltaram pelos caminhos ermos da sepultura retornarão à Terra para difundirem a minha mensagem, levando aos que sofrem, coma esperança posta no Céu as claridades benditas do meu amor!... E desde essa hora memorável, há mais de cinqüenta anos, o Espiritismo veio, com as suas lições prestigiosas, felicitar e amparar na Terra a todas as criaturas. " Humberto de Campos," 21 de Janeiro de 1936 O Senhor tomou lugar no tribunal da sua justiça e, examinando os documentos que se referiam às atividades das personalidades eminentes sobre a Terra, chamou o Anjo da Morte, exclamando: - Nos meados do século findo partiram daqui diversos servidores da Ciência que prometeram trabalhar em meu nome, no orbe terráqueo levantando a moral dos homens e suavizando-lhes as lutas. Alguns já regressaram, enobrecidos nas ações dignificadoras, desse mundo longínquo. Outros, porém, desviaram-se dos seus deveres e outros ainda lá permanecem, no turbilhão das dúvidas e das descrenças, laborando no estudo. “Lembras-te daquele que era aqui um inquieto investigador, com as suas análises incessantes, e que se comprometeu a servir os ideais da Imortalidade, adquirindo a fé que sempre lhe faltou”? - Senhor, aludis a Charles Richet, reencarnado em Paris, em 1850, e que escolheu uma notabilidade da medicina para lhe servir de pai? - Justamente. Pelas notícias dos meus emissários, apesar da sua sinceridade e da sua nobreza, Richet não conseguir adquirir os elementos de religiosidade que fora buscar em favor do seu próximo. Tens conhecimento dos favores que o Céu lhe tem adjudicado no transcurso da sua existência? - Tenho, Senhor. Todos os vossos mensageiros lhe cercaram a inteligência e a honestidade com o halo da vossa sabedoria. Desde os primórdios das suas lutas na Terra, os Gênios da imensidade o rodeiam com o sopro divino de suas inspirações. Dessa assistência constante lhe nasceram os poderes intelectuais, tão cedo revelados no mundo. A sua passagem pelas academias da Terra, que serviu para excitar a potência vibratória da sua mente, em favor da ressurreição do seu tesouro de conhecimentos, foi acompanhada pelos vossos emissários com especial carinho. Ainda na mocidade, lecionou na Faculdade de Medicina, obtendo a cadeira de fisiologia. Nesse tempo, já seu nome, com os vossos auxílios, estava cercado de admiração e respeito. As suas produções granjearam-lhe a veneração e a simpatia dos seus contemporâneos. De 1877 a 1884, publicou estudos notáveis sobre a circulação do sangue, sobre a sensibilidade, sobre a estrutura das circunvoluções cerebrais, sobre a fisiologia dos músculos e dos nervos, perquirindo os problemas graves do ser, investigando no círculo de todas as atividades humanas, conquistando o seu nome a admiração universal. - E em matéria de espiritualidade – replicou austeramente o Senhor – que lhe deram os meus emissários e de que forma retribuiu o seu espírito a essas dádivas? " Humberto de Campos,"- Nesse particular – exclamou solícito o Anjo – muito lhe foi dado. Quando deixastes cair, mais intensamente, a vossa luz sobre os mistérios que me envolvem, ele foi dos primeiros a receber-lhe os raios fulgurantes. Em Carqueiranne, em Milão e na Ilha Roubaud, muitas claridades o bafejaram, junto de Eusápia Paladino, quando o seu gênio se entregava a observações positivas, com os seus colegas Lodge, Myers e Sidgwick. De outras vezes, com Delanne, analisou as célebres experiências de Alger, que revolucionaram os ambientes intelectuais e materialistas da França, que então representava o cérebro da civilização ocidental. “Todos os portadores das vossas graças levaram as sementes da Verdade à sua poderosa organização psíquica, apelando para o seu coração, a fim de que ele afirmasse as realidades da sobrevivência; povoaram-lhe as noites de severas meditações, com as imagens maravilhosas das vossas verdades, porém apenas conseguiram que ele escrevesse o “Tratado de Metapsíquica” e um estudo proveitoso a favor da concórdia humana, que lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz em 1913.” (1) “Os mestres espirituais não desanimaram nem descansaram nunca em torno da sua individualidade; mas apesar de todos os esforços desprendidos, Richet viu, nas expressões fenomenológicas de que foi atento observador, apenas a exteriorização das possibilidades de um sexto sentido nos organismos humanos. Ele que fora o primeiro organizador de um dicionário0 de fisiologia, não se resignou a ir além das demonstrações histológicas. Dentro da espiritualidade, todos os seus trabalhos de investigador se caracterizam pela dúvida que lhe martiriza a personalidade. Nunca pôde, Senhor, encarar as verdades imortalistas, senão como hipóteses, mas o seu coração é generoso e sincero. Ultimamente, nas reflexões da velhice, o grande lutador se veio inclinando para a fé, até hoje inacessível ao seu entendimento de estudioso. Os vossos mensageiros conseguiram inspirar-lhe um trabalho profundo, que apareceu no planeta como “A Grande Esperança” e, nestes últimos dias, a sua formosa inteligência realizou para o mundo uma mensagem entusiástica em prol dos estudos espiritualistas.” - Pois bem, - exclamou o Senhor – Richet terá de voltar agora a penates. Traze de novo aqui a sua individualidade para as necessárias interpelações. - Senhor, assim tão depressa? – retornou o Anjo, advogando a causa do grande cientista – O mundo vê em Richet um dos seus gênios mais poderosos, guardando nele sua esperança. Não conviria protelar a sua permanência na Terra, afim de que ele vos servisse, servindo à Humanidade? - Não – disse o Senhor tristemente – Se, após oitenta e cinco anos de existência sobre a face da Terra, não pôde reconhecer, com a sua ciência, a certeza da imortalidade, é desnecessária a continuação de sua estada nesse mundo. Como recompensa aos seus esforços honestos em benefício dos seus irmãos em humanidade, quero dar-lhe agora, com o poder do meu amor, a centelha divina da crença, que a ciência planetária jamais lhe concedeu nos seus labores ingratos e frios. * * * No leito de morte, Richet tem as pálpebras cerradas e o corpo na posição derradeira, em caminho da sepultura. Seu espírito inquieto de investigador não dormiu o grande sono. " Humberto de Campos,"Há ali, cercando-lhe os despojos, uma multidão de fantasmas. Gabriel Delanne estende-lhe os braços de amigo. Denis e Flammarion o contemplam com bondade e carinho. Personalidades eminentes da França antiga, velhos colaboradores devotados dos “Anais das Ciências Psíquicas” ali estão para abarcarem o mestre, no limiar do seu túmulo. Richet abre os olhos para as realidades espirituais que lhe eram desconhecidas. Parece-lhe haver retrocedido às materializações da Vila Carmen; mas, ao seu lado, repousam os seus despojos, cheios de detalhes anatômicos. O eminente fisiologista reconhece-se no mundo dos verdadeiros vivos. Suas percepções estão intensificadas, sua personalidade é a mesma e, no momento em que volve a atenção para a atitude carinhosa dos que o rodeiam, ouve uma voz suave e profunda, falando do infinito: - Richet – exclama o Senhor no tribunal de sua misericórdia, por que não afirmaste a Imortalidade, e por que desconheceste o meu nome no seu apostolado de missionário da ciência e do labor? Abri todas as portas de ouro, que te poderia reservar sobre o mundo. Perquiriste todos os livros. Aprendeste e ensinaste, fundaste sistemas novos do pensamento, à base das dúvidas dissolventes. Oitenta e cinco anos se passaram, esperando eu que a tua honestidade me reconhecesse, sem que a fé desabrochasse em teu coração... Todavia, decifraste, com o teu esforço abençoado, muitos enigmas dolorosos da ciência do mundo e todos os teus dias representaram uma sede grandiosa de conhecimentos... Mas, eis, meu filho, onde a tua razão positiva é inferior à revelação divina da fé. Experimentaste as torturas da morte com todos os teus livros e diante dela desapareceram os teus compêndios, ricos de experimentações no campo das filosofias e das ciências. E agora, premiando os teus labores, eu te concedo os tesouros da fé que te faltou na dolorosa estrada do mundo! Sobre o peito do abnegado apóstolo desce do Céu um punhal de luz opalina como um venábulo maravilhoso de luar indescritível. Richet sente o coração tocado de luminosidade infinita e misericordiosa, que as ciências nunca lhe haviam dado. Seus olhos são duas fontes abundantes de lágrimas de reconhecimento ao Senhor. Seus lábios, como se voltassem a ser os lábios de um menino, recitam o “Pai Nosso que estais no Céu...” Formas luminosas e aéreas arrebatam-no, pela estrada de éter da eternidade e, entre prantos de gratidão e de alegria, o apóstolo da ciência caminhou da grande esperança para a certeza divina da Imortalidade. Nota: (1) Certamente houve aí um lapso do autor, Richet apesar de ardoroso pacifista, não recebeu o Nobel da Paz e sim o de Medicina pela descoberta da anafilaxia. " Humberto de Campos," 06 de Abril de 1936 “Na Casa da Morte”, em Trenton, Bruno Richard Hauptmann desfolha, pela última fez, o calendário de suas recordações. É de tarde. O condenado sente esvaecer-se-lhe a derradeira esperança. Já não há mais possibilidade de adiamento da execução depois das decisões do Grande Júri de Mercer, e o caso Wendel representava o único elemento que modificaria o epílogo doloroso da tragédia de Hopewell. O governador do Estado de Nova Jérsey já havia desempenhado a sua imitação de Pilatos, e o senhor Kimberling nada mais poderia realizar que o cumprimento austero das leis que condenaram o carpinteiro alemão à cadeira elétrica. Hauptmann sente-se perdido diante do irresistível e chora, protestando a sua inocência. Recapitula a série de circunstâncias que o conduziram à situação de indigitado matador do baby Lindenbergh, e espera ainda que a justiça dos homens reconheça o seu erro, salvando-o, à última hora, das mãos do carrasco. Mas a justiça dos homens está cega; tateando na noite escura de suas vacilações, não viu senão a ele, no amontoado das sombras. A polícia norte-americana precisava que alguém viesse à barra do Tribunal responder-lhe por um crime nefando, satisfazendo assim as exigências da civilização, salvaguardando o seu renome e a sua integridade. E o carpinteiro de Bronx, o olhar marcado de lágrimas, recorda os pequenos episódios da sua existência. A sua velha humilde de Kamentz; o ideal da fortuna nas terras americanas, a esposa aflita e desventurada e a imagem do filhinho, brincando nas suas pupilas cheias de pranto, Hauptmann esquece-se então dos seus nervos de aço e da sua serenidade perante as determinações da justiça, e chora convulsivamente, enfrentando os mistérios silenciosos da Morte. Paira no seu cérebro a desilusão de todo o esforço diante da fatalidade e, sentindo o escoamento dos seus derradeiros minutos, foge espiritualmente do torvelinho das coisas humanas para se engolfar nas meditações das coisas de Deus. Suas mãos cansadas tomam a Bíblia do padre Werner e o seu espírito excursiona no labirinto das lembranças. Ao seu cérebro atormentado voltam as orações aprendidas na infância, quando sua mãe lhe punha na boca os salmos de Davi e o santo nome de Deus. Depois disso ele viera para o mundo largo, onde os homens se devoram uns aos outros no círculo nefasto das ambições. Suas preces de menino se perderam como restos de um naufrágio em noite de procela. Ele não conhecera nenhum apóstolo e jamais lhe mostraram, no turbilhão escuro das lutas humanas, uma figura que se assemelhasse àquele Homem Suave dos Evangelhos; entretanto, nunca como naquela hora, ele sentiu tanto o desejo de ouvir-lhe a palavra sedutora do Sermão da Montanha. Aos seus ouvidos ecoavam as derradeiras notas daquele cântico de glorificação aos bem-aventurados do mundo, pronunciado num crepúsculo, há dois mil anos, para aqueles que a vida condenou ao infortúnio e uma voz misteriosa lhe segredava aos ouvidos os segredos da cruz, cheia de belezas ignoradas. Hauptmann toma o capítulo do salmo XXIII e repete com o profeta: “O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará.”. " Humberto de Campos,"O relógio da Penitenciária prosseguia, decifrando os enigmas do tempo, e o carrasco já havia chegado para o seu terrível mister. Cinqüenta testemunhas ali se conservavam para presenciar a cena do supremo desrespeito pelas vidas humanas. Médicos, observadores das atividades judiciárias, autoridades e guardas, ali se reuniam para encerrar tragicamente um drama sinistro que emocionou o mundo inteiro. O condenado, à hora precisa, cabelos raspados a máquina zero e a calça fundida para que a execução não falhasse, entra, calado e sereno, na Câmara da Morte. Havia no seu rosto um suor pastoso como o dos agonizantes. Nenhuma sílaba se lhe escapou da garganta silenciosa. Contemplou calmamente o olhar curioso e angustiado dos que o rodeavam, representando ironicamente o testemunho das leis humanas. No seu peito não havia o perdão de Cristo para os seus verdugos, mas um vulcão de prantos amargos torturava-lhe o íntimo nos instantes derradeiros; considerando toda inutilidade de ação, diante do Destino e da Dor, deixou-se amarrar à poltrona da morte enquanto os seus olhos tangíveis não viam mais os benefícios alegres da claridade, mergulhando-se nas trevas compactas em que iam entrar. Elliot imprime o primeiro movimento à roda fatídica, correntes elétricas anestesiam o cérebro do condenado, e, dentro de quatro minutos, pelo preço mesquinho de alguns centavos, os Estados Unidos da América do Norte exercem a sua justiça, não obstante as dúvidas tremendas que pairam sobre a culpabilidade do homem sobre cuja cabeça recaíram os rigores de suas sentenças. Muito se tem escrito sobre o doloroso drama de Hopewell. Os jornais de todo o mundo focalizaram o assunto, e as estações de rádio encheram a atmosfera com as repercussões dessa história emocionante; não é demais, portanto, que “um morto” se interesse por esse processo que apaixonou a opinião pública mundial. Não para exercer a função de revisor dos erros judiciários, mas para extrair a lição da experiência e o benefício do ensinamento. As leis penais da América do Norte não possuíam elementos comprobatórios da culpa do Bruno Hauptmann como autor do nefando infanticídio. Para conduzi-lo à cadeira da morte não se prevaleceu senão dos argumentos dubitativos, inadmissíveis dentro da cultura jurídica dos tempos modernos. Muitas circunstâncias preponderavam no desenrolar dos acontecimentos, e que não foram tomadas na consideração que lhes era devida. A história de Isidoro Fisch, a ação de Betty Cow e de Violetta Scharp, a leviandade das acusações de Jafzie Condon e a dúvida profunda empolgando todos os corações que acompanharam, em suas etapas dolorosas, o desdobramento desse processo sinistro. Mas em tudo isso, nessa tragédia que feriu cruelmente a sensibilidade cristã, há uma justiça pairando mais alto que todas as decisões dos tribunais humanos, somente acessível aos que penetraram o escuro mistério da Vida, no ressurgimento das reencarnações. " Humberto de Campos,"Hauptmann sacrificado na sua inocência, Harold Hoffmann com desprestígio político perante a opinião pública do seu país e Lindbergh, herói de um século, ídolo do seu país e um dos homens mais afortunados do mundo, fugindo de sua terra a bordo do “American Importer”, onde quase lhe faltava o conforto mais comezinho, como se fora um criminoso vulgar, são personalidades interpeladas na Terra pela Justiça Suprema. Nos mundos e nos espaços há uma figura de Argos observando todas as coisas. No seu tribunal do direito absoluto a Têmis divina arquiteta a trama dos destinos de todas as criaturas. E só nessa Justiça pode a alma guardar a sua esperança, porque o direito humano, quase sempre filho da supremacia da força, é às vezes falho de verdade e de sabedoria. Dia virá em que a justiça humana compreenderá a extensão do seu erro, condenando um inocente. As autoridades jurídicas h/ao de se preparar para a enunciação de uma nova sentença, mas o processo terá subido integralmente para a alçada da equidade suprema. Debalde os juízes da Terra tentarão restabelecer a realidade dos fatos com os recursos de sua tardia argumentação, porque nesse dia, quando Bruno Richard Hauptmann for convocado para o último depoimento em favor do resgate de sua memória, o carpinteiro de Bronx, que os homens eletrocutaram, não passará de um punhado de cinzas. " Humberto de Campos," 12 de Junho de 1936 A crônica abaixo foi recebida por Chico Xavier na residência do Sr. Manuel Quintão. Belíssima página de literatura, vem mostrar que o grande pensador brasileiro continua tendo, além-túmulo, a mesma facilidade de expressão e maneja o português com a mesma elegância com que fazia na vida terrena. Um dia, reunindo o Senhor seus Apóstolos, ao pé das águas claras e alegres do Jordão, descortinou-lhes o panorama imenso do mundo. Lá estavam as grandes metrópoles, cheias de faustos e grandezas. Alexandria e Babilônia, junto Roma dos Césares, acendiam na terra o fogo da luxúria e dos pecados. E Jesus, adivinhando a miséria e o infortúnio do Espírito mergulhado os humanos tormentos, alçou a mão compassiva em direção à paisagem triste do Planeta, declarando aos discípulos: “Ide e pregai! Eu vos envio ao mundo como ovelhas ao meio de lobos, mas não vim senão para curar os doentes e proteger os desgraçados.” E os Apóstolos partiram, no afã de repartir as dádivas do seu Mestre. Ainda hoje, afigura-se-nos que a voz consoladora do Cristo mobiliza as almas abnegadas, articulando-as no caminho escabroso da moderna civilização. Os filhos do sacrifício e da renúncia abrem clareiras divinas no cipoal escuro das descrenças humanas, constituindo exércitos de salvação e de socorro aos homens, que se debatem no naufrágio triste das esperanças; e, se a vida pode cerrar os nossos olhos e restringir a acuidade das nossas percepções, a morte vem descerrar-nos um mundo novo, a fim de que possamos entrever as verdades mais profundas do plano espiritual. Foi Miguel Couto que exclamou, em um dos seus momentos de amargura, diante da miséria exibida em nossas praças públicas: “Ai dos pobres do Rio de Janeiro, se não fossem os Espíritas.” E hoje que a morte reacendeu o lume dos meus olhos, que aí se apagava, nos derradeiros tempos de minha vida, como luz bruxuleante dentro da noite, posso ver a obra maravilhosa dos espíritas, edificada no silêncio da caridade evangélica. Eu não conhecia somente o Asilo São Luís, que se derrama pela enseada do Caju como uma esteira de pombais claros e tranqüilos, onde a velhice desamparada encontra remanso " Humberto de Campos,"de paz, no seio das tempestades e das dolorosas experiências do mundo, como realização da piedade pública, aliada à propaganda das idéias católicas.Conhecia, igualmente, o Abrigo Teresa de Jesus, o Amparo Teresa Cristina e outras casas de proteção aos pobres e desafortunados do Rio de Janeiro, que um grupo de criaturas abnegadas do proselitismo espírita havia edificado. Mas, meu coração, que as dores haviam esmagado, trucidando todas as suas aspirações e todas as suas esperanças, não podia entender a vibração construtora da fé dos meus patrícios, que Xavier de Oliveira tachara de loucos no seu estudo mal--avisado do Espiritismo no Brasil. A verdade hoje é para mim mais profunda e mais clara. Meu olhar percuciente de desencarnado pode alcançar o fundo das coisas, e a realidade é que a organização das consoladoras doutrinas dos Espíritos, no Brasil, não está formada à revelia da vontade soberana, do amor e da justiça que nos presidem aos destinos. Obra estreme da direção especializada dos homens, é no Alto que se processam as suas bases e as suas diretrizes. Por uma estranha coincidência defrontam-se, na Avenida Passos, quase frente a frente, o Tesouro Nacional e a Casa de Ismael1. Tesouros da Terra e do Céu, guardam-se no primeiro as caixas fortes do ouro tangível, ou das suas expressões fiduciárias; e, no segundo, reúnem-se os cofres imortalizados das moedas do Espírito. De um, parte a corrente fertilizante das economias do povo, objetivando a vitalidade física do país; e, do outro, parte o manancial da água celeste que sacia toda sede, derramando energias espirituais e intensificando o bendito labor da salvação de todas as almas. A Obra da Federação Espírita Brasileira é a expressão do pensamento imaterial dos seus diretores do plano invisível, indene de qualquer influenciação da personalidade dos homens. Semelhantes àqueles discípulos que partiram para o mundo como o “Sal da Terra”, na feliz expressão do Divino Mestre, os seus administradores são intérpretes de um ditame superior, quando alheados de sua vontade individual para servir ao programa de amor e de fé ao qual se propuseram. O roteiro de sua marcha é conhecido e analisado no mundo das verdades do espírito e a sua orientação nasce da fonte das realidades superiores e eternas, não obstante todas as incompreensões e todos os combates. A história da Casa de Ismael nos espaços está cheia de exemplos edificantes de sacrifícios e dedicações. Se Augusto Comte. afirmou que os vivos são cada vez mais governados pelos mortos, nas intuições do seu positivismo, nada mais fez que refletir a mais sadia de todas as verdades. A Federação que guarda consigo as primícias de sede do Tesouro espiritual da terra de Santa Cruz não está de pé somente à custa do esforço dos homens, que por maior que ele seja será sempre caracterizado pelas fragilidades e pelas fraquezas. Muitos dos seus sempre diretores desencarnados aí se conservam como aliados do exército da salvação que ali se reúne. Ainda há poucos dias, enquanto a Avenida fervilhava de movimento, vi às suas portas uma figura singela e simpática de velhinho, pronto para esclarecer e abençoar com as suas experiências. " Humberto de Campos,"– Conhece-o? – disse-me alguém rente aos ouvidos. – Pedro Richard... Nesse ínterim passa um companheiro da humanidade, cheio de instintos perversos que a morte não conseguiu converter à piedade e ao amor fraterno. E Pedro Richard abre os seus braços paternais para a entidade cruel. – Irmão, não queres a bênção de Jesus? Entra comigo ao,seu banquete!... Por quê? – replica-lhe o infeliz, transbordando perversidade e zombaria – eu sou ladrão e bandido, não pertenço à sociedade do teu Mestre. – Mas não sabes que Jesus salvou Dimas, apesar de suas atrocidades, levando em consideração o arrependimento de suas culpas? – diz-lhe o velhinho com um sorriso fraterno. – Eu sou o mau ladrão, Pedro Richard. Para mim não há perdão nem paraíso... Mas o irmão dos infe1izes abraça em plena rua movimentada o leproso moral e me diz suavemente aos ouvidos : – Jesus salvou o bom ladrão e Maria salvou o outro... E o que eu vi foi uma lágrima suave e clara rolando na face do pecador arrependido. Senhor, eu não estive aí no mundo na companhia dos teu a servos abnegados e nem comunguei à mesa de Ismael onde se guarda o sangue do teu sangue e a carne da tua carne que constituem a essência de luz da tua doutrina. Eu não te vi senão com Tomé, na,sua indiferença e na sua amargura, e como os teus discípulos no caminho de Emaús, com os olhos enevoados pelas neblinas da noite ; todavia podia ver-te na tua casa, onde se recebe a água divina da fé portadora de todo o amor, de toda a crença e de toda esperança. Mas não é tarde, Senhor!... Desdobra sobre o meu espírito a luz da tua misericórdia e deixa que desabrochem ainda agora, no meu coração de pecador, as açucenas perfumadas do teu perdão e da tua piedade para que eu seja incorporado às falanges radiosas que operam na sua casa, exibindo com o meu esforço de espírito a mais clara e a mais sublime de todas as profissões de fé. " Humberto de Campos,"19- CARTA A MARIA LACERDA DE MOURA 24 de Julho de 1936 E’ para você, Maria Lacerda, que envio hoje o meu pensamento de espírito. Tarefa excessivamente arriscada essa de dirigir-se um morto aos literatos da Terra, quase sempre dobrados ás injunções de ordem política e social. É verdade que Berilo Neves, o ano passado, teve a precisa coragem de se referir, na Associação Brasileira de lmprensa, ás minhas mensagens póstumas; mas, você, na serenidade do seu animo e na incorruptibilidade do seu caráter, pode entender o meu pensamento e ouvir a minha voz. Não sou estranho ás suas atividades e aos seus estudos, no plano das investigações espiritualistas. Saturada de sociologia, você reconhece agora, como eu, nos derradeiros anos de minha peregrinação pela Terra, a possibilidade remota de se concertar o edifício esburacado dos costumes humanos, dentro de uma civilização de barbaria, onde a moral cai aos pedaços e, voltando a sua atenção para o mundo invisível, você conversa com as sombras, tornando-se a confidente abençoada dos mortos. Seu olhar, acostumado ás assembléias saletas das grandes cidades sul-americanas, passeia agora, ás vezes, no império do silencio dos que já partiram do mundo, onde o seu juízo critico vai buscar um motivo novo para falar caridosamente, acordando os homens. Quis ainda você construir o seu novo ninho junto das catacumbas e dos salgueiros e, desse calado retiro, estende-se o seu pensamento para o mistério da noite, povoada de sonhos e de constelações. Os pensadores, Maria Lacerda, são impotentes para salvar o mundo da desgraça em que ele próprio submergiu. A confusão tem de se processar, para que se destrua o edifício milenar dos hábitos e dos preconceitos de toda ordem. Uma nova vida terá de florescer sobre os alicerces da morte. Todos os que lutaram e os que se encontram lutando ainda pelo esclarecimento da coletividade são frutos extemporâneos da civilização do futuro. Eles oferecem um roteiro de liberdades fulgurantes; mas, em torno do homem contemporâneo respira-se ainda uma atmosfera terrível de destruição. Ha vários decênios, luta-se teoricamente para que um novo estado de coisas se estabeleça no mundo. Clama-se por leis econômicas que regulem nos paises a distribuição do necessário e queimam-se produtos, em quase todas as regiões do planeta, objetivando o cumprimento de absurdas determinações da política do isolamento. A palavra dos Kropotkine soa em vão, conclamando os espíritos de boa vontade. Mussolini assina um programa socialista nos primórdios da sua carreira política, escondendo a pretensão exclusiva de conquistar um império. O presidente pacifista dos Estados Unidos idealiza a organização da paz internacional de Genebra, de cujas atividades o seu pais não compartilha. O Japão fala de seus direitos de nacionalidade, avançando sobre os territórios da China. A Rússia instigue o comunismo, entendendo-se otimamente com todas as potencias capitalistas. De Roma, que se diz piedosa e cristã, saem as hordas de conquistadores para a mais absurda das guerras. A Alemanha hitlerista expulsa Einstein, dentro de suas preocupações de racismo. Nas republicas sul americanas, ha o movimento de comércio com a Internacional Armamentista. Na Inglaterra, o “Inteligente Serviço” fomenta o dissídio e a discórdia, nas " Humberto de Campos,"suas cogitações imperialistas, A Espanha, embriaga-se no desvairamento da guerra civil. Em toda parte, bebe-se um vinho de ruína e de morte e, entre os homens atordoados, sopra um furacão maligno de arrasamentos. Os sociólogos vêem as suas atividades circunscritas ao castelo maravilhoso das palavras, porque os homens estão entregues ao seu infortunado destino. Não valeu o esforço dos espíritos avançados na solução das incógnitas cientificas, porquanto todas as descobertas destes últimos tempos são brinquedos terríveis na mente infantil dessa civilização que se desenvolveu sem a educação individual. A verdade é que o homem está vivendo para destruir o homem. Um dos pensadores modernos contemplando o aspecto doloroso da atualidade, concluía tristemente que, se o homem contemporâneo considera natural o extermínio de mulheres e de crianças, nos últimos movimentos bélicos do planeta, não será extraordinário, daqui a alguns anos, que os homens se devorem uns aos outros. De fato, a criatura humana parece regredir á, noite escura e misteriosa das suas origens. Todavia, o estudo psicológico dessa situação nos conduz a muitas reflexões sobre as suas causas profundas e concluímos que os homens atuais são mais infelizes que perversos. O que se intensificou em toda parte da Terra, arruinando os sectores da atividade humana, foi aquela crise espiritual a que Gandhi se refere em suas exortações. O Ocidente poderia salvar-se, conservando o equilíbrio do mundo, se o Cristianismo, em sua simplicidade e sua pureza, não fosse deturpado pelas igrejas mercenárias. A moral cristã teria fatalmente de evoluir para a simplificação suprema da vida, se os religiosos não a tivessem asfixiado no cárcere estreito de suas cogitações político-sociais. E o resultado de tão nefastos empreendimentos é a atualidade dos homens, inçada de morticínios e crivada de dores. Contudo, há uma providencia misericordiosa acompanhando os surtos evolutivos da Terra, e, na hora justa dos abalos sociais de toda natureza, os túmulos se enchem de vozes e de revelações consoladoras, realizando profecias... Fascismo, ditaduras para o proletariado, falsas democracias terão de desaparecer nos fragores da luta, para que a política espiritualista inaugure o direito novo, a lei nova, os controladores de todos os fenômenos da economia dos povos. O homem compreendera então a necessidade de um imperativo de paz, solidário com o progresso espiritual dos outros mundos. É objetivando a construção do edifício da concórdia universal sobre a base da educação de cada personalidade e de leis econômicas que façam desaparecer para sempre o quadro doloroso da miséria e da fome, que os mortos voltam para falar aos encarnados, no turbilhão escuro de suas vidas. Num dos seus últimos artigos na imprensa de Paris, Maurício Maeterlinck considerava erroneamente — “Estes mortos que sobrevivem parecem bem fracos, bem precários e bem miseráveis. Lembram os fantasmas vaporosos, arrebatados pelos turbilhões no inferno do grande poeta florentino. Preguiçosos, desamparados, exangues, nada mais tendo a fazer, " Humberto de Campos,"não persistem eles senão á escuta de uma voz da Terra? E’ essa a prova de sua sobrevivência e, se sobrevivem realmente, não poderão realizar outra coisa? Recomeçam a viver ou acabam de morrer?”. Maeterlink, porém, não conseguiu uma visão exata das atividades dos que já partiram das fadigas da luta material. Dentro das preocupações do high-life, não viu a multidão das criaturas consoladas pela confortadora Doutrina dos Espíritos e nem logrou compreende que os mortos não podiam começar por onde os vivos acabaram. Os homens terminaram sua luta na organização exclusivista, na ciência presunçosa e na suposta infalibilidade. Mas, os mortos iniciam a sua cruzada junto dos que sofrem e dos que raciocinam. E, de você, Maria Lacerda, que vive espiritualmente na vanguarda dos tempos, nós esperamos um grande coeficiente de forças em favor do nosso triunfo na alma das massas. A sua acurada percepção pode reconhecer a vigorosa andaimaria do edifício do porvir, pois não está longe o dia em que os homens se cansarão de lutar uns com os outros, espalhando a miséria e o extermínio. Os lobos famintos da civilização armamentista ficarão sob os escombros fumegantes de suas grandezas e a alma cristã cantará a gloria dos pacíficos e dos bem aventurados. Você, Maria Lacerda, tem muito que fazer. Decuplique as suas energias e as suas esperanças... A sua palavra é a da rainha de Helicarnasso. Reúna com o seu esforço todos os guerreiros inativos e vamos lutar. " Humberto de Campos,", O APÓSTOLO 25 de agosto de 1936 Enquanto a Capital dos mineiros, dirigida pelos seus elementos eclesiásticos, se prepara, esperando as grandes manifestações de fé do segundo Congresso Eucarístico Nacional, chegam os turistas elegantes e os peregrinos invisíveis. Também eu quis conhecer de perto as atividades religiosas dos conterrâneos de Augusto de Lima. Na Praça Raul Soares, espaçosa e ornamentada, vi o monumento dos congressistas, elevando-se em forma de altar, onde os altos religiosos serão celebrados. No topo, a custódia, rodeada de arcanjos petrificados, guardando o símbolo suave e branco da eucaristia, e, cá em baixo, nas linhas irregulares da terra, as acomodações largas e fartas, de onde o povo assistirá, comovido, às manifestações de Minas católica. Foi nesse ambiente que a figura de um homem trajado à israelita, lembrando alguns tipos que em Jerusalém se dirigem, freqüentemente, para o lugar sagrado das lamentações, aguçou a minha curiosidade incorrigível de jornalista. - Um judeu?! – exclamei, aguardando as novidades de uma entrevista. - Sim, fui judeu, há algumas centenas de anos – respondeu laconicamente o interpelado. Sua réplica exaltou a minha bisbilhotice e procurei atrair a atenção da singular personagem. - Vosso nome? – continuei. - Simão Pedro. - O Apóstolo? E a veneranda figura respondeu afirmativamente, colando ao peito os cabelos respeitáveis da barba encanecida. Surpreso e sedento da sua palavra, contemplei aquela figura hebraica, cheia de simplicidade e simpatia. Ao meu cérebro afluíam centenas de perguntas, sem que pudesse coordená-las devidamente. - Mestre – disse-lhe, por fim -, Vossa palavra tem para o mundo um valor inestimável. A cristandade nunca vos julgou acessível na face da Terra, acreditando que vos conserváveis no Céu, de cujas portas resplandecentes guardáveis a chave maravilhosa. Não teríeis algumas mensagens do Senhor para transmitir à Humanidade, neste momento angustioso que as criaturas estão vivendo? E o Apóstolo venerável, dentro da sua expressão resignada e humilde, começou a falar: " Humberto de Campos,"- Ignoro a razão por que revestiram a minha figura, na Terra, de semelhantes honrarias. Como homem, não fui mais que um obscuro pescador da Galiléia e, como discípulo do Divino Mestre, não tive a fé necessária nos momentos oportunos. O Senhor não poderia, portanto, conferir-me privilégios, quando amava todos os seus apóstolos com igual amor. - É conhecida, na história das origens do Cristianismo, a vossa desinteligência com Paulo de Tarso. Tudo isso é verdadeiro? - De alguma forma, tudo isso é verdade – declarou bondosamente o Apóstolo. – Mas, Paulo tinha razão. Sua palavra enérgica evitou que se criasse uma aristocracia injustificável, que, sem ele, teria que desenvolver-se fatalmente entre os amigos de Jesus, que se haviam retirado de Jerusalém para as regiões da Batanéia. - Nada desejais dizer ao mundo sobre a autenticidade dos Evangelhos? - Expressão autêntica da biografia e dos atos do Divino Mestre, não seria possível acrescentar qualquer coisa a esse livro sagrado. Muita iniqüidade se tem verificado no mundo em nome do estatuto divino, quando todas as hipocrisias e injustiças estão nele sumariamente condenadas. - E no capítulo dos milagres? - Não é propriamente milagre o que caracterizou as ações práticas do Senhor. Todos os seus atos foram resultantes do seu imenso poder espiritual. Todas as obras a que se referem os Evangelistas são profundamente verdadeiras. E, como quem retrocede no tempo, o Apóstolo monologou: - Em Carfanaum, perto de Genesaré, e em Betsaida, muitas vezes acompanhei o Senhor nas suas abençoadas peregrinações. Na Samaria, ao lado de Cesaréia de Felipe, vi suas mãos carinhosas dar vistas aos cegos e consolação aos desesperados. Aquele sol claro e ardente da Galiléia ainda hoje ilumina toda a minha alma e, tantos séculos depois de minhas lutas no mundo, ao lado de alguns companheiros procuro reivindicar para os homens a vida perfeita do Cristianismo, com o advento do Reino de Deus, que Jesus desejou fundar, com o seu exemplo, em cada coração... - Os filósofos terrenos são quase unânimes em afirmar que o Cristo não conhecia a evolução da ciência grega, naquela época, e que as suas parábolas fazem supor a sua ignorância acerca da organização política do Império Romano: seus apóstolos falam de reis e príncipes que não poderiam ter existido. - A ação do Cristo – retrucou o Apóstolo – vai mais além que todas as atividades e investigações das filosofias humanas. Cada século que passa imprime um brilho novo à sua figura e um novo fulgor ao seu ensinamento. Ele não foi alheio aos trabalhos do pensamento dos seus contemporâneos. Naquele tempo, as teorias de Lucrécio, expandidas alguns anos antes da obra do Senhor, e as lições de Filon em Alexandria, eram muito inferiores às verdades celestes que Ele vinha trazer à Humanidade atormentada e sofredora... " Humberto de Campos,"E, quando a figura venerada de Simão parecia prestes a prosseguir na sua jornada, inquiri, abruptamente: - Qual o vosso objetivo, atualmente, no Brasil? - Venho visitar a obra do Evangelho aqui instituída por Ismael, filho de Abraão e de Agar, e dirigida dos espaços por abnegados apóstolos da fraternidade cristã. - E estais igualmente associado às festas do segundo Congresso Eucarístico Nacional? – perguntei. Mas, o bondoso Apóstolo expressou uma atitude de profunda incompreensão, ao ouvir as minhas derradeiras palavras. Foi quando, então, lhe mostrei o rico monumento festivo, as igrejas enfeitadas de ouro, os movimentos de recepção aos prelados, exclamando ele, afinal: - Não, meu filho!... Esperam-me longe destas ostentações mentirosas os humildes e os desconsolados. O Reino de Deus ainda é a promessa para todos os pobres e para todos os aflitos da Terra. A Igreja romana, cujo chefe se diz possuidor de um trono que me pertence, está condenada no próprio Evangelho, com todas as suas grandezas bem tristes e bem miseráveis. A cadeira de São Pedro é para mim uma ironia muito amarga... Nestes templos faustosos não há lugares para Jesus, nem para os seus continuadores... - E que sugeris, Mestre, para esclarecer a verdade? Mas, nesse momento, o Apóstolo venerando enviou-me um gesto compassivo e piedoso, continuando o seu caminho, depois de amarrar, resignadamente, o cordão das sandálias. " Humberto de Campos,"ÁRIO 28 de setembro de 1936 Como as demais criaturas terrenas, o grande missionário de Lião, que se chamou Hippolyte Rivail, ou Allan Kardec, foi catalogado, em 3 de outubro de 1804, nas estatísticas humanas, retomando um organismo de carne para cumprimento de sua maravilhosa tarefa. Cento e trinta e dois anos são passados sobre o acontecido e o apóstolo francês é lembrado, carinhosamente, na memória dos homens. Professor dedicado ao seu grandioso ideal de edificar as almas, discípulo eminente de Pestalozzi, Allan Kardec trazia, desde o início de sua mocidade, a paixão pelas utilidades das coisas do espírito. Suas obras didáticas estão cheias de amor a esse apostolado. Até depois de 50 anos, sua palavra confortadora e sábia dirigiu-se às escolas, seus fosfatos foram consumidos nos mais nobres labores do intelecto, em favor da formação da juventude; suas mãos de benfeitor edificaram o espírito da infância e da mocidade de sua pátria. Sua vida de homem está repleta de grandes renúncias e sublimes dedicações. Nunca os insultos e as ações dos traidores lhe entibiaram o ânimo de soldado do bem. Os espíritos das estradas do mundo não lhe trucidaram o coração temperado no aço da energia espiritual e no ouro das convicções sadias que lhe povoaram toda a existência. Recordando a beleza perfeita dos planos intangíveis, que vinha de deixar para cumprir na Terra a mais elevada das obrigações de um missionário, sob as vistas amoráveis de Jesus, Allan Kardec fez da sua vida um edifício de exemplos enobrecedores, esperando sempre a ordem do Mestre Divino para que suas mãos intrépidas tomassem a charrua das ações construtoras e edificantes. Só depois de 50 anos sua personalidade adquiriu a precisa preponderância e sua atividade, o desdobramento necessário, prestigiando-se a sua tarefa na codificação do Espiritismo, que vinha trazer à humanidade uma nova luz para a solução do amargo problema do destino e da dor. Ninguém como ele compreendeu tanto a necessidade da intervenção das forças celestes para que as conquistas do pensamento humano, sintetizado no surto das civilizações, não se perdessem na noite dos materialismos dissolventes. Ele sentiu, refletindo as poderosas vibrações do Alto, que os seus contemporâneos preparavam a extinção de toda a crença e de toda a esperança que deveriam fortalecer o espírito humano, nas dolorosas transições do século XX. As especulações filosóficas e científicas de Comte, Virchow, Büchner e Moleschot, aliadas ao sibaritismo dos religiosos, teriam eliminado fatalmente a fé da Humanidade no seu glorioso porvir espiritual, em todos os setores da civilização do Ocidente, se o missionário de Lião não viesse trazer aos homens a cooperação da sua renúncia e dos seus abençoados sacrifícios. " Humberto de Campos,"Quando Jesus desceu um dia à Terra para oferecer às criaturas a dádiva da sua vida e do seu amor, seus passos foram precedidos pelos de João Batista, que aceitara a dolorosa tarefa de precursor, experimentando todos os martírios no deserto. O Consolador prometido à Terra pelo coração misericordioso do Divino Mestre, e que é o Espiritismo, teve o sacrifício de Allan Kardec – o precursor da sua gloriosa disseminação no peito atormentado das criaturas humanas. Seu retiro não foi a terra brava e estéril da Judéia, mas o deserto de sentimentos das cidades tumultuosas; no burburinho das atividades dos homens, no turbilhão das suas lutas, ele experimentou na alma, muitas vezes, o fel do apodo e do insulto dos malevolentes e dos ingratos. Mas, sua obra aí ficou como o roteiro maravilhoso do país abençoado da redenção. Espíritos eminentes foram ao mapa de suas atividades para conhecerem melhor o caminho. Flammarion se embriaga no perfume ignorado dessas terras misteriosas do novo conhecimento, descobertas pela sua operosidade de instrumento do Senhor, e apresenta ao mundo as suas novas teorias cosmológicas, enchendo a fria matemática astronômica de singular beleza e suave poesia. Sua obra – “Lês Forces Naturelles Inconnues” é um caminho aberto às indagações científicas que teriam mais tarde, com Reichet, amplos desenvolvimentos. Gabriel Delanne e Leon Denis se inflamam de entusiasmo diante das obras do mestre e ensaiam a filosofia espiritualista, inaugurando uma nova época para o pensamento religioso, alargando as perspectivas infinitas da ciência universal. E, desde os meados do século que passou, a figura de Kardec se eleva cada vez mais no conceito dos homens. O interesse do mundo pela sua obra pode ser conhecido pelo número de edições de seus livros, e, na hora que passa, cheia de nuvens nos horizontes da Terra e de amargas apreensões no seio de suas criaturas, nenhuma homenagem há, mais justa e mais merecida, do que essa que se prepara em todos os recantos onde a consoladora doutrina do Espiritismo plantou a sua bandeira, como preito de admiração ao ilustre e benemérito codificador. O Brasil evangélico deve orgulhar-se das comemorações que levará a efeito, lembrando a personalidade inconfundível do grande missionário francês, porque a obra mais sublime de Allan Kardec foi a reedificação da esperança de todos os infortunados e de todos os infelizes do mundo, no amor de Jesus-Cristo. Conta-se que logo após a sua desencarnação, quando o corpo ainda não havia baixado ao Père-Lachaise (1) para descansar à sombra do dólmen dos seus valorosos antepassados, uma multidão de Espíritos veio saldar o mestre no limiar do sepulcro. Eram antigos homens do povo, seres infelizes que ele havia consolado e redimido com suas ações prestigiosas, e, quando se entregavam às mais santas expansões afetivas, uma lâmpada maravilhosa caiu do céu sobre a grande assembléia dos humildes, iluminando-a com uma luz que, por sua vez, era formada de expressões do seu “Evangelho segundo o Espiritismo”, ao mesmo tempo em que uma voz poderosa e suave dizia do Infinito: - “Kardec, regozija-te com a tua obra! A luz que acendeste com os teus sacrifícios na estrada escura das descrenças humanas vem felicitar-te nos pórticos misteriosos da Imortalidade... O mel suave da esperança e da fé que derramaste nos corações sofredores da Terra, reconduzindo-os para a confiança da minha misericórdia, hoje se entorna em tua própria alma, fortificando-te para a claridade maravilhosa do futuro. No céu estão guardados todos " Humberto de Campos,"os prantos que choraste e todos os sacrifícios que empreendeste... Alegra-te no Senhor, pois teus labores não ficaram perdidos. Tua palavra será uma bênção para os infelizes e desafortunados do mundo, e ao influxo de tuas obras a Terra conhecerá o Evangelho no seu novo dia!...” Acrescenta-se, então, que grandes legiões de Espíritos eleitos entoaram na Imensidade um hino de hosanas ao homem que organizara as primícias do Consolador para o planeta terreno e que, escoltado pelas multidões de seres agradecidos e felizes, foi o mestre, em demanda das esferas luminosas, receber a nova palavra de Jesus. *** Kardec! eu não te conheci e nem te poderia entender na minha condição de homem perverso da Terra, mas recebe, no dia em que o mundo lembra, comovido, a tua presença entre os homens, o preito da minha amizade e da minha admiração. (1) Pequeno engano do cronista, pois que o corpo foi sepultado primeiramente no Cemitério de Montmartre. A trasladação dos despojos para o dólmen do Père-Lechaise fez-se um ano depois. (Nota da Editora – FEB). " Humberto de Campos,"ÁGRIMAS 27 de novembro de 1936 Rezam as lendas bíblicas que o Senhor, após os seis dias de grandes atividades da criação do mundo, arrancado do caos pela sua sabedoria, descansou no sétimo para apreciar a sua obra. E o Criador via os portentos da Criação, maravilhado de paternal alegria. Sobre os mares imensos voejavam as aves alegres; nas florestas espessas desabrochavam flores radiantes de perfumes, enquanto as luzes, na imensidade, clarificavam as apoteoses da Natureza, resplandecendo no Infinito, para louvar-lhe a glória e lhe exaltar a grandeza. Jeová, porém, logo após a queda de Adão e depois de expulsá-lo do Paraíso, a fim de que ele procurasse na Terra o pão de cada dia com o suor do trabalho, recolheu-se entristecido aos seus imensos impérios celestiais, repartindo a sua obra terrena em departamentos diversos, que confiou às potências angélicas. O Paraíso fechou-se então para a Terra, que se viu insulada no seio do Infinito. Adão ficou sobre o mundo, com a sua descendência amaldiçoada, longe das belezas do éden perdido, e, no lugar onde se encontravam as grandiosidades divinas, não se viu mais que o vácuo azulado da atmosfera. E o Senhor, junto dos Serafins, dos Arcanjos e dos Tronos, na sagrada curul da sua misericórdia, esperou que o tempo passasse. Escoavam-se os anos, até que um dia o Criador convocou os Anjos a que confiara a gestão dos negócios terrestres, os quais lhe deviam apresentar relatórios precisos, acerca dos vários departamentos de suas responsabilidades individuais. Prepararam-se no Céu festas maravilhosas e alegrias surpreendentes para esse movimento de confraternização das forças divinas e, no dia aprazado, ao som de músicas gloriosas, chegavam ao Paraíso os poderes angélicos encarregados da missão de velar pelo orbe terreno. O Senhor recebeu-os com a sua bênção, do alto do seu trono bordado de lírios e de estrelas, e, diante da atenção respeitosa de todos os circundantes, falou o Anjo das Luzes: - “Senhor, todas as claridades que criastes para a Terra continuam refletindo as bênçãos da vossa misericórdia. O Sol ilumina os dias terrenos com os resplendores divinos, vitalizando todas as coisas da Natureza e repartindo com elas o seu calor e a sua energia. Nos crepúsculos, o firmamento recita os seus poemas de estrelas e as noites são ali clarificadas pelos raios tênues e puros dos plenilúnios divinos. Nas paisagens terrestres, todas as luzes evocam o vosso poder e a vossa misericórdia, enchendo a vida das criaturas de claridades benditas!...” Deus abençoou o Anjo das Luzes, concedendo-lhe a faculdade de multiplicá-las na face do mundo. " Humberto de Campos,"Depois, veio o Anjo da Terra e das Águas, exclamando com alegria: - “Senhor, sobre o mundo que criastes, a terra continua alimentando fartamente todas as criaturas; todos os reinos da Natureza retiram dela os tesouros sagrados da vida. E as águas, que parecem constituir o sangue bendito da vossa obra terrena, circulam no seu seio imenso, cantando as vossas glórias incomensuráveis. Os mares falam com violência, afirmando o vosso poder soberano, e os regatos macios dizem, nos silvedos, da vossa piedade e brandura. As terras e as águas do mundo são plenas afirmações da vossa magnífica complacência!...” E o Criador agradeceu as palavras do servidor fiel, abençoando-lhe os trabalhos. Em seguida, falou, radiante, o Anjo das Árvores e das Flores: - “Senhor, a missão que concedestes aos vegetais da Terra vem sendo cumpridas com sublime dedicação. As árvores oferecem sua sombra, seus frutos e utilidades a todas as criaturas, como braços misericordiosos do vosso amor paternal, estendidos sobre o solo do Planeta. Quando maltratadas, sabem ocultar suas angústias, prestando sempre, com abnegação e nobreza, o concurso da sua bondade à existência dos homens. Algumas, como sândalo, quando dilaceradas, deixam extravasar de suas feridas taças invisíveis de aroma, balsamizando o ambiente em que nasceram... E as flores, meu Pai, são piedosas demonstrações das belezas celestiais nos tapetes verdoengos da Terra inteira. Seus perfumes falam, em todos os momentos, da vossa magnanimidade e sabedoria...” E o Senhor, das culminâncias do seu trono radioso, abençoou o servo fiel, facultando-lhe o poder de multiplicar a beleza e as utilidades das árvores e das flores terrestres. Logo após, falou o Anjo dos Animais, apresentando a Deus um relato sincero, a respeito da vidas dos seus subordinados: - “Os animais terrestres, Senhor, sabem respeitar as vossas leis, acatara vossa vontade. Todos vivem em harmonia com as disposições naturais da existência que a vossa sabedoria lhes traçou. Não abusam de suas faculdades procriadoras e têm uma época própria para o desempenho dessas funções, consoante aos vossos desejos. Todos têm a sua missão de cumprir e alguns deles se colocaram, abnegadamente, ao lado do homem, para substituí-lo nos mais penosos misteres, ajudando-o a conservar a saúde e a buscar no trabalho o pão de cada dia. As aves, Senhor, são turíbulos alados, incensando, do altar da natureza terrestre, o vosso trono celestial, cantando as vossas grandezas ilimitadas. Elas se revezam, constantemente, para vos prestarem essa homenagem de submissão e de amor, e, enquanto algumas cantam durante as horas do dia, outras se reservam para as horas da noite, de modo a glorificarem incessantemente as belezas admiráveis da Criação, louvando-se a sabedoria do seu Autor Inimitável!...” E Deus, com um sorriso de júbilo paternal, derramou sobre o dedicado mensageiro as vibrações do seu divino agradecimento. " Humberto de Campos,"Foi quando, então, chegou a vez da palavra do Anjo dos Homens. Taciturno e entre angústias, provocando a admiração dos demais, pela sua consternação e pela sua tristeza, exclamou compungidamente: - “Senhor!... ai de mim! enquanto meus companheiros vos podem falar da grandeza com que são executados os vossos decretos na face do mundo, pelos outros elementos da Criação, não posso afirmar o mesmo dos homens... A descendência de Adão se perde num labirinto de lutas criado por ela mesma. Dentro das possibilidades do seu livre-arbítrio, é engenhosa e sutil, a inventar todos os motivos para a sua perdição. Os homens já criaram toda sorte de dificuldades, desvios e confusões para a sua vida na Terra. Inventaram, ali, a chamada propriedade sobre os bens que vos pertencem inteiramente, e dão curso a uma vida abominável de egoísmo e ambição pelo domínio e pela posse; toda a Terra está dividida indebitamente, e as criaturas humanas se entregam à tarefa absurda da destruição das vossas leis grandiosas e eternas. Segundo o que observo no mundo, não tardará que surjam os movimentos homicidas entre as criaturas, tal a extensão das ânsias incontidas de conquistar e possuir...” O Anjo dos Homens, todavia, não conseguiu continuar. Convulsivos soluços embargaram-lhe a voz; mas o Senhor, embora amargurado e entristecido, desceu generosamente do sólio de magnificências divinas e, tomando-lhe as mãos, exclamou com bondade: - “A descendência de Adão ainda se lembra de mim? - Não, Senhor!... Desgraçadamente os homens vos esqueceram... – murmurou o Anjo com amargura. - Pois bem – replicou o Senhor paternalmente -, essa situação será remediada!...” E, alçando as mão generosas, fez nascer, ali mesmo no Céu, um curso de águas cristalinas e, enchendo um cântaro com essas pérolas liquefeitas, entregou-a a seu último servidor, exclamando: - “Volta à Terra e derrama no coração de seus filhos este licor celeste, a que chamarás água das lágrimas... Seu gosto tem ressaibos de fel, mas esse elemento terá a propriedade de fazer que os homens me recordem, lembrando-se da minha misericórdia paternal... Se eles sofrem e se desesperam pela posse efêmera das coisas atinentes à vida terrestre, é porque me esqueceram, olvidando a sua origem divina.” E desde esse dia o Anjo dos Homens derrama na alma atormentada e aflita da Humanidade a água bendita das Lágrimas remissoras; e desde essa hora, cada criatura humana, no momento dos seus prantos e das suas amarguras, nas dificuldades e nos espinhos do mundo, recorda, instintivamente, a paternidade de Deus e as alvoradas divinas da vida espiritual. " Humberto de Campos,". PREFEITO DO RIO DE JANEIRO 18 de dezembro de 1936 Sr. Prefeito do Distrito Federal. Dirijo-me a V. Exª. para ponderar um dos últimos atos de sua administração na velha cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, não obstante as minhas condições de jornalista desencarnado, e apesar do estado de guerra vigente no país. Todavia, declinando essas circunstâncias, devo confessar, em defesa de meu gesto, que minha palavra humilde não visa a nenhum intuito político ou social do Brasil, para fixar-se somente na questão da humanidade. É verdade inconteste que V Exª. se torna duplamente respeitável, não só pela sua condição de autoridade suprema de uma cidade em que palpitam seguramente dois milhões de corações humanos, senão também pela sua qualidade de sacerdote, e é talvez por isso que a minha ponderação se faz um tanto mais grave. Não lhe venho falar dos inquéritos administrativos nos departamentos públicos, afetos à sua autoridade, e sim dizer-lhe do seu ato pessoal, opondo o veto à subvenção de cinqüenta contos, concedida pelos seus antecessores ao Abrigo Teresa de Jesus, instituição venerável que um punhado de espiritistas abnegados fundou no Rio, há alguns anos, e que todos os cariocas se habituaram a admirar, com o seu apoio e com o seu respeito. A atitude de V. Exª. é estranhável, não só em face da sua condição de ministro da Igreja Católica, como pelo seu conhecimento acerca das misérias da nossa urbe, que os apaixonados do samba brasileiro apelidaram de cidade maravilhosa. Cinqüenta contos, Sr. Prefeito, como subvenção a uma instituição dessa natureza, que já conseguiu afastar os antros viciosos algumas centenas de criaturas, infundindo-lhes a noção do dever social, cívico e humano, modelando heróis para os combates com as adversidades terrenas, representa uma porcentagem muito mesquinha, em face das verbas despendidas com as obras suntuárias dos serviços públicos. Antes de regressar desse mundo, onde perdi todas as ilusões e todas as esperanças, com respeito à objetivação de uma sociedade organizada na base dos verdadeiros interesses cristãos, muitas vezes deixei escapar do peito dilacerado o meu grito de dor pela nossa infância desvalida. Enquanto os governos instituíam as mais grossas subvenções para as festas carnavalescas e para a propaganda turística do Brasil no estrangeiro, via eu as nossas crianças desamparadas, doentes e esqueléticas, estendendo a mão mirrada à piedade das praças públicas. Se as dores não me viessem sufocar tão cedo os sagrados entusiasmos do coração, teria objetivado um largo movimento intelectual, em favor da instituição do livro e do pão para o menino dos nossos morros, onde com as vozes inocentes do samba se misturam os gemidos de todas as misérias. " Humberto de Campos,"Veja pois, Excelência, a necessidade de se subvencionarem, e largamente, todas as iniciativas sociais que se organizem para proteger a criança desamparada, que virá a ser o homem de amanhã. Nesses tempos de negro materialismo, que parece invadir todos os institutos criados com o rótulo da civilização cristã, as autoridades legalmente constituídas têm de colocar os interesses humanos acima de todos os preconceitos sociais e religiosos. Seu coração de administrador e de cristão possui vasta experiência desses assuntos, sendo desnecessário que a minha palavra lhe encareça a inoportunidade do seu veto pessoal a esse auxílio financeiro à instituição referida, que é um admirável núcleo cultural do Rio de Janeiro, onde se criam as células sadias do organismo coletivo de amanhã. V. Exª. Não ignora que todas as questões transcendentes, apresentadas como insolúveis às vistas dos sociólogos modernos, complicando o mecanismo da vida dos povos, são de natureza educativa. Os problemas brasileiros são quase todos dessa ordem. Bem sabe que, mesmo em nossa história, existem páginas que implicam em si a veracidade do que afirmamos. Não se lembra da luta armada de Canudos, onde pereceram tantas energias da mocidade brasileira? O resultado dessa campanha seria outro, se, em vez da primeira expedição militar, mandássemos para ali uma dúzia de professores. As armas a serem detonadas naquele ambiente sertanejo deveriam ser as do alfabeto, como asseverava o nosso Euclides. O banditismo do Nordeste, as falanges de “Lampião”, as multidões místicas e delinqüentes que, de vez em quando, surgem no quadro mesológico da nossa evolução coletiva, são problemas do livro e nada mais. Desejaria, pois, o Sr. Prefeito do Distrito Federal absorver-se no partido político, nas intrigas de gabinete, nas homenagens dos louvaminheiros da autoridade pública, esquecendo-se da parte mais importante de suas atribuições, junto à coletividade do seu país? Não acreditamos, igualmente, que o seu ato seja o fruto de uma represália à atitude desassombrada de criaturas estudiosas, que tentam elucidar as questões da Igreja Católica, da qual é um dedicado servidor. A luta é de princípios e não de personalidades; e esse combate ideológico é indispensável, nos bastidores em que se processa a evolução das consciências e das doutrinas. E para todos os combatentes, irmanados no mesmo idealismo do Evangelho, deverá existir, indubitavelmente, um traço de união acima de todas as polêmicas e de todas as controvérsias, que é o da fraternidade do Cristo. Um homem ou uma instituição podem crescer no conceito das coletividades pelas suas conquistas, pelos seus poderes transitórios, pela sua fortuna, mas serão sempre assinalados pela ilusão, se lhes faltarem os princípios humanos da caridade. Conta-se aqui, Sr. Prefeito, que um dia quis o Senhor reunir sob os seus olhos todos os sábios que chegavam da Terra. Teólogos eminentes, filósofos, artistas do pensamento e da ação, matemáticos, geômetras e literatos ilustres. - “Senhor – dizia um deles -, eu ampliei a técnica dos homens, no problemas das ciências...” - “Eu – repetia outro – procurei imprimir uma fase nova às letras do mundo...” - “Minha vida, Senhor – exclamava ainda outro -, foi toda empregada no laboratório, em favor da Humanidade...” " Humberto de Campos,"Mas o Senhor replicou-lhes na sua misericórdia: - “Todas as vossas ciências são respeitáveis, mas valerão muito pouco se não tivestes caridade. Toda sabedoria, sem a bondade, é como luz que não aquece, ou como flor que não perfuma... A questão da felicidade humana está claramente resolvida na prática do meu Evangelho, como a solução algébrica define os vossos problemas de matemática. O Reino do Céu ainda é a mansão prometida aos simples e pobres da Terra, que vêm a mim isentos de soberba e de vaidade!...” Aqui, Sr. Prefeito, não se mede o espírito pela posição que haja ocupado no mundo. A indumentária nada representa para as leis sábias e justas da espiritualidade. Não obstantes os seus conhecimentos teológicos, não se esqueça que os manuais dos santos são compêndios de teorias da Terra. A prática é bem outra e é desta que voltamos para lhe falar dos argumentos mais firmes. Aproveite a oportunidade que Jesus lhe colocou em mãos e reconsidere seu ato, reparando-o. sua memória será então abençoada pela infância brasileira, votada ao desamparo pelos nossos políticos, que cuidam durante a vida inteira dos seus interesses e dos seus eleitorados. E um dia, quando não for mais o Sr. Prefeito Municipal e sim o nosso irmão Olímpio, seu coração há de sentir, nos mais recônditos refolhos, a suavidade das mãos veludosas do Jardineiro Divino, plantando os lírios perfumados da paz nas profundezas do seu mundo íntimo. E, quando essas flores destilarem nos seus olhos o aroma bendito das lágrimas de gratidão e reconhecimento, uma voz branda e suave murmurará aos seus ouvidos: - “Guarda, meu filho, a minha recompensa. Regozija-te no Senhor, pois que foste meu servo e tiveste caridade!...” " Humberto de Campos," 2 de janeiro de 1937 Os grandes Espíritos, que sob a tutela amorosa de Jesus dirigem os destinos da Humanidade, reuniram-se há pouco tempo, nos planos da erraticidade, para discutirem o método de se estabelecer o Gênio da Paz na face da Terra. A essa assembléia de sábios das coisas espirituais e divinas, compareceram anciãos da sociedade de Marte, estudiosos de Saturno, cientistas e apóstolos de Júpiter e outros representantes da vida do nosso sistema solar. Estudaram, reunidos, todos os séculos passados, esmerilhando a antiguidade egípcia, as eras clássicas, o império romano, o advento do Cristianismo, os tempos apostólicos, a Idade Média, a Revolução Francesa, o progresso científico e filosófico do século XIX e a última experiência dolorosa das criaturas humanas, em 1914, concluindo que, depois de tantas lições sábias e justas, a humanidade terrestre estaria preparada para receber em seu seio o Gênio da Paz, edificando-lhe um templo no coração atormentado e sofredor. E os mentores dos destinos humanos deliberaram aceitar unanimemente essa hipótese, marcando, porém, um dia para nova reunião coletiva, a fim de ouvirem o Mensageiro da Paz, que partiria com a tarefa de investigar todos os elementos ao seu alcance, para a consecução desse grandioso projeto. E o mensageiro partiu. Deixava os seus penates celestes cheios de harmonias e de carícias maravilhosas. O sistema solar era todo uma lira de luz, desferindo um cântico de glorificação a Deus no infinito dos espaços: Saturno com as suas luas e com os seus anéis rutilantes, Marte com os seus satélites graciosos, Vênus com a sua vida primária, enchendo o Céu de perfume, e as estradas aéreas formadas no éter delicioso, alcatifadas de estrelas e flores evanescentes. Após atravessar essa região de belezas indefiníveis e depois de penetrar as camadas de ozone que revestem as massas atmosféricas do orbe terrestre, colocando as criaturas vivas a salvo dos raios desconhecidos e mortíferos do espectro solar, o Mensageiro sentiu-se oprimido sob uma atmosfera de fumo sufocante, e, em breve, estudava a situação de todos os países para colher notícias necessárias aos seus superiores, dos planos espirituais. No dia aprazado, comparecia, torturado e abatido, à presença dos seus maiores. Os anciãos veneráveis, que haviam deliberado a sua vinda ao planeta terreno, esperavam-no com expectativas promissoras. Mas, o nobre expedicionário começou a expor as suas opiniões sem otimismo e sem esperança: - “Senhores – disse inicialmente -, nossas previsões não se realizaram. A Terra toda, na atualidade, é um perigoso rastilho de pólvora. Todas as nações estão prontas para a guerra. " Humberto de Campos,"A luta, ali, é um produto inevitável dos labores ideológicos das criaturas humanas. Procurei um lugar onde fosse possível estabelecer as minhas atividades, sem encontrar elementos para esse fim, em parte alguma. Debalde tentei sobrepor as minhas influências nos gabinetes públicos, nas doutrinas da coletividade, ou no santuário dos corações. Os homens ainda não conseguem entender nossos alvitres e conselhos. Nenhum deles cuida da necessidade de paz, com sinceridade e desinteresse. Alguns falam em meu nome, para levantarem recompensas e honrarias nos torneios políticos, ou literários. Desgraçadamente, porém, não podem prescindir das necessidades negras da guerra!” Verificou-se, na assembléia augusta e respeitável, um movimento penoso de assombro. Ali se encontravam Espíritos diretores de povos, de raças, e de todos os ideais que nobilitam a Humanidade. E os antigos gênios, inspiradores das raças eslavas e germânicas, solicitaram notícias dos seus subordinados, mas a entidade amiga respondeu com franqueza: - “Os povos que se acham sob a vossa carinhosa tutela vivem a fase terrível do mais desenfreado armamentismo. A Alemanha já reocupou a Renânia, readquirindo, igualmente, o território do Sarre e preparando-se para reconquistar o seu império colonial. Antevendo as grandes guerras que se aproximam, os alemães estão aproveitando toda as suas capacidades inventivas na criação de novos elementos de destruição, nas indústrias bélicas. Seus zepelins atravessam todos os continentes do mundo, a pretexto de turismo, estudando a situação topográfica dos outros países, arquitetando um novo sonho de imperialismo internacional. Com a teoria do racismo, ela procura levantar o plano nefasto da sua hegemonia no Globo, criando toda a espécie de aparelhos para o domínio do mundo. A Rússia prepara-se, inventando novos engenhos para a indústria da guerra, arrancando o suor dos seus filhos para fomentar a sua ideologia política na face da Terra, incentivando revoltas e sacrificando corações. A Polônia gasta, na atualidade, um terço dos orçamentos com as forças armadas e todas as outras pequenas nacionalidades, que floresceram nas margens do Danúbio, não escondem a sua posição na corrida armamentista destes últimos tempos, fortificando-se para a luta do porvir...” E vieram os gênios inspiradores das raças latinas, obtendo a mesma resposta: - “A França e a Itália – prosseguiu o embaixador solícito -, que foram sempre as nações diretoras do pensamento da latinidade, estão entregues a todos os desregramentos das indústrias da guerra. A primeira, dominada pelas obrigações de ordem política, coloca-se em uma posição perigosa em face dos países que eram seus antigos aliados; a segunda, acaba de realizar a campanha condenável de conquista do território abissínio, com os mais abjetos espetáculos da força. As aviações francesas e italianas, seus vasos de guerra, seus milhares de homens da infantaria motorizada, causam dolorosa surpresa aos espíritos pacifistas do mundo. A Espanha afoga-se numa onda incendiária de sangue, e todas as outras nações européias, inclusive a Inglaterra, que despedaça no momento todas as lanças ao seu dispor, para a conservação do seu império colonial, se preparam para a carnificina do futuro. Não se pode esperar nenhum esforço em favor da paz, por parte das raças latinas.” " Humberto de Campos,"E vieram, em seguida, os seres tutelares dos povos da Mongólia, recebendo idêntica resposta: - “A China está cheia de fogo e de sangue... O Japão, repleto de associações secretas, de espionagem, para a realização dos projetos nipônicos na guerra futura. As ilhas orientais estão dominadas pelo imperialismo do século, fomentando-se dentro delas as lutas sociais, políticas e religiosas...” E chegaram, depois, nesse inquérito, os gênios que presidem ao destino das livres Américas, obtendo sempre a mesma resposta: - “Os vossos subordinados – exclamou o lúcido e bem informado Mensageiro -, inconscientes dos tesouros econômicos que possuem, perdem-se num labirinto de lutas políticas de todos os matizes. As nações do Norte vivem idealizando todos os poderes destrutivos para serem utilizados na sua defensiva, esperando-se, ali, mais tarde, o perigo das forças amarelas. Atormentados pelos preconceitos, entregam-se, por vezes, a linchamentos e distúrbios sociais, incompatíveis com o seu alevantado progresso. Os americanos do Sul esquecem suas possibilidades na solução do problema da concórdia humana, entregando-se, de vez em quando, aos excessos das paixões políticas, que os arrastam à sangria fratricida das guerras civis, cujo único objetivo é multiplicar o número dos infelizes e dos desafortunados do mundo...” Depois de penosas discussões, vieram os grandes gênios inspiradores das ciências físicas e morais da Humanidade terrestre; todavia, o Gênio da Paz continuou com a sua palavra inflexível e dolorosa: - “Não se pode esperar um esforço sério das correntes religiosas da Terra, a favor da tranqüilidade dos homens; com raras exceções, quase todas estão divididas em núcleos de combate recíproco, dentro de atividades e interesses anticristãos. Quanto às ciências físicas, todas as suas atenções estão voltadas para o extermínio e para a morte. Criaram-se na Terra os mais terríveis aparelhos de defesa antiaérea, que fazem explodir aviões e outras poderosas máquinas de guerra, gases mortíferos, torpedos do ar e do mar, salientando-se o torpedeiro moderno, que poderá carregar 2.800 toneladas e que destrói fatalmente o alvo objetivado e atingido; metralhadoras elétricas, cômodas e velozes, de tiros rápidos, graças ao sistema rotativo; canhões antiaéreos oferecendo capacidade para o tiro vertical de 15.000 metros... A Terra é um vasto pandemônio de armas, de maquinarias e munições... Percorri todas as cidades, todas as organizações e todos os lares, improficuamente!...” A essa altura, quando a confusão de vozes se estabelecia no recinto iluminado, onde se reuniram as falanges espirituais do Infinito, o Gênio da Verdade, que era o supremo diretor desse conclave angélico dos espaços, exclamou gravemente: - “Calai-vos, meus irmãos!... Ninguém, na Terra, poderá colocar outro fundamento a não ser o de Jesus-Cristo. A evolução moral dos homens será paga com os mais penosos tributos de sangue das suas experiências. As criaturas humanas conhecerão a fome, a miséria, a nudez, a carnificina e o cansaço, para aprenderem o amor dAquele que é o Jardineiro Divino dos seus corações. Transformarão as suas cidades em ossuários apodrecidos, para saberem " Humberto de Campos,"erguer os monumentos projetados no Evangelho do Divino Mestre. Chega de mensagens, de arautos e mensageiros... No fumo negro da guerra o homem terá a visão deslumbradora da luz maravilhosa dos planos divinos!...” E depois de uma pausa, cheia de comoção e de lágrimas no espírito de todos os presentes, a lúcida entidade sintetizou: - “Nunca haverá paz no mundo, sem a Verdade!...” E enquanto as aves celestes voejavam nas atmosferas radiosas e eterizadas do infinito e a luz embriagava todas as criaturas e todas as coisas, num turbilhão de claridade e de perfumes, ouviu-se uma voz indefinível, bradando na imensidade: - “Ninguém, na Terra, pode lançar outro fundamento além daquele que foi posto por Jesus-Cristo!” E, confundida numa luz imensa e maravilhosa, a grande assembléia da Paz foi dissolvida. " Humberto de Campos,"ÓCRATES 7 de janeiro de 1937 Foi no Instituto Celeste de Pitágoras (1) que vim encontrar, nestes últimos tempos, a figura veneranda de Sócrates, o ilustre filho de Sofronisco e Fenareta. A reunião, nesse castelo luminoso dos planos erráticos, era, nesse dia, dedicada a todos os estudiosos vindos da Terra longínqua. A paisagem exterior, formada na base de substâncias imponderáveis para as ciências terrestres da atualidade recordava a antiga Hélade, cheia de aromas, sonoridades e melodias. Um solo de neblinas evanescentes evocava as terras suaves e encantadoras, onde as tribos jônias e eólias localizaram a sua habitação, organizando a pátria de Orfeu, cheia de deuses e de harmonias. Árvores bizarras e floridas enfeitavam o ambiente de surpresas cariciosas, lembrando os antigos bosques da Tessália, onde Pan se fazia ouvir com as cantilenas de sua flauta, protegendo os rebanhos junto das frondes vetustas, que eram as liras dos ventos brandos, cantando as melodias da Natureza. O palácio consagrado a Pitágoras tinha aspecto de severa beleza, com suas colunas gregas à maneira das maravilhosas edificações da gloriosa Atenas do passado. Lá dentro, agasalhava-se toda uma multidão de Espíritos ávidos da palavra esclarecida do grande mestre, que os cidadãos atenienses haviam condenado à morte, 399 anos antes de Jesus-Cristo. Ali se reuniam vultos venerados pela filosofia e pela ciência de todas as épocas humanas, Terpandro, Tucídides, Lísis, Ésquines, Filolau, Timeu, Símias, Anaxágoras e muitas outras figuras respeitáveis da sabedoria dos homens. Admirei-me, porém, de não encontrar ali nem os discípulos do sublime filósofo ateniense, nem os juízes que o condenaram à morte. A ausência de Platão, a esse conclave do Infinito, impressionava-me o pensamento, quando, na tribuna de claridades divinas, se materializou aos nossos olhos o vulto venerando da filosofia de todos os séculos. Da sua figura irradiava-se uma onda de luz levemente azulada, enchendo o recinto de vibração desconhecida, de paz suave e branda. Grandes madeixas de cabelos alvos de neve molduravam-lhe o semblante jovial e tranqüilo, onde os olhos brilhavam infinitamente cheios de serenidade, alegria e doçura. As palavras de Sócrates contornaram as teses mais sublimes, porém, inacessíveis ao entendimento das criaturas atuais, tal a transcendência dos seus profundos raciocínios. À maneira das suas lições nas praças públicas de Atenas, falou-nos da mais avançada sabedoria espiritual, através de inquirições que nos conduziam ao âmago dos assuntos; discorreu sobre a liberdade dos seres nos planos divinos que constituem a sua atual morada e sobre os grandes conhecimentos que esperam a Humanidade terrestre no seu futuro espiritual. " Humberto de Campos,"É verdade que não posso transmitir aos meus companheiros terrenos a expressão exata dos seus ensinamentos, estribados na mais elevada das justiças, levando-se em conta a grandeza dos seus conceitos, incompreensíveis para as ideologias das pátrias no mundo atual, mas, ansioso de oferecer uma palavra do grande mestre do passado aos meus irmãos, não mais pelas vísceras do corpo e sim pelos laços afetivos da alma, atrevi-me a abordá-lo: - Mestre - disse eu -, venho recentemente da Terra distante, para onde encontro possibilidade de mandar o vosso pensamento. Desejaríeis enviar para o mundo as vossas mensagens benevolentes e sábias? - Seria inútil - respondeu-me bondosamente -, os homens da Terra ainda não se reconheceram a si mesmos. Ainda são cidadãos da pátria, sem serem irmãos entre si. Marcham uns contra os outros, ao som de músicas guerreiras e sob a proteção de estandartes que os desunem, aniquilando-lhes os mais nobres sentimentos de humanidade. - Mas. . . - retorqui - lá no mundo há uma elite de filósofos que se sentiriam orgulhosos de vos ouvir! ... - Mesmo entre eles as nossas verdades não seriam reconhecidas. Quase todos estão com o pensamento cristalizado no ataúde das escolas. Para todos os espíritos, o progresso reside na experiência. A História não vos fala do suicídio orgulhoso de Empédocles de Agrigento, nas lavas do Etna, para proporcionar aos seus contemporâneos a falsa impressão de sua ascensão para os céus? Quase todos os estudiosos da Terra são assim; o mal de todos é o enfatuado convencimento de sabedoria. Nossas lições valem somente como roteiro de coragem para cada um, nos grandes momentos da experiência individual, quase sempre difícil e dolorosa. Não crucificaram, por lá, o Filho de Deus, que lhes oferecia a própria vida para que conhecessem e praticassem a Verdade? O pórtico da pitonisa de Delfos está cheio de atualidade para o mundo. Nosso projeto de difundir a felicidade na Terra só terá realização quando os Espíritos aí encarnados deixarem de ser cidadãos para serem homens conscientes de si mesmos. Os Estados e as Leis são invenções puramente humanas, justificáveis, em virtude da heterogeneidade com respeito à posição evolutiva das criaturas; mas, enquanto existirem, sobrará a certeza de que o homem não se descobriu a si mesmo, para viver a existência espontânea e feliz, em comunhão com as disposições divinas da natureza espiritual. A Humanidade está muito longe de compreender essa fraternidade no campo sociológico. Impressionado com essas respostas, continuei a interrogá-lo: - Apesar dos milênios decorridos, tendes a exprimir alguma reflexão aos homens, quanto à reparação do erro que cometeram, condenando-vos à morte? - De modo algum. Méletos e outros acusadores estavam no papel que lhes competia, e a ação que provocaram contra mim nos tribunais atenienses só podia valorizar os princípios da filosofia do bem e da liberdade que as vozes do Alto me inspiravam, para que eu fosse um dos colaboradores na obra de quantos precederam, no Planeta, o pensamento e o exemplo " Humberto de Campos,"vivo de Jesus-Cristo. Se me condenaram à morte, os meus juízes estavam igualmente condenados pela Natureza; e, até hoje, enquanto a criatura humana não se descobrir a si mesma, os seus destinos e obras serão patrimônios da dor e da morte. . - Poderíeis dizer algo sobre a obra dos vossos discípulos? . - .Perfeitamente - respondeu-me o sábio ilustre -, é de lamentar as observações mal-avisadas de Xenofonte, lamentando eu, igualmente, que Platão, não obstante a sua coragem e o seu heroísmo, não haja representado fielmente a minha palavra junto dos nossos contemporâneos e dos nossos pósteros. A História admirou na sua Apologia os discursos sábios e bem feitos, mas a minha palavra não entoaria ladainhas laudatórias aos políticos da época e nem se desviaria- para as afirmações dogmáticas no terreno metafísico. Vivi com a minha verdade para morrer com ela. Louvo, todavia, a Antístenes, que falou com mais imparcialidade a meu respeito, de minha personalidade que sempre se reconheceu insuficiente. Julgáveis então que me abalançasse, nos últimos instantes da vida, a recomendações no sentido de que se pagasse um galo a Esculápio? Semelhante expressão, a mim atribuída, constitui a mais incompreensível das ironias. - Mestre, e o mundo? - indaguei. - O mundo atual é a semente do mundo paradisíaco do futuro. Não tenhais pressa. Mergulhando-me no labirinto da História, parece-me que as lutas de Atenas e Esparta, as glórias do Pártenon, os esplendores do século de Péricles, são acontecimentos de há poucos dias; entretanto, soldados espartanos e atenienses, censores, juízes, tribunais, monumentos políticos da cidade que foi minha pátria, estão hoje reduzidos a um punhado de cinzas!. . . A nossa única realidade é a vida do Espírito. - Não vos tentaria alguma missão de amor na face do orbe terrestre, dentro dos grandes objetivos da regeneração humana? - Nossa tarefa, para que os homens se persuadam com respeito à verdade, deve ser toda indireta. O homem terá de realizar-se interiormente pelo trabalho perseverante, sem o que todo o esforço dos mestres não Passará do terreno do puro verbalismo. E, como se estivesse concentrado em si mesmo, o,grande filósofo sentenciou: - As criaturas humanas ainda não estão preparadas para o amor e para a liberdade... Durante muitos anos, ainda, todos os discípulos da Verdade terão de morrer muitas vezes!. . . E enquanto o ilustre sábio ateniense se retirava do recinto, junto de Anaxágoras, dei por terminada a preciosa e rara entrevista. (1) Nome convencional para figurar os centros de grandes reuniões espirituais no plano Invisível. - O Autor Espiritual. " Humberto de Campos," 8 de março de 1937 Meu Senhor Jesus: Dirijo-vos esta carta quase como nos últimos tempos em que o fazia na Terra, fechado nas perplexidades da incompreensão. Muitas vezes imaginei que estivésseis acessível à visão de todos aqueles que se evadem do mundo pela porta escura da Morte, a fim de premiar os bons e punir pessoalmente os culpados, como os modernos chefes de Estado, que distribuem medalhas de honra nas datas festivas e exaram sentenças condenatórias em seus gabinetes. . Mas, não é assim, Senhor! Todas as ingênua e doces concepções do Catolicismo se esfumaram minha imaginação. A morte não faz de um homem um anjo; amontoa-nos, aos magotes, onde possa caber toda a imensidade das nossas fraquezas e aí, na contemplação das nossas realidades e das nossas misérias, descerra um fragmento dos véus do seu grande mistério. Então, sentimo-nos reconfortados pela esperança, e basta esse raio de luz para que sejamos deslumbrados na vossa glória. Se é verdade que não vos buscávamos nos caminhos da Terra, não era justo que nos viésseis esperar à porta do Céu. Todavia, Senhor, não é para exprobrar o meu passado, no mundo, que vos dirijo esta carta. É para vos contar que os homens vão reviver novamente a tragédia da vossa morte. Muitos judeus influentes promovem, na atualidade, uma ação tendente a esclarecer o processo que motivou a vossa condenação. É verdade que esses movimentos tardios, para apurar os erros do passado, não são novos. Joana d'Arc foi canonizada após a calúnia, o martírio e o vilipêndio e, ainda agora, - no Brasil, foi revivido o processo que fizera de Pontes Visgueiro um monstro nefando, movimento esse que lhe atenuou a falta, humanizando-se a sua figura através da análise minuciosa dos fatos recapitulados pelo Sr. Evaristo de Morais. Os descendentes dos vossos algozes querem reparar a violência dos seus avós. Objetivam a reconstrução do mesmo cenário de antanho. A corte provincial romana, o tribunal famoso dos israelitas, copiando a situação com a possível fidelidade. Eu queria, porém, acrescentar, entre parêntesis, que o mesmo Caifás ainda estará no Sinédrio para punir e julgar. Foi pensando tudo isso, Senhor, que fui a Jerusalém observar detidamente os lugares santos. Se ultimamente contemplei a cidade arruinada dos profetas, no momento em que se comemorava a vossa paixão e a vossa morte, tendo fixado no espírito os quadros dolorosos do vosso martírio, não pude observar detalhadamente as suas ruínas, desde o momento em que a minha atenção foi solicitada pela magnânima figura de Iscariotes. É verdade que os séculos guardarão aí, para sempre, os traços indeléveis da vossa ligeira passagem pelo Planeta. Jerusalém prosseguirá contando aos peregrinos do mundo inteiro a sua história de lamentações e dores. Reconheci, contudo, a dificuldade para copiarem o passado com .as suas coisas e com as suas circunstâncias. " Humberto de Campos,"Conta-se que, anos depois da vossa crucificação, o Rabi Aguiba foi, com alguns companheiros, visitar as ruínas do templo onde haviam ecoado as vossas divinas palavras. Mas, o local sagrado onde se venerava o Santo dos Santos era refúgio dos chacais, que fugiram espantados com a presença dos homens. Hoje, igualmente, Senhor, Jerusalém não possui a fisionomia de outrora. Nos lugares onde se derramava o perfume do incenso e da mirra, há cheiro pronunciado de gasolina e vapores. Os burricos graciosos foram substituídos pelos automóveis confortáveis. Os ingleses vivem ocidentalizando as ruínas abandonadas. Sobre o mar da Galiléia, em Tiberíades, foi construído um balneário elegante; cheio de banhistas com seus trajes multicores, sentindo-se ali como em Copacabana, ou Biarritz. A Judéia está cortada de linhas férreas, de estradas macadamizadas, de cinematógrafos, de iluminações elétricas, de serviços modernos. Há, até, Senhor, um poderoso judeu russo chamado Rutemburgo, que captou energia elétrica nas águas mansas do Jordão à forca de mecanismos e represas. Aquelas águas sagradas e claras, que batizaram os cristãos, movem hoje poderosas turbinas. As usinas estão em toda parte. Todas essas instalações têm alterado a fisionomia da região. Certamente, Senhor, conhecestes Haifa, que era um ninho tranqüilo e doce, à sombra do monte Carmelo, sobre o qual Elias encontrou os profetas de Baal, confundindo-os com a sabedoria das suas palavras. Pois, hoje, palpita ali enorme cidade, guardando uma grande estação de depósito de petróleo, onde a marinha inglesa costuma abastecer-se. O campo suave de Mizpeh, onde a voz de Samuel se fez ouvir durante trinta dias consecutivos, exortando Israel, transformou-se num imenso aeródromo onde pousam as aves metálicas do progresso, cheias de notícias e de ruídos. Torna-se difícil reconstituir o ambiente da vossa injusta condenação. Mas os homens, Senhor, nunca dispensaram a teatralidade e as máscaras de suas vidas. É possível que engendrem um dramalhão, no qual, a pretexto de vos reabilitar perante a História, subvertam, ainda mais, no abismo da sua materialidade, à profunda significação espiritual da vossa doutrina. As multidões não serão inquiridas agora a respeito da sua preferência por Barrabás. Os pontífices do Sinedrim não conseguirão colocar nos vossos braços misericordiosos uma cana à guisa de cetro, nem ferir vossa fronte com a coroa de espinhos. Certamente mandarão erigir ironicamente um colosso de pedra, à vossa semelhança, injuriando a vossa memória. Os chamados crentes ajoelhar-se-ão aos pés dessa estátua impassível, suplicando, no seu cepticismo elegante, a vossa bênção, antes de se levantarem para devorar-se uns aos outros, como Cains desvairados. Ah! Senhor! Nós sabemos que do vosso trono estrelado vindes velando por esse orbe tão pequenino e tão infeliz! A manjedoura e a cruz ainda constituem o maior tesouro dos humildes e dos infortunados. Mas, vede, Senhor, como as ervas más se alastram pela Terra. Cortai-as, Jesus, para que o trigo louro da paz e da verdade resplandeça na vossa seara bendita. E que os homens, reunidos no mesmo jugo suave da fraternidade que nos ensinastes, descansem embalados no cântico sublime da vossa misericórdia e do vosso amor. " Humberto de Campos," 17 de abril de 1937 Muita gente boa poderá supor na Terra que o homem, atravessando as águas escuras do Aqueronte, encontrará na outra margem o poço maravilhoso da Sabedoria. Um homem de bons costumes, que andasse aí na Terra vendendo pastéis, depois dos banhos prodigiosos da Morte voltaria aos cenários da vida sentenciando em todos os problemas que ensandecem o cérebro da Humanidade. Mas, não é assim. Cada indivíduo conserva, no Além, a posição evolutiva que o caracterizava na Terra. Cada entidade comunicante é, portanto, o homem desencarnado, ressalvando-se, todavia, a posição elevada dos Espíritos missionários que, de vez em quando pousam no mundo abnegadamente, sem lhe reparar a miséria e a estreita relatividade. Arrebatados, assim, para o império das sombras, não estamos vagueando em paisagens lunares, ou no céu dos teólogos. O nosso mundo é de perfeita transição. Já Raymond, na Inglaterra, com o apoio da autoridade científica de Sir Oliver Lodge, falou ao mundo terrestre das nossas paisagens bizarras, repletas de coisas semelhantes às coisas da nossa vida e das nossas atividades no Planeta. Seus arroubos descritivos não comoveram o espírito cristalizado da ciência oficial, e provocaram exclamações pejorativas de muitos filósofos espiritualistas. De minha parte, porém, já não quero fazer passar os olhos curiosos dos meus leitores sob o Arco de Esopo, movimentando as minhas criações do Tonel de Diógenes. Agora, mais que nunca, reconheço que cada qual compreende como pode, aí no mundo, e não me animo a provocar o riso despreocupado dos meus semelhantes, desejando somente levar-lhes o coração para as questões nobres e úteis da Vida. Para contar-lhes, assim, o que fiquei conhecendo daqui como a Maior Mensagem existente da Terra, devo dizer-lhes que, no casarão dos espaços onde nos encontramos. agasalhados, existe o Grande Salão dos Invisíveis. É aí que nos reunimos, muitas vezes, em amável ""tête-à-tête"", reconfortando-nos após as lutas terrestres, e recebendo freqüente. mente as opiniões esclarecidas dos mestres da espiritualidade. Aparelhos delicadíssimos, de uma radiotelefonia mais avançada, nos colocam em contato com entidades angélicas, tal como os políticos do Rio de Janeiro podem ouvir o governo de Tóquio trocando entre si as impressões de um movimento, sem se afastarem de suas cidades respectivas. No dia a que me reporto, encontrávamos-nos ali, em animada palestra. Escritores franceses, ingleses, asiáticos e americanos, discutíamos os progressos da Terra. Não há mais aqui a " Humberto de Campos,"barreira dos idiomas. Cada qual pode falar à vontade, porque o pensamento já é por si mesmo uma espécie de Volapuque universal. - ""O que mais me admira na atualidade do mundo - exclamava um dos companheiros - é a obra perfeita da Engenharia moderna. Na América do Norte cuida-se da captação da energia elétrica existente na força das ondas marítimas, dentro do mecanismo de poderosas turbinas e, talvez, antes que o homem penetre o segredo do aproveitamento das forças atômicas, para repousar as suas atividades na eletricidade atmosférica, já terá construído formidáveis usinas captadoras da energia dos ventos, à mais de duzentos metros de altura. A mecânica da aviação progride a cada minuto e o homem está prestes a adotar os mais avançados sistemas de locomoção aérea, com os futuros aparelhos de vôo individual."" - “Todavia - atalhou outro -, temos de considerar igualmente o elevado plano evolutivo das criaturas, nos laboratórios”. O alemão Todtenhaupt demonstrou a maneira de se transformar a caseína do leite em lã artificial. Os tecnologistas descobriram todos os meios de se copiar perfeitamente a Natureza, e os produtos sintéticos fazem, por toda parte, as comodidades da civilização. Os raios X devassaram a organização de todos os corpos, provando que todas as matérias, na crosta terrestre, são cristalinas._facilitando o exame de suas disposições atômicas e moleculares. Essas revoluções, no campo imenso das indústrias modernas, hão de fatalmente determinar profundas modificações na vida atormentada dos homens. Eu ouvia, interessado, esses argumentos, sem poder participar com veemência dos problemas debatidos, em virtude de trazer muito pouca bagagem do nosso pobre Brasil, com exceção das idéias políticas, quando outro amigo interveio: - ""Muito me têm preocupado as questões de Medicina e é com assombro que vejo a evolução dos processos terapêuticos no orbe terráqueo.Os hormônios, as vitaminas e as glândulas, tão desconhecidos ali, antigamente, são objeto de toda uma revolução científica. Ainda agora os hospitais de Moscou realizam, com êxito, as mais extraordinárias transfusões de sangue cadavérico. Os médicos moscovitas descobriram os recursos de conservar o sangue retirado de um cadáver, no instante imediato à morte, por mais de 20 ou 30 dias, aplicando-o com felicidade a outros organismos enfermos. Os processos de saneamento e de higiene não ficam aquém dessas conquistas. Há tempos saneou-se, na Itália, a região das Lagoas Pontinas e, onde havia pântanos e focos microbianos, florescem hoje cidades prestigiosas e progressistas."" E, nesse diapasão, todos os escritores desencarnados manifestaram seus pensamentos otimistas. Falou-se da física, da bacteriologia, dos processos pedagógicos, da industrialização, do nacional-socialismo de Hitler e dos princípios democráticos de Roosevelt. Mas, quando a palestra atingia o fim de seu curso, uma voz, cuja origem não poderíamos determinar, exclamou em nosso meio com melancólica imponência: - “Todas as conquistas e todas as comodidades da civilização terrestre da atualidade são questões secundárias nos ciclos eternos da Vida”... A mão invisível e poderosa que destruiu o orgulho impenitente de Babilônia e de Persépolis, que aniquilou os poderes de Roma e de Cartago, pode reduzir o mundo ocidental a um punhado de cinzas!. . . " Humberto de Campos,"""As plataformas políticas, os laboratórios científicos, os diplomas de novos conhecimentos, são segundos valores em todos os caminhos evolutivos, porque, sem o amor, que é a fraternidade universal, todas as portas da evolução estarão fechadas. . . Pode Einstein devassar novos segredos na teoria das relatividades; Segismund Freud poderá descobrir novas causas dos padecimentos humanos com a perseverança e a paciência de suas análises; a tecnologia pode modificar visceralmente a estrutura das indústrias do Planeta; Hitler, Mussolini, Roosevelt e Trotsky podem aventar novas sistematizações da política, renovando as concepções do Estado; mas a Maior Mensagem no mundo ainda é o Evangelho. Sem o amor de Jesus-Cristo, todos os povos estão condenados a morrer, com todo o peso de suas conquistas e de suas glórias, porque somente o Amor pode salvar o mundo que se aniquila.” Podereis todos vós descer à face escura - e triste da Terra, proclamando a vossa imortalidade, porém, nada fareis de útil se não entregardes ao espírito humano essa chave maravilhosa, para que se abram as portas imensas da Paz, no coração amargurado dos homens!...”“ Diante dessa voz suave e terrível, todos nós silenciáramos. Ao longe, muito ao longe, por um esforço pronunciado de nossa ação, divisávamos a Terra longínqua... Furacões destruidores pareciam envolver atmosferas -estavam enegrecidas, pejadas de nuvens de fumo e de poeira sangrenta. Um secreto pavor dominou nossas almas e guardamos, íntimo, aquela voz profética e ameaçadora “‘A mão invisível e poderosa que destruiu impenitente de Babilônia e de Persépolis, que aniquilou os poderes de Roma e de Cartago, pode reduzir o mundo ocidental a um punhado de cinzas”!... " Humberto de Campos," 20 de abril de 1937. Minha senhora. Eu sempre julguei que, terminadas, as lutas da Vida, jamais poderia voltar o meu espírito das correntes tenebrosas do Estige, que os homens colocaram no Peloponeso escuro da Morte. Mas, eis que volto dos palacetes aéreos onde se reconforta minha alma esquecida do jazigo subrterraneo em que repousam meus alquebrados ossos e recebo o angustioso apelo do seu coração.A Senhora envia-me uma cartinha breve, escrita com as próprias lágrimas da sua dor, fazendo-me confidente de sua imensa amargura, como se eu ainda estivesse aí no mundo, escravizado a todas as suas algemas e a todas as suas conveniências, por mal dos meus pecados. Agora porém, graças a Deus, estou sento de todas as pesadas contribuições terrestres, inclusive a do imposto do selo, para enviar-lhe o meu pensamento. Falo-lhe do mundo de vida nova e de maravilhosa ressurreição, onde a esperam aquele esposo dedicado e amigo e aquele filho valoroso e leal que a senhora viu partirem para as fronteiras tristes e nubladas da Morte, como Níobe petrificada no Seu desespero inconsolável. . Os movimentos revolucionários do Brasil destroçaram-lhe o coração amoroso e sensibilíssimo. Em 30, quando os políticos novos se rejubilavam sobre os destroços da República Velha, enquanto se enfunavam bandeiras e vibravam mocidades, a sua alma de mulher, sozinha e triste, chorava sobre o túmulo do companheiro que Deus lhe havia dado e com quem edificara, através da luta e dos anos, o ninho quente e doce em cujos delicados contornos o seu espírito se havia dilatado, prolongando-se nos filhos, satélites abençoados do seu amor e do seu coração. Esse golpe foi a grande espada de dor, estraçalhando para sempre a tranqüilidade da sua vida. Em 35, eis que perde seu filho, digno sucessor da patente do pai, num outro movimento de forças homicidas. Sua alma de viúva e de mãe cobriu-se então de luto e de lágrimas, para sempre. Uma saudade oceânica absorve-lhe todas as atividades e todos os momentos, e no silêncio da noite, quando todos se entregam ao amolecimento e ao repouso, seu Espírito está vigilante como os soldados de Pompéia, apesar dos decretos irrevogáveis do Destino, esperando que surjam as visões consoladoras do companheiro bem-amado e do filho inesquecido até que as primeiras claridades do dia venham desfazer o magnetismo suave das suas esperanças. No mundo das suas recordações fulguram relâmpagos e, assombrada, sua alma vê passar todos os dias, nas estradas imensas da sua amargura, os fantasmas de todos os sonhos mortos, mergulhados no ataúde de suas desilusões. Para uma alma de mãe que chora, nunca há consolação bastante no mundo. Um coração materno, pranteando sobre as lutas fratricidas, é sempre um símbolo dos sofrimentos da Humanidade crucificada no madeiro das hostilidades patrióticas, que separaram os povos do amor fraterna, destilando o veneno do ódio nos seus corações. " Humberto de Campos,"Já se disse que a guerra é o fator de todos os progressos do orbe, mas temos de convir em que toda a civilização é um produto detestável do martirológio das mães desveladas e sofredoras. É por isso, talvez, que a civilização dos homens cai sempre, na esteira infinita do tempo, como fruto amargo e apodrecido. Todos os calendários, surgidos nos milênios, assinalam épocas de opulência e de grandeza, para se desfazerem nos abismos da miséria e da morte. No declínio de cada período evolutivo do Planeta reúnem-se, em vão, os políticos e os guerreiros para salvá-lo, como agora acontece no mundo, ocidental, no desfiladeiro da destruição. Criam-se conciliábulos de paz impossível, porque, através de todos os edifícios suntuosos e de todas as doutrinas políticas, faz-se ouvir a mesma voz compassiva e lamentosa: - ""Caim, que fizeste do teu irmão?"" É que nunca se reuniram os homens para salvar a civilização, com a ternura das mães, com os seus devotamentos e com os seus sacrifícios; nunca se recordaram de uma estatística dos corações maternos antes de prepararem uma batalha, embora se deva à mulher todos os monumentos de fé realizadora que os homens têm construído na face do mundo. E, no seu caso, a dor que à martiriza fere mais fundo o seu coração, porque o esposo e o filho não pereceram num campo inimigo, onde batalhassem com o título de ""bravos"", título esse ainda justificável em virtude da ignorância das leis divinas, mas, assassinados por seus próprios irmãos, com estúpida crueldade. Os fatos, em verdade, não pertencem à História Pátria, mas, sim, à legislação do Código Penal. Todavia, minha senhora, não busque a proteção das leis judiciárias, estruturadas pelos homens. Subordine os julgamentos dos atos perversos, de que foi objeto, ao Tribunal Divino, que legisla acima de todas as forças políticas da Terra. Sofra o seu martírio com amargurada resignação. O sofrimento é como um absinto maravilhoso. Se a sua taça está hoje cheia de fel inevitável, esse líquido amargo nunca se escoa. Aqueles que lho deram vêm atrás dos seus passos. O mesmo fel os aguarda nos caminhos tortuosos da Vida. Eu não tenho argumentos para consolá-la, senão os de minha própria sobrevivência, fornecendo-lhe a certeza de que um dia encontrará, numa vida . melhor, os bem-amados do seu coração. Sua mágoa é daquelas que a esponja insaciável do Tempo não apaga na Terra; mas, viva a sua existência com as esperanças colocadas no Céu. Lembre-se da Mãe de Jesus: ela sintetiza as angústias de todos os corações maternos, perdidos como flores divinas entre as urzes e os espinhos do mundo, e sentir-se- tocada de uma luz suave e misericordiosa. Uma sagrada e terna esperança balsamizará, como um luar perene, a noite das suas desventuras, adquirindo a força necessária para vencer nas estradas ríspidas e espinhosas. Amparada na fé, espere no altar da oração o dia da sua liberdade espiritual. Nessa hora de claridades doces e alegres para o seu coração, a senhora verá que, no turbilhão das lutas da Terra, todos os que contemplam o Céu são também por ele contemplados. " Humberto de Campos," 21 de abril de 1937, Dos infelizes protagonistas da Inconfidência Mineira, no dia 21 de abril de todos os anos, aqueles que podem excursionar pela Terra volvem às ruínas de Ouro Preto, a fim' de se reunirem entre as velhas paredes da casa humilde do sítio da Cachoeira, trazendo a sua homenagem de amor à personalidade do Tiradentes. Nessas assembléias espirituais, que os encarnados poderiam considerar como reuniões de sombras, os preitos de amor são mais expressivos e mais sinceros, livres de todos os enganos da História e das hipocrisias convencionais. Ainda agora, compareci a essa festividade de corações, integrando a caravana de alguns brasileiros desencarnados, que para lá se dirigiu associando-se às comemorações do proto mártir da emancipação do País. Nunca tive muito contato com as coisas de Minas Gerais, mas a antiga Vila Rica, atualmente elevada à condição de Monumento Nacional, pelas suas relíquias prestigiosas, sempre me impressionou pela sua beleza sugestiva e legendária. Nas suas ruas tortuosas, percebe-se a mesma fisionomia do Brasil dos Vice-Reis. Uma coroa de lendas suaves paira sobre. as suas ladeiras e sobre os seus edifícios seculares, embriagando o espírito do forasteiro com melodias longínquas e perfumes distantes. Na terra empedrada, ainda existem sinais de passos dos antigos conquistadores do ouro dos seus rios e das suas minas e, nas suas igrejas, ainda se ouvem soluços de escravos, misturados com gritos de sonhos mortos, do seu valoroso heroísmo. A velha Vila Rica, com a névoa fria dos seus horizontes, parece viver agora com as suas saudades de cada dia e com as suas recordações de cada noite. Sem me alongar nos lances descritivos, acerca dos seus tesouros do passado, objeto da observação de jornalistas e escritores de todos os tempos, devo dizer que, na noite de hoje, a casa antiga dos Inconfidentes tem estado cheia das sombras dos mortos. Aí fui encontrar, não segundo o corpo, mas segundo o espírito, as personalidades de Domingos Vidal Barbosa, Freire de Andrada, Mariano Leal, José Joaquim da Maia, Cláudio Manuel, Inácio Alvarenga, Dorotéia de Seixas, Beatriz Francisca Brandão, Toledo Pisa, Luís de Vasconcelos e muitos outros nomes, que participaram dos acontecimentos relativos à malograda conspiração. Mas, de todas as figuras veneráveis ao alcance dos meus olhos, a que me sugeria as grandes afirmações da pátria era, sem dúvida, a do antigo alferes Joaquim José da Silva Xavier, pela sua nobre e serena beleza. Do seu olhar claro e doce, irradiava-se toda uma onda de estranhas revelações, e não foi sem timidez que me acerquei da sua personalidade, provocando a sua palavra. Falando-lhe a respeito do movimento de emancipação política, do qual havia sido o herói extraordinário, declinei minha qualidade de seu ex-compatriota, filho do Maranhão, que também combatera, no passado, contra o domínio dos estrangeiros. . " Humberto de Campos,"- ""Meu amigo - declarou com bondade -, antes de tudo, devo afirmar que não fui um herói e sim um Espírito em prova, servindo simultaneamente à causa da liberdade da minha terra. Quanto à Inconfidência de Minas, não foi propriamente um movimento nativista, apesar de ter aí ficado como roteiro luminoso para a independência da pátria.. Hoje, posso perceber que o nosso movimento era um projeto por demais elevado para as forças com que podia contar o Brasil daquela época, reconhecendo como o idealismo eliminou em nosso espírito todas as noções da realidade prática; mas, estávamos embriagados pelas idéias generosas que nos chegavam da Europa, através da educação universitária. E, sobretudo, o exemplo dos Estados Americanos do Norte, que afirmaram os princípios imortais do direito do homem, muito antes do verbo inflamado de Mirabeau, era uma luz incendiando a nossa imaginação. O Congresso de Filadélfia, que reconheceu todas as doutrinas democráticas, em 1776, afigurou-se-nos uma garantia da concretização dos nossos sonhos. Por intermédio de José Joaquim da Maia procuramos sondar o pensamento de Jefferson, em Paris, a nosso respeito; mas, infelizmente, não percebíamos que a luta, como ainda hoje se verifica no mundo, era de princípios. O fenômeno que se operava no terreno político e social era o desprezo do absolutismo e da tradição, para que o racionalismo dirigisse a Vida dos homens. Fomos os títeres de alguns portugueses liberais, que, na colônia, desejavam adaptar-se ao novo período histórico do Planeta, aproveitando-se dos nossos primeiros surtos de nacionalismo. Não possuíamos um índice forte de brasilidade que nos assegurasse a vitória, e a verdade só me foi intuitivamente revelada quando as autoridades do Rio mandaram prender-me na rua dos Latoeiros."" - E nada tendes a dizer sobre a defecção de alguns dos vossos companheiros? - perguntei. - ""Hoje, de modo algum desejaria avivar minhas amargas lembranças. . . Aliás, não foi apenas Silvério quem nos denunciou perante o Visconde de Barbacena; muitos outros fizeram o mesmo, chegando um deles a se disfarçar como um fantasma, dentro das noites de Vila Rica, avisando quanto à resolução do governo da província, antes que ela fosse tomada publicamente, com o fim de salvaguardar as posições sociais de amigos do Visconde, que haviam simpatizado com a nossa causa. Graças a Deus, todavia, até hoje, sinto-me ditoso por ter subido sozinho os vinte degraus do patíbulo."" - E sobre esses fatos dolorosos, não tendes alguma impressão nova a nos transmitir? E os lábios do Herói da Inconfidência, como se receassem dizer toda a verdade, murmuraram estas frases soltas: - ""Sim. . . a Sala do Oratório e o vozerio dos companheiros desesperados com a sentença de morte... a Praça da Lampadosa, minha veneração pelo Crucifixo do Redentor e o remorso do carrasco. . . a procissão da Irmandade da Misericórdia, os cavaleiros, até o derradeiro impulso da corda fatal, arrastando-me para o abismo da Morte..."" E concluiu: - ""Não tenho coisa alguma a acrescentar às descrições históricas, senão minha profunda repugnância pela hipocrisia das convenções sociais de todos os tempos."" " Humberto de Campos,"- É verdade - acrescentei -, reza a História que, no instante da vossa morte, um religioso, falou. sobre o tema do Eclesiastes - ""Não atraiçoes o teu rei, nem mesmo por pensamentos."" E terminando a minha observação com uma pergunta, arrisquei: - Quanto ao Brasil atual, qual a vossa opinião a respeito? - ""Apenas a de que ainda não foi atingido o alvo dos nossos sonhos. A nação ainda não foi realizada para criar-se uma linha histórica, mantenedora da sua perfeita independência. Todavia, a vitalidade de um povo reside na organização da sua economia e a economia do Brasil está muito longe de ser realizada. A ausência de um interesse comum, em ""favor do País, dá causa não mais à derrama dos impostos, mas ao derrame das ambições, onde todos querem mandar, sem saberem dirigir a si próprios."" Antes que se fizesse silêncio entre nós, tornei ainda: - Com relação aos ossos dos inconfidentes, vindos agora da África para o antigo teatro da luta, hoje transformado em Panteão Nacional, são de fato autênticos esqueletos dos apóstolos da liberdade? . - ""Nesse particular - respondeu Tiradentes com uma ponta de ironia -; não devo manifestar os meus pensamentos. Os ossos encontrados tanto podem ser de Gonzaga, como podem pertencer, igualmente, ao mais miserável dos negros de Angola. O orgulho humano e as vaidades patrióticas têm também os seus limites... Aliás, o que se faz necessário é a compreensão dos sentimentos que nos moveram a personalidade, impelindo-nos para o sacrifício e para a morte. ..” Mas, não pôde terminar. Arrebatado numa' aluvião de abraços amigos e carinhosos, retirou-se o grande patriota que o Brasil hoje festeja, glorificando o seu heroísmo e a sua doce humildade. Aos meus ouvidos emocionados ecoavam as notas derradeiras da música evocativa e dos fragmentos de orações que rodeavam o monumento do Herói, afigurando-se-me que Vila Rica ressurgira, com os seus coches dourados e os seus fidalgos, num dos dias gloriosos do Triunfo Eucarístico; mas, aos poucos, suas luzes se amorteceram no silêncio da noite, e a velha cidade dos conspiradores entrou a dormir, no tapete glorioso de suas recordações, o sono tranqüilo -dos seus sonhos mortos. " Humberto de Campos," 30 de abril de 1937 Os cientistas de todos os continentes se interessam, no mundo, pela solução do problema da longevidade humana. À maneira do doutor Fausto, ensandecem as suas faculdades intelectivas, buscando o ambicionado xarope miraculoso. Corações de cães e de galinhas são objeto de experimentos fisiológicos e não faz muitos anos o Dr. Voronoff andava pelo mundo com a sua gaiola de símios, vendendo o elixir prodigioso da juventude aos velhos gozadores da vida. Agora, um dos seus continuadores, o Dr. Aléxis Carrel, em cooperação com Lindberg, inventou um aparelho para investigar a vida das células e a produção de hormônios, onde se encontra vivo o coração de um gato, pulsando indefinidamente, esquecido de morrer, certamente enganado com a temperatura do recipiente de vidro que o encerra. Nos últimos tempos é o professor Woodruff o iniciador de experiências novas. Cultivando carinhosamente um micróbio e sua progênie, no laboratório de suas pesquisas científicas, todos os dias transforma o ambiente do micróbio estudado, mudando a gota de água e o tubo que constituem o seu grande mundo liliputiano, tendo repetido essa experiência mais de mil vezes, constatando a imortalidade do seu paciente e guardando a esperança de poder aplicar seus estudos às criaturas humanas, criando uma nova teoria da longevidade, com a eliminação dos resíduos celulares do organismo, olvidado, porém, de que as células cerebrais do homem, elementos constitutivos do aparelho mais delicado de manifestação do espírito dos seres racionais, não são suscetíveis de nenhuma alteração no decurso da vida. Os corpúsculos do cérebro nunca se reproduzem. Podem os cientistas imitar todos os fenômenos da natureza. Um coração humano pode saltar numa retorta de laboratório. Os rins e o fígado podem segregar os seus produtos específicos, separados do corpo, mas os estudiosos do mundo inteiro jamais poderão fazer pensar o cérebro de um cadáver. Todas essas atividades da ciência moderna, através de movimentos mecânicos, poderão organizar novos sistemas terapêuticos, mas nunca afastar do coração inquieto dos homens o gládio afiado da morte. A par dos professores, cujas teses objetivam a prolongação da existência das criaturas, temos os políticos nacionalistas incentivando a natalidade, como Mussolini, instituindo prêmios para as mães italianas e conquistando, a ferro e fogo, o território abissínio, a fim de localizar os súditos do novo império. É verdade que o “crescei e multiplicai-vos” representa um imperativo das leis divinas, mas é necessário saber-se o “como” dessa conciliação do espírito com a natureza. Os homens tentam organizar, em todos os tempos, um código de moral, para que os imperativos evangélicos da multiplicação se cumprissem com decência e pureza. As igrejas criaram o casamento religioso, e os legisladores o matrimonio civil. Houve, também, os que tentaram organizar, nesse sentido, uma diretriz de ordem econômica, como os ingleses, que instituíram o “birth control”. Mas, eu não voltaria do mundo das sombras ignoradas para fazer a apologia de Roberto Malthus e sim para perguntar se valeria a pena conservar-se indefinidamente a vida do homem, sobre o vale de lágrimas do Salmista. " Humberto de Campos,"Quando ainda não se resolveu o problema do pão de cada dia, quando há multidões de famintos e desesperados, quando a sociologia não passa de palavra a ser interpretada, é lícito cogitar-se da longevidade das criaturas? Se vingassem as teorias modernas, teríamos igualmente a eternização do egoísmo, da ambição e do orgulho, porque cada um não cogitaria senão da sua própria imortalidade. As atividades inoportunas de semelhantes cogitações, no objeto de se fazer de cada homem um Matusalém sobre a terra, são a criação incessante dos institutos da morte. A política, que incentiva a natalidade, não quer a criança senão para fazer dela, mais tarde, um soldado ou uma vivandeira, de acordo com a determinação do sexo. O monstro da guerra aí está ainda, como a Hidra de Lerna envolvendo todos os povos do Planeta nos seus tentáculos destruidores. Todos os progressos da Civilização se canalizam para esse gosto homicida. O animal político de Aristóteles não vive senão para destruir seus semelhantes, e nos departamentos de guerra de todos os paises existem os técnicos de novos aparelhos de destruição. Nestes últimos tempos, um ilustre médico europeu inventou piedosamente uma espécie de máscara protetora contra todos os gases mortíferos conhecidos. Apresentando o invento humanitário ao seu diretor de laboratório, obteve uma resposta curiosa: - “Muito bem, meu amigo. A tua criação merece o apoio do Governo e a admiração dos teus colegas; todavia, é preciso agora que utilizes as tuas faculdades inventivas na criação de um gás mais poderoso do que essa máscara, e que a possa inutilizar no momento oportuno.” É dentro dessa mentalidade que se desdobram as atividades humanas. Os cientistas que desejarem prestar o concurso dos seus conhecimentos à Humanidade devem ocupar-se de problemas menos complexos do que o da inconveniente longevidade das criaturas. Antes de tudo, é necessário educar o espírito para o saneamento moral da vida das coletividades. Quando o homem conhecer a sua condição de usufrutuário do patrimônio divino, as armas da ambição, do egoísmo e do orgulho estarão ensarilhadas para sempre. A morte, nesse plano ideal de conhecimento superior, deixará de ser a espada de Dâmocles, no banquete da vida, porquanto não mais existirá na imaginação das criaturas integradas no conhecimento de sua imortalidade espiritual. Os cientistas que estudam a longevidade do corpo são os que tateiam, voluntariamente, nas sombras da noite, despercebidos de que as claridades do dia virão fatalmente iluminar-lhes o caminho da ascensão para Deus. Que se desviem de semelhantes excentricidades, empregando os seus esforços na solução de problemas mais úteis e mais urgentes. Em vez de criarem novas teorias para que o mundo fique repleto de corpos imortais, seria melhor que cultivassem batatas, a fim de que os pobres da Terra tenham um pão pela hora da vida. " Humberto de Campos,"ÁRIO 1º. de maio de 1937 Às portas do Céu bateram, um dia, um Político, um Soldado e um Operário. Mas, Gabriel, o anjo que na ocasião velava pela tranqüilidade do Paraíso, não quis atender-lhes às rogativas, sem previamente consultar o Senhor sobre aquelas três criaturas recém-chegadas da Terra. Depois de inquiri-las quanto às suas atividades na superfície do mundo, procurou o Mestre, a quem falou humildemente: - Senhor, um Político, um Soldado e um Operário, vindos da Terra longínqua, desejam receber vossas divinas graças, ansiosos de gozar das felicidades terrestres. -Gabriel – disse o Salvador – que habilitações trazem do mundo essas almas, para viverem na paz da Casa de Deus? Bem sabes que cada homem edifica, com a sua vida, o seu inferno, ou o seu paraíso... Mas, vamos ao que nos interessa: que fez o Político lá na Terra? O anjo, bem impressionado com a figura do diplomata, que impetrara os seus bons ofícios, exclamou com algum entusiasmo: Trata-se de um homem de elevado nível cultural. Suas informações revelaram-me um espírito de gosto refinado no trato da Civilização e das leis. Foi um preclaro estadista, cuja existência decorreu nos bastidores da administração pública e nos torneios eleitorais, onde consumiu todas as suas energias. Em troca de seus labores, os homens lhe tributaram as mais subidas honras nas suas exéquias. Seu cadáver embalsamado, num ataúde de vidro, percorreu duzentas léguas para ficar guardado nos mármores preciosos do Panteão Nacional. - Mas... – objetou entristecido o Mestre – esse homem teria cumprido as leis que ditava para os outros? Teria observado a prática do bem, a única condição para entrar no Paraíso, absorvido, como se achava, na enganosa volúpia das grandezas terrenas? - A luta política, Senhor, tomava-lhe todo o tempo – respondeu solícito o anjo -; os tratados jurídicos, as tabelas orçamentárias, as fontes históricas, as questões diplomáticas, os compêndios de ciências sociais, não davam lugar a que ele se integrasse no conhecimento da vossa palavra... - Entretanto, o meu Evangelho deveria ser a bússola de quantos se colocam na direção da humanidade... E, como se intimamente lastimasse a situação do infeliz, o Mestre rematou: - Aqui não há lugar para ele. Não se conquistam as venturas celestes com a riqueza de teorias da Terra. Dir-lhe-ás que retorne ao mundo, a fim de voltar mais tarde ao Paraíso, pela porta do Bem, da Caridade e do Amor. E o Soldado, que serviços apresenta em favor de sua pretensão? " Humberto de Campos,"- Esse – replicou Gabriel – foi um herói na terra em que nasceu. Seus atos de valor e de bravura deram causa a que fosse promovido pelos superiores hierárquicos à posição de chefe das forças militares em operações, na última guerra. Tem o peito coberto de medalhas e de insígnias valiosas, das ordens patrióticas e das legiões de honra; seu nome é lembrado no mundo com carinhoso respeito. Aos seus funerais compareceram representações de vários paises do mundo e inúmeras coletividades acompanharam-lhe as cinzas ilustres, que, envolvidas na bandeira da sua pátria, foram guardadas num majestoso monumento de soberbo carrara. - Infelizmente – exclamou amargurado o Senhor – o Céu está fechado para os homens dessa natureza. É inacreditável que sejam glorificados no orbe terrestre aqueles que matam a pretexto de patriotismo. Nunca pus no verbo dos meus enviados, no Planeta, outra lei que não fosse aquela do – “amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos”. Nunca houve uma determinação divina para que os homens se separassem entre pátrias e bandeiras. De sul a norte, do oriente ao ocidente, todos os Espíritos encarnados são filhos de Deus, e qualquer deles pode ser meu discípulo. Os homens que semeiam a ruína e a destruição não podem participar da tranqüilidade do Paraíso. E o Operário, que fatos lhe justificam a presença nas portas do Céu? - Esse – elucidou Gabriel – quase nada tem a contar dos seus amargurados dias terrestres. Os sopros frios da adversidade, em toda a existência, perseguiram-no através das estradas do destino, e a fé em vossa complacência e misericórdia lhe foi sempre a única âncora de salvação, no oceano de lágrimas por onde passava o barco miserável da sua vida. Trabalhou com o esforço poderoso das máquinas e foi colaborador desconhecido do bem-estar dos afortunados da Terra. Nunca recebeu compensação digna do seu trabalho, e consumiu-se no holocausto à coletividade e à família... Entretanto, Senhor, ninguém conheceu as tempestades de lágrimas de seu coração afetuoso e sensível, nem as dificuldades dolorosas dos seus dias atormentados, no mundo. Viveu com a fé, morreu com a esperança e o seu corpo foi recolhido pela caridade de mãos piedosas e compassivas que o abrigaram na sepultura anônima dos desgraçados... - O Céu pertence a esse herói. Gabriel – disse o Mestre alegremente. – Suas esperanças colocadas no meu amor são sementes benditas que frutificarão na percentagem de mil por um. Se os homens o ignoram, o Céu deve conhecer os seus heroísmos obscuros e os seus sacrifícios nobilitantes. Enquanto o Político organizava leis que não cumpria, ele se imolava no desempenho dos deveres santificadores. Enquanto o Soldado destruía irmãos, seus braços faziam o milagre do progresso e do bem-estar da Humanidade. Enquanto os despojos dos primeiros foram encerrados nos mármores frios e imponentes das falsas homenagens da Terra, seu corpo de lutador se dissolveu no solo, acentuando os perfumes da Natureza e enriquecendo o grão que alimenta as aves alegres, na mesma harmonia eterna e doce que regeu os sentimentos do seu coração e os atos de seu Espírito. Esse, Gabriel, faz parte dos heróis do Céu, que a Terra nunca quis conhecer. E, enquanto o Político e o soldado voltavam ao caminho das reencarnações dolorosas da Terra, o Operário de Deus se cobria com as claridades do Infinito, buscando outras possibilidades de trabalho para o seu amor e para o se devotamento. " Humberto de Campos,"ÁRIO DO BRASIL 7 de maio de 1937 Vem o Brasil de comemorar o 437º ano do seu descobrimento. Em todos os centros culturais do País foi lembrada a célebre expedição de Pedro Álvares Cabral, que, em março de 1500, deixou Lisboa com as mais severas recomendações para os régulos da Ásia e que aportou primeiramente na ilha de Vera Cruz, cheia de árvores fartas e de rolas morenas cantando a inocência das terras inexploradas e virgens, cujo domínio Portugal havia pleiteado em Tordesilhas. Os naturais ainda pareciam permanecer com a benção divina no paraíso terrestre, pois não conheciam o sentimento que fizera Adão e Eva buscarem a folha de parra, envergonhados dos seus pormenores anatômicos; mas, frei Henrique de Coimbra, na primeira missa celebrada naquele deserto maravilhoso, tentou pregar para as gentes de Porto Seguro, que não lhe compreenderam as palavras, tomando, logo após aquele ato católico, os seus arcos e os seus tacapes, prosseguindo nas danças exóticas, sobre as ervas rasteiras da praia. Sobre as grandes comemorações brasileiras destes últimos dias, não podemos mencionar as da política administrativa, que, no momento, estava preocupada com a eleição do Presidente da Câmara Federal, sendo de destacar-se, somente, a Congregação Mariana no Rio de Janeiro. A Igreja, conhecendo profundamente a psicologia das massas, reuniu mais de dez mil católicos na capital do País, realizando os seus movimentos com o apoio governamental. Mas, não nos surpreendemos. Não se tratou de um congresso para a generalização do livro ou de novas facilidades da vida. Como Frei Henrique de Coimbra, no dia 3 de maio de 1500, entre as madeiras toscas da Bahia, Monsenhor Leovigildo Franca, na Feira de Amostras do Rio de Janeiro, dava explicações da missa ao povo do Brasil, com a diferença de que falava pelo radio e com pouca esperança de ser entendido pelos seus patrícios, que, como outrora, se levantariam dali, com as suas cuícas e os seus pandeiros, procurando a Favela ou a Mangueira, para um samba de quintal. Aliás, semelhante fato não será estranhável, considerando-se que o governo que apoiou a ultima concentração católica é o mesmo que subvenciona as festas carnavalescas, incentivando, por essa forma, o turismo no Brasil. Todavia, longe das apreciações superficiais, que teria feito a nação em mais de quatrocentos anos de vida histórica e mais de um século de independência política? Com um território imenso, onde caberá possivelmente toda a população da Europa moderna, ela apenas conhece pouco mais de um décimo de suas possibilidades econômicas. Do vale soberbo do Amazonas às planícies do Prata, há um perfume de matas virgens na terra misteriosa e o mesmo livro infinito de sua Natureza extraordinária espera ainda a raça ciclópica que escreverá nas suas páginas, ainda em branco, a mais bela talvez de todas as epopéias da Humanidade, nos triunfos do Espírito. É lastimável que as paixões políticas aí permaneçam, intoxicando inteligências e corações. A esses sentimentos nefastos deve-se a sensação de angustiosa expectativa que o País vem experimentando, nestes anos derradeiros, perturbando os seus surtos de trabalho e " Humberto de Campos,"empobrecendo as suas fontes de produção. Os espíritos, que aí se entregam ao vinho sinistro do interesse e da ambição, andam esquecidos de que são criminosos todos aqueles que destroem um abrigo diante da tempestade furiosa, sem apresentar um refúgio melhor aos náufragos desesperados. Como inaugurar-se uma nova experiência de novos regimes políticos no País, se o próprio principio democrático ainda não foi devidamente assimilado? Contudo, o que vemos no Brasil, nos últimos tempos, é a tendência para a desagregação das forças construtivas da nacionalidade, em lutas esterilizadoras. Reza a História que, nos séculos passados, quando as hordas de bárbaros ameaçavam a Europa medieval, o sultão Amurat submeteu ao seu domínio as províncias gregas da Trácia, da Albânia e da Macedônia. Cheio de galardões e de vitórias, avançou para o norte em direção dos sérvios e dos búlgaros que, comandados por Lázaro e Sisman, lhe opuseram a mais encarniçada resistência. O orgulhoso sultão ganhou-lhes a grande batalha de Kossovo, mas, quando vitorioso contemplava com feroz alegria o campo forrado de sangue e de cadáveres, orgulhoso do seu feito e da sua glória, o sérvio Miloch levantou-se, no silêncio da praça destruída, e, lesto, cravou-lhe um punhal no coração. A política brasileira dos últimos anos tem sido a repetição do mesmo quadro. Sempre um Amurat escalando o caminho da glória e da evidência, sobre as humilhações dos seus semelhantes, e sempre um Miloch saindo do seu anonimato para desferir-lhe o golpe supremo. Mas... Não falemos de assunto tão ingrato, quanto inoportuno. No dia de aniversário do Brasil, recordemos que o professor Tyndall acaba de anunciar os dez problemas mais importantes que a ciência terrestre terá de resolver nos próximos cem anos, neles incluindo a viagem à Lua e alimentação química, lembrando ao ilustre catedrático da Pensilvânia que, não obstante as suas mestranças, esqueceu a questão da vitória do Evangelho. E olhando o país maravilhoso onde todas as raças do Planeta se encontraram para a glorificação da fraternidade e do amor, saudemos, com as emoções de nossa esperança, as terras afortunadas de Santa Cruz. " Humberto de Campos,"ÁVEL INSTITUIÇÃO 2 de agosto de 1937 Parecerá estranho que os Espíritos desencarnados volvam à Terra para visitar as instituições humanas, velando pelo mecanismo dos seus trabalhos e agindo, indiretamente, nas suas deliberações. A verdade, porém, é que isso constitui um acontecimento natural. Se os vivos continuam os trabalhos daqueles que os antecederam na jornada da morte, as almas do mundo invisível, nos planos em que me encontro, têm de voltar, em sua maioria, às lutas terrestres. Todas as edificações de uma época têm as suas bases profundas nas épocas que a precederam. Nenhum homem pode criar, por si só, alguma coisa e sim desenvolver os princípios encontrados, aproveitando o material disperso para continuar a obra evolutiva, imprimindo-lhe a expressão do seu pensamento pessoal. Mesmo o inventor e o artista, com as largas reservas de possibilidade e paciência que os séculos de experiências acumularam nos escaninhos de suas personalidades, estão englobados nessa classificação. É que o progresso é uma obra coletiva. Cada criatura deixa uma nota na sua admirável sinfonia. As eras se interpenetram umas às outras, tal como se confundem, no oceano largo do tempo, os vivos e os mortos. A vida é o resultado das trocas incessantes e o insulamento é a única morte no concerto universal. É considerando essas verdades que me tenho dedicado a conhecer, dentro das minhas possibilidades, as instituições dos homens, voltando para falar delas com a minha linguagem característica, evitando o terreno do transcendentalismo, para fornecer, espontaneamente, a minha carteira de identificação. * Nas proximidades do edifício do Tesouro Nacional, na Avenida Passos, ergue-se a Federação Espírita Brasileira, guardando, na cidade maravilhosa, as grandes tradições da caridade e da esperança, filhas do coração de Ismael, cujo pensamento inspira as atividades do Evangelho nas terras de Santa Cruz. Já tive ocasião de manifestar o meu respeito por essa instituição venerável, cujas portas se abrem generosas para os famintos do pão espiritual e para os necessitados do corpo, ao lado do formigueiro humano, onde se agitam cerca de dois milhões de pessoas. Conhecendo-lhe, embora, a finalidade evangélica, em cuja base imortal repousam os seus labores associativos, no objetivo de emprestar a minha colaboração humilde ao desdobramento dos seus programas, procurei alcançar numa visão de detalhe a sua obra edificadora. A visita de um desencarnado não se verifica conforme as praxes sociais que presidem, no mundo dos homens de carne, a um ato dessa natureza; mas, no pórtico da Casa de Ismael encontrei o mesmo Pedro Richard, que me levou a observar as intimidades do seu santuário. Visitei, uma a uma, as suas dependências. " Humberto de Campos,"Nas escadarias e nos gabinetes amplos, não somente se reúnem os médiuns abnegados e os sofredores que aí os procuram diariamente; verdadeiras legiões de seres invisíveis, que os vivos considerariam como fileiras de sombras, deslizam pelas salas e pelos corredores, revezando-se no sagrado mister da caridade, fornecendo o que podem, no labor piedoso e cristão. A presença dos enfermeiros invisíveis enche a atmosfera da casa de fluidos suaves e balsâmicos. É, talvez, por esse motivo que alguns amigos meus procuravam descansar na Federação, quando passávamos nas vizinhanças da antiga rua do Sacramento, cansados dos rumores urbanos e das longas distâncias, acreditando alcançar ai um bando regenerador de suas energias psíquicas. - Aqui – explicava Pedro Richard -, nos reunimos todos nós, os que amamos as claridades do Evangelho, ansiosos de repartir as esperanças da Boa Nova,. Há lugar, nesta casa, para todos os trabalhadores, e basta querer para que cada um seja incorporado à caravana que nunca se dissolve. À maneira daqueles coxos e estropiados, a que se referia Jesus no seu ensinamento, vivemos pela misericórdia do Senhor, que não nos desampara com a sua bondade infinita. O banquete de Ismael está aqui sempre posto e, das alturas divinas, caem sobre o seu templo humano as flores da esperança, da piedade e do perdão, transformadas em bênçãos de Deus, repartidas, como a luz do Sol, com todos os corações. Aproveitamos, nos estudos da doutrina, aquela parte que representava a predileção de Maria, em contraposição com os trabalhos apressados e inquietos de Marta, segundo a observação do Divino Mestre, e pugnamos pelo esforço da reforma interior de cada um, reconhecendo que somente na assimilação dos princípios morais da doutrina, em sua feição de Cristianismo restaurado, poderemos atingir a finalidade de nossas preocupações. - Mas – perguntei admirado – a instituição desprezará, porventura, as expressões cientificas do Espiritismo? -“De modo algum – respondeu-me solícito -, seus aspectos fenomênicos merecem da Federação todo o zelo possível, mas essas expressões da ciência representam os meios e não o fim, constituindo, desse modo, corolários das expressões morais do ensinamento dos Espíritos, chegando-se à ilação de que nada se terá feito sem a edificação das consciências, à luz dos seus princípios. Haja vista o que aconteceu na Europa, bafejada por tantos fenômenos extraordinários. Com algumas exceções, os sábios que ali se ocuparam do assunto, possuídos do mais avançado personalismo, definiram os fatos mediúnicos dentro de suas vaidades pessoais, complicando o estudo da doutrina com o sabor cientifico de suas palavras, desconhecendo a profunda simplicidade dos ensinamentos revelados.” - É com essa expressão religiosa e regeneradora que o Espiritismo conta esclarecer os problemas do campo social? – perguntei ainda. -“De fato – continuou o meu generoso amigo -, toda a vitória da doutrina tem de começar no coração. Sem o selo da renovação interior, qualquer tentativa de reforma constitui um caminho para novas desilusões. Seria, pois, inútil organizarmos grandes movimentos para uma salvação imediata, se o espírito geral se encontra nas sombras. Onde se terá visto uma colheita sem o trabalho da semeadura? A missão dos espíritas não representa, portanto, " Humberto de Campos,"uma tarefa artificiosa e nem lhes compete disseminar os laboratórios de ilusões. Suas responsabilidades são muito grandes no campo da educação evangélica das massas e no plano da caridade pura, assistindo os sofredores e os desesperados. Esse campo de trabalho moral é o imenso reservatório das forças indestrutíveis da Nova Revelação, e a beleza dos seus aspectos tem seduzido muitas mentalidades de elite, do mundo inteiro. Mesmo a esta Casa têm aportado muitos espíritos brilhantes, vindos da Política e da Ciência, considerando que o Espiritismo, verdadeiramente interpretado, é a síntese maravilhosa que abrange todas as atividades humanas, no sentido de aperfeiçoá-las para o bem comum.” - Mas – ponderei -, não seria aconselhável movimentarem-se os elementos da doutrina, projetando-se as expressões de seus valores no mundo das realizações? - “Não reprovamos quantos se entregam, desde já, aos trabalhos dessa natureza, reconhecendo que o Espiritismo é um campo imenso onde cada qual tem a sua tarefa a desempenhar, e onde o exclusivismo pecará sempre pela inoportunidade; mas, julgamos prudente criar-se a mentalidade evangélica antes das obras espíritas, a fim de que elas não se percam nos labirintos do mundo e para que sejam devidamente cultivadas pelos verdadeiros discípulos do único Mestre, que é Jesus-Cristo”. As palavras esclarecedoras de Richard calaram-me no espírito. Compreendi que, de fato, nunca, como agora, a sociedade humana precisou tanto de recorrer ao auxilio sobrenatural do mundo invisível para reorganizar as suas energias, a fim de manter a sua própria estabilidade moral. Em companhia do mesmo amigo, voltei para o saguão de entrada do edifício, onde se reunia a legião de aflitos e de consolados. Era noitinha. A Avenida Passos regurgitava de automóveis de luxo, plena de luz e de movimento. E enquanto os sujeitos felizes procuravam, no coração enorme da cidade, as casas alegres da noite, uma grande multidão de pessoas, ricas e pobres, subia com humildade as escadas do grande edifício, para se curvarem sobre o Evangelho, procurando aí a lição divina e o socorro espiritual. E antes que me confundisse, de novo, com as coisas da minha nova vida, lembrei-me das primitivas assembléias cristãs, onde se misturavam todas as posições sociais no exemplo de fraternidade apostólica, no recanto humilde das catacumbas romanas. Pedro Richard estava com a razão. É verdade que Nero não está hoje no poder, mas os circos dos suplícios foram substituídos, prevalecendo a mesma perversidade entre os homens, envenenando-lhes o coração. Aos funestos efeitos de uma nova aliança com Constantino, é preferível, portanto, esclarecer e iluminar o coração de Constantino. " Humberto de Campos," Hoje, mamãe, eu não te escrevo daquele gabinete cheio de livros sábios, onde o teu filho, pobre e enfermo, via passar os espectros dos enigmas humanos, junto da lâmpada que, aos poucos, lhe devorava os olhos, no silêncio da noite. A mão que me serve de porta-caneta é a mão cansada de um homem paupérrimo, que trabalhou o dia inteiro buscando o pão amargo e cotidiano dos que lutam e sofrem. A minha secretária é uma tripeça tosca à guisa de mesa e as paredes que me rodeiam são nuas e tristes, como aquelas da nossa casa desconfortável em Pedra do Sal. O telhado sem forro deixa passar a ventania lamentosa da noite e desse remanso humilde, onde a pobreza se esconde exausta e desalentada, eu te escrevo sem insônias e sem fadigas, para contar-te que ainda estou vivendo para amar e querer a mais nobre das mães. Quereria voltar ao mundo que deixei, para ser novamente teu filho, desejando fazer-me um menino, aprendendo a rezar com o teu espírito santificado nos sofrimentos. A saudade do teu afeto leva-me constantemente a essa Parnaíba das nossas recordações, cujas ruas arenosas, saturadas do vento salitroso do mar, sensibilizam a minha personalidade e, dentro do crepúsculo estrelado da tua velhice cheia de crença e de esperança, vou contigo, em espírito, nos retrospectos prodigiosos da imaginação, aos nossos tempos distantes. Vejo-te com os teus vestidos modestos, em nossa casa de Miritiba, suportando com serenidade e devotamento os caprichos alegres de meu pai. Depois, faço a recapitulação dos teus dias de viuvez dolorosa, junto da máquina de costura e do teu “terço” de orações, sacrificando a mocidade e a saúde pelos filhos, chorando com eles a orfandade que o destino lhes reservara, e, junto da figura gorda e risonha da Midoca, ajoelho-me aos teus pés e repito: - “Meu Senhor Jesus-Cristo, se eu não tiver de ter uma boa sorte, levai-me deste mundo, dando-me uma boa morte.” Muitas vezes o destino te fez crer que partirias antes daqueles que havias nutrido com o beijo das tuas caricias, demandando os mundos ermos e frios da Morte. Mas, partimos e tu ficaste. Ficaste no cadinho doloroso da saudade, prolongando a esperança numa vida melhor no seio imenso da Eternidade. E o culto dos filhos é o consolo suave do teu coração. Acariciando os teus netos, guardas com o mesmo desvelo o meu cajueiro, que aí ficou, como um símbolo plantado no coração da terra parnaibana, e, carinhosamente, colhes das suas castanhas e das suas folhas fartas e verdes, para que as almas boas conservem uma lembrança do teu filho, arrebatado no turbilhão da Dor e da Morte. Ao Mirocles, mamãe, que providenciou quanto ao destino desse irmão que aí deixei, enfeitado de flores e passarinhos, estuante de seiva, na carne moça da terra, pedi velasse pelos teus dias de insulamento e velhice, substituindo-me junto do teu coração. Todos os nossos te estendem as suas mãos bondosas e amigas e é assombrada que, hoje, ouves a minha voz, através das mensagens que tenho para quantos me possam compreender. " Humberto de Campos,"Sensibilizam-me as tuas lágrimas, quando passas os olhos cansados sobre as minhas páginas póstumas e procuro dissipar as dúvidas que torturam o teu coração, combalido nas lutas. Assalta-te o desejo de me encontrares, tocando-me com a generosa ternura de tuas mãos, lamentando as tuas vacilações e os teus escrúpulos, temendo aceitar as verdades espíritas, em detrimento da fé católica, que te vem sustentando nas provações. Mas, não é preciso, mãe, que me procures nas organizações espíritas e, para creres na sobrevivência do teu filho, não é preciso que abandones os princípios da tua fé. Já não há mais tempo para que teu espírito excursione em experiências no caminho vasto das filosofias religiosas. Numa de suas páginas, dizia Coelho Neto que as religiões são como as linguagens. Cada doutrina envia a Deus, a seu modo, o voto de súplica ou de adoração. Muitas mentalidades entregam-se, aí no mundo, aos trabalhos elucidativos da polêmica ou da discussão. Chega, porém, um dia em que o homem acha melhor repousar na fé a que se habituou, nas suas meditações e suas lutas. Esse dia, mamãe, é o que estás vivendo, refugiada no conforto triste das lágrimas e das recordações. Ascendendo às culminâncias do teu Calvário de saudade e angústia, fixas os olhos na celeste expressão do Crucificado e Jesus, que é a providência misericordiosa de todos os desamparados e de todos os tristes, te fala ao coração dos vinhos suaves e doces de Caná, que se metamorfosearam no vinagre amargoso dos martírios, e das palmas verdes de Jerusalém, que se transformaram na pesada coroa de espinhos. A cruz, então, se te afigura mais leve e caminhas. Amigos devotados e carinhosos te enviam de longe o terno consolo dos seus afetos e, prosseguindo no teu culto de amor aos filhos distantes, esperas que o Senhor, com as suas mãos prestigiosas, venha decifrar para os teus olhos os grandes mistérios da Vida. Esperar e sofrer têm sido os dois grandes motivos, em torno dos quais rodopiaram os teus quase setenta e cinco anos de provações, de viuvez e de orfandade. E eu, minha mãe, não estou mais aí para afagar-te as mãos trêmulas e os cabelos brancos que as dores santificaram. Não posso prover-te de pão e nem guardar-te da fúria da tempestade, mas, abraçando o teu Espírito, sou a força que adquires na oração, como se absorvesses um vinho misterioso e divino. Inquirido, certa vez, pelo grande Luiz Gama sobre as necessidades da sua alforria, um jovem escravo observou: - “Não, meu senhor!... a liberdade que me oferece me doeria mais que o ferrete da escravidão, porque minha mãe, cansada e decrépita, ficaria sozinha nos misteres do cativeiro.” Se Deus me perguntasse, mamãe, sobre os imperativos da minha emancipação espiritual, eu teria preferido ficar, não obstante a claridade apagada e triste dos meus olhos e a hipertrofia que me transformava num monstro, para levar-te o meu carinho e a minha afeição, até que pudéssemos partir juntos, desse mundo onde tudo sonhamos para nada alcançar. Mas, se a Morte parte os grilhões frágeis do corpo, é impotente para dissolver as algemas inquebrantáveis do espírito. " Humberto de Campos,"Deixa que o teu coração prossiga, oficiando no altar da saudade e da oração; cântaro divino e santificado. Deus colocará dentro dele o mel abençoado da esperança e da crença, e um dia, no portal ignorado do mundo das Sombras, eu virei, de mãos entrelaçadas com a Midoca, retrocedendo no tempo, para nos transformarmos em tuas crianças bem-amadas. Seremos agasalhados, então, nos teus braços cariciosos, como dois passarinhos minúsculos, ansiosos da doçura quente e suave das asas maternas, e guardaremos as nossas lágrimas nos cofres de Deus, onde elas se cristalizam como as moedas fulgurantes e eternas do erário de todos os infelizes e desafortunados do mundo. Tuas mãos segurarão ainda o “terço” das preces inesquecidas e nos ensinarás, de joelhos, a implorar, de mãos postas, as bênçãos prestigiosas do Céu. E, enquanto os teus lábios sussurrarem de mansinho – “Salve Rainha... mãe de misericórdia...” começaremos juntos a viagem ditosa do Infinito, sob o dossel luminoso das nuvens claras, tênues e alegres do Amor. " Humberto de Campos," Apreciando, em 1932, o “Parnaso de Além-Túmulo” que os poetas desencarnados mandaram ao mundo por intermédio de você, chamei a atenção dos estudiosos para a incógnita que o seu caso apresentava. Os estudiosos, certamente, não apareceram. Deixando, porém, o meu corpo minado por uma hipertrofia renitente, lembrei-me do acontecimento. Julgara eu que os bardos “do outro mundo”, com a sua originalidade estilística, se comprometiam pela eternidade da produção, no falso pressuposto de que se pudessem identificar por outra forma. Encontrando ensejo para me fazer ouvir através de suas mãos, escrevi crônicas póstumas que o Sr. Frederico Figner transcreveu nas colunas do “Correio da Manhã”. Não imaginei que o humilde escritor desencarnado ainda na lembrança de quantos o viram desaparecer. E as minhas palavras provocaram celeuma. Discutiu-se e ainda se discute. Você foi apresentado como hábil fazedor de pastichos e os noticiaristas vieram averiguar o que havia de verdadeiro em torno do seu nome. Colheram informes. Conheceram a honestidade da sua vida simples e as dificuldades dos seus dias de pobre. E, por último, quiseram ver como você escrevia a mensagem dos mortos, qual uma Remington acionada por dedos invisíveis. Tive pena quando soube que iam conduzi-lo a um “test” e recordei-me do primeiro exame a que me sujeitei aí, com o coração batendo forte. Fiz questão de enviar-lhes algumas palavras, como o homem que fala de longe à sua pátria distante, através das ondas de Hertz, sem saber se seus conceitos serão reconhecidos pelos patrícios, levando em conta as deficiências do aparelho receptor e os desequilíbrios atmosféricos. Todavia, bem ou mal, consegui falar alguma coisa. Eu devia essa reparação à doutrina que você sinceramente professa. Esperariam, talvez, que eu falasse sobre os fabulosos canis de Marte, sobre a Natureza de Vênus, descrevendo, como os viajantes de Julio Verne, a orografia da Lua. Julgo, porém, que, por enquanto, me é mais fácil uma discussão sobre o diamagnetismo de Faraday. Admiraram-se, quando enxergaram a sua mão vertiginosa correndo sobre as linhas do papel. A curiosidade jornalística é agora levantada em torno da sua pessoa. É possível que outros acorram para lhe fazer suas visitas. Mas, ouça bem: não me espere como a pitonisa de Endor, aguardando a sombra de Samuel, para fazer predições a Saul sobre as suas atividades guerreiras. Não sei movimentar as trípodes espiritistas e, se procurei falar naquela noite, é que o seu nome estava em jogo. Colaborei, assim, na sua defesa. Mas, agora que os curiosos o procuram na sua ociosidade, busque você, no desinteresse, a melhor arma para " Humberto de Campos,"desarmar os outros. Eu voltarei provavelmente, quando o deixarem em paz na sua amargurada vida. Não desejo escrever maravilhando a ninguém e tenho necessidade de fugir a tudo o que tenho obrigação de esquecer. Fique, pois, com a sua cruz, que é bem pesada, por amor dAquele que acende o lume dos estrelas e o lume da esperança nos corações. A mediunidade posta ao serviço do bem é quase a estrada do Gólgota; mas, a fé transforma em flores as pedras do caminho. Li, certa vez, num conto delicado, que uma mulher, em meio de sofrimentos acerbos, apelara para Deus a fim de que se modificasse a volumosa cruz de sua existência. Como a filha de Cipião, vira nos filhos as jóias preciosas da sua vaidade e do seu amor; mas, como Níobe, vira-os arrebatados no torvelinho da morte, impelidos pela fúria dos deuses. Tudo lhe falhara nas fantasias do amor, do lar e da aventura. - Senhor – exclama ela -, por que me deste uma cruz tão pesada? Arranca dos meus ombros fracos esse insuportável madeiro! Mas, mas nas asas brandas no sono, a sua alma de mulher viúva e órfã foi conduzida a um palácio resplandecente. Um Anjo do Senhor recebeu-a no pórtico, com a sua benção. Uma sala luminosa e imensa lhe foi designada. Toda ela se enchia de cruzes. Cruzes de todos os feitios. - Aqui – disse-lhe uma voz suave – se guardam todas as cruzes que as almas encarnadas carregam na face triste do mundo. Cada um desses madeiros traz o nome do seu possuidor. Atendendo, porem, à tua súplica, ordena Deus que escolhas aqui uma cruz menos pesada do que a tua. A mulher preferiu, conscientemente, aquela cujo peso competia com suas possibilidades, escolhendo-as entre todas. Mas, apresentando ao Mensageiro Divino a de sua preferência, verificou que na cruz escolhida se encontrava esculpido o seu próprio nome, reconhecendo a sua impertinência e rebeldia. - “Vai – disse-lhe o Anjo – com a tua cruz e não descreias! Deus, na sua misericordiosa justiça, não poderia macerar os teus ombros com um peso superior às tuas forças.” Não desanime, portanto, na faina em que se encontra, carregando esse fardo penoso que todos os incompreendidos já carregaram. E agora que os bisbilhoteiros o procuram, trago-lhe o meu adeus, sem prometer voltar breve. Que o Senhor derrame sobre você a sua benção, que conforta todos os infortunados e todos os tristes. " Humberto de Campos," Começa assim, no volume de suas “Memórias” [1], o capitulo 32, intitulado: “ Um amigo de infância”: No dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena cada dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda ela cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha-de-caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser arvore. Dobrado sobre si mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas úmidas e avermelhadas, as quais eram como duas jóias flexíveis que tentassem fugir ao seu cofre. - Mamãe, olhe o que eu achei! – grito, contente, sustendo na concha das mãos curtas e ásperas o monstrengo que ainda sonhava com o Sol e com a Vida. - Planta, meu filho... Vai plantar... Planta-a no fundo do quintal, longe da cerca... Precipito-me, feliz, com a minha castanha viva. A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolos e telhas. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas. Todas as manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablução alegre. Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde e móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou. Pois bem, esse recanto do terreno da casa em que ele, na quadra infantil, residiu longos anos, nessa Parnaíba tão decantada em seus escritos e, particularmente, no volume que vimos de citar, foi, após a sua desencarnação, transformado num jardim publico, a que deram a denominação de – Parque “Humberto de Campos”. Ocioso dizer que o que inspirou a transformação daquele fundo de quintal em parque, com o nome do humorista notável e talentoso cronista nascido no Maranhão, foi a circunstancia de ostentar-se ali o belo e frondoso cajueiro por ele plantado, quando ainda na primeira infância, e ao qual consagrou em suas “Memórias”, nada menos de sete paginas, donde se evola forte o perfume da saudade e das recordações doces, que tantas emoções despertam nas almas sensíveis, mormente em dias de sofrimento e amargor, se já começaram a descer sobre a criatura as sombras merencórias do ocaso da existência. Nem só, entretanto, no mencionado capitulo das suas “ Memórias”, fala Humberto da hoje pujante arvore que as suas mãos de criança viva e travessa plantaram um dia, em semente, " Humberto de Campos,"lá perto da cerca do amplo terreiro em que ele multiplicava, despreocupado, os brincos da meninice, na sua inolvidável Parnaíba. Além de varias outras referencias ao cajueiro querido, na extensa obra literária que deixou como escritor humano, ainda agora, como escritor do mundo invisível, na penúltima das mensagens que este volume contém – “Carta a minha Mãe” – alude à arvore amada, nestes termos tocantes, como o são, alias, todos os dessa comovente pagina que o Espírito traçou, da outra margem da vida, acionando o lápis de Francisco Candido Xavier: Ao Mirocles, mamãe, que providenciou quanto ao destino desse irmão que aí deixei, enfeitado de flores e passarinhos, estuante de seiva, na carne moça da terra... Exprime ele assim, sem dúvida, quão grata foi, ao seu coração amorável, a idéia de realçarem a beleza do seu “irmão” frondoso, pondo-o em destaque na moldura de um parque singelo, mas donairoso, onde, “como um símbolo plantado no coração da terra parnaibana”, segundo as suas mesmas expressões em “Carta a minha mãe”, aquele, como que orgulhoso do irmão que ali o deixou, se ergue cheio de majestade, a perpetuar, “para as almas boas”, a lembrança de quem, “arrebatado no turbilhão da dor e da morte”, vive agora feliz. Feliz, sim, porque liberto da prisão da carne, e feliz também porque preso pelos grilhões do afeto transbordante de uma alma de escol, a da veneranda velhinha que aguarda, paciente e resignada, depois de muito sofrer, também lhe soe a hora da libertação, para juntar-se de novo ao filho idolatrado, nos páramos da verdadeira vida. Assim sendo, gratíssimo igualmente nos é a nós associar-nos à homenagem que a bem inspirada e piedosa iniciativa da criação do Parque “Humberto de Campos” envolve, sem, contudo, a restringirmos ao homem que, pelo fulgor da sua inteligência, se impôs à admiração e à estima dos seus contemporâneos e dos pósteros, tanto quanto pela soma de seus dotes morais. Antes, rendemo-la, de preferência, ao seu Espírito, pela magnitude do esforço e pela caridosa solicitude com que procura, desde que se romperam os véus que lhe impediam a visão da verdade espiritual, demonstrar, aos homens incrédulos, não só a realidade positiva da sobrevivência da alma, como a da sua existência no Além, qual a revelou e continua a patentear o Espiritismo, esse Espiritismo que na Terra pouco lhe atraiu a atenção. E é tomado de emoção viva e de legítimo encantamento, ante a grandiosidade desse esforço a que ele se lançou com prodigioso devotamento e que lhe conservará, pelos tempos em fora, o nome e os feitos, mais do que todas as obras que haja produzido e pudesse produzir como homem, como Espírito encarnado, por muito geniais fosse elas, que nos juntamos aos que lhe exalçaram, para os dias atuais, o nome e a lembrança, fundando o parque onde frondeia, opulento da seiva que lhe fornece “a carne moça da terra”, o seu inesquecível cajueiro. Fazemo-la da maneira que se nos apresenta objetivamente possível neste instante em que, reunidas em volume, entregamos à deleitação dos estudiosos e aos amantes das belas-letras as suas Crônicas de Além-Túmulo: reproduzindo aqui, como um símbolo, conforme ele próprio o qualificou, símbolo certamente de grandeza e elevação espiritual, pois que instituído “para as almas boas”, a imagem da árvore imponente, numa fotografia do parque onde ela altaneira se levanta, fotografia essa que a sua carinhosa genitora ofertou a um " Humberto de Campos,"excelente companheiro nosso, quando, em janeiro do ano corrente, a viajar por todo o Norte, logrou visitá-la, graças a gentileza de um amigo comum. Deparando-se-lhe, no visitante, um admirador entusiasta do seu saudoso Humberto, em cujo Espírito conta ele bondoso amigo invisível, a respeitável anciã não se contentou com o que presentear a reprodução fotográfica de uma solenidade que lhe há de ter feito derramar não poucas lágrimas de comoção e saudade: escreveu-lhe nas costas uma dedicatória bastante eloqüente na sua simplicidade. Esta circunstancia torna para nós a sua transcrição aqui mais que um dever – um ato de culto reverente a esse duplo amor, materno-filial, que de longe nos evos traz enlaçadas duas almas lidimamente irmãs e fundidas, por ele e para sempre, no amor infinito de Deus. Diz assim a dedicatória: Ao Sr. Jose Maria Macedo Santos ofereço, como lembrança da honrosa visita que me fez, a fotografia do parque “Humberto de Campos”, no dia de sua inauguração. Com sincera gratidão da humilde criada – Anna C. Veras – Parnaíba. 10 de janeiro de 1937. Excelsior! Dizemos, ao encerrar estas linhas pobres de uma homenagem que só não é desprezível porque feita de coração aberto, dizendo-o em saudação fraternal, e à maneira de sincero reconhecimento, ao Espírito amigo que foi entre nós – HUMBERTO DE CAMPOS Caro Amigo Se você gostou deste livro e tem oportunidade de adquiri-lo, faça-o, pois os direitos autorais são doados a instituições de caridade. Muita Paz " Humberto de Campos," I Viagens ao Espaço Falas, entusiasticamente, em habitantes de outros mundos, como se não estivéssemos habituados à experiência espírita. Ante a evolução dos projéteis balísticos, re feres -te às criaturas de Marte e Júpiter, Vênus e Saturno, com o êxtase de uma criança. E pensas em alterações e reviravoltas milagrosas, como se a tela moral do orbe pudesse modificar -se de momento. Lembra -te, porém, de que a vida estua, vitoriosa, em tod a à p arte, e de que a própria gota d’água é um pequenino mundo, povoado por miríades de seres dos quais o microscópio nos proporciona ampla notícia. -o- Cada esfera quanto cada paisagem é habitada a seu modo. E todos nós, amigos desencarnados, formulamos v otos para que o homem, nosso irmão, continue devassando pacificamente o espaço, surpreendendo novas características de vida no reino cósmico. Nota, entretanto, que há mais de um século os homens que “morreram” chamam, debalde, a atenção dos homens que “vão morrer”. E gritam que a vida continua para lá do sepulcro, que a matéria se gradua em outros estados diferentes daquele pelo qual é conhecida na Terra. -o- Convidados à verificação da verdade, sábios eminentes como Crookes, Myers, Morselli, Ochorowiez, Ak sakof, Lodge, empenham a própria autoridade, trazendo a lume observações e declarações indiscutíveis. Médiuns consagrados ao bem colaboram na difusão dos novos conhecimentos. Home, Eusápia, Esperance, Piper, sem nos reportarmos às irmãs Fox, submetem -se a exigências constantes. Os espíritos são vistos, ouvidos, apalpados, fotografados e identificados, mas, porque os medianeiros permanecem naturalmente unidos à mensagem, como o violino ao musicista, o notável " Humberto de Campos," pesquisador constrói com tal sutileza a sua filos ofia da dúvida, que a Doutrina Espírita estaria transfigurada simplesmente em vasto laboratório de intermináveis experimentos, não fosse a legião de bravos que lhe sustentam o estandarte de amor e luz, como autênticos vanguardeiros do progresso, junto da H umanidade. -o- Ainda assim, apesar de todos os empeços, avança a evidência do Mundo Espiritual. Nos países mais cultos do Globo os fenômenos do Evangelho vão sendo revividos, imprimindo conseqüências morais por toda parte. Os assuntos da sobrevivência são reexaminados. Outros médiuns chegam à sementeira das grandes revelações e o movimento prossegue, anunciando a continuação da vida no Além. -o- O problema, contudo, é tão fascinante que até mesmo os espíritos, privilegiados do entendimento, manuseiam -lhe os valores como quem lhe desconhece a grandeza.Permanecem na realidade fulgurante, à maneira do homem comum à frente do Sol. À força de recolher -lhe, gratuitamente, a vitalidade e o calor, se esquece de agradecer -lhe a presença. Não precisa perguntar -nos, as sim com esse ar de encantamento, se pode habilitar -se a uma excursão até Vênus ou Marte, em época próxima. Queiras ou não, farás, como nós já o fizemos, uma viagem muito pais importante. Mesmo que bebas soros de longevidade, com geléia real de contrapeso, conforme as usanças do século, apresentarás as tuas despedidas no momento adequado. -o- Creias ou não creias, conhecerás cidades prodigiosas e ninhos abismais, superlotados de gente que sente e pensa como tu. Não precisarás, para isso, tripular um foguete em velocidade. Virás mesmo na barca do velho Caronte. Nem alarme, nem propaganda. Para os homens, nossos irmãos na Terra, estarás em silencia. -o- " Humberto de Campos," Mas teus olhos verdadeiros mostrar -se-ão percucientes por trás da fronte marmórea e a tua voz se levantará, r enovada, por cima da boca hirta. Tão logo comece a romagem, dirão no mundo que estás morto. Pensa nisso para acostumar -te, desde agora, às dificuldades com que te haverás, depois, para seres recebido entre os homens. -o- De qualquer modo, porém, encontrará s na Doutrina Espírita todos os recursos necessários à grande preparação. Se respeitada, ela te será precioso passaporte, laboriosamente adquirido, para que te dirijas, tranqüilo, aos domínios maravilhosos que de sejas conhecer. E essa circunstâ ncia; no cas o, é a mais expressiva de todas, porque, se podes chegar hoje, em carne e osso, a planetas diversos do nosso, a fim de observares o que é dos outros para morreres em seguida, amanhã desembarcarás nos planos da Vida Maior, em espírito e verdade, pêra recebe res o que te pertence. " Humberto de Campos," II O Cultivador Infiel - Não me conformo – repetia irritado, o Dr. Novais Magalhães – o Espiritismo popular é vespeiro de confusão. Onde já se viu tamanha bagagem de embustes? É verdadeira escola de louc os e, freqüentemente, não se compreende tão elevado número de débeis mentais. - Mas, doutor – ponderava o Matos Lessa – há observações interessantes que cumpre não desprezar. Nem tudo é caso grosseiro ou indigno de análise. Claro que no intercâ mbio com o invisível há que destacar deficiências mediúnicas. Se alguém se incumbe de um recado nosso, logicamente misturará suas expressões individuais no esforço de transmissão necessária.É o caso do médium. Se um político ou um cientista, distantes do lar ou do tr abalho, apenas encontrassem humilde carregador capacitado à transmissão de uma mensagem à família ou aos colegas, naturalmente não sacrificariam o objetivo essencial ao processo exterior do serviço. É razoável que o portador satisfaça ao encargo, todavia, emprestando à colaboração características que lhe sejam peculiares. O dever, entretanto, estará cumprido, os detalhes, por certo, na maioria das vezes, deixarão a desejar. -o- - Não concordo, porém – reafirma o doutor – A observação justa não dispensa o método rigoroso. A meu ver, a sobrevivência está muito longe de ser provada, através das supostas comunicações com o Além. Temos somente apreciável acervo de fenômenos da própria subconsciência. As mensagens nunca ultrapassam a esfera de cultura do médium, os efeitos físicos são perfeitamente explicáveis pelo " Humberto de Campos," conhecimento do magnetismo em nossa época. Nada observo que transcenda o paralelismo psico -fisiólogico da ciência oficial. -o- Continuava a discussão acalorada, cheia de persuasão por parte do Lessa e de argumentos pesados do rigoroso investigador. O Dr. Magalhães, entretanto, jamais cedia terreno. Sua mente de pesquisador vivia repleta de conceitos clássicos a derramarem -se-lhe da boca em terminologia científica. Não apenas Matos Lessa vivia a duelar v erbalmente com ele. Amigos vários tentavam inutilmente renovar -lhe as interpretações. Novais era, porém, irredutível. Exibia chaves da ciência comum para todos os casos da fenomenologia. De qualquer reunião respeitável a que comparecia, in stado pelos compa nheiros, retirava -se mostrando sorriso irônico e invariável ao canto dos lábios. -o- - Não observou aquela mensagem dirigida à senhora Castanheira? – Indagava o Morais, velho amigo dele. O médium desconhecia as particularidades da comunicação. Notou os no mes familiares? E a descrição da moléstia do filho? Como interpretará você o fenômeno, sem o concurso do Espiritismo? Sorria o observador renitente, acentuando: - Simples transmissão telepática. Nada mais que isto. A ansiedade da família Castanheira envol veu a organização mediúnica e produziram -se as páginas de conselho. Ora, ora, o cérebro humano é aparelho que mal conhecemos... - Mas, meu amigo – atalhava o outro - semelhante conclusão não satisfaz. Além disto, outros casos existem mais surpreendentes. E Morais desfiava longo rosário de narrações, enquanto o doutor Magalhães de desfazia em comentários sobre automatismo, mecanicismo, subconsciência, patologia, telepatia, criptomnésia, " Humberto de Campos," telec inesia, psicogênese e outras teses respeitáveis do metapsiquismo contemporâneo. -o- Ao fim da longa conversação, o investigador rematava: - Afinal de contas, não me farei ao mar da ilusão. Quero fatos tangíveis, expressões palpáveis. O Espiritismo popular com os seus doutrinadores ignorantes e médiuns embusteiros não atr ai estudiosos de valor intelectual. Sou honesto, meu caro, e o homem honesto deve ser verdadeiro. - Não somos menos leais – aduzia o companheiro serenamente – e não desrespeitamos os postulados científicos. No entanto – e acentuava com inflexão firme – será admissível que a simples enunciação de palavras complicadas resolva problemas grandiosos da existência humana? A teoria não realiza coisa alguma por si só. Você, meu caro Magalhães, pode ser excelente educador, na expressão verbal, mas não é irmão. - Que pretendes dizer? – perguntou Novais agastado. - O educador explica, retalha, demonstra friamente e, por vezes, não vai além da lição teórica. O irmão é companheiro de luta, partilha as dores e alegrias do trabalho, compreende e consola. - Alto lá! Não co nfundamos ciência e fé religiosa, ra ciocínio e sentimentalidade. A lógica não toma apartamentos ao coração. Sigamos pelo método. Não tolero as fars as mediúnicas, com as velhas exortações descabidas e indigestas. E toda argumentação tornava -se inútil. Por mais que se falasse de vôos sublimes à Espiritualidade Superior, Novais fixava olhos e pensamentos no chão duro das interpretações sem esperança. Ninguém lhe discutia a honestidade, nem lhe negava inteligência. Mas, a sua atitude mental era sempre irritant e. Onde o amor dos espíritos benevolentes e sábios semeava consolações e energia novas, atirava ele dúvidas e desencantos. " Humberto de Campos," -o- Semelhava -se ao jardineiro infiel que, ao em vez de auxiliar a planta e protegê -la, arranca -a da base vital, no intuito de contar -lhe as folhas, observar -lhe a seiva e analisar -lhe as raízes, muito antes da promessa de fruto. Mas, como toda criatura terrestre, o doutor Novais Magalhães também entregou o corpo às exigências da morte. Com grande surpresa, porém, verificou que continua va vivo como dantes. Grande ansiedade por esclarecimentos particulares, enorme sede espiritual de revelação; entretanto, a solidão era absoluta. Ninguém para atender -lhe a fome do coração. Novais começou a caminhar a esmo, ponderando agora as barreiras se nsoriais. -o- Ah! Se encontrasse um médium! Alguém que lhe pudesse levar pequeno recado à família, humilde notícias aos colegas! Ainda que esse médium fosse de vulgar instrução, aproveitar -lhe-ia o concurso sem hesitar... E se algum espírito amigo viesse encaminhá -lo a serviços novos? No entanto, o Dr. Magalhães não podia esperar colheitas onde nada havia semeado, no capítulo da fraternidade e da consolação. O que mais o assombrava, porém, eram as sendas por onde se dirigia ansioso. Apenas divisava árvores mortas, ervas ressequidas, arbustos quebrados e, de quando em quando, a voz de alguém se mantinha invisível lhe gritava,ironicamente, aos ouvidos: “Mau jardineiro! Mau jardineiro! Cultivador infiel!...” -o- Novais, que começara indagando, vivia, agora entr e a súplica e a lágrima. Após muitos anos de dor, surgiu, enfim, alguém, na paisagem desolada. Tratava -se também dum jardineiro. O antigo observador " Humberto de Campos," fitou -o surpreso. Era um velhinho de olhar muito doce, cabeça aureolada de fios de neve, empunhando instrum entos agrícolas. Magalhães aproximou -se e lhe pediu socorro, angustiadamente. Face às amorosas interpelações do velho amigo, relatou a própria história, narrando -lhe as indagações do passado e as desilusões a que fora conduzido, afirmando sua honestidade e dedicação extrema ao método. O ancião sorriu generoso e falou: - Quando na Terra, conheceu a formiga? - Sim... – respondeu Novais, estanhando a pergunta. - Pois é, meu amigo, o seu caso é semelhante ao dela. A formiga é prodígio de inteligência e orga nização. Edifica o próprio lar, trabalha metodicamente, preserva com rigor o patrimônio que a natureza lhe confere. É minuciosa, mas é também um assombro de operosidade e de método; mas... nunca olha para o alto e, enquanto vive no campo, é sempre a mesma formiga... -o- Magalhães compreendeu a alusão e chorou com amargura; mas, o amorável mensageiro tomou -lhe a des tra e murmurou com brandura: - Venha comigo. Aprenderá doravante a zelar as plantas de Deus. Compreenderá agora que, se a investigação é justa, a verdade palpita acima dela, pedindo compreensão para as bênçãos da vida. Esqueça a sombra e busquemos a luz. Se a ciê ncia é necessária para o aprendizado de caminhos da Terra, é preciso não esquecer que o amor traça os caminhos o Céu. " Humberto de Campos," III Petições Diante da Benfeitora desencarnada, que atendia por intermédio do médium, em plena reunião de atividades espirituais, exclamou à senhora, súplice: - Irmã Corina, sou Angélica de Seixas... Ainda não sou espírita, mas venho até aqui em grandes ne cessidades. Ampare -me, por amor de Deus!... - Diga, filha – respondeu a entidade benevolente. A visitante prosseguiu, quase em lágrimas: - Tanto e tamanhos são os meus problemas, que fiz uma lista de minhas petições. Posso lê -la? - Como não? E dona Angél ica, desdobrando larga folha de papel, passou a falar, atenta às notas escritas. - Eis o que desejo: Cura de minha velha nevralgia. Remédio para meus olhos. Liquidação da angústia que me persegue. Esquecimento da tristeza e do tédio que me acompanham. Medicação para a insônia. Sossego íntimo. Dizem que sofro de obsessão e quero livrar -me. Desaparecimento dos vultos e das vozes que me atormentam. Recuperação do meu esposo, atacado de hepatite. Restabelecimento do meu filho Damião, internado em repouso. Casa mento feliz para minha filha Ariléia. " Humberto de Campos," Melhoria do temperamento de meu filho Avelino, que já consumiu dois automóveis, em menos de dois meses. Solução dos papeis relativos ao recebimento da herança que nos foi legada por meu tio João de Seixas, que morreu n o ano passado. Calma e revigoramento para meu futuro genro, que anda extremamente nervoso desde a noite em que se embriagou, quebrando o braço numa queda de lambreta. Bênçãos para a nossa fazenda, onde o gado, há muito tempo, está doente e mofino, sem que o veterinário descubra a causa. Paciência e harmonia para as minhas quatro empregadas, que vivem reclamando contra mim. Mudança pacífica do vizinho da esquerda, cuja casa é uma fábrica de barulhos constante. Compradores corretos para os seis apartamentos q ue acabamos de construir. Concessão de cinco telefones. Encontro do meu anel de brilhantes, perdido há dois meses. Despacho favorável num processo de despejo que movi contra dois inquilinos relapsos. Dona Angélica terminou em pranto, mas a venerada Corina, compreendendo -lhe o desajuste psíquico, abraçou -a com afeto e ponderou gentil: - Sim, minha irmã, confiemos na Divina Providência. Examinaremos todas as solicitações formuladas; no entanto, é preciso começar pelo tratamento adequado de sua própria saúde . Rogo -lhe apenas vir à nossa instituição durante meia hora por semana, a fim de que lhe seja administrado o tratamento magnético necessário, em nossos minutos consagrados à prece. -o- " Humberto de Campos," Ante a pausa que se fizera natural, tornou a Benfeitora com a ternura d e quem afaga um doente: - Poderemos aguardá -la, amanhã? Dona Angélica, entretanto, abanou a cabeça, em sinal negativo, e alegou a multiplicidade dos compromissos que a reteriam no lar. Tropeços, dificuldades, trabalhos, obrigações... A abnegada interlocu tora, porém, observou, prestimosa: - Bem, a irmã não pode vir ao nosso encontro; contudo, não nos será difícil prestar -lhe a devida cooperação em sua própria casa. Bastará que se mantenha em recolhimento, por vinte minutos, de sete em sete dias, no horár io e local a combinar. Logo após, com assentimento da interessada, marcou -se a primeira etapa socorrista para a noite seguinte, e lá fomos, alguns companheiros em equipe de assistência, para a tarefa a realizar -se; no entanto, a irmã Corina esperou, debald e, no aposento indicado aos breves momentos de silêncio e oração Dona Angélica de Seixas não conseguiu atender -nos, por estar mentalmente ocupada, em meio de alegres amigas, numa longa e agitada sessão de pif -paf. " Humberto de Campos," IV Duas Semanas Quando penetramos no aposento íntimo do abastado comerciante João de Toledo, estavam à mostra as folhas do diário em que lançara, do próprio punho, as resumidas anotações das próprias atividades nas duas últimas semanas daquele mês de abril: . Sonhei estar abraçando meu pai, morto há vinte anos. Não era precisamente um sonho. Era uma perfeita visão, dentro do quarto, mas compreendo a elucidação, pois comi lombo de porco à ceia, com boa rega de vinho verde. Ao almoço, contei o sucedid o a minha mulher que acredita numa comunicação espiritual. Ora, ora! Crendices! Etelvina, apesar de boa esposa, é mulher de cabeça fraca. Na parte da tarde, consegui armazenar mais duzentos sacos de arroz, completando o total de mil e quinhentos. , chorando. Disse haver sonhado também com meu pai, a rogar -me serviço à beneficência. Dizia que o velho chegara a indicar o cofre, repetindo o meu nome em voz ,alta. Baboseiras de minha mulher. Ela não bebe e come pouco, mas é impres sionável. Bastou que eu falasse de sonho à mesa para que igualmente se iludisse, a respeito de comunicações. Consegui adquirir mais trezentos sacos de feijão imunizado. . Declarou ter visto meu pai morto (oh! estupidez h umana!) e pediu em levá -la a um Centro Espírita. Neguei. Se as cousas continuarem dessa forma, devo levá -la a um psiquiatra. Dei um pulo a Caxias e obtive a promessa de mais centro e oitenta sacos de arroz. Ótimo preço. " Humberto de Campos," ão de pessoas religio sas veio hoje a minha casa insinuando a concessão de um dos meus lotes na cidade para o levantamento de uma casa destinada ao amparo de crianças vadias. Achei muita graça. Se querem posses que vão trabalhar. Virei -me quanto pude e comprei mais duzentos e v inte sacos de arroz, somando o total de mil e novecentos nos meus quatro galpões. Dentro de um a dois meses, a alta será compensadora. Pretendo adquirir mais imóveis. ói, articulando com amigos a compra de quinhentos sacos de arro z paulista, do melhor. Margem excelente. O artigo chegará em caminhões. . Disse ter visto meu pai a recomendar -me auxílio para as crianças necessitadas. Não compreendo. Meu pai morreu há muito tempo. Minha mulher quer ir a um Centro Espírita. Que vá sozinha. Não creio em bobagem. Ouvi vários atacadistas. O arroz subirá assustadoramente, depois da safra. ! Etelvina veio do Centro Espírita com um papelucho escrito, dizendo ser comunicação de meu pai. A assinatura é a do velho. Pede para que eu assente a cabeça, a fim de cultivar a saúde. Fala em caridade, repouso, meditação! Ora essa! Sou um homem conhecido. Esses espíritas devem ser grandes velhacos. Proibi Etelvina de qualquer novo entendimento com esses mandriões . Amanhã, imitarão a letra de meu pai para arrancar -me o dinheiro. Tudo isso deve ser chantagem religiosa. Mensagem! O conto da mensagem, isso é o que é. Não sou tão lorpa. Recebemos quatrocentos sacos de arroz paulista. Verdadeira pechincha. Tudo indica b ons lucros. ão. Estoque excelente. Vantagens imediatas. " Humberto de Campos," , declarando estar vendo meu pai constantemente. Isso é de enlouquecer. Os negócios me tomam tempo, sem que eu possa co nduzi -la a tratamento. Os empregados querem aumento. Era o que faltava. Não dou um vintém. Rua para quem reclamar. Comprei mais seiscentos sacos de arroz brunido para saída breve. Espero cinco milhões em maio próximo. . Acompanhei a descarga pessoalmente. Suei como estivador. Lucro certo. írita com dez crianças veio procurar -me no armazém com uma lista de auxílio. Não assinei. Vi tudo. Etelvina no Centro atraiu a exploração. A senho ra acabou solicitando um saco de arroz, mas aconselhei -a a levar os meninos para a Baixada e plantar. Caridade é manto de vagabundos. Comprei mais oitocentos sacos de feijão de Minas. , dia a dia. Contei ao meu gerente o que se passa e ele me falou que é mediunidade. Até ele! Não sei se um homem de bem, falando nisso, dá para rir ou pensar. Consegui mais quinhentos sacos de arroz. ão. A praça começa os primeiros sinais de alta. ções de meu pai e mandei que calasse a boca. Não quero comunicações, não quero notícia de mortos. Vou interná -la amanhã numa clínica de repouso, em Santa Tereza. Quero sossego. Meus representantes estão autorizados a começar as ven das depois de amanhã. Estaremos até a noite nos armazéns, recolhendo novas remessas do arroz que chegará de São Paulo. Uma frota de quarenta caminhões. Até vinte de maio próximo, espero o lucro de cinco a seis milhões para começar, em base mínima. " Humberto de Campos," Estas er am as últimas notas do abastado negociante Pedro João de Toledo quando lhe vimos enfim no lar o corpo maduro e hirto, que tombara repentinamente na rua, depois de algumas horas em trânsito agitado para averiguações no necrotério. " Humberto de Campos," V Psicografia Assevera você que o médium, a serviço do livro no Espiritismo, deve ser analfabeto, para que o fenômeno da comunicação se mantenha insofismável. Isso, porém, meu cão, não toa com os imperativos da lógica. Exigir um atestado de ignorância aos medianeiros incumbidos de veicular à palavra dos instrutores desencarnados, é o mesmo que reclamar obra -prima de imprensa a quem não possua o mais leve conhecimento do caixotim tipográfico. É claro que criaturas admiráveis podem realizar prodígios de beneficência, sem o concurso das letras. Sublimes tarefas da natureza são executadas sem necessidade de informação cultural. -o- A semente de que se faz o pão e a maternidade em que o lar se baseia prescindem de instrução da inteligência, cont udo, os serviços que lhes são conseqüentes, reclamam técnica e condução. Sem a agronomia que aperfeiçoa, a gleba estaria enquistada na insipiência, e sem a escola que honorifica o templo doméstico, a dignidade feminina acomodar -se-ia ao nível dos brutos. Não podemos prescrever princípios eternos como sejam afinidade e seqüência nos processos da vida. Quem aprende a manejar o buril, por vontade própria, com um estatuário, naturalmente acabará escultor, tanto quanto quem se afeiçoa ao ladrão, admirando -lhe as aventuras, decerto, com mais segurança, se fará competente na arte do furto. Problema de inclinação e de companhia. " Humberto de Campos," Se determinado médium dedica bastante amor aos misteres psicográficos, oferecendo -lhe tempo e carinho, indubitavelmente merecerá atenção do s amigos desencarnados que se valem do lápis no auxílio aos semelhantes, qual o aluno aplicado À frente de professores conscientes e justos. E, estabelecida à comunhão, o serviço progredirá na medida em que se desdobre a consagração do intermediário ao pro pósito de aprender e servir. -o- Isso é mais que natural. O trato de terra que suporte a presença do adubo e que se faça dócil À passagem do agente úmido é sempre aquele que mais produz, conquistando as mãos e s olhos do lavrador. -o- Médium que se mostre constante na disciplina a que se revele submisso aos ditames construtivos da Espiritualidade obterá, inegavelmente, o amparo dos companheiros desencarnados que buscam na caridade e na cultura o caminho da própria renovação. Há médicos notáveis, desenleados do carro físico, aproveitando operários humildes da fraternidade humana para o socorro aos doentes e cientistas ilustres que, ausentes do corpo carnal, não desdenham o concurso de apagados servidores da fé para a difusão do conhecimento nobre, no intuito de sublimarem, eles mesmos, o próprio coração. -o- E quanto mais se devotam os medianeiros à bondade e à instrução, mais se lhes eleva o grau evolutivo no campo da alma. Indiscutivelmente, na falta de pessoas alfabetizadas, os Benfeitores da Vida Superior não menosprezam os amigos privados da escola e, através deles, transmitem recados e ensinamentos que exprimem esperança e consolo. " Humberto de Campos," Aliás, em circunstâncias propícias, utilizam -se até de animais para as tarefas que lhes digam respeito. -o- Na Bíblia, temos o caso da jumenta de Balaão, cujas forças foram manipuladas por um Mensageiro Divino, a fim de que o fenômeno da voz direta alertasse o filho de Beor, no desempenho da missão que lhe fora cometida e, na atualidade há algum tempo, era possível observar o no sso prestimoso Canário, o burro sábia, cuja pata graciosa, manobrada por jovem estudante desencarnada, conseguia fornecer respostas interessantes a perguntas diversas. -o- Ainda assim, os muares a que nos referimos não conseguiram abra mediúnica de maior v ulto. Faltava -lhes, pelo menos, um curso primário de letras humanas para o avanço preciso. Enfim, meu amigo, estude a questão em seu próprio gabinete. Lembre -se de que a carta primorosa foi naturalmente ditada por sua boca à datilógrafa que lhe grafou os c onceitos. Se ela não fosse quem é – colaboradora exímia do seu trabalho de homem consagrado ao pensamento – você com certeza não conseguiria expandir -se, no plano das relações e das idéias. Você precisa dela, tão instruída e atenciosa, para instrumento de suas realizações, como nós outros, os espíritos desencarnados, não prescindimos de bons medianeiros para o serviço que nos compete. Como vê, nossos irmãos ainda analfabetos poderão, muitas vezes, efetuar glorioso ministério de amor e humildade, do qual nos achamos todos distantes em nossa deficitária posição na virtude, mas, em matéria de psicografia, por enquanto, não podemos dispensar s médiuns que saibam ler e escrever. " Humberto de Campos," VI Apreciando os Satélites Indaga você como apreciam os espíritos desenca rnados a proeza da ciência humana enviando ao espaço os primeiros satélites artificiais e só nos cabe responder -lhe que nós, os estudiosos, desenfaixados da teia física, achamo -nos ao lado da iniciativa, assim como larga torcida de futebol, aguardando o êx ito do nosso time terrestre. Sem a preocupação do observador chumbado ao solo, de lente em punho, vimo -los também deslocando -se no céu, pequeninos fantasmas encerrando aparelhos e pilhas que recolhendo informações da imensidade e transmitindo -as com a leal dade possível, simbolizam por si as preciosas sementes das grandes astronaves imaginadas agora para as gerações do futuro. -o- Aquecendo -se bruscamente ao contato dos raios solares, quando de passagem sobre a face iluminada do globo, e resfriando -se, de sú bito, ao atravessarem a face noturna do orbe, endereçam aos homens valiosa contribuição ao estudo da ionosfera, da radiação corpuscular do Sol, das torrentes de forças cósmicas e dos campos eletrostáticos em zonas superiores da atmosfera, sem nos referirmo s às observações positivas quanto ao comportamento das ondas de rádio e quanto à importância das correntes magnéticas circulantes que envolvem o corpo ciclópico do Planeta. -o- Que essas máquinas primorosas constituem os primeiros passos do homem físico pa ra a conquista do espaço cósmico, não duvidamos de leve. " Humberto de Campos," Dominado o problema do combustível para a criação de motores que ainda não existem na Terra, o homem poderá realmente concretizar as idéias do radiotelecomando para foguetes interplanetários que o in duzirão às mais arrojadas pesquisas. -o- Desdobrar -se-lhes-ão aos olhos maravilhados caminhos que nunca pode fantasiar e a generosa moradia em que estamos residindo há tantos séculos, com seus continentes e mares, cidades e florestas estará reduzida a sing elas proporções, ante os vôos imensos e sonhos astronômicos que tomará, de assalto, a mente do porvir. Entretanto, ao lado das grandes aspirações da ciência moderna, que incluem viagens a Vênus e Marte tanto quanto a formação de bases na Lua, com escalas p elas ilhas volantes a serem construídas no firmamento, encontramos questões morais estarrecedoras. É que, junto à física nuclear para fins pacíficos, suscetíveis de nortear a civilização para mais altos níveis de segurança e progresso, vemos a bomba atômic a produzida em massa para golpear essa mesma civilização culta e nobre e, ao pé dos foguetes de propulsão que transportam os satélites de sondagem, situando -os a grande altura, assinalamos a presença do foguete balístico intercontinental, com capacidade de arrazamento jamais prevista. -o- Desse modo, admiramos a grande empresa e formulamos votos sinceros para que os pioneiros da Astronáutica prossigam destemerosos, na gradativa superação do estágio humano, em plena conquista dos valores universais, associan do, porém, aplauso e receio, alegria e dor, ante a estreiteza do sentimento que baseia o arrojo do raciocínio. -o- Sem respeito à vida do próximo, o homem ameaça a estabilidade da própria vida e qualquer conflito entre as nações da atualidade pode " Humberto de Campos," trazer a o campo bélico a exibição de engenhos mortíferos capazes de envenenar o ambiente do mundo ou de alterar o leito das grandes águas, paralisando ou destruindo a construção que ultrapassa milênios numerosos de esforço da inteligência. -o- Ainda assim, não som os clientes do derrotismo. Prossigamos confiantes, trabalhando e aprendendo, na esperança de avançar nos domínios do Cosmo, guardando a certeza de que a Terra é uma casa de Deus concedida a nós, por empréstimo, a fim de que nela façamos o curso evolutivo q ue nos fala de perto, à luz da imortalidade, e se os homens nossos irmãos lhe complicarem os fundamentos, insultando -lhe os alicerces, resta -nos o supremo consolo de que a Misericórdia Divina, paciente e imutável, permitir -nos-á, como é certo, começar tudo de novo. (Página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em reunião da noite de Novembro ). " Humberto de Campos," VII De Pé os Mortos Senhor! O Brasil é o coração do Mundo e o coração nunca dorme. É a Pátria do Evangelho, é a Terra espi ritual do testemunho. Confiaste -lhe a Árvore de Teu Infinito Amor e no País da Fraternidade estenderam -se-lhe os ramos verdes e fartos, acolhendo as criaturas. Abençoaste os que choram. O Brasil incorporou torturados e oprimidos de outras raças à sua famíl ia generosa. Atendeste a i njustiçados. O Brasil sempre abrigou os perseguidos, proporcionando -lhes vida nova. Exaltaste os pacíficos. O Brasil exerceu, em todo tempo, a bondade e a tolerância, perdoando criminosos, anistiando rebeldes, esquecendo traições e calúnias, por acolher irmãos bem -amados. Elevaste os limpos de coração. O Brasil nunca tingiu as mãos no sangue fratricida, nas horas culminantes de renovação política, aceitando -Te os desígnios nos instantes solenes de sua história. -o- Determinaste que os homens se amem uns aos outros, como nos amaste. O Brasil abriu suas portas de oito mil quilômetros de extensão à frente do mar e recebeu fraternalmente os filhos de todos os povos do globo, sem preconceitos de cor, de sangue, de nacionalidade, de relig ião. -o- " Humberto de Campos," Agora, Senhor, neste momento grave do mundo, o Teu grande Brasil, nossa Pátria, foi chamado à defesa da verdade contra a mentira e a impostura. Não Te reclamamos a assistência necessária. Sabemos que Tuas mãos misericordiosas pousam no leme, guian do aqueles que governam o destino dos filhos do Cruzeiro; mas, neta hora de suprema determinação histórica, reafirmamos -Te confiança e pedimos derrames Tua luz em cada coração, em cada anseio materno, em cada recanto do lar, para que todo o Brasil compreen da que esta não é uma guerra de irmãos contra irmãos, porém, a da luz contra as sombras, da civilização contra a barbaria, do direito contra a força, do equilíbrio contra a demência. -o- Sabemos que preservarás a Pátria do Evangelho, desde o vale do Amazo nas às coxilhas do Rio Grande, envolvendo -a nas dobras do pendão auriverde, em que colocaste um coração azul enfeitado de estrelas, símbolo de Tuas sagradas esperanças; que irás de norte a sul, inspirando os que administram, orientando resoluções sábias, encorajando as mães, iluminando o conselho dos velhos, renovando energias da juventude, unificando o pensamento nacional. Entretanto, rogamos esclareças a todos os brasileiros, para que cada um se integre no espírito de serviço que dignifica o dever, a responsabilidade, o trabalho, a ordem e a disciplina. Auxilia -os a fazerem cessar neste momento as paixões, contendas, suspeitas, opiniões individualistas, interpretações políticas e sectarismos religiosos, a fim de que paire, acima das preocupações inferiores , a visão do Brasil imperecível, na integridade gloriosa dos bens que nos confiaste. -o- Nós, os “mortos” da Pátria, estamos igualmente de pé. " Humberto de Campos," Aqui nos encontramos para dizer aos nossos irmãos que a Vida Eterna resume as realidades sublimes e imortais, e q ue entrelaçaremos nossas mãos com as deles, nos testemunhos necessários. -o- Jesus, acrescenta valores aos nossos valores, como tens acrescentado confiança à nossa fé; ensina -nos a transportar a flâmula auriverde, do topo radiante dos mastros aos nossos corações, a fim de a içarmos bem alto no cimo da consciência. Senhor, o Brasil permanece contigo, por expulsar do templo da vida os vendilhões do direito e da paz, e cada brasileiro reconhece que Tu estás conosco, porque a Tua cruz é símbolo de resistência heróica e porque sabemos que combates, desde o primeiro dia do Evangelho, na guerra do bem contra o mal, que ainda não terminou. " Humberto de Campos," VIII Entre D ois Mundos A fim de colaborar no socorro à Senhora M...., internada numa instituição de s aúde mental, fomos compulsar -lhe o diário íntimo, em cujas páginas respigávamos tão somente algumas de suas observações mais específicas, em torno de suas próprias atitudes quanto à maternidade. “ – de maio – E, afinal, casei -me. Estou feliz, muito feliz... de junho – Alfredo me falou hoje da possibilidade de termos filhos. Não concordo. Filhos para destruir -me? Que idéia!... de novembro – Tia Emerenciana afirmou que os meus sintomas são de gravidez. Estou amedrontada. Alfredo não pode saber. Dare i um jeito para livrar -me. – de janeiro – Tia Emerenciana disse que não convém ficar sem filhos, que o casamento envolve obrigações muito sérias, perante o destino, e – coitada de minha santa velhinha! – tentou explicar -me que existem espíritos de e ras passadas, comprometidos conosco, aos quais somos chamados a dar novo corpo, através do lar (!?), e que somente assim resgataremos nossos débitos de outras existências. Não entendi patavina. de setembro – Tive um sonho terrível de ontem para hoje. Vi -me à frente de dois jovens, no quais acendera devastadora paixão. Tudo isso eu sentia, compreendia e via no sonho... Eles se rebaixavam, mutuamente, diante de mim, até que um deles sacou da arma, alvejando o outro e suicidando -se em seguida. Depois da cena triste, pareceu -me estar numa grande nuvem a fugir dos dois, ao mesmo tempo que escutava a gritaria de ambos, vociferando contra " Humberto de Campos," mim: “Assassina! Assassina!...” Acordei assustada e estou doente. Contei o caso a Tia Emerenciana, e ela declarou acreditar qu e me tenham voltado à memória minhas vidas passadas, que eu teria provavelmente provocado a morte desses moços, e que o sonho será talvez uma advertência do Plano Espiritual para que eu me decida a recebê -los agora, como filhos, em meu coração e em minha c asa... não aceito essas superstições. – de maio – Sonhei outra vez com os dois rapazes, exterminando -se por minha causa. A conversa sobre filhos foi retomada por Tia Emerenciana e por mim, junto de Alfredo. Meu marido admite a chamada reencarnação e quer filhos. Eu não tolero nem uma coisa, nem outra. de novembro – Não suporto tanta gente a me falar sobre filhos. Detesto! – de janeiro – Consegui hoje outro aborto. Dona Antônia me confessou que, se eu esperasse, teria gêmeos. Deus me livre!. .. – de dezembro – Tenho a idéia de que fiquei muito fraca depois do segundo aborto. Ando triste, acabrunhada... E o terrível sonho voltando sempre... – de setembro – Meu m,árido e Tia Emerenciana me levaram a um grupo espírita para ouvir pr eleções sobre assuntos de reencarnação. Querem que eu refaça minha saúde com sermões. Uma senhora simpática me garantiu que ficarei boa se me decidir a ser mãe, acrescentando que os tais homens que ando vendo em sonho, quase que constantemente, são entidad es com quem me comprometi em existências pretéritas e que necessitam de mim para renascerem na Terra... Nada sei disso e nem quero saber. – de junho – Sinto -me nervosa, muito cansada, enfastiada de remédios. E os sonhos agora parecem alucinações permanentes. Às vezes, chego quase a crer que os dois acusadores " Humberto de Campos," estão abeirando -se de mim, até mesmo durante o dia... Dizem por aí que me fiz obsidiada e que preciso ser mãe. Conversas!... – de julho – Tia Emerenciana me comunicou haver recebido mensa gem do espírito de minha vovozinha Candora, que me teria enviado um recado assim: “Se você, minha filha, receber os adversários desencarnados nos braços de mãe, abrigando -os por filhos, sua saúde voltará...” Como gostaria de acreditar numa história como es tá! – de maio – Pratiquei outro aborto, mas estou pior, muito perturbada e deprimida... de setembro – Comecei novo tratamento para nervos. Só vejo os homens do sonho na imaginação e escuto vozes por dentro de mim, condenando -me, ameaçando -me... – de março – Tomarei qualquer espécie de anticoncepcionais. Não quero filhos, decididamente não quero! – de abril – Estou arrasada. Minha cabeça é um turbilhão. Observo que até os médicos mais amigos não me agüentam mais... de julho – As fi guras infelizes e grotescas de meus sonhos não mais me largam. Parecem demônios que se combatem e, depois de lutas tremendas um contra o outro, se voltam contra mim. Coitado do Alfredo!... É um homem aniquilado. Desde que Tia Emerenciana morreu, no ano pas sado, já não tenho ninguém que me reconforte. Emagreci. Sou hoje uma sombra do que fui... Mas, o pior de tudo é a cabeça... Oh! Meus Deus, quem me auxiliará a tolerar a bola de angústia e de fogo que carrego nos ombros?...” Nesse ponto terminaram as observ ações que nos interessavam, no curioso caderno. Entretanto, já sabíamos o suficiente para socorrer, de algum modo, a senhora M...., em dolorosas crises no hospício, arruinada nas forças orgânicas e mentalmente subjugada " Humberto de Campos, por dois implacáveis obsessores – os amados de outro tempo e filhos desditosos que não chegaram a nascer. Humberto de Campos," IX Médiuns e Instrutores Ante os enigmas da mediunidade entre os homens, você pergunta, espantadiço: “Não dispõem os Espíritos Benevolentes e Sábios de recursos suficientes para impedir o abuso e a má fé? Estaremos sempre à mercê de médiuns infelizes, capazes de amplo comércio com as forças da sombra, a tisnarem de lodo o serviço nobre dos medianeiros honestos? Por que não instituir o estudo metódic o da Doutrina Espírita nos templos de nossa fé, plasmando -se o caráter do instrumento mediúnico, antes de guindá -lo à publicidade?” Suas inquirições realmente chegam a comover pela sinceridade em que se expressam;no entanto, meu caro, respondemos com a mesma clareza que os amigos desencarnados não escravizam as faculdades dos companheiros que permanecem no mundo. Somente as entidades inferiores avocam para si o privilégio da posse temporária sobre as inteligências enfermiças, nos tristes processos da obsess ão. Entrosadas entre si, partilham, na Terra, a loucura e a delinqüência, provocando, onde passam, os mais estranhos sentimentos, que variam do ridículo à compaixão. -o- Todavia, entre os que despertaram para a responsabilidade, a governanta tem o seu just o limite. Os instrutores espirituais, qual acontece aos professores da escola comum, esclarecem e auxiliam sem constranger aos que lhes recebem assistência e bondade, encaminhando -os para a educação sem, contudo, violentar -lhes o livre arbítrio. " Humberto de Campos," Do que pos so deduzir, pelos estudos a que me consagro presentemente, milhares de tarefeiros da mediunidade foram conduzidos à Esfera Humana, durante o primeiro século do Espiritismo, todos eles munidos de honrosas designações de trabalho, em diversos países do Globo . Doutrinadores, materializadores, escreventes, assistentes, enfermeiros e condutores de opinião receberam preciosos títulos mediúnicos, renascendo na coletividade terrestre com a missão de servi -la, à feição de operários da luz; entretanto, raros atingira m o objetivo a que se propunham. -o- Muitos desertaram, receando as preocupações do caminho; outros se distraíram excessivamente com as fascinações marginais; alguns esqueceram a conta que lhes seria pedida no Plano Divino, colocando -se na disputa ao poder humano; e alguns outros, ainda, preferiram acomodar -se a propostas menos dignas, descansando em felicidades ilusórias do mundo, como se pudessem fugir à sacudidela da morte. -o- Partilhando as energias e os recursos dos Espíritos Benevolentes que os suste ntavam, assim como pupilos amparados pelo prestígio e pela bolsa dos benfeitores que lhes estendem proteção e carinho, supuseram -se donos de possibilidades que lhes não pertenciam e, superestimando o próprio valor, entregaram -se a aventuras particulares, n as quais se iniciaram em dolorosas experiências, quando não se afundaram em escabrosos precipícios de frustração. -o- Nessas circunstâncias, o médium está sempre na posição de criatura que sacou valioso empréstimo no Banco da Bondade Divina com determinada finalidade, gastando o dinheiro a benefício próprio, com agravo dos próprios débitos. -o- " Humberto de Campos," E, como a administração de qualquer instituto bancário não pode interferir na consciência dos seus devedores, sob pena de co rtar-lhes a ação, também a Espiritualidad e não subtraíra de nenhum modo, a iniciativa dos espíritos que se reencarnaram, com esse ou aquele mandato específico, porquanto, é da Lei que a colheita corresponda à espécie da plantação. -o- No entanto, o último tópico de seus apontamentos merece anotaç ão especial. Efetivamente, compete às organizações espíritas indiscutível responsabilidade na formação e observação dos médiuns, com mais ampla tarefa na divulgação doutrinária. Isso, porque a mediunidade, interpretada no ponto de vista de sintonia, só por si não constitui galardão. Há médiuns de todo feitio, inclusive aqueles que, por força de seu próprio passado, ainda suportam pesada influência das sombras, esperando que a Doutrina Espírita lhes envolva o campo mental na bênção de sua luz, a fim de que possam executar as próprias obrigações. -o- Ainda aqui, todavia, não podemos compelir os irmãos de ideal, nos variados setores de nossa edificação, a proceder nesse ou naquele padrão de conduta, de vez que os princípios do Espiritismo são claros para nós to dos. De qualquer modo, porém, não se atenha ao desânimo. Cada noite é a introdução de nova manhã. De uma verdade inconteste, podemos guardar absoluta convicção, e essa verdade é a de que Jesus não nos abandona em razão de nossas fraquezas, de que a Doutrin a Espírita continuará brilhando sempre por chave de luz do Evangelho, acima de quaisquer desacertos humanos, e de que todos nós, seja onde for, receberemos sempre da vida, de acordo com as próprias obras. " Humberto de Campos," X Vinte Anos Realmente, meu amigo, em d ezembro de , abandonei o corpo apressadamente, à maneira do inquilino despejado de casa, por força de sentença inapelável que, em meu caso, era o decreto da morte. E você pergunta por minhas impressões da Vida Espiritual por todo esse tempo que, à fren te da Eternidade, não tem qualquer significação. Sinceramente, não tenho muito a dizer. O homem que se desencarna sem as asas do gênio sublimado na fé e na virtude assemelha -se, de algum modo, ao navegador do século XVI que, descobrindo terras novas, plant ava o domicílio no litoral, incapaz de romper os laços com a retaguarda, de modo a seguir gradativamente, na direção da floresta. -o- Novidades por novidades tenho visto inúmeras. Assim como o selvagem dos trópicos pode ser transportado até as vizinhanças do pólo, a fim de extasiar -se com o glorioso espetáculo da aurora boreal, sem compreender -lhe o jogo de luz, assim também tenho contemplado paisagens maravilhosas de outros mundos, sem, contudo, entender -lhes a magnificência. -o- Terminado o estímulo da ex cursão educativa, eis -me de volta ao solo áspero de minhas próprias experiências, no qual devo cultivar os valores do porvir. -o- " Humberto de Campos," Você será naturalmente induzido a indagar quanto ao pretérito. Atravessando a criatura múltiplas existências, de outras vezes terei igualmente regressado ao campo espiritual e, por isso, não posso estar pisando um terreno desconhecido... Ainda assim, não suponha que algumas peregrinações na carne possam valer grande cousa, quando nosso esforço na própria elevação não seja indiscu tivelmente muito grande. -o- Viajamos no oceano das forças físicas, tornando a velhos continentes da recapitulação por alguns lustros apenas e regressamos ao litoral, a fim de prosseguir na construção das bases de progresso e segurança que nos habilitarão, um dia, aos altos cimos. Por enquanto, é preciso vencer obstáculos e sombras, dificuldades e inibições no país de mim mesmo, para caminhar da animalidade que me caracteriza a Humanidade real de que ainda me vejo distante. E, nesse trabalho, não há muito g osto de alinhar notificações e surpresas, porque, tanto aí quanto aqui, não é fácil modificar a química do pensamento, com vistas à própria renovação. -o- Desnecessário comentar nossas organizações e deveres. Toda uma literatura copiosa e brilhante, nos ma is diversos centros do mundo, revelam hoje os processos evolutivos da Terra Melhorada, onde presentemente me encontro, sem o pesado escafandro das células enfermiças e, por essa razão, você deve saber que vivem errantes aqui somente os que aí pervagavam, e ntre a ociosidade e a indisciplina, que apenas se precipitam nas trevas infernais os que, no mundo, já haviam organizado um inferno na própria cabeça e que os heróis passam por nós, de relance, com destino às Alturas em que se colocaram. -o- " Humberto de Campos," Quanto a nós, pecadores penitentes e almas de boa vontade, estamos marchando, passo a passo, na superação de nós mesmos, entre o céu que sonhamos e o inferno que nos cabe evitar. Ainda assim, o comboio da morte, todos os dias, derrama viajores em nossa estação. Não raro , por isso, observo antigos companheiros do mundo chegando aqui sob as farpas do sofrimento, mastigando resíduos de extremas desilusões. São amigos que choram o ouro largado no chão, que suspiram pelo poder ou pela evidência social de que o sepulcro os des poja, que deploram o tempo perdido em atividades inúteis ou que enlouquecem, tentando debalde reaver o corpo bem cuidado que o túmulo apodreceu... -o- Não julgue que a recuperação seja obra de improviso. Resignação, coragem, compreensão, paciência e valor moral não constituem artigos adquiríveis no estoque alheio. Representam qualidades que todos somos constrangidos a edificar no mundo que nos é próprio, ao preço de nossa renunciação e de nossas lágrimas. -o- A única nota diferente que possuo em meu círculo individual é a que se refere à minha adesão intelectual ao Evangelho, sob a luz do Espiritismo. Digo “intelectual” porque ainda estou trabalhando o coração, como o lapidário burila a pedra, a fim de ofertá -lo efetivamente ao Senhor. E não diga que a minha conversão surge tarde demais, porque assim como o esforço de vocês no bem é valioso investimento de recursos para a existência daqui, a nossa tarefa nessa direção capitaliza em nosso favor preciosas oportunidades para o estágio que aí nos compete de futur o, de vez que, em tempo oportuno, estarei de novo entre os homens, tanto quanto você estará igualmente entre os espíritos desencarnados. -o- " Humberto de Campos," Como repa ramos, vinte nos de vida espiritual são poucos dias para a restauração e para o reajuste, porque a dor e a experimentação, a prova e a luta ainda permanecem conosco, à feição de instrutoras, que não podemos menosprezar. -o- Não se aflija nem desconsole, porém,. Diante de minha confidência fraternal. Trabalhe e estude, ame e instrua -se, fazendo o melhor que pud er no mundo e, se você retém qualquer dúvida em torno de minhas afirmativas, em breve, você mesmo estará aqui, depois de escalar pela casa da morte, a fim de melhor sentir a vida com o próprio coração e apreciar a realidade com os próprios olhos. (página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em reunião do mês de dezembro de ) " Humberto de Campos," XI Sinceramente Diz você que é necessário inflamar a lâmina da crítica, em fogo de combatividade, para expulsar os vendilhões dos templos do Espiritismo e, exaltadamente, repete a palavra “conspurcação”, a cada trecho de sua carta, como se apenas encontrasse, em torno dos próprios passos, malfeitores e ladrões. -o- Nesse afã de julgar e sentenciar, você se reporta à impressões de oitiva sobre d eterminados companheiros, descobrindo -lhes, desapiedadamente, as cic atrizes, à maneira de um santo convertido em juiz de consciências alheias. E promete devassar a vida pública e privada de pessoas respeitáveis, incompreensivelmente indignado em nome do Me stre da Cruz. -o- Mas, examinando os propósitos que você mesmo traz À nossa consideração, seria justo movimentar semelhantes golpes, em nome da caridade? Seu zelo relaciona fraquezas e desventuras de irmãos nossos, aos quais você, se pudesse, deserdaria de todos os benefícios da proteção divina, a pretexto de preservar a pureza doutrinária. -o- Mas, se o Cristo, cuja inspiração procuramos para os destinos de nossa fé, nunca se afastou dos transviados e dos enfermos, por que razão se recolheria o Espiritismo , num círculo de eleitos, sem qualquer vantagem para a nossa extensa coletividade dos sofredores " Humberto de Campos," a que nossa bandeira veio servir? Onde colocaríamos o nosso programa de regeneração fugindo aos mais necessitados? E se vamos condenar aquele que hoje procura acertar o próprio caminho, onde situar a doutrina de amor que pretendemos estender, na Terra, em favor do próximo? -o- Se estamos interessados na recuperação humana com Jesus, é preciso lembrar que não sustentaremos a ordem de um edifício, atirando -lhes pe dradas. A cultura da fé assemelha -se à lavoura comum. Para salvar um espécime entre milhares, ninguém se aventuraria a ameaçar a plantação inteira. -o- E, ainda para defender um simples arbusto – se é que nos propomos realmente defendê -lo – não concretizar emos qualquer auxílio ao preço da violência. O sarcasmo não constrói, tanto quanto o vinagre não mata a sede. Uma doutrina religiosa é serviço de educação das almas. -o- O Espiritismo não pode escapar à regra. Dispomos no Brasil de mais de quinhentos mil e spíritas confessos, mas poderíamos alimentar a vaidade de contar com meio milhão de heróis? Sabemos que, entre as legiões dos companheiros de boa vontade, temos vastas fileiras de doentes, obsedados e aflitos... Declara -se você, contudo, disposto a guerrea r os expositores da Doutrina que, segundo suas afirmativas, não cumprem o que ensinam. Entretanto, estará você suficientemente seguro, quanto às alheias consciências, ao ponto de apreciá -las, com exatidão, pela superfície? " Humberto de Campos," -o- Quantas árvores, desagradávei s pelo acúleos da epiderme, sustentam as fontes preciosas do mundo? Quantos cais, aparentemente enlameados, defendem povoações e cidades contra a fúria do mar? Não nos consta a existência de alguma ordem de Jesus recomendando -nos a instalação de tribunais para a censura a irmãos, em experiências diversas da nossa; no entanto, não ignoramos que o Mestre nos exortou ao serviço do amor, em todas as circunstâncias... -o- Atravessada a fronteira da morte do corpo, se nos mantemos efetivamente despertos para o de sempenho dos deveres que nos cabem, ante as Leis Superiores, uma compreensão mais humana nos aclara o espírito e, dentro dela, meu caro, não há lugar para a ironia ou o fel. -o- O sentimento de nossa pequenez impõe -nos a obrigação de cooperar no bem de tod os, a fim de que nos não falte auxílio no crescimento para a Vida Eterna. Acreditando, assim, que você nos escreve com sinceridade, devo afirmar -lhe, sinceramente, que não posso concordar com a sua cruzada de reprovações públicas. -o- O tempo é uma dádiva do Senhor, com a qual necessitamos aprender a semear e a construir com o bem. È possível que outrem lhe diga de minha incapacidade para corrigir, por ter errado muito, por minha vez, na Terra. Outros dirão que não passo de um espírito perturbado, em razão de meus distúrbios intelectuais no mundo. Não nego a minha condição de enfermo em reajuste. " Humberto de Campos," Sou um pecador, trabalhando para não alongar a relação de minhas próprias faltas. Mas, no fundo, não posso prestigiar a sua campanha de crítica e de condenação porq ue eu sou um homem desencarnado, e porque você é um homem que vai morrer. " Humberto de Campos," XII Kardec, Obrigado Kardec, enquanto recebes as homenagens do mundo, pedimos vênia para associar nosso preito singelo de amor aos cânticos de reconhecimento que te exaltam a obra gigantesca ns domínios da libertação espiritual. Não nos referimos aqui ao professor emérito que foste, mas ao discípulo de Jesus que possibilitou o levantamento das bases do Espiritismo Cristão, cuja estrutura desafia a passagem do tempo. Falem outros dos títulos de cultura que te exornavam a personalidade, do prestígio que desfrutavas na esfera da inteligência, do brilho de tua presença nos fastos sociais, da glória que te ilustrava o nome, de vez que todas as referência s à tua dignidade pessoal nunca dirão integralmente o exato valor de teus créditos humanos. -o- Reportar -nos-emos ao amigo fiel do Cristo e da Humanidade, em agradecimento pela coragem e abnegação com que te esqueceste para entregar ao mundo a mensagem da Espiritualidade Superior. E, rememorando o clima de inquietações e dificuldades em que, a fim de reacender a luz do Evangelho, superaste injúria e sarcasmo, perseguição e calúnia, desejamos expressar -te o carinho e a gratidão de quantos edificaste para a f é na imortalidade e na sabedoria da vida. -o- O Senhor te engrandeça por todos aqueles que emancipaste das trevas e te faça bendito pelos que se renovaram perante o destino à força de teu verbo e de teu exemplo!... " Humberto de Campos," Diante de ti, enfileiram -se, agradecidos e reverentes, os que arrebataste à loucura e ao suicídio com o facho da esperança; os que arrancaste ao labirinto da obsessão com o esclarecimento salvador; os pais desditosos que se viram atormentados por filhos insensíveis e delinqüentes, e os filhos ago niados que se encontraram na vala da frustração e do abandono pela irresponsabilidade dos pais em desequilíbrio e que foram reajustados por teus ensinamentos, em torno da reencarnação; os que renasceram em dolorosos conflitos da alma e se reconheceram, por isso, esmagados de angústia nas brenhas da provação, e os quais livraste da demência, apontando -lhes as vidas sucessivas; os que se acharam arrasados de pranto, tateando a lousa na procura dos entes queridos que a morte lhes furtou dos braços ansiosos, e aos quais abriste os horizontes da sobrevivência, insuflando -lhes renovação e paz, na contemplação do futuro; os que soergueste do chão pantanoso do tédio e do desalento, conferindo -lhes, de novo, o anseio de trabalhar e a alegria de viver; os que aprender am contigo o perdão das ofensas e abençoaram, em prece, aqueles mesmos companheiros da Humanidade que lhes apunhalaram o espírito, a golpes de insulto e de ingratidão; os que te ouviram a palavra fraterna e aceitaram com humildade a injúria e a dor por ins trumento de redenção; e os que desencarnaram incompreendidos ou acusados sem crime, abrançando -te as páginas consoladoras que molharam cm as próprias lágrimas... -o- Todos nós, o que levantaste do pó da inutilidade ou do fel do desencanto para as bênçãos d a vida, estamos também diante de ti!... E, identificando -nos na condição dos teus mais apagados admiradores e com os últimos dos teus mais pobres amigos, comovidamente, em tua festa, nós te rogamos permissão para dizer: “Kardec, obrigado!... Muito obrigado !”... " Humberto de Campos," (página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier,em homenagem, ao aniversário de Allan Kardec) " Humberto de Campos," XIII O Centenário de Hydesville O centenário das manifestações de Hydesville desperta considerações especia is em todos os círculos espíritas da América. Margaretta e Kate Fox, as jovens médiuns utilizadas pela Esfera Espiritual na demonstração objetiva da imortalidade, são lembradas com respeito e carinho. O ambiente característico de é reconstituído nos comentários de jornais e emissoras. Num lar de evangelistas da Igreja Reformada, um homem invisível prova a sobrevivência além da morte e, não obstante o trabalho substancioso de abnegados missionários do espiritualismo, em ação no mundo inteiro, os fatos de Hydesville caminham através da grande nação norte -americana. Do vilarejo humilde, seguem para New York, de onde prosseguem, varando cidades e campos, até alcançarem o Congresso Nacional, numa solene petição em que alguns milhares de pessoas solicitam a atenção dos legisladores para o assunto. -o- As meninas Fox passam a constituir tese viva nas conversações científica s, acadêmicas e universitárias. Aplaudidas e ridicularizadas, atraem para o movimento renovador as simpatias de administradores e juízes, f ilósofos e artistas, estudantes e operários. -o- A luz guerreia a sombra, a revelação anula o dogmatismo, a verdade confunde a mentira. Em breve, os fenômenos se estendem mundialmente, os instrumentos humanos se multiplicam, o conhecimento progride insofr eável... " Humberto de Campos," -o- Quem provoca, no entanto, semelhante revolução mental não é um mensageiro resplandecente de luz. Não é um anjo que se põe a confabular com os homens. No recinto, não há relâmpagos do Sinai. O autor perceptível do empreendimento é um homem... desencarnado, desconhecendo, ele mesmo, a importância da iniciativa. Mostra -se apaixonado e inferior, quanto qualquer de nós. Confessa que foi assassinado, todavia, apesar da posição de vítima, não foi promovido à Corte Celestial. Condensam -se-lhe as idéias na experiência física. Tem ânsia de conversar com criaturas que ainda se encontram na embalagem dos ossos. Não ganhou, até ali, suficiente coragem para enfrentar o desconhecido. Terá lido, naturalmente, muitas páginas edificantes, no esforço terrestre, ma s encontra imensa dificuldade para esquecer a ofensa e perdoar o ofensor. -o- Exibe complexos de inferioridade. Pretende vingar -se. Desejaria justiçar -se pelas próprias mãos. Qualquer entendido de medicina ou psicologia lhe identifica a perturbação evident e. Além disso, não é “morto” da véspera. Declara que ali permanece, desde alguns anos, em torno dos despojos. A morte não conduziu à glória divina, mas ao tormento infernal. Reintegrou -se na própria consciência e a mente dele, atormentada e " Humberto de Campos," sofredora, busc a exteriorizar -se, por intermédio de sinais à maneira de qualquer náufrago perdido. Não foi bafejado ainda por claridade santificante que não procurou. Alimenta -se de preocupações puramente personalistas. -o- Após identificar -se pelas suas características de humanidade, prossegue aprendendo e evoluindo, tanto quanto nos ocorre no Brasil ou na Conchinchina. Tal verificação, contudo, não impede a exaltação da verdade e a compreensão gloriosa da Vida Eterna. O fenômeno inicial de Hydesville, comentado neste ân gulo adquire mais expressão e vivacidade, porque se, há cem anos, o Plano Superior encaminhava o homem desencarnado, com seus apetites e paixões, mágoas e enigmas, à consideração e entendimento dos semelhantes, como a dizerem que a morte é simples continua ção da vida, há muita gente aguardando o gongo final para receber as asas de cera e entrada gratuita no paraíso. " Humberto de Campos," XIV Problemas de um Médium O médium Calixto iniciou a tarefa com verdadeira compreensão da responsabilidade que lhe co mpetia. Criatura simples e de coração voltado para o dever, recebia as páginas dos mensageiros espirituais com a infantilidade do menino de boa índole que recebe um recado para transmitir, obediente e humilde. Vestia -se pobremente e, nos pés, não exibia ou tro calçado que não fossem tamancos rústicos. Recebendo -lhe, contudo, os trabalhos que psicografava, a maioria dos entendidos proclamavam sem rebuliços: - É um ignorantão! Não conjuga cinco palavras com acerto. Puro jogral de espertalhões do mundo livresco , a serviço de fanáticos do espiritismo. -o- Humilhado pelos repetidos insultos, Calixto mobilizou as próprias necessidades, de modo a diminuir os sarcasmos que, a propósito dele, se atiravam à Consoladora Doutrina de que se fizera pregoeiro. Trajou -se com mais apuro e queimou as pestanas, estudando a gramática. Sabia agora conversar com relativa elegância e expor os princípios que os Espíritos Superiores lhe ditavam, com facilidade e clareza. -o- Todavia, logo se lhe percebeu a modificação, o parecer públi co enunciou, solene: " Humberto de Campos," - Vejam só! É um homem genial. Produz em plano superior, através da própria inteligência. Quem revela, assim, tamanha cultura, escreverá com mais propriedade que os literatos mortos... E os investigadores atilados concluíam, rematando : - Embuste, pastiche e mais nada. O rapaz, embora surpreendido, continuou a tarefa. Evitou a multidão e fugiu às manifestações de público. Não seria mais justo recolher as bênçãos, na intimidade dos irmãos? Confinou -se ao campo doméstico dos princípios r edentores que abraçara. Contudo, ainda aí, a censura vigorou, subtil e contundente. -o- Se Calixto recebia mensagens, relacionando verdades duras, apontavam -no, sem piedade: - É um mistificador, obsediado pela mania de grandeza e virtude. Claro que os emi ssários da Esfera Superior não menoscabam o poder da gentileza e ninguém por haver transposto as fronteiras da morte encontra alegria em acusar os semelhantes, mas se um amigo espiritual temperava os conceitos em sal de estímulo, buscando o soerguimento do s companheiros encarnados, indicavam -no, com acrimoniosa atitude: - É um bajulador infeliz que se demora, sob a influência de perversos doadores de lisonja. -o- Sob perplexidades consecutivas, o médium satisfazia as exigências do ministério, no entanto, er a preciso interromper -se a cada passo para destrinçar enigmas pequeninos. Se os viajores do Reino da Morte vinham falar da majestade do Céu, o intermediário era apontado por instigador da fantasia; se comentavam problemas da Terra, era definido à conta de cretino. " Humberto de Campos," Jornalistas e escritores “mortos” utilizavam -lhe as faculdades a se fazerem sentir claramente, entretanto, as respectivas famílias, receiando -lhes a intromissão, ameaçavam o medianeiro, através de processos espetaculosos e humilhantes. Citado nos órgãos judiciários por miserável impostor, Calixto recolhia -se em prece, suplicando aos missionários invisíveis providências contra a perturbação estabelecida, mas enquanto os Espíritos Benevolentes adotavam pseudônimos, a fim de lançaram idéias renovadora s, com a facilidade possível, os companheiros de fé observavam -lhe, risonhos e irônicos: - Onde iremos? Os “mortos” também usam máscara? -o- O confundido trabalhador era objeto de geral exame, dia e noite.O zelo com que atendia ao serviço pela própria man utenção era interpretado por excessiva defesa na vida material, mas se era encontrado fora da atividade comum por algumas horas, era categorizado por garimpeiro de vantagens especiais. Tentava isolar -se por desincumbir -se das obrigações com mais segurança e eficiência, no entanto, era apontado, de imediato, por orgulhoso e frio, ante os sofrimentos alheios. Calixto passava, então, a comunicar -se com todos, entretanto, suas palavras convertiam -se em objeto de exploração aviltante e escandalosa. -o- Discutido , atormentado, fustigado e seguido pela crítica incessante, através do todas as maneiras pelas quais procurava solucionar os compromissos a que se devotava, chegou o dia em que se deitou desanimado, à maneira do burro que arreia sob a carga pesada. Não ser ia razoável parar? Como seguir adiante? Foi então que lobrigou, de olhos nublados de lágrimas, a presença de um mensageiro divino. " Humberto de Campos," Endereçou -lhe sentida súplica, mas notou assombrado que o emissário se mantinha sorridente ao ouvi -lo. Finda a rogativa, entr ecortada de soluços, o anunciador das Boas Novas Celestiais falou -lhe, bem -humorado: - Calixto, levante -se e não se aflija! Banhe -se uma vez por dia, tome refeições regulares e faça o que puder. O Senhor não exige o impossível. Habitue -se a auxiliar por am or ao bem, contando com a incompreensão natural do mundo. A calúnia não piora ninguém, tanto quanto a bajulação não nos aperfeiçoa qualidade alguma. Quanto ao mais, meu amigo – e, nesse ponto, o mensageiro riu -se francamente – se Jesus retirou -se do mundo pelas portas sangrentas do sacrifício na cruz, será mesmo que você pretende ausentar -se da Terra nas fofas almofadas dum automóvel? Com a interrogação, interrompeu -se a singular entrevista e Calixto, copiando os movimentos de uma muar resignados, ergueu -se de novo, e retornou o passo para o que desse e viesse. " Humberto de Campos," XV O Crente Modificado Certo devoto, em se retirando do templo, sempre encontrava pequena turma de pedintes e sofredores, com os quais distribuía os níqueis que lhe sobrava m na bolsa. Em seguida, exortava -os à confiança no porvir, quando as administrações terrestres aprendessem a efetuar a justa repartição das riquezas. Contassem todos com o Senhor, rico de bondade para todos os dilacerados da sorte, e que lhes enviaria benf eitores leias para o suprimento de pão e bem estar no momento oportuno. À noite, de mãos postas, elevava -se espiritualmente ao Céu e figurava -se, à frente do Cordeiro Divino... Ajoelhava -se e pedia reverente: - Senhor, teus pobrezinhos padecem frio e fome. .. Auxilia -me para que possa, por minha vez, ampará -los em teu nome. Para isso, ó Providência dos deserdados, digna -te conceder -me a mordomia nos bens materiais! É imprescindível que os celeiros de tua compaixão permaneçam sob a guarda de colaboradores efi cientes e fiéis!... -o- E o Salvador ouvia -o, complacente, sem prometer modificação de programa. O aprendiz da fé retomava a luta habitual, sempre interessado na crítica fraterna. De quando a quando, visitava instituições de benemerência e reparando a onda crescente dos necessitados ao redor dos trabalhos socorristas, inquiria santamente indignado: - Onde se ocultam os ricaços sem deveres? " Humberto de Campos," E, sem qualquer escrúpulo, justificava a indisciplina reinando na Terra. Fazia carga asfixiante de palavras contra os f avorecidos da fortuna e, não obstante cristão, declarava compreender o desespero dos pobres, quando se convertiam em revolucionários demolidores. -o- - Impossível em equilíbrio social – asseverava, ríspido – quando os endinheirados alardeiam conforto exces sivo ao pé dos indigentes. Chegada à noite, tornava a rogativa, semi liberto do corpo físico e, sentindo -se diante do Mestre, voltava a solicitar: - Senhor, tenho encontrado dezenas de enfermos esfomeados plenamente esquecidos... Sofrem e choram, esmolando debalde na via pública... Os missionários da proteção coletiva, a quem emprestaste a autoridade e o ouro, esquecera -te as bênçãos e cristalizam -se no egoísmo feroz. Dá -me recursos! Tenho necessidade de espalhar os teus benefícios! -o- O Salvador registrou a prece, sem alterar -lhe o roteiro. E semelhantes cenas passaram à categoria de hábito inveterado. O devoto, em esforço verbal diário, defendia os órfãos, os doentes, as viúvas, os desempregados, os aflitos e os tristes, apaixonadamente. -o- Nas rodas de companheiros, depois dos ofícios religiosos, pregava o advento do mundo novo em que os ricos da Terra seriam menos tirânicos e os pobrezinhos menos desditosos. Avançava, para isso, em teorias sociais de conseqüências imprevisíveis... -o- Em certa ocasião, depois de grande calamidade pública, saiu a esmolar em favor das vítimas infelizes. A seca trouxera à cidade " Humberto de Campos," lamentáveis farrapos humanos. Inexprimíveis padecimentos desfiguravam centenas de rostos. Os infortunados pediam trabalho, mas, antes de tudo, requ eriam remédio e alimentação. -o- Tantas aflições presenciou o devoto, no círculo dos flagelados, e tanta indiferença surpreendeu na esfera das pessoas felizes que, à noite, em preces mais comovedoras e mais ardentes, subiu, em lágrimas, ao Trono do Cordeir o e suplicou: - Senhor, os teus tutelados na Terra perecem a míngua de amor... Os afortunados escarnecem dos miseráveis, a opulência pisa os desvalidos. Dá -me acesso à riqueza fácil. Tenho necessidade de recursos urgentes para atender, no mundo, em nome de tua caridade infinita... -o- O Mestre, tocado mo íntimo, através de tão reiteradas rogativas, alterou os desígnios e recomendou que o pedinte fosse conduzido, sem demora, ao manancial da prosperidade terrestre. E a ordem desceu de anjo a anjo e de servo a servo, assim quanto ocorre num exército humano em que a determinação do general supremo desce de oficial a oficial e de soldado a soldado. -o- Em breve, o devoto era invariavelmente seguido por um mensageiro espiritual incumbido de soerguer -lhe o padrão econômico. Atendendo aos imperativos da tarefa que lhe fora cometida, o emissário começou por observar -lhe as atividades comuns, identificando -lhe a posição de comerciante ativo e, examinado o melhor processo de conferir -lhe a doação celestial, passou a insuflar -lhe idéias favoráveis, utilizando recursos indiretos... -o- " Humberto de Campos," Em algumas semanas, o crente sentiu -se compelido a realizar enormes aquisições de cereais, estimulado por inexplicável entusiasmos e, em sessenta dias, à face das exigências de exportação, o estoque gigantesco rendeu -se o lucro líquido de oitocentos mil cruzeiros. -o- O auxiliar invisível, contudo, anotou -lhe profunda modificação íntima. O homem que possuía oitenta por cento de vocação para o desinteresse com Jesus e vinte por cento de comerc ialismo por necessidade fatal da experiência humana revelava estranha diferença. A mente dele, de inopino, acusou noventa e nove por cento de pensamentos alusivos à oferta e procura, compra e venda, restando apenas um por cento para o idealismo evangélico. -o- O cooperador espiritual, sem acesso agora ao coração dele, buscou um companheiro d e fé e inspirou -lhe a formular apelo ardente à execução da promessa ao Senhor, mas o crente, quase irreconhecível, respondeu, sem rebouços: - Sim, efetivamente, em dois meses, ganhei oitocentos contos, todavia, é imperioso reconhecer que isto é uma insignificância para a nossa época. Além disso, a caridade pode esperar... O verdadeiro bem não é serviço que se faça afogadilho... Fixou a máscara grave do homem de negócios e xcessivamente preocupado e concluiu: - Não posso esquecer igualmente que, acima de tudo, tenho a família e o futuro não é brincadeira... Foi então que o mensageiro, fundamente desapontado, voltou ao domicílio que lhe era próprio e a nova notícia, de servo a servo e de anjo a anjo, subiu para o Senhor. " Humberto de Campos," XVI Pedro em Visita Conta -se que Simão Pedro, há tempos, conseguiu chegar ao Rio de Janeiro, perfeitamente materializado. Utilizando preciosos fluidos da natureza, nos bosques floridos que margin am Petrópolis, desceu dos subúrbios para o centro, com o objetivo de verificar as realizações cristãs, entre os novos discípulos do Evangelho. -o- Alpercatas de pobre, cabelos à nazarena, leve bastão a sustentar -lhe o corpo e singela túnica de estamenha, i a o apóstolo, de olhos vivos e doces, estranho aos automóveis e aos arranha -céus, na consoladora antevisão do encontro com os aprendizes do Senhor. -o- Achavam -se multiplicados, pensava. Trazia, mentalmente, o endereço de muitos, de conformidade com as rog ativas que subiam da Terra para o Céu. Que lhe contariam, acerca dos ideais evangélicos no mundo? Não ignorava que o Planeta continuava sob o guante infernal da guerra, entretanto, sabia que os ensinamentos do Messias avançavam salvando almas. -o- Ante o f rontispício de admirável organização católica -romana, deteve -se, emocionado. Aproximou -se. Tocou a campainha. Pretendia avistar -se com os superiores da casa, a fim de trocarem idéias. Um padre bem humorado atendeu: - Quem é o senhor? " Humberto de Campos," - Simão Pedro, para servi -lo. O clérigo sorriu e anotou -lhe os desejos. Findos alguns minutos, um dos diretores apareceu, em companhia de vários religiosos. Ouviram o visitante humilde, com inequívocos sinais de incredulidade e sarcasmo. Não chegaram nem mesmo a considerar -lhe s palavras. - Volte segunda -feira, com o atestado policial – declarou o orientador da instituição – e providenciarei seu ingresso no asilo. Simão tentou explicar -se. O eclesiástico, no entanto, foi claro: - Não insista. Tenho mais o que fazer. Venha se gunda -feira. O psiquiatra organizará sua ficha. Sequioso de entendimento, pediu Pedro: - Tenho sede. Permita -me entrar, por obséquio. - Quê? Entrar? Não precisa disto para beber água. Na esquina próxima encontrará um café, e será atendido. -o- Em vista da porta repentinamente cerrada, o apóstolo, algo triste, cruzou várias ruas e estacionou junto de simpática vivenda. Perguntou ao jardineiro pelo ministro da igreja reformada que a ocupava. O robusto rapaz deu -se pressa em satisfazê -lo. Em momentos breves, t rouxe consigo não só o pastor, mas também dois jovens presbíteros. À primeira interrogação, o visitante respondeu, esperançado: - Sou Pedro, o antigo pescador de Cafarnaum. - Entreolharam -se os presentes, espantadiços. - Debalde buscou o velho Ce phas escl arecer os propósitos que alimentava. O ministro evangélico, ai invés de prestar -lhe atenção, pos-se a ouvir os rapazes tagarelas. " Humberto de Campos," - Penso que é portador da mania ambulatória – asseverou um deles – traz alpercatas e os pés não parecem muito distintos. - Tenho ido pregar no hospício – informou o outro e conheço alguns casos de loucura circular. O pastor dirigiu -se a Pedro e declarou, sem rebuços: - Pode retirar -se. Aqui, não posso recebê -lo. Procure o culto no domingo pela manhã. - Irmão, não me expulse ass im... rogou Pedro, humilde. - Nada posso prometer -lhe – revidou o ministro, seguro de si – a congregação está longe de construir o nosso hospital de alienados. -o- Vendo -se novamente sozinho, o ex -pescador Galileu varou largo trecho da via pública e parou à frente de nobre domicílio. Bateu, acanhado. Ao rapazelho que atendeu, lépido, indagou pelo diretor de importante organização espiritista que ali residia. Decorridos alguns instantes, o dono da casa veio em pessoa, seguido de dois confrades. À inquirição inicial, respondeu tímido: - Sou Simão Pedro, o discípulo de Cafarnaum. Os novos amigos permutaram expressivo olhar. O missionário da Nova Revelação, que o apóstolo procurara, nominalmente, afirmou calmo: - Obsessão evidente. Creio esteja ele atuado por a rgucioso perseguidor invisível. - Um vidente faria aqui a necessária verificação, acentuou um dos companheiros. O outro, contudo, mostrando extensa intimidade com Richet, acrescentou, com algum pedantismo: " Humberto de Campos," - Tipo inabitual. Bem provável possa ser aproveit ado aos estudos de criptestesia. Adiantando -se, Pedro implorou: - Irmãos, tenho sede de comunhão fraterna em torno do Cristo, Nosso Senhor. Que me dizem do trabalho evangélico, na atualidade do mundo? O principal do grupo afagou -lhe a destra que se movia suplicante e replicou: - Procure -me na sessão de sexta -feira, depois das vinte horas. Teremos doutrinação. A cousa vai melhorar, “meu velho”. E, gentilmente, deu -lhe o endereço. Fechou -se a porta e o trinco rodou, automático. -o- Quem contou a história, di sse-nos ter visto o antigo discípulo da Galiléia enxugar as lágrimas a lhe deslizarem copiosas do rosto e perguntar a esmo, fixando o céu tranqüilo do crepúsculo: - Senhor, onde estará pulsando o coração de teus aprendizes?!... Em seguida, silencioso e ta citurno, o velho pescador pos-se de novo, a caminho, na direção do mar... " Humberto de Campos," XVII Explicações Não, meu amigo. Quando me desvencilhei do corpo físico, há quase vinte anos, o título de “espírita” não me classificava as convicções. Como ac ontece a muita gente boa, acreditava mais no que via com os meus olhos e tateava com as minhas mãos. Lia o Evangelho de Jesus e compulsava as impressões de vários experimentadores da sobrevivência, entretanto, sem objetivos sérios de estudo e sim na extrav agância das galhas da inteligência que vão à lavoura do espírito, gritando inutilmente ou bicando aqui e ali para perturbar o crescimento das plantas e prejudicar -lhes a produção. -o- Era um homem demasiadamente ocupado com a Terra para devotar -me às revel ações do Céu. Meus pensamentos jaziam tão vigorosamente encarnados nas preocupações mundanas, que nem a força hercúlea da enfermidade conseguia deslocar -me para as visões íntimas da Vida Superior. Ilhado na fortaleza de minha pretensa superioridade intelec tual, ria ou chorava nas letras, acreditando, porém, que a fé seria apanágio das criaturas ignorantes e simples, indigna dos cérebros mergulhados em maiores cogitações. -o- Situava -me entre a dúvida e a ironia, quando a Morte, na condição de meirinho da Ju stiça Divina, me intimou a comparecer no tribunal da realidade, mais cedo que eu supunha, e somente então comecei a interessar -me pelo gigantesco esforço dos homens de boa " Humberto de Campos," vontade que, nos mais diversos climas do Planeta, se dedicam hoje à solução dos enig mas inquietantes do destino e do ser. -o- O túmulo não é apenas a porta de cinza. Morrer não é terminar. E, banhado ao clarão da verdade, por mercê de Deus,incorporei -me à imensa caravana dos que despertam e trabalham na recuperação de si mesmos. Não estra nhe, pois, se continuo em minha fain a de escritor humilde, tentando nortear as minhas faculdades no rumo do bem. É o que posso fazer, porquanto não disponho de especialização adequada para outro mister. -o- Você pergunta porque me devoto presentemente ao E spiritismo com Jesus, quando fui intérprete da literatura fescenina, lançando vários livros picantes, e político apaixonado na corrente partidária a que me filiei, como defensor dos interesses de minha terra. Creia que, realmente, errei muito. Mas sempre c onsegui equilibrar -me na corda bamba das convenções terrestres e, muita vez, caí escandalosamente em pleno espetáculo, à frente daqueles que me aplaudiam ou me apupavam. Entretanto, a morte constrangeu -me ao reajuste preciso. Acordei para um dia novo e pro curo comunicar -me com os que ainda se encontram nas sombras da noite. -o- Admito que poderia fazer cousa pior. Se me deixasse vencer pela tentação, efetivamente integraria a vasta fileira dos espíritos obstinados na perversidade que lhes é própria, cavalga ndo os ombros de meus desafetos. Algo, porém, amadureceu dentro de mim. " Humberto de Campos," Aquilo que me causava prazer impele -me agora à repugnância. A experiência mostrou -me a parte inútil de minha vida e, por acréscimo de bondade do Senhor, voltei ao campo de minha própri a sementeira, não mais para deslustrar o serviço da natureza, mas para colaborar com o bem, a favor de mim próprio. -o- É por essa razão que ainda estou escrevendo... Convença -se, contudo, de que não possuo mais no vaso do coração a tinta escura do sarcasm o e esteja certo de que me sinto excessivamente distante de qualquer milagre da sublimação. Sou apenas um homem... desencarnado com o sadio propósito de regenerar -me. Depreenderá você, portanto, desta confissão que, em hipótese alguma, poderia inculcar -me na posição de guia espiritual dos meus semelhantes. A sepultura não converte a carne que ela engole, voraz, em manto de santidade. Somos depois da morte o fomos e muita gente, que anda por aí mascarada, aqui encontra recursos para ser mais cruel. Quanto a mim, rendo graças a Deus por achar -me na condição de pecador arrependido, esmurrando o próprio peito e clamando “meã culpa, meã culpa...” Nosso orientador real é o Cristo, Nosso Senhor. Sem Ele, sem a nossa aplicação aos Seus ensinos e exemplos, respirare mos invariavelmente na antiga cegueira que nos arroja aos fundos espinheiros do fosso. Procuremo -Lo, pois, auxiliemo -nos uns aos outros e você, que com tanta generosidade se interessa pela minha renovação, não se esqueça das oito letras de luz que brilham sobre o seu nome. Ser “espírita” é continuar com Jesus o apostolado da redenção e que " Humberto de Campos," você prossiga com o Mestre, amando e servindo, no constante incentivo ao bem, é tudo de mais nobre que lhe posso desejar. (página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em reunião do mês de setembro de ) " Humberto de Campos," XVIII A Receita O portuna Anacleto, o alegre orientador de uma reunião evangélica, recebeu a visita da Dona Clotilde Serra, que se banhava nas irradiações da fé, plenament e rejuvenescida em seus ideais novos e, ouvindo -lhe a palavra amiga, quanto à provável admissão dela nos serviços do bem, aconselhou, bondoso: - Irmã Clotilde, comece a tarefa nas obras simples da oração. Encontrará precioso acesso à luz espiritual. Abrind o nossas almas às correntes sublimes que dimanam da prece, surgem para nós oportunidades mil de alegria e paz, sob a inspiração do Cristo. A companheira reconhecida agradeceu e partiu, entusiasta; mas, depois de um mês, informava a amigo invisível: - Infel izmente, não pude atender à sugestão. Iniciando o trabalho, fui ferida pelo sarcasmo de muitos. Fui severamente criticada e muita gente considerou -me hipócrita... -o- -Minha amiga – obtemperou o benfeitor paciente – por que não ensaia a visitação dos enfer mos? Há grande vantagem na sementeira de amizade e simpatia. A consulente ausentou -se conformada, entretanto, alegava, depois de alguns dias: - Irmão Anacleto, não consegui obedecer -lhe a orientação. Junto aos doentes, recolhi chagas sem número. Não falto u quem me interpretasse por bajuladora na pista de legados e remunerações... - Não esmoreça! – observou o instrutor – o trabalho útil é o nosso caminho para a luz. Auxilie as crianças! Há tanta promessa desamparada no reino infantil!... Jesus lhe abençoará o devotamento. " Humberto de Campos," Dona Clotilde saiu encorajada, contudo, quando correram dois meses sobre a nova experiência, regressou clamando desalentada: - Irmão, não me foi possível seguir adiante... Tentando socorrer os meninos abandonados, não faltou quem me designa sse por sanguessuga da caridade e alguns vizinhos chegaram a caluniar -me, afirmando, de público, que meu apego Às criancinhas significava a reparação de crimes que não cometi... Anotando as grossas lágrimas que lhe rolavam das faces, Anacleto afagou -a e po nderou, calmo: - Não se entristeça! Volte -se para as nossas irmãs desventuradas. Ampare, sem alarde, as mulheres infelizes que a necessidade arrastou aos despenhadeiros de ilusão!... Quem sabe? Talvez encontre uma lavoura preciosa de amor. A sensível senho ra ausentou -se, consolada, mas quando duas semanas se escoaram sobre o novo trabalho, tornou à reunião, choramingando: - Anacleto, não posso! Não posso!... a maldade, desta vez, foi excessivamente rude comigo... Imagine que, em me derramando no socorro fr aternal, fui nomeada por mulher indigna do nome que me gabo de sustentar!... - Doem -me fundamente semelhantes insultos!... -o- Registrando -lhe os soluços convulsivos, o prestimoso orientador sugeriu, compadecidamente: - Clotilde, tente a mediunidade no aux ílio ao próximo. A enfermidade e a ignorância campeiam em quase todos os setores da luta humana. Faça alguma cousa. A grande questão é começar. Não dê entrada ao desânimo! Sigamos na vanguarda luminosa do bem! Mais vale uma candeia brilhante palidamente so bre o óleo da boa vontade que um milhão de comovedores discursos contra domínio das trevas!... " Humberto de Campos," -o- Retirou -se a irmã tranqüilizada e confiante, mas, após o transcurso de algumas semanas, voltou a grupo e reclamou: - Ah! Que tarefa ingrata nos impõe o min istério mediúnico! O médium é um joguete desventurado entre a curiosidade e a suspeição! Por mais se esforce não encontra a segurança do apoio e da fé naqueles que o rodeiam, e acaba sempre qual me sinto, sucumbindo de dor entre a desconfiança e a malícia de quase todos os companheiros... Anacleto, Anacleto! Que será de mim? -o- Desta vez, porém, o mentor recolheu -se ao silêncio com visível tristeza e porque tardasse a resposta à servidora complicada inquiriu ansiosa: - Que fazer, meu amigo? Como proceder? Auxilia -me com uma receita oportuna!... Anacleto, contudo, razoavelmente desencantado, mas, ainda otimista, respondeu sereno: - Irmã Clotilde, compreendo agora o seu caso com mais clareza! O seu problema, por enquanto, é de medicina. Procure um especiali sta em moléstias de pele, com a presteza possível, e provavelmente, muito em breve poderá recomeçar... " Humberto de Campos," XIX Memórias “Deve ser horrível – diz você –o escândalo, em torno de nossa memória. O nome arrastado ao pelourinho do escárnio públi co e ao pasto da maledicência deve ser uma fogueira de angústia para o coração acordado, além da morte.” Você tem razão. A ave, em pleno céu, que se visse constrangida a voltar à casca do ovo, ou a árvore opulenta, que se reconhecesse obrigada a retornar p ara a cova do lodo, sofreriam menos que a alma desencarnada, sob a intimação ao regresso às perigosas infantilidades da experiência humana. -o- Em tais circunstâncias, laços mais pesados nos religam o espírito com mais intensidade, a gleba da carne, e a vo z dos nossos julgadores,não raro, nos converte os ouvidos em receptores gigantescos para os quais convergem todos os apontamentos justos ou injustos de quantos nos apreciam a conduta e as decisões. -o- Você já pensou num homem cujo corpo seja uma chaga viv a, tangido violentamente por milhares de mãos descaridosas e rudes? Esse é um símbolo pálido com que ousamos qualificar o suplício do infortunado que lega aos contemporâneos as recordações da própria viagem na Terra, quando essas memórias se referem às situações que fazem o inferno dos seus semelhantes. -o- Fustigado por reclamações e acusações infindáveis, o morto -vivo, com a infelicidade desse jaez, sofre golpes desapiedados, a " Humberto de Campos," torto e a direito,à maneira de um ferido na praça pública, visitado pelos sopa pos e pelos impropérios de toda a gente. E você não calcula o que seja o martírio trazido pela impossibilidade de qualquer esclarecimento digno. Falar ou escrever levianamente é expor -se a ouvir o pronunciamento da insensatez; e por mais que o delinqüente do verbo falado ou da letra reprovável se proclame arrependido e diferente, mais a crueldade o toma de assalto, esbofeteando -lhe o rosto amarrotado e disforme, sem que lhe seja facultada a mínima frase de defesa. -o- Efetivamente, enquanto nos demoramos na carne, é impossível imaginar o que seja isso. È o desespero impotente daquele que, em vão, deseja fazer -se compreendido, é a sede inestancável de entendimento e o pranto amargurado de quem observa o incêndio no próprio lar, sem uma gota d’água para exting uir a chama destruidora. -o- A figura de Ugolino, o famoso chefe de Pisa, encarcerado na torre da fome, a devorar as vísceras mortas dos próprios filhos, encontrado por Dante nos recôncavos do Estige é, de alguma sorte, a única imagem para o confronto anal ógico nos casos a que nos reportamos, porque realmente ilhados na solidão de nós mesmos, entre o pesadelo e o remorso de não termos sido o que deveríamos ser, somos obrigados a tragar os detritos de nossas próprias obras. Creia você que, em verdade, tudo i sso é terrível e doloroso, de vez que o arrependimento irremediável nos transforma em duendes infortunados, em aflitiva peregrinação. -o- " Humberto de Campos," Não admita, porém, que isso seja apenas lamentável privilégio de alguns. Não é necessário fixarmos reminiscências da T erra, em bronze ou papel, para que a vida nos revele aos outros tais quais somos. Trazemos conosco o arquivo que nos é próprio. Sentimentos e idéias, palavras e ações são marcas em nossa alma. Todos alcançaremos o plano em que nosso espírito é um livro aberto. -o- Intenções ocultas, interferências nos destinos alheios, assaltos disfarçados à felicidade do próximo, crimes consagrados pela admiração do mundo, misérias íntimas e desequilíbrios morais aparecem claramente espantando a nós mesmos, que não suspei távamos, de leve, da nossa própria degradação. Você que conhece tão bem o assunto, cuide dos próprios passos e vele pelo futuro de sua alma eterna, porque a existência, meu caro, seja onde for, é sempre um livro que o nosso coração anda escrevendo. " Humberto de Campos," XX Cordialmente E se você perdoasse? Declara -se aflito e exausto. Aproximou -se do espiritismo, como quem busca a fonte de águas vivas. Deslumbrado, feliz, você saciou a sede de conhecimento e consolação. Sentiu a grandeza da vida que se este nde, sublime, além da morte, e passou a cooperar a fim de que outros recebessem a mesma dádiva. -o- Entretanto, alega a impossibilidade de ajustar -se a demais peças da máquina de serviço. Assevera, contrafeito, haver encontrado na organização doutrinária a inconsciência, a insensatez, a desconfiança e a maldade. Afirma que os irmãos não vibram no mesmo ritmo de fraternidade com que seu coração vai marcando as horas renovadoras. -o- Suas boas intenções são deturpadas, seus melhores sentimentos feridos... No entanto, que lavrador do mundo encontrou o campo sem obstáculos e sem erva daninha, convidando -o ao amor da sementeira inicial? Se você, de mãos postas no arado da própria redenção avançasse, firme, no esforço silencioso, provavelmente não seria defrontado pelo desapontamento. -o- Não espere que o amigo venha ao encontro de suas necessidades, nem estabeleça dívidas de gratidão que você mesmo teria dificuldade de aceitar. " Humberto de Campos," Não fomos chamados a servir entre anjos. Criaturas imperfeitas quais somos, por que exi gir um paraíso com exclusividade para os nossos desejos? Permanecemos num intenso campo de trabalho, onde cada servo foi trazido pelos Desígnios Superiores a recanto diferente. -o- O Espiritismo Evangélico detém gloriosa tarefa a concretizar -se através da colaboração dos homens de boa vontade. Se não nos sentirmos edificados para a melhoria dos outros, como realizar o cometimento? Além disso, não creia seja você o único a tolerar. Todos nós arquivamos traços condenáveis na personalidade que outros suportam a seu turno.falhando -nos o senso de auxílio mútuo, como garantir a integridade das obras? -o- Por que a demora na exasperação ou no desânimo, se há tanto serviço nobre por fazer? Por que disputar funções alheias se cada qual de nós está situado na posição em que será possível produzir mais e melhor? As abelhas, em plena atividade da colméia, quando visitadas por algum detrito, não perdem tempo, atribuindo -lhe demasiada importância. Envolvem o elemento indesejável em cera isolante e prosseguem na abençoada f aina do mel. -o- Esqueçamos também o mal perturbador para que o bem não sofra perigoso intervalo. Depois do sepulcro, na maioria das vezes, é que descobrimos o valor dos detritos nos círculos de luta em que você ainda se encontra. O corpo constitui para a alma o que a enxada representa para o lavrador - instrumento bendito para a aquisição de experiência. E acaso poderíamos justificar a deserção do agricultor, " Humberto de Campos," diante de pedras e espinheiros? Para que a enxada? Para que a oportunidade de elevação? -o- Não m enoscabe o seu ensejo de aprender, trabalhar e servir. Quanto à imperfeição dos companheiros, lembre -se de que o doente reclama remédio, tanto quanto o abismo anseia plenitude. As visões gloriosas e as gloriosas revelações não traduzem mais que responsabil idade. Paulo de Tarso contempla Jesus, radiante de beleza celestial, às portas de Damasco, todavia, voltando a si do êxtase divino, repara que a paisagem é a mesma e que os seus problemas individuais continuam inalteráveis, exigindo -lhe alta capacidade de renunciação e sacrifício para resolvê -los perante as Leis Eternas. O próprio Mestre, depois de maravilhosamente transfigurado no Thabor, desce o mente iluminado para escalar a cruz em plena sombra. -o- Que deseja, pois, meu amigo? Voar sem asas? Não intent e. Por enquanto trabalhe por alcançá -las. É provável que você se aborreça com o meu parecer. Esta opinião, porém, é de um “morto” para um “vivo” e, por isto mesmo, não tem maior importância. Se você puder aproveitá -la, parabéns merece pela atitude arrojada , diante de si próprio, mas se estiver incapacitado, continue procurando a “boa vida” até que a morte lhe descerre a visão. A essa altura, aprenderá muita lição útil na compulsória, engaiolado no “cárcere do tempo perdido”, contudo, nem por isso esteja aba tido e desconsolado porque você não será o primeiro. Fim " André Luiz," NAS ZONAS INFERIORES Eu tinha a impressão de haver perdido a idéia de tempo. A noção de espaço já havia desaparecido há muito tempo. Eu tinha certeza de que não pertencia mais ao mundo dos vivos e, no entanto, meus pulmões respirava m profundamente. Desde quando havia me tornado brinquedo de forças irresistíveis? Impossível dizer. Sentia -me, na verdade, espectro amargurado preso pelo horror. Cabelos desarrumados, coração aos pulos, medo terrível tomando conta do meu ser, muitas vezes gritei como louco, implorei piedade e protestei contra o doloroso desânimo que me vencia o espírito; mas quando não era o silêncio cruel que engolia minha voz, gemidos mais tristes que os meus respondiam aos meus chamados. Outras vezes, gargalhadas sinist ras interrompiam o silêncio do lugar. Algum companheiro desconhecido enlouquecido, pensava eu. Formas diabólicas, rostos abestalhados, expressões animalescas surgiam, de vez em quando, agravando meu medo. A paisagem, quando não estava totalmente escura, pa recia envolvida em luz esbranquiçada, como um cadáver vestido de pesada neblina, que os raios de Sol aquecessem de muito longe. E a estranha viagem prosseguia... Com que finalidade? Quem poderia responder? Só sabia que fugia o tempo todo... O medo me levav a aos trancos e barrancos. Onde estavam o lar, a esposa, os filhos? Tinha perdido totalmente a noção de direção. O medo do desconhecido e da escuridão me anularam toda capacidade de pensar, assim que rompi os últimos laços com o corpo físico, que já estava enterrado. Minha consciência estava atormentada: preferiria ter perdido totalmente a razão, o não-ser. No começo, chorava sem parar e só em raros momentos conseguia a felicidade de dormir. Mas a sensação de alívio logo era interrompida. Seres monstruosos me acordavam com ironia; tinha que fugir deles. Percebia agora que lugar estranho era aquele que surgia numa nuvem de poeira do mundo e, no entanto, já era tarde. Pensamentos de angústia perturbavam meu cérebro. Mal planejava uma saída e vários incidentes me levavam a conclusões confusas. Em nenhum momento a questão religiosa pareceu tão profunda para mim. Os princípios meramente filosóficos, políticos e científicos agora me pareciam extremamente sem importância para a vida humana. No meu entender, represe ntavam algo importante no mundo físico, mas era necessário reconhecer que a humanidade não se constitui de gerações passageiras e sim de espíritos eternos, a caminho de um destino glorioso. Percebia que alguma coisa permanece acima de toda teoria meramente intelectual. É a fé, manifestação de Deus para o homem. No entanto, chegava muito tarde a essa conclusão. De fato, conhecia os textos do Antigo Testamento e muitas vezes havia folheado o Evangelho; entretanto, era forçado a reconhecer que nunca tinha me interessado realmente pelos textos sagrados. Procurava a opinião de escritores não muito voltados para o sentimento e a consciência, ou discordando completamente das verdades essenciais. Em outras ocasiões, procurava as interpretações religiosas, sem nunca vencer as contradições com que tinha me acomodado. Na verdade, no meu conceito, não tinha sido um criminoso. Mas o imediatismo tinha me vencido. Minha vida física, transformada pela morte, não tinha sido marcada por fatos diferentes do padrão comum. Filho de pais talvez generosos demais, consegui meus diplomas superiores sem muito sacrifício, compartilhei dos vícios da juventude da minha época, formei um lar, tive filhos, procurei estabilidade para garantir a tranquilidade econômica de minha família, mas, pondo a mão na consciência, que me acusava silenciosamente, alguma coisa me dava a sensação de tempo perdido. Tinha vivido na Terra, usufruído seus bens, aproveitado as bênçãos da vida, mas não tinha quitado completamente o débito enorme. " André Luiz," Tive pais generos os e dedicados que nunca soube valorizar; prendi esposa e filhos com egoísmo feroz e destruidor. Tive um lar que fechei a todas as pessoas que se encontravam em dificuldades. Aproveitei as alegrias da família, esquecendo de dividir essa bênção com o resto da humanidade, permanecendo indiferente aos mais básicos deveres de fraternidade. No fim, como uma flor criada em estufa, não conseguia encarar a realidade eterna. Não havia desenvolvido os potenciais que Deus havia me dado. Sufoquei tudo, criminosamente, pensando só no meu bem estar. Não me preparei para a nova vida. Por isso era justo que me sentisse como um aleijado que fosse obrigado a caminhar para continuar viagem; ou como pobre mendigo que, cansado no deserto, caminha sem destino, empurrado por ven tos fortes. Ah, amigos da Terra, quantos de vocês podem evitar essa angústia, preparando o próprio coração... Acendam suas luzes interiores antes de passar pela morte. Busquem a verdade antes que a verdade chegue de surpresa. Suem agora para não chorar dep ois. " André Luiz," CLARÊNCIO “Suicida! Suicida! Criminoso! Infame!” – gritos como estes me cercavam de todos os lados. Onde estavam esses mercenários insensíveis? Algumas vezes, eu os via de relance, deslizando na escuridão, e, no auge do desespero, eu os atacava, indo ao limite de minhas forças. No entanto, em vão eu esmurrava o ar com toda minha raiva. Escutava gargalhadas sarcásticas, enquanto os vultos escuros desapareciam nas sombras. Para quem apelar? A fome me torturava, a sede me escaldava. Os fenômenos mais banais da vida física apresentavam -se claros aos meus olhos. A barba havia crescido, a roupa começava a se rasgar com os meus esforços naquela região estranha. O mais doloroso, no entanto, não era o terrível abandono em que me sentia, mas o assédio constante de forças perversas que me atacavam de repente nos caminhos desertos e escuros. Irritavam -me, aniquilavam -me a capacidade de ordenar idéias. Queria pensar com maturidade sobre a situação, procurar razões e estabel ecer novas diretrizes para o pensamento, mas aquelas vozes, aqueles lamentos misturados com acusações pessoais, deixavam -me completamente desnorteado. - O que vc está procurando, infeliz! Aonde vai, suicida? Críticas como essas, repetidas sem parar, perturba vam meu coração. Infeliz, sim; mas suicida? – nunca! Essas acusações, no meu entender, não eram verdadeiras. Eu tinha deixado o corpo físico contra a minha vontade. Lembrava de minha luta obstinada com a morte. Parecia que ainda ouvia os últimos pareceres médicos na Casa de Saúde; lembrava a assistência dedicada que tinha recebido, os curativos dolorosos que havia enfrentado durante o longo período após a delicada cirurgia dos intestinos. Enquanto recuperava essas lembranças, sentia o contato do termômetro, a picada desagradável das injeções e, finalmente, revia a última cena antes da morte: minha esposa, ainda jovem, e os três filhos me olhando, no desespero da separação final. Depois... acordar na paisagem úmida e escura e a grande caminhada que parecia in terminável. Por que o rótulo de suicida, quando tinha sido obrigado a abandonar a casa, a família e o convívio agradável com as pessoas queridas? Até o homem mais forte tem limites para a resistência emocional. Firme e decidido no início, comecei a me entr egar a longos períodos de desânimo, e, longe de manter a firmeza moral, por não saber o que me aconteceria, senti que o choro, por tanto tempo contido, irrompia com mais frequência, aliviando o coração. A quem recorrer? Por maior que fosse a cultura intele ctual trazida do mundo, não poderia mudar agora a realidade da vida. Meus conhecimentos, perante o infinito, pareciam bolhas de sabão carregadas pelo vento forte que transforma as paisagens. Eu era alguma coisa que o tufão da verdade arrastava para muito l onge. Entretanto, a situação não modificava a minha outra realidade íntima. Perguntando a mim mesmo se não tinha enlouquecido, percebia a consciência vigilante, me mostrando que eu continuava a ser eu mesmo, com o sentimento e a cultura alcançados durante a vida física. As necessidades fisiológicas continuavam, sem modificação. A fome me castigava por inteiro e, ainda assim, o abatimento progressivo não me fazia cair completamente exausto. De vez em quando, eu via verduras, que me pareciam agrestes, em torn o de humildes filetes d’água onde eu me atirava cheio de sede. Devorava as folhas estranhas, colava a boca ao fio de água turva, enquanto eu ainda podia lutar contra as forças irresistíveis que me empurravam para frente. Muitas vezes suguei a lama da estra da, lembrando do antigo pão de cada dia e chorando copiosamente. Com frequência, precisava me esconder das manadas enormes de seres animalescos que passavam em bando, como se fossem feras insaciáveis. Eram cenas estarrecedoras! O desalento se agrava. Foi q uando comecei a me lembrar de que deveria existir um Autor da Vida, onde quer que fosse. Essa idéia me aliviou. Eu, que tinha detestado as religiões do mundo, experimentava agora a necessidade de conforto místico. Médico extremamente apegado " André Luiz," ao negativismo da minha geração, sentia que uma atitude renovadora se impunha. Era necessário reconhecer a falência do amor próprio, ao qual tinha me dedicado com orgulho. E, quando todas as minhas energias se acabaram, quando me senti absolutamente jogado no lodo da Te rra, sem forças para me levantar novamente, pedi a Deus que me estendesse suas mãos de Pai, numa emergência tão amarga. Quanto tempo durou a rogativa? Quantas horas fiquei de mãos postas suplicando, como uma criança aflita? Só sei que o choro farto me lavo u o rosto; que todos os meus sentimentos se concentraram na prece dolorosa. Será que eu estava completamente esquecido? Não era, como os outros, filho de Deus, embora não tivesse pensado em conhecer Suas leis quando encarnado? Por que Deus não me perdoaria , quando providenciava ninho para as aves inconscientes, e protegia, com bondade, a flor nova nos campos? Ah! É preciso ter sofrido muito para entender as belezas misteriosas da oração; é necessário ter conhecido o remorso, a humilhação, a extrema falta de alegria, para aceitar , de coração , o socorro da esperança. Foi nesse instante que as neblinas grossas se desmancharam e alguém apareceu como um mensageiro dos Céus. Um velhinho simpático sorriu para mim como um pai. Inclinou -se, olhou pra mim fixamente co m seus olhos lúcidos e falou: - Coragem, meu filho! O senhor não desampara você. Um choro cheio de amargura me aliviava a alma toda. Emocionado, quis falar da minha alegria, comentar o consolo que chegava para mim, mas , reunindo todas as forças que me rest avam, pude apenas perguntar: - Quem é você, generoso mensageiro de Deus? O benfeitor inesperado sorriu com bondade e respondeu: - Meu nome é Clarêncio e sou apenas seu irmão. E notando que eu estava esgotado, acrescentou: - Fique calmo e em silêncio agora. Você precisa descansar para recuperar as energias. Em seguida, chamou dois companheiros que aguardavam com respeito e atenção , e disse: - Vamos dar ao nosso amigo os socorros de emergência. Lençol muito branco foi estendido ali mesmo como maca improvisada , enquanto os dois assistentes se dispunham a me transportar carinhosamente. Quando me levantavam com cuidado, Clarêncio pensou um pouco e pediu, como se se lembrasse de compromisso inadiável: - Vamos depressa. Preciso chegar a “Nosso Lar” o mais rápido po ssível. " André Luiz," A ORAÇÃO COLETIVA Apesar de transportado como um ferido comum, pude notar a imagem reconfortante que surgia à minha frente. Clarêncio, que se apoiava num cajado feito de luz, parou em frente a uma grande porta localizada entre m uros altos, cobertos de trepadeiras floridas e graciosas. Apalpando um ponto no muro, uma grande passagem se abriu, por onde entramos em silêncio. Uma suave claridade cobria todas as coisas. A alguma distância, bonito foco de luz dava a sensação de um pôr de sol de primavera. À medida que íamos adiante, conseguia identificar construções muito bonitas, situadas em grandes jardins. Ao sinal de Clarêncio, os assistentes apoiaram devagar a maca improvisada. Na minha frente surgiu, então, a porta simpática de um prédio muito branco, parecido com um grande hospital da Terra. Dois jovens, usando túnicas muito brancas de linho, atenderam atenciosos o chamado do meu benfeitor, e, quando me acomodavam num leito de emergência, para, com cuidado, me levarem para dentro, ouvi o bondoso senhor recomendar, carinhoso: - Coloquem nosso protegido no pavilhão da direita. Agora tenho pessoas esperando por mim. Amanhã volto para vê -lo. Olhei para ele com gratidão, ao mesmo tempo que era levado para um amplo e confortável aposento , muito bem decorado, onde me deram um leito confortável. Envolvendo os dois enfermeiros nas minhas vibrações de gratidão, tentei falar com eles, conseguindo dizer: - Amigos, por favor, me expliquem que mundo novo é esse onde estou... De que estrela vem ag ora esta luz agradável e brilhante? Um deles passou a mão pela minha testa, como se fosse conhecido pessoal de muito tempo, e me disse: - Estamos nos planos espirituais próximos da Terra, e o Sol que nos ilumina, neste momento, é o mesmo que energizava o n osso corpo físico. Aqui, entretanto, nossa visão é muito mais rica. A estrela que Deus acendeu para nossos trabalhos terrestres é mais preciosa e bela do que supomos quando estamos encarnados. Nosso Sol é a fonte divina da vida, e a claridade que irradia e mana de Deus. Meu ego, envolvido em profundo respeito, fixou a luz suave que entrava no quarto pelas janelas, e me perdi em pensamentos profundos. Lembrei, então, que nunca tinha prestado atenção ao Sol nos dias de vida na Terra, pensando na bondade sem ta manho dAquele que o dá para nós todos pela eternidade. Eu parecia, assim, um cego abençoado que abre os olhos para a sublime natureza, depois de longos séculos de escuridão. A essa altura, me serviram uma boa sopa e, em seguida, água fresca, que me pareceu cheia de fluidos espirituais. Aquele pouco de água, de repente, me deu novas forças. Não sei dizer que tipo de sopa era aquela; se alimento sedativo, se remédio salutar. Novas energias me sustentavam a alma, profundos sentimentos vibravam em meu espírito. No entanto, minha maior emoção ainda estava por vir. Mal acabava de me recuperar da bela surpresa, uma música divina entrou pelo quarto, como se fossem sons a caminho do céu. Aquelas notas de harmonia maravilhosa atravessaram meu coração. Vendo meu olhar de interrogação, o enfermeiro, que estava ao meu lado, explicou com carinho: - Está na hora do entardecer em “Nosso Lar”. Em todos os centros desta colônia de trabalho, dedicada a Jesus, existe uma ligação direta com as preces da Governadoria. E enquanto a música envolvia o ambiente em boas vibrações, despediu -se atencioso: - Agora fique em paz. Volto logo depois da oração. Uma vontade repentina me animou. " André Luiz," - Será que eu não poderia acompanhar você? – perguntei ansioso. - Você ainda está fraco , – esclareceu com gentileza – mas se estiver se sentindo disposto... Aquela melodia me renovava as energias. Com muito esforço me levantei e me apoiei no braço que o companheiro me estendia. Seguindo vacilante, cheguei a um salão enorme, onde uma platéia numerosa meditava em silêncio, em atitude interior. Na abóbada cheia de luz brilhante, estavam penduradas guirlandas delicadas de flor, quem iam do teto ao chão, formando bonitos símbolos de espiritualidade superior. Ninguém parecia notar a minha presença, enquanto eu mal c onseguia esconder minha grande surpresa. Todos os presentes, atentos, pareciam estar esperando alguma coisa. Contendo, com dificuldade, as várias perguntas que ferviam em minha mente, notei que, ao fundo, em tela gigantesca, estava desenhado maravilhoso qu adro de luz deslumbrante. Através de adiantados processo de TV, surgiu um templo magnífico. Sentado em lugar de destaque, um ancião coroado de luz, em prece, usando uma túnica branca de irradiações brilhantes. Mais abaixo, pessoas o acompanhavam respeit osamente em silêncio. Muito surpreso, reparei que Clarêncio participava da assembléia, entre os que cercavam o velhinho brilhante. Apertei o braço do amigo enfermeiro e, percebendo que eu não aguentaria até mais tarde para fazer minhas perguntas, explicou em voz baixa, quase num sussuro: - Fique tranquilo. Todas as casas e instituições de “Nosso Lar” estão em prece com o Governador, pela audição e visão à distância. Louvemos a Deus. Mal terminou a explicação, as pessoas começaram a cantar um hino harmoni oso, cheio de beleza inexplicável. O rosto de Clarêncio, no círculo dos elevados companheiros, me pareceu tocado de luz mais intensa. O canto celeste era de notas angelicais, de elevado reconhecimento. Pairavam no salão vibrações misteriosas de paz e alegr ia e, quando as notas finas fizeram maravilhoso staccato , num plano elevado mais distante se desenhou um coração de azul maravilhoso, com sulcos dourados. Em seguida, música suave respondia aos louvores, vinda talvez de planos distantes. Foi aí que uma int ensa chuva de flores azuis caiu sobre nós; mas, se tentávamos pegar os miosótis celestiais, não conseguíamos mantê -los nas mãos. As pétalas muito pequenas se desfaziam de leve ao tocar nossa testa, de forma que eu sentia uma renovação diferente de energias , assim que as flores fluídicas me tocavam e aliviavam meu coração Assim que a prece terminou, voltei ao quarto do hospital, ajudado pelo amigo que me atendia mais diretamente. Entretanto, não estava mais tão doente quanto a algumas horas. A primeira prece coletiva em “Nosso Lar” havia provocado uma completa transformação em mim. Um inesperado conforto envolvia minha alma. Pela primeira vez, depois de anos seguidos de sofrimento, o pobre coração, atormentado e cheio de saudade, como uma taça que está vazia há muito tempo, tinha se enchido de novo com as gotas generosas do licor da esperança. ____________________ () - Imagem simbólica formada pelas vibrações mentais dos habitantes da colônia. – Nota de André Luiz " André Luiz," O MÉDICO ESPIRITUAL No dia segui nte, depois de descansar bastante, aproveitei a bênção radiante do Sol, como se fosse uma suave mensagem para o coração. Uma bela claridade atravessava a grande janela, enchendo o quarto de uma luz gostosa. Estava me sentindo outro. Novas energias preenchi am meu íntimo. Tinha a impressão de beber a alegria da vida em grandes goles. Na alma, apenas uma ponta de sombra – a saudade de casa, o apego à família que tinha ficado distante. Várias perguntas rodavam na minha cabeça, mas a sensação de alívio era tão g rande que eu sossegava o espírito, longe de qualquer questionamento. Quis me levantar, aproveitar o espetáculo da natureza cheia de brisas e de luz, mas não consegui e concluí que, sem a ajuda energética do enfermeiro, era impossível para mim sair da cama. Ainda não tinha voltado a mim das seguidas surpresas, quando a porta se abriu e vi Clarêncio entrar acompanhado de um simpático desconhecido. Eles me cumprimetaram atenciosos, me desejando paz. Meu benfeitor do dia anterior perguntou do meu estado geral. O enfermeiro atendeu, dando informações. Sorridente, o velhinho amigo me apresentou o companheiro. Tratava -se, disse, do irmão Henrique de Luna, do Serviço de Assistência Médica da colônia espiritual. Vestido de branco, fisionomia irradiando uma simpatia e norme, Henrique me auscultou sem pressa, sorriu e explicou: - É uma pena que tenha vindo por suicídio. Enquanto Clarêncio continuava calmo, senti que um ataque de revolta fervia em meu íntimo. Suicídio? Lembrei das acusações do seres perversos das sombras. A pesar da grande gratidão que já começava a sentir, não consegui calar à acusação. - Acho que há um engano – afirmei, ofendido - meu retorno do mundo não foi por causa disso. Lutei mais de dias, na Casa de Saúde, tentando vencer a morte. Fiz duas cirurgi as graves, por causa de oclusão intestinal... - Sim – esclareceu o médico, demonstrando a mesma calma superior - mas a oclusão tinha causas profundas. Talvez você não tenha analisado bem. O organismo espiritual tem, em si mesmo, a história completa dos ato s praticados no mundo. E inclinando -se atencioso, apontava determinados pontos do meu corpo: - Vejamos a região intestinal – exclamou. – A oclusão era derivada de focos de câncer e estes, por sua vez, eram derivados de suas leviandades em relação à sífilis . A doença talvez não se tornasse tão grave se o seu comportamento mental no mundo estivesse dentro de princípios de fraternidade e auto -controle. Entretanto, seu modo especial de conviver, muitas vezes exasperado e sombrio, captava vibrações destruidoras daqueles que o ouviam. Nunca imaginou que a cólera fosse fonte de forças negativas para nós mesmos? A falta de auto -controle, a falta de atenção no trato com os outros, aos quais muitas vezes você ofendeu sem pensar, conduziam -no, com frequência, a estados doentios e inferiores. Essa circunstância agravou muito seu estado físico. Depois de longa pausa, em que me examinava atentamente, continuou: - Já notou, meu amigo, que seu fígado foi maltratado por suas próprias atitudes; que os rins foram esquecidos, co m grande descaso pelas dádivas divinas? - Os órgãos do corpo físico possuem reservas incalculáveis, de acordo com a determinações de Deus. Você, no entanto, ignorou excelentes oportunidades, desperdiçando patrimônios preciosos da vida física. A longa taref a que foi confiada a você pelos Espíritos Superiores foi reduzida a meras tentativas de trabalho que não se concretizou. Todo o aparelho gástrico foi destruído com excessos de alimentação e bebidas alcoólicas, aparentemente sem importância. A sífilis consu miu energias essenciais. Como vê, o suicídio é incontestável. " André Luiz," Pensei nos problemas da vida, refletindo nas oportunidades perdidas. Enquanto encarnado, conseguia usar várias máscaras, conforme as situações. Aliás, não poderia supor, em outros tempos, que me pediriam contas de acontecimentos simples, que costumava considerar como fatos sem maior importância. Até então, classificava os erros humanos de acordo com os preceitos da criminologia. Todo acontecimento insignificante, que não constasse dos códigos l egais, entraria para a relação de coisas naturais. No entanto, agora me apresentavam outro sistema para verificar os erros cometidos. Não fui julgado por tribunais de tortura, nem por abismos infernais; no entanto, benfeitores sorridentes comentavam minhas fraquezas como quem cuida de uma criança desorientada que está longe dos pais. Aquele interesse espontâneo, no entanto, feria minha vaidade de homem. Se eu fosse torturado por demônios, de tridente nas mãos, talvez não me sentisse tão mal com a derrota. Entretanto, a enorme bondade de Clarêncio, o tom terno do médico, a calma do enfermeiro, penetravam fundo em meu espírito. Eu não tinha vontade de reagir; o que me doía era a vergonha. E chorei. Com o rosto entre as mãos, como menino mimado infeliz, comece i a soluçar com a dor que me parecia irremediável. Não tinha como discordar. Henrique de Luna falava com muita razão. Por fim, engolindo a vaidade, reconheci a extensão de minhas leviandades de outros tempos. A falsa noção de dignidade pessoal dava lugar à justiça. Para a minha visão espiritual só existia agora uma realidade que me torturava: eu realmente era um suicida, tinha perdido a oportunidade preciosa da encarnação, não passava de um náufrago que alguém recolhia por caridade. Foi então que o bondoso Clarêncio, sentando -se ao meu lado na cama, acariciou meu cabelos como um pai e falou comovido: - Ah, meu filho, não se lastime tanto. Eu o procurei, atendendo os pedidos dos que o amam, dos planos mais altos. Suas lágrimas mancham seus corações. Você não deseja ser grato, mantendo a tranquilidade ao examinar os próprios erros? Na verdade, sua situação é a de um suicida inconsciente; mas é necessário reconhecer que centenas de criaturas deixam o mundo diariamente, nas mesmas condições. Acalme -se, portanto. Aproveite as vantagens do arrependimento, guarde a bênção do remorso, ainda que tardio, sem esquecer que a aflição não resolve problemas. Confie em Deus e em nossa dedicação fraterna. Sossegue a alma perturbada, porque muitos de nós já andamos nos mesmos c aminhos que você. " André Luiz," RECEBENDO ASSISTÊNCIA - É você o protegido de Clarêncio? A pergunta vinha de um jovem de expressão doce e especial. Com uma grande mala na mão, como quem carregava instrumentos de assistência, olhava pra mim com um sorriso amigável. Quando fiz que sim com a cabeça, ficou à vontade e, como um irmão, afirmou: - Eu sou Lísias, seu irmão. Meu diretor, o assistente Henrique de Luna, me designou para atender você, enquanto precisar de tratamento. - Você é enfermeiro? – perguntei. - Sou visitador dos serviços de saúde. Nessa função, não só ajudo na enfermagem, como também atendo a necessidades de socorro, ou tomo providências para doentes recém -chegados. Notando minha surpresa, explicou: - Há muitos servidores como eu em “Nosso Lar”. Você acabou de chegar à colônia e, naturalmente, não conhece o tamanho dos nossos trabalhos. Para ter uma idéia, basta lembrar que só aqui, na seção em que você está, existem mais de mil doentes espirituais, e veja que este é um dos menores ed ifícios do nosso parque hospitalar. - Tudo isso é maravilhoso! – exclamei. Percebendo que meus comentários iam se transformar em elogios espontâneos, Lísias se levantou da poltrona em que estava sentado e começou a me auscultar atento, não me dando chance de fazer o agradecimento final. - A zona dos seus intestinos apresenta lesões sérias com claros vestígios do câncer; a região do fígado tem dilacerações; a dos rins dá sinais característicos de esgotamento prematuro. Sorrindo, acrescentou com bondade: - Você sabe o que isso quer dizer? - Sim – respondi, - o médico me disse ontem, explicando que devo esses desequilíbrios a mim mesmo... Notando meu acanhamento com a confissão a contragosto, logo me consolou: - Na turma de enfermos a que atendo diariamente , estão nas mesmas condições. E você talvez não saiba que existem aqui os mutilados. Já pensou nisso? Você sabe que o homem descuidado, que usou seus olhos para o mal, vem para cá com as órbitas vazias? Que o malfeitor, interessado em usar sua capacidad e de andar para a fuga fácil nos crimes, acaba paralítico, quando não é recolhido sem as pernas? Que os perturbados por desequilíbrios sexuais costumam chegar em estado de extrema loucura? Percebendo minha surpresa natural, continuou: - “Nosso Lar” não é l ugar de espíritos propriamente vitoriosos, se tomarmos o significado literal da palavra. Somos felizes porque temos trabalho; e a alegria está presente em cada canto da colônia, porque Deus não nos deixou sem a bênção do serviço. Aproveitando a brecha mais longa, exclamei emocionado: - Continue me esclarecendo, meu amigo. Estou me sentindo mais aliviado e tranquilo. Este não seria um departamento celestial dos eleitos? Lísias sorriu e explicou: - Vamos nos lembrar do antigo ensinamento que fala dos muitos c hamados e dos poucos escolhidos na Terra. E deixando o olhar se perder no horizonte distante, como se estivesse procurando a memória de suas próprias experiências mais íntimas, afirmou: - No planeta, as religiões chamam os homens para o banquete celestial. Em sã consciência, ninguém que tenha chegado mais perto da idéia de Deus, pode alegar ignorância sobre esse assunto. É muito grande o número dos chamados, meu amigo; mas onde estão os que atendem ao chamado? Com raras exceções, a humanidade prefere atende r a outro tipo de convites. Perde a possibilidade nos desvios do bem, o capricho de " André Luiz," cada um se agrava, o corpo físico é aniquilado por golpes de irresponsabilidade. Resultado: milhares de criaturas desencarnam em doloroso estado de perturbação. Multidões e normes perambulam em todas as direções nos planos mais próximos da Terra, como se fossem loucos, doentes e ignorantes. Percebendo minha admiração, me perguntou: - Você, por acaso, acreditaria que a morte do corpo nos levaria a planos de milagres? Somos for çados a trabalho duro, a serviços pesados e isso não basta. Se temos débitos na Terra, por mais alto que subamos, é absolutamente necessário voltar para corrigir, lavando o rosto no suor do mundo, soltando as algemas de ódio e trocando -as por laços sagrado s de amor. Não seria justo impor a outra pessoa a tarefa de limpar o campo em que plantamos espinhos com as próprias mãos. Balançando a cabeça, acrescentava: - É esse o caso dos muitos chamados, meu caro. Deus não esquece nenhum homem; pouquíssimos, porém, se lembram dEle. Envergonhado com a lembrança dos meus próprios erros, diante de noções tão grandes de responsabilidade individual, argumentei: - Como fui mal! Mas antes que eu continuasse com outras colocações, o visitante colocou sua mão direita com car inho em minha boca, murmurando: - Chega! Vamos pensar no trabalho a fazer. Quando nosso arrependimento é sincero, é preciso que saibamos falar para construir de novo. Em seguida, deu -me passes magnéticos, com atenção. Fazendo curativos na zona intestinal, explicou: - Você não percebe o tratamento especializado da região cancerosa? Então veja bem: toda medicina praticada com honestidade é serviço de amor, atividade de socorro justo; mas o trabalho de cura é específico de cada espírito. Você será tratado com carinho, vai se sentir forte como nos melhores tempos de juventude do corpo físico, vai trabalhar muito e, acho, será um dos melhores colaboradores em “Nosso Lar”; entretanto, a causa dos seus problemas continuará em você mesmo, até que se livre dos germes que comprometem a saúde divina, que o seu corpo sutil pegou por causa do seu descuido moral e pelo desejo de aproveitar mais que os outros. O corpo físico, onde cometemos abusos, é também o campo bendito onde podemos realizar trabalhos positivos de cura radical, quando permanecemos atentos ao nosso dever justo. Pensei nos conceitos, pesei a bondade divina e, com a sensibilidade à flor da pele, chorei abertamente. Lísias, entretanto, terminou o tratamento do dia, com calma, e disse: - Quando as lágrimas não são fruto da revolta, sempre se transformam em remédio desintoxicante. Chore, meu amigo. Desabafe o coração. E vamos abençoar aquelas benditas estruturas microscópicas que são as células físicas na Terra. Tão humildes e tão preciosas, tão detestadas e tão sublimes pelo espírito de serviço. Sem elas, que nos dão oportunidade para a correção, quantos milênios gastaríamos na ignorância? Assim falando, afagou carinhosamente minha testa e se despediu com um beijo amoroso. " André Luiz," PRECIOSO AVISO No dia seg uinte, depois da prece do pôr -do-sol, Clarêncio veio me ver em companhia de Lísias. Demonstrando generosidade no rosto, me abraçou e perguntou: - Como vai? Está melhor? Ameacei fazer o gesto dos doentes que se vêem alvo de atenção na Terra, fazendo -me de v ítima. No mundo, o carinho fraterno, às vezes, é mal interpretado. Assim, mantendo o antigo vício, comecei a me explicar, enquanto os dois bondosos visitantes se sentavam confortavelmente a meu lado: - Não posso negar que esteja melhor, mas ainda sofro mui to. Tenho muitas dores na região dos intestinos, uma angústia estranha no coração. Nunca pensei que tivesse tanta resistência, meu caro! Ah, como tem sido pesada a minha cruz!... Agora que posso raciocinar melhor, percebo que a dor acabou com todas as minh as forças... Clarêncio ouvia com atenção, demonstrando grande interesse por minhas lamentações, sem dar o menor sinal de querer interferir na conversa. Sentindo -me incentivado com essa atitude, continuei: - Além do mais, meus sofrimentos morais são enormes e sem descrição. Com o tormento exterior amenizado pelos cuidados recebidos, volto ao meu sofrimento íntimo. O que terá acontecido com minha esposa e meus filhos? Será que o mais velho conseguiu progredir, conforme eu pretendia? E as meninas? Minha pobre Zélia muitas vezes disse que morreria de saudades se um dia eu lhe faltasse. Esposa maravilhosa! Ainda sinto as lágrimas que derramou nos meus últimos momentos. Não sei desde quando vivo o pesadelo da distância... Várias e demoradas feridas me fizeram perd er a noção de tempo. Onde estará minha pobre esposa? Chorando perto dos meus restos mortais ou em algum lugar escuro da vida após a morte? Ai, minha dor é amarga demais! Que destino terrível tem o homem dedicado à família! Creio que poucas pessoas já sofre ram tanto quanto eu!... Na Terra, contrariedades, desenganos, doenças, incompreensões e amarguras, abafando raros momentos de alegria; depois os sofrimentos da morte física... Em seguida, as dores da vida após a morte! O que é então a vida? Um sequência in terminável de lágrimas e dores? Não existe lugar para a paz? Por mais que eu queira ser otimista, sinto que a sensação de infelicidade me bloqueia o espírtito, como se fosse uma terrível prisão para o coração. Que triste destino, meu bondoso protetor! A essa altura, a onda de queixas já tinha levado minha mente ao choro farto e solto. Clarêncio, no entanto, levantou -se calmo e falou com serenidade: - Meu amigo, você quer mesmo a cura espiritual? Quando eu disse que sim, ele continuou: - Aprenda, então, a n ão falar demais de si mesmo, nem fique comentando os próprios problemas. Reclamações demonstram doença mental de cura demorada e difícil. É indispensável criar pensamentos novos e aprender a controlar a boca. Só consequiremos equilíbrio se abrirmos o cora ção a Deus. Chamar o esforço necessário de obrigação pesada, enxergar sofrimentos onde há luta positiva, é como identificar indesejável cegueira do espírito. Quanto mais você fizer reclamações dolorosas pessoais, mais duros serão os laços que o prendem às lembranças menos felizes. O mesmo Pai que cuida de você, oferecendo -lhe abrigo e cuidado nesta casa, atenderá aos seus parentes terrestres. Devemos considerar nossa família como uma construção sagrada, mas sem esquecer que nossas famílias físicas são parte s da nossa família universal, sob a direção de Deus. Estaremos a seu lado para resolver dificuldades que apareçam e fazer planos para o futuro, mas não temos tempo para ficar remoendo lamentações inúteis. Além disso, nesta colônia temos o compromisso de ac eitar o trabalho mais duro como bênção de realização, entendendo que Deus transborda amor, enquanto nós vivemos cheios de dívidas. Se você deseja ficar nesta casa de assistência, aprenda a pensar de forma justa. " André Luiz," Nesse meio tempo, já havia parado de chorar e, tendo sido chamado à atenção pelo instrutor bondoso, assumi uma outra atitude, embora ainda me sentisse muito envergonhado com a minha fraqueza. - No físico você não buscava – continuou Clarêncio – as vantagens naturais, decorrentes das boas situações? Não gostava de obter recursos lícitos, ansioso por levá -los também aos entes queridos? Não se interessava pelas remunerações justas, pelo conforto, pensando também na família? Aqui o programa não é diferente. O que muda são os detalhes. No mundo material, procuramos as regras sociais e as garantias financeiras; aqui, buscamos o trabalho e as conquistas definitivas do espírito. Dor, para nós, é o mesmo que oportunidade para enriquecer a alma; a luta aqui é o mesmo que caminho para a realização divina. Você e ntende a diferença? As almas fracas, diante do serviço, deitam -se para se queixar com os que passam. As almas fortes, no entanto, recebem o serviço como bem sagrado, com o qual se preparam para a perfeição. Ninguém condena sua saudade justa, nem pretende s ecar sua fonte de sentimentos elevados. No entanto, é preciso notar que o choro desesperado não traz nada de bom. Se você ama de verdade a família terrena, é preciso ter bom ânimo para poder ser útil a ela. Uma longa pausa se fez. A palavra de Clarêncio me levava a ter pensamentos mais sadios. Enquanto eu pensava no valor da sábia advertência, meu protetor, como se fosse um pai que esquece as malcriações dos filhos para recomeçar a lição com toda paciência, voltou a me perguntar com um belo sorriso: - E ent ão, como vai? Está melhor? Contente por ter sido desculpado, como se fosse uma criança que quer aprender, respondi satisfeito: - Estou bem melhor, para poder compreender melhor a vontade de Deus. " André Luiz," EXPLICAÇÕES DE LÍSIAS Continuei e a receber as visitas regulares de Clarêncio e a atenção de Lísias. À medida que procurava me acostumar com as novas obrigações, sentia meu coração aliviado. As dores e as dificuldades para andar diminuíram. No entanto, percebia que as recordações mais for tes das sensações físicas faziam voltar minha angústia, o medo do desconhecido, a mágoa pela falta de adaptação. Apesar de tudo, sentia mais segurança dentro de mim. Sentia prazer agora em observar os vastos horizontes, debruçado nas janelas espaçosas. O q ue mais me impressionava eram os aspectos das natureza. Quase tudo me parecia uma cópia melhorada do que havia na Terra. Cores mais harmônicas, substâncias mais delicadas. O solo estava forrado de vegetação. Grandes árvores, pomares fartos e jardins delici osos. Ao lado do terreno plano onde estava localizada a colônia, havia montanhas iluminadas. Todos os departamentos estavam cultivados com capricho. Não muito longe, viam -se graciosos edifícios, construídos a espaços regulares, com as mais diversas aparênc ias, todos com flores na entrada. Algumas casas encantadoras, cercadas por muros de hera (), destacavam -se com rosas diferentes desabrochando espalhadas, enfeitando o verde com as mais variadas cores e tonalidades. Aves de penas multicoloridas passavam no céu e, de vez em quando, pousavam em grupo nas torres brancas que se erguiam retas em direção ao céu, como se fossem lírios gigantes. Das janelas largas, observava com curiosidade o movimento do parque. Muito surpreso, percebia animais domésticos entre as grandes árvores enfileiradas ao fundo. Nas minhas lutas interiores, perdia -me em todo tipo de questionamentos. Não conseguia entender a variedade de formas parecidas com as do mundo físico, considerando que estava num plano espiritual. Lísias, o companhei ro atencioso de todos os dias, não economizava explicações. Ele dizia que a morte do corpo físico não leva ninguém ao paraíso. Todo processo evolutivo se dá em vários graus. Há muitos planos para os desencarnados, assim como existem vários e surpreendentes planos para as pessoas encarnadas mais desenvolvidas. Almas e sentimentos, formas e coisas, tudo obedece a uma ordem natural de desenvolvimento e hierarquia. No entanto, estava preocupado de estar ali, numa casa de saúde, há muitas semanas, sem receber a visita de algum conhecido do tempo de encarnado. Afinal, eu não havia sido o único dos meus conhecidos a passar pela experiência da morte física. Meus pais tinham vindo antes de mim. Vários amigos também tinham desencarnado antes de mim. Por que, então, nã o vinham àquele quarto de hospital espiritual, para alegria do meu coração? Seriam suficientes apenas alguns minutos de atenção e companhia. Uma dia não agëntei e perguntei ao visitador atencioso: - Lísias, você acha possível encontrarmos aqui as pessoas q ue desencarnaram antes de nós? - Por que não? Vc pensa que esqueceram de você? - Penso sim. Por que eles não vêm me visitar? Na Terra sempre pude contar com a dedicação da minha mãe. No entanto, até agora não tive qualquer sinal de vida dela. Meu pai també m desencarnou, três anos antes de mim. - Então observe – explicou Lísias - que sua mãe tem ajudado você dia e noite desde a crise que causou sua morte. Quando sua doença piorou e sua morte era já previsível, o interesse de sua mãe se desdobrou. Você talvez ainda não saiba que ficou mais de oito anos seguidos nos planos inferiores. E ela nunca desanimou. Pediu por você em “Nosso Lar” muitas vezes. Pediu a ajuda de Clarêncio, que começou a visitá -lo sempre, até que o médico encarnado que você era, vaidoso, se afastasse um pouco, para que surgisse o filho de Deus dentro de você. Entende? " André Luiz," Eu estava com os olhos úmidos. Não sabia há quantos anos estava desencarnado. Quis saber como funcionavam os processos de proteção invisível, mas não consegui. Minha voz estava embargada pelo nó de lágrimas guardadas no coração. - No dia em que você orou com sinceridade, – continuou o enfermeiro – quando conpreendeu que tudo no universo pertence a Deus, seu pranto se transformou. Você não sabe que há chuvas que destroem e chuvas que criam? Com as lágrimas é a mesma coisa. É lógico que Deus não espera pelas nossas preces para nos amar. No entanto, é indispensável que estejamos receptivos para que possamos compreender sua infinita bondade. Um espelho embaçado não reflete a luz. Deu s não precisa das nossas penitências, mas você há de concordar comigo que as penitências nos ajudam muito. Entendeu agora? Clarêncio não teve dificuldade em localizá -lo, atendendo aos pedidos de sua mãe terrena, mas você demorou muito para encontrar Clarên cio. E quando sua mãe soube que o filho tinha vencido o orgulho com a ajuda da oração, chorou de alegria, segundo o que me contaram... - E onde está minha mãe? – exclamei. Se me for permitido, gostaria de vê -la, abraçá -la, ajoelhar -me a seus pés! - Não viv e aqui em Nosso Lar – explicou Lísias. Está em planos mais altos, onde não trabalha só por você. Vendo minha decepção, acrescentou com carinho: - Ela virá ver você antes do que pensa. Quando alguém quer muito alguma coisa, já está a caminho da concretizaç ão. E o seu caso é um bom exemplo disso. Durante anos vc vacilou, alimentando o medo, as tristezas e as desilusões. Mas, quando concentrou -se com firmeza na necessidade de receber a ajuda de Deus, ampliou o padrão vibratório da própria mente e conseguiu vi sualizar a ajuda. Com os olhos brilhantes e reanimado com as explicações recebidas, disse decidido: - Vou desejar, então, com todas as minhas forças... ela virá... ela virá... Lísias sorriu com inteligência e, como quem avisa com generosidade, disse, quand o se despediu: - Só não podemos esquecer que as realizações mais elevadas exigem três requisitos fundamentais: primeiro, desejar. Segundo, saber desejar. E terceiro, merecer o que se deseja. Ou seja, vontade atuante, trabalho persistente e merecimento just o. O enfermeiro saiu pela porta sorrindo, enquanto eu permanecia em silêncio, pensando no tamanho do programa que ele tinha traçado em tão poucas palavras. ____________________ () No original, a palavra está sem a letra “H” no início, mas, sgundo o Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda , o nome da planta a que André Luiz se refere deve começar com a letra “H”. Por isso, foi feita a correção ortográfica. – Nota da autora. " André Luiz," ORGANIZAÇÃO DE SERVIÇOS Depois de algumas semanas de tratamento intensivo, saí com Lísias pela primeira vez. Fiquei impressionado com o espetáculo das ruas. Avenidas largas, enfeitadas com grandes árvores. Ar puro, ambiente de profunda tranquilidade espiritual. No entanto, não se via qualquer sina l de inatividade ou preguiça, porque as ruas estavam cheias de gente. Vários espíritos íam e vinham. Alguns pareciam estar concentrados em alguma coisa longe dali, mas outros me olhavam com carinho. E o companheiro ía me orientando à medida que as surpresa s surgiam, uma atrás da outra. Percebendo meus pensamentos, explicou atencioso: - Estamos na área do Ministério do Auxílio. Tudo o que vemos, como edifícios e casas residenciais, são instituições e abrigos adequados à tarefa de nossa jurisdição. Orientador es, operários e outros colaboradores da missão moram aqui. Nesta zona, atendemos doentes, ouvimos pedidos, selecionamos preces, preparamos reencarnações na Terra, organizamos turmas de socorro aos habitantes do Umbral ou aos que choram no plano físico, est udamos soluções para todos os processos de sofrimento. - Quer dizer, então, que em “Nosso Lar” existe um Ministério do Auxílio? – perguntei. - Claro! Nossos serviços estão organizados numa estrutura que se aperfeiçoa a cada dia, sob a orientação dos que n os lideram e orientam. Olhando -me com atenção, continuou: - Você não viu nosso Governador Espiritual cercado de colaboradores na hora da prece? Aqueles são os Ministros de “Nosso Lar”. A colônia, que é essencialmente de trabalho e realização, divide -se em seis Ministérios, cada um deles orientado por Ministros. Temos os Ministérios da Regeneração, do Auxílio, da Comunicação, do Esclarecimento, da Elevação e da União Divina. Os quatro primeiros fazem a ponte entre nós e os planos terrenos, e os dois úl timos nos ligam aos planos mais elevados, já que a nossa cidade espiritual é um local de transição. Os serviços mais grosseiros estão no Ministério da Regenaração e os mais sutis estão no Ministério da União Divina. Clarêncio, o nosso chefe amigo, é um dos Ministros do Auxílio. Aproveitando a pausa, afirmei comovido: - Nossa! Nunca imaginei que pudessem existir organizações tão completas na vida após a morte!... - Sim, - explicou Lísias – o véu da ilusão é muito pesado no mundo físico. O homem comum não sab e que tudo o que se conhece sobre ordem no mundo começa nos planos superiores. A natureza rústica transforma -se em jardim, quando orientada pela mente do homem. E o pensamento selvagem do homem primitivo transforma -se em força criadora, quando inspirado pe las mentes que atuam nos planos mais altos. Nenhuma organização útil se torna realidade na Terra sem que suas sementes venham antes dos planos mais elevados. - Mas “Nosso Lar” também tem uma história, como as grandes cidades da Terra? - Sem dúvida. Os plan os mais próximos do planeta também possuem características específicas. “Nosso Lar” é uma antiga fundação de nobres espíritos portugueses, desencarnados no Brasil no séc. XVI. Segundo consta em nossos arquivos no Ministério do Esclarecimento, a luta foi mu ito grande no começo. Há emanações pesadas nas áreas invisíveis do planeta, assim como no plano físico. Aqui também existem áreas enormes de energias mais pesadas, como na Terra existem grandes áreas onde a natureza é mais rude e selvagem. Os trabalhos in iciais foram desanimadores, mesmo para os espíritos mais fortes. Onde hoje temos vibrações mais sutis e edifícios mais delicados, misturavam -se as emanações primitivas dos índios nativos do país e as construções simples de suas mentes rudimentares. Mas os fundadores não desanimaram. Prosseguiram com a obra, imitando o esforço dos europeus encarnados " André Luiz," que chegavam ao país. A única diferença é que, no físico, usavam a violência, a guerra, a escravidão, e aqui valiam -se do serviço perseverante, da solidariedad e fraterna e do amor espiritual. Nesse momento, chegamos a uma praça muito bem desenhada, com vastos jardins. No centro da praça, havia um palácio de grande beleza, com torres majestosas e muito altas. - Os fundadores da colônia começaram o trabalho saindo daqui, onde se localiza a Governadoria – disse o enfermeiro. Apontando o palácio, continuou: - Nesta praça, temos o ponto de encontro de todos os outros seis Ministérios de que falei. Todos nascem na Governadoria e se estendem em forma de triângulo. E com entou com respeito: - Ali vive o nosso dedicado orientador. Para os trabalhos administrativos, ele conta com a colaboração de mil funcionários. Entretanto, é ele quem mais trabalha sem se cansar, com mais fidelidade que todos nós juntos. Os Ministros cos tumam passear por outros planos, renovando energias e conhecimentos. Nós temos acesso a vários entrenimentos habituais. Mas o Governador nunca tem tempo para isso. Faz questão de que descansemos, obriga -nos a férias regulares, mas ele mesmo quase nunca des cansa, inclusive no que diz respeito às horas de sono. Acho que sua satisfação é o eterno trabalho. Basta lembrar que estou aqui há anos e, com exceção das preces coletivas, raramente o vejo nas festas públicas. No entanto, seu pensamento alcança todos as áreas de serviço e sua assistência carinhosa envolve a tudo e a todos. Depois de uma longa pausa, o enfermeiro amigo destacou: - Não faz muito tempo, comemoramos anos de sua bondosa direção. Lísias havia se calado comovido e compenetrado, enquanto e u ficava a seu lado olhando, com respeito e encanto, as torres maravilhosas que pareciam cortar o céu. " André Luiz," PROBLEMA DE ALIMENTAÇÃO Encantado com a visão dos magníficos jardins, pedi ao atencioso enfermeiro para descansar um pouco num banco ali perto. Lísias concordou com satisfação. Uma sensação agradável de paz me envolvia o espírito. Bonitos chafarizes de água colorida lançavam jatos no ar, formando bonitas figuras. - Quem presta atenção nesta imensa comunidade de serviço – arg umentei – é levado a considerar vários aspectos. E o abastecimento? Nunca ouvi falar de um Ministério da Economia... - Antigamente – explicou Lisias pacientemente – os serviços desse tipo tinham mais destaque. No entanto, o atual Governador decidiu diminui r a atenção a tudo o que nos lembrasse as sensações puramente físicas. Assim, as atividades de abastecimento ficaram reduzidas a mero serviço de distribuição, sob a coordenação direta da Governadoria. - Aliás, essa medida foi das mais positivas. Segundo c onsta nos arquivos, há um século a colônia tinha muita dificuldade para adaptar os habitantes a costumes mais simples. Muitos dos recém -chegados se desdobravam em exigências. Queriam mesas fartas e bebidas excitantes, dando continuidade a velhos vícios ter renos. Apenas o Ministério da União Divina ficou livre desses abusos, por suas próprias características. No entanto, os outros viviam sobrecarregados de pesados problemas desse tipo. - Mesmo assim, o atual Governador não poupou esforços. Assim que assumiu o cargo, tomou providências adequadas. Antigos missionários daqui me puseram a par de acontecimentos interessantes. Disseram -me que, a pedido da Governadoria, instrutores vieram de um plano muito elevado para divulgar novos conhecimentos a respeito da respiração e da absorção de princípios vitais da atmosfera. Foram feitas muitas reuniões. - Alguns técnicos de “Nosso Lar” colocaram -se contra a medida, alegando que a cidade é local de transição e que não seria justo, nem possível, querer desligar imedia tamente os desencarnados, por meio de métodos drásticos, sem que se colocasse em risco sua integridade espiritual. No entanto, o Governador não desanimou. As reuniões, providências e atividades continuaram por anos seguidos. Alguns espíritos de destaque chegaram a fazer protestos de caráter público, reclamando. - Mais de dez vezes o Ministério do Auxílio esteve superlotado de espíritos que se diziam doentes, vítimas do novo sistema de alimentação insuficiente. Nesses períodos, os opositores da medida mul tiplicaram as acusações. O Governador, no entanto, nunca puniu ninguém. Convocava os adversários da medida para irem ao palácio e explicava -lhes, como um pai, os projetos e finalidades do novo regime. Chamava -lhes a atenção para a superioridade dos métodos de espiritualização, promovia excursões de estudo a planos mais elevados para os mais rebeldes opositores da medida, ganhando, assim, mais e mais simpatizantes. Aproveitando a pausa mais longa, pedi interessado: - Continue, por favor, Lísias. Como termi nou a luta edificante? - Depois de anos de insistentes demonstrações do Governador, o Ministério da Elevação aderiu à medida, passando a se abastecer somente do indispensável. Já o Ministério do Esclarecimento demorou muito a se compromoter, tendo em vi sta os muitos especialistas em ciências exatas que trabalhavam ali. Esses eram os adversários mais teimosos. Acostumados a pensar que o uso de proteínas e carboidratos era essencial para o corpo físico, não queriam mudar suas concepções aqui. Semanalmente enviavam longas observações e alertas ao Governador, cheias de análises e cálculos que beiravam a imprudência. O velho governante, entretanto, nunca agiu sozinho. Pediu sempre a ajuda de nobres mentores, que nos orientam através do Ministério da União Divi na, e nunca deixou de examinar com cuidado cada informativo de esclarecimento. " André Luiz," - Enquanto os cientistas argumentavam e a Governadoria administrava os conflitos, perigosos distúrbios se formaram no antigo Departamento da Regenaração, hoje transformado em Mi nistério. Incentivados pela rebeldia dos colaboradores do Ministério do Esclarecimento, os espíritos menos elevados que ali se reuniam passaram a realizar lamentáveis manifestações. Tudo isso provocou enormes divisões nos órgãos coletivos de “Nosso Lar”, d ando oportunidade ao ataque de multidões trevosas do Umbral, que tentaram invadir a cidade, aproveitando -se das brechas nos serviços da Regeneração, onde grande número de colaboradores mantinha um comércio paralelo, em virtude dos vícios alimentares. - O G overnador não se perturbou com a situação. Mesmo com todos sob terríveis ameaças, ele pediu para ser atendido no Ministério da União Divina e, depois de ouvir as considerações do Conselho, mandou fechar temporariamente o Ministério da Comunicação, determin ou que todas as prisões da Regeneração fossem postas em funcionamento para isolamento dos mais rebeldes, advertiu o Ministério do Esclarecimento, cujo atrevimento já vinha aturando por mais de anos, proibiu temporariamente o auxílio às regiões inferiore s e, pela primeira vez durante sua administração, mandou ligar as baterias elétricas das muralhas da cidade, para a defesa geral com a emissão de dardos magnéticos. - Não houve luta ou ataque na colônia, mas, sim, uma resistência decidida. Por mais de seis meses os serviços de alimentação de “Nosso Lar” foram reduzidos à inalação de princípios vitais da atmosfera, por meio da respiração, e água misturada a elementos solares, elétricos e magnéticos. Foi assim que a colônia ficou sabendo o que é a indignação de um espírito calmo e pacífico. - Passado o período mais delicado, a Governadoria saiu vitoriosa. O próprio Ministério do Esclarecimento reconheceu o erro e colaborou nos trabalhos de readaptação. Nesse meio tempo, houve satisfação geral e dizem que, em meio a alegria de todos, o Governador chorou emocionado, dizendo que a compreensão geral era o maior prêmio que poderia querer. A cidade voltou às atividades normais. O antigo Departamento da Regeneração foi transformado em Ministério. E desde essa época, só no Ministério da Regeneração e do Auxílio, onde é grande o número de necessitados, existem suprimentos que lembram mais de perto o que se consome na Terra. Nos outros há somente o indispensável, ou seja, o serviço de alimentação se mantém simples e equilibrado. Hoje, todos reconhecem que o suposto atrevimento do Governador foi de grande valor para nossa libertação espiritual, reduzindo as sensações físicas e fazendo surgir mais alto grau de espiritualização em todos. Lísias se calou e eu fiquei pensando profundamente na grande lição. " André Luiz," NO BOSQUE DAS ÁGUAS Percebendo meu interesse pelos processos de alimentação, Lísias me fez um convite: - Vamos ao grande reservatório da colônia. Lá voc ê vai ver coisas interessantes. Vai ver que a água é quase tudo no estágio de transição em que estamos. Muito curioso, não pensei duas vezes para acompanhar o enfermeiro. Quando chegamos a um largo canto da praça, o bondoso amigo disse: - Vamos esperar o aeróbus. () Mal me recuperava da surpresa, quando surgiu um grande veículo com vários passageiros, suspenso no ar a uns m do chão. Descendo até onde estávamos, como se fosse um elevador terreno, pude examiná -lo com mais atenção. Não era algo conhecido na Terra. Feito de material muito flexível, era muito comprido, parecendo ligado a fios invisíveis, considerando a grande quantidade de antenas que havia no teto. Mais tarde, pude confirmar minhas suposições, visitando as grandes oficinas do Serviço de Trânsito e Transporte. Lísias não me deu chance para per guntas. Devidamente acomodados no compartimento confortável, seguimos em silêncio. Sentia -me acanhado, como alguém que está deslocado entre desconhecidos. A velocidade era tanta que não era possível ver bem os detalhes das construções que se seguiam no cam inho. A distância não era pequena, porque levou minutos, com paradas a cada km, para que Lísias, rindo calmamente, me dissesse para descer. Fiquei deslumbrado com a beleza do lugar. O bosque florescendo dava à brisa fresca um perfume encantador. Tudo se mostrava em uma variedade imensa de cores e luzes suaves. Entre margens forradas de grama viçosa enfeitada de flores azuis, deslizava um grande rio. A água corria tranquilamente, mas era tão cristalina que parecia tingida de azul celeste, tamanha a perf eição com que refletia o céu. Estradas largas cortavam a paisagem verde. Grandes árvores, plantadas a espaços regulares, ofereciam sombra convidativa, como se fossem deliciosos oásis sob a claridade gostosa do Sol. Bancos de formatos incríveis convidavam p ara descansar. Percebendo o quanto eu estava deslumbrado, Lísias explicou: - Estamos no Bosque das Águas. Temos aqui uma das mais belas regiões da colônia. Trata -se de um dos locais de passeio predileto dos apaixonados, que aqui vêm fixar os mais lindos co mpromissos de amor e fidelidade para as experiências físicas. O que ele dizia me dava motivo para vários questionamentos interessantes, mas Lísias não me deu espaço para isso. Apontando um edifício enorme, explicou: - Ali é o grande reservatório da colônia . Toda água do Rio Azul, que vemos ali, é absorvida em caixas imensas de distribuição. Daqui saem todas as águas que abastecem todas as atividades da colônia. Em seguida, reúnem -se novamente, logo depois dos serviços da Regeneração, e voltam para o rio, qu e segue seu curso normal, em direção ao grande oceano de substâncias invisíveis da Terra. Percebendo minhas dúvidas íntimas, acrescentou: - Isso mesmo, aqui a água tem outra densidade. Muito mais sutil, pura, quase fluídica. Notando as construções magnífic as logo à minha frente, perguntei: - Que Ministério está encarregado do serviço de distribuição? - Imagine – explicou Lisias - que este é um dos poucos serviços materiais de que se ocupa o Ministério da União Divina. - Como é que é? – perguntei, sem poder conciliar uma coisa com a outra. O enfermeiro sorriu e explicou com prazer: - Na Terra quase ninguém se interessa seriamente em saber a importância da água. Em “Nosso Lar”, entretanto, os conhecimentos são outros. Nos meios religiosos do planeta, ensinam q ue Deus criou as águas. " André Luiz," - Ora, é lógico que todo serviço que se cria precisa de alguém com energia para ser mantido apropriadamente. Nesta cidade espiritual, aprendemos a agradecer a Deus e aos seus divinos colaboradores por esta dádiva. Conhecendo -a melho r, sabemos que a água é poderoso veículo para fluidos de todo tipo. E aqui ela é usada principalmente como alimento e remédio. - No Ministério do Auxílio há departamentos totalmente especializados na manipulação de água pura, com certos princípios captados da luz do Sol e do magnetismo espiritual. Na maioria das regiões da grande colônia, é nisso que se baseia o sistema de alimentação. Os Ministros da União Divina são os espíritos de maior elevação entre nós e, por isso, cabe a eles a magnetização geral das águas do Rio Azul, para que sirvam a todos os habitantes de “Nosso Lar”, com absoluta pureza. Eles fazem o serviço inicial de limpeza e os outros institutos realizam os trabalhos específicos, colocando substâncias alimentares e curativas. Quando os vários fluxos se reúnem novamente, num ponto mais distante, do lado oposto a este bosque, o rio sai de nossa área, levando consigo nossas qualidades espirituais. Eu estava encantado com as explicações. - No planeta, – respondi – jamais me explicaram algo assim. - O homem é desatento há muito tempo – continuou Lísias. - O mar dá equilíbrio à sua casa planetária, a água lhe dá o corpo físico, a chuva lhe dá o pão, o rio lhe permite organizar as cidades, a presença da água lhe permite ter família e trabalho. Entreta nto, ele sempre se acha o absoluto senhor do mundo, esquecendo que é filho de Deus, antes de mais nada. Apesar disso, no futuro, os homens imitarão os nossos serviços, destacando a importância dessa dádiva divina. Então todos compreenderão que a água, como fluido criador, absorve, de cada casa, as características mentais dos moradores. No mundo, meu amigo, a água não só carrega os resíduos do corpo, como também as emanações mentais de todos os encarnados. Torna -se prejudicial nas mãos de pessoas más e útil nas mãos de pessoas boas. E, quando em movimento, sua corrente não só espalha bênçãos de vida, como também se transforma em veículo de Deus, absorvendo tristezas, ódios e ansiedades humanas, lavando a casa material dos homens e puricando sua atmosfera interior. Lísias se calou em atitude de respeito, enquanto eu olhava fixamente a corrente tranquila que me despertava elevados pensamentos. ____________________ () Veículo aéreo, similar a um bonde na Terra. - Nota de André Luiz " André Luiz," NOTÍCIAS D O PLANO Lísias queria me dar oportunidade de visitar outros bairros da colônia para outras observações interessantes, mas compromissos que não podiam ser adiados pediam sua atenção no posto. - Você terá oportunidade de conhecer vários setores dos nossos serviços – disse com bondade – pois, como pode ver, os Ministérios de “Nosso Lar” são áreas muito grandes de trabalho constante. São necessários vários dias de estudo em cada um deles para que se tenha uma idéia detalhada de seu funcionamento. No entanto, não vai faltar oportunidade para isso. Ainda que eu não possa acompanhar você, Clarêncio poderá conseguir autorização para que você entre em qualquer dependência. Voltamos ao ponto do aeróbus que não demorou a chegar. Agora já estava quase à vontade. A pre sença de muitos passageiros já não me constrangia. A experiência anterior havia me feito muito bem. Meu cérebro fervia com muitas perguntas. Interessado em respondê -las, aproveitei o tempo de que dispúnhamos para interrogar Lísias, no que fosse possível. - Lísias, - perguntei – você poderia me dizer se todas as colônias espirituais são iguais a esta? Será que as outras colônias têm os mesmos processos e características? - De jeito nenhum. Se no mundo material cada região e cada estabelecimento apresentam as pectos específicos, imagine a variedade de condições que existe em nossos planos. Aqui, assim como na Terra, as criaturas se identificam pela origem comum e pela natureza dos objetivos que pretendem atingir; mas o mais importante é que cada colônia, como c ada espírito, se localiza em degraus diferentes na ascenção espiritual. Todas as experiências de grupo variam entre si e “Nosso Lar” é uma experiência coletiva desse tipo. De acordo com nossos arquivos, muitas vezes os nossos antecessores procuraram inspir ação nos trabalhos de colaboradores dedicados de outros planos; em compensação, outros grupos buscam a nossa ajuda para outras colônias que estão se formando. Entretanto, cada organização tem suas próprias características. Aproveitando a pausa mais longa, perguntei: - Foi aqui que nasceu a idéia de criar Ministérios? - Sim, os missionários que criaram “Nosso Lar” visitaram as instalações de “Alvorada Nova”, uma das colônias espirituais mais importantes da vizinhança, e ali encontraram a divisão por departam entos. Adotaram o processo, mas substituíram a palavra departamento por Ministério, com exceção dos serviços da Regeneração, que só com o atual Governador puderam ser promovidos. Fizeram isso considerando que a organização em Ministérios é mais coerente co m os aspectos da espiritualidade. - Muito bem! – exclamei. - E não é só isso, - continuou Lísias – a instituição é muito rigorosa no que diz respeito à ordem e à hierarquia. Aqui nenhum destaque é dado gratuitamente. Num período de dez anos, só quatro espí ritos conseguiram ingressar no Ministério da União Divina, já com responsabilidades determinadas. Em geral, todos nós, depois de longo estágio de trabalho e estudo, voltamos a reencarnar para atividades de aperfeiçoamento. Enquanto eu ouvia essas informaç ões com muita curiosidade, Lísias continuava: - Quando os recém -chegados do Umbral demonstram estar em condições de receber ajuda, permanecem no Ministério do Auxílio; mas quando rejeitam qualquer tipo de ajuda, são encaminhados ao Ministério da Regeneraç ão. Se melhoram, com o tempo são admitidos para trabalhar no Ministério do Auxílio, da Comunicação e do Esclarecimento, para se prepararem eficientemente para futuras tarefas no físico. Só alguns conseguem trabalhar por mais tempo no Ministério da Elevaçã o e são raros os que, a cada dez anos, alcançam o Ministério da União Divina. E não pense que os testemunhos aqui fiquem só na expressão de ideais. Não estamos mais na Terra onde o desencarnado é promovido automaticamente a fantasma. Vivemos num lugar de a ção. As tarefas de Auxílio são trabalhosas e complicadas, os deveres no Ministério da " André Luiz," Regeneração representam testemunhos bem pesados, os trabalhos na Comunicação exigem muita responsabilidade de cada um, os setores do Esclarecimento exigem grande capacida de de trabalhos e muito conhecimento, o Ministério da Elevação pede capacidade de renúncia e luz interior, as atividades da União Divina requerem conhecimento justo e amor universal sincero. Já a Governadoria é sede movimentada de todos os assuntos adminis trativos, distribuição de energia elétrica, trânsito, transporte, etc. Aqui, na verdade, a lei do descanso é rigorosamente obedecida para que alguns trabalhadores não fiquem mais sobrecarregados que outros; mas a lei do trabalho também é cumprida rigorosam ente. A única exceção, em matéria de repouso, é o próprio Governador, que nunca aproveita o que lhe é de direito. - Mas ele nunca sai do palácio? – perguntei. - Só em ocasiões em que o público pede. Fora isso, o Governador vai semanalmente ao Ministério da Regeneração, lugar onde se concentra o maior número de perturbações em “Nosso Lar”, considerando a sintonia que muitos ali têm com o Umbral. Multidões de espíritos perturbados estão recolhidas ali. Assim, ele aproveita as tardes de domingo, depois de or ar com a cidade no Grande Templo da Governadoria, para ajudar os Ministros da Regeneração com os seus problemas de trabalho. Por causa disso, muitas vezes se priva de grandes alegrias para ajudar desorientados e sofredores. O aeróbus nos deixou perto do h ospital, onde o quarto confortável me esperava. Em plena rua, era possível ouvir, como na saída, belas canções pelo ar. Notando minha expressão de interrogação, Lísias explicou: - Essas músicas vêm das oficinas onde trabalham os moradores de “Nosso Lar”. Depois de muitas observações, a Governadoria percebeu que a música ajuda no bom andamento do trabalho, em todos os locais de esforço construtivo. Desde então, ninguém em “Nosso Lar” trabalha sem esse alegre incentivo. Nesse meio tempo já chegávamos à Por taria. Um enfermeiro simpático se adiantou e avisou: - Lísias, estão lhe chamando com urgência no pavilhão da direita. O companheiro se afastou com calma, enquanto eu ía para o meu quarto, cheio de dúvidas íntimas. " André Luiz," O UMBRAL Depois de receber explicações tão importantes, fiquei ainda mais interessado em conhecer outros aspectos relativos aos vários problemas que Lísias havia levantado em nossa conversa. A alusão a espíritos do Umbral me deixava muito curioso. A falta de educaçã o religiosa durante a vida física pode causar muitas perturbações complicadas. O que seria o Umbral ()? Eu só conhecia a idéia de inferno e purgatório, de que havia ouvido falar nos sermões das cerimônias católicas a que ía apenas por obrigação social. Mas do Umbral eu nunca havia ouvido falar. Na primeira vez que encontrei com Lísias, fui logo perguntando. Ele me ouviu com atenção e respondeu: - Ora, ora, você esteve lá por tanto tempo e não conhece a região? Lembrei -me dos sofrimentos passados, sentindo arrepios de horror. - O Umbral – continuou ele – começa na crosta terrestre. É a zona obscura para onde vão aqueles que não quiseram assumir e cumprir seus deveres morais, enfrentando por mais tempo os incômodos da indecisão e dos vários erros cometidos. Quando o espírito reencarna, promete cumprir o programa de serviços de Deus. Entretanto, quando está revivendo experiências no mundo físico, é mais fácil procurar o que lhe satisfaça o egoísmo do que cumprir esse programa. E assim se mantêm o mesmo ódio pelos inimigos e a mesma paixão pelos amigos. Mas o ódio não é justiça e a paixão não é amor. Tudo o que é exagerado e fica sem proveito acaba prejudicando a economia da vida. Pois então, toda a multidão de espíritos desequilibrados fica nas regiões nevo entas, que se seguem ao plano físico. O dever cumprido é como uma porta que atravessamos no infinito, que nos leva à sagrada união com Deus. É natural, portanto, que o homem que fugiu de suas obrigações justas, tenha essa bênção adiada por tempo indefinido . Percebendo minha dificuldade para entender tudo o que me dizia e minha total ignorância dos princípios espirituais, Lísias tentou ser mais claro: - Imagine que cada um de nós, renascendo no mundo, é portador de um acontecimento sujo que deve ser lavado no tanque da vida física. Essa roupa suja é o corpo espiritual, tecido por nós mesmos nas vidas passadas. No entanto, ao receber nova oportunidade de encarnação, nos esquecemos do objetivo principal e, em vez de nos esforçarmos para nos lavarmos e limparm os, manchamos ainda mais nossa roupa, criando novos laços e escravizando a nós mesmos. Ora, se ao voltarmos ao plano físico pretendíamos nos livrar da sujeira, por sabermos que não está de acordo com o meio elevado em que vivemos, como podemos voltar a ess e mesmo meio em piores condições? O Umbral é, portanto, a região onde são eliminados os resíduos mentais; uma espécie de purgatório, onde as muitas ilusões humanas adquiridas por descaso com a oportunidade encarnatória , são queimadas a prestações. A image m não podia ser mais clara, mais convincente. Não havia como disfarçar meu espanto. Percebendo o bem que me faziam aquelas explicações, Lísias continuou: - O Umbral é região de muito interesse para quem está encarnado. Ali se concentra tudo o que não serv e para a vida superior. E veja que Deus foi muito sábio ao permitir que se criasse essa região em torno do planeta. Há multidões de espíritos indecisos e ignorantes que não são suficientemente maus para serem enviados a colônias de regeneração mais rígida, nem bons o suficiente para serem levados a planos mais elevados. São espíritos que vivem no Umbral, companheiros muito próximos dos homens encarnados, separados deles apenas por leis vibratórias. Não é de se estranhar, portanto, que lugares como estes se caracterizem por muitas perturbações. Ali vivem e se reúnem todos os tipos de revoltados, formando núcleos invisíveis de considerável poder, conseguido pela concentração dos mesmos desejos e tendências. Não há muita gente na Terra que fica desesperada quan do o correio não chega ou quando o ônibus não aparece? Pois o Umbral está cheio de criaturas que se desesperam ao não encontrarem Deus à sua disposição depois da morte física e, percebendo que só os que trabalham para Ele é que " André Luiz," alcançam realmente a glória da vida eterna, revelam -se e passam a alimentar idéias mesquinhas. “Nosso Lar” tem uma sociedade espiritual, enquanto esses núcleos possuem infelizes, malfeitores e vagabundos de vários tipos. É zona de carrascos e vítimas, de exploradores e explorados. Aproveitando a pausa espontânea, falei impressionado: - E como explicar isso? Lá não existe defesa ou organização? Lísias sorriu e explicou: - Organização é qualidade dos espíritos organizados. O que você queria? A zona inferior da qual estamos falando é como a casa onde não há pão: todos gritam e ninguém tem razão. O passageiro distraído perde o ônibus, o agricultor que não plantou não pode colher. Mas uma coisa é certa: apesar das sombras e angústias do Umbral, lá nunca faltou a proteção divina. Cada e spírito permanece ali apenas o tempo que for necessário. Para isso, André, Deus permitiu que muitas colônias como esta fossem construídas, dedicadas ao trabalho e ao socorro espiritual. - Então – observei – essa região quase se mistura ao plano dos encarn ados. - Isso mesmo, – confirmou o amigo – e é nessa zona que se estendem os fios invisíveis que ligam as mentes humanas entre si. Esse plano está cheio de desencarnados e de formas -pensamento de encarnados, porque, na verdade, todo espírito, onde quer que esteja, é uma fonte que irradia forças que criam, transformam e destróem, emitidas em vibrações que a atual ciência terrestre ainda não compreende. Quem pensa está sempre criando alguma coisa. E é pelo pensamento que os homens encontram, no Umbral, os companheiros que mais se afinizam com suas tendências. Toda alma é um ímã poderoso. Existe uma grande humanidade invisível ao lado da humanidade visível. No Umbral, as maiores missões do Ministério do Auxílio são compostas por dedicados colaboradores, porque, assim como é difícil a tarefa dos bombeiros nas grandes cidades físicas por causa das labaredas e da fumaça grossa que precisam enfrentar, os missionários que trabalham no Umbral encontram fluidos muito pesados, emitidos continuamente por milhares de ment es desequilibradas na prática do mal, ou muito destruídas por sofrimentos regeneradores. É preciso ter muita coragem e muita renúncia para ajudar quem não percebe o auxílio que lhe é oferecido. Lísias interrompeu a explicação. Profundamente impressionado, exclamei: - Ah, como eu gostaria de trabalhar com essas multidões infelizes, levando a eles o pão espiritual do esclarecimento! O enfermeiro amigo me olhou com bondade e, depois de pensar um longo tempo em silêncio, disse -me , despedindo -se: - Será que vo cê se sente suficientemente preparado para um serviço como esse ? ____________________ () Segundo o Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda: “umbral . [Do esp. umbral , 'soleira da porta'.] S. m. . Ombreira (). . Lim iar, entrada. ” Os espíritos usam a palavra para designar o plano de “entrada” no plano físico, a soleira da porta para o mundo dos encarnados. " André Luiz," NO GABINETE DO MINISTRO Sentindo -me cada vez melhor, comecei a ter necessidade de movimento e trabalho. Depoi s de tantos anos de luta difícil, voltava a me interessar pelas atividades que preenchem o dia útil de todo homem normal no mundo. Claro que havia perdido oportunidades excelentes enquanto encarnado; que muitas falhas marcavam o meu caminho. No entanto, ag ora me lembrava dos anos de clínica, sentindo um certo vazio no coração. Sentia -me como um forte agricultor em pleno campo, de mãos amarradas e sem poder fazer o próprio trabalho. Cercado de doentes, não podia me aproximar, como fazia em outros tempo, r eunindo em mim o amigo, o médico e o pesquisador. Ouvindo gemidos constantes nos apartamentos ao lado, não tinha permissão nem para atuar como enfermeiro ou assistente nos casos de urgência. Claro que não me faltava vontade. Entretanto, minha posição ali era muito humilde para que eu tivesse qualquer atrevimento. Os médicos espirituais tinham uma técnica muito diferente. No mundo físico, sabia que meu direito de interferir começava nos livros conhecidos e nos títulos alcançados; mas, naquele novo ambiente, a medicina começava no coração, exteriorizando -se em amor e cuidado fraterno. Qualquer enfermeiro mais simples em “Nosso Lar”, possuía conhecimentos e possibilidades muito superiores à minha ciência. Portanto, era impossível tomar qualquer iniciativa de t rabalho espontâneo sem me intrometer no trabalho dos outros. Angustiado com essas dificuldades, Lísias me parecia a pessoa mais indicada para me abrir com confiança. Quando o questionei, disse: - Por que não pede a ajuda de Clarêncio? Vai atendê -lo com cer teza. Peça -lhe conselhos. Ele sempre pergunta de você e fará tudo para ajudá -lo. Fiquei cheio de esperança. Iria consultar o Ministro do Auxílio. No entanto, ao tomar as primeiras providências para a entrevista, fui informado de que o bondoso benfeitor só poderia me atender na manhã seguinte, em seu gabinete particular. Esperei ansioso pelo momento adequado. No dia seguinte, bem cedo, procurei o local informado. No entanto, logo me surpreendi ao ver que outras três pessoas já esperavam Clarêncio na mesma situação! O Ministro do Auxílio havia chegado muito antes de nós e tratava de assuntos mais importantes que visitas e solicitações. Quando terminou o serviço mais urgente, começou a nos chamar de dois em dois. Fiquei muito impressionado com esse processo de entrevista. Depois fiquei sabendo que ele aproveitava esse método para que o que era dito a um interessado pudesse servir também a outro, atendendo assim as necessidades de ordem geral, ganhando tempo e proveito. Depois de vários minutos, chegou a minh a vez. Entrei no gabinete com um senhora idosa, que seria ouvida primeiro, por ordem de chegada. O Ministro nos recebeu com simpatia, deixando -nos à vontade para falar. - Nobre Clarêncio, - começou a senhora desconhecida – venho pedir sua ajuda em favor de meus dois filhos. Ah, já não aguento de tanta saudade e estou sabendo que ambos vivem cansados e sobrecarregados de problemas no ambiente físico. Reconheço que a vontade de Deus é justa e amorosa, mas sou mãe!!! Não consigo ficar alheia sem me angustiar. E a pobre senhora começou a chorar muito, ali mesmo. O Ministro, olhando -a com carinho, sem perder o próprio equilíbrio, respondeu com bondade: - Mas, se a irmã reconhece que a vontade de Deus é justa e amorosa, o que quer que eu faça? - Gostaria – respond eu aflita – que me conseguisse recursos para que eu mesma pudesse protegê -los no mundo físico!... " André Luiz," - Ah, minha amiga, - disse o Ministro cheio de amor – só com humildade e trabalho é possível que tenhamos condições de proteger outras pessoas assim. O que vo cê diria se um pai terrestre quisesse ficar parado em casa para ajudar os filhos? Deus criou o trabalho e a cooperação como leis que ninguém pode trair sem prejuízo próprio. A sua consciência não lhe diz nada nesse sentido? Quantos bônus -hora () você tem para apresentar em favor de seu pedido? Meio sem jeito, a senhora respondeu: - . - É triste – explicou Clarêncio – que, depois de seis anos vivendo aqui, tenha dado à colônia apenas horas de trabalho até hoje. Entretanto, assim que se recuperou do que sofreu na região inferior, eu lhe ofereci um bela oportunidade de trabalho na Turma de Vigilância do Ministério da Comunicação... - Mas aquilo era um trabalho insuportável, – falou a senhora – uma luta contínua contra entidades más. É natural que eu não tenha me adaptado. Clarêncio continuou, sem se alterar: - Depois, coloquei -a entre os irmãos da Suportação, nas atividades regeneradoras. - Pior ainda!, – exclamou ela – aqueles apartamentos estão sempre cheios de pessoas imundas. Palavrões, indecências, miséria. - Notando suas dificuldades, – esclareceu o Ministro – enviei -a para ajudar na Enfermagem dos Perturbados. - Mas quem pode com eles, a não ser os santos? – questionou a senhora rebelde – Fiz o possível. No entanto, aquela multidão de almas desviad as assusta qualquer um! - Meus esforços não pararam aí. – respondeu o Ministro sem se perturbar – Coloquei -a nos Gabinetes de Investigações e Pesquisas do Ministério do Esclarecimento. No entanto, acho que cansada das minhas providências, a irmã preferiu i nstalar -se por conta própria nos Campos do Repouso. - Era impossível ficar ali também. – disse a senhora atrevida – Só encontrei experiências cansativas, fluidos estranhos, chefes ásperos. - Pois, note, minha amiga, - explicou o seguro orientador – que o t rabalho e a humildade são as duas margens do caminho da ajuda. Para ajudarmos alguém, precisamos de pessoas que nos ajudem, amigos, protetores e assistentes. Antes de socorrer quem amamos, é indispensável espalhar laços de simpatia. Sem a cooperação é impo ssível atender eficientemente. O camponês que cultiva a terra, recebe a gratidão de quem come os frutos. O operário que entende os chefes exigentes, cumprindo suas ordens, é quem sustenta o lar em que Deus o colocou. Construindo, o servidor que obedece con quista os superiores, companheiros e interessados no serviço. E ninguém poderá ser útil aos que ama se não souber obedecer e servir de forma positiva. Temos o coração ferido, enfrentamos dificuldades, mas devemos nos lembrar de que o serviço útil pertence a Deus, antes de mais nada. Depois de algum tempo, continuou: - O que vai fazer na Terra então, se ainda não aprendeu a tolerar nada? Não duvido de sua preocupação com os filhos, mas é importante notar que, da forma como está, a irmã seria como mãe paraplé gica para eles, incapaz de prestar socorro adequado. Para que qualquer um de nós tenha a alegria de ajudar quem amamos, é preciso contar com a colaboração de muitos a quem nós mesmos tenhamos ajudado. Quem não colabora, não tem colaboração. Isso é da lei d e Deus. E se a irmã não acumulou nada para dar, é justo que procure ajuda de outros. Mas, como receber a colaboração indispensável, se ainda não plantou nem a simpatia? Volte ao Campo de Repouso, onde se instalou ultimamente, e pense a respeito. Depois vol tamos a analisar o assunto com a atenção que merece. E a mãe aflita se sentou, enxugando o pranto farto. Em seguida, o Ministro me olhou com bondade e falou: - Aproxime -se, meu amigo! E eu me levantei, meio na dúvida, para conversar. ____________________ () Crédito relativo a cada hora de trabalho. - Nota de André Luiz " André Luiz," EXPLICAÇÕES DE CLARÊNCIO Meu coração batia acelerado, como se eu fosse um estudante inexperiente diante de examinadores rigorosos. Vendo aquela mulher chorar e pensando na atitude enérgica e serena do Ministro do Auxílio, tremia por dentro, arrependido de haver pedido aquela entrevista. Não seria melhor ficar quieto, aprendendo a esperar pelas decisões dos superiores? Não seria arrogância exagerada de minha parte pedir trabalho de médico naquela casa, onde estava hospedado como doente? A sinceridade de Clarêncio para com a senhora com quem havia conversado antes de mim havia me chamado a atenção para outros aspectos. Quis desistir dos desejos do dia anterior e voltar ao meu quarto, mas já era tarde. O Ministro do Auxílio, como se lesse meus pensamentos, disse em tom firme: - Estou pronto para ouvi -lo. Instintivamente ía pedir qualquer serviço médico em “Nosso Lar”, embora estivesse muito indeciso. Entretanto, a consciência me advertia: por qu e falar de serviço especializado? Não seria o mesmo que repetir os erros do mundo físico, onde a vaidade não tolera outro tipo de trabalho que não esteja de acordo com os títulos e diplomas? Esta idéia me trouxe algum equilíbrio. Muito confuso, falei: - Tomei a liberdade de vir até aqui para pedir sua ajuda no sentido de voltar a trabalhar. Tenho sentido falta das minhas atividades, agora que a generosidade de “Nosso Lar” me devolveu a saúde. Qualquer trabalho útil me interessa, desde que me permita agir. Clarêncio me olhou um bom tempo, como se quisesse saber das minhas intenções mais íntimas. - Já sei. Você pede qualquer tipo de tarefa, mas, no fundo, sente falta dos seus clientes, do seu consultório, do quadro de serviço com que Deus o abençoou na últi ma encarnação. Até aí, as palavras dele só me traziam conforto e esperança ao coração, o que eu confirmava com a cabeça. Depois de uma pausa longa, ele prosseguiu: - No entanto, é preciso considerar que, às vezes, Deus deposita em nós Sua confiança e nó s a traímos, desvirtuando o serviço que nos diz respeito. Você foi médico na Terra, cercado de todas as facilidades no estudo. Nunca soube o preço de um livro, porque seus pais generosos pagavam tudo. Logo depois de formado, começou a ganhar bem, sem as pr eocupações dos médicos mais pobres, que precisam usar as relações de amizade para criar clientela. Progrediu tão rápido que transformou as facilidades conquistadas em corrida para a morte antecipada do corpo físico. Enquanto jovem e sadio, cometeu vários a busos na profissão que Jesus lhe deu. Diante daquele olhar firme e bondoso, senti uma estranha perturbação. Com muito respeito, argumentei: - Reconheço a verdade de tudo isso, mas, se possível, gostaria de poder resgatar minhas dívidas, dedicando -me aos do entes deste hopital com sinceridade. - Iniciativa muito válida, - disse Clarêncio – mas é preciso notar que toda tarefa profissional na Terra é convite de Deus para que o homem penetre os templos divinos do trabalho. O diploma é apenas uma ficha para nós, mas no mundo costuma representar uma porta aberta a todo tipo de absurdos. Com essa ficha, o homem está habilitado a aprender a servir a Deus seriamente com seu trabalho. Isso se aplica a todas as atividades terrenas, com exceção das convenções humanas. V ocê recebeu ficha de médico. Entrou para o templo da Medicina, mas sua atitude lá dentro não me permite atender seu pedido. Como posso passá -lo de espírito doente a médico de espíritos doentes, de uma hora para outra, se fez questão de limitar suas observa ções apenas ao físico? Não nego seus conhecimentos do corpo humano, mas a vida é muito mais que isso. O que você diria de um botânico que se limitasse a estudar somente as cascas secas de algumas árvores? Muitos médicos da Terra preferem limitar a anatomia aos cálculos matemáticos. A " André Luiz," matemática é importante, mas não é a única ciência do universo. Como você pode ver agora, o médico não pode se limitar a diagnósticos e terminologias. É preciso penetrar profundamente na alma. No planeta, muitos profissionais d a Medicina estão viciados pelos ambientes acadêmicos, porque a vaidade lhes impede de ver mais adiante. Muito poucos conseguem superar os interesses menores e preconceitos comuns, e acabam por enfrentar o sarcasmo do mundo e o deboche dos colegas. Fiquei a tordoado. Não conhecia essas considerações sobre a responsabilidade profissional. Fiquei surpreso com a idéia de que o diploma não passasse de mera ficha de ingresso aos serviços de cooperação com Deus. Sem saber o que dizer, esperei que o Ministro do Aux ílio retomasse a explicação. - Como pode ver, - continuou ele – você não se preparou adequadamente para os serviços em nossa colônia. - Sr. Clarêncio, - atrevi -me a dizer – entendo a lição e admito meus erros. E fazendo força para não chorar, pedi com hum ildade: - Aceito qualquer trabalho nesta colônia de realização e paz. Com um olhar de profunda simpatia, ele respondeu: - Meu amigo, não sou portador apenas de notícias tristes. Tenho também palavras de incentivo. Você ainda não pode ser médico em “Noss o Lar”, mas poderá assumir o cargo de estudante assim que possível. Sua situação atual não é das melhores, mas é razoável, tendo em vista os pedidos que chegam ao Ministério do Auxílio em seu favor. - Minha mãe? – perguntei eufórico. - Sim, - explicou o Mi nistro – sua mãe e outros amigos, no coração de quem você plantou a semente da simpatia. Logo depois da sua vinda, pedi ao Ministério do Esclarecimento que me informasse suas notas para examinar com atenção. Muita irresponsabilidade, muitos abusos e muita negligência, mas, nos anos em que clinicou, também atendeu gratuitamente mais de mil necessitados. Fez isso apenas por divertimento, na maioria das vezes. Mas hoje pode ver que o verdadeiro bem sempre espalha bênçãos em nossos caminhos. Desses benefic iados, não se esqueceram de você e têm enviado até aqui muitos pedidos em seu favor. No entanto, devo deixar claro que mesmo o bem que praticou aos indiferentes conta a seu favor. Concluindo as explicações com um sorriso, Clarêncio destacou: - Você vai aprender novas lições em “Nosso Lar” para, depois de experiências úteis, poder cooperar conosco de forma eficiente, preparando -se para o futuro espiritual. Eu estava muito feliz. Pela primeira vez, chorei de alegria naquela colônia. Ah, quem, na Terra, po deria entender uma alegria assim? Às vezes, é preciso que o coração fique mudo diante do grandioso silêncio divino. " André Luiz," A VISITA MATERNA Atento às recomendações de Clarêncio, procurei recuperar as energias para poder voltar aos estudos. Em outros tempos, eu talvez me ofendesse com colocações aparentemente tão duras, mas, naquelas circunstâncias, lembrava -me de meus erros antigos e me sentia aliviado. Os fluidos físicos causam profunda sonolência ao espírito. Na verdade, só agora eu entend ia que a experiência humana nunca deve ser encarada como brincadeira. Hoje eu vejo, com outros olhos, a importância da encarnação na Terra. Levando em conta as oportunidades que perdi, reconhecia não merecer a hospitalidade de “Nosso Lar”. Clarêncio tinha razões de sobra para falar comigo com tanta franqueza. Fiquei muitos dias refletindo sobre a vida. No fundo, tinha muita vontade de rever minha casa terrena. No entanto, não me atrevia a fazer novos pedidos. Os benfeitores do Ministério do Auxílio eram mu ito generosos para mim e adivinhavam meus pensamentos. Se até aquela altura não haviam me satisfeito esse desejo, é porque não era oportuno. Então ficava calado e resignado, sentindo -me meio triste. Lísias fazia o possível para me alegrar com os seus comen tários. Mas eu estava naquela fase de recolhimento profundo, em que o homem é chamado para dentro de si mesmo pela própria consciência. No entanto, um dia o enfermeiro entrou muito alegre em meu apartamento, dizendo: - Adivinhe quem chegou procurando voc ê! Aquele rosto alegre, aqueles olhos brilhantes de Lísias, não me enganavam. - Minha mãe! – respondi, confiante. Com os olhos arregalados de alegria, vi minha mãe entrar de braços abertos. - Meu filho! Venha até aqui, meu querido! Não posso dizer o q ue aconteceu depois. Senti -me como criança outra vez, como no tempo em que brincava na chuva, com os pés descalços, na areia do jardim. Abracei -a com carinho, chorando de alegria, com os mais elevados sentimentos espirituais. Beijei -a várias vezes, aperte i-a nos braços, misturei minhas lágrimas às dela, e não sei quanto tempo ficamos juntos, abraçados. Por fim, foi ela quem nos tirou daquele estado de emoção, dizendo: - Vamos, filho, não se emocione tanto assim! Mesmo a alegria, quando é demais, faz mal a o coração. - E em vez de carregá -la nos braços, como fazia quando encarnado nos seus últimos anos de vida na Terra, foi ela quem me enxugou as lágrimas, levando -me ao sofá. - Você ainda está fraco, filho. Não desperdice energias. Sentei -me ao seu lado e ela, com cuidado, ajeitou minha cabeça cansada em seus joelhos, acariciando -me de leve, trazendo -me conforto com recordações tão doces. Senti -me, então, o homem de mais sorte no universo. Tinha a impressão de que minha esperança estava mais viva do que nun ca. A presença de minha mãe representava alívio indescritível para o meu coração. Aqueles minutos me pareciam um sonho de imensa felicidade. Como um menino que se fixa nos detalhes, eu olhava suas roupas, as meias de lã, o xale azul, a cabeça pequena cober ta de cabelos brancos, as rugas do rosto, o olhar doce e calmo de todos os dias. Com as mãos trêmulas de alegria, eu acariciava suas mãos queridas, sem conseguir dizer nada. Minha mãe, no entanto, mais forte que eu, falou com serenidade: - Nunca seremos c apazes de agradecer a Deus tantas bênçãos. Ele nunca nos esquece, meu filho. Quanto tempo de separação! Mas não pense que eu houvesse me esquecido de você. Às vezes, a providência divina separa os corações temporariamente, para que possamos aprender com o amor de Deus. Percebendo a mesma ternura de outros tempos, senti que minhas feridas íntimas voltavam a doer. Ah, como é difícil livrar -se dos resíduos trazidos da Terra! Como pesam os defeitos acumulados durante séculos! Quantas vezes recebi bons conselho s de Clarêncio e Lísias, para não me lamentar. Mas, com o carinho materno, minhas velhas " André Luiz," feridas se reabriram. Do choro de alegria passei às lágrimas de angústia, relembrando, com emoção exagerada, os acontecimentos físicos. Não conseguia perceber que a vi sita dela não era para satisfazer os meus caprichos e, sim, bênção maravilhosa de Deus. Repetindo antigas manias, pensei erradamente que minha mãe deveria continuar a ser ouvinte de minhas queixas e males sem fim. Na Terra, as mães quase sempre não passam de escravas para os filhos. Muito poucos entendem sua dedicação antes de perdê -las. Com a mesma idéia falsa de outros tempos, me pus a fazer confissões dolorosas sem fim. Minha mãe me ouviu calada, demonstrando enorme tristeza. Olhos úmidos, apertando -me contra o peito de vez em quando, falou com carinho: - Ah, filho, sei de todos os conselhos que Clarêncio lhe deu. Não se queixe. Vamos agradecer a Deus por esta reaproximação. Vamos imaginar que estamos numa escola diferente, onde aprendemos a ser filhos de Deus. Como mãe terrena, nem sempre consegui orientá -lo como deveria. Portanto, eu também trabalho para reajustar meus sentimentos. Suas lágrimas me fazem lembrar da vida na Terra. Alguma coisa tenta me fazer retroceder espiritualmente. Quero dar razão às suas queixas, colocar você num trono, como se fosse a melhor criatura do universo, mas essa atitude não corresponde às novas lições de vida do presente. Esses gestos são perdoáveis quando estamos encarnados. Aqui, no entanto, meu filho, é indispensável atender a Deus, antes de mais nada. Você não é o único homem desencarnado corrigindo os próprios erros, nem eu sou a única mãe que se sente longe dos entes queridos. Assim, o nosso sofrimento não nos eleva pelas lágrimas que derramamos, mas pela oportunida de de luz que nos oferece, a fim de sermos mais compreensivos e mais humanos. Dores e lágrimas são a forma bendita de purificarmos nossos sentimentos. Depois de algum tempo, em que minha consciência me advertia seriamente, minha mãe continuou: - Se podemo s aproveitar este tempo juntos com manifestações de amor, por que desperdiçá -lo com lamentações? Vamos nos alegrar, filho, e procuremos trabalhar sem parar. Mude sua atitude mental. Sinto -me aliviada por sua confiança em meu carinho, sinto -me muito feliz c om sua ternura de filho, mas não posso retroceder em meu caminho. Daqui por diante, amemo -nos com o mesmo amor com que Deus nos ama. Aquelas palavras iluminadas me despertaram. Tinha a impressão de que fluidos fortes partiam de seu coração, revitalizando o meu próprio. Minha mãe me olhava encantada, com um belo sorriso. Levantei -me e, com respeito, beijei sua testa, sentindo -a mais bela e cheia de amor do que nunca. " André Luiz," CONFIDÊNCIAS As palavras de minha mãe me trouxeram consolo, permitin do que eu reorganizasse minhas energias interiores. Ela falava do trabalho como se fosse uma bênção transformando dores e dificuildades em crédito de alegrias e lições elevadas. Aqueles conceitos me alimentavam de uma maneira diferente. Sentia -me outro, ma is alegre, animado e feliz. - Ah, mãe, - disse emocionado – deve ser maravilhoso o plano onde você vive. Que lindas imagens espirituais, que sorte! Ela ensaiou um sorriso sugestivo e disse: - Os planos maravilhosos, meu filho, requerem sempre mais trabalho , mais capacidade de renúncia. Não pense que sua mãe fique o tempo todo em visões maravilhosas, longe dos próprios deveres. Não quero dizer que me sinta triste pela situação em que estou. Na verdade, é muito mais consciência da responsabilidade que tenho. Desde que voltei da Terra, tenho trabalhado muito por nossa renovação espiritual. Muitas entidades que desencarnam ficam agarradas ao lar terreno, com a desculpa de amarem muito os que ainda estão encarnados. No entanto, aqui me ensinaram que o verdadeiro amor, para ser realmente benéfico, precisa trabalhar sempre. Por isso, desde minha vinda, procuro me esforçar para conquistar o direito de ajudar àqueles que tanto amamos. - E meu pai? – perguntei – Onde está? Por que não veio com a senhora? Com uma expres são estranha, respondeu: - Ah, seu pai, seu pai... Há anos que está numa zona de muitas trevas no Umbral. Na Terra, sempre pareceu ser fiel às tradições de família e ao fervor dos rituais religiosos, apegado que era ao cavalheirismo de sua alta posição de comerciante, que exerceu até o fim da vida. Mas, no fundo, era fraco e tinha amantes fora de casa. Duas delas estavam mentalmente ligadas a uma rede de entidades perturbadas e, assim que Laerte desencarnou, a passagem pelo Umbral foi muito difícil para ele, porque essas criaturas desorientadas, para quem fez muitas promessas, esperavam por ele ansiosas, prendendo -o de novo nas teias da ilusão. No começo, ele quis reagir, esforçando -se para me encontrar, mas não foi capaz de entender que, após a morte do corpo físico, a alma continua a mesma de quando estava encarnada. Assim, Laerte não percebeu minha presença espiritual, nem a ajuda dedicada de outros amigos nossos. Como gastou muitos anos fingindo, viciou a visão espiritual, limitou o padrão vibratório e o resultado foi que só conseguiu perceber a companhia das relações que cultivou sem pensar, pela mente e pelo coração. Preocupou -se algum tempo com os princípios de família e o amor ao nosso nome. Tentou lutar, repelindo as tentações, mas, no fim, caiu no vamente envolvido pela sombra, por ser incapaz de manter bons pensamentos com firmeza. Muito impressionado, perguntei: - E não há maneira de tirá -lo dessa situação de degradação? - Ah, meu filho, - explicou minha mãe – eu o visito sempre. No entanto, ele não me vê. Seu potencial vibratório é muito baixo ainda. Tento atrai -lo para o bom caminho pela inspiração, mas só consigo fazê -lo chorar um pouco de arrependimento, sem conseguir que tenha determinação em seus propósitos. As mulheres infelizes que o mant êm prisioneiro afastam -no da minha influência. Venho trabalhando muito, anos a fio. Pedi a ajuda de amigos em cinco núcleos de atividade espiritual mais elevada, inclusive aqui em “Nosso Lar”. Uma vez, Clarêncio quase conseguiu trazê -lo para o Ministério d a Regeneração, mas foi em vão. É impossível acender um lampião sem combustível... Precisamos da adesão mental de Laerte para conseguir erguê -lo e abrir sua visão espiritual. No entanto, o infeliz continua passivo em si mesmo, oscilando entre a indiferença e a revolta. Depois de longa pausa, suspirou e continuou: " André Luiz," - Acho que você não sabe ainda que suas irmãs Clara e Priscila também estão no Umbral, agarradas ao plano físico. Sou forçada a atender as necessidades de todos. A única ajuda mais direta e carinho sa que tive foi de sua irmã Luísa, aquela que desencarnou quando você ainda era muito pequeno. Luísa me esperou aqui por muitos anos, foi meu braço forte nos duros trabalhos de amparo à nossa família física. No entanto, a perturbação dos nossos parentes te rrenos ainda no plano físico é tão profunda que, recentemente, decidiu reencarnar ela mesma, num gesto de muita coragem e renúncia. Assim, espero que você logo se restabeleça para que juntos possamos desenvolver nossas atividades no bem. Fiquei espantado com as informações a respeito de meu pai. Que espécie de dificuldades ele estaria passando? Não parecia tão sincero quando se comungava todos os domingos? Encantado com a dedicação de minha mãe, perguntei: - Mas a senhora ajuda o papai, mesmo sabendo de su as ligações com essas mulheres detestáveis? - Não fale assim delas. – argumentou minha mãe – Antes de tudo, meu filho, diga nossas irmãs doentes, igorantes ou infelizes. São filhas de Deus também. Não tenho pedido só por Laerte, mas por elas também, e tenh o certeza de que já sei como aproximá -los todos de mim. Fiquei surpreso com tanta renúncia. De repente, me lembrei de minha própria família. Senti o velho apego à esposa e aos filhos queridos. Na frente de Clarêncio e Lísias, disfarçava sempre meus sentime ntos e minha ansiedade, mas vendo minha mãe ali, não resisti. Percebendo que não tinha muito tempo mais com ela e aproveitando os minutos que me restavam, perguntei: - A senhora, que tem acompanhado papai com tanto interesse, não tem nenhuma informação a r espeito de Zélia e as crianças? Aguardo ansiosamente para voltar em casa, para ajudá -los. Ah, eles devem sentir tantas saudades quanto eu! Como deve sofrer minha pobre esposa com esta separação!... Minha mãe ensaiou um sorriso triste e acrescentou: - Ten ho visitado meus netos sempre que posso. Estão bem. E, depois de pensar um pouco, acentuou: - No entanto, você não deve se preocupar em ajudar a família. Prepare -se, em primeiro lugar, para que tenhamos sucesso. Há assuntos que precisamos entregar a Deus , em pensamento, antes de trabalhar na solução que eles merecem. Quis insistir para ter mais detalhes, mas ela não voltou ao assunto, desconversanso com delicadeza. A conversa se estendeu ainda por um longo tempo, trazendo -me agradável sensação de confort o. Mais tarde, ela se despediu. Curioso para saber como estava vivendo, pedi permissão para acomnpanhá -la. Ela, então, me afagou com carinho e disse: - Não venha, meu filho. Estão me esperando com urgência no Ministério da Comunicação, onde receberei, nas salas de trasformação, recursos fluídicos para o retorno. Além disso, preciso ainda falar com o Ministro Célio, para agradecer a oportunidade desta visita. E se despediu com um beijo, deixando -me uma profunda sensação de felicidade. " André Luiz," NA CASA DE LÍSIAS Logo depois da visita inesperada de minha mãe, Lísias veio me buscar a pedido do Ministro Clarêncio. Surpreso, acompanhei o enfermeiro. Recebido com carinho pelo benfeitor amigo, aguardei suas instruções com muito prazer. - Meu amigo, - disse a tencioso – de agora em diante você está autorizado a fazer observações nos diversos setores de nossos serviços, com exceção dos Ministérios superiores. Henrique de Luna lhe deu alta na semana passada e é justo que agora você aproveite o tempo observando e aprendendo. Naquele instante, olhei para Lísias, como o irmão que devia participar de minha grande felicidade. O enfermeiro também me olhou com muita alegria. Eu não cabia em mim de tão contente. Era o começo de uma vida nova. De alguma maneira, poderia trabalhar, entrando para várias escolas diferentes. Clarêncio, que parecia perceber minha emoção, destacou: - Como você não precisa mais ficar aqui no hospital, cuidarei para que seja transferido para alguma de nossas instituições. Lísias, porém, interrompeu -o, dizendo: - Se possível, durante o período de observações, gostaria muito de recebê -lo em nossa casa. Lá, minha mãe o trataria como um filho. Olhei o enfermeiro com imensa alegria. E Clarêncio também aprovou a sugestão com um olhar, murmurando: - Muito bem, Lísias! Jesus se alegra conosco sempre que recebemos um amigo no coração. Abracei o enfermeiro prestativo, sem poder expressar minha gratidão. A alegria às vezes nos deixa sem palavras. - Guarde este documento. – disse -me o atencioso Ministro do Auxíl io, entregando -me uma pequena caderneta – Com ele você poderá entrar nos Ministérios da Regeneração, do Auxílio, da Comunicação e do Esclarecimento pelo período de um ano. Depois disso, veremos o que será possível fazer com relação aos seus desejos. Estude , meu caro. Não perca tempo. O intervalo entre as encarnações deve ser bem aproveitado. Lísias me deu o braço e eu saí muito feliz. Depois de alguns minutos, estávamos na porta de uma casa muito bonita, cercada por um jardim colorido. - É aqui. – disse o e nfermeiro. E, com carinho, acrescentou: - O nosso lar dentro de “Nosso Lar”. Quando a campainha tocou, uma senhora simpática apareceu à porta. - Mãe! Mãe! ... – gritou Lísias, me apresentando com alegria – Este é o irmão que prometi trazer. - Seja bem vindo, amigo! – disse a senhora. – Esta casa é sua. E me abraçando: - Soube que sua mãe não vive aqui. Nesse caso, serei uma irmã com funções de mãe para você. Não sabia como agradecer tanta hospitalidade. Ía dizer algumas frases para demonstrar minha gra tidão, mas a nobre senhora, com muito bom humor, adivinhou meus pensamentos e disse: - Você está proibido de falar em agradecimentos. Não o faça. Eu seria obrigada a me lembrar, de repente, de muitos chavões sociais da Terra... Rimos todos e eu, emocionado , falei: - Que o meu agradecimento venha em forma de bênçãos divinas de alegria e paz. Entramos. O ambiente era simples e acolhedor. Móveis e objetos quase iguais aos da Terra, com pequenas diferenças. Quadros de grande significado espiritual, um piano " André Luiz," enorme e, sobre ele, uma grande harpa de linhas delicadas. Percebendo minha curiosidade, Lísias falou com alegria: - Como você vê, depois da morte física você não encontrou os anjos tocando harpas, mas encontrou uma harpa esperando por nós mesmos. - Ah, Lísi as, – disse a mãe com carinho – não seja irônico. Você não se lembra de como o Ministério da União Divina recebeu o pessoal da Elevação no ano passado, quando alguns embaixadores da Harmonia estiveram aqui? - Sim, mãe. Eu só quis dizer que os harpistas exi stem, mas nós precisamos desenvolver a audição espiritual para ouvi -los, fazendo a nossa parte no aprendizado das coisas divinas. Logo depois de contar um pouco da minha história, fiquei sabendo que a família de Lísias havia vivido em uma cidade antiga do Rio de Janeiro, que sua mãe se chamava Laura e que ele ainda tinha em casa duas irmãs, Iolanda e Judite. A atmosfera ali era de carinho e serenidade. Não conseguia disfarçar minha alegria e felicidade. Aquele primeiro contato com um lar na colônia me dav a muito prazer. A hospitalidade cheia de ternura emocionava meu espírito. Em virtude de muitas perguntas, Iolanda me mostrou alguns livros maravilhosos. Notando o meu interesse, a dona da casa ressaltou: - Em matéria de literatura, temos em “Nosso Lar” u ma grande vantagem: é que os escritores de má fé, aqueles que gostam de destilar veneno psicológico, são levados imediatamente para as zonas obscuras do Umbral. Enquanto insistem nessa atitude mental, não conseguem se equilibrar aqui, nem mesmo no Ministér io da Regeneração. Não pude deixar de sorrir ao observar um ábum de lindas fotos. Em seguida, Lísias me chamou para conhecer a casa. Fiquei mais tempo no banheiro, onde as instalações me surpreenderam. Tudo simples, mas confortável. Ainda não tinha me recu perado das surpresas, quando D. Laura nos convidou para a oração. Sentamo -nos em silêncio em torno de uma grande mesa. Ligando um grande aparelho, ouvimos música suave. Era a oração do pôr do Sol. Ao fundo, surgiu a mesma bela imagem da Governadoria, que e u nunca me cansava de ver todas as tarde no hospital. No entanto, naquele momento, senti profunda alegria. E vendo o coração azul desenhado ao longe, senti que me ajoelhava em espírito, cheio de alegria e gratidão. " André Luiz," AMOR, ALIMENTO DA S ALMAS Quando a oração terminou, a dona da casa nos convidou para uma sopa e algumas frutas, que mais pareciam concentrados de fluidos deliciosos. Muito surpreso, ouvi D. Laura explicar com graça: - Afinal, nossas refeições aqui são muito mais agradáveis que na Terra. Em “Nosso Lar”, há residências que as dispensam quase por completo, mas nas zonas do Ministério do Auxílio não podemos ficar sem os concentrados fluídicos, tendo em vista os serviços pesados impostos pelas circunstâncias. Gastamos muita ener gia. É necessário renovar sempre as forças. - Mas isso – disse uma das moças – não quer dizer que somente nós, os funcionários do Auxílio e da Regeneração, dependemos de alimentos. Nenhum Ministério, inclusive o da União Divina, os dispensa. O que muda é o tipo. Na Comunicação e no Esclarecimento há um grande gasto de frutos. Na Elevação, o consumo de sucos e concentrados não é pequeno. E na União Divina, os fenômenos de alimentação chegam a processos incríveis. Meu olhar de dúvida ia de Lísias para D. Lau ra, ansioso por maiores explicações. Todos achavam graça da minha natural surpresa, mas a mãe de Lísias satisfez minha vontade, explicando: - Você talvez ainda não saiba que o que mais sustenta as criaturas é o amor. De vez em quando, recebemos em “Nosso L ar” grandes comissões de instrutores, que nos trazem orientações relativas à alimentação espiritual. Todo sistema de alimentação, nas várias dimensões, tem o amor como a base mais profunda. O alimento físico propriamente dito, mesmo aqui, é só uma questão de materialidade passageira, como no caso dos veículos terrestres que precisam de graxa e óleo. A alma, em si, nutre -se apenas de amor. Quanto mais nos elevarmos no plano evolutivo da Criação, mais entenderemos esta verdade. Você não concorda que o amor se ja o alimento do universo? Essas considerações me davam muito conforto. Percebendo minha satisfação íntima, Lísias comentou: - Tudo se equilibra no amor infinito de Deus e, quanto mais evoluído é o ser, mais sutil o seu processo de alimentação. O verme, no subsolo do planeta, nutre -se essencialmente de terra. O animal maior colhe na planta os elementos do seu sustento, assim como a criança quando mama na mãe. O homem colhe o fruto, transforma -o de acordo com o seu paladar e serve -o em casa para a família. Nós, desencarnados, necessitamos de substâncias suculentas, com uma característica mais fluídica, e, à medida que a criatura evolui, mais delicado se torna o processo. - E não vamos nos esquecer da questão dos veículos – acrescentou D. Laura – porque, no fundo, o verme, o animal, o homem e nós, dependemos completamente do amor. Todos nos movemos nesse amor e sem ele não existiríamos. - É impressionante! – comentei emocionado. - Não se lembra do ensino evangélico do “amai -vos uns aos outros”? – prosseguiu a mãe de Lísias – Essas orientações de Jesus não visavam somente a caridade, com que todos nós aprenderemos, mais cedo ou mais tarde, que a prática do bem é, nada mais, nada menos, que um dever. Ele também nos aconselhava a nos alimentarmos uns aos outros, com fraternidade e simpatia. O homem encarnado um dia saberá que a conversa amiga, o gesto afetuoso, a bondade recíproca, a confiança mútua, a compreensão, o interesse fraterno – bens que se derivam naturalmente do amor maior – são sólidos alimentos para a vida. Quando reencarnados na Terra, sofremos grandes limitações, mas quando voltamos para cá percebemos que toda a estabilidade da alegria é uma questão apenas de alimentação espiritual. Baseados nesses bens, lares, vilas, cidades e nações da Terra são fo rmados. Lembrei -me instintivamente das teorias sobre o sexo, amplamente difundidas no mundo, e D. Laura, talvez adivinhando meus pensamentos, comentou: " André Luiz," - E que ninguém diga que é apenas uma questão de sexo. O sexo é uma manifestação sagrada do amor divino universal, mas é também uma expressão isolada do potencial infinito. Entre os casais mais espiritualizados, o carinho e a confiança, a dedicação e o entendimento mútuos ficam muito acima da união física, a qual se torna, para eles, apenas uma realização pa ssageira. A troca magnética é o fator que estabelece o ritmo necessário à manifestação mais equilibrada. Para que a alegria se alimente, basta estarem juntos e, às vezes, apenas que se compreendam. Aproveitando a pausa mais longa, Judite acrescentou: - Em “Nosso Lar” aprendemos que a vida física se equilibra no amor, sem que a maior parte dos homens perceba. Almas gêmeas, almas irmãs, almas afins, são pares e grupos numerosos. Unindo -se umas às outras, amparando -se mutuamente, conseguem equilíbrio na Terra . No entanto, quando o companheiro falta, a criatura mais fraca costuma cair no meio do caminho. - Como você vê, André, - completou Lísias – mesmo nisso é possível relembrar o Evangelho do Cristo: “nem só de pão vive o homem.” Antes que pudéssemos fazer outros comentários, a campainha tocou. O enfermeiro se levantou para atender. Dois rapazes simpáticos entraram na sala. - Estes são – disse Lísias, falando gentilmente – nossos irmãos Polidoro e Estácio, companheiros de serviço no Ministério do Esclarec imento. Cumprimentos, abraços e alegria. Depois de alguns minutos, D. Laura falou sorridente: - Todos vocês trabalharam muito hoje. Aproveitaram bem o dia. Não estraguem o programa amoroso por nossa causa. Não esqueçam do passeio ao Campo da Música. Perce bendo a preocupação de Lísias, D. Laura acrescentou: - Pode ir, meu filho. Não deixe Lascínia esperar tanto. André ficará comigo até que possa acompanhar você nesses programas. - Não se incomode comigo. – falei instintivamente. D. Laura ainda acrescentou c om um sorriso amável: - Hoje ainda não vou poder participar das atividades do Campo. Minha neta recém desencarnada está em casa se recuperando. Todos saíram muito alegres. A dona da casa, fechando a porta, virou -se para mim e explicou sorrindo: - Vão em bu sca do alimento de que estávamos falando. Os laços afetivos são mais belos e mais fortes aqui. O amor, André, é o pão divino das almas, o sustento sublime dos corações. " André Luiz," A JOVEM DESENCARNADA - Sua neta não come com os outros? – pergu ntei à dona da casa, tentando uma conversa mais íntima. - Por enquanto, come sozinha – esclareceu D. Laura – A boba ainda está nervosa e abatida. Aqui não deixamos que uma pessoa perturbada e triste coma com os outros. Mau humor, irritação e agitação emit em fluidos pesados e venenosos que se misturam automaticamente aos alimentos. Com a nossa ajuda, minha neta ficou dias no Umbral muito sonolenta. Deveria ter ido para o hospital, mas, por fim, veio ficar sob os meus cuidados diretos. Demonstrei vontade de visitar a recém -desencarnada. Seria muito interessante ouvi-la. Há quanto tempo eu estava sem saber nada do mundo físico? Quando comentei isso com D. Laura, ela não pensou duas vezes. Entramos num quarto confortável e muito grande. Uma jovem muito pál ida descansava numa poltrona confortável. Ficou muito surpresa quando me viu. - Este amigo, Eloísa, - explicou a mãe de Lísias, apontando para mim – é um irmão que chegou há pouco tempo do plano físico. A moça me olhou curiosa, embora as olheiras fundas demonstrassem grande cansaço pelo esforço que fazia para se concentrar. Cumprimentou -me, ensaiando um sorriso vago, e eu me apresentei. - Deve estar cansada – comentei. Mas antes que ela respondesse, D. Laura se adiantou para evitar que a moça fizesse es forços cansativos demais: - Eloísa tem estado inquieta, aflita. Em parte, faz sentido. A tuberculose foi longa e deixou marcas profundas nela. Entretanto, não se pode abrir mão do otimismo e da coragem, em qualquer situação. Vi a jovem arregalar os olhos muito negros, tentando conter o choro, mas não adiantou. Seu peito começou a sacudir violentamente e, com o lenço no rosto, não conseguia conter os soluços cheios de angústia. - Bobinha! – disse a doce senhora, abrançando a moça – Você precisa reagir contra isso. Estas impressões são consequência de uma educação religiosa deficiente. Você sabe que sua mãe não vai demorar muito a chegar. Sabe também que não pode contar com a fidelidade do noivo que, de forma nenhuma, está preparado para dedicar seu espírit o sinceramente a você na Terra. Ele ainda está longe do amor espiritual sublimado. Claro que se casará com outra e você tem que se acostumar com essa idéia. Nem seria justo exirgir que ele viesse para cá de repente. Sorrindo com ternura, D. Laura acrescent ou: - Suponhamos que ele viesse, desobedecendo a lei. Não seria mais difícil e sofrido? Você não acha que pagaria caro demais por se envolver numa coisa dessas? Aqui você sempre terá a ajuda fraterna de amigos carinhosos para se equilibrar. E se você ama m esmo o rapaz, deve procurar se harmonizar para poder ajudá -lo mais tarde. Além disso, sua mãe não vai demorar para chegar. O pranto da moça me causou pena. Tentei dar outro rumo à conversa, tentando tirá-la da crise de choro. - De onde você vem, Eloísa? – perguntei. A mãe de Lísias, agora calada, parecia que também queria ver a moça sair daquele estado. Depois de um bom tempo enxugando os olhos, a moça respondeu: - Do Rio de Janeiro. - Só que você não deve chorar assim. – respondi. – Você é muito feliz. Desencarnou há pouco tempo, está com a própria família e não passou pelas grandes dificuldades do momento da morte. Ela parecia mais animada e falou com mais calma: " André Luiz," - Mas você não imagina como tenho sofrido. Oito meses de luta com a tuberculose, mesmo com os tratamentos... a mágoa de haver transmitido a doença para minha mãe... Além disso, não é possível dizer o que sofreu o meu noivo por minha causa... - Ora, ora, não diga isso. – observou D. Laura sorrindo. – Na Terra, sempre pensamos que não existe dor maior que a nossa. Pura cegueira: há milhões de criaturas enfrentando situações realmente cruéis, se compararmos com as nossas experiências. - Mas, vó, o Arnaldo ficou arrasado, desesperado. Tudo isso deixa a gente preocupada – comentou contrariada. - E você acredita mesmo nisso? – perguntou a senhora com carinho. – Andei prestando atenção ao seu ex -noivo várias vezes enquanto você esteve doente. Era natural que ele ficasse tão abalado vendo seu corpo se consumir com a doença, mas ele não está preparado p ara compreender um sentimento puro. Vai se recuperar bem depressa. Amor iluminado não é para qualquer um. Por isso, mantenha o otimismo. É claro que você poderá ajudá -lo muitas vezes ainda, mas, em matéria de relacionamento conjugal, já vai encontrá -lo cas ado com outra quando puder ir visitar a Terra. Admirado, percebi a surpresa triste de Eloísa. A doente não sabia como reagir à postura serena e equilibrada da avó. - Será? A mãe de Lísias ensaiou um gesto de muito carinho e falou: - Não seja teimosa, n em tente me desmentir. Vendo que a moça parecia querer uma prova, D. Laura insistiu com delicadeza: - Você não se lembra da Maria da Luz, a colega que levava flores para você todos os domingos? Pois então: assim que o médico declarou confidencialmente qu e a sua recuperação seria impossível, Arnaldo, mesmo estando muito magoado, começou a envolvê -la com pensamentos diferentes. Agora que você está aqui, não demorará muito para que tome novas decisões. - Ah, que horror, vó! - Horror por quê? Você precisa a prender a pensar nas necessidades dos outros. Seu noivo é um homem comum, não conhece as belezas sublimes do amor espiritual. Por mais que o ame, não vai poder fazer milagres. A auto -descoberta é trabalho pessoal de cada um. Mais tarde, Arnaldo saberá da beleza do seu sentimento, mas, por ora, é preciso deixá -lo viver as experiências de que precisa. - Não me conformo! – respondeu a moça, chorando. – Justamente Maria da Luz, minha melhor amiga! D. Laura, sorriu e falou com jeito: - Mas não seria melhor, mais agradável, que alguém de sua confiança cuidasse dele? Maria da Luz será sempre sua amiga espiritual, enquanto que uma outra mulher poderia criar problemas para que você se aproximasse dele mais tarde. Eu estava totalmente surpreso. Eloísa desatou a c horar. A bondosa senhora percebeu minha intranquilidade e, querendo orientar tanto à neta como a mim, explicou com clareza: - Eu sei por quê você chora tanto, minha filha: egoísmo e vaidade, os maiores e mais antigos vícios humanos. Só que eu não falo par a magoá -la, mas para que você enxergue a realidade. Enquanto Eloísa chorava, a mãe de Lísias me convidou para ir à sala novamente, considerando que a doente precisava descansar. Quando nos sentamos, falou em tom confidencial: - Minha neta chegou profundame nte cansada. Ficou muito tempo presa ao amor próprio exagerado. O certo para ela seria estar num dos nossos hospitais, mas o Assistente Couceiro achou melhor deixá -lo conosco. Aliás, isso me agrada muito, porque minha querida Teresa, mãe de Eloísa, está pa ra chegar. Mais um pouco de paciência e teremos uma boa solução. Questão de tempo e de tranquilidade. " André Luiz," NOÇÕES DE LAR Querendo aproveitar o máximo possível da conversa com D. Laura, perguntei curioso: - Mesmo com tanta coisa para fazer, a senhora ainda trabalha fora de casa? - Sim. Vivemos numa cidade de transição, no entanto, os objetivos da colônia são trabalho e aprendizado. Aqui as almas femininas assumem várias obrigações, a fim de se prepararem para reencarnar ou ir para dimensões mais elevadas. - Mas, em “Nosso Lar”, a organização doméstica é igual à da Terra? D. Laura adotou expressão muito significativa e acrescentou: - O lar terrestre é que tenta, há muito tempo, copiar o que temos aqui, mas os cônjuges lá, com raras exceções, ainda estão aprend endo a lidar com os sentimentos, fascinados que estão pela vaidade pessoal e completamente envolvidos pelo ciúme e o egoísmo. Da última vez que desencarnei, naturalmente tinha muitas ilusões. Mas, por coincidência, na mesma época em que sofria com o orgulh o ferido, tive a oportunidade de ouvir um grande instrutor no Ministério do Esclarecimento. Desde aquele dia, tenhonovas idéias a respeito do assunto. - A senhora poderia comentar algumas das idéias que aprendeu? – perguntei com interesse. - O orientador, profundo conhecedor de matemática, – continuou ela – disse -nos que o lar é como um ângulo reto nas linhas do plano da evolução divina. A linha vertical é o sentimento feminino voltado para as energias criadoras da vida. A linha horizontal é o sentimento ma sculino, trabalhando para o progresso de todos. O lar é o encontro sagrado dessas duas linhas, homem e mulher, para o indispensável entendimento. É como um templo onde a união espiritual deveria acontecer antes da união corporal. Hoje em dia, há na Terra m uita gente estudando as questões sociais, sugerindo várias medidas e pedindo a regeneração da vida doméstica. Alguns chegam a afirmar que a instituição da família humana está ameaçada. No entanto, o mais importante a considerar é que, na verdade, o lar é u ma conquista sublime que os homens vão fazendo aos poucos. Onde podemos ver, no mundo, um lar de verdade, baseado na harmonia, com direitos e deveres igualmente estabelecidos? Na maioria dos casos, os casais terrestres gastam mais tempo com a indiferença o u o egoísmo feroz. Quando o marido está calmo, a mulher parece desesperada. Quando a esposa se acalma com humildade, o marido age como tirano. Nem a esposa tenta ajudar o marido em sua horizontal de tarefas temporárias, nem o marido tenta acompanhá -la em s ua vertical de ternura e sentimento, em direção às dimenões mais elevadas. Em sociedade, mantêm as aparências, mas, na intimidade, nem sequer se permitem ouvir um ao outro em suas necessidades. Se a mulher fala dos filhos, o marido pensa nos negócios. Se o marido comenta qualquer problema que tenha no trabalho, a mulher pensa na costureira. É claro que, dessa maneira, o ângulo divino não está bem traçado. Duas linhas divergentes tentam, em vão, formar o ângulo sublime que servirá como degrau na subida evolu tiva. Esses conceitos mexiam muito comigo e, muito impressionado, comentei: - D. Laura, esses esclarecimentos levam a um mundo de novas idéias. Ah, se soubéssemos disso enquanto estávamos encarnados!... - Uma questão de experiência, André. – respondeu a se nhora – O homem e a mulher aprenderão sofrendo e lutando. Por enquanto, muito poucos sabem que o lar é, em essência, uma instituição divina e que devemos viver nele com todo o coração e a alma. Durante o noivado, as pessoas comuns esforçam -se por mobilizar ao máximo o espírito. E por isso dizemos que toda pessoa fica linda quando está amando. Até o assunto mais banal se torna especial em suas conversas corriqueiras. Nessa fase, homem e mulher estão completamente afinizados em suas energias mais sutis. Mas a maioria, assim que se casa, perde o encanto, deixando -se envolver por emoções menos nobres. Não há concessões mútuas. Não há tolerância e, às vezes, nem fraternidade. E a beleza do amor " André Luiz," iluminado se acaba quando os cônjuges deixam de conversar e trocar co nfidências. Daí em diante, os mais educados respeitam -se e o mais rudes mal se suportam. Não se entendem. Perguntas e respostas são feitas com algumas palavras apenas. Por mais que unam os corpos, as mentes vivem separadas e caminham em direções opostas. - É a mais pura verdade! – falei emocionado. - Mas o que vamos fazer, André? – respondeu a senhora – No atual estágio evolutivo do planeta, raras são as uniões de almas gêmeas, poucos são os casamentos de almas afins e muitas são as ligações de resgate. A m aioria dos casais humanos se mantém unida por algemas, como condenados. Tentando voltar ao assunto de minha pergunta inicial, D. Laura continuou: - As almas femininas não podem ficar aqui sem fazer nada. É preciso aprender a ser mãe, esposa, missionária, i rmã. A tarefa da mulher no lar não pode se limitar a algumas lágrimas de piedade inútil e a vários anos de submissão. É claro que o desesperado movimento feminista contemporâneo não passa de triste ataque contra as verdadeiras atribuições espirituais da al ma feminina. A mulher não pode disputar com o homem em salas e escritórios onde se localizam as atividades reservadas ao espírito masculino. No entanto, nossa colônia ensina que existem muitos serviços importantes fora de casa para as mulheres. A enfermage m, o ensino, as indústrias têxteis, a informação, enfim, os serviços que exigem paciência representam atividades bem importantes. O homem deve aprender a levar para casa a riqueza de suas experiências e a mulher precisa levar a doçura do lar para as tarefa s mais frias do homem. Dentro de casa, a inspiração e, fora dela, a atividade. Uma não pode viver sem a outra. Como pode o rio se sustentar sem a nascente? E como pode a água da nascente se espalhar sem o leito do rio? Não pude deixar de sorrir com aquele questionamento. Depois de um longo intervalo, a mãe de Lísias continuou: - Quando o Ministério do Auxílio coloca crianças para viver em minha casa, minhas horas de serviço são contadas em dobro, o que demonstra a importância do serviço maternal no plano f ísico. Entretanto, quando isso não acontece, dedico -me aos serviços de enfermagem durante o dia, com uma semana de horas de trabalho. Todo mundo trabalha aqui em casa. A não ser por minha neta que está se recuperando, nenhuma pessoa da família fica para da. Trabalhar oito horas diárias pelo bem comum não é difícil para ninguém. Ficaria envergonhada se não fizesse a minha parte. " André Luiz," CONTINUANDO A CONVERSA - Esta conversa, D. Laura, - falei com interesse – gera muitas dúvidas e vou ac abar parecendo curioso e abusado... - Não diga isso, – respondeu gentil – pergunte sempre. Não tenho condições de ensinar, mas é sempre fácil informar. Rimos dos comentários e perguntei em seguida: - Como a senhora vê o problema da propriedade em “Nosso La r”? Esta casa, por exemplo, é sua? Ela sorriu e explicou: - Assim como na Terra, a propriedade aqui é relativa. Nossas aquisições são feitas com base em horas de trabalho. O bônus -hora, no fundo, é o nosso dinheiro. Tudo é adquirido com esses cupons, que obtemos com dedicação e esforço próprio. As construções, em geral, são de todos, sob o controle da Governadoria. No entanto, cada família espiritual pode conseguir uma casa (nunca mais de uma), apresentando mil bônus -hora, que podem ser alcançados depo is de algum tempo de serviço. Nossa casa foi conquistada pelo trabalho perseverante de meu marido, que veio para o plano espiritual muito antes de mim. Ficamos anos separados pelos laços físicos, mas estivemos sempre unidos pelos laços espirituais. Rica rdo não se acomodou. Recolhido em “Nosso Lar”, depois de algum tempo de muitas perturbações, percebeu logo a necessidade de se esforçar para nos dar um lar no futuro. Quando cheguei, inauguramos a casa que ele havia montado com muito carinho, aumentando no ssa felicidade. Desde então, tenho aprendido muitas coisas novas com ele. Eu lutei muito depois que fiquei viúva. Como ainda era muito jovem e tinha os filhos pequenos, tive de aceitar serviços difíceis. Com muito esforço, pude passar aos nossos filhos a e ducação que eu tinha, fazendo com que, logo cedo, se acostumassem a trabalhar. Depois entendi que a vida difícil havia me livrado dos sofrimentos e angústias do Umbral, por ter evitado que eu passasse por perigosas tentações. O trabalho honesto, quando exe cutado com o próprio suor e dedicação, representa importante defesa e meio de elevação para a alma. Reencontrar Ricardo, montar nova casa com afeto, era como o céu para mim. Durante muitos anos seguidos vivemos a vida infinita de alegrias, trabalhando por nossa evolução, unindo -nos cada vez mais e cooperando no progresso efetivo dos nossos familiares. Com o tempo, Lísias, Iolanda e Judite se juntaram a nós, aumentando nossa felicidade. Depois de uma pausa rápida, em que parecia pensar, D. Laura continuou nu m tom sério: - Mas o mundo nos esperava. Se o presente estava cheio de alegria, o passado nos cobrava, para que o futuro se harmonizasse com a lei universal. Não podíamos pagar à Terra com bônus -hora e, sim, com o nosso próprio esforço honesto. Como agíamo s com boa vontade, começamos a ver mais claramente o passado doloroso. A lei do ritmo pedia que voltássemos. Aquelas colocações me impressionavam muito. Era a primeira vez que eu ouvia falar a respeito de vidas passadas na colônia. - D. Laura, - disse, int errompendo -a – posso, por favor, fazer uma colocação? Desculpe minha curiosidade, mas, até agora, ainda não pude saber mais detalhes a respeito de meu passado espiritual. No entanto, não estou livre dos laços físicos? Não passei pela morte física? A senho ra lembrou do passado logo depois de chegar aqui ou teve que esperar algum tempo? - Tive que esperar. – respondeu sorridente – Antes de tudo, é preciso que nos livremos das impressões físicas. Os traços de inferioridade são muito fortes. É preciso muito eq uilíbrio para que possamos aprender com que o recordamos. Em geral, todos nós temos erros graves nas várias encarnações. Quem se lembra do crime que cometeu, costuma se considerar a pior criatura do universo. E quem se lembra do crime de que foi vítima, co nsidera -se o mais infeliz. Portanto, só as almas muito seguras de si recebem " André Luiz," esses recursos imediatamente após a morte. As outras têm suas lembranças controladas e, se tentam enganar esse dispositivo da lei, geralmente acabam ficando desequilibradas e pert urbadas. - Mas a senhora se lembrou naturalmente do passado? – perguntei. - Deixe -me explicar. – respondeu gentil – Quando minha visão interior se aclarou, as lembranças vagas me causavam muitas perturbações. Coincidentemente, meu marido passava pelos mesm os problemas. Resolvemos, então, consultar o assistente Longobardo. Esse amigo, depois de um exame cuidadoso de nossas impressões, encaminhou -nos aos magnetizadores do Ministério do Esclarecimento. Fomos recebidos com carinho e, em primeiro lugar, tivemos acesso à Seção do Arquivo, onde todos nós temos anotações particulares. Os técnicos nos aconselharam a, durante dois anos, ler nossas próprias memórias relativas ao período de três séculos, sem que prejudicássemos nosso trabalho no Auxílio. O chefe do Ser viço de Recordações não permitiu que lêssemos as fases anteriores, explicando que ainda não éramos capazes de suportar as lembranças de outras épocas. - E só com a leitura a senhora recuperou completamente as lembranças? – perguntei curioso. - Não. A leitu ra apenas informa. Depois de um bom tempo pensando para podermos nos esclarecer, com surpresas indescritíveis, fomos submetidos a algumas operações psíquicas para que pudéssemos recuperar os aspectos emocionais das lembranças. Os técnicos no assunto nos ap licaram passes no cérebro, despertando certas energias adormecidas... Ricardo e eu recuperamos, então, anos de memória integral. Aí entendemos o quanto ainda devíamos ao planeta!... - E onde está nosso irmão Ricardo? Gostaria muito de conhecê -lo!... – disse impressionado. A mãe de Lísias balançou a cabeça e murmurou: - Em vista do que soubemos sobre o passado, combinamos de nos reencontrar na Terra. Temos trabalho, muito trabalho lá. Assim sendo, Ricardo reencarnou há apenas três anos. E eu irei em algu ns dias. Estou apenas esperando a chegada de Teresa, para deixá -la aqui com a família. E com o olhar vago, como se o pensamento estivesse muito longe, ao lado da filha ainda encarnada, D. Laura acrescentou: - A mãe de Eloísa não vai demorar. Ficará apenas algumas horas no Umbral, em vista de seus sacrifícios desde muito pequena. Como sofreu muito, não vai precisar passar pela Regeneração. Assim, poderei passar a ela minhas tarefas no Auxílio e partir sossegada. Deus não esquecerá de nós. " André Luiz," O BÔNUS -HORA Notando que D. Laura ficou triste de repente ao se lembrar do marido, mudei de assunto, perguntando: - E o bônus -hora? É algum tipo de moeda? D. Laura deixou a postura pensativa em que estava e respondeu atenciosa: - Não é propriamente uma moeda, mas uma ficha de serviço individual, que funciona como valor aquisitivo. - Aquisitivo? – perguntei de repente. - Vou explicar. – respondeu a senhora gentil – Em “Nosso Lar”, a produção de roupas e alimentos básicos é de todos em comum. Há serviços c entrais de distribuição na Governadoria e departamentos com igual função nos Ministérios. O estoque fundamental é propriedade de todos. Vendo minha expressão de espanto, acrescentou: - Todos cooperam no crescimento do patrimônio comum e vivem dele. Mas os que trabalham adquirem direitos justos. Todos os habitantes de “Nosso Lar” recebem provisões de comida e roupa para o que é absolutamente necessário. Mas os que se esforçam para ganhar bônus -hora conseguem certas regalias na comunidade. O espírito que aind a não trabalha, poderá viver aqui. No entanto, os que colaboram podem ter casa própria. Quem não trabalha, com certeza terá o que vestir, mas o operário dedicado, sem dúvida, se vestirá como quiser e o melhor que puder, entendeu? Quem não faz nada pode ficar nos campos de repouso ou nos parques de tratamento, a pedido de amigos. Entretanto, as almas que trabalham conquistam bônus -hora e podem viver na companhia de pessoas queridas, nos lugares reservados ao lazer, ou em contato com sábios orientadores nas d iversas escolas dos Ministérios em geral. Todos precisamos saber quanto custa cada melhoria e elevação. Cada um dos que trabalham deve dar, no mínimo, oito horas de serviço útil por dia. Como os programas de trabalho são muitos, a Governadoria permite aind a horas extras de trabalhos para os que desejam colaborar com o bem estar comum. Desse modo, há muita gente que consegue receber bônus -hora por semana, sem falar nos serviços sacrificiais, em que a remuneração pode ser duplicada ou triplicada. - Mas e sse é o único tipo de remuneração? – perguntei. - Sim, é o padrão de pagamento para todos os colaboradores da colônia, não só na administração, como também na obediência. Pensando nas organizações existentes na Terra, perguntei espantado: - Mas como concil iar esse padrão com o tipo de serviço? O administrador ganhará bônus -hora num dia normal de trabalho e o operário do transporte receberá a mesma coisa? O trabalho do primeiro não seria mais elevado que o do segundo? D. Laura sorriu com a pergunta e expli cou: - Tudo é relativo. Se o trabalho é de sacrifício pessoal, seja como chefe ou como subalterno, a quantia é multiplicada de acordo. Mas para analisar com mais atenção a sua pergunta, precisamos, antes de mais nada, esquecer alguns conceitos terrestres. O tipo de serviço é de suma importância, mas é justamente no plano físico que sua solução nos parece mais difícil. A maioria dos encarnados está apenas treinando o espírito de serviço e aprendendo a trabalhar nos vários setores da vida humana. Por isso me smo, é preciso determinar as remunerações terrestres com mais atenção. Tudo que se ganha no mundo é lucro transitório, passageiro. Vemos muitos trabalhadores obcecados por juntar dinheiro, deixando enormes fortunas para serem esgotadas por criaturas sem co nsciência. Outros amontoam grandes somas em bancos que só servem para martirizar a si mesmos e arruinar a família. Por outro lado, é indispensável considerar que % dos administradores encarnados não se lembram de seus deveres morais e a mesma percentage m de subordinados está na mesma situação. Quase todos vivem dizendo que não têm vocação para a função que exercem, mas continuam a receber o salário " André Luiz," correspondente. Governos e empresas pagam a médicos que exploram o interesse dos outros e a operários que m atam o tempo. Como é que fica, nesse caso, o tipo de serviço de que você fala? Há técnicos de economia que nunca cumpriram completamente suas obrigações e se aproveitam de leis generosas para conseguir privilégios e regalias em abonos, facilidades e aposen tadorias. Mas você pode acreditar que todos pagarão muito caro por essa irresponsabilidade. Parece que está distante o tempo em que os institutos sociais serão capazes de determinar a qualidade de serviço dos homens, porque, para o plano espiritual superio r, não se pode falar em tipo de trabalho sem levar em consideração os aspectos morais envolvidos. Esses comentários me chamaram a atenção para novos conceitos. Notando meu interesse em saber mais, D. Laura continuou: - O verdadeiro ganho da criatura é d e natureza espiritual. E o bônus -hora, em nossa colônia, tem valor bastante diferente, de acordo com a natureza dos nossos serviços. No Ministério da Regeneração, temos o bônus -hora -regeneração. No Ministério do Esclarecimento, o bônus -hora -esclarecimento. E assim por diante. Para analisar o rendimento espiritual, é justo que a documentação de trabalho demonstre o tipo de serviço. As aquisições fundamentais são em experiência, educação, enriquecimento de bênçãos divinas, maiores possibilidades. Por este âng ulo, a frequência e dedicação ao trabalho são quase tudo aqui. Em geral, em nossa cidade de transição, a maioria dos espíritos se prepara para reencarnar. Desse ponto de vista, é natural que a pessoa que dedicou mil horas a serviços regeneradores tenha f eito um grande esforço em seu próprio benefício. Aquele que dedicou mil horas ao Ministério do Esclarecimento, será mais sábio. Podemos gastar bônus -horas conquistados, mas o registro individual de tempo de serviço também conta para a obtenção de direito a títulos nobres. Instruções como essas me interessavam muito. - Mas nós podemos gastar bônus -hora a favor de amigos? – perguntei curioso. - Claro que sim. – disse ela. – Podemos repartir as bênçãos que alcançamos com nosso próprio esforço da maneira que acharmos melhor. Isto é direito instransferível de todo trabalhador fiel. Temos milhares de pessoas favorecidas em “Nosso Lar”, graças à amizade e o estímulo fraterno. Nesse momento, a mãe de Lísias sorriu e comentou: - Quanto maior for o tempo de trabalho , maiores serão os pedidos que poderemos fazer pelos outros. É aí que entendemos que não existe nada sem preço e que, para receber alguma coisa, temos antes que dar alguma coisa. Assim, pedir é muito válido na existência de qualquer um. Mas só os que possu em títulos adequados é que podem pedir e oferecer favores, entendeu? - E o problema da herança? – perguntei de repente. - Aqui não temos muitas complicações. – respondeu D. Laura, sorrindo. – Veja o meu caso, por exemplo. Está chegando a hora de voltar ao plano físico. Tenho mil bônus -hora -auxílio nos meus registros pessoais. Não posso deixá -los para minha filha que está para chegar, porque serão revertidos para o patrimônio comum, ficando minha família apenas com o direito de herança a esta casa. No enta nto, minha ficha de serviço me dá o direito de ajudá -la, preparando trabalho e orientação de amigos, ao mesmo tempo em que garante para mim a ajuda necessária das organizações da colônia durante o período em que permanecer encarnada. E nesse cálculo, não e stou levando em consideração o grande lucro que tive em experiência, durante os anos em que trabalhei no Ministério do Auxílio. Vou voltar à Terra com valores mais elevados e qualidades mais nobres, preparada para o êxito desejado. Ía fazer uma porção de c omentários de adminiração, referentes ao processo de remuneração, comparando com os que existem na Terra, quando um burburinho começou a se aproximar da casa. Antes que eu pudesse fazer qualquer comentário, D. Laura foi dizendo satisfeita: - Nossos querido s estão voltando. E já se levantou para atendê -los. " André Luiz," SABER OUVIR No fundo, lamentei a interrupação da conversa. As explicações de D. Laura fortaleciam meu coração. Lísias entrou em casa visivelmente contente. - Olá! Não foi dormir ainda? – perguntou so rrindo. E, enquanto os outros se despediam, me fez um convite: - Vamos ao jardim, pois você ainda não viu o luar por aqui. A dona da casa ficou conversando com as filhas, enquanto eu acompanhava Lísias aos canteiros floridos. Era um espetáculo maravilhoso! Acostumado a ficar só dentro do hospital, entre árvores grandes, ainda não sabia como a noite era clara e linda ali nos grandes quarteirões do Ministério do Auxílio. Glicínias de incrível beleza enbelezavam a paisagem. Lírios muito brancos, com um leve to m azulado no centro, pareciam taças de perfume suave. Respirei profundamente, sentindo que ondas de energia nova penetravam meu espírito. Ao longe, as torres da Governadoria apresentavam bonitos efeitos de luz. Estava tão delumbrado que não conseguia dizer nada. Fazendo um esforço para demonstrar a admiração que sentia, falei emocionado: - Nunca senti tanta paz! Que noite!... O companheiro sorriu e disse: - Há um compromisso entre todos os habitantes equilibrados da colônia, no sentido de não se emitirem pensamentos negativos. Dessa forma, o esforço da maioria se transforma em prece quase permanente. É daí que vêm as vibrações de paz que sentimos. Depois de me deliciar admirando a paisagem maravilhosa, como se estivesse bebendo a luz e a calma da noite, v oltamos para dentro da casa onde Lísias se dirigiu a um pequeno aparelho que estava na sala, parecido com os nossos aparelhos de rádio. Fiquei muito curioso. O que íamos ouvir? Mensagens da Terra? Como se adivinhasse minhas dúvidas íntimas, ele esclareceu: - Não vamos ouvir pessoas encarnadas. Nossas transmissões se baseiam em vibrações mais sutis que as da Terra. - Mas não existem recursos – perguntei – para recebermos as emissões do planeta? - Claro que temos esses recursos em todos os Ministérios. No e ntanto, em casa, nos interessamos mais pelas coisas relacionadas à nossa condição atual. A programação dos serviços, as mensagens da espiritualidade superior e os grandes ensinamentos estão muito acima de qualquer notícia da Terra para nós. O comentário e ra válido, mas, ainda apegado ao lar e à família terrena, perguntei: - Mas é tanto assim? E os parentes que ficaram à distância? Nossos pais, nossos filhos? - Já esperava que você fizesse essa pergunta. No plano físico ficamos viciados em determinadas situ ações e quase todos nós temos a mania de exagerar os sentimentos. Na Terra, somos sempre muito exclusivistas e, em família, ficamos limitados aos laços de parentesco, esquecendo -nos das nossas outras obrigações. Vivemos alheios aos verdadeiros sentimentos fraternos. Ensinamos a fraterniadade a todo mundo, mas, em geral, na hora “H”, só nos interessamos pelo bem dos nossos próprios parentes. Mas aqui, André, a vida nos apresenta o outro lado da moeda e precisamos curar nossas antigas doenças e acabar com as injustiças. No início da colônia, até onde sabemos, todas as casas tinham alguma ligação com o plano físico. Ninguém suportava ficar sem notícias dos parentes comuns. Do Ministério da Regeneração ao da Elevação, o clima era só de nervosismo. Boatos assust adores perturbavam todas as atividades. Mas, há exatamente dois séculos, um dos Ministros da União Divina forçou a Governadoria a tomar uma atitude. É provável que o ex -Governador fosse tolerante demais. A bondade desviada causa quedas e indisciplina. E, d e tempos em tempos, as notícias dos parentes " André Luiz," encarnados punham muitas famílias em pânico. Os desastres coletivos do mundo, aqui, transformavam -se em calamidades públicas, quando eram do interesse de alguém na colônia. Segundo nossos arquivos, a cidade pare cia mais uma divisão do Umbral do que, propriamente, um lugar de regeneração e aprendizado. Apoiado pela União Divina, o Governador proibiu a comunicação generalizada com o plano físico. Houve luta, mas o Ministro generoso, que implantou a medida, inspirou -se no ensinamento de Jesus que manda os mortos enterrarem seus mortos, e a nova regra se tornou um sucesso em pouco tempo. - Mas – argumentei – seria interessante ter notícias dos nossos parentes encarnados. Isso não nos daria maior paz de espírito? Lísias, que estava perto do rádio sem ligá -lo, interessado em me dar maiores explicaç ões, acrescentou: - Observe a si mesmo, para ver se valeria a pena. Você está preparado, por exemplo, para para manter a calma e a fé, ao saber que um dos seus filhos está s endo injustamente acusado ou acusando injustamente a alguém? E se alguém lhe dissesse agora que um dos seus irmãos de sangue foi preso hoje como criminoso, você seria capaz de se manter tranquilo? Sorri decepcionado. - Não devemos procurar notícias dos p lanos inferiores, - prosseguiu com gentileza – a não ser para obter resultados positivos e justos. Temos que considerar que nenhuma criatura será capaz de ajudar de forma efetiva se estiver com os pensamentos e os sentimentos desequilibrados. Por isso, é i ndispensável uma preparação adequada antes de fazermos novos contatos com os parentes terrenos. Se eles fossem capaz de cultivar o amor espiritual, o intercâmbio seria válido. Mas a maioria dos encarnados ainda não alcançou nem o domínio de si mesmo e vive perdida entre os altos e baixos da vida material. Precisamos evitar cair em vibrações inferiores, mesmo com todas as dificuldades sentimentais que enfrentamos. Assim mesmo, confirmando minha teimosia, ainda perguntei: - Mas, Lísias, com alguém querido e ncarnado, como seu pai, você não gostaria de se comunicar com ele? - È claro que, - respondeu com bondade – quando merecemos essa alegria, nós o visitamos em sua nova vida e ele também nos visita, quando existe necessidade de comunicação entre ele e nós. M as não devemos esquecer que somos criaturas sujeitas a falhas. Por isso, precisamos pedir a ajuda dos órgãos competentes para que nos digam quando esse contato é oportuno e merecido. Para isso, temos o Ministério da Comunicação. Vale acrescentar que, da es fera superior, é possível alcançar a inferior com mais facilidade. No entanto, existem certas leis que determinam que os que se encontram nas zonas mais baixas sejam compreendidos adequadamente. Saber ouvir é tão importante quanto saber falar. “Nosso Lar” tinha muitas perturbações porque, não sabendo ouvir, não podia ajudar de fato e a colônia se transformava em campo de confusão com muita frequência. Com o forte argumento, senti -me vencido e me calei. E, enquanto continuava em silêncio, Lísias ligou o apar elho. " André Luiz," O IMPRESSIONANTE APELO Quando o aparelho foi ligado, suave melodia se espalhou pelo ambiente, envolvendo -nos em sons harmoniosos, enquanto víamos, na tela, o locutor no gabinete de trabalho. Dali a pouco, ele começou a falar: - Emiss ora do Posto de “Moradia”. Continuamos a transmitir o apelo da colônia em benefício da paz na Terra. Incentivamos os colaboradores de boa vontade a juntar forças no serviço de preservação do equilíbrio moral no plano físico. Ajudem -nos, quantos puderem d ispor de algumas horas de colaboração nas zonas de trabalho que ligam o Umbral à mente humana. Escuras falanges da ignorância, depois de instigarem a guerra na Ásia, cercam os países europeus, inspirando novos crimes. Junto a outros que se dedicam ao traba lho de higiene espiritual nas camadas mais próximas da Terra, nosso núcleo detecta os movimentos dos poderes concentrados do mal e pede a nossa colaboração frat erna e toda ajuda possível. Lembrem -se de que a paz necessita de trabalhadores de defesa! Colabo rem conosco o quanto puderem!... Há serviço para todos, desde os campos da crosta até as nossas portas!... Que Deus nos abençoe. O locutor se calou e ouvimos música suave novamente. O tom de voz do estranho convite abalou -me profundamente. Lísias foi quem me ajudou, explicando: - Estamos ouvindo “Moradia”, velha colônia de serviços muito ligada às zonas inferiores. Como você sabe, estamos em agosto de . Suas últimas experiências pessoais não lhe deram tempo de pensar na difícil situação do mundo, mas posso garantir -lhe que os países do planeta estão prestes a enfrentar batalhas terríveis. - O que você está dizendo? – perguntei completamente assustado – Já não foi suficiente o sangue da última grande guerra? Lísias sorriu, com os olhos brilhantes fixo s em mim, lamentando, em silêncio, a difícil situação humana. Pela primeira vez, o enfermeiro não me respondeu. Seu silêncio me incomodou. O que mais me impressionava nesses novos planos era a grandeza dos serviços espirituais. Quer dizer, então, que havia cidades de espíritos bondosos suplicando socorro e cooperação? O locutor tinha na voz o tom de um verdadeiro S.O.S. Vi seu rosto abatido na tela. Seus olhos demonstravam grande ansiedade. E a linguagem? Ouvi perfeitamente a língua portuguesa, clara e corr eta. Pensava que todas as colônias espirituais se comunicassem pelo pensamento. Mesmo ali, ainda havia a dificuldade no intercâmbio? Percebendo minhas dúvidas, Lísias esclareceu: - Ainda estamos muito longe dos planos da mente pura. Assim como na Terra, o s que se sintonizam perfeitamente podem se comunicar pelo pensamento, sem as dificuldades do idioma. Mas, de modo geral, não podemos abrir mão da forma, no sentido mais amplo da palavra. Nosso campo de atuação é imenso. A humanidade terrestre, composta de milhões de seres, une -se à humanidade invisível do planeta, composta por outros vários bilhôes de criaturas. Portanto, não seria possível chegar aos planos da perfeição logo depois da morte física. Mesmo aqui, as heranças culturais permanecem, condicionada s pelo nosso psiquismo. Existe um grande número de espíritos completamente livres, nos mais diversos setores de nossa atividade espiritual, mas é preciso considerar que isso é exceção, pois a regra é estar preso a essas restrições. Nada pode contrariar o p rincípio de sequência que comanda as leis evolutivas. Nesse meio tempo, a música foi interrompida e o locutor retornou: - Emissora do Posto de “Moradia”. Continuamos a transmitir o apelo da colônia em benefício da paz na Terra. Nevoeiros escuros se acu mulam sobre a Europa. Forças trevosas do Umbral penetram em todas as direções, atendendo o apelo das tendências mesquinhas do homem. Há muitos espíritos de luz dedicados a lutar pela harmonia internacional nos gabinetes políticos. No entanto, alguns govern os estão centralizados demais, dificultando muito qualquer colaboração espiritual. Sem órgãos de análise e conselhos imparciais, esses países caminham para uma guerra de grandes proporções. Amados irmãos dos núcleos superiores, vamos ajudar na preservação da tranquilidade " André Luiz," humana!... Vamos defender a experiência de várias pátrias que deram origem à civilização ocidental!... Que Deus nos abençoe. O locutor se calou novamente, enquanto as músicas retornavam. O enfermeiro ficou em silêncio e eu não tive corag em de interromper. Depois de cinco minutos de harmonia, ouvimos a mesma voz novamente: - Emissora do Posto de “Moradia”. Continuamos a transmitir o apelo da colônia em benefício da paz na Terra. Irmãos e companheiros, vamos pedir a ajuda das poderosas Fraternidades da Luz que comandam os destinos da América!. Cooperem conosco para salvar milênios de história da evolução terrestre! Vamos marchar em socorro dos povos indefesos e amparar as mães sufocadas de angústia! Nossas energias estão voltadas contra a s legióes da ignorância. Ajudem -nos como puderem! Somos a parte invisível da humanidade terrrestre e muitos de nós voltaremos ao plano físico para resgatar antigos erros. A humanidade encarnada também é nossa família. Vamos nos unir numa só vibração. Vamos acender a luz contra o assédio das trevas. Vamos movimentar a resistência do bem contra a guerra do mal. Rios de sangue e lágrimas ameaçam os países europeus. Vamos ampliar nossa fé e alertar todos para a necessidade do trabalho construtivo!... Que Deus n os abençoe. A essa altura, Lísias desligou o aparelho e enxugou discretamente uma lágrima que não conseguiu conter. Num gesto emocionado, falou: - Grandes almas, os irmãos de “Moradia”! Mas é tudo inútil – acrescentou com tristeza, depois de rápida pausa – Em breve a humanidade encarnada vai pagar altos preços em sofrimento. - E não há nada que se possa fazer para evitar essa catástrofe? – perguntei comovido. - Infelizmente, - disse Lísias em tom grave e triste – a situação geral é muito crítica. Para at ender o pedido de “Moradia” e de outros núcleos que funcionam perto do Umbral, fizemos várias reuniões aqui, mas o Ministério da União Divina explicou que a humanidade encarnada, como personalidade coletiva, está nas mesmas condições de alguém que comeu de mais durante a refeição. A crise orgânica é inevitável. Várias nações nutriram -se de orgulho criminoso, vaidade e egoísmo feroz. Agora precisam expelir os venenos letais que engoliram. E mostrando a intenção de mudar de assunto, Lísias sugeriu que fôssemos dormir. " André Luiz," CONSELHO GENEROSO No dia seguinte, logo cedo, tomei um café rápido com Lísias e a família. Antes que os filhos se despedissem para ir ao trabalho no Auxílio, D. Laura me animou, dizendo, com bom humor: - Já arranjei com panhia para você hoje. Pedi ao nosso amigo Rafael, funcionário da Regeneração, que passasse por aqui. Você poderá ir com ele ao novo Ministério. Rafael é amigo antigo de nossa família e vai apresentar você, em meu nome, ao Ministro Genésio. Não saberia ex plicar como fiquei contente! Estava radiante. Agradeci comovido, sem achar palavras que pudessem expressar minha alegria. Lísias também demonstrou -se muito feliz. Deu -me um forte abraço antes de sair, deixando -me emocionado. Ao beijar o filho, D. Laura rec omendou: - Lísias, avise ao Ministro Clarêncio que irei para o trabalho assim que deixar o nosso amigo André com Rafael. Muito comovido, não sabia como agradecer tanta dedicação. Quando ficamos a sós, a atenciosa mãe do meu amigo me disse, carinhosa: - Meu irmão, deixe -me dar -lhe alguns conselhos para o futuro. Creio que a colaboração maternal sempre vale alguma coisa e, como sua mãe não vive em “Nosso Lar”, tomo para mim a satisfação de orientar você neste momento. - Muito obrigado – respondi emocionad o – Nunca saberei como demonstrar o quanto estou reconhecido por sua atenção. A bondosa senhora sorriu e acrescentou: - Estou sabendo que você pediu trabalho há algum tempo... - Sim, sim... – respondi, lembrando as explicações de Clarêncio. - Sei também qu e não conseguiu nada de imediato e que recebeu, mais tarde, a necessária autorização para visitar os Ministérios que nos ligam mais diretamente à Terra. Com uma expressão significativa no rosto, ela acrescentou: - É justamente sobre isso que quero lhe da r alguns conselhos. Falo com o direito de quem tem mais experiência. Com essa autorização nas mãos, abandone qualquer curiosidade. Não queira ser como a mariposa que vai de lâmpada em lâmpada. Sei que seu espírito de pesquisa intelectual é muito forte. Méd ico estudioso, apaixonado pela s novidades e os mistérios, será muito difícil adaptar -se à nova posição. Mas não se esqueça que poderá conseguir maiores e mais nobres benefícios que a simples análise das coisas. A curiosidade, mesmo quando sadia, pode ser a titude muito interessante, mas, às vezes, pode se tornar perigosa. Os corajosos e leais lidam bem com ela. Mas os indecisos e inexperientes podem ter grandes problemas que não trazem benefício algum a ninguém. Clarêncio garantiu sua entrada nos Ministérios , começando pela Regeneração. Pois bem: não fique só observando. Em vez de ser apenas curioso, pense no trabalho a fazer e entregue -se a ele na primeira oportunidade que tiver. Enquanto puder ser útil na Regeneração, não se preocupe em ter destaque nos ser viços dos outros Ministérios. Aprenda a construir o seu círculo de amizades e não se esqueça de que o espírito de pesquisa só deve vir depois do espírito de serviço. Pesquisar o trabalho dos outros, sem procurar o bem comum, pode ser atrevimento criminoso. Nas construções terrestres, muitos fracassos começam com este desvio. Todos querem observar, mas poucos se dispõem a fazer. Só o trabalho digno dá ao espírito o merecimento de que precisa para alcançar novos direitos. O Ministério da Regeneração está chei o de serviços pesados, pois ali se localiza a região mais baixa de nossa colônia espiritual. De lá saem todas as turmas destinadas aos trabalhos mais difíceis. Mas não se considere humilhado por realizar tarefas humildes. Lembre -se de que, em tod os os plan os terrestres, desde o físico até os mais elevado, o maior trabalhador é o próprio Cristo, que não se recusou a lidar com o serrote numa carpintaria. O Ministro Clarêncio gentilmente autorizou você a conhecer, visitar e analisar os Ministérios, mas você po de, como trabalhador de bom " André Luiz," senso, transformar observações em atividade útil. É possível que neguem a alguém uma determinada tarefa, por haver outra pessoa mais especializada para fazê -la, mas ninguém se recusará a aceitar a colaboração de um espírito de b oa vontade, que ama o trabalho pelo prazer de servir. Meus olhos estavam úmidos. Aquelas palavras, ditas com carinho maternal, caíam como bálsamo em meu coração. Poucas vezes na vida senti tanto interesse sincero por mim. Esse conselho calou fundo em minh a alma e, como se quisesse adoçar conceitos importantes com amor, D. Laura acrescentou com carinho: - A coisa mais nobre que nosso espírito pode aprender é a ciência de recomeçar. São muito poucas as pessoas que entendem essa ciência na Terra. Temos algun s poucos exemplos encarnados nesse sentido. Mas é preciso lembrar do exemplo de Paulo de Tarso, Doutor do Sinédrio, esperança de um povo por sua cultura e juventude, alvo da atenção de todos em Jerusalém, que um dia voltou ao deserto para recomeçar sua experiência humana como tecelão rústico e pobre. Não consegui mais me conter. Como um filho cheio de gratidão, peguei suas mãos e cobri com as lágrimas de alegria que inundavam meu coração. De olhos fixos no horizonte, a mãe de Lísias murmurou: - Muito obr igada, meu irmão. Não creio que você veio para esta casa por mera casualidade. Estamos todos ligados por laços de amizade muito antigos. Logo voltarei à Terra. Entretanto, vamos continuar unidos pelo coração. Espero vê -lo animado e feliz antes de partir. F aça desta casa o seu lar. Trabalhe e anime -se confiando em Deus. Levantei os olhos molhados e olhei seu rosto carinhoso. Senti a felicidade que nasce dos afetos puros e tive a impressão de conhecê -la de velhos tempos, embora não conseguisse identificar seu carinho em minhas memórias distantes. Quis beijá -la muitas vezes com a ternura de um filho do coração, mas, nesse instante, alguém bateu à porta. D. Laura me olhou, demonstrando infinito carinho materno, e falou: - É Rafael que vem buscar você. Vá pensand o em Jesus, André. Trabalhe para o bem dos outros, para que possa encontrar seu próprio bem. " André Luiz," NOVAS PERSPECTIVAS Refletindo sobre as sugestões carinhosas e sábias da mãe de Lísias, acompanhei Rafael, certo de que iria ao apren dizado e ao serviço útil e não às visitas de observação. Com surpresa, percebia os aspectos impressionantes da nova região, em direção ao local onde o Ministro Genésio me aguardava. No entanto, ía em silêncio com Rafael, sem muito interesse em fazer tanta s perguntas. Em compensação, tinha outro tipo de atitude mental. Permanecia o tempo todo em oração, pedindo a Jesus que me ajudasse nos novos caminhos, para que eu tivesse trabalho e forças para trabalhar. Antigamente, não gostava muito de preces, mas agor a utilizava -as como valiosa referência sentimental para o trabalho. O próprio Rafael, de vez em quando, olhava -me curioso, como se não esperasse essa atitude de minha parte. O aeróbus nos deixou em frente a um grande edifício. Descemos calados. Em pouc os minutos, já estava diante do respeitável Genésio, um velhinho simpático que tinha no rosto uma expressão de muita energia. Rafael me apresentou fraternalmente. - Ah!, sim, - disse o generoso Ministro – É o nosso irmão André? - À sua disposição – respo ndi. Laura me avisou sobre sua vinda. Fique à vontade. – Nesse meio tempo, Rafael aproximou -se, despedindo -se com um abraço. Esperavam por ele com urgência no seu setor de trabalho. Olhando -me com muita lucidez, Genésio começou dizendo: - Clarêncio me f alou com interesse sobre você. Quase sempre recebemos pessoal do Ministério do Auxílio em visitas de observação que, na maioria das vezes, terminam em estágio de serviço. Entendi a indireta e respondi: - É isso mesmo o que quero. Tenho pedido muito a Deu s que me dê forças, permitindo que a minha estada neste Ministério se transforme em estágio de aprendizado. Genésio parecia comovido com minhas palavras e, aproveitando que a humildade me inspirava, pedi, de olhos úmidos: - Sr. Ministro, agora entendo qu e só passei pelo Ministério do Auxílio por misericórdia de Deus, talvez por causa dos constantes pedidos de minha mãe. No entanto, percebo que só venho recebendo benefícios, sem nada fazer de útil. Estou certo de que meu lugar é aqui nas atividades da Rege neração. Se for possível, por favor, que a minha autorização para observar possa ser transformada em oportunidade de servir. Mais do que nunca, hoje entendo a necessidade de regenerar meus próprios valores. Perdi muito tempo na vaidade inútil e desperdicei muita energia na adoração ridícula de mim mesmo!... Satisfeito, ele notava a sinceridade que vinha do fundo do meu coração. Quando pedi a ajuda do Ministro Clarêncio, ainda não estava totalmente consciente do que pedia. Queria serviço, mas talvez não qui sesse servir. Não entendia o valor do tempo, nem enxergava a bêncão das oportunidades. No fundo, queria continuar a ser o que tinha sido até ali – o médico orgulhoso e respeitado, que só via a si mesmo, preso das próprias opiniões. No entanto, com tudo o q ue já havia visto e ouvido, percebendo a responsabilidade que cada filho de Deus tem na obra infinita da Criação, falava com o coração, dando o melhor de mim. Era sincero. Não me preocupava com o tipo de serviço. Queria apenas a tarefa sublime pelo espírit o de servir. O velhinho me olhou surpreso e perguntou: - É você mesmo o ex -médico? - Sim... – falei acanhado. " André Luiz," Genésio ficou calado por alguns instantes, como se quisesse achar solução para o caso, até que disse: - Fico muito feliz com suas intenções e peço a Deus também que o mantenha assim digno. E como se quisesse me animar e me encher de esperanças, acentuou: - Quando o discípulo está pronto, Deus envia o instrutor. O mesmo acontece em relação ao trabalho. Quando o servidor está pronto, o serviço a parece. Você tem recebido muitos benefícios de Deus. Está disposto a colaborar, compreende a responsabilidade, aceita o dever. Essa atitude é muito importante para a realização dos seus desejos. No plano físico, costumamos cumprimentar um homem quando ele alcança prosperidade financeira ou fama. Entretanto, aqui a situação é diferente. Valorizamos mais a compreensão, o esforço próprio, a humildade sincera. Percebendo minha ansiedade, concluiu: - É possível conseguir tarefas adequadas, mas, por enquanto, é melhor que você observe, visite e examine. E indo para o gabinete ao lado, disse, em voz mais alta: - Preciso que Tobias venha até aqui antes de ir às Câmaras de Retificação. Não demorou muito e um senhor extrovertido apareceu à porta. - Tobias, - exp licou Genésio, atencioso – este é um amigo que vem do Ministério do Auxílio, em tarefa de observação. Acho que será muito proveitoso para ele o contato com as atividades das câmaras retificadoras. Demo -nos as mãos, enquanto ele dizia, com gentileza: - Às suas ordens. - Acompanhe -o. – prosseguiu o Ministro, demonstrando muita bondade. – André precisa conhecer mais de perto nossas tarefas. Dê a ele todas as oportunidades que nos forem possíves.. Tobias se colocou à disposição com muito boa vontade. - Estou a caminho – acrescentou – Se quiser vir comigo... - Claro... – respondi satisfeito. O Ministro Genésio me abraçou emocionado, dizendo -me palavras de incentivo. Segui Tobias decidido. Atravessamos largos quarteirões, onde os vários edifícios pareciam colméias de muito trabalho. Percebendo minhas dúvidas, o novo amigo esclareceu: - Aqui estão as grandes fábricas de “Nosso Lar”. A preparação de sucos, tecidos e artefatos em geral dá trabalho a mais de mil pessoas que se regeneram e progridem ao mes mo tempo. Logo entramos num edfício com aparência nobre. Muitos servidores íam e vinham. Depois de longos corredores, chegamos a uma grande escadaria que levava aos pisos de baixo. - Vamos descer – disse Tobias em tom sério. E, percebendo minha surpresa, explicou atencioso: - As Câmaras de Retificação estão localizadas perto do Umbral. Os necessitados ficam reunidos ali, porque não suportam as luzes, nem a atmosfera superior, nos seus primeiros tempos de vida em “Nosso Lar”. " André Luiz," ENFIM , O TRABALHO Nunca imaginei algo como o que via agora. Não era como um hospital comum. Era uma série de grandes cabines ligadas entre si e cheias de verdadeiros restos humanos. Ouvia -se um falatório incomum. Gemidos, soluços, frases sofridas ditas ao acaso... Rostos cadavéricos, mãos esqueléticas, faces monstruosas demonstravam a terrível miséria espiritual. Minha primeira impressão foi tão forte que tive que buscar ajuda na prece para poder suportar. Tobias, sem se perturbar, chamou uma colaboradora idosa que aten deu atenciosamente: - Não vejo muitos auxiliares – disse admirado. – O que aconteceu? - O Ministro Flácus – explicou a velhinha com respeito – mandou que a maioria acompanhasse os Samaritanos () ao Umbral para os serviços de hoje. - Teremos que multipl icar esforços – respondeu ele com serenidade. – Não temos tempo a perder. - Irmão Tobias!... Irmão Tobias!... por caridade... – gritou um velho, gesticulando como louco , agarrado ao leito – Estou sufocando! Isto é mil vezes pior que a morte na Terra... So corro! Socorro! Quero sair, sair!... Quero ar, muito ar! Tobias aproximou -se dele, examinou -o com atenção , e perguntou: - Por que é que o Ribeiro piorou tanto? - Ele teve uma crise muito forte – explicou a colaboradora – e o assistente Gonçalves disse que a carga de pensamentos negativos, emitidos pelos parentes encarnados, era a causa principal dessa piora de perturbação. Como ainda está muito fraco e não tem força mental suficiente para soltar -se dos laços mais fortes do mundo físico, não tem estado c omo esperávamos. Enquanto Tobias passava a mão com carinho pela testa do doente, a colaboradora continuava explicando: - Hoje muito cedo ele saiu sem a nossa permissão, correndo como louco. Gritava que estavam lhe chamando em casa, que não podia esquecer a esposa e os filhos tristes, que era crueldade mantê -lo aqui, longe do lar. Lourenço e Hermes fizeram de tudo para que voltasse ao leito, mas não foi possível. Então, decidi aplicar -lhe alguns passes anestésicos. Tirei -lhe as forças e a mobilidade, para o seu próprio bem. - Fez muito bem – disse Tobias, pensativo – Vou pedir providências contra a atitude da família. É preciso que tenham mais com que se preocupar para que deixem Ribeiro em paz aqui conosco. Olhei o doente tentando captar seus pensamentos mais íntimos e só consegui perceber os reflexos de um verdadeiro louco. Ele tinha chamado Tobias como se fosse uma criança que reconhece alguém em quem confia, mas demonstrava não perceber ou entender nada do que se dizia a seu respeito. Percebendo minha admiração, Tobias explicou: - O pobre homem está na fase de pesadelo, em que a alma não vê ou ouve quase nada além de suas próprias preocupações. A pessoa encontra, na vida real, apenas o que acumulou para si mesm a. Ribeiro empolgou -se com muitas ilusões . Quis ainda perguntar de onde vinha tanto sofrimento e saber mais detalhes sobre o histórico do caso, mas lembrei -me dos conselhos da mãe de Lísias, sobre a curiosidade, e fiquei quieto. Tobias disse ao doente algumas palavras carinhosas de esperança e otimismo. Prometeu que iria providenciar recursos para as melhoras, mas pediu -lhe que mantivesse a calma para o próprio bem e que não se aborrecesse tanto por ter que ficar na cama. Ribeiro, tremendo muito, rosto muito pálido, ensaiou um sorriso muito tris te e agradeceu com lágrimas. Seguimos adiante pelas várias filas de camas bem cuidadas, sentindo a exalação desagradável que havia no ambiente, a qual, como vim a saber mais tarde, vinha da " André Luiz," própria mente dos pacientes, dominados por pensamentos negativos sobre as lembranças e sensações terríveis da morte física. - Nestas cabines ficam – explicou Tobias bondosamente – as entidades de natureza masculina. - Tobias!... Tobias!... Estou morrendo de fome e sede! – gritava um paciente. - Socorro, irmão!... – gritava outro. - Pelo amor de Deus!... Não aguento mais!... – exclamava ainda outro. Com o coração partido pelo sofrimento de tantas criaturas, não consegui segurar a pergunta: - Tobias, como é triste ver tantos sofredores e torturados juntos! Por que es ta situação tão angustiosa? Tobias respondeu sem se alterar: - Não devemos ver aqui apenas dor e sofrimento. Lembre -se, André, que estes doentes estão tratados e já saíram do Umbral, onde tantas armadilhas esperam por aqueles que não se cuidam. Nestes pa vilhões, pelo menos, eles já se preparam para a regeneração. Quanto às lágrimas que derramam, vamos nos lembrar que são os únicos responsáveis pelos próprios sofrimentos. A vida do homem está onde ele mesmo coloca o coração. E, depois de uma pausa em que parecia surdo a tantos gemidos, acrescentou: - São como contrabandistas na vida eterna. - Como assim? – perguntei interessado. Tobias sorriu e respondeu em voz firme: - Acreditavam que os bens terrenos teriam o mesmo valor no plano espiritual. Pensavam que o prazer criminoso, o poder do dinheiro, a revolta contra a lei e a imposição de caprichos passariam pelas fronteiras da morte e entrariam em vigor aqui também, dando a eles oportunidade de novos abusos. Foram como comerciantes irresponsáveis. Esquece ram-se de trocar os bens materiais por créditos espirituais. Quando íam a Londres, por exemplo, trocavam moeda brasileira por moeda britânica. Entretanto, mesmo com a certeza da morte física, não foram capazes de trocar bens terrenos por valores espirituai s. Agora, o que se pode fazer? Temos milionários materiais transformados em mendigos espirituais. Realidade absoluta! Tobias não poderia ter sido mais claro. Meu novo instrutor, depois de distribuir um pouco de conforto e esclarecimento a todos, levou -me a uma grande cabine ao lado, em forma de enfermaria, avisando -me: - Vejamos alguns dos pobres semimortos. Narcisa, a colaboradora atenciosa, nos acompanhava. Uma porta se abriu e quase caí com a surpresa impressionante. homens com ares de criminosos estavam imóveis em leitos muito baixos, apresentando apenas leves movimentos respiratórios. Apontando com um gesto, Tobias explicou: - Estes homens sofrem de um sono mais pesado que outros irmãos ignorantes. Nós os chamamos de crentes negativos. Em vez d e aceitar em Deus, eram escravos intolerantes do egoísmo. Em vez de crerem na vida, no movimento e no trabalho, acreditavam apenas no nada, na imobilidade e na vitória do crime. Transformaram a encarnação em preparação constante para o grande sono e, como não tinham qualquer idéia do bem a serviço de todos, não dispõem de outro recurso a não ser dormirem vários anos em pesadelos sinistros. Não fui capaz de expressar meu espanto. Com muito cuidado, Tobias começou a aplicar passes de fortalecimento, diante de meus olhos espantados. Quando terminou a aplicação nos dois primeiros, ambos começaram a expelir uma substância negra pela boca, uma espécie de vômito escuro e viscoso, com terrível odor de cadáver. - São fluidos venenosos que produzem – explicou Tobia s, muito calmo. " André Luiz," Narcisa fazia o que podia para limpá -los com a rapidez possível, mas era em vão. Muitos deles expeliam a mesma substância mal cheirosa. Foi então que, instintivamente, peguei os utensílios de higiene e comecei a trabalhar com vontade. A colaboradora parecia contente com a ajuda humilde do novo irmão, enquanto Tobias me olhava satisfeito e agradecido. O serviço continuou por todo o dia, custando -me muito suor, e ninguém no mundo poderia avaliar a alegria sublime do médico que começava nov amente a própria educação na enfermagem rudimentar. () Organização de Espíritos benfeitores de ""Nosso Lar"". - Nota de André Luiz " André Luiz," EM SERVIÇO No final da tarde, quando a prece coletiva terminou, Tobias ligou o aparelho para ouvir os Samaritanos que trabalhavam no Umbral. Muito curioso, descobri que aquele tipo de equipe se comunicava com os grupos de suporte em horários convencionais. Sentia -me um pouco cansado por causa do esforço feito, mas o coração transbo rdava de alegria. Finalmente havia recebido a dádiva do trabalho. E o espírito de serviço proporciona uma força misteriosa. Alguns minutos depois de feito o contato, o pequeno aparelho começou a transmitir a mensagem: - Samaritanos ao Ministério da Regen eração!... Samaritanos ao Ministério da Regeneração!... Muito trabalho nos abismos da sombra. Conseguimos deslocar um grande número de infelizes, retirando companheiros das trevas espirituais. deles apresentam desequilíbrio mental e sete estão em com pleta apatia psíquica. Nossas equipes estão organizando o transporte... Chegaremos logo depois da meia noite... Pedimos que providenciem... Percebendo que Narcisa e Tobias se olhavam muito espantados, assim que a mensagem terminou não consegui conter a pe rgunta: - Como assim? Por que esse transporte em massa? Não são todos espíritos? Tobias sorriu e explicou: - Você se esquece que não chegou de outro modo ao Ministério do Auxílio. Sei tudo sobre sua vinda. É preciso lembrar sempre que a Natureza não dá saltos e que, na Terra ou no Umbral, estamos envolvidos em fluidos muito pesados. Tanto o avestruz como a andorinha são aves e têm asas. No entanto, o avestruz só voará se for carregado, enquanto a andorinha corta o céu vasto com grande agilidade. E dand o a entender que a hora não era para conversas, disse a Narcisa: - A leva desta noite é muito grande. Precisamos tomar providências imediatas. - Vamos precisar de muitos leitos! – disse a colaboradora com tristeza. - Não se preocupe – respondeu Tobias. – Colocaremos os perturbados no Pavilhão e os enfraquecidos na Câmara . Em seguida, colocou a mão na testa, como se pensasse em algo muito sério, e falou: - A questão da hospitalidade é fácil de resolver. O problema maior será com a assistência. Noss os auxiliares mais fortes foram chamados para ajudar nos serviços da Comunicação na Terra, tendo em vista as nuvens escuras que envolvem os encarnados no momento. Precisamos de pessoal de serviço noturno, já que os colaboradores que estão com os Samaritamo s chegarão muito cansados. Tobias me olhou com profunda simpatia e gratidão, dando -me grande alegria interior. - Está mesmo decidido a ficar nas Câmaras esta noite? – perguntou admirado. - Não há outras pessoas que ficam? – perguntei. – Estou forte e be m disposto, preciso recuperar o tempo perdido. O amigo generoso me abraçou e disse: - Então aceito confiante sua ajuda. Narcisa e os outros companheiros também ficarão de prontidão. Além disso, vou mandar Venâncio e Salústio, dois companheiros da minha c onfiança. Não posso ficar aqui de plantão à noite, por causa de outros compromissos já agendados. No entanto, caso seja necessário, você ou algum colega poderá me avisar sobre qualquer coisa mais grave. Vou fazer o planejamento das atividades, procurando f acilitar o mais possível o trabalho. E surgiu uma lista enorme de providências. Enquanto cinco companheiros ajudavam Narcisa com as roupas e o material de enfermagem, eu e Tobias ajeitávamos alguns materiais no Pavilhão e na Câmara . " André Luiz," Não saberia expl icar o que estava acontecendo comigo. Apesar do cansaço dos braços, sentia enorme alegria no coração. Nos lugares onde a maioria das pessoas procura trabalho, entendendo seu valor, servir representa uma grande alegria. Para ser sincero, não pensava na co mpensação dos bônus -hora ou nas recompensas imediatas que pudesse receber pelo esforço. Entretanto, minha satisfação era profunda, sentindo que poderia olhar feliz e honrado para minha mãe e os amigos que havia encontrado no Ministério do Auxílio. Ao se d espedir, Tobias abraçou -me novamente e falou: - Desejo a vocês muita paz de Jesus, boa noite e serviço útil. Amanhã, às h, você poderá descansar. O máximo permitido de trabalho por dia é h, mas estamos em circunstâncias especiais. Respondi que as orie ntações me davam muita alegria. Sozinho com o grande grupo de enfermeiros, passei a atender os doentes com mais carinho. Dos auxiliares presentes, Narcisa foi a que mais me impressionou, atendendo a todos com carinho de mãe. Atraído por sua bondade, tente i me aproximar com interesse. Não foi difícil conseguir a atenção de sua conversa carinhosa e simples. A velhinha amável parecia um livro sublime de bondade e sabedoria. - Você trabalha aqui há muito tempo? – perguntei. - Sim, estou em serviço ativo nas C âmaras de Retificação há seis anos e alguns meses. No entanto, ainda me faltam mais três anos para realizar meus desejos. Percebendo minha expressão de curiosidade, Narcisa falou amavelmente: - Preciso de uma permissão muito séria. - O que você quer dize r com isso? – perguntei interessado. - Preciso encontrar alguns espíritos amados na Terra, para serviços de elevação em conjunto. Em função de meus erros do passado, por muito tempo pedi em vão a concretização dos meus propósitos. Vivia perturbada, aflita. Aconselharam -me, então, a pedir a ajuda da Ministra Veneranda e essa benfeitora da Regeneração prometeu me atender no Ministério do Auxílio, mas exigiu dez anos seguidos de trabalho aqui, para que eu possa corrigir certos desequilíbrios do sentimento. Num primeiro momento, quis recusar, achando que a exigência era exagerada. Depois, reconheci que ela tinha razão. Afinal, o conselho era para o meu próprio bem. E ganhei muito aceitando sua sugestão. Sinto -me mais equilibrada e humana e acho que conseguirei v iver minha futura encarnação com dignidade espiritual. Ía demonstrar solidariedade, mas um dos doentes mais próximos gritou: - Narcisa! Narcisa! Não tinha o direito de prender, por mera curiosidade, aquela que era como uma mãe espiritual para os sofredore s. " André Luiz," A VISÃO DE FRANCISCO Enquanto Narcisa consolava o doente aflito, fui avisado de que estavam me chamando no aparelho de comunicações. Era D. Laura querendo saber de mim. De fato, havia me esquecido de avisá -la que ficaria trabalha ndo à noite. Pedi desculpas à minha benfeitora e fiz um breve relatório do que estava acontecendo. Pelo aparelho, a mãe de Lísias parecia muito feliz, participando de minha alegria. Ao final da nossa conversa, disse com bondade: - Muito bem, meu filho! A paixone -se pelo seu trabalho, embriague -se de serviço útil. Só assim conseguiremos o crescimento espiritual. No entanto, não se esqueça de que esta casa também é sua. Aquelas palavras me deram muita força. Voltando ao trabalho com os doentes, percebi que Narcisa lutava para acalmar um rapaz muito perturbado. Tentei ajudá -la. O pobre moço gritava assustado, com os olhos perdidos no ar: - Ajude -me, pelo amor de Deus! Tenho medo, medo!... E, com os olhos muito agitados de quem passa por profundo pavor, acrescentou: - Irmã Narcisa, lá vem “ele”, o monstro. Estou sentindo os vermes outra vez! “Ele”!... Livre -me “dele”, irmã. Não quero, não quero!... - Cama, Francisco – pedia a amiga dos sofredores. – Você vai se libertar, ter muita serenidade e alegria, mas depende do seu esforço. Faça de conta que sua mente é uma esponja encharcada de vinagre. Você precisa expelir o líquido azedo. Eu vou ajudá -lo, mas a maior parte do trabalho é você mesmo quem deve fazer. O doente demonstrava boa vontade, acalmava -se e nquanto ouvia as palavras carinhosas, mas voltava à mesma palidez anterior, soltando novas exclamações. - Mas, irmã, veja... “ele” não me deixa. Já voltou a me atormentar! Veja, veja!... - Estou vendo, Francisco – respondia ela, atenciosa. – Mas é indis pensável que você me ajude a expulsá -lo. - Esse fantasma diabólico!... – dizia chorando como criança, causando pena. - Confie em Jesus e esqueça o monstro – dizia Narcisa, piedosamente. – Vamos ao passe. O fantasma vai fugir de nós. E aplicou -lhe fluido s saudáveis e calmantes, que Francisco agradeceu, demonstrando imensa alegria no olhar. - Agora, - disse ele, quando o passe terminou, - estou mais tranquilo. Narcisa ajeitou seus travesseiros e pediu a uma assistente que lhe trouxesse água fluidificada. Aquele exemplo da enfermeira me servia como grande lição. Seja onde for, tanto o bem como o mal são contagiosos. Percebendo minha vontade sincera de aprender, Narcisa se aproximou mais, querendo começar a me ensinar os segredos do serviço. - De quem o doente está falando? – perguntei impressionado. – Por acaso, está sendo assediado por alguma sombra que não consigo ver? A velha trabalhadora das Câmaras de Retificação sorriu com carinho e falou: - Trata -se do seu próprio cadáver. - O quê?!! – respond i espantado. O pobre rapaz era muito apegado ao corpo físico e veio para o plano espiritual depois de um desastre, causado por pura imprudência. Ficou vários dias ao lado do próprio cadáver, em pleno cemitério, sem se conformar com outra idéia. Queria lev antar o corpo endurecido de qualquer maneira, tal era a força da ilusão em que havia vivido, e, nesse triste esforço, perdeu muito tempo. Tinha medo de enfrentar o desconhecido e não conseguia livrar -se, nem de leve, das sensações físicas. De nada adiantar am os esforços " André Luiz," dos planos mais altos, porque tinha a mente fechada a todo pensamento sobre a vida espiritual. Por fim, os vermes causaram -lhe tanto sofrimento que se afastou do túmulo, completamente apavorado. Começou, então, a vagar nos planos inferiores do Umbral. No entanto, seus pais têm muitos créditos aqui e pediram sua internação na colônia. Os Samaritanos o trouxeram quase à força. Entretanto, seu estado ainda é tão grave que não poderá sair daqui tão cedo. No momento, seu pai está em arriscada miss ão, longe de “Nosso Lar”. - E vem visitar o doente? – perguntei. - Já veio duas vezes e fiquei muito emocionada observando seu sofrimento discreto. A perturbação do rapaz é tanta que não reconheceu o pai dedicado. Gritava aflito, em triste estado de louc ura. O pai, que veio vê -lo acompanhado do Ministro Pádua, do Ministério da Comunicação, pareceu estar muito acima da condição humana enquanto estava com o nobre amigo que conseguiu abrigo para o pobre filho. Ficaram bastante tempo comentando a situação esp iritual dos recém -chegados do plano físico. Mas, quando o Ministro Pádua precisou sair por causa de compromissos de trabalho, o pai do rapaz me pediu que o perdoasse pelo gesto humano e ajoelhou -se diante do doente. Pegou suas mãos ansioso, como se quisess e transmitir -lhe fluidos vitais poderosos, e beijou seu rosto, chorando muito. Não pude conter as lágrimas e saí, deixando -os sozinhos. Não sei o que aconteceu depois entre eles, mas notei que, desde esse dia, Francisco melhorou muito. A loucura total redu ziu-se a algumas crises cada vez mais espaçadas. - Que história comovente! – exclamei, muio impressionado. – Mas, como ele pode ser perseguido pela imagem do próprio cadáver? - A visão de Francisco – esclereceu Narcisa atenciosa – é o pesadelo de muitos espíritos depois da morte física. Apegam -se demais ao corpo. Não enxergam outra coisa além dele e vivem só dele e para ele, dedicando -lhe verdadeiro culto. E mesmo quando o sopro renovador da morte vem, não o abandonam. Repelem qualquer idéia de espiritual idade e lutam desesperadamente para conservá -lo. No entanto, surgem os vermes vorazes que os expulsam. A essa altura, ficam tão horrorizados com o corpo que adotam atitude completamente oposta. Só que a visão do cadáver, fruto de forte criação mental deles mesmos, causa -lhes profundo tormento à alma. Logo começam as crises e as perturbações, mais ou menos longas, e sofrem muito até que consigam eliminar completamente o próprio fantasma. Percebendo minha comoção, Narcisa ainda disse: - Graças ao Pai, tenho a proveitado bastante nesses últimos anos de serviço! Como é profundo o sono espiritual da maioria de nossos irmãos encarnados! Isso deve nos preocupar, mas não nos afligir. A lagarta se apega ao casulo inerte, mas a borboleta alcará vôo. A semente é quase i mperceptível e, no entanto, o carvalho será gigante. A flor morta volta para a terra, mas o perfume vive no céu. Todo embrião de vida parece estar adormecido. Não devemos esquecer estas lições. Narcisa parou de falar e eu não me atrevi a interromper seu si lêncio. " André Luiz," HERANÇA E EUTANÁSIA Ainda não havia me recuperado da surpresa, quando Salústio se aproximou, informando Narcisa: - Nossa irmã Paulina quer ver o pai doente, no Pavilhão . Antes de permitir, achei melhor consultar você, porque o doente continua em crise muito aguda. Com os gestos de bondade que lhe eram característicos, Narcisa ressaltou: - Mande -a entrar agora mesmo. Ela tem permissão da Ministra, já que, em seu tempo livre, está trabalhando pela reconciliação da família. Enqu anto o mensageiro se despedia apressado, a enfermeira se dirigiu a mim e acrescentou: - Você vai ver que filha dedicada! Logo depois Paulina estava na nossa frente, esbelta e linda. Usava uma túnica muito leve, de seda luminosa. Uma beleza de anjo marcav a seu rosto, mas os olhos demonstravam grande preocupação. Narcisa nos apresentou com delicadeza e, sentindo que poderia confiar em mim, Paulina perguntou, meio apreensiva: - E papai, minha amiga? - Um pouco melhor – explicou a enfermeira. – No entanto, ainda apresenta fortes desequilíbrios. - É lamentável – respondeu a moça, - nem ele, nem os outros cedem em suas idéias. Sempre o mesmo ódio e a mesma displicência. Narcisa nos pediu que a acompanhássemos e logo estávamos diante de um velho de aparência desagradável. Olhar duro, cabelo desarrumado, rugas profundas, lábios retraídos, causava mais pena do que simpatia. Tentei controlar as vibrações inferiores que sentia, para poder enxergar o irmão espiritual acima do sofredor. A impressão de repugnância de sapareceu, deixando minhas idéias mais claras. Apliquei a lição a mim mesmo. Como será que tinha chegado ao Ministério do Auxílio? Meu rosto desesperado deveria ser horrível. Quando examinamos o sofrimento dos outros, olhando nossos próprios problemas, sem pre achamos lugar para o amor fraterno no coração. O velho doente não disse uma palavra de ternura para a filha que o cumprimentou com carinho. Pelo olhar áspero e cheio de revolta, parecia uma fera humana enjaulada. - Papai, o senhor se sente melhor? – perguntou com imenso carinho de filha. - Ai!, ai!... – gritou o doente em voz forte. – Não consigo esquecer o infame, não consigo descansar o pensamento... Ainda o vejo a meu lado, dando -me o veneno mortal!... - Não diga isso, papai – pediu a moça delica damente. – Lembre -se de que Edelberto foi recebido, em nossa casa, como filho enviado por Deus. - Meu filho?! – gritou o infeliz. – Nunca, nunca!... É um criminoso sem perdão, filho do inferno!... Paulina falava agora com os olhos cheios d’água. - Vamos ouvir a lição de Jesus, papai, que nos recomenda amarmos uns aos outros. Passamos por experiências em família na Terra para alcançar o verdadeiro amor espiritual. Aliás, é indispensável reconhecer que só existe um Pai realmente eterno, que é Deus. Mas o S enhor da Vida permite que sejamos pais ou mães no mundo para que possamos aprender a fraternidade plena. Nossos lares terrenos são núcleos de purificação dos sentimentos ou templos de união sublime, a caminho da solidariedade universal. Lutamos e sofremos muito até merecermos o verdadeiro título de irmão. Somos todos uma só família, na Criação, com a bênção de um único Pai. Ouvindo sua voz meiga, o doente começou a chorar muito. - Perdoe Edelberto, papai! Procure sentir nele, não o filho leviano, mas o irm ão necessitado de esclarecimento. Estive em casa hoje e vi muitas perturbações. Daqui desse leito, o senhor envolve toda a nossa família em energias de amargura e incompreensão. E eles fazem o mesmo com o senhor. O pensamento alcança o alvo em vibrações su tis, por mais distante que esteja. A troca de ódio e desentendimento causa " André Luiz," ruína e sofrimento às almas. Mamãe foi internada num hospício há alguns dias, destruída pela angústia. Amália e Cacilda entraram em disputa judicial com Edelberto e Agenor, pelos gr andes patrimônios materiais que o senhor juntou em vida. Uma situação terrível, cujas sombras poderiam diminuir se o senhor não estivesse com a mente completamente envolvida pelo desejo de vingança. Vemos o senhor aqui em estado grave. Na Terra, mamãe está louca e os filhos perturbados, odiando -se uns aos outros. Em meio a tanto desequilíbrio, uma fortuna de milhões. E de que vale tanto dinheiro se não há ninguém feliz? - Mas eu deixei um enorme patrimônio para a família – disse o infeliz, com rancor, - desejando o bem estar de todos... Paulina não o deixou terminar a frase, falando novamente: - Quando se trata de riqueza material, nem sempre sabemos interpretar o que realmente é benefício. Se o senhor houvesse garantido o futuro dos nossos, dando -lhes tranquilidade moral e trabalho honesto, seu esforço teria valido muito. Mas, às vezes, papai, costumamos juntar dinheiro apenas por vaidade e ambição. Querendo viver acima dos outros, só nos lembramos disso nas situações extremas da vida. São raras as pessoas que se preocupam em juntar conhecimentos nobres, tolerância, humildade, compreensão. Impomos aos outros os nossos caprichos, afastamo -nos dos serviços de Deus, esquecemos de trabalhar nosso espírito. Ninguém nasce na Terra só para juntar dinheiro nos cofr es e bancos. É natural que a vida humana precise da ajuda divina e é justo que Deus não dispense a contribuição de mordomos fiéis que saibam administrar com sabedoria. Mas ninguém será mordomo de Deus com mesquinhez e desejo de poder. Esse tipo de vida arr uinou nossa família. Em vão tentei levar socorro espiritual à nossa casa em outros tempos. Enquanto o senhor e mamãe se sacrificavam para aumentar os bens, Amália e Cacilda esqueceram do serviço útil e, como preguiçosas da banalidade social, casaram -se co m outros preguiçosos que só pensavam nas vantagens financeiras. Edelberto formou -se médico, mas afastou -se completamente da Medicina, exercendo a profissão de vez em quando, como se fosse um trabalhador que visita o trabalho por curiosidade. Todos arruinar am grandes oportunidades espirituais, distraídos pelo dinheiro fácil e apegados à idéia de herança. Demonstrando grande pavor, o doente acrescentou: - Maldito Edelberto! Filho criminoso e ingrato! Matou -me sem dó, quando eu ainda precisava fazer meu test amento! Cafajeste!... Cafajeste!... - Cale -se, papai. Tenha compaixão de seu filho. Perdoe e esqueça!... Mas o velho continuou a praguejar em voz alta. A jovem já estava para discutir com o pai, quando Narcisa a olhou e chamou Salústio para atender o doe nte em crise. Paulina se calou, afagando a cabeça do pai e contendo, com muito custo, as lágrimas. Logo depois, saí com elas, muito impressionado. As duas amigas conversaram em particular por alguns minutos. Em seguida, Paulina se despediu com frases gent is, mas com imensa tristeza no olhar cheio de preocupação. A sós novamente, Narcisa disse bondosa: - Em geral, os casos de herança são extremamente complicados. Com raras exceções, são um peso enorme para quem deixa e para quem recebe. E neste caso, além de tudo, temos também a eutanásia. A ambição pelo dinheiro causou esquisitices e desentendimentos para toda a família de Paulina. Pais mesquinhos possuem filhos esbanjadores. Estive na casa de Paulina quando o irmão, Edelberto, médico aparentemente distin to, deu ao pai, já nos últimos momentos, a chamada “morte suave”. Fizemos de tudo para evitar, mas foi em vão. O pobre rapaz queria mesmo apressar a morte, por questões financeiras. Agora temos o resultado da irresponsabilidade: ódio e doença. E com um e xpressivo gesto, Narcisou concluiu: - Deus criou seres e céus, mas nós costumamos nos transformar em espíritos diabólicos, criando nossos próprios infernos individuais. " André Luiz," VAMPIRO Eram h. Ainda não havíamos descansado, a não ser durante alguma convers a rápida, necessária para resolver algum problema espiritual. Aqui, um doente que pedia alívio; ali, outro que precisava de passes de reconforto. Quando fomos atender dois doentes no Pavilhão , escutei gritaria por perto. Instintivamente quis me aproxima r, mas Narcisa não deixou, dizendo atenciosa: - Não continue – disse. – Ali estão os perturbados do sexo. O quadro seria muito chocante para você. Deixe essa amoção para mais tarde. Não insisti. Entretanto, meu cérebro fervia com mil perguntas. Um novo mundo se abria para o meu estudo. Era indispensável lembrar do conselho da mãe de Lísias a todo instante, para não me desviar do caminho certo. Logo depois das h, chegou alguém dos fundos do grande complexo. Era um homem pequeno, de rosto estranho, pare cendo ser um trabalhador humilde. Narcisa recebeu -o com gentileza, perguntando: - O que aconteceu, Justino? Qual é o recado? O companheiro, que fazia parte do grupo de vigias das Câmaras de Retificação, respondeu aflito: - Vim avisar que uma pobre mulher e stá pedindo socorro no grande portão que dá para os campos de plantação. Creio que passou despercebida pela primeira linha de vigilantes. - E por que não a atendeu? – perguntou a enfermeira. O colaborador fez um gesto sem graça e explicou: - Não pude faz ê-lo, por causa das ordens que tenho. A pobre mulher está rodeada de pontos negros. - O que é que você está me dizendo? – respondeu Narcisa assustada. - Sim, senhora. - Então o caso é muito grave. Curioso, segui Narcisa pelo campo enluarado. A distânci a não era pequena. Lado a lado, víamos as árvores do grande parque, agitadas pelo vento tranquilo. Havíamos andado km até chegar à cancela de que Justinho havia falado. Foi aí que vimos a miserável figura de mulher que implorava socorro do outro lado. N ão vi nada além de seu vulto, coberta de trapos, rosto horrendo e pernas cheias de feridas. Mas Narcisa parecia estar vendo outros detalhes, que eu não conseguia enxergar, tendo em vista a expressão de espanto que fez. - Filhos de Deus, - gritou a mendiga ao nos ver, - dêem abrigo à minha alma cansada. Onde está o paraíso dos eleitos, para que eu possa desfrutar da paz desejada? Aquela voz chorosa apertava -me o coração. Narcisa, no entanto, mesmo comovida, cochichou -me: - Não está vendo os pontos negros? - Não – respondi. - Sua visão espiritual ainda não está bem treinada. E, depois de um tempo, continuou: - Se dependesse de mim, abriria o portão imediatamente. Mas, quando se trata de criaturas nestas condições, não posso resolver nada sozinha. Tenho que falar com o Vigilante -Chefe em serviço. Dizendo isso, aproximou -se da mulher e avisou, em tom amigo: - Espere alguns minutos, por favor. Voltamos apressadamente para dentro do complexo. Pela primeira vez, encontrei o diretor das sentinelas das Câmaras d e Retificação. Narcisa me apresentou e comunicou o fato. Ele fez um gesto e respondeu: - Fez muito bem em me avisar. Vamos até lá. Fomos os três para o local indicado. " André Luiz," Quando chegamos à cancela, o irmão Paulo, orientador dos vigilantes, examinou atentam ente a recém -chegada do Umbral e disse: - Esta mulher, por enquanto, não pode receber a nossa ajuda. É um dos vampiros mais fortes que já vi até hoje. Temos que deixá -la à própria sorte. Fiquei horrorizado. Abandonar aquela sofredora ao azar não seria o m esmo que faltar com as obrigações cristãs? Acho que Narcisa tinha a mesma opinião, pois pediu aflita: - Mas, irmão Paulo, não há um modo de recebermos essa pobre criatura nas Câmaras? - Se eu fizer isso, estarei traindo minhas funções de vigilante. E apont ando a mendiga que esperava a decisão, gritando impacientemente, disse para a enfermeira: - Narcisa, você já notou alguma coisa além dos pontos negros? Agora era a vez dela de dizer que não. - Pois eu vejo mais – respondeu o Vigilante -Chefe. Baixando a voz , recomendou: - Conte as manchas pretas. Narcisa olhou fixamente para a mulher e respondeu, depois de alguns minutos: - . O irmão Paulo, com a paciência de quem está acostumado a explicar com amor, disse: - Esses pontos escuros representam crianças assassinadas ao nascer, umas por golpes, outras por asfixia. Em cada mancha vejo a imagem mental de uma criança assassinada. Essa pobre mulher foi profissional de ginecologia e, a pretexto de aliviar a consciência dos outros, praticou crimes horríveis, exp lorando a infelicidade de moças inexperientes. Sua situação é pior que a dos suicidas e assassinos comuns que, muitas vezes, têm grandes atenuantes para seus crimes. Lembrei -me assustado dos processos médicos em que, muitas vezes, havia encarado de frente a necessidade de eliminar bebês para salvar a vida da mãe em situação perigosa. Mas, lendo meus pensamentos, o irmão Paulo acrescentou: - Não estou falando dos casos legítimos, que aparecem como provações necessárias. Estou falando do crime de assassinar espíritos que começam a experiência física, com direito sagrado à vida. Demonstrando muita sensibilidade, Narcisa pediu: - Irmão Paulo, eu também já errei muito no passado. Vamos atender a esta infeliz. Se me permite, eu mesma posso cuidar dela. - Rec onheço, minha amiga, - respondeu o diretor da vigilância, impressionado pela sinceridade – que todos somos espíritos endividados. Entretanto, a nosso favor temos o reconhecimento das próprias fraquezas e a boa vontade para corrigir nossos erros. Mas, por o ra, esta criatura quer apenas perturbar quem trabalha. Aqueles que têm os sentimentos viciados na hipocrisia, emitem energias destrutivas. Para que serve o serviço de vigilância? E sorrindo, acrescentou: - Vamos tirar a prova. O Vigilante -Chefe então, a proximou -se do portão e perguntou: - O que quer a irmã de nós? - Socorro! Socorro!, socorro! – respondeu, lamentando -se. - Mas, minha amiga, – argumentou com razão, - é preciso saber aceitar o sofrimento renovador. Por que você cortou tantas vezes a vid a de seres frágeis que íam à luta com a permissão de Deus? Ouvindo inquieta o que ele dizia, gritou com profunda expressão de ódio:: - Quem me acusa dessa baixeza? Minha consciência está tranquila, canalha!... Passei minha vida ajudando a maternidade na Terra. Fui caridosa e crente, boa e pura... " André Luiz," - Não é isso o que se vê nas imagens de seus pensamentos e atos. Creio que a irmã ainda não pôde sentir o remorso saudável. Quando resolver abrir o coração às bêncãos de Deus, reconhecendo as próprias necessidad es, então volte aqui. Cheia de raiva, a mulher respondeu: - Demônio! Feiticeiro! Seguidor de Satã!... Não vou voltar nunca!... Estou esperando o céu que me prometeram e que espero encontrar. Mais firme ainda, o Vigilante -Chefe falou com autoridade: - Então, por favor, saia. Não temos aqui o céu que espera. Estamos numa casa de trabalho, onde os doentes reconhecem seu mal e tentam se curar, com a ajuda de colaboradores de boa vontade. A mendiga respondeu com atrevimento: - Não pedi remédio, nem serviço . Estou procurando o paraíso que fiz por merecer, praticando boas obras. E olhando -nos com intensa raiva, perdeu a aparência de doente ambulante e saiu com o passo firme, como quem está absolutamente seguro de si. O irmão Paulo a acompanhou com o olhar dur ante vários minutos e, virando -se para nós, ainda disse: - Viram como é um vampiro? Tem aparência de criminosa, mas declara -se inocente; é profundamente má, mas afirma -se boa e pura; sofre desesperadamente e alega tranquilidade; criou um inferno para si pr ópria, mas diz que está procurando o céu. Diante do silêncio com que o ouvíamos, o Vigilante -Chefe concluiu: - É imprescindível tomar cuidado com as boas e as más aparências. Claro que a infeliz será atendida por Deus mais adiante, mas, até por uma questão de verdadeira caridade, na posição em que estou, não poderia abrir as portas para ela. " André Luiz," NOTÍCIAS DE VENERANDA Agora que havia entrado no parque cheio de luz, sentia uma fascinação especial. Aquelas árvores acolhedoras, a quelas sementeiras verdejantes atraíam -me a todo instante. Fazendo perguntas veladas, provoquei, de forma indireta, as explicações de Narcisa. - No grande parque, - dizia ela – não existem só caminhos para o Umbral ou plantações destinadas aos sucos. A Mi nistra Veneranda fez planos excelentes para as nossas atividades educativas. E percebendo minha curiosidade sadia, continuou explicando: - Trata -se dos “salões verdes” para serviços de educação. Entre as grandes fileiras de árvores, há lugares maravilhos os para as conferências dos Ministros da Regeneração; outros para Ministros visitantes e estudiosos em geral; mas há um, de incrível beleza, reservado às conversas do Governador, quando pode vir até aqui. De tempos em tempos, as árvores ficam cobertas de f lores, como se fossem pequenas torres coloridas, cheias de belezas naturais. Assim, temos o céu como teto acolhedor, com as bênçãos do Sol ou das estrelas distantes. - Esses palácios da natureza devem ser maravilhosos. – acrescentei. - Sem dúvida. – cont inuou a enfermeira – Segundo o que fiquei sabendo, há anos, o projeto da Ministra despertou a admiração de toda a colônia. Começaram, então, a campanha do “salão natural”. Todos os Ministérios pediram ajuda, inclusive o da União Divina, que solicitou a colaboração de Veneranda na organização dessas áreas no Bosque das Águas. Surgiram recantos deliciosos em toda parte. Mas, na minha opinião, os mais interessantes são os que se tornaram escolas. As formas e os tamanhos variam. Nos parques de educação do Es clarecimento, a Ministra instalou um verdadeiro castelo de vegetação, em forma de estrela, dentro do qual estão cinco turmas numerosas com cinco instrutores diferentes. No centro, funciona um enorme aparelho destinado à exibição de imagens, parecido com o projetor terrestre, com o qual é possível fazer cinco projeções diferentes ao mesmo tempo. Essa iniciativa melhorou muito a cidade, unindo utilidade prática, beleza espiritual e serviço. Aproveitando a pausa natural, perguntei: - E os móveis dos salões? São como os dos grandes espaços terrenos? Narcisa sorriu e acrescentou: - Há diferenças. A Ministra visualizou as cenas evangélicas do tempo de Jesus e sugeriu recursos da própria natureza. Cada “salão natural” tem bancos e poltronas feitos do próprio s olo, forrados de relva macia e perfumada. Isso dá beleza e traços característicos aos locais. A organizadora disse que seria justo lembrar o Tiberíades e, dessa lembrança, surgiu a idéia dos móveis naturais. A manutenção exige cuidados permanentes, mas a b eleza dos espaços compensa. A essa altura, a enfermeira interrompeu sua explicação, mas, percebendo que eu continuava interessado, prosseguiu: - O mais belo espaço do nosso Ministério é o que se destina às palestras do Governador. A Ministra Veneranda de scobriu que ele sempre gostou das paisagens gregas mais antigas e decorou o salão com pequenos canais de água fresca, pontes graciosas, lagos minúsculos, redes e frondosa vegetação. A cada mês do ano temos cores diferentes, de acordo com as várias espécies de flores que vão se alternando a cada trinta dias. A Ministra deixou a paisagem mais bonita para o mês de dezembro, em comemoração ao Natal, quando a cidade recebe lindos pensamentos e vigorosas promessas dos encarnados e envia, por sua vez, doces afirma ções de esperança e serviço aos planos superiores, em homenagem ao Mestre dos mestres. Esse salão é motivo de alegria para os nossos Ministérios. Talvez você já saiba que o Governador vem aqui quase todos os domingos. Fica ali várias horas, reunido com os Ministros da Regeneração, conversando com os trabalhadores, dando sugestões valiosas, examinando " André Luiz," nossas vizinhanças com o Umbral, recebendo saudações e visitas e atendendo doentes convalescentes. No final da tarde, quando pode ficar mais tempo, ouve músic a e assiste números artísticos, executados por jovens e crianças das nossas escolas. A maioria dos visitantes que se hospedam em “Nosso Lar” vem até aqui só para conhecer esse “palácio natural”, que acomoda confortavelmente mais de mil pessoas. Ouvindo essas informações interessantes, sentia alegria e curiosidade, ao mesmo tempo. - O salão da Ministra Veneranda – continuou Narcisa toda animada – é também um espaço maravilhoso, que merece ser visto com todo carinho. Toda a nossa gratidão será pouca para retribuir a dedicação dessa trabalhadora de Jesus. Muitos benefícios alcançados neste Ministério foram conseguidos por ela para atender aos mais infelizes. Sua tradição de trabalho em “Nosso Lar” é uma das mais respeitadas pela Governadoria. É o espírito com maior número de horas de serviço na colônia e a figura mais antiga do Governo e do Ministério juntos. Está trabalhando nesta cidade há mais de anos. Impressionado com as informações, exclamei: - Como deve ser respeitável esta senhora!... - Você colocou muito bem. – respondeu Narcisa, com respeito. – É uma das criaturas mais elevadas de nossa colônia espiritual. Os Ministros, que trabalham com ela na Regeneração, sempre a consultam antes de tomar qualquer providência mais importante. Em muitos casos, a Governadoria pede a sua opinião. Com exceção do Governador, a Ministra Veneranda é o único espírito em “Nosso Lar” que já viu Jesus nas Esferas Resplandescentes, mas nunca comenta esse fato de sua vida espiritual e foge à menor insinuação a esse r espeito. Além disso, há outro fato interessante. Um dia, há quatro anos, “Nosso Lar” amanhaceu em festa. As Fraternidades da Luz, que comandam os destinos cristãos da América, homenagearam Veneranda, dando -lhe a medalha do Mérito de Serviço, sendo ela o pr imeiro espírito da colônia a receber essa condecoração por um milhão de horas de trabalho útil contínuo, sem reclamar e sem desanimar. Uma grande comissão veio trazer a medalha, mas, em meio à alegria geral, com a Governadoria, os Ministérios e a multidão reunidos na praça maior, a Ministra Veneranda só conseguiu chorar em silêncio. Em seguida, entregou o prêmio aos arquivos da cidade, passando -o à colônia como um todo, dizendo que não o merecia, apesar dos protestos do Governador. Rejeitou todas as homenag ens e comemorações planejadas para mais tarde e jamais comentou a honra conquistada. - Que mulher extraordinária! – falei – Por que não vai para os planos mais altos? Narcisa baixou o tom de voz e declarou: - Intimamente ela já vive em planos muito superio res ao nosso e só continua vivendo em “Nosso Lar” por amor e desejo de servir. Soube que ela vem trabalhando, há mais de mil anos, pelo grupo de espíritos queridos que continua na Terra, e espera com paciência. - Como faço para conhecê -la? – perguntei, imp ressionado. Narcisa, que parecia gostar do meu interesse, explicou satisfeita: - Amanhã, no final da tarde, depois das preces, ela virá ao salão, para esclarecer alguns estudantes a respeito do pensamento. " André Luiz," OBSERVAÇÕES CURIOSAS Um pouco ante s da meia noite, Narcisa permitiu que eu fosse ao grande portão das Câmaras. Os Samaritanos já deviam estar por perto. Era imprescindível ver quando chegassem para tomar as providências necessárias. Que emoção ao voltar ao caminho arborizado! Num ponto, a lguns troncos lembravam os carvalhos antigos da Terra. Mais adiante, folhas lindas lembravam a acácia e o pinheiro. Aquele ar perfumado parecia uma bênção. Nas Câmaras, apesar das grandes janelas, não tinha essa sensação de bem estar. Fui caminhando em sil êncio, por baixo das árvores. Ventos frescos agitavam as folhas devagar, trazendo -me tranquilidade. Como estava sozinho, comecei a pensar no que já havia me acontecido desde a primeira vez que encontrei com o Ministro Clarêncio. Onde ficava, de fato, a il usão? Na Terra ou naquela colônia espiritual? O que teria acontecido com Zélia e o meus filhos? Por que me davam tantos esclarecimentos sobre a vida e evitavam falar do meu lar? Até minha mãe havia me aconselhado ficar em silêncio, evitando saber mais deta lhes. Tudo indicava que eu precisava esquecer os problemas materiais, para poder me recuperar, mas, observando melhor meus sentimentos mais íntimos, ainda sentia muita saudade da família. Queria muito ver a esposa e os filhos novamente. Que armadilha do destino havia nos separado assim, como se eu fosse um náufrago em praia desconhecida? Ao mesmo tempo em que pensava nisso, outras idéias mais saudáveis me traziam conforto. Eu não era um náufrago abandonado. E mesmo que fosse, a culpa pelo naufrágio seria s omente minha. Agora que aprendia a trabalhar de forma intensa e construtiva em “Nosso Lar”, estava espantado com o tempo que havia perdido com banalidades na Terra. Na verdade, havia amado muito minha esposa e, sem dúvida, havia cuidado dos filhos com mu ito carinho. Mas, consultando a consciência de marido e pai com sinceridade, percebia que não havia deixado nada de sólido e útil no espírito dos meus familiares. E só agora me dava conta disso. Quem passa pela vida sem plantar nada não pode querer colher depois para matar a fome. Esses pensamentos se instalavam no meu cérebro com força irritante. Ao desencarnar, encontrei incompreensão. E o que será que aconteceu com a esposa viúva e os filhos órfãos, sem a estabilidade de antes? A pergunta era inútil. O vento calmo parecia falar de coisas nobres, como se quisese despertar minha mente para idéias mais elevadas. As dúvidas íntimas me torturavam, mas procurei me concentrar nas novas obrigações e me aproximei do portão, tentando ver alguma coisa mais ao long e. Tudo era luar e serenidade, céu sublime e beleza silenciosa! Observando admirado a paisagem, fiquei algum tempo em prece. Momentos depois, vi, ao longe, dois vultos enormes que me impressionaram muito. Pareciam dois homens feitos de matéria desconhecida , semiluminosa. Tinham filamentos estranhos presos aos pés e aos braços. E, da cabeça, saía outro fio ainda maior. Tive a impressão de ver dois fantasmas de verdade e não aguentei. Com os cabelos em pé, voltei correndo para dentro. Agitado e assustado, con tei a Narcisa o que havia visto, notando que ela mal conseguia conter o riso. - Ora essa, André, - disse bem humorada, quando terminei – não reconheceu aquelas figuras? Profundamente decepcionado, não consegui responder nada, mas Narcisa continuou: - Eu também tive a mesma surpresa em outra ocasião. Aqueles são nossos irmãos encarnados. Trata -se de espíritos fortes, que vivem na Terra em missão, e podem, como iniciados na sabedoria universal, sair do corpo físico, transitando livremente em nossos planos. Os filamentos e fios que você viu são particularidades que os diferenciam de nós, desencarnados. Por isso, não tenha medo. Os encarnados que conseguem vir até aqui " André Luiz," são criaturas profundamente espiritualizadas, apesar de estarem em situação obscura e humild e na Terra. E, animando -me com bondade, acentuou: - Vamos até lá. Já passa da meia noite e meia. Os Samaritanos não devem demorar. Satisfeito, voltei com ela para ao grande portão. Ainda podíamos ver, à distância, os dois vultos que se afastavam de “No sso Lar”, tranquilamente. A enfermeira olhou -os, fez um gesto de admiração e disse: - Estão envolvidos em luz azul. Devem ser dois mensageiros muito elevados no plano físico, em tarefa que não sabemos. Ficamos ali algum tempo ainda, parados, olhando os campos em silêncio. Em determinado momento, a enfermeira indicou um ponto escuro no céu enluarado, e comentou: - Lá vêm eles! Reconheci a caravana que vinha em nossa direção, sob a claridade suave do céu. De repente, ouvi, de longe, o latido de cães. - O que é isso? – perguntei, espantado. - Os cães – disse Narcisa – são grandes auxiliares nas regiões escuras do Umbral, onde não há somente homens desencarnados, mas verdadeiros monstros, que não convém comentar agora. A enfermeira logo chamou os ajudant es, enviando um deles para dentro para dar alguns avisos. Olhei com atenção o grupo estranho que se aproximava devagar. Seis grandes carros, com os cães alegres e barulhentos à frente, eram puxados por animais que, mesmo de longe, me pareceram iguais às mulas da Terra. Mas o mais interessante era os grandes bandos de aves, de corpo grande, que voavam bem acima dos carros, fazendo ruídos estranhos. Na hora, perguntei a Narcisa: - Onde está o aeróbus? Não seria possível usá -lo no Umbral? Como ela disse q ue não, perguntei por quê. Sempre atenciosa, ela explicou: - Questão de densidade da matéria. É mais ou menos como a água e o ar. O avião que atravessa o ar do planeta não pode fazer o mesmo no mar. Poderíamos construir máquinas como submarinos, mas, por compaixão pelos que sofrem, os planos superiores preferem usar aparelhos intermediários. Além disso, em muitos casos, não podemos dispensar a colaboração dos animais. - Como assim? – perguntei com surpresa. - Os cães facilitam o trabalho, as mulas carrega m as cargas pacientemente e fornecem calor quando necessário, e as aves, – acrescentou, apontado -as – que chamamos de ibis viajores, são ótimos auxiliares dos Samaritanos, porque devoram as formas mentais pesadas, lutando abertamente com as trevas do Umbra l. A caravana estava mais próxima agora. Narcisa olhou -me com bondade e concluiu: - Mas a hora não é para detalhes. Depois você poderá ter mais informações sobre os animais no Ministério do Esclarecimento, onde estão os parques de estudo e experimentação. E, distribuindo serviço a todos, preparava -se para receber novos doentes espirituais. " André Luiz," COM OS RECÉM -CHEGADOS DO UMBRAL Os cães, conduzidos por homens fortes, pararam ao nosso lado. Logo em seguida, estávamos todos percorrendo os corredores de en trada das Câmaras de Retificação. Muitos colaboradores andavam com pressa. Alguns doentes foram levados para dentro, com muita ajuda. Além de Narcisa, Salústio e outros companheiros, os Samaritanos também trabalhavam com amor para socorrer. Alguns doentes comportavam -se com humildade e resignação, mas outros reclamavam aos gritos. Procurando ajudar também, notei que uma senhora tentava descer do último carro com muita dificuldade. Notando que eu estava próximo, disse com espanto: - Tenha piedade, meu filh o! Ajude -me, pelo amor de Deus!... Aproximei -me com interesse. - Cruz, credo! – continuou, benzendo -se – Graças a Deus estou longe do purgatório... Ah, que malditos demônios me torturavam lá! Que inferno! Mas os anjos do Senhor sempre chegam. Ajudei -a a descer, cheio de curiosidade. Pela primeira vez ouvia alguém que me parecia equilibrada e calma falar do inferno e do purgatório. Mais por malícia do que outra coisa, perguntei: - Está vindo assim de tão longe? Falando assim, fingia sincero interesse fr aternal, exatamente como fazia na Terra, esquecendo completamente os sábios conselhos da mãe de Lísias. A pobre criatura, percebendo meu interesse, começou a explicar: - De muito longe. Na Terra, meu filho, fui mulher de muito bons costumes, fiz muita caridade, rezei sempre como sincera devota. Mas, quem sabe do que Satanás é capaz? Quando saí do mundo, me vi cercada de seres monstruosos, que me levaram de sopetão. No começo, pedi a proteção dos arcanjos celestes, mas os espíritos diabólicos me mantiveram presa. Só que eu não perdia a esperança de ser libertada, de uma hora para a outra, porque deixei algum dinheiro para que missas mensais fossem rezadas por meu descanso. Sempre com o vício de perseguir assuntos que não me diziam respeito, insisti: - Que interessante! E não tentou saber por quê ficou tanto tempo lá? - De jeito nenhum. – respondeu, benzendo -se. – Como disse, na Terra fiz o possível para ser uma boa religiosa. Você sabe que ninguém está livre de pecar. Meus escravos provocavam brigas e intri gas e, mesmo que o dinheiro me garantisse vida tranquila, às vezes era necessário aplicar disciplinas. Os feitores eram muito exigentes e não podia hesitar nas ordens diárias. De vez em quando, algum negro morria no tronco como exemplo geral. Outras vezes era obrigada a vender as mães escravas sem os filhos, para garantir a ordem. Nessas ocasiões, ficava com muito remorso, mas confessava -me todos os meses, quando o Padre Amâncio visitava a fazenda e, depois de comungar, estava livre dessas faltas menos gra ves. Afinal, depois de receber a absolvição no confessionário e engolir a hóstia sagrada, estava novamente em dia com todos os meus deveres para com o mundo e com Deus. A essa altura, escandalizado com o que ouvia, comecei a doutrinar: - Minha irmã, essa p az espiritual era falsa. Os escravos são nossos irmãos também. Para Deus, os filhos dos servos são iguais aos filhos do patrão. Ao me ouvir dizer aquilo, bateu o pé de forma autoritária e disse irritada: - Ah, mas não mesmo! Escravo é escravo! Se não fo sse assim, a religião nos ensinaria o contrário. Pois se havia cativos até na casa dos bispos, por que não em nossas fazendas? Quem iria cuidar da terra se não fossem eles? E, acredite, sempre permiti que ficassem em minhas senzalas como verdadeira honra!. .. Em minha fazenda nunca vinham ao local das visitas, a não ser para cumprir minhas ordens. Padre Amâncio, " André Luiz," nosso virtuoso sacerdote, disse -me, na confissão, que os africanos são os piores entes do mundo, nascidos só para servir a Deus no cativeiro. E você acha que eu poderia me sentir constrangida ao lidar com esse tipo de criatura? Não tenha dúvida: os escravos são seres perversos, filhos de Satã! Fico até admirada com a paciência com que aguentei essa gente na Terra. E devo dizer que saí de repente do co rpo, por ter ficado chocada com a determinação da Princesa de libertar esses bandidos. Já faz muito tempo, mas me lembro muito bem. Já estava doente há muitos dias e, quando o Padre Amâncio veio da cidade trazendo a novidade, piorei de repente. Como iríamo s ficar no mundo, vendo esses criminosos em liberdade? Com certeza, iriam querer nos escravizar. E não era preferível morrer do que servir gente dessa laia? Lembro que me confessei com dificuldade, recebi as palavras do padre, mas parece que os demônios ta mbém são africanos e estavam me esperando, pois fui obrigada a suportar sua presença até hoje. - E quando foi que veio para cá? - Em maio de . Senti estranha sensação de espanto. Com os olhos embaçados, a velhinha olhou ao longe e disse: - Vai ver que meus sobrinhos se esqueceram de pagar as missas. No entanto, eu deixei isso bem claro em meu testamento. Ía responder com idéias novas de fraternidade e fé, na tentativa de elevar seus pensamentos, mas Narcisa se aproximou e disse, com bondade: - André, meu amigo, você se esqueceu de que estamos lidando com doentes e perturbados? Que utilidade pode ter esse tipo de informação? Os loucos falam sem parar e quem os ouve, desperdiçando energia espiritual, pode estar tão louco quanto eles. Aquilo foi dit o com tanta bondade que fiquei vermelho de vergonha, sem coragem de responder. - Não se impressione. – disse a enfermeira delicadamente – Vamos atender aos irmãos perturbados. - Mas, você acha que também estou perturbada? – perguntou a velhinha, ofendida . E Narcisa, demonstrando excelentes qualidades de psicóloga, assumiu expressão de fraternidade carinhosa e disse: - Não, minha amiga, não é isso o que estou dizendo, mas acho que você deve estar muito cansada. Seu esforço no purgatório foi muito longo.. . - Isso mesmo, isso mesmo. – respondeu a recém -chegada do Umbral – Você não imagina o que tenho sofrido, torturada pelos demônios... A pobre mulher ía continuar com a mesma história, mas Narcisa, mostrando -me como agir nessas situações, disse: - Não come nte o mal. Já sei tudo o que aconteceu de triste e doloroso a você. Descanse, lembrando que vou ajudá -la. E, no mesmo instante, falou a um dos assistentes: - Zenóbio, vá ao departamento feminino e chame Nemésia, em meu nome, para que venha buscar mais uma irmã para os leitos de tratamento. " André Luiz," UM ENCONTRO ESPECIAL Enquanto guardavam o material da viagem e os animais de serviço, ouvi uma voz carinhosa a meu lado: - André! Você por aqui? Que bom! Que surpresa boa!... Virei surpreso e reconheci o Samaritano que falava comigo, o velho Silveira, conhecido meu, de quem meu pai, um dia, como negociante intransigente, tirou todos os bens. Fiquei naturalmente envergonhado. Quis cumprimentá -lo, responder ao gesto de carinho, mas, de repente, me senti paralisado pela lembrança do passado. Ali, onde a sinceridade transparecia de todos os rostos, eu não seria capaz de fingir. Foi o próprio Silveira que, percebendo a situação, tentou me ajudar, dizendo: - Sinceramente, não sabia que você havia desencarnad o e nem imaginava que estaria aqui em “Nosso Lar”. Sentindo sua gentileza sincera, abracei -o comovido, tentando dizer palavras de reconhecimento. Tentei dar algumas explicações sobre o passado, mas não consegui. No fundo, eu queria pedir desculpas pelo que meu pai fez, levando -o à completa falência. Naquele momento, revia mentalmente a imagem do passado. A memória mostrava -me novamente o quadro vivo. Parecia estar ouvindo a sra. Silveira quando foi à nossa casa explicar o que estava acontecendo. O marido estava doente havia muito tempo e a situação havia se complicado muito com a doença dos dois filhos. As necessidades eram muitas e os tratamentos, muito caros. A pobre mulher chorava, esfregando os olhos com o lenço. Pedia mais tempo, implorava alternativ as justas. Humilhava -se, olhando com tristeza minha mãe, como se buscasse ajuda e compreensão no coração de outra mulher. Lembrei -me que minha mãe interferiu e pediu a meu pai que esquecesse os documentos assinados, abrindo mão de qualquer ação judicial. M as meu pai, habituado a grandes negócios e tendo a sorte a seu lado, não entendia a condição do pequeno comerciante. Não deu o braço a torcer. Disse que lamentava o que estava acontecendo, que ajudaria o cliente amigo, deixando claro, no entanto, que não t inha outra alternativa quanto aos débitos já existentes, a não ser cumprir o que mandava a lei. Afirmou que não podia transgredir as regras do seu próprio estabelecimento comercial. As promissórias seriam acionadas. E consolava a esposa aflita comentando a situação de outros clientes que, para ele, parecia pior. Lembrei -me dos olhares de simpatia de minha mãe para a pobre mulher em lágrimas. Meu pai ficou completamente indiferente e, quando a sra. Silveira se despediu, chamou a atenção de minha mãe, proibin do-a de se intrometer nos negócios. A pobre família teve que arcar com a falência total. Relembrava, claramente, o instante em que até o piano da sra. Silveira foi retirado da casa deles para pagar as últimas contas. Quis pedir desculpas, mas não encontra va frases apropriadas, porque, naquele momento, pensava como meu pai e o incentivava a agir daquela forma. Achava minha mãe sentimentalista demais e fiz com que ele continuasse com a ação até o fim. Eu era muito jovem ainda e a vaidade falava mais alto. Nã o queria saber se os outros sofriam, não conseguia enxergar as necessidades dos outros. Só via os direitos da minha família, mais nada. E, nesse aspecto, tinha sido implacável. Era inútil minha mãe tentar me convencer. Derrotados, os Silveira foram para o interior, completamente miseráveis. Nunca mais havia tido notícias daquela família, que, com certeza, nos odiava. Essas lembranças íam se juntando em minha mente em segundos. Num instante, havia reconstruído todo o passado de sombras. E, enquanto mal di sfarçava o constrangimento, Silveira, sorrindo, me trazia de volta à realidade: - Tem visitado o “velho”? Aquela pergunta, demonstrando carinho espontâneo, aumentava minha vergonha. Expliquei que, apesar de querer muito, ainda não havia conseguido. " André Luiz," Silveira percebeu meu constrangimento e, com pena do meu estado, talvez, procurou afastar -se. Abraçou -me com respeito e voltou ao trabalho. Muito confuso, procurei Narcisa para pedir conselhos. Expliquei o que havia acontecido, contando os detalhes da históri a na Terra. Ela me ouviu com paciência e disse com carinho: - Não há nada de estranho nisso. Há algum tempo passei pela mesma situação. Já tive a felicidade de encontrar aqui muitas pessoas que prejudiquei na Terra. Hoje sei que isso é uma bênção de Deus , que nos dá novas oportunidades de recuperar simpatias, recompondo a corrente espiritual. E, tentando enfatizar o que dizia, perguntou: - Você aproveitou a bela oportunidade? - O que você quer dizer? - Desculpou -se com o Silveira? É sempre uma grande alegria reconhecer os próprios erros. Agora que você já pode examinar a própria consciência com bastante luz, reconhecendo ser o errado, não perca a oportunidade de reatar a amizade. Vá, André, e abrace -o de outro jeito. Aproveite o momento, porque o Silve ira é muito ocupado e talvez não tenha outra chance tão cedo. Percebendo minha indecisão, Narcisa acrescentou: - Não tenha medo do fracasso. Toda vez que nos sintonizamos com o bem, Jesus no dá o que for necessário para que tenhamos sucesso. Tome a iniciat iva. Fazer boas ações, quaisquer que sejam, é sempre uma grande honra para a alma. Lembre -se do Evangelho e vá atrás da reconciliação. Não vacilei mais. Corri para encontrar Silveira e falei com sinceridade, pedindo que perdoasse as ofensas e erros cometid os por mim e por meu pai. - Você entende, - destaquei – estávamos cegos. E, nesse estado, não víamos nada, a não ser o interesse próprio. Quando o dinheiro se junta à vaidade, Silveira, fica difícil manter -se longe do mau caminho. Silveira, muito comovido, não me deixou terminar: - Ora, André, será que existe alguém que não tenha errado? Por acaso, você acha que eu mesmo não tenho erros? Além disso, seu pai foi meu verdadeiro instrutor. Eu e meus filhos lhe devemos grandes lições de esforço pessoal. Sem aqu ela atitude enérgica, que nos tirou tudo o que tínhamos, como poderíamos ter progredido espiritualmente? Aqui todos os nossos conceitos sobre a vida humana ficam diferentes. Nossos inimigos não são realmente inimigos e, sim, benfeitores. Não se deixe levar por lembranças tristes. Vamos trabalhar com Deus, reconhecendo que a vida é infinita. E, vendo meus olhos úmidos, abraçou -me com carinho e concluiu: - Não perca tempo com isso. Em breve quero ir com você visitar seu pai. Abracei -o em silêncio, sentindo no va alegria na alma. Parecia que, em algum canto escuro do coração, uma divina luz havia se acendido para sempre. " André Luiz," O SONHO Os serviços continuavam sem parar. Doentes precisando de cuidados, perturbados pedindo atenção. Quando anoiteceu, já estava familiarizado com o mecanismo dos passes e aplicava -os a todo tipo de necessitado. Pela manhã, Tobias voltou às Câmaras e, mais por generosidade do que outra coisa, disse -me algumas palavras de incentivo. - Muito bem, André! – exclamou, content e. – Vou recomendá -lo ao Ministro Genésio e, pelos primeiros serviços, você receberá bônus em dobro. Estava tentando agradecer, quando D. Laura e Lísias chegaram e me abraçaram. - Estamos muito contentes. – disse a senhora, sorrindo. – Acompanhei você po r toda a noite e posso dizer que seu primeiro dia de trabalho é motivo de muita alegria lá em casa. Fiz questão de dar a notícia ao Ministro Clarêncio e ele me pediu que o cumprimentasse em nome dele. Fizeram alguns comentários com Tobias e Narcisa e me pediram que contasse como havia me sentido. Eu estava muito feliz. Mas minhas grandes alegrias tiveram que ficar para depois. Apesar de a mãe de Lísias me pedir para voltar para casa para descansar, Tobias colocou um apartamento ao lado das Câmaras à min ha disposição. Estava mesmo precisando descansar. Narcisa cuidou da cama para mim. Já deitado no quarto espaçoso e arejado, fiz uma prece a Deus, agradecendo a oportunidade de ter sido útil. O “cansaço sadio”, de quem cumpriu o seu dever, não me deixou pe rder tempo acordado. Logo depois, senti uma grande leveza e tive a sensação de ser levado por um barco pequeno, a um lugar desconhecido. Onde estava indo? Não sei. A meu lado havia um homem quieto que segurava o leme. E, como uma criança que não é capaz d e descrever o que vê pelo caminho, continuei viagem sem dizer nada, admirado com a beleza da paisagem. Tinha a impressão de que o barco ía muito rápido, apesar de estar subindo. Depois de alguns minutos, estava em frente a um porto maravilhoso, onde algu ém me chamou com carinho especial: - André! André! Desci do barco feito criança apressada. Era capaz de reconhecer aquela voz em meio a milhares de outras. Em seguida, abraçava minha mãe todo contente. Ela me levou a um lindo bosque, onde as flores tinh am uma característica diferente: eram capazes de reter a luz, proporcionando uma festa permanente de cor e perfume. Tapetes dourados e luminosos se estendiam sob as grandes árvores, que faziam um ruído suave, agitadas pelo vento. A sensação de paz e felici dade era indescritível. O sonho não era exatamente como acontece na Terra. Eu sabia que havia deixado o corpo mais denso no apartamento das Câmaras de Retificação, em “Nosso Lar”, e tinha total consciência de que me movimentava num outro plano. Tinha perfe ita noção de tempo e espaço, mas as emoções eram cada vez mais intensas. Depois de me cumprimentar e dizer várias palavras de incentivo, minha mãe explicou com bondade: - Pedi muito a Jesus que me permitisse a alegria de estar com você no seu primeiro dia de serviço útil. Como você vê, meu filho, o trabalho é um tônico divino para o coração. Muitos dos nossos companheiros, depois de desencarnarem, adotam atitudes negativas, esperando milagres que nunca vêm. Com isso, suas capacidades ficam reduzidas a simp les parasitismo. Alguns dizem que estão desanimados pela solidão. Outros dizem que não se sentem bem no ambiente a que foram chamados a trabalhar. É indispensável, André, oferecer todas as oportunidades da vida a Deus. Nos planos inferiores, meu filho, o p rato de sopa para quem tem fome, o remédio para os doentes, o gesto de amor para os desiludidos, são serviços divinos que nunca serão esquecidos por " André Luiz," Deus. Do mesmo modo, aqui, o olhar de compreensão para os culpados, a promessa evangélica para os desespera dos, a esperança para os aflitos, são bênçãos de trabalho espiritual, que Deus observa e registra a nosso favor... O rosto de minha mãe estava mais belo do que nunca. Seus olhos de santa pareciam irradiar luz sublime, suas mãos me transmitiam energias nov as a cada gesto. Isso sem falar nas doces emoções. - O Evangelho de Jesus, André, - continuou com amor – nos lembra que há mais alegria em dar do que em receber. Vamos aprender a praticar isso, naquilo em que a vida nos colocar pela nossa própria felicida de. Dê, sempre, meu filho. E, acima de tudo, não se esqueça nunca de dar de si mesmo, em tolerância, em amor fraterno e compreensão. A prática do bem exterior é uma lição e um chamado para que cheguemos à prática do bem interior. Jesus deu mais de si para o engrandecimento dos homens que todos os milionários da Terra juntos em caridade material, que, embora seja louvável, é apenas material. Não se envergonhe de ajudar os doentes e esclarecer os loucos que entrem nas Câmaras de Retificação, onde, espiritualm ente, vi você trabalhando na noite passada. Trabalhe, meu filho, fazendo o bem. Em todas as nossas colônias espirituais, assim como nos planos mais próximos da Terra, vivem almas perturbadas, ansiosas por novidades e distrações. Mas, sempre que puder, esqu eça o divertimento e procure ser útil. Assim como eu, imperfeita, posso ver, em espírito, seus esforços em “Nosso Lar” e seguir a tristeza de seu pai no Umbral, Deus nos vê e acompanha a todos, desde o mais lúcido espírito de luz, até os últimos seres da C riação, muito inferiores aos vermes da Terra. Minha mãe fez uma pausa, que eu quis aproveitar para dizer alguma coisa, mas não pude. Lágrimas de emoção me deixaram sem voz. Ela me olhou com carinho, entendendo a situação, e continuou: - Na maioria das co lônias espirituais, conhecemos a remuneração do bônus -hora. Nossa base de compensação une dois fatores essenciais. O bônus representa a possibilidade de recebermos alguma coisa daqueles que lutam ou de recompensar alguém que esteja em nossos planos, mas o critério para estabelecer o valor da hora é de Deus. Na bonificação exterior pode haver muitos erros de nossa personalidade imperfeita, considerando que somos seres em evolução, exatamente como na Terra, mas, no que se refere ao conteúdo espiritual da hora , existe proporcionalidade direta entre o trabalhador e as forças divinas. É por isso, André, que nossas experiências evolutivas, desde o mundo físico, sofrem mudanças todos os dias. Tabelas, quadros, pagamentos, são tipos de experiência dos administradore s, a quem Deus deu a oportunidade de cooperar com a vida, assim como dá à criatura o privilégio de ser pai ou mãe na Terra e em outros mundos por algum tempo. Todo administrador responsável está ciente de suas obrigações, assim como todo pai consciente est á cheio de amor e cuidado. Deus também, meu filho, é Administrador vigilante e Pai muito dedicado. Não esquece de ninguém e reserva -se o direito de tratar diretamente com o trabalhador o verdadeiro proveito no tempo de serviço. A compensação exterior diz r espeito à personalidade temporária em experiência, mas o valor do tempo interessa à personalidade eterna, aquela que permanecerá sempre em nossos planos de vida, a caminho da glória de Deus. É por isso que Ele dá sabedoria ao que usa o tempo aprendendo e d á mais vida e alegria a quem sabe renunciar!... Minha mãe se calou, enquanto eu enxugava os olhos. Foi aí que ela me abraçou com imenso carinho. Como um menino que dorme depois da lição, perdi a consciência de mim mesmo, para acordar mais tarde nas Câmara s de Retificação, com fortes sensações de alegria. " André Luiz," A PALESTRA DA MINISTRA Em meio às atividades do dia seguinte, tinha grande interesse pela palestra da Ministra Veneranda. Como sabia que precisaria de autorização, falei com Tobias a respeito: - Essas aulas – disse ele - são ouvidas apenas pelos espíritos realmente interessados. Os instrutores aqui não podem perder tempo. Autorizo você a assistir entre as centenas de ouvintes que são trabalhadores e abrigados dos Ministérios da Regeneração e do Auxílio. Num gesto de carinho, concluiu: - Espero que aproveite bem. Passei o dia trabalhando. O contato com minha mãe e suas belas palavras sobre a prática do bem traziam -me muito conforto. Logo depois que acordei, aquelas explicações sobre o bônus -hora me trouxeram muitas dúvidas. Como poderia a compensação da hora ser tarefa de Deus? A contagem do tempo não era tarefa do administrador espiritual ou humano? Tobias me esclareceu, eliminando minhas dúvidas. Cabe aos administradores em geral a obrigação de contar o tempo de serviço, assim como estabelecer critérios de reconhecimento ao trabalhador, mas só as forças divinas podem determinar com exatidão qual foi o verdadeiro aproveitamento. Há trabalhadores que, depois de anos de serviços especiais, dei xam o trabalho tão inexperientes quanto no início, provando que gastaram tempo sem se dedicar espiritualmente, assim como há homens que, mesmo que cheguem a anos de idade, deixam a vida com a mentalidade de uma criança. Para você ter uma idéia de como a explicação de sua mãe é valiosa, - disse Tobias – basta lembrar as horas dos homens bons e maus. Para os primeiros, são fonte de bênçãos de Deus, mas para os segundos são chicote de tormento e remorso, como se fossem seres malditos. Cada filho acerta as contas com Deus segundo suas obras ou de acordo com o que tiver feito das oportunidades que lhe foram dadas. Essa explicação me ajudou a refletir no valor do tempo, em todos os sentidos. Quando chegou a hora da palestra da Ministra, logo depois da oraçã o da tarde, fui, com Narcisa e Salústio, para o grande salão em plena natureza. O espaço todo verde era uma maravilha, onde nos acomodamos confortavelmente em grandes bancos de relva. Flores viariadas, brilhando à luz de velas, exalavam delicado perfume. Calculei haver mais de mil pessoas ali, dispostas como numa platéia comum. Percebi que entidades estavam em local de destaque, entre nós e o palanque florido onde se via a poltrona da instrutora. Com uma pergunta minha, Narcisa explicou: - Estamos no espaço reservado aos ouvintes. Aqueles irmãos, em local de destaque, são os mais avançados no assunto de hoje e podem fazer perguntas à Ministra. Conseguiram esse direito pela dedicação ao tema, o que nós também podemos conseguir. - Você não pode ficar l á com eles? – perguntei. - Não. Por enquanto, só posso me sentar ali quando a instrutora fala do tratamento a espíritos perturbados. Mas há irmãos que ficam ali em várias palestras, conforme o que já tiverem aprendido. - Interessante o processo. – coment ei. - O Governador – continuou – determinou essa medida, nas aulas e palestras de todos os Ministros, para que os trabalhos não se transformassem em debate de opiniões pessoais sem fundamento, o que acarretaria grande perda de tempo para todos. Qualquer dúvida ou comentário útil poderá ser esclarecido ou aproveitado, desde que seja o momento adequado. Mal acabou de falar e a Ministra Veneranda entrou no salão ao lado de duas senhoras, que Narcisa me disse serem Ministras da Comunicação. " André Luiz," Só com a sua pres ença, Veneranda espalhou enorme alegria em todos os rostos. Não tinha a aparência de uma velha, como o nome sugeria. Parecia mais uma senhora madura, muito simples e serena. Depois de conversar rapidamente com os companheiros, informando -se das maiores necessidades do público em geral em relação ao tema da noite, começou dizendo: -“Como sempre, não vou usar nossa reunião para longos discursos. Estou aqui para conversar com vocês, fazendo alguns comentários a respeito do pensamento. “Neste momento, há, entre nós, vários ouvintes que se surpreendem pelo fato de o nosso plano ser tão parecido com o planeta. Vários deles se perguntam: - Eles não aprenderam que o pensamento é a linguagem universal? Não foram informados de que a criação mental é quase tudo e m nossa vida? – Ainda assim, encontraram aqui, a casa, os objetos e a linguagem da Terra. Só que esta realidade não deve surpreender ninguém. Não podemos esquecer que, até agora, temos passado nossas vidas físicas em antigos círculos de antagonismo vibrató rio. O pensamento é a base das relações espirituais dos seres entre si, mas não podemos esquecer que somos milhões de seres dentro do universo, ainda rebeldes às leis universais. Por enquanto, não somos como os irmãos mais velhos e mais sábios, próximos de Deus, mas milhões de entidades vivendo nos caprichosos “mundos inferiores” do nosso eu. Os grandes instrutores da humanidade física ensinam princípios divinos, expõem verdades eternas e profundas no mundo. Mas, em geral, em nossas atividades terrenas, ouv imos falar dessas leis sem nos aplicarmos e sem dedicarmos a vida a elas. “Podemos acreditar que o homem ficaria livre de toda inferioridade, só por tomar conhecimento do poder do pensamento? Impossível! “Mesmo que uma encarnação humana durasse anos , seria um tempo curto demais para alcançarmos a posição de trabalhadores puramente divinos. Aprendemos sobre a força mental nas escolas da Terra, mas esquecemos que, nesse assunto, toda nossa energia tem sido usada, milênio após milênio, nas criações ment ais destrutivas ou prejudiciais a nós mesmos. “Somos recebidos nos diversos cursos de espiritualização do mundo, mas, com frequência, não passamos das palavras. No entanto, ninguém pode cumprir o dever só com palavras. A Bíblia nos ensina que nem Deus fic ou só nas palavras e continuou o trabalho criativo na ação. “Todos sabemos que o pensamento é força essencial, mas não admitimos nosso vício milenar de desviar essa força. “Ora, todos sabem que o homem é obrigado a alimentar os próprios filhos. Assim também, cada espírito é levado a manter e nutrir as criações que lhe são peculiares. Uma idéia criminosa produzirá criações mentais do mesmo tipo e um pensamento elevado obedecerá a mesma lei. Vejamos um exemplo mais simples. Depois de evaporar -se, a água vo lta purificada, carregando importantes fluidos vitiais, seja no orvalho que protege ou na chuva que traz benefícios, mas se a conservarmos com os detritos da terra, ela se transformará em colônia de microorganismos destruidores. “O pensamento é força viva , em toda parte. É atmosfera criadora que envolve o Pai e os filhos, a Causa e os efeitos, no lar universal. Nele, os homens se transformam em anjos, a caminho do céu, ou tornam -se gênios diabólicos, a caminho do inferno. “Vocês percebem a importância dis so? Certo, para as mentes desenvolvidas, entre os encarnados e desencarnados, basta o intercâmbio mental, sem necessidade de formas, e convém destacar que o pensamento em si é a base de todas as mensagens silenciosas da intuição entre os seres de todas as espécies. Dentro desse princípio, um espírito que tenha vivido só na França poderá se comunicar no Brasil, pensamento a pensamento, sem necessidade da linguagem verbal, que, nesse caso, será sempre a do receptor. Mas isso exige afinidade pura. Ainda não es tamos nos planos de pureza mental, onde todas as criaturas têm afinidades entre si. Nós nos afinizamos com os outros em " André Luiz," núcleos fechados e somos forçados a continuar encarnando, a fim de voltar ao mundo com maior bagagem evolutiva. “Nosso Lar”, portanto, como cidade espiritual de transição, é uma bênção concedida a nós por misericórdia divina, para que alguns poucos possam se preparar para a ascensão, e para que a maioria volte à Terra em serviços de redenção. Devemos compreender e nos submeter à grandiosi dade das leis do pensamento desde já.” Depois de longa pausa, a Ministra sorriu para a platéia e perguntou: - Quem quer aproveitar? Logo depois, uma música suave encheu o salão de harmonia. Veneranda conversou ainda por muito tempo, demonstrando amor e compreensão, delicadeza e sabedoria. Sem qualquer formalidade nos gestos que indicasse o término da palestra, encerrou a exposição com uma pergunta graciosa. Quando vi os companheiros se levantarem para a despedida, ao som da música habitual, perguntei a Narcisa, com surpresa: - Como assim? Já acabou a reunião? A enfermeira esclareceu, sorrindo: - A Ministra Veneranda é sempre assim. Termina a conversa quando estamos mais interessados. Ela costuma dizer que as palestras evangélicas começaram com Jesus, mas ninguém sabe quando e como vão terminar. " André Luiz," O CASO TOBIAS No terceiro dia de trabalho, Tobias me fez uma agradável surpresa. Quando terminamos o trabalho no fim da tarde, como outros se encarregaram do turno da noit e, ele me levou à sua casa, onde belos momentos de alegria e aprendizado me esperavam. Assim que chegamos, apresentou -me duas senhoras, uma mais idosa e uma entrando na idade madura. Explicou que a primeira era sua esposa e a outra, uma irmã. Hilda e Luc iana foram muito atenciosas e gentis. Reunidos na bela biblioteca de Tobias, examinamos livros maravilhosos, tanto pela capa, como pelo conteúdo espiritual. D. Hilda me convidou para ir ao jardim, para que pudesse ver de perto alguns caramanchões muito b onitos. Cada casa em “Nosso Lar” parecia se especializar no cultivo de determinadas flores. Na casa de Lísias, havia centenas de glicínias e lírios. Já na casa de Tobias, víamos hortênsias em meio a um tapete de violetas. Belos caramanchões de árvores deli cadas, parecidas com o bambu ainda novo, tinham uma trepadeira diferente em cima, que unia a copa de várias árvores como se fosse enorme laço florido, formando um lindo teto. Não sabia expressar minha admiração. O ar estava carregado de delicioso perfume. Comentávamos a beleza da paisagem geral, vista daquele ângulo do Ministério da Regeneração, quando Luciana nos chamou para um lanche. Encantado com o ambiente simples, cheio de fraternidade sincera, não sabia como agradecer a Tobias a generosidade. Num certo momento da conversa, Tobias disse sorridente: - A bem da verdade, você ainda é novato em nosso Ministério e talvez não saiba do meu caso familiar. As duas mulheres sorriram ao mesmo tempo e, percebendo minha curiosidade muda, o dono da casa continu ou: - Aliás, temos vários outros casos idênticos na colônia. Imagine que fui casado duas vezes... E, apontando as duas senhoras, prosseguiu com bom humor: - Acho que não preciso dizer quem foram as esposas... - Ah!, sim. – gaguejei muito confuso. – Que r dizer que D. Hilda e Luciana compartilharam da sua experiência na Terra... - Isso mesmo – respondeu tranquilo. Nesse meio tempo, D. Hilda tomou a palavra, falando comigo: - Perdoe o Tobias, André. Ele está sempre disposto a falar do passado, quando nos encontramos com alguma visita recém -chegada da Terra. - E não é motivo de alegria – respondeu Tobias – vencer o ciúme inferior, conquistando, ao menos, alguma parcela de fraternidade verdadeira? - De fato, - respondi, - o problema interessa muito a tod os nós. Há milhões de pessoas casadas pela segunda vez no plano físico. Como fica essa importante questão, considerando que o espírito é eterno? Sabemos que a morte do corpo não nos destrói, apenas nos transforma. Os laços da alma continuam pelo tempo a fo ra. Como agir? Condenar o homem ou a mulher que se casaram mais de uma vez? Só que aí teríamos milhões de pessoas nessa situação. Muitas vezes lembrei, com interesse, a passagem evangélica em que Jesus nos promete a vida dos anjos, falando do casamento na eternidade. - Mas precisamos reconhecer, com todo respeito a Jesus, – comentou Tobias bondoso – que ainda não estamos nos plano dos anjos e, sim, no dos homens desencarnados. - Mas, então, como resolvemos essa questão aqui? – perguntei. Tobias sorriu e disse: " André Luiz," - Simplesmente reconhecendo que entre os animais e o homem há uma enorme sequência de graus. Assim como de nós aos anjos há uma distância imensa a caminhar. Ora, como podemos desejar a companhia de anjos se ainda não somos fraternos uns com os outr os? Claro que existem espíritos mais fortes, que se mostram superiores a todos os obstáculos do caminho, com enorme força de vontade, mas a maioria não pode abrir mão de pontes ou socorro de amigos espirituais. Em vista dessa verdade, esses casos são reso lvidos com base na fraternidade pura, tendo em mente que o verdadeiro casamento é de almas e essa união ninguém pode desfazer. Nesse momento, Luciana, que estava quieta, comentou: - Mas é bom explicar que tudo isso, felicidade e compreensão, devemos ao espírito de amor e renúncia de Hilda. A sra. Tobias, no entanto, demonstrando humildade, comentou: - Deixem disso. Nada de me atribuir qualidades que não tenho. Vou tentar resumir nossa história, para que o nosso visitante conheça meu difícil aprendizado. E, depois de um gesto de amabilidade, continuou: - Tobias e eu nos casamos muito jovens na Terra, de acordo com nossas afinidades espirituais. Acho que não é necessário falar da felicidade de duas almas que se amam de verdade e se unem no casamento. No entanto, acho que a morte tinha ciúme da nossa felicidade e me tirou do mundo quando tive o nosso segundo filho. É impossível descrever nosso sofrimento. Tobias chorava sem consolo e eu não tinha forças para acalmar minha angústia. Passei dias pesados no Umbral. Não tive outra escolha a não ser continuar agarrada ao marido e ao casal de filhos, surda a todo esclarecimento que os amigos espirituais me enviavam por intuição. Queria lutar, como a leoa ao lado dos filhotes. Reconhecia que Tobias precisava reorganizar a família, que as crianças necessitavam de orientação maternal. A situação estava ficando muito difícil. Minha cunhada solteira não tolerava as crianças e a cozinheira apenas fingia carinho. As duas babás jovens agiam com completa insensatez. Tobi as não tinha como ficar adiando a decisão mais sensata e, um ano depois do meu desencarne, casou -se com Luciana, contrariando minha vontade. Ah, se você soubesse como me revoltei... Parecia uma loba ferida. Foi aí que Jesus me permitiu a visita de minha avó materna, desencarnada havia muitos anos. Ela chegou como quem não quer nada, surpreendendo -me muito, e sentou -se ao meu lado. Em seguida, pôs -me no colo, como em outros tempos, e me perguntou com tristeza: “ - O que é isso, Hilda? Qual é o seu papel na vi da? Você é uma leoa ou uma alma consciente de Deus? Quer dizer que Luciana pode servir de mãe para os seus filhos, cuidar da sua casa e do seu jardim, suportar o mau humor do seu marido e não pode assumir o lugar provisório de companheira ao lado dele? É a ssim que você agradece as bênçãos divinas e retribui aqueles que o ajudam? Você quer uma escrava e despreza uma irmã? Hilda, Hilda!... onde estão as lições de Jesus que você aprendeu? Ah, minha pobre neta!...” Abracei -a, então, chorando, e abandonei a anti ga casa, vindo com ela para os serviços em “Nosso Lar”. Desde essa época, passei a ver Luciana como mais uma filha. Trabalhei muito, dediquei -me ao estudo sério, ao melhoramento espiritual de mim mesma, tentei ajudar a todos em nossa casa, sem distinção. T obias constituiu nova família, que passou a ser minha família também, pelos laços espirituais. Mais tarde, ele desencarnou e se juntou a mim, acompanhado de Luciana, que veio também nos encontrar, para nossa alegria. E essa é, André, a nossa história... Mas Luciana tomou a palavra e comentou: - Ela só não disse quanto tem se sacrificado por nós, dando -me muitos exemplos. - O que você está dizendo, Luciana? – perguntou a sra. Tobias, acariciando sua mão. Luciana sorriu e continuou: - Graças a Jesus e a ela, aprendi que há casamentos por amor, por fraternidade, por provação, por dever, e, no dia em que Hilda me beijou, perdoando -me, senti que meu " André Luiz," coração se libertava do monstro do ciúme inferior. O casamento espiritual realiza -se de alma para alma. Os out ros são todos sagrados, mas representam apenas alternativas indispensáveis para atender necessidades ou processos de resgate. - E assim contruímos nosso novo lar, com base na verdadeira fraternidade – concluiu o dono da casa. Aproveitando o silêncio que se fez, perguntei: - Mas como é o casamento aqui? - Pela sintonia vibratória, - explicou Tobias – ou então, para ser mais preciso, pela afinidade máxima ou completa. Sem poder controlar minha curiosidade, esqueci a discrição e perguntei: - E qual é a si tuação de Luciana nesse caso? Antes que o casal respondesse, foi a própria Luciana que explicou: - Quando me casei com Tobias viúvo, já sabia que, provavelmente, seria uma união fraternal, acima de tudo. Isso foi o mais difícil de entender. Aliás, é lógi co que, se os cônjuges não se entendem, são tristes e agitados, estão unidos fisicamente, mas não estão espiritualmente sintonizados. Queria perguntar mais coisas, mas não encontrava palavras que disfarçassem meu atrevimento. D. Hilda, no entanto, percebe u meus pensamentos e explicou: - Fique tranquilo. Luciana está em noivado espiritual. Seu companheiro de várias encarnações voltou ao mundo há alguns anos, reencarnando antes dela. No próximo ano, ela irá também. Creio que o grande momento será em São Pau lo. Sorrimos todos com alegria. Nesse instante, Tobias foi chamado com urgência para atender um caso grave nas Câmaras de Retificação. Por isso, foi preciso terminarmos a conversa. " André Luiz," OUVINDO D. LAURA A história de Tobias h avia me impressionado muito. Aquela família formada com base em novos conceitos de união fraterna não me saía da cabeça. Afinal de contas, eu também me sentia dono do lar físico e imaginava como seria difícil para mim uma situação como essa. Será que eu te ria coragem de agir como Tobias? Reconhecia que não. No meu entender, não seria capaz de colocar Zélia nessa situação, nem poderia aceitar que ela me impusesse algo assim. Aqueles comentários na casa de Tobias me torturavam. Não conseguia achar explicações razoáveis que me deixassem satisfeito. Fiquei tão preocupado que, no dia seguinte, resolvi visitar Lisias durante uma folga, para poder pedir explicações a D. Laura, em quem tinha muita confiança. Fui recebido com muita alegria e esperei o momento adequad o em que pudesse ouvir a mãe de Lísias com calma e tranquilidade. Depois que os jovens saíram para os seus passeios, contei à boa amiga, muito constrangido, o problema que me incomodava. Ela sorriu, como quem tem muita experiência de vida, e foi dizendo: - Você fez muito bem em vir conversar comigo. Todo problema que nos torture fica mais fácil de ser resolvido quando podemos contar com os amigos. E, depois de rápida pausa, continuou: - O caso Tobias é apenas um dos muitos que temos aqui e em outras col ônias que se caracterizam por pensamentos elevados. - Mas, isso nos choca os sentimentos, não é verdade? – respondi interessado. - Quando nos prendemos aos pontos de vista puramente humanos, essas coisas podem até nos escandalizar. No entanto, André, é n ecessário que agora consideremos, antes de tudo, os princípios espirituais. Para isso, precisamos nos lembrar da sequência lógica que há no processo evolutivo. Se levamos um bom tempo para sair da animalidade, é natural que essa animalidade não desapareça de uma hora para outra. Levamos muitos séculos para sair dos planos inferiores. O sexo é uma faculdade divina que demoramos muito para entender. Não será fácil para você, no momento, captar o sentido elevado da família que visitou ontem. Entretanto, a feli cidade ali é muito grande, pela atmosfera de compreensão que se criou entre eles. Nem todos conseguem substituir elos de sombra por laços de luz em tão pouco tempo. - Mas isso é regra geral? – perguntei. – Todo homem e toda mulher que tenham se casado mai s de uma vez, reconstróem o lar aqui, em companhia de todos os cônjuges com quem conviveram? Fazendo um gesto de paciência, ela explicou: - Não seja tão radical. Vamos devagar. Muita gente pode ter carinho e não ter compreensão. Não esqueça que nossas co nstruções vibratórias são muito mais fortes que as materiais. O caso Tobias é um caso de vitória da fraternidade verdadeira, por parte dos três interessados. Quem não se adaptar à lei de fraternidade e compreensão, logicamente não conseguirá o mesmo. As re giões escuras do Umbral estão cheias de entidades que não resistiram a provas como essa. Enquanto odiarem, funcionam como agulhas magnéticas agitadas pelas correntes mais antagônicas. Enquanto não entenderem a verdade, sofrerão com a mentira e, portanto, n ão poderão passar a planos superiores. São muitas as criaturas que sofrem muito tempo, sem qualquer alívio espiritual, só por se recusarem a praticar a fraternidade legítima. - E o que acontece então? – perguntei, aproveitando a pausa de D. Laura – Se não podem ir aos planos de aprendizado superior, onde ficam os espíritos que estão nessa situação? - Depois de sofrerem muito com as imagens mentais que criam para si mesmos - respondeu a mãe de Lísias – voltam para fazer no corpo físico o que não conseguira m fazer fora dele. Deus permite que, reencarnados, esqueçam o passado e recebam, como " André Luiz," parentes, aqueles que repudiaram deliberadamente por ódio ou incompreensão. Por aí vemos o quanto é oportuna a recomendação de Jesus para que nos reconciliemos com os adversários o quanto antes. Esse conselho, interessa, antes de mais nada, a nós mesmos. Devemos segui -lo pelo nosso próprio bem. Quem sabe aproveitar bem o tempo, quando desencarna, mesmo que ainda precise voltar ao plano físico, pode alcançar sublime paz de consciência, reencarnando com menos preocupações depois. Há muitos espíritos que perdem séculos tentando desfazer antagonismos e antipatias na vida terrena e refazendo -se depois de desencarnarem. O problema do perdão com Jesus, André, é muito sério. Não se resolve em conversas. Dizer que perdoamos é só uma questão de palavras, mas aquele que perdoa realmente, precisa movimentar pesados compromissos de outras vidas dentro de si mesmo. A essa altura, D. Laura se calou, como quem precisasse pensar na profundi dade do que foi dito. Aproveitando a deixa, comentei: - O casamento é muito sagrado para mim. D. Laura não se surpreendeu com minhas palavras e respondeu: - Nossa conversa não interessa aos espíritos mais animalizados. Mas para nós, que entendemos a nec essidade de crescimento, é necessário notar que, não só o casamento é sagrado, como também toda experiência que envolva sexo, porque afeta profundamente a vida da alma. Ouvindo aquela observação, não consegui deixar de ficar vermelho, lembrando meu passad o de homem comum. Minha mulher havia sido um objeto sagrado para mim, que eu colocava à frente de todas as outras afeições. No entanto, ao ouvir a mãe de Lísias, pensei nas palavras antigas do Velho Testamento: “ - não cobiçarás a casa do próximo, não cobiç arás a mulher do próximo, nem o servo, nem a serva, nem o jumento, nem o boi, nem coisa alguma que lhe pertença”. Num instante, deixei de estranhar o caso Tobias. E D. Laura, percebendo minha confusão íntima, continuou: - Onde todo mundo tem que consertar alguma coisa, deve haver muita compreensão e muito respeito à bondade de Deus, que nos dá tantas oportunidades de correção. Para o espírito que já alcançou alguma luz, toda experiência sexual é muito importante. É por isso que o entendimento fraterno deve vir antes de qualquer trabalho de redenção. Há pouco tempo ouvi um grande instrutor do Ministério da Elevação afirmar que, se pudesse, iria se materializar no mundo físico para dizer aos religiosos em geral que toda caridade, para ser divina, precisa se ap oiar na fraternidade. Nesse momento, a dona da casa me convidou para visitar Eloísa, que ainda estava de repouso, dando a entender que não queria explicar outros detalhes sobre o assunto. E, depois de ver como a jovem recém -desencarnada já estava melhor, v oltei às Câmaras de Retificação, completamente envolvido em meus pensamentos. Já não me preocupava mais com a situação de Tobias, nem com as atitudes de Hilda e Luciana. Estava mais interessado na importante questão da fraternidade humana. " André Luiz," QUEM PLANTA, COLHE Eu não sabia explicar porque queria tanto visitar o departamento feminino das Câmaras de Retificação. Comentei o meu desejo com Narcisa e ela se dispôs a me ajudar. - Quando Deus nos chama para um determinado lugar, - disse com bond ade – é porque alguma tarefa nos espera lá. Na vida, cada situação tem uma finalidade definida... Não se esqueça disso quando fizer visitas aparentemente casuais. Se os nossos pensamentos estiverem focados no bem, não é difícil identificar as sugestões div inas. No mesmo dia, a enfermeira foi comigo procurar Nemésia, grande colaboradora daquele setor. Não foi difícil encontrá -la. Em filas de leitos muito brancos e bem cuidados, estavam mulheres que mais pareciam trapos humanos. Aqui e ali, ouviam -se gemid os terríveis. Mais adiante, palavras de angústia profunda. Nemésia, que demonstrava a mesma generosidade de Narcisa, falou com bondade: - Você já deve estar acostumado com este quadro. No departamento masculino, a situação é praticamente a mesma. E fazen do um gesto para a colega, disse: - Narcisa, por favor, acompanhe André e mostre -lhe os serviços que achar mais interessantes para o seu aprendizado. Fiquem à vontade. Minha amiga e eu falávamos da vaidade humana sempre voltada para os prazeres físicos, fazendo comentários e observações, quando chegamos ao Pavilhão . Ali estavam algumas dezenas de mulheres, em leitos separados por distância regular, um a um. Estava observando o rosto das doentes, quando percebi alguém que me chamou a atenção. Quem seria aquela mulher amargurada, de aparência especial? Tinha o rosto prematuramente envelhecido e os lábios contraídos numa expressão de ironia e resignação. Os olhos, embaçados e tristes, estavam defeituosos. Com a memória agitada e o coração apertado, logo lo calizei -a no passado. Era Elisa. Aquela mesma Elisa que conheci ainda jovem. Estava diferente por causa do sofrimento, mas não havia qualquer dúvida. Lembrei, perfeitamente, o dia em que ela, humilde, foi à nossa casa com uma antiga amiga de minha mãe, que aceitou suas recomendações e a contratou para o serviço doméstico. No começo, nada de anormal. Depois, intimidade excessiva, de quem abusa da própria autoridade em relação à condição humilde de outra pessoa. Elisa me pareceu muito leviana e, quando estav a sozinha comigo, comentava descaradamente certas aventuras da sua mocidade, piorando nossa situação. Lembrei também o dia em que minha mãe me chamou para dar alguns conselhos. Aquela intimidade, não pegava bem – dizia ela. Era justo que tratássemos a empr egada com carinho e respeito, mas era melhor manter uma certa distância. Mesmo assim, fui irresponsável e levei muito longe nossa amizade. Muito envergonhada, Elisa saiu de nossa casa, sem coragem de me acusar de nada. O tempo passou, reduzindo o fato a acontecimento passageiro em minha mente. No entanto, o episódio continuava vivo. Na minha frente, Elisa estava agora vencida e humilhada! Por onde será que andou a pobre criatura, levada tão jovem a sofrimentos tão grandes? De onde vinha? Ah!... dessa vez não era o Silveira, para que eu pudesse dividir o erro com meu pai. A dívida agora era só minha. Cheguei a tremer de tanta vergonha daquelas lembranças, mas, como um menino ansioso por ser desculpado pelos erros cometidos, procurei Narcisa para pedir ajuda. Eu mesmo me admirava da confiança que sentia naquelas santas mulheres. Talvez nunca tivesse coragem de pedir ao Ministro Clarêncio as explicações que havia pedido à mãe de Lísias e, provavelmente, tomaria outra atitude naquele momento se fosse Tobias que estivesse comigo. Considerando que toda mulher generosa e cristã é mãe, fui até a enfermeira, com mais confiança do que nunca. Pela forma como me olhou, creio que Narcisa já tinha entendido tudo. Comecei a falar, fazendo força para não chorar, mas, no meio da história, minha amiga falou: " André Luiz," - Não precisa continuar. Já imagino como terminou a história. Não se entregue a pensamentos negativos. Sei como você está se sentindo, por experiência própria. No entanto, se Deus permitiu que você reencontrasse essa moça, é porque acha que você já tem condições de resgatar a dívida. Vendo que eu continuava indeciso, completou: - Não tenha medo. Aproxime -se dela e reconforte -a. Todos nós, André, encontramos, em nosso caminho, os frutos do bem ou do mal que tivermos plantad o. Isso é certo, é realidade universal. Situações como esta têm me feito muito bem. Bem aventurados os devedores que já têm condições de pagar. E percebendo que eu estava decidido a fazer o que fosse necessário para acertar as contas, acentuou: - Vamos, mas não deixe que ela saiba quem você é, por enquanto. Faça isso depois de ajudá -la efetivamente. Isso não será difícil, já que ainda sofre de cegueira temporária. Pelas características de sua aura, pode -se ver uma mãe fracassada e uma mulher de ninguém. Aproximamo -nos e eu tomei a iniciativa de consolá -la. Elisa se apresentou, dizendo o próprio nome e, espontaneamente, dando -nos outras informações sobre o seu caso. Havia chegado às Câmaras de Retificação havia três meses. Querendo me castigar na frente de Narcisa, para que a lição se gravasse em meu espírito para sempre, perguntei: - E qual é a sua história, Elisa? Você deve ter sofrido muito... Sentindo carinho em minha pergunta, sorriu e, muito conformada, desabafou: - Para que lembrar de coisas tão trist es? - As experiências difíceis sempre nos ensinam algo. – respondi A infeliz, demonstrando profunda mudança íntima, pensou por algum tempo e, como quem organiza idéias, falou: - Minha vida foi a de todas as mulheres irresponsáveis que trocam o trabalho honesto pela ilusão venenosa. Filha de um lar muito pobre, ainda jovem arrumei emprego na casa de um rico comerciante, onde a vida me impôs profundas transformações. Ele tinha um filho, tão jovem quanto eu. Depois de nos tornarmos íntimos, quando já não adia ntava qualquer reação de minha parte, esqueci que o trabalho é bênção de Deus para aqueles que amam a vida sadia, por mais que tenham errado, e me deixei levar por experiências dolorosas, que nem preciso comentar. Conheci, de perto, o prazer, o luxo, o conforto material e, em seguida, o horror a mim mesma, a sífilis, o hospital, o abandono de todos, as tremendas desilusões que terminaram com a cegueira e a morte física. Fiquei muito tempo andando sem rumo em total desespero, até que um dia, tanto pedi o soc orro da Virgem de Nazaré, que mensageiros do bem me recolheram em seu nome, trazendo -me para esta casa abençoada. Muito comovido e chorando, perguntei: - E ele? Como se chama o rapaz que a tornou tão infeliz? Ouvi -a, então, dizer o meu nome e o dos meus pais. - E você o odeia? – perguntei, envergonhado. Ela sorriu com tristeza e respondeu: - Antes eu o odiava profundamente, amaldiçoando seu nome, mas Nemésia me transformou. Para odiá -lo, tenho que odiar a mim também. No meu caso, a culpa deve ser dividida. Portanto, não posso recriminar ninguém. Aquela humildade me emocionou. Peguei sua mão e, sem conseguir evitar, uma lágrima de arrependimeto e remorso caiu. - Ouça, minha amiga, - falei emocionado – eu também me chamo André e preciso ajudá -la. De ho je em diante, conte sempre comigo. - E a sua voz – disse ela, ingenuamente – parece a dele. - Pois é… - continuei, comovido – Até hoje não tenho exatamente uma família em “Nosso Lar”, mas você será minha irmã do coração. Conte com a minha dedicação de amigo. " André Luiz," Em seu rosto vi, então, um grande sorriso que parecia uma enorme luz: - Muito obrigada! – disse, enxugando as lágrimas – Há muitos anos ninguém fala comigo dessa maneira, nesse tom familiar, como amigo sincero!... Que Jesus o abençoe. Nesse instante, q uando já não podia mais conter o choro, Narcisa pegou minhas mãos e repetiu: - Que Jesus o abençoe. " André Luiz," CONVOCADOS À LUTA Nos primeiros dias de setembro de , “Nosso Lar” sofreu o mesmo choque que várias outras colônias espirituais ligadas ao povo americano. Era a guerra na Europa, tão destruidora no plano físico, quanto nos planos espirituais. Muitos espíritos comentavam os acontecimentos, sem conseguir disfarçar o imenso terror que sentiam. Havia muito tempo já se sabia que as Grandes Fraternidades do Oriente vinham enfrentando vibrações antagônicas do Japão, com muitas dificuldades. Mas agora, viam -se fatos curiosos, muito educativos. Assim como os planos espirituais mais elevados da Ásia lutavam em sil êncio, “Nosso Lar” também se preparava para o mesmo tipo de atividade. Além de importantes recomendações relativas à fraternidade e à simpatia, o Governador determinou que tivéssemos cuidado com os pensamentos, evitando qualquer idéia ou sentimento negati vo. Percebi que, nesses casos, os espíritos superiores não consideram os países agressores como inimigos, mas como desordeiros que precisam ser reprimidos. - Infelizes os povos que se deixam envolver pelo mal. – disse -me Salústio – Ainda que consigam vit órias temporárias, estas só servirão para agravar o seu estado, acentuando ainda mais as verdadeiras derrotas. Quando um país toma a iniciativa da guerra, lidera a desordem da casa de Deus, e paga um preço muito alto por isso. Notei, então, que, nesses ca sos, os planos superiores trabalham para se defender dos avanços da ignorância e da escuidão, que só causam anarquia e destruição. Os colegas me explicaram que, em situações como essa, os países agressores se transformam, naturalmente, em núcleos poderosos de centralização do mal. Sem se prevenirem dos imensos perigos, esses povos se envolvem com entidades perversas, atraídas das regiões mais escuras. Comunidades bem sucedidas se transformam em robôs criminosos. Grandes grupos de espíritos trevosos se lança m sobre cidades promissoras, transformando -as em campos de crueldade e medo. Mas enquanto os bandos trevosos se apoderam da mente dos agressores, os grupos espirituais mais elevados se movimentam para ajudar os agredidos. Se devemos nos lamentar pela cria tura que se coloca contra a lei do bem, mais ainda devemos nos lamentar pelo povo que se esquece da justiça. Logo depois dos primeiros dias de bombardeios na Polônia, estava com Tobias e Narcisa nas Câmaras de Retificação, quando, no final da tarde, ouvim os um clarim soar por mais de minutos. Ficamos todos muito emocionados. - É a convocação superior para os serviços de socorro na Terra. – explicou -me Narcisa. - Temos indicações de que a guerra vai continuar, com muitos sofrimentos para os homens – exclamou Tobias, agitado. – Apesar da distância, toda vida psíquica americana se originou na Europa. Vamos ter muito trabalho para proteger o Novo Mundo. O toque do clarim soava estranho e imponente. Notei que todo Ministério da Regeneração ficou em profund o silêncio. Percebendo minha angústia, Tobias avisou: - Quando soa o clarim de alerta em nome de Deus, precisamos silenciar os ruídos inferiores, para que o chamado se grave em nossos corações. Quando o clarim silenciou, fomos ao grande parque para olhar o céu. Muito comovido, vi vários pontos luminosos, como pequenos focos brilhantes, flutuando no céu. - Esse clarim – disse Tobias também emocionado – é utilizado por vigilantes espirituais de alto grau. Voltando às Câmaras, ouvi rumores enormes vindo da s vias públicas, na parte mais alta da colônia. Tobias deu algumas instruções importantes a Narcisa sobre os doentes e me chamou para ir com ele ver o que estava acontecendo. " André Luiz," Chegando aos andares de cima, de onde podíamos ir a pé à Praça da Governadoria, percebemos muito movimento em todos os setores. Notando meu espanto natural, Tobias explicou: - Estes grupos enormes estão indo ao Ministério da Comunicação, para receber notícias. O clarim que acabamos de ouvir só chega até nós em circunstâncias muito graves. Todos sabemos que se trata da guerra, mas é possível que a Comunicação nos dê algum outro detalhe importante. Observe as pessoas que passam. Ao nosso lado, vinham dois senhores e quatro senhoras conversando muito animados. - Imagine – dizia uma de las – o que vai acontecer conosco no Auxílio. O volume de pedidos tem sido muito grande há vários meses seguidos. Temos muitas dificuldades para atender todos os compromissos. - E nós na Regeneração? – disse o senhor mais idoso – O volume de serviços continua maior que o normal. No meu setor, precisamos estar sempre vigilantes contra as vibrações do Umbral. Já estou até vendo o que vem por aí... Tobias pegou no meu braço de leve e disse: - Vamos um pouco mais à frente para ouvir o que dizem outros grupos . Aproximando -nos de dois homens, ouvi um deles perguntar: - Será que todos seremos atingidos pela calamidade? O outro, que parecia ter muito equilíbrio espiritual, respondeu sereno: - Seja como for, não vejo motivo para afobação. A única novidade é o aumento de trabalho, que, no fundo, é uma bênção. Quanto ao resto, tudo me parece natural. A doença é mestra da saúde, o desastre traz bom senso. A China está sob ataque há muito tempo e você não demonstrou qualquer preocupação com isso. - Só que agora – argumentou o primeiro desapontado – parece que vou ser obrigado a mudar meu programa de trabalho. O outro sorriu e comentou: - Helvécio, Helvécio, que tal esquecer o “meu programa” para pensar nos “nossos programas”? Acompanhando Tobias, observei três s enhoras que íam na mesma direção à nossa esquerda, notando que, nem naquela confusão, faltava o toque engraçado nas conversas. - Estou muito preocupada com esta questão, – dizia a mais moça – porque Everardo não pode desencarnar agora. - Mas a guerra, – disse uma outra – ao que parece, não chegará à Península. Portugal está muito longe do local dos acontecimentos. - Mas por quê essa preocupação? - perguntou a terceira mulher. – O que aconteceria se Everardo viesse agora? - Tenho receio que ele me procu re como esposa. – disse a mais jovem – Não poderia suportá -lo. É muito ignorante e não me submeteria às suas crueldades de forma nenhuma. - Como você é boba! – comentou uma das companheiras – Você se esqueceu que Everardo será detido no Umbral ou coisa pi or? Tobias, sorrindo, explicou: - Ela tem medo que o marido irresponsável e mau seja libertado. Depois de algum tempo observando a multidão, chegamos ao Ministério da Comunicação, parando diante dos enormes edifícios dedicados à informação. Milhares d e entidades se acotovelavam aflitas. Todos queriam informações. Mas era impossível chegar a um acordo. Muito surpreso com o falatório enorme, vi que alguém havia subido numa sacada alta, pedindo a atenção de todos. Era um velho imponente, dizendo que, dent ro de dez minutos, o Governador faria um apelo. - É o Ministro Esperidião – disse Tobias, matando minha curiosidade. Logo depois que o barulho cessou, ouvimos a voz do próprio Governador saindo de vários alto -falantes: " André Luiz," “- Irmãos de “Nosso Lar”, não se en treguem a pensamentos e palavras desequilibrados. A aflição não constrói e a ansiedade não ajuda. Procuremos ser dignos do chamado de Deus, fazendo a Sua vontade tranbalhando em silêncio em nossos postos.” Aquela voz clara e veemente, de quem falava com au toridade e amor, surtiu efeito especial na multidão. Uma hora depois, toda a colônia já havia voltado à serenidade normal. " André Luiz," A PALAVRA DO GOVERNADOR O Governador prometeu fazer, no domingo seguinte, um cult o evangélico no Ministério da Regeneração. Segundo Narcisa, o objetivo era a preparação de novas escolas de assistência no Auxílio e núcleos de treinamento na Regeneração., - Precisamos nos organizar para o serviço hospitalar urgente e para exercícios adequados contra o medo, – disse ela – embora o conflito esteja muito longe daqui. - Contra o medo? – perguntei admirado. - Claro! – respondeu ela – Como muita gente, você talvez não imagine a quantidade de vidas humanas aniquiladas apenas pelas vibrações d estrutivas do terror, que é tão contagioso quanto qualquer doença. Classificamos o medo como um dos piores inimigos do ser humano, porque se aloja na alma, atacando as forças mais profundas. Percebendo minha surpresa, continuou: - Não tenho dúvida de que , nas atuais circunstâncias, a Governadoria coloca o treinamento contra o medo muito acima até das lições de enfermagem. A calma é garantia de êxito. Mais tarde, você vai atender a importância disso. Não sabia o que responder. No dia anterior ao grande a contecimento, tive a honra de participar do grupo de limpeza e ornamentação natural do grande salão para o Governador. Estava muito ansioso. Ía ver, pela primeira vez, a meu lado, o nobre líder, venerado por todos. E não estava sozinho nessa expectativa, porque muitos outros companheiros sentiam a mesma coisa. Tive a impressão de que todas as atenções do nosso Ministério se voltaram para o grande salão natural desde as primeiras horas do domingo, quando verdadeiras caravanas de todos os departamentos cheg avam ao local. O Grande Coro do Templo da Governadoria, em conjunto com os meninos cantores das escolas do Esclarecimento, abriu o evento com o maravilhoso hino “Sempre Contigo, Senhor Jesus”, cantado por duas mil vozes ao mesmo tempo. Outras melodias muit o bonitas preencheram o espaço amplo. O doce ruído do vento perfumado parecia responder às suaves harmonias. Todos no Ministério da Regeneração tinham permissão para entrar no grande salão verde, porque, conforme o programa estabelecido, o culto se destin ava especialmente a eles, embora todos os Ministérios se fizessem presentes em grandes delegações. Pela primeira vez, estive pessoalmente com alguns cooperadores dos Ministérios da Elevação e União Divina, que pareciam estar vestidos de claridades brilhan tes. O evento ultrapassava todas as minhas expectativas de beleza e encantamento. Instrumentos musicais de especial poder vibratório enchiam de melodia a paisagem perfumada. Às h, o Governador chegou acompanhado dos Ministros da Regeneração. Nunca vou esquecer o vulto nobre e imponente daquele senhor de cabelos brancos, que parecia ter, ao mesmo tempo, a sabedoria do velho e a energia do moço, a ternura do santo e a serenidade do administrador responsável e justo. Alto, magro, usando uma túnica muit o branca, olhos penetrantes e muito lúcidos, apoiava -se num cajado, embora caminhasse sem dificuldade. Matando minha curiosidade, Salústio informou: - O Governador sempre gostou de atitudes pratriarcais, considerando que sempre se deve administrar como u m pai. Quando ele se sentou na tribuna, ouvimos vozes infantis, acompanhadas de harpas, entoando o hino “A Ti, Senhor, Nossas Vidas”. O velhinho simpático e enérgico olhou para a platéia lotada por milhares de assistentes. Em seguida, abriu um livro lumi noso, que Salústio me disse ser o Evangelho de Jesus. Depois de folheá -lo com atenção, leu em voz pausada: " André Luiz," - “E ouvireis falar de guerras e de rumores de guerras; olhai, não vos assusteis, porque é mister que isso tudo aconteça, mas ainda não é o fim”, pa lavras do Mestre em Mateus, capítulo , versículo . Com a voz ampliada pelas vibrações, o chefe da cidade orou emocionado, pedindo as bênçãos de Jesus, e saudando, em seguida, os representantes da União Divina, da Elevação, do Esclarecimento, da Comunic ação e do Auxílio, dirigindo -se em especial a todos os colaboradores de nosso Ministério. Impossível descrever o tom doce, enérgico, amoroso e convincente daquela voz inesquecível, bem como transmitir as considerações divinas do comentário evangélico, calcado em profundo respeito pelas coisas sagradas. Terminando, em meio a grande silêncio, o Governador se dirigiu, em particular, aos trabalhadores da Regeneração, dizendo mais ou menos o seguinte: - É para vocês, meus irmãos que trabalham mais perto da Te rra, que dirijo mais diretamente meu apelo pessoal, esperando muito da sua dedicação. Elevemos ao máximo nossa coragem e espírito de serviço. Quando as forças da sombra criam mais dificuldades nas regiões inferiores, é imprescindível projetar novas luzes q ue dissipem as trevas mais densas na Terra. Dediquei o culto de hoje a todos os trabalhadores deste Ministério, devotando -lhes, de modo especial, a minha confiança. Portanto, não estou me dirigindo aos irmãos que já mantêm a mente em padrões mais elevados, mas a vocês que trazem na memória os sinais do mundo, para destacar a grandiosidade da tarefa. “Nosso Lar” precisa de mil colaboradores treinados para o serviço defensivo, mil que não se preocupem com o repouso, nem com interesses pessoais, enquanto estivermos combatendo as forças do crime e da ignorância. Haverá serviço para todos nas regiões que fazem fronteira com os planos inferiores, porque não podemos esperar o adversário em nossa casa. Nas organizações coletivas, é preciso pensar na medicina p reventiva como medida de preservação da paz interna. Em “Nosso Lar”, somos mais de um milhão de criaturas dedicadas às determinações superiores e ao melhoramento moral de nós mesmos. Seria justo permitir que vários milhões de espíritos desordeiros nos invadissem? Por isso, não podemos vacilar em relação à defesa do bem. Sei que muitos de vocês se lembram, neste instante, de Jesus. Sim, Jesus se entregou à multidão de rebeldes e criminosos, por amor à libertação de todos nós, mas não entregou o mundo à desor dem e à destruição. Todos nós devemos estar prontos para o sacrifício individual, mas não podemos entregar nossa colônia aos desequilibrados. Lógico que a nossa principal tarefa é a confraternização e a paz, o amor e o alívio para os que sofrem. Claro que todo mal será interpretado por nós como desperdício de energia, e todo crime, como doença. No entanto, “Nosso Lar” é um patrimônio divino que precisamos defender com todas as energias do coração. Quem não sabe preservar, não merece usufruir. Preparemos, e ntão, grandes grupos de trabalhadores capazes de esclarecer e consolar na Terra, no Umbral e nas Trevas, em missões de amor fraternal, mas, antes de tudo, precisamos organizar, neste Ministério, um grande grupo especial de defesa que nos garanta as constru ções espirituais dentro de nossas fronteiras vibratórias. Assim continuou por longo tempo, falando da importância de providências fundamentais, fazendo observações que jamais conseguiria repetir aqui. Terminando os comentários, repetiu a leitura do versícu lo de Mateus, pedindo novamente as bênçãos de Jesus e as energias dos ouvintes, para que nenhum de nós recebesse dádivas em vão. Comovido e impressionado, ouvi as crianças cantarem o hino que a Ministra Veneranda chamou de “A Grande Jerusalém”. O Governado r desceu da tribuna em meio a grande vibração de esperança e foi então que brisas suaves começaram a soprar sobre as árvores, trazendo, de muito longe talvez, pétalas de rosas diferentes, de um azul maravilhoso, que se desfaziam de leve ao tocar nossa test a, enchendo nosso coração de imensa alegria. " André Luiz," CONVERSANDO O Ministério da Regeneração continuou em festa, mesmo depois de o Governador ter saído com seus Ministros mais próximos. Todos comentavam os acontecimentos. Centenas de companheiros se ofereci am para o trabalho de defesa, atendendo o pedido do chefe da colônia. Procurei Tobias para saber se seria possível encaixar -me no serviço, mas ele sorriu da minha ingenuidade e falou: - André, você está começando um trabalho novo agora. Não se precipite, p edindo mais responsabilidade. O Governador nos disse, ainda agora, que haverá serviço para todos. Não se esqueça de que as nossas tarefas nas Câmaras de Retificação exigem muito esforço, dia e noite. Não fique aflito. Lembre -se de que mil companheiros s erão convocados para a vigilância permanente, mas, mesmo assim, ficará ainda muita coisa por fazer por aqui. Vendo meu desapontamento, o bondoso companheiro, bem humorado, disse logo depois: - Fique feliz em estar inscrito na escola contra o medo. Tenha ce rteza de que isso vai lhe fazer muito bem. Nesse meio tempo, recebi um grande abraço de Lísias, que estava com a delegação do Ministério do Auxílio. Pedindo licença a Tobias, sai com Lísias para conversar. - Você conhece – perguntou ele – o Ministro Benev enuto da Regeneração, o mesmo que chegou anteontem da Polônia? - Ainda não tive a oportunidade. - Vamos falar com ele – respondeu Lísias, com carinho. – Faz tempo que tenho a alegria de tê -lo como amigo. Logo depois, estávamos no grande salão verde, ded icado aos trabalhos deste Ministro da Regeneração, que eu conhecia só de vista. Muitos grupos de visitantes trocavam idéias sob as árvores grandes. Lísias levou -me ao grupo maior, onde Benevenuto conversava com vários amigos, de forma muito bondosa. O Min istro me recebeu com muita gentileza em seu grupo. A conversa seguiu naturalmente e notei que estavam falando da situação na Terra. - Muito triste o quadro que vimos. – comentava Benevenuto em tom sério – Acostumados a trabalhar na paz aqui na América, n enhum de nós imaginava como seria o trabalho de socorro espiritual na Polônia. Tudo muito escuro e difícil. Ali não se podem esperar luzes de fé nos agressores. E na maioria das vítimas também não, pois se entregam totalmente a emoções terríveis. Os encarn ados não ajudam e só consomem nossas energias. Desde o começo do meu Ministério, nunca vi tanto sofrimento coletivo. - E vocês demoraram muito por lá? – perguntou um dos companheiros. - Todo tempo de que pudemos dispor – completou o Ministro. – O chefe do grupo, nosso colega do Auxílio, achou melhor ficarmos concentrados no trabalho, para podermos aproveitar melhor as observações e experiências. Realmente, as condições não poderiam ser melhores. Acredito que estamos muito longe da capacidade de resistênc ia dos companheiros espirituais que trabalham ali. Todas as tarefas de assistência imediata funcionam perfeitamente, embora o ar seja sufocante, saturado de vibrações pesadas. O campo de batalha invisível para os encarnados, é como verdadeiro inferno sem f im. Em nenhuma outra situação o homem evidencia sua condição de alma decaída como na guerra, apresentando características realmente diabólicas. Vi homens inteligentes e instruídos concentrados em apontar para setores pacíficos o que eles chamam de “impacto s diretos”. Bombas de alto poder explosivo destruindo edifícios que levaram anos para construr. Emanações doentias de ódio juntando -se aos fluidos venenosos do bombardeio, sendo quase impossível dar qualquer ajuda. No entanto, o que mais nos chocou, foi a triste condição das tropas agressoras, quando um deles desencarna, em " André Luiz," consequência da situação. Dominados por forças tenebrosas, quase todos fugiam dos espíritos de luz, chamando -os de “fantasmas da cruz”. - E não eram resgatados para esclarecimento? – pe rguntou alguém, interrompendo o narrador. Benevenuto fez um gesto forte e respondeu: - Se já é difícil cuidar de loucos pacíficos em casa, o que se pode fazer por loucos furiosos, além de dar -lhes hospício? Não tínhamos outra opção a não ser deixar esses companheiros nas trevas, onde serão naturalmente forçados a se reajustar, abrindo a mente para pensamentos mais elevados. Por isso, é natural que as missões de socorro resgatem apenas aqueles predispostos a receber ajuda. Como vocês podem ver, as cenas presenciadas foram muito tristes, por várias razões. Aproveitando a pausa, outro companheiro comentou: - É quase impossível acreditar que a Europa, com tantos patrimônios culturais, tenha se deixado envolver por tamanho desastre. - Isso é falta de preparo religioso, meus amigos – explicou o Ministro, com voz emocionada. – Não basta ser inteligente. É preciso que o homem ilumine seus raciocínios para a vida eterna. As igrejas são sempre santas, em seus princípios, e o sacerdócio será sempre divino, quando d edicado à verdade de Deus. Mas o sacerdócio político jamais suprirá a necessidade espiritual da civilização. Sem a inspiração divina, as personalidades religiosas podem obter respeito e admiração, mas não conseguem inspirar fé e confiança. - Mas, e o Espir itismo? – perguntou, de repente, um dos presentes. – As primeiras expressões da doutrina não surgiram na América e na Europa há mais de anos? Esse movimento novo não continua a serviço das verdades eternas? Benevenuto sorriu, fez um gesto significativo e acrescentou: - O Espiritismo é a nossa grande esperança e, por todos os méritos, o Consolador da humanidade encarnada. Mas a nossa marcha é ainda muito lenta. Temos nele uma dádiva sublime, para a qual a maioria dos homens ainda não tem “olhos de ver”. A grande maioria dos novos estudantes espíritas aproxima -se da doutrina com os mesmos vícios religiosos do passado. Querem ter vantagens, mas não se dispõem a dar algo de si mesmos. Pedem a verdade, mas não caminham para ela. Enquanto muitos estudiosos tranformam os médiuns em cobaias humanas, vários adeptos agem como doentes que, mesmo curados, acreditam mais na doença do que na saúde e nunca caminham sozinhos. Enfim, na Terra procuram espíritos para concretizar o fenômeno passageiro, enquanto nós aqui vive mos à procura de homens espiritualizados para a realização do trabalho sério. O trocadilho arrancou algumas risadas. O Ministro ainda acrescentou: - Nossos serviços são gigantescos. Mas não podemos esquecer que todo homem é semente divina. Se fizermos a no ssa parte, com esperança e otimismo, podemos ficar tranquilos que Deus fará o resto. " André Luiz," AS TREVAS Para enriquecer a conversa, Lísias mostrou -nos um pouco mais de sua cultura e sensibilidade. Dedilhando com habilidade as cordas de uma cíta ra, lembrou -nos algumas antigas canções da Terra. Dia realmente maravilhoso! Muitas alegrias espirituais, como se estivéssemos em pleno paraíso. Quando fiquei a sós com o enfermeiro do Auxílio, tentei expressar minhas maravilhosas impressões. - Não tenh a dúvida. - disse sorrindo – Quando nos reunimos àqueles a quem amamos, algo de bom e construtivo acontece em nosso espírito. É o alimento do amor, André. Quando várias almas se juntam para esta ou aquela atividade, seus pensamentos se entrelaçam, formando núcleos de força viva, pelos quais cada uma recebe uma porção de alegria ou sofrimento da vibração geral. É por isso que, na Terra, o problema do ambiente é sempre muito importante no caminho de cada homem. Cada ser vive daquilo que cultiva. Quem se apega à tristeza todos os dias, convive com ela. Quem destaca a doença, sofrerá com os seus males. Percebendo meu espanto, concluiu: - Não há mistério nisso. É lei da vida, tanto no bem, como no mal. Quando participamos de reuniões de fraternidade, esperança, amor e alegria, saímos com a fraternidade, a esperança, o amor e a alegria de todos. Mas, se tomamos parte em reuniões onde prevalecem o egoísmo, a vaidade ou o crime, saímos envenenados pelas vibrações destrutivas desses sentimentos. - Tem razão – falei comovido. – Vejo nisso os mesmos princípios que regem a vida nos lares terrenos. Quando há conpreensão recíproca, vivemos antecipadamente no paraíso, mas, se insistimos no desentendimento e na maldade, sofremos como se já estivéssemos em pleno inferno. Lísias reagiu com bom humor e confirmou sorrindo. Foi então que me lembrei de perguntar -lhe sobre uma coisa que, desde umas horas antes, me incomodava. Quando fez a sua palestra, o Governador falou dos planos da Terra, do Umbral e das Trevas, mas, sinceram ente, ainda não tinha ouvido falar desse último. O Umbral já não era uma região trevosa, onde eu mesmo havia vivido em meio a sombras densas durante vários anos seguidos? Não havia, nas Câmaras, vários desequilibrados e doentes de todo tipo, vindos das reg iões umbralinas? Lembrando que Lísias havia me dado ótimas explicações sobre minha própria situação, logo que cheguei a “Nosso Lar”, comentei com ele minhas dúvidas pessoais, demonstrando a surpresa que sentia. Ele ficou sério e falou: - Chamamos Trevas às regióes mais inferiores que conhecemos. Pense nas criaturas como viajantes da vida. Alguns poucos caminham decididos, visando o objetivo principal da jornada. São os espíritos mais nobres, que descobriram a essência divina em si mesmos, marchando para o alvo sublime, sem vacilar. No entanto, a maioria estaciona. Essa é a multidão de almas que levam séculos e séculos recapitulando experiêncicas. Os primeiros seguem por linhas retas. Os outros caminham fazendo grandes curvas. Nessa movimentação, repetindo roteiros e retomando antigos esforços, ficam expostos a muitas dificuldades. Desse modo, muitos costumam perder -se em plena vida, perturbados no labirinto que traçam com os próprios pés. Nesse grupo, estão os milhões de seres que vagam pelo Umbral. Outros, preferindo caminhar às cegas, preocupados apenas com suas próprias idéias egoístas, costumam cair em precipícios, estacionando no fundo do abismo, por tempo indefinido. Entendeu? As explicações não poderiam ser mais claras. No entanto, emocionado com a gravidade do assunto, comentei: " André Luiz," - Mas, essas quedas acontecem apenas na Terra? Só os encarnados estão sujeitos a cair no precipício? Lísias pensou um pouco e respondeu: - Seu comentário é muito apropriado. Em qualquer lugar, o espírito pode cair no mal. No entanto, é preciso ressaltar que as defesas são maiores nos planos superiores, onde a culpa é maior por cada erro cometido. - Mas sempre achei impossível sofrermos quedas nos planos espirituais. – argumentei – Pensei que o ambiente divino, o conhecime nto da verdade, o auxílio superior, fossem antídotos infalíveis contra o veneno da vaidade e da tentação. Lísias sorriu e esclareceu: - O problema da tentação é mais complexo. A Terra está cheia de ambientes divinos, conhecimento da verdade e auxílio sup erior. São muitos os que travam batalhas destruidoras em meio a árvores acolhedoras e campos floridos. Outros tantos cometem assassinatos sob o luar, insensíveis à profunda inspiração das estrelas. Outros ainda exploram os mais fracos, recebendo elevadas r evelações da verdade superior. Na Terra, não faltam cenários e paisagens verdadeiramente divinos. As palavras do enfermeiro me impressionavam profundamente. De fato, em geral, os guerreiros gostam de lutar na primavera, quando a Natureza põe, no solo e no céu, maravilhas de cor, perfume e luz. Os assaltos e assassinatos são praticados, de preferência, à noite, quando a Lua e as estrelas enchem o planeta de poesia divina. A maioria dos carrascos da humanidade se compõe de homens muito cultos, que desprezam a inspiração superior. Revendo meus conceitos referentes à queda espiritual, acrescentei: - Mas, Lísias, será que você poderia me dar uma idéia da localização dessa região de Trevas? Se o Umbral está ligado à mente humana, onde fica esse lugar de sofrimento e pavor? - Há planos de vida em toda parte – disse ele. – O vácuo é apenas uma imagem figurativa. Em tudo há energias viventes e cada espécie de ser movimenta -se em determinada região da vida. Depois de pequena pausa, em que parecia pensar profundamente, continuou: - Claro que, como nós, você imaginou que as regiões de vida após a morte ficavam apenas do globo para cima, esquecendo dos níveis de baixo. No entanto, a vida também vibra no fundo dos mares e no interior da Terra. Além disso, do mesmo modo que existem leis de gravidade para as coisas materiais, há princípios de gravitação para os espíritos. A Terra não é só o lugar onde podemos agir como quisermos. É ser vivo, com leis que podem nos escravizar ou libertar, de acordo com nossas obras. É claro que a alma cheia de culpas não poderá ir à superfície da vida. Resumindo, é preciso dizer que as aves livres vão às alturas; as que se enroscam nos cipós sentem -se presas sem poder voar; e as que se prendem a muito peso são apenas escravas do desconhecido. En tende? Lísias não precisava me fazer aquela pergunta. Na hora, vi, diante de meus olhos espirituais, o quadro imenso de experiências renovadoras, desenrolando -se nas regiões mais baixas da existência. Como alguém que precisa refletir bastante para dizer o que deseja, ele pensou, pensou e concluiu: - Assim como acontece conosco, que temos o superior e o inferior dentro de nós, o planeta também tem, em si, expressões altas e baixas, com as quais corrige o culpado e eleva o vencedor à vida eterna. Como médico, você sabe que no cérebro existem elementos que não são propriamente físicos, mas essencialmente espirituais. Quem quiser viver nas sombras, prejudicará o sentido divino de direção. Por isso, não é demais prever que acabe caindo nas Trevas, porque o abismo atrai o abismo e cada um de nós chegará ao local para onde esteja dirigindo os próprios passos. " André Luiz," NO CAMPO DA MÚSICA No final da Tarde, Lísias me convidou para acompanhá -lo ao Campo da Música. Vendo minha indecisão, enfatizou: - Vou falar com Tobi as. A própria Narcisa tirou o dia de folga hoje. Vamos! Só que eu percebia uma estranha reação em mim mesmo. Apesar dos poucos dias de serviço, já tinha grande amor por aquelas Câmaras. As visitas diárias do Ministro Genésio, a companhia de Narcisa, a ins piração de Tobias, a amizade dos colegas, tudo isso falava muito de perto ao meu espírito. Eu, Narcisa e Salústio aproveitávamos todo tempo livre para melhorar o ambiente, aqui e ali, amenizando a situação dos doentes, de quem gostávamos muito, como se fos sem nossos filhos. Considerando a nova posição que ocupava, fui até Tobias, a quem o enfermeiro falou com respeito. Recebendo o pedido, meu orientador concordou, satisfeito: - Ótimo programa! André precisa conhecer o Campoda Música. E, abraçando -me, diss e: - Não fique na dúvida. Aproveite! Volte à noite, quando quiser. Todos os nossos serviços estão convenientemente cuidados. Acompanhei Lísias muito agradecido. Chegando à sua casa, no Ministério do Auxílio, tive a alegria de rever D. Laura e fiquei sabe ndo que sua filha, mãe de Eloísa, deveria voltar na semana seguinte. A casa estava cheia de alegria. Havia mais beleza em todo o ambiente. Despedindo -se de nós, a dona da casa me abraçou e falou, bem humorada: - Então, daqui em diante, a cidade terá mais um frequentador do Campo da Música! Tome cuidado com o coração!... Eu vou ficar em casa hoje. Mas logo, logo, vou me vingar de vocês. Não devo demorar muito para encontrar meu alimento na Terra!... Cheios de alegria, saímos para a rua. As jovens estavam acompanhadas de Polidoro e Estácio, com quem conversavam animadamente. Assim que descemos do aeróbus numa das praças do Ministério da Elevação, Lísias me disse, com carinho: - Finalmente, você vai conhecer minha noiva. Tenho falado muito de você a ela. - Engraçado termos noivados aqui também... – comentei, curioso. - Por quê não? O amor vive no corpo mortal ou na alma imortal? Lá na Terra, meu caro, o amor é uma espécie de ouro escondido por pedras brutas. Os homens o misturam tanto com as necessidades , desejos e emoções inferiores, que, raramente, conseguem separá -lo. O comentário fazia sentido. Percebendo que a explicação me fazia bem, continuou: - O noivado é muito mais bonito no plano espiritual. Não existem ilusões para nos turvar a visão. Somos o que somos. Lascínia e eu já falhamos muitas vezes em outras encarnações. E tenho que confessar que, quase todos os desastres, foram por causa da minha irresponsabilidade e absoluta falta de autocontrole. Os homens ainda não entenderam completamente a lib erdade que têm com as leis sociais do planeta. É raro nós a utilizarmos para crescer espiritualmente no mundo. Muita vezes, nós a transformamos em caminho para a animalidade. Por outro lado, as mulheres têm tido, até hoje, as disciplinas mais rígidas a seu favor. Quando encarnadas, sofrem com a nossa tirania e suportam o peso de nossas imposições. Mas aqui, os nossos valores são reajustados. Só é realmente livre quem aprende a obedecer. Parece contraditório, mas é a mais pura verdade. - Mas você tem em men te novos planos de encarnação? – perguntei. - Nem podia ser diferente. – explicou ele rapidamente – Preciso ter novas experiências. Além disso, minhas dívidas com o planeta são muito grandes. Em breve, Lascínia e eu teremos aqui a nossa casa, e creio que voltaremos à Terra dentro de uns anos. " André Luiz," Estávamos próximos ao Campo da Música. Luzes de incrível beleza iluminavam o grande parque, onde a paisagem parecia de um conto de fadas. Fontes luminosas apresentavam desenhos maravilhosos: um espetáculo completa mente novo para mim. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Lísias recomendou, com bom humor: - Lascínia sempre vem com duas irmãs. Espero que você seja um cavalheiro com elas. - Mas, Lísias... – respondi, indeciso, considerando que era casado na Te rra – Você precisa entender que ainda me sinto ligado a Zélia. O enfermeiro riu muito e acrescentou: - Era só o que faltava! Ninguém aqui quer ferir o seus sentimentos de fidelidade, André. No entanto, não acho que o casamento acabe com as regras de rela cionamento social. Você não sabe mais ser amigo de alguém? Ri, sem graça, e nada pude dizer. Nesse momento, chegamos à entrada, onde Lísias fez a gentileza de me pagar a entrada. Ali mesmo, notei um grande número de pessoas circulando em torno de um coreto, onde uma orquestra pequena executava algumas canções. Caminhos contornados por flores íam à nossa frente, dando acesso ao interior do parque, em várias direções. Percebendo minha admiração pelas canções que ouvíamos, Lísias explicou: - Nas extremidad es do Campo temos apresentações de acordo com o gosto de cada grupo, para aqueles que ainda não podem entender completamente a música como arte sublime. Mas no centro, temos a música universal e divina, a arte santificada por excelência. Realmente, depoi s de atravessarmos alamedas muito alegres, onde cada flor parecia reinar independente, comecei a ouvir harmonia maravilhosa dominando o ambiente. Na Terra, há pequenos grupos que apreciam a música erudita e grandes grupos que gostam da música popular. Eu h avia visto muitos grupos na colônia e havia ficado surpreso com a reunião que o nosso Ministério havia preparado para o Governador. Mas o que via agora, ultrapassava tudo o que já havia visto. As grandes figuras de “Nosso Lar” estavam presentes. O brilho do ambiente não era por luxo ou qualquer tipo de excesso. Era apenas a expressão natural de tudo, a simplicidade misturada à beleza, à arte pura e à vida sem artifícios. As mulheres demonstravam extremo bom gosto individual, sem afetação ou exageros em ac essórios, e sem contradizer a simplicidade divina. Grandes árvores, diferentes das que conhecemos na Terra, enfeitavam belos espaços, iluminados e aconchegantes. Não só os casais de namorados passeavam pelas passarelas floridas. Grupos de homens e mulhere s conversavam animadamente. Embora me sentisse insignificante diante daquelas pessoas, percebia a mensagem silenciosa de simpatia de todos que me olhavam. Ouvia frases soltas falando do plano físico e, no entanto, em nenhum grupo notei a mais leve crítica maliciosa ou acusação aos encarnados. Discutia -se o amor, a cultura intelectual, a pesquisa científica, a filosofia edificante, e todos os comentários eram elevados e voltados para o auxílio mútuo, sem qualquer atrito de opiniões. Notei que, ali, o mais sá bio diminuía suas vibrações, ao mesmo tempo que os menos instruídos elevavam, o mais possível, sua capacidade de compreensão para absorver o conhecimento mais elevado. Em várias conversas, notei os comentários sobre Jesus e o Evangelho. No entanto, o que m ais me impressionava era a alegria reinante em todos os grupos. Ninguém se lembrava do Mestre com pensamentos negativos de tristeza inútil ou de desânimo sem razão. Jesus era lembrado por todos como o maior orientador do planeta, nos planos visíveis e invi síveis, cheio de compreensão e bondade, mas também atento à energia e vigilância necessárias à preservação da ordem e da justiça. Aquela sociedade otimista me encantava. Tinha concretizadas, diante de meus olhos, as esperanças de vários grandes pensadores da Terra. Muito impressionado com a música sublime, ouvi Lísias dizer: " André Luiz," - Nossos orientadores, em harmonia, recebem inspiração dos planos mais elevados e os grandes compositores encarnados são, muitas vezes, trazidos a planos como o nosso, onde recebem o rientações melódicas, transmitindo -as aos ouvidos humanos, modelando, o que recebem, com as características e dons próprios. O universo, André, está cheio de beleza e harmonia. O raio brilhante e eterno da vida vem originariamente de Deus. Mas o enfermeir o do Auxílio não pôde continuar. Encontramos um grupo gracioso de jovens. Lascínia e suas irmãs haviam chegado e era preciso dar atenção fraterna a elas. " André Luiz," SACRIFÍCIO DE MULHER Um ano de trabalhos construtiv os se passou, com muita alegria para mim. Aprendi a ser útil, encontrei prazer no serviço, sempre contente e confiante. Até ali, não havia voltado à minha casa na Terra, apesar da grande vontade que me angustiava o coração. Às vezes, pensava em pedir conc essões especiais para isso, mas alguma coisa me impedia. Não havia recebido ajuda, não tinha ali o carinho e o respeito de todos os companheiros? Por isso, reconhecia que, se houvesse utilidade, há muito tempo já teria sido levado ao lar terreno. Assim, er a melhor esperar. Além disso, embora trabalhasse muito na Regeneração, o Ministro Clarêncio continuava a se responsabilizar por minha permanência na colônia. D. Laura e o próprio Tobias não se cansavam de me lembrar disso. Várias vezes havia encontrado o M inistro do Auxílio e, no entanto, ele nada havia dito sobre o assunto. Aliás, Clarêncio era sempre reservado no desempenho de suas funções. Apenas no Natal, quando estávamos na festa da Elevação, ele havia tocado no assunto de leve, percebendo as saudades que sentia da esposa e dos filhos. Comentou as alegrias da noite e me assegurou que não estava longe o dia em que me levaria até minha casa. Agradeci, comovido, esperando muito animado. Entretanto, já estávamos em setembro de e nada parecia indicar a realização dos meus desejos. Meu consolo era ter meu tempo todo ocupado com o trabalho útil nas Câmaras de Retificação. Não descansava. Nossas tarefas continuavam sempre, sem interrupção. Havia me acostumado a cuidar dos doentes, a interpretar seus pens amentos. Não perdia a pobre Elisa de vista, orientando -a, indiretamente, para melhores experiências. Mas, à medida que meu equilíbrio emocional se consolidava, aumentava a ansiedade para ver minha família. A saudade doía muito. Em compensação, de vez em quando minha mãe me visitava. Ela nunca me abandonou, embora vivesse em planos superiores. A última vez que nos vimos, ela me disse que queria me colocar a par de seus novos planos. Aquela atitude suave de quem se resigna diante dos sofrimentos que ferem a alma, havia me comovido muito. Quais seriam seus novos projetos? Curioso, esperei sua visita, ansioso para saber das novidades. Nos primeiros dias de setembro de , ela veio às Câmaras e, depois de me cumprimentar com carinho, contou -me que pretendia reencarnar. Com muito amor, explicou o projeto. Mas, surpreso e contrário a esta decisão, reclamei: - Não concordo. A senhora reencarnar? Por quê? Entrar de novo no caminho escuro do mundo, sem necessidade imediata? Muito séria, minha mãe argumentou: - Você não acha triste a situação de seu pai, meu filho? Há muitos anos trabalho para ajudá -lo e meus esforços têm sido em vão. Laerte hoje é um cético com o coração envenenado. Não pode continuar assim para não complicar ainda mais a própria situação. O qu e fazer, então, André? Você teria coragem de vê -lo nessas condições, sem socorrê -lo como fosse possível? - Não. – respondi impressionado – Trabalharia para ajudá -lo. Mas a senhora pode ajudá -lo daqui mesmo. - Não duvido disso. No entanto, os espíritos qu e amam de verdade, não se limitam a estender as mãos de longe. De que adianta toda riqueza material se não pudermos estendê -la às pessoas que amamos? Poderíamos, por acaso, morar num palácio, deixando os filhos ao relento? Não posso ficar de longe. Já que posso contar com você aqui, vou me juntar a Luísa para ajudar seu pai a reencontrar o caminho certo. Pensei, pensei e argumentei: - No entanto, insisto com a senhora. Não há um jeito de evitar isso? - Não. Não seria possível. Estudei bem o assunto e meu s superiores concordam comigo. Não posso trazer o inferior para o superior, mas posso fazer o contrário. Que outra opção tenho, além desta? Não posso vacilar nem um minuto. Tenho em você o " André Luiz," amparo para o futuro. Por isso, não se perca e ajude sua mãe, enqua nto puder circular entre os planos que nos separam da Crosta. Ao mesmo tempo, cuide de suas irmãs, que talvez ainda estejam no Umbral, em trabalho de purificação. Logo estarei na Terra e lá poderei me encontrar com Laerte para aquilo que Deus determinar. - Mas como ele se encontrará com a senhora? – perguntei – Em espírito? - Não. – disse minha mãe com expressão séria – Com a ajuda de alguns amigos, localizei -o na Terra na semana passada e já preparei sua reencarnação imediata, sem que ele percebesse noss a ação direta. Ele quis fugir das mulheres que o perseguiam, talvez com razão, e aproveitamos para prendê -lo à nova situação física. - Mas isso é possível? E o livre -arbítrio? Minha mãe sorriu, meio triste, e acrescentou: - Há reencarnações que são solu ções drásticas. Ainda que o doente não tenha coragem, há amigos que o ajudam a tomar o remédio necessário, mesmo que seja amargo. Quanto à liberdade irrestrita, a alma só pode reinvindicar esse direito quando compreende e cumpre o seu dever. De resto, é in dispensável reconhecer que o devedor é escravo do compromisso assumido. Deus criou o livre -arbítrio, nós criamos a fatalidade. Assim sendo, precisamos romper as amarras que criamos para nós mesmos. Enquanto pensava distraído, ela continuou, retomando a co nversa anterior: - Só que as mulheres que o perseguem não o abandonam e, se não fosse a proteção dos amigos espirituais, talvez até conseguissem frustrar sua nova encarnação. - Meu Deus! – exclamei – Isso é possível? Estamos à mercê do mal até esse pont o? Somos simples joguetes nas mãos dos inimigos? - Essas perguntas, meu filho, – respondeu minha mãe, muito calma – devem estar sempre presentes em nossa mente e em nosso coração, antes de contrairmos qualquer dívida e de transformarmos irmãos em inimigo s em nosso caminho. Nunca peça empréstimos à maldade!... - E essas mulheres? – perguntei – O que vai acontecer com elas? Minha mãe sorriu e respondeu: - Serão minhas filhas daqui a alguns anos. Você não deve esquecer que vou reencarnar para ajudar seu p ai. Ninguém ajuda, de fato, alimentando as forças contrárias, assim como não se pode apagar um incêndio com petróleo. É indispensável amar, André! Os que não acreditam, perdem o rumo certo, vagando pelo deserto, e os que se enganam se desviam da estrada re al, mergulhando no pântano. Seu pai hoje é um cético e essas pobres mulheres suportam um peso enorme por sua ignorância e ilusão. Em furuto não muito distante, todos eles serão meus filhos, em minha nova experiência. E, de olhos úmidos, como se estivesse vendo o futuro, concluiu: - E, mais tarde... quem sabe? Talvez volte a “Nosso Lar”, rodeada do amor de mais algumas pessoas, para uma grande festa de alegria, amor e união... Percebendo seu espirito de renúncia, ajoelhei -me e beijei suas mãos. Dali em d iante, minha mãe não era somente minha mãe. Era muito mais que isso. Era a mensageira do Amparo, que sabia transformar desequilibrados maldodos em filhos do coração, para que eles pudessem voltar ao caminho de Deus. " André Luiz," A VOLTA DE LAURA Não er a só minha mãe que estava se preparando para voltar à Terra. D. Laura também estava prestes a reencarnar. Alguns amigos me avisaram e resolvi participar da demonstração de apoio e solidariedade que alguns funcionários, especialmente do Auxílio e da Regener ação, íam dar à nobre senhora, por sua volta ao plano físico. Fizeram uma homenagem muito carinhosa na noite em que o Departamento de Contas lhe entregou a notificação do tempo total de serviço na colônia. Não é possível descrever o significado espiritual dessa festa. A casa graciosa estava cheia de música e luzes. As flores pareciam ainda mais bonitas. Muitas famílias foram cumprimentar a companheira. A maioria dos visitantes falava com ela rapidamente e saía. No entanto, os amigos mais íntimos íam fica ndo até mais tarde. Assim, tive a oportunidade de ouvir vários comentários curiosos e sábios. D. Laura parecia compenetrada, mais séria. Era possível perceber seu esforço para acompanhar o otimismo de todos. Com a sala de estar cheia de gente, a mãe de Lí sias explicava ao representante do Departamento: - Creio que não tenho mais do que dois dias. As aplicações do Serviço de Preparação do Ministério do Esclarecimento já terminaram. E, com o olhar meio triste, concluiu: - Como você pode ver, estou pronta. O companheiro fez um gesto de sincera fraternidade e, para incentivá -la, disse: - Mas eu espero que esteja animada. É uma glória voltar ao mundo nas suas condições. Milhares e milhares de horas de serviço a seu favor, perante a comunidade de mais de um milhão de companheiros. Além disso, seus filhos serão um belo estímulo aqui. - Tudo isso me dá conforto, – disse a dona da casa, sem disfarçar a preocupação que sentia – mas devemos entender que a reencarnação é sempre uma experiência de grande importânci a. Sei que meu marido foi antes de mim e que meus filhos serão sempre meus amigos, no entanto... - Ora essa! Não se deixe levar por suposições. – respondeu o Ministro Genésio – Precisamos confiar na proteção de Deus e em nós mesmos. A fonte divina é inesg otável. É preciso acabar com a idéia de que o plano físico é um exílio de sofrimento. Não pense em fracasso. Mentalize, sim, as possibilidades de êxito. Além do mais, você precisar confiar um pouco mais nos amigos que tem aqui. Em vibração, não estaremos l onge de você. Pense na alegria de ajudar antigas amizades e na glória imensa de ser útil. D. Laura sorriu, mais encorajada, e disse: - Tenho pedido o socorro espiritual de todos os companheiros, para me manter firme nas lições que recebi aqui. Sei que a Terra está cheia da grandeza de Deus. Basta lembrar que o nosso Sol é o mesmo que alimenta os encarnados. No entanto, meu caro, tenho medo daquele esquecimento temporário a que somos submetidos. Sinto -me como uma doente que se curou de várias feridas... Na verdade, essas feridas não incomodam mais, mas ainda tenho as cicatrizes. Bastaria um leve arranhão para que voltassem. O Ministro fez um gesto de quem entendia o que ela dizia e respondeu: - Sei o que são as sombras dos planos inferiores, mas é preciso ter corabem e caminhar adiante. Nós a ajudaremos a trabalhar muito mais no bem dos outros do que na satisfação de si mesma. O grande perigo ainda é e sempre será a insistência nas tentações do egoísmo. - Aqui, - continuou a senhora – contamos com as vibr ações espirituais da maioria dos habitantes, quase todos educados nas luzes do Evangelho. E, mesmo que as antigas fraquezas surjam novamente em nossos pensamentos, temos a defesa natural do próprio ambiente. Mas, na Terra, nossa boa intenção é como chama f raca num mar imenso de forças agressivas. " André Luiz," - Não diga isso. – falou o bondoso Ministro – Não dê tanta importância às influências dos planos inferiores. Isso seria o mesmo que armar o inimigo contra nós. O campo das idéias é também campo de lutas. Toda luz que acendermos, de fato, na Terra, vai ficar viva para sempre, porque o vento das paixões humanas não pode apagar as luzes de Deus. D. Laura parecia ver tudo mais claramente agora, em face das palavras ouvidas. Mudou radicalmente a atitude mental e falou, com novo ânimo: - Agora tenho certeza de que sua visita não foi casual. Precisava recuperar as energias. Estavam me faltando estas palavras. É verdade. Nossa vida mental é campo de batalha constante. É preciso anular o mal e as trevas dentro de nós mesmo s, pegá -los de surpresa no lugar em que se escondem, sem lhes dar tanta importância. Isso mesmo, agora compreendo... Genésio sorriu satisfeito e acrescentou: - Dentro do nosso mundo individual, cada idéia é como um ser à parte... Precisamos nos lembrar d isso. Alimentando as manifestações do bem, elas progredirão para a nossa felicidade, como um exército de defesa. No entanto, se alimentarmos o mal, daremos base para os nossos inimigos. A essa altura, o funcionário do Departamento de Contas comentou: - E não podemos esquecer que Laura volta à Terra com grandes créditos espirituais. Ainda hoje, o Gabinete da Governadoria enviou uma nota ao Ministério do Auxílio, recomendando aos técnicos da Reencarnação o máximo cuidado com o material biológico a ser usado para formar o seu novo corpo físico. - Ah!, é verdade. – disse ela – Pedi essa providência para que não fique muito sujeita à lei de hereditariedade. Tenho estado muito preocupada com o que diz respeito ao sangue. - Veja – respondeu o companheiro – que seu mérito em “Nosso Lar” é bem grande, pois o próprio Governador fez as determinações. - Por isso, não se preocupe, minha amiga. – disse o Ministro Genésio – Você terá vários companheiros a seu lado ajudando no seu bem estar! - Graças a Deus! – disse D. Laura, aliviada – Era isso o que eu precisava ouvir! Lísias e as irmãs, inclusive Teresa, demonstraram grande alegria. - Minha mãe precisava esquecer as preocupações. – comentou o enfermeiro do Auxílio – Afinal, não vamos ficar aqui dormindo, não é? - Vocês têm razão. – concordou a dona da casa – Vou cultivar mais esperança e terei confiança em Deus e em todos vocês. Em seguida, todos voltaram a falar da confiança e do otimismo. Ninguém mais comentou o retorno ao plano físico, a não ser como uma bênção para recapitular e aprender para o bem. Ao se despedir, já bem tarde, D. Laura me disse com carinho: - Amanhã à noite, André, espero você também. Faremos uma pequena reunião familiar. O Ministério da Comunicação nos prometeu a visita de meu marido. Embo ra esteja encarnado, Ricardo será trazido até aqui com a ajuda de alguns companheiros. Além disso, amanhã pretendo me despedir. Não deixe de vir. Agradeci comovido o convite, fazendo força para não chorar antes da hora. " André Luiz," EVANGELHO NO LAR Para os praticantes do Espiritismo talvez não fosse tão surpreendente a reunião de que participei na casa de Lísias. No entanto, para mim, a situação era inédita e interessante. Na espaçosa sala de estar, perto de pessoas se reuniam. A preparação dos móve is era a mais simples possível. Apenas algumas cadeiras e poltronas enfileiradas de em , diante do estrado de onde o Ministro Clarêncio dirigia os trabalhos, cercado por D. Laura e os filhos. À distância de, mais ou menos, metros, havia um grande gl obo cristalino com, aproximadamente, metros de altura, com a parte de baixo envolvida em vários fios, que se ligavam a um pequeno aparelho, igual aos nossos alto -falantes. Muitas perguntas dançavam em meu cérebro. Na sala grande, cada um havia ocupado seu lugar, mas notei que todos conversavam amigavelmente. Estando ao lado de Nícolas, antigo trabalhador do Ministério do Auxílio e amigo íntimo da família, aproveitei para fazer algumas perguntas. Ele não hesitou em me responder e explicou: - Estamos pr ontos. No entanto, estamos aguardando a ordem da Comunicação. Ricardo é ainda uma criança na Terra e não será difícil para ele desprender -se do corpo físico por algum tempo. - Mas ele virá até aqui? – perguntei. - Claro! – respondeu o companheiro – Nem t odos os encarnados ficam presos ao solo da Terra. Da mesma forma que os pombos -correio vivem muito tempo em serviço entre duas regiões, há espíritos que vivem lá entre dois mundos. E, apontando o aparelho à nossa frente, disse: - Ali está a câmara onde e le aparecerá. - Por que o globo cristalino? – perguntei, curioso. – Ele não poderia se manifestar sem isso? - É preciso lembrar que – disse Nícolas – as nossas emoções emitem forças que podem perturbá -lo. Aquela pequena câmara cristalina é feita de mater ial isolante. Nossas energias mentais não poderão atravessá -la. Nesse instante, Lísias foi chamado ao telefone por funcionários da Comunicação. Tinha chegado a hora. O trabalho poderia começar. Olhei o relgógio na parede. Passavam minutos da meia noi te. Notando meu ar de dúvida, Nícolas disse baixinho: - Só agora a atual casa de Ricardo está bem tranquila lá na Terra. Natural que a casa descanse, os pais durmam e ele, em nova fase, não fique totalmente preso ao berço... Nícolas não pôde continuar. O Ministro Clarêncio, levantando -se, pediu pensamentos e sentimentos equilibrados e unidos. Houve um grande silêncio e Clarêncio fez uma prece emocionada. Em seguida, Lísias tocou algo na cítara, enchendo o ambiente de profundas vibrações de paz e alegria. Logo depois, Clarêncio falou novamente: - Irmãos, - disse – enviemos agora a nossa mensagem de amor a Ricardo. Surpreso, notei, então, que D. Laura, as filhas, a neta e Lísias saíram do estrado e se colocaram junto aos instrumentos musicais. Judite, Iol anda e Lísias ocuparam, respectivamente, o piano, a harpa e a cítara, ao lado de Teresa e Eloísa, que faziam o coro familiar. As cordas afinadas emitiram suave melodia e a música se revelou divina. Quando vozes maravilhosas encheram o ambiente, senti -me c omo se houvesse sido levado a planos superiores do pensamento. Lísias e as irmãs cantavam uma linda canção, composta por eles mesmos. " André Luiz," Muito difícil repetir aqui os versos lindos, cheios de espiritualidade e beleza, mas vou tentar transmitir a riqueza do a mor nos planos da vida após a morte: Pai querido, enquanto a noite Traz a benção do repouso, Recebe, pai carinhoso, Nosso afeto e devoção!... Enquanto as estrelas cantam Na luz que as empalidece, Vem unir à nossa prece A voz do teu coração. Não te pertu rbes na estrada De sombras do esquecimento, Não te doa o sofrimento, Jamais te firas no mal. Não temas a dor terrestre, Recorda a nossa aliança, Conserva a flor da esperança Para a ventura imortal. Enquanto dormes no mundo, Nossas almas acordadas Relembr am as alvoradas Desta vida superior; Aguarda o porvir risonho, Espera por nós que, um dia, Volveremos à alegria Do jardim do teu amor. Vem a nós, pai generoso, Volta à paz do nosso ninho, Torna às luzes do caminho, Inda que seja a sonhar; Esquece, um mi nuto, a Terra E vem sorver da água pura De consolo e de ternura Das fontes de ""Nosso Lar"". Nossa casa não te olvida O sacrifício, a bondade, A sublime claridade De tuas lições no bem; Atravessa a sombra espessa, Vence, pai, a carne estranha, Sobe ao cume da montanha, Vem conosco orar também. " André Luiz," Nas últimas notas da bela canção, notei que o globo se enchia de substância cinzenta leitosa, mostrando, logo em seguida, a figura simpática de um homem de meia idade. Era Ricardo. Impossível descrever a emoção da família, que o cumprimentou com amor. O recém -chegado, depois de falar em particular com a esposa e os filhos, olhou a todos, pedindo que a canção fosse repetida, a qual ouviu chorando. Quando a música terminou, disse comovido: - Ah!, meus filhos, como é grande a bondade de Jesus, que enfeitou o nosso Evangelho no lar com as grandes alegrias desta noite! Nesta sala temos procurado, juntos, o caminho dos planos superiores. Muitas vezes recebemos, aqui, o pão espiritual da vida, e é aqui mesmo que nos reenc ontramos para o incentivo sagrado. Como sou feliz! D. Laura chorava discretamente. Lísias e as irmãs tinham os olhos úmidos. Percebi que Ricardo não falava com plena naturalidade e não tinha muito tempo entre nós. Creio que todos ali tinham a mesma impre ssão, pois vi Judite abraçar o globo, dizendo com carinho: - Pai querido, diga o que precisa de nós, explique como podemos ser úteis ao seu coração! Notei, então, que Ricardo olhou profundamente para D. Laura e sussurrou: - Sua mãe virá se encontrar com igo em breve, filha! Depois, vocês também virão. O que mais eu poderia querer para ser feliz, a não ser pedir a Jesus que nos abençoe para sempre? Todos chorávamos, emocionados. Quando o globo começou a ficar novamente cinzento, ouvi Ricardo dizer, quase já se despedindo: - Ah!, meus filhos, tenho uma coisa a pedir do fundo do coração! Peçam a Deus para que eu nunca tenha vantagens na Terra, a fim de que a luz da gratidão e do entendimento esteja sempre viva em meu espírito!... Aquele pedido inesperado me emocionou e surpreendeu ao mesmo tempo. Ricardo despediu -se de todos com carinho e o globo ficou totalmente cheio da substância leitosa, para, logo em seguida, voltar ao normal. O Ministro Clarêncio fez nova prece e a sessão foi terminada, deixando -nos mergulhados em grande alegria. Ía abraçar D. Laura, expressando pessoalmente minha profunda impressão e gratidão, mas alguém me deteve um pouco antes, enquanto ela se ocupava em falar com todos os presentes. Era Clarêncio, que me falou com carinho: - André, amanhã vou levar Laura ao plano físico. Se você quiser, pode vir conosco para visitar sua família. Minha surpresa não poderia ser maior. Uma alegria profunda me envolveu espírito. Mas, instintivamente, me lembrei do meu trabalho nas Câmaras. E, adiv inhando meus pensamentos, o Ministro disse: - Você tem uma boa quantidade de horas extras a seu favor. Não será difícil conseguir que Genésio autorize sua ausência, depois de um ano de trabalho ativo. Cheio de alegria, agradeci chorando e rindo ao mesmo tempo. Ía, enfim, rever a esposa e os filhos queridos. " André Luiz," VOLTANDO PARA CASA Como a criança que acompanha quem a orienta, cheguei à minha cidade, com a incrível sensação do viajante que volta à terra natal depois de muito tempo longe. Sim, a pai sagem não havia mudado muito. As antigas árvores do bairro, o mar, o mesmo céu, o mesmo perfume incerto. Tonto de alegria, não percebi mais o rosto de D. Laura, que demonstrava muita preocupação, e despedi -me do grupo que continuaria viagem. Clarêncio abr açou -me e disse: - Você tem uma semana. Passarei por aqui todos os dias para vê -lo, enquanto cuido dos detalhes da reencarnação de Laura. Se quiser ir a “Nosso Lar”, aproveite as minhas visitas. Tudo de bom, André! Uma última palavra de despedida à mãe d e Lísias e fiquei sozinho, respirando profundamente o ar de outros tempos. Não demorei muito para reparar nos detalhes e atravessr rapidamente algumas ruas em direção à minha casa. O coração batia agitado, à medida que chegava mais perto do grande portão de entrada. O vento sussurava suavemente nas árvores do parque, como antigamente. Azáleas e rosas desabrochavam, saudando a primavera. Em frente à porta de entrada, via -se a linda palmeira que eu e Zélia havíamos plantado em nosso primeiro aniversário de c asamento. Tonto de felicidade, entrei. Mas estava tudo muito diferente. Onde estavam os antigos móveis de jacarandá? E o grande retrato onde eu, Zélia e os meninos aparecíamos tão bem? Alguma coisa me angustiava profundamente. O que havia acontecido? Come cei a cambalear de emoção. Fui à sala de jantar, onde encontrei minha filha mais nova, já uma jovem em idade de casar -se. E, quase na mesma hora, vi Zélia saindo do quarto com um senhor que, à primeira vista, me pareceu ser um médico. Gritei minha alegria com toda a força que tinha, mas as palavras pareciam ecoar pela casa sem chegar ao ouvido das pessoas. Entendi a situação e me calei, decepcionado. Abracei minha esposa, com carinho e saudade imensos, mas Zélia parecia completamente alheia ao meu gesto de amor. Muito atenta, perguntou ao senhor alguma coisa que não pude compreender imediatamente. Ele, baixando a voz, respondeu, com respeito: - Só amanhã vou poder dar um diagnóstico seguro, já que a pneumonia está muito complicada por causa da pressão alt a. Todo cuidado é pouco. Dr. Ernesto precisa de repouso absoluto. Quem era aquele Dr. Ernesto? Fiquei perdido num mar de dúvidas, quando ouvi minha esposa pedir ansiosa: - Mas, doutor, por favor, cure -o. Peço que o salve! Não vou aguentar ficar viúva outra vez. Zélia chorava e esfregava as mãos, demonstrando imensa angústia. Nem um raio teria me fulminado com tanta violência. Outro homem havia ocupado minha casa. Zélia havia me esquecido. A casa não me pertencia mais. Valia a pena ter esperado tanto tem po para sofrer tanta desilusão? Corri ao meu quarto, notando estava decorado com outros móveis. Na cama, estava um homem maduro, em grave quadro estado de saúde. Ao lado dele, três figuras negras íam e vinham, querendo complicar seu quadro. Na hora, quis odiar o intruso com todas as forças, mas já não era o mesmo de outros tempos. Deus havia me chamado para os ensinamentos de amor, fraternidade e perdão. Percebi que o doente estava rodeado de entidades inferiores e maléficas, mas não consegui ajudá -lo imed iatamente. Sentei -me, desiludido e triste, vendo Zélia entrar e sair do quarto várias vezes, acariciando o doente com a mesma atenção que dedicava a mim em outros tempos. Depois de algumas horas de sofrimento e reflexão, voltei, tonto, à sala de jantar, o nde " André Luiz," encontrei minhas filhas conversando. As surpresas continuavam. A mais velha havia se casado e tinha um bebê no colo. E meu filho? Onde estava? Zélia deu instruções cuidadosas a uma enfermeira e veio conversar com mais calma com as filhas. - Vim ver v ocês, mamãe. – disse a mais velha – Não só para saber do Dr. Ernesto, mas também porque hoje sinto muitas saudades do papai. Desde cedo, não sei por quê, penso o tempo todo nele. É uma coisa que não sei explicar... As lágrimas não a deixaram terminar a fr ase. Zélia, para minha surpresa, falou com a filha, autoritariamente: - Ora essa! Era só o que me faltava!... Como se não bastasse a aflição em que estou, tenho que tolerar suas perturbações. Que saudosismo é esse, minha filha? Já proibi vocês de fazer q ualquer alusão a seu pai nesta casa. Você não sabe que Ernesto não gosta disso? Já vendi tudo que nos lembrava o passado esquecido, mudei as paredes, e você não pode me ajudar com isso? A filha mais nova interveio, dizendo: - Desde que ela começou a se i nteressar pelo maldito Espiritismo, vive com essas bobagens na cabeça. Onde já se viu tamanho absurdo? Essa história dos mortos voltarem é o cúmulo! Embora ainda estivesse chorando, a outra falou: - Não estou falando de convicções religiosas. Por acaso é crime sentir saudades de papai? Vocês não o amam também, não têm sentimento? Se papai estivese conosco, mamãe, seu único filho não estaria fazendo tanta loucura por aí. - Ora, ora... – falou Zélia nervosa e irritada – Cada um tem o destino que Deus lhe dá. Não se esqueça de que André está morto. Não me venha com queixas e lágrimas por um passado que não pode ser mudado. Fui para perto de minha filha e acalmei -a, dizendo palavras de coragem e consolo que ela não ouviu, mas captou de forma subjetiva, como pensamentos agradáveis. Que situação! Agora entendia por quê meus verdadeiros amigos haviam adiado tanto a minha visita ao lar. Decepções e tristeza me esperavam. Minha casa me parecia um patrimônio que ladrões e vermes haviam transformado. Nem bens, nem títulos, nem afetos! Só uma das filhas continuava ligada ao meu antigo e sincero amor. Nem os anos de sofrimento logo depois da morte haviam me causado tanta dor. Anoiteceu e amanhaceu novamente e eu continuava na mesma situação, ouvindo e vendo coisas que nunca poderia esperar. No final da tarde, Clarêncio passou por lá para me dizer algumas palavras de amizade. Percebendo meu estado, disse com carinho: - Entendo a sua tristeza e sinto -me alegre por esta oportunidade. Não tenho novas orientações. Qual quer conselho de minha parte agora seria impulsivo. Só não posso esquecer de dizer que aquela recomendação de Jesus para que amemos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, é sempre válida e sempre virá acompanhada de verdadeiros milagr es de felicidade e compreensão, quando sinceramente vivida em nossos caminhos. Agradeci emocionado e pedi que não me deixasse sem a ajuda necessária. Clarêncio sorriu e se despediu. Então, diante da realidade, completamente só para demonstrar minhas con quistas, comecei a pensar com mais serenidade na importância das palavras evangélicas. Afinal de contas, por que condenar o comportamento de Zélia? E se fosse eu que tivesse ficado viúvo? Por acaso, teria aguentado ficar tanto tempo sozinho? Náo teria feit o qualquer coisa para justifivar outro casamento? E o pobre doente? Como e por quê odiá -lo? Não era também meu irmão na casa de Deus? Será que as coisas não estariam pior em casa se Zélia não tivesse aceitado casar -se com ele? Assim sendo, era necessário l utar contra o egoísmo feroz. Jesus me apontava outros caminhos. Não podia agir como homem encarnado. Minha família não era só uma esposa e três filhos na Terra. Era, sim, centenas de doentes que estavam nas Câmaras de Retificação e, agora, também todos os seres do " André Luiz," universo. Com outros pensamentos, senti que o amor começava a brotar das feridas que a relidade havia me causado. " André Luiz," CIDADÃO DE ""NOSSO LAR"" Na segunda noite, estava exausto. Começava a entender o valor do amor e do entendimento mútuos como alimentos espirituais. Em “Nosso Lar”, trabalhava vários dias seguidos, sem precisar me alimentar, treinando a elevação espiritual a que muitos de nós se dedicam. Ficava satisfeito com a presença dos amigos qu eridos, com o seu carinho, a absorção do ar e da água carregados de fluidos sublimados, mas ali não via nada além de um campo de batalha escuro, onde as pessoas queridas haviam se transformado em carrascos. As importantes reflexões que a palavra de Clarênc io me inspiravam, davam -me alguma tranquilidade. Finalmente entendia as necessidades humanas. Não era proprietário de Zélia, mas seu irmão e amigo. Não era dono de meus filhos, mas, sim, seu companheiro de jornada. Lembrei que, uma vez, D. Laura havia me dito que toda criatura, quando em prova, deveria fazer como a abelha, buscando as flores da vida que, em nosso caso, são as almas nobres que guardamos na lembrança, tirando de cada uma os bons exemplos para obter o mel da sabedoria. Apliquei o conselho a mim mesmo e comecei me lembrando de minha mãe. Ela não ía se sacrificar por meu pai, a ponto de adotar mulheres infelizes como filhas do coração? “Nosso Lar” estava cheio de bons exemplos. A Ministra Veneranda trabalhava há séculos sucessivos pelo grupo es piritual mais ligado ao seu coração. Narcisa se sacrificava nas Câmaras para poder conseguir autorização para reencarnar em tarefa de auxílio. D. Hilda havia vencido o dragão do ciúme inferior. E a demonstração de fraternidade dos outros companheiros da co lônia? Clarêncio vinha me aconselhando como um pai, a mãe de Lísias havia me recebido como um filho, Tobias me tratava como um irmão. Cada companheiro de minhas novas experiências se erguia como nobre exemplo ao meu espírito. Tentei me abstrair das consid erações de aparente ingratidão que ouvia da família e decidi colocar o amor divino acima de tudo, colocando, ao mesmo tempo, acima de todos os meus sentimentos pessoais, as necessidades dos meus semelhantes. Cansado como estava, fui ao quarto do doente, q ue estava piorando a cada minuto. Zélia segurava sua cabeça, chorando muito: - Ernesto, Ernesto, tenha pena de mim, querido! Não me deixe sozinha! O que é que vou fazer sem você? O doente acariciava suas mãos e respondia com carinho, apesar da dificuldad e para respirar. Pedi a Deus que me desse forças para manter a compreensão de que necessitava e passei a vê -los como dois irmãos meus. Reconheci que Zélia e Ernesto se amavam muito. E, se de fato me considerava irmão deles, devia ajudá -los como me fosse possível. Comecei o trabalho procurando esclarecer os espíritos perturbados que se mantinham ligados ao doente. Mas tinha muita dificuldade, pois estava muito abatido. Nessa situação angustiante, lembrei -me de certa lição de Tobias, quando me disse: “Aqui em “Nosso Lar”, nem todos precisam do aeróbus para se locomover, porque os habitantes mais elevados da colônia são capazes de se deslocar flutuando no ar. E nem todos necessitam de aparelhos de comunicação para conversar a distância, por estarem em perfei ta harmonia de pensamentos entre si. Aqueles que estão sintonizados assim, podem conversar à vontade mentalmente, apesar da distância. Lembrei o quanto seria bom ter a colaboração de Narcisa e tentei. Concentrei -me em profunda oração a Deus e, nas vibraçõ es da prece, me dirigi a ela pedindo socorro. Contei -lhe, em pensamento, o que estava acontecendo comigo, informando minhas intenções de ajudar, e insisti para que não deixasse de me socorrer. Foi então que aconteceu o que eu não esperava. " André Luiz," Depois de m inutos, mais ou menos, quando eu ainda não havia terminado minha prece, alguém me tocou de leve no ombro. Era Narcisa, que me atendia sorrindo: - Ouvi seu apelo, meu amigo, e vim ao seu encontro. Fiquei muito feliz. A mensageira do bem olhou o quadro, c ompreendeu a gravidade da situação e disse: - Não temos tempo a perder. Antes de qualquer coisa, aplicou passes de alívio ao doente, isolando -o das formas escuras, que se afastaram imediatamente. Em seguida, me chamou decidida: - Vamos à natureza. Acom panhei -a sem vacilar e ela, notando meu espanto, disse: - Não é só o homem que emite e recebe fluidos. As forças naturais fazem o mesmo, nos vários reinos em que se subdividem. Para o caso do nosso doente, precisamos das árvores. Elas vão nos ajudar com e ficiência. Admirado com a nova lição, segui com ela em silêncio. Quando chegamos a um local onde havia árvores enormes, Narcisa chamou alguém, com palavras que não pude entender. Logo em seguida, oito entidades espirituais atendiam ao chamado. Muito surpr eso, vi Narcisa perguntar onde poderia encontrar mangueiras e eucaliptos. De posse da informação dos amigos, que eram totalmente estranhos para mim, a enfermeira explicou: - Estes irmãos que nos atenderam são trabalhadores do reino vegetal. E, diante da minha surpresa, concluiu: - Como você vê, não existe nada inútil na casa de Deus. Em toda parte há quem ensine, se houver quem precise aprender. E onde surge uma dificuldade, surge também a solução. O único infeliz na obra divina é o espírito irresponsáve l que se condenou às trevas da maldade. Em alguns minutos, Narcisa preparou certa substância com as emanações do eucalipto e da mangueira e, durante toda a noite, aplicamos aquele remédio ao doente, pela respiração comum e pelos poros. Ele melhorou muito . Pela manhã, logo cedo, o médico afirmou, muito surpreso: - Ele teve uma reação incrível esta noite! Um verdadeiro milagre da natureza. Zélia estava radiante. A casa se encheu de alegria novamente. De minha parte, sentia grande satisfação na alma. Profu ndo alívio e belas esperanças me reanimavam o ser. Percebia que antigos laços de inferioridade haviam se rompido dentro de mim, para sempre. Nesse dia, voltei a “Nosso Lar” com Narcisa e, pela primeira vez, consegui flutuar. Em apenas alguns minutos, venc íamos grandes distâncias. Sentia muita alegria interior. Contando a Narcisa a leveza que sentia, ouvi -a dizer: - Em “Nosso Lar”, grande parte dos companheiros poderia dispensar o aeróbus e transportar -se, à vontade, nas áreas de nosso domínio vibratório. Mas, como a maioria ainda não tem essa capacidade, todos evitam usá -la em nossas vias públicas. Essa decisão, no entanto, não impede que a usemos quando estamos longe da colônia, quando é preciso ganhar tempo e distância. Novo entendimento e nova alegria me preenchiam o espírito. Orientado por Narcisa, ía de casa à colônia e vice -versa, sem qualquer dificuldade, intensificando o tratamento a Ernesto, que havia melhorado muito, com rapidez. Clarêncio me visitava todos os dias, mostrando -se satisfeito com o meu trabalho. No final da semana, terminava minha primeira licença dos serviços das Câmaras de Retificação. Minha alegria contagiava Zélia e Ernesto que agora eram como meus irmãos. Assim sendo, estava na hora de voltar ao meu posto. Em meio à luz da ta rde, tomei o caminho de volta a “Nosso Lar”, completamente modificado. Naqueles rápidos sete dias havia aprendido belas lições práticas de fraternidade e compreensão legítimas. A bela tarde me inspirava elevados pensamentos. " André Luiz," - Como é grande o amor de Deus ! – dizia, falando sozinho. – Com que sabedoria Ele coloca as pessoas e as coisas no lugar certo! Com que amor atende a todas as criaturas! Mas, alguma coisa me tirou dos meus pensamentos. Mais de companheiros vinham ao meu encontro. Todos me cumprim entaram, generosos e gentis. Lisias, Lascínia, Narcisa, Silveira, Tobias, Salústio e vários outros das Câmaras estavam ali. Não sabia o que fazer, pego de surpresa. Foi, então, que o Ministro Clarêncio, à frente de todos, estendeu a mão para mim e disse: - Até hoje, André, você era meu protegido na cidade. De hoje em diante, porém, em nome da Governadoria, declaro -o cidadão de “Nosso Lar”. Por que tanta coisa se meu sucesso era tão pequeno? Não consegui reter as lágrimas que me embargaram a voz. E, pensa ndo na grandeza da bondade divina, abracei Clarêncio, chorando de gratidão e alegria. " André Luiz," Os Mensageiros Lendo este livro, que relaciona algumas experiências de mensage iros espirituais, certamente muitos leitores concluirão, com os velhos conceitos da Filosofia, que “tudo está no cérebro do homem ”, em virtude da materialidade relativa das paisagens, observações, serviços e acontecimentos. Forçoso é reconhecer, todavia, q ue o cérebro é o aparelho da razão e que o homem desencarnado, pela simples circunstância da morte física, não penetrou os domínios angélicos, permanecendo diante da própria consciência, lutando por iluminar o raciocínio e preparando -se para a continuidade do aperfeiçoamento noutro campo vibratório. Ninguém pode trair as leis evolutivas. Se um chimpanzé, guindado a um palácio, encontrasse recursos para escrever aos seus irmãos de fase evolucionária, quase não encontraria diferenças fundamentais para relacio nar, ante o senso dos semelhantes. Daria notícias de uma vida animal aperfeiçoada e talvez a única zona inacessível às suas possibilidades de definição estivesse justamente na auréola da razão que envolve o espírito humano. Quanto às formas de vida, a muda nça não seria profundamente sensível. Os pelos rústicos encontram sucessão nas casimiras e sedas modernas. A Natureza que cerca o ninho agreste é a mesma que fornece estabilidade à moradia do homem. A fauna ter-se-ia transformado na edificação de pedra. O prado verde liga -se ao jardim civilizado. A continuação da espécie apresenta fenômenos quase idênticos. A lei da herança continua, com ligeiras modificações. A nutrição demonstra os mesmos trâmites. A união de família consanguínea revela os mesmos traços f ortes. O chimpanzé, desse modo, somente encontraria dificuldade para enumerar os problemas do trabalho, da responsabilidade, da memória enobrecida, do sentimento purificado, da edificação espiritual, enfim, relativa à conquista da razão. Em vista disso, nã o se justifica a estranheza dos que leem as mensagens do teor das que André Luiz, endereçadas aos estudiosos devotados à construção espiritual de si mesmos. O homem vulgar costuma estimar as expectativas ansiosas, à espera de acontecimentos espetaculares, esquecido de que a Natureza não se perturba para satisfazer a pontos de vista da criatura. A morte física não é salto do desequilíbrio, e passo da evolução, simplesmente. À maneira do macaco, que encontra no ambiente humano uma vida " André Luiz," animal enobrecida, o ho mem que, após a morte física, mereceu o ingresso nos círculos elevados do invisível, encontra uma vida humana sublimada. Naturalmente, grande número de problemas, referentes à Espiritualidade Superior, aí espera a criatura, desafiando -lhe o conhecimento para a ascensão sublime aos domínios iluminados da vida. O progresso não sofre estacionamento e a alma caminha, incessantemente, atraída pela Luz Imortal. No entanto, o que nos leva a grafar este prefácio singelo, não é a conclusão filosófica, mas a necessid ade de evidenciar a santa oportunidade de trabalho do leitor amigo, nos dias que correm. Felizes os que buscarem na revelação nova o lugar de serviço que lhes compete, na Terra, consoante a Vontade de Deus. O Espiritismo cristão não oferece ao homem tão so mente o campo de pesquisa e consulta, no qual raros estudiosos conseguem caminhar dignamente, mas, muito mais que isso, revela a oficina de renovação, onde cada consciência de aprendiz deve procurar sua justa integração com a vida mais alta, pelo esforço interior, pela disciplina de si mesma, pelo autoaperfeiçoamento. Não falta concurso divino ao trabalhador de boa vontade. E quem observar o nobre serviço de um Aniceto, reconhecerá que não é fácil prestar assistência espiritual aos homens. Trazer a colabora ção fraterna dos planos superiores aos Espíritos encarnados não é obra mecânica, enquadrada em princípios de menor esforço. Claro, portanto, que, para recebê -la, não poderá o homem fugir aos mesmos imperativos. É indispensável lavar o vaso do coração para receber a “água viva” , abandonar envoltórios infer iores, para vestir os “trajes nu pciais” da luz eterna. Entregamos, pois, ao leitor amigo, as novas páginas de André Luiz, satisfeitos por cumprir um dever. Constituem o relatório incompleto de uma semana de trabalho espiritual dos mensageiros do bem, junto aos homens e, acima de tudo, mostram a figura de um emissário consciente e benfeitor generoso em Aniceto, destacando as necessidades de ordem moral no quadro de serviço dos que se consagram às atividades n obres da fé. Se procur as, amigo, a luz espiritual; se a animalidade já te cansou o coração, lembra -te de que, em Espiritualismo, a investigação conduz sempre ao Infinito, tanto no que se refere ao campo infinitesimal, como à esfera dos astros distantes, e que só a transformação de ti mesmo, à luz da Espiritualidade Superior, te facultará acesso as fontes da Vida Divina. E, sobretudo, recorda que as mensagens edificantes do Além não se destinam apenas à expressão emocional, mas, acima de tudo, ao teu senso de filho de Deus, para que faças o inventário de tuas próprias realizações e te integres, de fato, na responsabilidade de viver diante do Senhor. Em-manuel Pedro Leopoldo, de fevereiro de . " André Luiz," Renovação Desligando -me dos laços inferiores que me prendiam às atividades terrestres, elevado entendimento felicitou -me o espírito. Semelhante libertação, contudo, não se fizera espontânea. Sabia, no fundo, quanto me custara abandonar a paisagem doméstica, suportar a incompreensão da esposa e a divergência dos filhos amados. Guar dava a certeza de que amigos espirituais, abnegados e poderosos, me haviam auxiliado a alma pobre e imperfeita, na grande transição. Antes, a inquietude relativa à companheira torturava -me incessantemente o coração; mas, agora, vendo -a profundamente identificada com o segundo marido, não via recurso outro que procurar diferentes motivos de interesse. Foi assim que, eminentemente surpreendido, observei minha própria transformação, no curso dos acontecimentos. Experimentava o júbilo da descoberta de mim mesmo. Dantes, vivia à feição do caramujo, segregado na concha, impermeável aos grandiosos espetáculos da Natureza, rastejando no lodo. Agora, entretanto, convencia -me de que a dor agira em minha construção mental, à maneira do alvião pesado, cujos golpes eu não entendera de pronto. O alvião quebrara a concha de antigas viciações do sentimento. Libertara -me. Expusera -me o organismo espiritual ao sol da Bondade Infinita. E comecei a ver mais alto, alcançando longa dis tância. Pela primeira vez, cataloguei adversários na categoria de benfeitores. Comecei a fr equen tar, de novo, o ninho da família terrestre, não mais como senhor do círculo doméstico, mas como operário que ama o trabalho da oficina que a vida lhe designou. Não mais procurei, na esposa do mundo, a companheira que não pudera compreender -me e sim a irmã a quem deveria auxiliar, quanto estivesse em minhas forças. Abstive -me de encarar o segundo marido como intruso que modificara meus propósitos, para ver apenas o irmão que necessitava o concurso de minhas experiências. Não voltei a considerar os filhos propriedade minha e sim companheiros muito caros, aos quais me competia estender os benefícios do conhecimento novo, amparando -os espiritualmente na medida de minh as possibilidades. Compelido a destruir meus castelos de exclusivismo injusto, senti que " André Luiz," outro amor se instalava em minh’alma. Órfão de afetos terrenos e conformado com os desígnios superiores que me haviam traçado diverso rumo ao destino, comecei a ouvir o apelo profundo e divino da Consciência Universal. Somente agora, percebia quão distanciado vivera das leis sublimes que regem a evolução das criaturas. A Natureza recebia -me com transportes de amor. Suas vozes, agora, eram muito mais altas que as dos meu s interesses isolados. Conquistava, pouco a pouco, o júbilo de escutar -lhe os ensinamentos misteriosos no grande silêncio das coisas. Os elementos mais simples adquiriam, a meus olhos, extraordinária significação. A colônia espiritual, que me abrigara gene rosamente, revelava novas expressões de indefinível beleza. O rumor das asas de um pássaro, o sussurro do vento e a luz do Sol pareciam dirigir -se à minh’alma, enchendo -me o pensamento de prodigiosa harmonia. A vida espiritual, inexprimível e bela, abrira -me os pórticos resplandecentes. Até então, vivera em “Nosso Lar” como hóspede enfermo de um palácio brilhante, tão extremamente preocupado comigo mesmo, que me tornara incapaz de anotar deslumbramentos e maravilhas. A conversação espiritualizante tornara -se-me indispensável. Aprazia -me, antigamente, torturar a própria alma com as reminiscências da Terra. Estimava as narrativas dramáticas de certos companheiros de luta, lembrando o meu caso pessoal e embriagando -me nas perspectivas de me agarrar, novamente, à parentela do mundo, valendo -me de laços inferiores. Mas agora... perdera totalmente a paixão pelos assuntos de ordem menos digna. As próprias descrições dos enfermos, nas Câmaras de Retificação, figurava m-se-me desprovidas de maior interesse. Não mais de sejava informar -me da procedência dos infelizes, não indagava de suas aventuras nas zonas mais baixas. Buscava irmãos necessitados. Desejava saber em que lhes poderia ser útil. Identificando essa profunda transformação, falou -me Narcisa certo dia: – André, meu amigo, você vem fazendo a renovação mental. Em tais períodos, extremas dificuldades espirituais nos assaltam o coração. Lembre -se da meditação no Evangelho de Jesus. Sei que você experimenta intraduzível alegria ao contato da harmonia universal, após o abandono de suas criações caprichosas, mas reconheço que, ao lado das rosas do júbilo, defrontando os novos caminhos que se descerram para sua esperança, há espinhos de tédio nas margens das velhas estradas inferiores que você vai deixando para trás. Seu coração é uma taça iluminada aos raios do alvorecer divino, mas vazia dos sentimentos do mundo, que a encheram por séculos consecutivos. Não poderia, eu mesmo, formular tão exata definição do meu estado espiritual. Narcisa tinha razão. Suprema alegria inu ndava -me o espírito, ao lado de incomensurável sensação de tédio, quanto às situações da natureza inferior. Sentia -me liberto de pesados grilhões, porém, não mais possuía o lar, a esposa, os filhos amados. Regressava fr equen temente ao círculo doméstico e a í trabalhava pelo bem de todos, mas sem qualquer estimulo. Minha devotada amiga acertara. Meu coração era bem um cálice luminoso, porém, vazio. A " André Luiz," definição comovera -me. Vendo -me as lágrimas silenciosas, Narcisa acentuou: – Encha sua taça nas águas eternas daquele que é o Doador Divino. Além disso, André, todos nós somos portadores da planta do Cristo, na terra do coração. Em períodos como o que você atravessa, há mais facilidade para nos desenvolvermos com êxito, se soubermos aproveitar as oportunidades. Enquanto o espírito do homem se engolfa apenas em cálculos e raciocínios, o Evangelho de Jesus não lhe parece mais que repositó rio de ensinamentos comuns; mas, quando se lhe despertam os sentimentos superiores, verifica que as lições do Mestre têm vida própria e revelam expressões desconhecidas da sua inteligência, à medida que se esforça na edificação de si mesmo, como instrument o do Pai. Quando crescemos para o Senhor, seus ensinos crescem igualmente aos nossos olhos. Vamos fazer o bem, meu caro! Encha seu cálice com o bálsamo do amor divino. Já que você pressente os raios da alvorada nova, caminhe confiante para o dia!... E, con hecendo meu temperamento de homem, amante do serviço movimentado, acrescentou, generosa: – Você tem trabalhado bastante aqui nas Câmaras, onde me preparo, por minha vez, considerando o futuro próximo, na carne. Não poderei, portanto, acompanhá -lo, mas crei o deve você aproveitar os novos cursos de serviço, instalados no Ministério da Comunicação. Muitos companheiros nossos habilitam -se a prestar concurso na Terra, nos campos visíveis e invisíveis ao homem, acompanhados, todos eles, por nobres instrutores. Po deria você conhecer experiências novas, aprender muito e cooperar com excelente ação individual. Porque não tenta? Antes que pudesse agradecer o alvitre valioso, Narcisa foi chamada ao interior das Câmaras, a serviço, deixando -me dominado por esperanças diferentes de quantas abrigara até então, relativamente às minhas tarefas. " André Luiz," Aniceto Comunicando meus novos propósitos a Tobias, verifiquei a satisfação que lhe transpareceu do olhar. – Fique tranquilo – disse, bondoso –, você possui a quantidade necessá ria de horas de trabalho para justificar o pedido. Temos, por nossa vez, grande número de colegas na Comunicação. Não será difícil localizá -lo com instrutores amigos. Conhece o nosso estimado Aniceto? – Não tenho esse prazer. – É antigo companheiro de serv iço – continuou informando, amável – e esteve conosco na Regeneração, algum tempo. Em seguida, devotou -se a tarefas sacrificiais no Ministério do Auxílio e, hoje, é instrutor competente na Comunicação, onde vem prestando concurso respeitável. Conversarei, a respeito, com o Ministro Genésio. Não tenha dúvidas. Seu desejo, André, é muito nobre aos nossos olhos. O prestimoso companheiro deixou -me num mar de contentamento indefinível. Comecei a compreender o valor do trabalho. A amizade de Narcisa e Tobias era tesouro de inapreciável grandeza, que o espírito de serviço me havia descortinado ao coração. Novo setor de luta desdobrar -se-ia à minh’alma. Não deveria perder a oportunidade. “Nosso Lar” estava cheio de entidades ansiosas por aquisições dessa natureza. N ão seria justo entregar -me, de boa vontade, ao novo aprendizado? Além disso, certo da minha volta à carne, em futuro talvez não distante, a providência constituiria realização de profundo interesse ao meu aproveitamento geral. Misteriosa alegria dominava -me todo, sublimada esperança iluminava -me os sentimentos. Aquele desejo ardente de colaborar em benefício dos outros, que Narcisa me acendera no íntimo, parecia encher, agora, a taça vazia do meu coração. Trabalharia, sim. Conheceria a satisfação dos cooper adores anônimos da felicidade alheia. Procuraria a prodigiosa luz da fraternidade, através do serviço às criaturas. À noite, fui procurado por Tobias, sempre generoso, trazendo -me a confortadora aquiescência do Ministro Genésio. Com sorrisos afetuosos, convidou -me a acompanhá -lo. " André Luiz," Conduzir -me-ia à presença de Aniceto, para conversarmos relativamente ao assunto. Emocionadíssimo, segui para a residência da nova personagem que se ligaria fundamente à minha vida espiritual. Aniceto, ao contrário de Tobias, não s e consorciara em “Nosso Lar”. Vivia ao lado de cinco amigos que lhe foram discípulos na Terra, em edifício confortável, encravado entre árvores frondosas e tranq uilas, que pareciam postas ali para protegerem extenso e maravilhoso roseiral. Recebeu -nos com extrema gentileza, o que me causou excelente impressão. Aparentava ele a calma refletida do homem que chegou à idade madura, sem fantasias da mocidade inexperiente. Embora lhe transparecesse muita energia no rosto, revelava o otimismo sadio do coração chei o de ideais sacrossantos. Muito sereno, recebeu todas as alegações do meu benfeitor, dirigindo -me, de quando em vez, olhares amistosos e indagadores. Tobias falou longamente, comentando minha posição de ex -médico no plano terráqueo, agora em reajustamento de valores no plano espiritual. Depois de examinar -me com atenção, o orientador aduziu: – Não há o que embargar, meu prezado Tobias. No entanto, é preciso reconhecer que a solução depende do candidato. Sabe você que estamos aqui na Instituição do Homem Nov o. – André está pronto e disposto – adiantou o amigo, carinhosamente. Aniceto fixou em mim o olhar penetrante e advertiu: – Nosso serviço é variado e rigoroso. O departamento de trabalho, afeto à nossa responsabilidade, aceita somente os cooperadores inter essados na descoberta da felicidade de servir. Comprometemo -nos, mutuamente, a calar toda espécie de reclamação. Ninguém exige expressão nominal nas obras úteis realizadas e todos respondem por qualquer erro cometido. Achamo -nos, aqui, num curso de extinçã o das velhas vaidades pessoais, trazidas do mundo carnal. Dentro do mecanismo hierárquico de nossas obrigações, interessamo -nos tão somente pelo bem divino. Consideramos que toda possibilidade construtiva vem de nosso Pai e esta convicção nos auxilia a esq uecer as exigências descabidas de nossa personalidade inferior. Identificando -me a surpresa, Aniceto esboçou um gesto significativo e continuou: – Nos trabalhos de emergência, destinados à preparação de colaboradores ativos, tenho um quadro suplementar de auxiliares, constante de cinq uenta lugares para aprendizes. No momento, disponho de três vagas. Há intensa atividade de instrução, necessária a servidores que cooperarão em socorros urgentes, na Terra. Orientadores há que se fazem acompanhar, nos serviços da crosta, por todo o pessoal em aprendizado, mas eu adoto processo diferente. Costumo dividir a classe em grupos especializados, de acordo com a profissão familiar aos estudantes, para melhor aproveitamento no preparo e na prática. Tenho, presentemente, u m sacerdote católico -romano, um médico, seis engenheiros, quatro professores, quatro enfermeiras, dois pintores, onze irmãs especializadas em trabalhos domésticos e dezoito operários diversos. Em “Nosso Lar”, a ação que nos compete é desdobrada de maneira coletiva; mas, " André Luiz," nos dias de aplicação na crosta terrestre, não me faço seguido de todos. Naturalmente, não se negará ao engenheiro, ou ao operário, o ensejo de aquisição de conhecimentos outros, que transcendem a paisagem de realizações que lhes cabem; mas, tais manifestações devem constar do quadro de esforços espontâneos, no tempo vasto que cada qual aufere para descanso e entretenimento. Considerando, pois, o serviço atual, temos interesse em aproveitar as horas no limite máximo, não só em beneficio dos q ue necessitam de nosso concurso fraternal, como também a favor de nós mesmos, no que toca à eficiência. Ponderei, admirado, o curioso processo, enquanto o orientador fazia longa pausa. Após mergulhar toda a atenção em mim, como se desejasse perceber o efeito de suas palavras, Aniceto continuou: – Este método não visa apenas a criar obrigações para os outros. Aqui, como na Terra, quem alcança a melhor porção, nas aulas e demonstrações, não é propriamente o discípulo e sim o instrutor, que enriquece observaçõ es e intensifica experiências. Quando o Ministro Espiridião me chamou a exercer o cargo, aceitei -o sob a condição de não perder tempo na melhoria e educação de mim mesmo. Desse modo, não preciso alongar -me noutras considerações. Creio haver dito o bastante . Se está, portanto, disposto, não posso recusar -me a aceitá -lo. – Compreendo seus nobres programas – respondi, comovido –, será honra para mim a possibilidade de acompanhá -lo e receber suas determinações de serviço. Aniceto esboçou a expressão fisionômica de quem atinge a solução desejada, e concluiu: – Pois bem; poderá começar amanhã. E, dirigindo -se a Tobias, acrescentou: – Encaminhe o nosso amigo, amanhã cedo, ao Centro de Mensageiros. Lá estaremos em estudo ativo e providenciarei para que André seja bonificado pelas tabelas da Comunicação. Agradecem os, satisfeitos, e, logo em seguida a Tobias, despedi -me, alimentando novas esperanças. " André Luiz," No Centro de Mensageiros No dia seguinte, após ouvir longas ponderações de Narcisa, demandei o Centro de Mensageiros, no Ministério da Comunicação. Acompanhava -me o prestimoso Tobias, não obstante os imensos trabalhos que lhe ocupavam o circulo pessoal. Deslumbrado, atingi a série de majestosos edifícios de que se compõe a sede da instituição. Julguei encontrar algumas universidades reunidas, tal a enorme extensão deles. Pátios amplos, povoados de arvoredo e jardins, convidavam a sublimes meditações. Tobias arrancou -me do encantamento, exclamando: – O Centro é muito vasto. Atividades complexas são desempenhadas neste departamento de nossa colônia espiritual. Não cre ia esteja resumida a instituição nos edifícios sob nossos olhos. Temos, nesta parte, tão somente a administração central e alguns pavilhões destinados ao ensino e à preparação em geral. – Mas esta organização imensa restringe -se ao movimento de transmissão de mensagens? – perguntei, curioso. O companheiro sorriu significativamente e esclareceu: – Não suponha se encontre aqui localizado o serviço de correio, simplesmente. O Centro prepara entidades a fim de que se transformem em cartas vivas de socorro e aux ílio aos que sofrem no Umbral, na Crosta e nas Trevas. Acreditaria, porventura, que tanto trabalho se destinasse apenas a mera movimentação de noticiário? Amplie suas vistas. Este serviço é a cópia de quantos se vêm fazendo nas mais diversas cidades espiri tuais dos planos superiores. Preparam -se aqui numerosos companheiros para a difusão de esperanças e consolos, instruções e avisos, nos diversos setores da evolução planetária. Não me refiro tão só a emissários invisíveis. Organizamos turmas compactas de ap rendizes para a reencarnação. Médiuns e doutrinadores saem daqui às centenas, anualmente. Tarefeiros do conforto espiritual encaminham -se para os círculos carnais, em quantidade considerável, habilitados pelo nosso Centro de Mensageiros. – Que me diz? – interroguei, surpreso. – Segundo seus informes, os trabalhos de esclarecimento espiritual devem estar muitíssimo adiantados no mundo!... " André Luiz," Fixou Tobias expressão singular, sorriu tranq uilamente e explicou: – Você não ponderou, todavia, meu caro André, que essa preparação não constitui, ainda, a realização propriamente dita. Saem milhares de mensageiros aptos para o Serviço, mas são muito raros os que triunfam. Alguns conseguem execução parcial da tarefa, outros muitos fracassam de todo. O serviço legítimo não é fantasia. É esforço sem o qual a obra não pode aparecer nem prevalecer. Longas fileiras de médiuns e doutrinadores para o mundo carnal partem daqui, com as necessárias instruções, porque os benfeitores da Espiritualidade Superior, para intensificarem a redenção humana, precisam de renúncia e de altruísmo. Quando os mensageiros se esquecem do espírito missionário e da dedicação aos semelhantes, costumam transformar -se em instrumentos inúteis. Há médiuns e mediunidade, doutrinadores e doutrina, como existem a enxada e os trabalhadores. Pode a enxada ser excelente, mas, se falta espírito de serviço no cultivador, o ganho da enxada será inevitavelmente a ferrugem. Assim acontece com as faculdades psíquicas e com os grandes conhecimentos. A expressão mediúnica p ode ser riquíssima; entretanto, se o dono não consegue olhar além dos interesses próprios, fracassará fatalmente na tarefa que lhe foi conferida. Acredite, meu caro, que todo trabalho construtivo tem as batalhas que lhe dizem respeito. São muito escassos o s servidores que toleram as dificuldades e reveses das linhas de frente. Esmagadora percentagem permanece a distância do fogo forte. Trabalhadores sem conta recuam quando a tarefa abre oportunidades mais valiosas. Algo impressionado, considerei: – Isto me surpreende sobremaneira. Não supunha fossem preparados, aqui, determinados mensageiros para a vida carnal. – Ah! Meu amigo – falou Tobias sorridente –, poderia você admitir que as obras do bem estivessem circunscritas a simples operações automáticas? Nossa visão, na Terra, costuma viciar -se no círculo dos cultos externos, na atividade religiosa. Cremos, por lá, resolver todos os problemas pela atitude suplicante. Entretanto, a genuflexão não soluciona questões fundamentais do espírito, nem a mera adoração à Divindade constitui a máxima edificação. Em verdade, todo ato de humildade e amor é respeitável e santo, e, incontestavelmente, o Senhor nos concederá suas bênçãos; no entanto, é imprescindível considerar que a manutenção e limpeza do vaso, para recolhê -las, é dever que nos assiste. Não preparamos, pois, neste Centro, simples postalistas, mas espíritos que se transformem em cartas vivas de Jesu s para a Humanidade encarnada. Pelo menos, este é o programa de nossa administração espiritual... Calei, emocionado, ponderando a grandeza dos ensinamentos. Meu companheiro, após longa pausa, prosseguiu observando: – Raros triunfam, porque quase todos esta mos ainda ligados a extenso pretérito de erros criminosos, que nos deformaram a personalidade. Em cada novo ciclo de empreendimentos carnais, acreditamos muito mais em nossas tendências inferiores do passado, que nas possibilidades divinas do presente, com plicando sempre o futuro. É desse modo que prosseguimos, por lá, " André Luiz," agarrados ao mal e esquecidos do bem, chegando, por vezes, ao disparate de interpretar dificuldades como punições, quando todo obstáculo traduz oportunidade verdadeiramente preciosa aos que j á tenham “olhos de ver”. A essa altura, alcançamos enorme recinto. Centenas de entidades penetravam no vasto edifício, cujas escadarias galgamos em animada conversação. Os aspectos do maravilhoso átrio impressionavam pela imponente beleza. Espécies de flor es, até então desconhecidas para mim, adornavam colunatas, espalhando cores vivas e delicioso perfume. Quebrando -me o enlevo, Tobias explicou: – As diversas turmas de aprendizes encaminham -se às aulas. Procuremos Aniceto no departamento de instrutores. Atravessamos galerias vastíssimas, sempre defrontados por verdadeiras multidões de entidades que buscavam as aulas, em palestras vibrantes. Em pequeno grupo que parecia manter conversação muito discreta, encontramos o generoso amigo da véspera, que nos abraço u sorridente e calmo. – Muito bem! – disse, alegre e bondoso – esperava o novo aluno, desde a manhãzinha. E em virtude de Tobias alegar muita pressa, o nobre instrutor explicou: – Doravante, André ficará aos meus cuidados. Volte tranq uilo. Despedi -me do co mpanheiro, comovidamente. Notando -me o natural acanhamento, Aniceto determinou a um auxiliar de serviço: – Chame o Vicente em meu nome. E, voltando -se para mim, esclareceu: – Até agora, Vicente é o meu único aprendiz médico. Vocês ficarão juntos, em vista da afinidade profissional. Não haviam decorrido três minutos e tínhamos Vicente diante de nós. – Vicente – falou Aniceto sem afetação –, André Luiz é nosso novo colaborador. Foi também médico nas esferas carnais. Creio, pois, que ambos se encontrarão à von tade, partilhando a mesma experiência. O interpelado abraçou -me, demonstrando extrema generosidade, e, após encorajar -me com belas palavras de estimulo, perguntou ao nosso orientador: – Quando deveremos procurá -lo para os estudos de hoje? Aniceto pensou um instante e respondeu: – Esclareça ao novo candidato os nossos regulamentos e venham juntos para as instruções, após o meio -dia. " André Luiz," O caso Vicente Impossível traduzir meu contentamento com a nova companhia. Vicente, semblante muito calmo, olhar intelige nte e lúcido, irradiava carinho e bondade, sensatez e compreensão. Disse -me de sua alegria por haver encontrado um companheiro médico, alojou -me convenientemente junto dele, demonstrando extrema generosidade fraternal. Era o primeiro colega na profissão, i gualmente recém -chegado das esferas da Crosta, de quem me aproximava de modo direto. Trocamos ideias largamente sobre as surpresas que nos defrontavam. Comentamos as dificuldades oriundas da ilusão terrestre, a miopia da pequena ciência, os problemas profu ndos e sedutores da medicina espiritual. Vicente, conquanto não houvesse feito ainda qualquer visita ao plano dos encarnados, em caráter de serviço, admirava Aniceto extraordinariamente, e punha -me ao corrente dos estudos valiosos a que se entregava junto dele. Estava cheio de conceitos entusiásticos. Em pouco mais de uma hora, nossa intimidade semelhava -se ao sentimento de dois irmãos unidos, desde muito, por laços espirituais, O novo companheiro conquistara -me infinita confiança. Evidenciando muita delica deza, indagou da minha posição perante os parentes terrestres, ao que respondi com a história resumida de minha singular aventura, ao conhecer as segundas núpcias de minha viúva. Imprimi toda a ênfase possível ao meu relatório verbal, sensibilizando -me, profundamente, no curso da narrativa. Em cada pormenor culminante dos fatos, detinha -me de propósito, salientando meus velhos sofrimentos e relacionando dissabores que me pareciam insuperáveis. Vicente ouviu silencioso, sorrindo a intervalos. Quando terminei a comovida exposição, ele pôs -me a destra no ombro e murmurou: – Não se julgue desventurado e incompreendido. Saiba, meu caro André, que você foi muitíssimo feliz. – Como assim? – Sua Zélia respeitou o companheiro até ao fim e o segundo matrimônio, em tai s circunstâncias, não é de admirar. No meu caso, porém, a coisa foi muito pior. E, dado meu justo espanto, o novo amigo continuou: – Explico -me. " André Luiz," Meditou alguns instantes, como quem alinhava reminiscências, e prosseguiu: – Não pode você imaginar como foi in tenso o sonho de amor do meu casamento. Logo após a aquisição do diploma profissional, aos vinte e cinco anos, esposei Rosalinda, exultante de ventura. Não levava à esposa tão somente uma situação material confortadora e sólida, no terreno financeiro, mas também os meus tesouros de afeto e devotamento. Minha felicidade não tinha limites. Em pouco tempo, dois filhinhos enriqueceram -me o lar ditoso. Meu bem -estar era inexprimível. Em virtude das reservas bancárias, não me especializei na clínica, consagrando -me, todavia, apaixonadamente, ao laboratório. Atendendo aos meus pendores, não me foi difícil atrair a confiança de numerosos colegas e vários centros de estudos, multiplicando pesquisas e resultados brilhantes. E Rosalinda era a minha primeira e melhor co laboradora. De quando em quando, notava -lhe o enfado no trato com os tubos de ensaio, mas minha esposa sabia então calar as contrariedades pequeninas, a favor da nossa felicidade doméstica. Parecia compreender -me integralmente. Era, aos meus olhos, a mãe d edicada e companheira sem defeitos. Contávamos dez anos de ventura conjugal, quando meu irmão Eleutério, advogado, solteiro, algo mais velho que eu, deliberou localizar -se junto de nós. Rosalinda foi inexcedível em atenções, considerando que se tratava de pessoa de minha família. Eleutério entrou em nossa casa como irmão. Embora residisse em hotel, compartilhava dos nossos serões caseiros, sempre bem posto e interessado em agradar. Observei, desde então, que minha mulher se modificava pouco a pouco. Exigiu fosse contratada uma auxiliar que a substituísse nos meus serviços, alegando que os nossos filhinhos não dispensavam assistência maternal, mais assídua. Anui, satisfeito. Tratava -se, afinal, de providência interessante ao bem -estar de nossos filhos. Contud o, a transformação de Rosalinda assumiu caráter impressionante. Passou a não comparecer ao laboratório, onde tantas vezes nos abraçávamos, alegremente, ao vermos coroadas de êxito nossas pesquisas mais sérias. Preferia o cinema ou a estação de repouso, em companhia de Eleutério. Isso me entristecia bastante, mas eu não poderia desconfiar da conduta de meu irmão. Fora sempre criterioso, em família, não obstante ousado e filaucioso nas atividades profissionais. Minha vida doméstica, antes tão feliz, passou a ser de solidão assaz amarga, que eu tentava iludir com o trabalho persistente e honesto. Assim corriam as coisas, quando singular transformação me alterou a experiência. Pequena borbulha na fossa nasal, que nunca me trouxera incômodos de qualquer natureza, depois de levemente ferida, tomou caráter de extrema gravidade. Em poucas horas, declarou -se a septicemia. Reuniram -se colegas em verdadeira assembleia , junto de me u leito. Inúteis, todavia, todos os cuidados; anuladas as melhores expressões de assistência. Compreendi que o fim se aproximava, rápido. Rosalinda e Eleutério pareciam consternados e, até hoje, guardo a impressão de rever -lhes o olhar ansioso, no momento em que a neblina da morte me envolvia os olhos materiais. Nessa altura, Vicente fez longo estacato, como a fixar reminiscências mais dolorosas, e continuou menos vivaz: " André Luiz," – Depois de algum tempo de tristes perturbações nas zonas inferiores, quando já me enco ntrava restabelecido, em “Nosso Lar”, certifiquei -me de toda a verdade. Voltando ao lar terreno, encontrei a grande surpresa. Rosalinda. Havia desposado Eleutério em segundas núpcias. – Como são idênticas as nossas histórias! – exclamei impressionado. – Isso é que não – protestou a sorrir. E continuou: – Outra surpresa me dilacerava o coração. Somente ao regressar ao lar, soube que fora vítima de odioso crime. Meu próprio irmão inspirou a trama sutil e perversa. Minha mulher e ele apaixonaram -se perdidament e um pelo outro e cederam a tentações inferiores. Não havia que recorrer a divórcio e, mesmo que a legislação o facultasse, constituiria um escândalo o afastamento de Rosalinda para unir -se, publicamente, ao cunhado. Eleutério lembrou, porém, que possuíamo s experiências de laboratório e sugeriu a Rosalinda a id eia de me aplicarem determinada cultura microbiana, que ele mesmo se incumbiria de obter, na primeira oportunidade. A pobre da companheira não vacilou e, valendo -se do meu sono descuidado, introduziu na minúscula espinha nasal, algo ferida, o vírus destruidor. E aí tem você o meu caso naturalmente resumido. Eu estava assombrado. – E os criminosos? – perguntei. Vicente sorriu ligeiramente e informou: – Rosalinda e Eleutério vivem aparentemente felizes, são excelentes materialistas, por enquanto, e gozam, no mundo transitório, grande fortuna amoedada e alto conceito social. – Mas... e a justiça? – indaguei, aterrado. – Ora, André – esclareceu serenamente –, tudo vem a seu tempo, tanto no bem quanto no mal . Primeiro a semente, depois os frutos. Percebendo -me, porém, as tristes impressões, Vicente concluiu: – Não falemos mais nisto. Aproxima -se a hora da instrução. Atendamos às nossas necessidades essenciais, auxiliando os nossos amados, que ainda permanecem a distância, nos círculos terrestres. Não se impressione. A árvore, para produzir, não reclama as folhas mortas. Para nós, atualmente, meu amigo, o mal é simples resultado da ignorância e nada mais. " André Luiz," Ouvindo instruções No grande salão, Aniceto espera va-nos, acolhedor. Fileiras enormes de assistentes enchiam o espaço vastíssimo. Homens e mulheres, aparentando idades diversas, permaneciam recolhidos, a demonstrar, porém, expectativa e interesse. – Hoje – explicou o nosso orientador, dirigindo -se a Vicen te de maneira particular – teremos a palavra de Telésforo, antigo lidador da Comunicação, que pediu a presença de todos os aprendizes do trabalho de intercâmbio entre nós e os irmãos encarnados. Sentamo -nos, confortavelmente, aguardando, por nossa vez. Dai a minutos, Telésforo penetrava no recinto, sob harmoniosas vibrações de simpatia geral. Aniceto e outros instrutores instalaram -se ao lado dele, em torno da mesa nobre, onde se localizava a direção da assembl eia. Após saudar a assistência numerosíssima, f ormulando votos de paz e incentivando -nos aos testemunhos redentores, Telésforo atingiu o assunto principal que o levara até ali. – “Agora – disse com autoridade sem afetação – conversaremos sobre as necessidades da representação de nossa colônia nos traba lhos terrestres. Aqui se encontram companheiros fracassados nas intenções mais nobres e irmãos outros desejosos de colaborar nas tarefas que condizem com as nossas responsabilidades atuais. Referimo -nos às laboriosas atividades da Comunicação, no plano car nal. Vemos nesta reunião grande parte dos cooperadores de Nosso Lar , que faliram nas missões da mediunidade e da doutrinação, bem como outros muitos colegas que se preparam para provas dessa natureza, nos círculos da Crosta. “Nossa repartição vem promovend o grande movimento de auxílio a irmãos encarnados e desencarnados, que se revelam incapazes de qualquer ação, além da superfície terrestre. “Nossa tarefa é enorme – Precisamos disseminar ensinamentos novos, relativamente à preparação dos que habitam nossa colônia, considerando os esforços e realizações do presente e do porvir. “É indispensável socorrer os que enfrentam, corajosos, as profundas transformações do planeta. “As transições essenciais da existência na Terra encontram a maioria " André Luiz," dos homens absoluta mente distraídos das realidades eternas. A mente humana abre -se, cada vez mais, para o contato com as expressões invisíveis, dentro das quais funciona e se movimenta. Isto é uma fatalidade evolutiva. Desejamos e necessitamos auxiliar as criaturas terrestre s; todavia, contra a extensão de nosso concurso fraterno, operam dilatadas correntes de incompreensão. Não relacionamos apenas a ação da ignorância e da perversidade. Agem, contraditoriamente, nesse particular, grande número de forças do próprio espiritual ismo. Combatem -nos algumas escolas cristãs, como se não colaborássemos com o Mestre Divino. A Igreja Romana classifica -nos a cooperação como diabólica. A Reforma Luterana, em seus matizes variados, persegue -nos a colaboração amistosa. E há correntes espiri tualistas de elevado teor educativo, que nos malsinam a influência, por quererem o homem aperfeiçoado de um dia para outro, rigorosamente redimido a golpe instantâneo da vontade, sem realização metódica. “No campo de nosso conhecimento da vida, não podemos condená -los pelo desentendimento atual. O catolicismo romano tem suas razões ponderáveis; o protestantismo é digno de nosso acatamento; as escolas espiritualistas possuem notáveis edificações. Toda expressão religiosa é sagrada, todo movimento superior de educação espiritual é santo em si mesmo. Temos, então, diante de nós, a incompreensão dos bons, que constitui dolorosa prova para todos os trabalhadores sinceros, porque, afinal, não estamos fazendo obra individual e sim promovendo movimento libertador da consciência humana, a favor da própria id eia religiosa do mundo. “Sacerdotes e intérpretes dos núcleos organizados da religião e da filosofia, não percebem ainda que o espírito da Revelação é progressivo, como a alma do homem. As concepções religiosas se elevam com a mente da criatura. Muitas Igrejas não compreendem, por enquanto, que não devemos espalhar a crença nos tormentos eternos para os desventurados, e sim a certeza de que há homens infernais criando infernos para si mesmos. “Não podemos, porém, pe rder tempo no exame da teimosia alheia. Temos serviços complexos e dilatados. E, como dizíamos, a Humanidade terrena aproxima -se, dia a dia, da esfera de vibrações dos invisíveis de condição inferior, que a rodeia em todos os sentidos. Mas, segundo reconhe cemos, esmagadora percentagem de habitantes da Terra não se preparou para os atuais acontecimentos evolutivos. E os mais angustiosos conflitos se verificam no sendal humano. A Ciência progride vertiginosamente no planeta e, no entanto, à medida que se supr imem sofrimentos do corpo, multiplicam -se aflições da alma. Os jornais do mundo estão cheios de notícias maravilhosas, quanto ao progresso material. Segredos sublimes da Natureza são surpreendidos nos domínios do mar, da terra e do ar; mas a estatística dos crimes humanos é espantosa. Os assassínios da guerra apresentam requintes de perversidade muito além dos que foram conhecidos em épocas anteriores. Os homicídios, os suicídios, as tragédias conjugais, os desastres do sentimento, as greves, os impulsos revolucionários da indisciplina, a sede de experimentação inferior, a inquietação sexual, as moléstias desconhecidas, a loucura, invadem " André Luiz," os lares humanos. Não existe em país algum p reparação espiritual bastante para o conforto físico. Entretanto, esse conforto tende a aumentar naturalmente. O homem dominará, cada vez mais, a paisagem exterior que lhe constitui moradia, embora não se conheça a si mesmo. Atendido, porém, o corpo revela rá as necessidades da alma e vemos agora a criatura terrestre assoberbada de problemas graves, não só pelas deficiências de si própria, senão também pela espontânea aproximação psíquica com a esfera vibratória de milhões de desencarnados, que se agarram à Crosta planetária, sequiosos de renovar a existência que menosprezaram, sem maior consideração aos desígnios do Eterno. “A rigor, também nós compreendemos que os serviços da Comunicação, no mundo, deveriam realizar -se apenas no plano da inspiração divina p ara os círculos terrenos, do superior para o inferior; mas, como agir diante de milhões de enfermos e criminosos nas zonas visíveis e invisíveis da experiência humana? Pelo simples culto externo, como pretende a Igreja de Roma? Pelo ato de fé, exclusivamen te, como espera a Reforma Protestante? Por mera afirmação da vontade, conforme pontificam certas escolas espiritualistas? Não podemos, no entanto, circunscrever apreciações, na visão unilateral do problema. Concordamos que a reverência ao Pai, a fé e a von tade são expressões básicas da realização divina no homem, mas não podemos esquecer que o trabalho é necessidade fundamental de cada Espírito. Que outros irmãos nossos perseverem, tão somente, nas especulações teológicas; encaremos, porém, os serviços do Senhor, como se faz indispensável. “A Humanidade terrena, atualmente, é como um grande organismo coletivo, cujas células, que são as personalidades humanas, se envolvem no desequilíbrio entre si, em processo mun dial de reajustamento e redenção. “Quantos cooperam conosco, veem a extensão dos cipoais em que se debate a mente humana. Criminosos agarram -se a criminosos, doentes associam -se a doentes. Precisamos oferecer, no mundo, os instrumentos adequados às retific ações espirituais, habilitando nossos irmãos encarnados a um maior entendimento do Espírito do Cristo. Para consegui -lo, todavia, necessitamos de colaboradores fiéis, que não cogitem de condições, compensações e discussões, mas que se interessem pela subli midade do sacrifício e de renunciação com o Senhor”. A essa altura, Telésforo interrompeu a lição em curso e, fixando o olhar percuciente na assembl eia, tornou em voz mais alta: – Quem não deseje servir, procure outros gêneros de tarefa. A Comunicação não comporta perda de tempo nem experimentação doentia, sem grave prejuízo dos cooperadores incautos. Noutros Ministérios, a designação de trabalhadores define, com precisão, todos os que colaboram com o Divino Mestre. Aqui, porém, acima de trabalhadores, prec isamos de servidores que atendam de boa vontade. Nesse instante, em vista doutra longa pausa, Identifiquei a forte impressão dos ouvintes, que se entreolhavam com inexprimível espanto. " André Luiz," Advertências profundas – “Irmãos nossos – prosseguiu Telésforo, s ob o calor de sagrada inspiração –, fazem -se ouvir na Terra gritos comovedores de sofrimento. Necessitamos de servidores que desejem integrar -se na escola evangélica da renúncia. “Desde as primeiras tar efas do Espiritismo renovador, Nosso Lar tem enviado d iversas turmas ao trabalho de disseminação de valores educativos. Centenas de companheiros partem daqui anualmente, aliando necessidades de resgate ao serviço redentor; mas ainda não conseguimos os resultados desejáveis. Alguns alcançaram resultados parcia is nas tarefas a desenvolver, mas a maioria tem fracassado ruidosamente. Nossos institutos de socorro debalde movimentam medidas de assistência indispensável. Raríssimos conquistam algum êxito nos delicados misteres da mediunidade e da doutrinação. “Outras colônias de nossa esfera providenciam tarefas da mesma natureza, mas pouquíssimos são os que se lembram das realidades eternas, no outro lado do véu... A ignorância domina a maioria das consciências encarnadas. E a ignorância é mãe das misérias, das fraqu ezas, dos crimes. Grandes instrutores, nos fluidos da carne, amedrontam -se por sua vez, diante dos atritos humanos, e se recolhem, indevidamente, na concepção que lhes é própria. Esquecem -se de que Jesus não esperou que os homens lhe atingissem as glórias magnificentes e que, ao invés, desceu até ao plano dos homens para amar, ensinar e servir. Não exigiu que as criaturas se fizessem imediatamente iguais a Ele, mas fez -se como os homens, para ajudá -los na subida áspera”. E, com profundo brilho no olhar, Tel ésforo acentuou, depois de pequeno Intervalo: – “Se o Mestre Divino adotou essa norma, que dizer das nossas obrigações de criaturas falidas? Abstraindo -nos das necessidades imensas de outros grupos, procuremos identificar as falhas existentes naqueles que nos são afins. Em derredor de nós mesmos, os laços pessoais constituem extenso campo de atividade para o testemunho. Cesse, para nós outros, a concepção de que a Terra é o vale tenebroso, destinado a quedas lamentáveis, e agasalhemos a certeza de que a esf era carnal é uma grande oficina de trabalho redentor. Preparemo -nos para a cooperação eficiente e indispensável. Esqueçamos os " André Luiz," erros do passado e lembremo -nos de nossas obrigações fundamentais. “A causa geral dos desastres mediúnicos é a ausência da noção de responsabilidade e da recordação do dever a cumprir. “Quantos de vós fostes abonados, aqui, por generosos benfeitores que buscaram auxiliar -vos, condoídos de vosso pretérito cruel? Quantos de vós partistes, entusiastas, formulando enormes promessas? En tretanto, não soubestes recapitular dignamente, para aprender a servir, conforme os desígnios superiores do Eterno. Quando o Senhor vos enviava possibilidades materiais para o necessário, regressáveis à ambição desmedida; ante o acréscimo de misericórdia d o labor intensificado, agarrastes a id eia da existência cômoda; junto às experiências afetivas, preferistes os desvios sexuais; ao lado da família, voltastes à tirania doméstica, e aos interesses da vida eterna sobrepusestes as sugestões inferiores da preg uiça e da vaidade. Destes -vos, na maioria, à palavra sem responsabilidade e à indagação sem discernimento, amontoando atividades inúteis. Como médiuns, muitos de vós preferíeis a inconsciência de vós mesmos; como doutrinadores, formuláveis conceitos para e xportação, jamais para uso próprio. “Que resultado atingimos? Grandes massas batem às fontes do Espiritismo sagrado, tão só no propósito de lhe mancharem as águas. Não são procuradores do Reino de Deus os que lhe forçam, desse modo, as portas, e sim caçado res dos interesses pessoais. São os sequiosos da facilidade, os amigos do menor esforço, os preguiçosos e delinq uentes de todas as situações, que desejam ouvir os Espíritos desencarnados, receosos da acusação que lhes dirige a própria consciência. O fel da dúvida invade o bálsamo da fé, nos corações bem intencionados. A sede de proteção indevida azorraga os seguidores da ociosidade. A ignorância e a maldade entregam -se às manifestações inferiores da magia negra. “Tudo porque, meus irmãos? Porque não temos s abido defender o sagrado depósito, por termos esquecido, em nossos labores carnais, que Espiritismo é revelação divina para a renovação fundamental dos homens. Não atendemos, ainda, como se faz indispensável, à cons trução do Reino de Deus em nós. “Contudo, não abandonemos nossos deveres a meio da tarefa. Voltemos ao campo, retificando as semeaduras. O Ministério da Comunicação vem incentivando esse movimento renovador. Necessitamos de servidores de boa vontade, leais ao espírito da fé. Não serão admitidos o s que não desejarem conhecer a glória oculta da cruz do testemunho, nem atendem aqui os que se aproximem com objetivos diferentes... “Aqui estamos todos, companheiros da Comunicação, endividados com o mundo, mas esperançosos de êxito em nossa tarefa perman ente. Levantemos o olhar. O Senhor renova diariamente nossas benditas oportunidades de trabalho, mas, para atingirmos os resultados precisos, é imprescindível sejamos seguidores da renunciação ao inferior. Nenhum de nós, dos que aqui nos encontramos, está livre do ciclo de reencarnações na Crosta. Todos, portanto, somos sequiosos de Vida Eterna. Não olvidemos, desse modo, o Calvário de " André Luiz," Nosso Senhor, convictos de que toda saída dos planos mais baixos deve ser uma subida para a esfera superior. E ninguém espe re subir, espiritualmente, sem esfor ço, sem suor e sem lágrimas!...” Nesse momento, cessou a preleção de Telésforo, que abençoou a assembl eia, mostrando o olhar infinitamente brilhante e aceitando, em seguida, o braço de Aniceto, para afastar -se. Debaixo d e profunda impressão, em face das incisivas declarações do instrutor, observei que numerosos circunstantes choravam em silêncio. Ao meu olhar interrogativo, Vicente explicou: – São servidores fracassados. Nesse instante, Telésforo e o nosso orientador post aram -se junto de nós. Duas senhoras, de grave fisionomia, aproximaram -se respeitosamente e uma delas dirigiu -se a Aniceto, nestes termos: – Desejávamos o obséquio de uma informação concernente à próxima oportunidade de serviço que será concedida a Otávio. – O Ministério prestará esclarecimentos – respondeu o interpelado, atencioso. – Todavia – tornou a interlocutora –, ousaria reiterar -lhe o pedido. É que Marina, grande amiga nossa, casada na Terra há alguns meses, prometeu -me cooperação para auxiliá -lo, e seria muito de meu agrado localizar, agora, o meu pobre filho em novos braços maternais. Aniceto esboçou um gesto de compreensão, sorriu e esclareceu, sem afetação: – Convém não estabelecer o plano por enquanto, porque, antes de tudo, precisamos conhecer a solução do processo de médiuns fracassados, em que está ele envolvido. Somente depois, minha irmã. Volvi os olhos para Vicente, sem ocultar a surpresa, mas, enquanto as senhoras se retiravam conformadas, Aniceto dirigia -nos a palavra: – Tenho serviços ime diatos, em companhia de Telésforo. Deixo -os, a todos, em estudos e observações aqui no Centro de Mensageiros. Retirou -se Aniceto com os maiores, e um companheiro declarou alegremente: – Podemos conversar. – Nosso orientador – explicou -me Vicente, solicito – considera trabalho útil toda conversação sadia que nos enriqueça os conhecimentos e aptidões para o serviço. Pelas nossas palestras construtivas, portanto, receberemos também a remuneração devida à cooperação normal. Curioso e surpreendido, indaguei: – E se eu tentasse voltar aos assuntos inferiores da Terra, esquecendo a conversação edificante? Vicente sorriu e retrucou: – O prejuízo seria seu, porque aqui a palavra define o Espírito e, se você fugisse à luz da palestra instrutiva, nossos orientadores co nheceriam sua atitude imediatamente, porquanto sua presença se tornaria desagradável e seu rosto se cobriria de sombra indefinível. " André Luiz," A queda de Otávio A ausência de Aniceto deu ensejo a palestras interessantes. Formaram -se grupos de conversação amiga. Impressionado com as senhoras que haviam solicitado providências para Otávio, pedi a Vicente me apresentasse a elas, não que me movesse curiosidade menos digna, mas desejo de alcançar novos valores educativos sobre a tarefa mediúnica, que a palavra de Tel ésforo me fizera sentir em tons diferentes. O amigo atendeu de boamente. Em breves momentos, não me achava tão só à frente das irmãs Isaura e Isabel, mas do próprio Otávio, um pálido senhor que aparentava quarenta anos. – Também sou principiante aqui – expliquei – e minha condição é a do médico falido nos deveres que o Senhor lhe confiou. Otávio sorriu e respondeu: – Possivelmente, o meu amigo terá a seu favor o fato de haver ignorado as verdades eternas, no mundo. O mesmo não ocorre comigo, ai de mim! Não desconhecia o roteiro certo, que o Pai me designava para as lutas na Terra. Não possuía títulos oficializados de competência; entretanto, dispunha de considerável cultura evangélica, coisa que, para a vida eterna, é de maior importância que a cultura intelectual, simplesmente considerada. Tive amigos generosos do plano superior, que s e faziam visíveis aos meus olhos, recebi mensagens repletas de amor e sabedoria e, no entanto, cai mesmo assim, obedecendo à imprevidência e à vaidade. As observações de Otávio impressionavam -me vivamente. Quando no mundo, eu não tivera contato especial co m as escolas espiritistas e experimentava certa dificuldade para compreender tudo quanto ele desejava dizer. – Ignorava a extensão das responsabilidades mediúnicas – respondi. – As tarefas espirituais – tornou o interlocutor, algo acabrunhado – ocupam -se de interesses eternos e daí a enormidade de minha falta. Os mordomos de bens da alma estão investidos de responsabilidades pesadíssimas. Os estudiosos, os crentes, os simpatizantes, no campo da fé, podem alegar ignorância e inibição; todavia, os sacerdotes não têm desculpa. É o mesmo que se verifica na tarefa mediúnica. Os aprendizes ou beneficiários, " André Luiz," nos templos da Revelação nova, podem referir -se a determinados impedimentos; mas o missionário é obrigado a caminhar com um patrimônio de certezas tais, que co isa alguma o exonera das culpas adquiridas. – Mas, meu amigo – perguntei, assaz impressionado –, que teria motivado seu martírio moral? Noto -o tão consciente de si mesmo, tão superiormente informado sobre as leis da vida, que me custa acreditar se encontre necessitado de novas experiências nesse capítulo... Ambas as senhoras presentes mostraram estranho brilho no olhar, enquanto Otávio respondia: – Relatarei minha queda. Verá como perdi maravilhosa oportunidade de elevação. E, após mais longa pausa, continu ou, gravemente: – Depois de contrair dividas enormes na esfera carnal, noutro tempo, vim bater às portas de “Nosso Lar”, sendo atendido por irmãos dedicados, que se revelaram incansáveis para comigo. Preparei -me, então, durante trinta anos consecutivos, pa ra voltar à Terra em tarefa mediúnica, desejoso de saldar minhas contas e elevar -me alguma coisa. Não faltaram lições verdadeiramente sublimes, nem estímulos santos ao meu coração imperfeito. O Ministério da Comunicação favoreceu -me com todas as facilidade s e, sobretudo, seis entidades amigas movimentaram os maiores recursos em benefício do meu êxito. Técnicos do Auxílio acompanharam -me à Terra, nas vésperas do meu renascimento, entregando -me um corpo físico rigorosamente sadio. Segundo a magnanimidade dos meus benfeitores daqui, ser -me-ia concedido certo trabalho de relevo, na esfera de consolação às criaturas. Permaneceria junto das falanges de colaboradores encarregados do Brasil, animando -lhes os esforços o atendendo a irmãos outros, ignorantes, perturba dos ou infelizes. O matrimônio não deveria entrar na linha de minhas cogitações, não que o casamento possa colidir com o exercício da mediunidade, mas porque meu caso particular assim o exigia. “Nada obstante, solteiro, deveria receber, aos vinte anos, os seis amigos que muito trabalharam por mim, em “Nosso Lar”, os quais chegariam ao meu círculo como órfãos. Meu débito para com essas entidades tornou -se muito grande e a providência não só constituiria agradável resgate para mim, como também garantia de tri unfo pelo serviço de assistência a elas, o que me preservaria o coração de leviandades e vacilações, porquanto o ganha -pão laborioso me compeliria a não aceder a sugestões inferiores nos domínios do sexo e das ambições incontidas. Ficou também assentado qu e minhas atividades novas começariam com muitos sacrifícios, para que o possível carinho de outrem não amolecesse a minha fibra de realização, e para que se não escravizasse minha tarefa a situações caprichosas do mundo, distantes dos desígnios de Jesus, e , sobretudo, para que fosse mantida a impessoalidade do serviço. Mais tarde, então, com o correr dos anos de edificação, me enviariam de “Nosso Lar” socorros materiais, cada vez maiores, à medida que fosse testemunhando renúncia de mim mesmo, desprendiment o das posses efêmeras, desinteresse pela remuneração dos sentidos, de maneira a " André Luiz," intensificar, progressivamente, a semeadura de amor confiada às minhas mãos. “Tudo combinado, voltei, não só prometendo fidelidade aos meus instrutores, como também hipotecando a certeza do meu devotamento às seis entidades amiga s, a quem muito devo até agora”. Otávio, nesse momento, fez uma pausa mais longa, suspirou fundamente, e prosseguiu: – Mas, ai de mim, que olvidei todos os compromissos! Os benfeitores de Nosso Lar local izaram -me ao lado de verdadeira serva de Jesus. Minha mãe era espiritista cristã desde moça, não obstante as tendências materialistas de meu pai, que era, todavia, um homem de bem. “Aos treze anos fiquei órfão de mãe e, aos quinze, começaram para mim os primeiros chamados da esfera superior. Por essa ocasião, meu pai contraiu segundas núpcias e, apesar da bondade e cooperação que a madrasta me oferecia, eu me colocava num plano de falsa superioridade, a respeito dela. Em vão, minha genitora endereçou, do in visível, apelos sagrados ao meu coração. Eu vivia revoltado, entre queixas e lamentações descabidas. “Meus parentes conduziram -me a um grupo espiritista de excelente orientação evangélica, onde minhas faculdades poderiam ser postas a serviço dos necessitad os e sofredores; entretanto, faltavam -me qualidades de trabalhador e companheiro fiel. Minha negação em matéria de confiança nos orientadores espirituais e acentuado pendor para a crítica dos atos alheios compeliam -me a desagradável estacionamento. “Os ben eméritos amigos do invisível estimulavam -me ao serviço, mas eu duvidava deles com a minha vaidade doentia. E como prosseguissem os apelos sagrados, por mim interpretados como alucinações, procurei um médico que me aconselhou experiências sexuais. Completar a, então, dezenove anos e entreguei -me desenfreadamente ao abuso de faculdades sublimes. Desejava conciliar, à força, o prazer delituoso e o dever espiritual, alheando -me, cada vez mais, dos ensinos evangélicos que os amigos da esfera superior nos ministra vam. “Tinha pouco mais de vinte anos, quando meu pai foi arrebatado pela morte. Com a triste ocorrência, ficavam na orfandade seis crianças desfavorecidas, porquanto minha madrasta, ao se consorciar com meu genitor, lhe trouxera para a tutela três pequenin os. Em vão implorou -me socorro a pobre viúva. Nunca me dignei aceitar os encargos redentores que me estavam destinados. “Após dois anos de segunda viuvez, minha desventurada madrasta foi recolhida a um leprosário. Afastei -me, então, dos pequenos órfãos, to mado de horror. Abandonei -os definitivamente, sem refletir que lançava meus credores generosos, de Nosso Lar , a destino incerto. Em seguida, dando largas à ociosidade, cometi uma ação menos digna e fui obrigado a casar -me pela violência. Mesmo assim, porém , persistiam os chamados do invisível, revelando -me a inesgotável misericórdia do Altíssimo. Contudo, à medida que olvidava meus deveres, toda tentativa de realização espiritual figurava -se-me mais difícil. E continuou a tragédia que inventei para meu próp rio tormento. " André Luiz," “A esposa a que me ligara, tão somente por apetites inconfessáveis, era criatura muito inferior à minha condição espiritual e atraiu uma entidade monstruosa, em ligação com ela, para tomar o papel de meu filho. Releguei à rua seis carinhosas crianças, cuja convivência concorreria decisivamente para minha segurança moral, mas a companheira e o filho, ao que me pareceu, incumbiram -se da vingança. Atormentaram -me ambos, até ao fim da existência, quando para aqui regressei, mal tendo completado qu arenta anos, roído pela sífilis, pelo álcool e pelos desgostos sem nada haver feito para meu futuro eterno... Sem construir coisa alguma no terreno do bem...” Enxugou os olhos tímidos e concluiu: – Como vê, realizei todos os meus condenáveis desejos, menos os desejos de Deus. Foi por isso que fali, agravando antigos débitos... Nesse instante, calou -se como se alguma coisa invisível lhe constringisse a garganta. Abracei -o com simpatia fraternal, ansioso de proporcionar -lhe estimulo ao coração, mas Dona Isaur a aproximou -se mais, acariciou -lhe a fronte e falou: – Não chores, filho! Jesus não nos falta com a bênção do tempo. Tem calma e coragem... E identificando -lhe o carinho, meditei na Bondade Divina, que faz ecoar o cântico sublime do amor de mãe, mesmo nas regiões de além -morte. " André Luiz," O desastre de Acelino Ia dirigir -me a Otávio novamente, quando alguém se aproximou e falou ao ex-médium, com voz forte: – Não chore, meu caro. Você não está desamparado. Além disso, pode contar com o devotamento materno. Vivo e m piores condições, mas não me faltam esperanças. Sem dúvida, estamos em bancarrota espiritual; no entanto, é razoável aguardarmos, confiantes, novo empréstimo de oportunidades do Tesouro Divino. Deus não está pobre. Voltei -me surpreendido e não reconheci o recém -chegado. Dona Isaura fez o obséquio das apresentações. Estávamos diante de Acelino, que partilhara a mesma experiência. Fitando -o, triste, Otávio sorriu e advertiu: – Não sou um criminoso para o mundo, mas sou um falido para Deus e para Nosso Lar . – Sejamos, porém, lógicos – revidou Acelino, parecendo mais encorajado –, você perdeu a partida porque não jogou, e eu a perdi jogando desastradamente. Tive onze anos de tormento nas zonas inferiores. Sua situação não reclamou esse drástico. Mesmo assim, c onfio na Providência. Nesse instante, interveio Vicente, acrescentando: – Cada um de nós tem a experiência que lhe é própria. Nem todos ganham nas provas terrestres. E voltando -se de modo especial, para mim, aduziu: – Quantos de nós, os médicos, perdemos l amentavelmente na luta? Depois de concordar, trazendo à baila o meu próprio caso, objetei: – Seria, porém, muitíssimo interessante conhecer a experiência de Acelino. Teria sofrido o mesmo acidente de Otávio? Creio de grande aproveitamento penetrar essas li ções. No mundo, não compreendia bem o que fossem tarefas espirituais, mas aqui a nossa visão se modifica. Há que cogitar do nosso futuro eterno. Acelino sorriu e obtemperou: – Minha história é muito diferente. A queda que experimentei apresenta característ icas diversas e, a meu ver, muito mais graves. E, atendendo -nos a expectativa, prosseguiu, narrando: – Também parti de Nosso Lar , no século findo, após receber valioso " André Luiz," patrimônio instrutivo dos nossos assessores. Segui enriquecido de bênçãos. Uma de nossas beneméritas Ministras da Comunicação presidiu, em pessoa, as medidas atinentes à minha nova tarefa. Não faltaram providências para que me felicitassem a saúde do corpo e o equilíbrio da mente. Após formular grandes promessas aos nossos maiores, parti para uma das grandes cidades brasileiras, em serviço de nossa colônia. O casamento estava em meu roteiro de realizações. Ruth, minha devotada companheira, incumbir -se-ia de colaborar comigo para melhor desempenho das tarefas. “Cumprida a primeira parte do prog rama, aos vinte anos de idade fui chamado à tarefa mediúnica, recebendo enorme amparo dos benfeitores invisíveis. Recordo ainda a sincera satisfação dos companheiros do grupo doutrinário. A vidência, a audição e a psicografia, que o Senhor me concedera, por misericórdia, constituíam decisivos fatores de êxito em nossas atividades. A alegria de todos era inexcedível. Entretanto, apesar das lições maravilhosas de amor evangélico, inclinei -me a transformar minhas faculdades em fonte de renda material. Não me d ispus a esperar pelos abundantes recursos que o Senhor me enviaria mais tarde, após meus testemunhos no trabalho, e provoquei, eu mesmo, a solução dos problemas lucrativos. Não era meu serviço igual a outros? Não recebiam os sacerdotes católico -romanos a remuneração de trabalhos espirituais e religiosos? Se todos pagávamos por serviços ao corpo, que razões haveria para fugir ao pagamento por serviços à alma? Amigos, inscientes do caráter sagrado da fé, aprovavam -me as conclusões egoísticas. Admitíamos que, no fundo, o trabalho essencial era dos desencarnados, mas também havia colaboração minha, pessoal, como intermediário, pelo que devia ser justa a retribuição. “Debalde, movimentaram -se os amigos espirituais aconselhando -me o melhor caminho. Em vão, companh eiros encarnados chamavam -me a esclarecimento oportuno. Agarrei -me ao interesse inferior e fixei meu ponto de vista. Ficaria definitivamente por conta dos consulentes. Arbitrei o preço das consultas, com bonificações especiais aos pobres e desvalidos da so rte, e meu consultório encheu -se de gente. “Interesse enorme foi despertado entre os que desejavam melhoras físicas e solução de negócios materiais. Grande número de famílias abastadas tomou -me por consultor habitual, para todos os problemas da vida. As li ções de espiritualidade superior, a confraternização amiga, o serviço redentor do Evangelho e as preleções dos emissários divinos ficaram à distância. Não mais a escola da virtude, do amor fraternal, da edificação superior, e sim a concorrência comercial, as ligações humanas legais ou criminosas, os caprichos apaixonados, os casos de policia e todo um cortejo de misérias da Humanidade, em suas experiências menos dignas. “Transformara -se completamente a paisagem espiritual que me rodeava. À força de me cerca r de pessoas criminosas, por questões de ganho sistemático, as baixas correntes mentais dos inquietos clientes encarceraram -me em sombria cadeia psíquica. Cheguei ao crime de zombar do Evangelho de Nosso Senhor Jesus, esquecido de que os negócios delituoso s dos homens de " André Luiz," consciência viciada contam igualmente com entidades perniciosas, que se interessam por eles nos planos invisíveis. E transformei a mediunidade em fonte de palpites materiais e baixos avisos”. Nesse momento, os olhos do narrador cobriram -se de súbita vermelhidão, estampando -se-lhe fundo horror nas pupilas, como se estivesse revivendo atrozes dilacerações. – Mas a morte chegou, meus amigos, e arrancou -me a fantasia – prosseguiu mais grave –. Desde o instante da grande transição, a ronda escura dos consulentes criminosos, que me haviam precedido no túmulo, rodeou -me a reclamar palpites e orientações de natureza inferior. Queriam noticias de cúmplices encarnados, de resultados comerciais, de soluções atinentes a ligações clandestinas. Gritei, cho rei, implorei, mas estava algemado a eles por sinistros elos mentais, em virtude da imprevidência na defesa do meu próprio patrimônio espiritual. Durante onze anos consecutivos, expiei a falta, entre eles, entre o remorso e a amargura. Acelino calou -se, parecendo mais comovido, em vista das lágrimas abundantes. Fundamente sensibilizado, Vicente considerou: – Que é isso? Não se atormente assim. Você não cometeu assassínios, nem alimentou a intenção deliberada de espalhar o mal. A meu ver, você enganou -se tam bém, como tantos de nós. Acelino, porém, enxugou o pranto e respondeu: – Não fui homicida nem ladrão vulgar, não mantive o propósito intimo de ferir ninguém, nem desrespeitei alheios lares, mas, indo aos círculos carnais para servir às criaturas de Deus, n ossos irmãos, auxiliando -os no crescimento espiritual com Jesus, apenas fiz viciados da crença religiosa e delinq uentes ocultos, mutilados da fé e aleijados do pensamento. Não tenho desculpas, porque estava esclarecido; não tenho perdão, porque não me falt ou assistência divina. E, depois de longa pausa, concluiu gravemente: – Podem avaliar a extensão da minha culpa? " André Luiz," Ouvindo impressões Deixando Acelino em conversação mais íntima com Otávio, fui levado por Vicente a outro ângulo da sala. Muitos grupos s e mantinham em palestra interessante e educativa, observando eu que quase todos comentavam as derrotas sofridas na Terra. – Fiz quanto pude – exclamava uma velhinha simpática para duas companheiras que a escutavam atentamente –; no entanto, os laços de família são muito fortes. Algo se fazia ouvir sempre, com voz muito alta, em meu espírito, compelindo -me ao desempenho da tarefa; mas... e o marido? Amâncio nunca se conformou. Se os enfer mos me procuravam no receituário comum, agravava -se-lhe a neurastenia; se os companheiros de doutrina me convidavam aos estudos evangélicos, revoltava -se, ciumento. Que pensam vocês? Chegava a mobilizar minhas filhas contra mim. Como seria possível, em tai s circunstâncias, atender a obrigações mediúnicas? – Todavia – ponderou uma das senhoras que parecia mais segura de si –, sempre temos recursos e pretextos para fugir às culpas. Encaremos nossos problemas com realismo. Há de convir que, com o socorro da bo a vontade, sempre lhe ficariam alguns minutos na semana e algumas pequenas oportunidades para fazer o bem. Talvez pudesse conquistar o entendimento do esposo e a colaboração afetuosa das filhas, se trabalhasse em silêncio, mostrando sincera disposição para o sacrifício. Nossos atos, Mariana, são muito mais contagiosos que as nossas palavras. – Sim – respondeu a interlocutora, emitindo voz diferente –, concordo com a observação. Em verdade, nunca pude sofrer a incompreensão dos meus, sem reclamar. – Para tra balharmos com eficiência – tornou a companheira, sensata –, é preciso saber calar, antes de tudo. Teríamos atendido perfeitamente aos nossos deveres, se tivéssemos usado todas as receitas de obediência e otimismo que fornecemos aos outros. Aconselhar é sem pre útil, mas aconselhar excessivamente pode traduzir esquecimentos de nossas obrigações. Assim digo, porque meu caso, a bem dizer, é muito semelhante ao seu. Fomos ao círculo carnal para construir com Jesus, mas caímos na tolice de acreditar que andávamos pela Terra para discutir nossos caprichos. Não executei minha tarefa mediúnica, em virtude da irritação que me dominou, dada a indiferença " André Luiz," dos meus familiares pelos serviços espirituais. Nossos instrutores, aqui, muito me recomendaram, antes, que para bem ensinar é necessário exemplificar melhor. Entretanto, por minha desventura, tudo esqueci no trabalho temporário da Terra. Se meu marido fazia ponderações, eu criava refutações. Não suportava qualquer parecer contrário ao meu ponto de vista, em matéria de crença, incapaz de perceber a vaidade e a tolice dos meus gestos. Das irreflexões nasceu minha perda última, na qual agravei, de muito, as responsabilidades. Quase mensalmente, Joaquim e eu nos empenhávamos em discussões e não trocávamos apenas os insultos contundentes, mas também os fluidos venenosos, segregados por nossa mente rebelde e enfermiça. Entre os conflitos e suas conseq uências, passei o tempo inutilizada para qualquer trabalho de elevação espiritual. Nesse instante, chamou -me Vicente para aprese ntar um amigo. Ao nosso lado, outro grupo de senhoras conversava animadamente: – Afinal, Ernestina – indagava uma delas a mais jovem –, qual foi a causa do seu desastre? – Apenas o medo, minha amiga – explicou -se a interpelada –, tive medo de tudo e de tod os. Foi o meu grande mal. – Mas, como tudo isto impressiona! Você foi muitíssimo preparada. Recordo -me ainda das nossas lições em conjunto. As instrutoras do Esclarecimento confiavam extraordinariamente no seu concurso. Seu aproveitamento era um padrão para nós outras. – Sim, minha querida Benita, suas reminiscências fazem -me sentir, com mais clareza, a extensão da minha bancarrota pessoal. Entretanto, não devo fugir à realidade. Fui a culpada de tudo. Preparei -me o bastante para resgatar antigos débitos e efetuar edificações novas; contudo, não vigiei como se impunha. O chamamento ao serviço ressoou no tempo próprio, orientando -me o raciocínio a melhores esclarecimentos; nossos instrutores me proporcionavam os mais santos incentivos, mas desconfiei dos home ns, dos desencarnados e até de mim mesma. Nos estudiosos do plano físico, enxergava pessoas de má fé; nos irmãos invisíveis, presumia encontrar apenas galhofeiros fantasiados de orientadores e, em mim mesma, receava as tendências nocivas. Muitos amigos tin ham -me em conta de virtuosa, pelo rigorismo das minhas exigências; todavia, no fundo, eu não passava de enferma voluntária, carregada de aflições inúteis. – Foi uma grande infantilidade da sua parte – retrucou a outra –, você olvidou que, na esfera carnal, o maior interesse da alma é a realização de algo útil para o bem de todos, com vistas ao Infinito e à Eternidade. Nesse mister, é indispensável contar com o assédio de todos os elementos contrários. Ironias da ignorância, ataques da insensatez, sugestões inferiores da nossa própria animalidade surgirão, com certeza, no caminho de todo trabalhador fiel. São circunstâncias lógicas e fatais do serviço, porque não vamos ao mundo físico para descanso injustificável, mas para lutar pela nossa melhoria, a despeit o de todo impedimento fortuito. – Compreendo, agora – disse a outra –; todavia, o receio das " André Luiz," mistificações prejudicou minha bela oportunidade. – É, minha amiga – tornou a interlocutora –, é tarde para lamentar. Tanto tememos as mistificações, que acabamos por mistificar os serviços do Cristo. Eu ouvia a palestra, com interesse crescente, mas o companheiro levou -me adiante para novas apresentações. Atendia a esses agradáveis deveres da sociedade de “Nosso Lar”, mas, para não perder ensejo de instruir -me, continuava atento às conversações em torno. Alguns cavalheiros mantinham discreta permuta de pareceres. – Reconheço que fali – dizia um deles em tom grave – e muito já expiei nas regiões inferiores, mas aguardo novos recursos da Providência. – Faltou -lhe, porém, bastante orientação para o caminho? – perguntava um companheiro. – Explico -me – esclareceu o primeiro –, faltou -me o amparo da esposa. Enquanto a tive a meu lado, verificava -se profundo equilíbrio em minhas forças psíquicas. A companhia dela, sem que e u pudesse explicar, compensava -me todo gasto de energia mediúnica. Minha noção de balanço estava nas mãos de minha querida Adélia. Esqueci -me, porém, de que o bom servo deve estar preparado para o serviço do Senhor, em qualquer circunstância. Não aprendi a ciência da conformação e nem me resignei a percorrer sozinho as estradas humanas. Quando me senti sem a dedicada companheira, arrebatada pela morte, amedrontei -me, por sentir -me em desequilíbrio e, erradamente, procurei substituí -la, e fui acidentado. Extremamente ligada a entidades malfazejas, minha segunda mulher, com os seus desvarios, arrastou -me a perversões sexuais de que nunca me supusera capaz. Voltei, insensivelmente, ao convívio de criaturas perversas e, tendo começado bem, acabei mal. Meus desas tres foram enormes; entretanto, embora reconheça minha deficiência, entendo, ainda hoje, que o triunfo, mesmo no futuro, ser -me-á muito difícil sem a companheira bem -amada. Tornara -se a palestra sumamente interessante. Desejava acompanhar -lhe o curso, mas Vicente chamou -me a atenção para outro assunto e era necessário acompanhá -lo. " André Luiz," A experiência de Joel Afastando -nos para um canto do salão, acompanhei Vicente que se dirigiu a um velhote de fisionomia simpática. – Então, meu caro Joel, como vai? – perguntou, atencioso. O interpelado teve uma expressão melancólica e informou: – Graças à Bondade Divina, sinto -me bastante melhorado. Tenho ido diariamente às aplicações magnéticas dos Gabinetes de Socorro, no Auxílio, e estou mais forte. – Cederam as vertig ens? – indagou o companheiro, com interesse. – Agora são mais espaçadas e, quando surgem, não me afligem o coração com tanta intensidade. Nesse instante, Vicente descansou os olhos muito lúcidos nos meus, e disse, sorrindo: – Joel também andou nos círculos carnais em tarefa mediúnica e pode contar experiência muito interessante. O novo amigo, que me parecia um enfermo em princípios de convalescença, esboçou melancólico sorriso e falou: – Fiz minha tentativa na Terra, mas fracassei. A luta não era pequena e fui fraco demais. – O que mais me impressiona no caso dele, porém – interpôs Vicente em tom fraterno –, é a moléstia que o acompanhou até aqui e persiste ainda agora. Joel atravessou as regiões inferiores com dificuldades extremas, após demorar -se por lá muito tempo, voltando ao Ministério do Auxílio perseguido de alucinações estranhas, relativamente ao pretérito. – Ao passado? – perguntei, surpreendido. – Sim – esclareceu Joel, humilde –, minha tarefa mediúnica exigia sensibilidade mais apurada e, quando m e comprometi à execução do serviço, fui ao Ministério do Esclarecimento, onde me aplicaram tratamento especial, que me aguçou as percepções. Necessitava condições sutis para o desempenho dos futuros deveres. Assistentes amigos desdobraram -se em obséquios, por me favorecerem, e parti para a Terra com todos os requisitos indispensáveis ao êxito de minhas obrigações. Infelizmente, porém... – Mas porque – indaguei – perdeu as realizações? Tão só em virtude da sensibilidade adquirida? " André Luiz," Joel sorriu e obtemperou: – Não perdi pela sensibilidade, mas pelo seu mau uso. – Que diz? – tornei, admirado. – O meu amigo compreenderá sem dificuldades. Imagine que, com um cabedal dessa natureza, ao invés de auxiliar os outros, perdi -me a mim mesmo. É que, segundo concluo agora, Deus concede a sensibilidade apurada como espécie de lente poderosa, que o proprietário deve usar para definir roteiros, fixar perigos e vantagens do caminho, localizar obstáculos comuns, ajudando ao próximo e a si mesmo. Procedi, porém, ao inverso. Não u tilizei a lente maravilhosa, no mister justo. Deixando -me empolgar pela curiosidade doentia, apliquei -a tão somente para dilatar minhas sensações. No quadro dos meus trabalhos mediúnicos, estava a recordação de existências pregressas como expressão indispe nsável ao serviço de esclarecimento coletivo e beneficio aos semelhantes, que me fora concedido realizar, mas existe uma ciência de recordar, que não respeitei como devia. Interrompendo um instante a narrativa, aguçava -me o desejo de conhecer -lhe a experiê ncia pessoal até ao fim. Em seguida, continuou no mesmo diapasão: – Ao primeiro chamado da esfera superior, acorri, apressado. Sentia, intuitivamente, a vívida le mbrança de minhas promessas em Nosso Lar . Tinha o coração repleto de propósitos sagrados. Trab alharia. Espalharia muito longe a vibração das verdades eternas. Contudo, aos primeiros contato s com o serviço, a excitação psíquica fez rodar o mecanismo de minhas recordações adormecidas, como o disco sob a agulha da vitrola, e lembrei toda a minha penúl tima existência, quando envergara a batina, sob o nome de Monsenhor Alexandre Pizarro, nos últimos períodos da Inquisição Espanhola. Foi, então, que abusei da lente sagrada a que me referi. “A volúpia das grandes sensações, que pode ser tão prejudicial com o o uso do álcool que embriaga os sentidos, fez olvidar os deveres mais santos. Bafejaram -me claridades espirituais de elevada expressão. Desenvolveu -se-me a clarividência, mas não estava satisfeito senão com rever meus companheiros visíveis e invisíveis, no setor das velhas lutas religiosas. Impunha a mim mesmo a obrigação de localizar cada um deles no tempo, fazendo questão de reconstituir -lhes as fichas biográficas, sem cuidar do verdadeiro aproveitamento no campo do trabalho construtivo. “A audição psíq uica tornou -se-me muito clara; entretanto, não queria ouvir os benfeitores espirituais sobre tarefas proveitosas e sim interpelá -los, ousadamente, no capítulo da minha satisfação egoística. Despendi um tempo enorme, dentro do qual fugia aos companheiros que me vinham pedir atividades a bem do próximo, engolfado em pesquisas referentes à Espanha do meu tempo. Exigia notícias de bispos, de autoridades políticas da época, de padres amigos que haviam errado tanto quanto eu mesmo. “Não faltaram generosas advertências. Fr equen teme nte, os colegas do nosso grupo espiritista chamavam -me a atenção para os problemas sérios de nossa casa. Eram sofredores que nos batiam à porta, situações que reclamavam " André Luiz," testemunho cristão. Tínhamos um abrigo de órfãos em projeto, um ambulatório que começa va a nascer e, sobretudo, serviços semanais de instrução evangélica, nas noites de terças e sextas -feiras. Mas, qual! eu não queria saber senão das minhas descobertas pessoais. Esqueci que o Senhor me permitia aquelas reminiscências, não por satisfazer -me a vaidade, mas para que entendesse a extensão dos meus débitos para com os necessitados do mundo e me entregasse à obra de esclarecimento e conforto aos feridos da sorte. “Contrariamente à expectativa dos abnegados amigos que me auxiliaram na obtenção da o portunidade sublime, não me movi no concurso fraterno e desinteressei -me da doutrina consoladora, que hoje revive o Evangelho de Jesus entre os homens. Somente procurei, a rigor, os que se encontravam afins comigo, desde o pretérito. Nesse propósito, desco bri, com evidentes sinais de identidade, personalidades outrora eminentes, em relação comigo. Reconheci o senhor Higino de Salcedo, grande proprietário de terras, que me havia sido magnânimo protetor, perante as autoridades religiosas da Espanha, reencarna do como proletário inteligente e honesto, mas em grande experiência de sacrifício individual. Revi o velho Gaspar de Lorenzo, figura solerte de inquisidor cruel, que me quisera muito bem, reencarnado como paralítico e cego de nascença. “E desse modo, meu a migo, passei a existência, de surpresa em surpresa, de sensação em sensação. Eu, que renascera recordando para edificar alguma coisa de útil, transformei a lembrança em viciação da personalidade. Perdi a oportunidade bendita de redenção e o pior é o estado de alucinação em que vivo. Com o meu erro, a mente desequilibrou -se e as perturbações psíquicas constituem doloroso martírio. Estou sendo submetido a tratam ento magnético, de longo tempo”. Nesse momento, porém, o interlocutor empalideceu de súbito. Os olhos, desmesuradamente abertos, vagavam como se fixassem quadros impressionantes, muito longe da nossa perspectiva. Depois cambaleou, mas Vicente o amparou de pronto e, passando -lhe a destra na fronte, murmurava em voz firme: – Joel! Joel! Não se entregue às impressões do passado! Volte ao presente de Deus!... Profundamente admirado, notei que o convalescente regressava à expressão normal, esfregando os olhos. " André Luiz," Belarmino, o doutrinador As lições eram eminentemente proveitosas. Traziam -me novos conhecime ntos e, sobretudo, com elas, admirava, cada vez mais, a bondade de Deus, que nos permitia a todos a restauração do aprendizado para serviços do futuro. Muitos de nós havíamos atravessado zonas purgatoriais de sombra e tormento íntimo, uns mais, outros meno s. Bastara, contudo, o reconhecimento de nossa pequenez, a compreensão do nosso imenso débito e ali estávamos, todos, reunidos em “Nosso Lar”, reanimando energias desfalecidas e reconstituindo programas de trabalho. Eu via em todos os companheiros presente s o reflorescimento da esperança. Ninguém se sentia ao desamparo. Observando que numerosos médiuns prosseguiam, em valiosa permuta de ideias, referentemente ao quadro de suas realizações, e ouvindo tantas observações sobre doutrinadores, perguntei a Vicent e, em tom discreto: – Não seria possível, para minha edificação, consultar a experiência de algum doutrinador em trânsito por aqui? Recolhendo notícias de tantos médiuns, com enorme proveito, creio não deva perder esta oportunidade. Vicente refletiu um min uto e respondeu: – Procuremos Belarmino Ferreira. É meu amigo há alguns meses. Segui o companheiro, através de grupos diversos. Belarmino lá estava a um canto, em palestra com um amigo. Fisionomia grave, gestos lentos, deixava transparecer grande tristeza no olhar humilde. Vicente apresentou -me, afetuoso, dando início à conversação edificante. Após a troca de alguns conceitos, Belarmino falou, comovido: – Com que, então, meu amigo deseja conhecer as amarguras de um doutrinador falido? – Não digo isso – obte mperei a sorrir –, desejaria conhecer sua experiência, ganhar também de sua palavra educativa. Ferreira esboçou sorriso forçado, que expressava todo o absinto que ainda lhe requeimava a alma, e falou: – A missão do doutrinador é muitíssimo grave para qualq uer homem. Não é sem razão que se atribui a Nosso Senhor Jesus o título de Mestre. Somente aqui, vim ponderar bastante esta profunda verdade. Meditei muitíssimo, refleti intensamente e concluí que, para atingirmos uma " André Luiz," ressurreição gloriosa, não há, por enq uanto, outro caminho além daquele palmilhado pelo Doutrinador Divino. É digna de menção a atitude d’Ele, abstendo -se de qualquer escravização aos bens terrestres. Não vemos passar o Senhor, em todo o Evangelho, senão fazendo o bem, ensinando o amor, acende ndo a luz, disseminando a verdade. Nunca pensou nisso? Depois de longas meditações, cheguei ao conhecimento de que na vida humana, junto aos que administram e aos que obedecem, há os que ensinam. Chego, pois, a pensar que nas esferas da Crosta há mordomos, cooperadores e servos. Muito especialmente, os que ensinam devem ser dos últimos. Entende o meu irmão? Ah! Sim, havia compreendido perfeitamente. A conceituação de Belarmino era profunda, irrefutável. Aliás, nunca ouvira tão belas apreciações, relativamen te à missão educativa. Após ligeiro intervalo, continuou sempre grave: – Há de estranhar, certamente, tenha eu fracassado, sabendo tanto. Minha tragédia angustiosa, porém, é a de todos os que conhecem o bem, esquecendo -lhe a prática. Calou -se de novo, pens ou, pensou, e prosseguiu: – Faz muitos anos, saí de Nosso Lar com tarefa de doutrinação no campo do Espiritismo evangélico. Minhas promessas, aqui, foram enormes. Minha abnegada Elisa dispôs -se a acompanhar -me no serviço laborioso. Ser -me-ia companheira de svelada, abençoada amiga de sempre. Minha tarefa constaria de trabalho assíduo no Evangelho do Senhor, de modo a doutrinar, primeiramente com o exemplo, e, em seguida, com a palavra. “Duas colônias importantes, que nos convizinham, enviaram muitos servos para a mediunidade e pediram ao nosso Governador cooperasse com a remessa de missionários competentes para o ensino e a orientação. “Não obstante meu passado culposo, candidatei -me ao serviço com endosso do Ministro Gedeão, que não vacilou em auxiliar -me. Deveria desempenhar atividades concernentes ao meu resgate pessoal e atender à tarefa honrosa, veiculando luzes a irmãos nossos nos planos visível e invisível. Impunha -se-me, sobretudo, o dever de amparar as organizações mediúnicas, estimulando companheiros de luta, postos na Terra a serviço da id eia imortalista. Entretanto, meu amigo, não consegui escapar à rede envolvente das tentações. “Desde criança, meus pais socorreram -me com as noções consoladoras e edificantes do Espiritismo cristão. Circunstâncias v árias, que me pareceram casuais, situaram -me o esforço na presidência de um grande grupo espiritista. Os serviços eram promissores, as atividades nobres e construtivas, mas enchi -me de exigências, levado pelo excessivo apego à posição de comando do barco doutrinário. Oito médiuns, extremamente dedicados ao esforço evangélico, ofereciam -me colaboração ativa; contudo, procurei colocar acima de tudo o preceito científico das provas insofismáveis. Cerrei os olhos à lei do merecimento individual, olvidei os imperativos do esforço próprio e, envaidecido com os meus conhecimentos do assunto, comecei por atrai r amigos de mentalidade inferior ao nosso círculo, tão somente em virtude da falsa " André Luiz," posição que usufruíam na cultura filosófica e na pesquisa científica. “Insensivelmente, vicejaram -me na personalidade estranhos propósitos egoísticos. Meus novos amigos quer iam demonstrações de toda a sorte e, ansioso por colher colaboradores na esfera da autoridade científica, eu exigia dos pobres médiuns longas e porfiadas perquirições nos planos invisíveis. O resultado era sempre negativo, porque cada homem receberá, agora e no futuro, de acordo com as próprias obras. Isso me irritava. Instalou -se a dúvida em meu coração, devagarinho. Perdi a serenidade doutro tempo. Comecei a ver nos médiuns, que se retraíam aos meus caprichos, companheiros de má vontade e má fé. Prossegui am nossas reuniões, mas da dúvida passei à descrença destruidora. “Não estávamos num grupo de intercâmbio entre o visível e o invisível? Não eram os médiuns simples aparelhos dos defuntos comunicantes? Porque não viriam aqueles que pudessem atender aos nos sos interesses materiais, imediatos? Não seria melhor estabelecer um processo mecânico e rápido para as comunicações? Porque a negação do invisível aos meus propósitos de demonstrar positivamente o valor da nova doutrina? “Debalde, Elisa me chamava para a esfera religiosa e edificante, onde poderia aliviar o espírito atormentado. “O Evangelho, todavia, é livro divino e, enquanto permanecemos na cegueira da vaidade e da ignorância, não nos expõe seus tesouros sagrados. Por isso mesmo, tachava -o de velharia. E, de desastre a desastre, antes que me firmasse na missão de ensinar, os amigos brilhantes do campo de cogitações inferiores da Terra arrastaram -me ao negativismo completo. “Do nosso agrupamento cristão, onde poderia edificar construções eternas, transfer i-me para o movimento, não da política que eleva, mas da politicalha inferior, que impede o progresso comum e estabelece a confusão nos Espíritos encarnados. Por aí, estacionei muito tempo, desviado dos meus objetivos fundamentais, porque a escravidão ao d inheiro me transformara os sentimentos. “E assim foi, até que acabei meus dias com uma bela situação financeira no mundo e... um corpo crivado de enfermidades; com um palácio confortável de pedra e um deserto no coração. A revivescência da minha inferiorid ade antiga religou -me a companheiros menos dignos no plano dos encarnados e desencarnados, e o resto o meu amigo poderá avaliar: tormentos, remorsos, expiações...” Concluindo, asseverou: – Mas, como não ser assim? Como aprender sem a escola, sem retomar o bem e corrigir o mal? – Sim, Belarmino – disse, abraçando -o –, você tem razão. Tenho a certeza de que não vim tão só ao Centro de Mensageiros, mas também ao centro de grandes lições. " André Luiz," A palavra de Monteiro – Os ensinamentos aqui são variados. Fora o amigo de Belarmino quem tomara a palavra. Mostrando agradável maneira de dizer, continuou: – Há três anos sucessivos, venho diariamente ao Centro de Mensageiros e as lições são sempre novas. Tenho a impressão de que as bênçãos do Espiritismo chegaram prema turamente ao caminho dos homens. Se minha confiança no Pai fosse menos segura, admitiria essa conclusão. Belarmino, que observava atento os gestos do amigo, interveio, explicando: – O nosso Monteiro tem grande experiência do assunto. – Sim – confirmou ele –, experiência não me falta. Também andei às tontas nas semeaduras terrestres. Como sabem, é muito difícil escapar à influência do meio, quando em luta na carne. São tantas e tamanhas as exigências dos sentidos, em relação com o mundo externo, que não esca pei, igualmente, a doloroso desastre. – Mas, como? – indaguei interessado em consolidar conhecimentos. – É que a multiplicidade de fenômenos e as singularidades mediúnicas reservam surpresas de vulto a qualquer doutrinador que possua mais raciocínios na cabeça que sentimentos no coração. Em todos os tempos, o vício intelectual pode desviar qualquer trabalhador mais entusiasta que sincero, e foi o que me aconteceu. Depois de ligeira pausa, prosseguiu: – Não preciso esclarecer que também parti de Nosso Lar , noutro tempo, em missão de Entendimento Espiritual. Não ia para estimular fenômenos, mas para colaborar na iluminação de companheiros encarnados e desencarnados. O serviço era imenso. Nosso amigo Ferreira pode dar testemunho, porquanto partimos quase juntos . Recebi todo o auxilio para iniciar minha grande tarefa e intraduzível alegria me dominava o espírito no desdobramento dos primeiros serviços. Minha mãe, que se convertera em minha devotada orientadora, não cabia em si de contente. Enorme entusiasmo insta lara -se-me no espírito. “Sob meu controle direto estavam alguns médiuns de efeitos físicos, além de outros consagrados à psicografia e à incorporação; e tamanho era o fascínio que o comércio com o invisível exercia sobre mim, que me distrai " André Luiz," completamente quanto à essência moral da doutrina. “Tínhamos quatro reuniões semanais, às quais comparecia com assiduidade absoluta. Confesso que experimentava certa volúpia na doutrinação aos desencarnados de condição inferior. Para todos eles, tinha longas exortações decoradas, na ponta da língua. Aos sofredores, fazia ver que padeciam por culpa própria. Aos embus teiros, recomendava, enfaticamente, a abstenção da mentira criminosa, Os casos de obsessão mereciam -me ardor apaixonado. Estimava enfrentar obsessores cruéis para reduzi -los a zero, no campo da argumentação pesada. “Outra característica que me assinalava a ação firme era a dominação que pretendia exercer sobre alguns pobres sacerdotes católico -romanos desencarnados, em situação de ignorância das verdades divinas. Chegava ao cúmulo de estudar, pacientemente, longos trechos das Escrituras, não para meditá -los com o entendimento, mas por mastigá -los a meu bel -prazer, bolçando -os depois aos Espíritos perturbados, em plena sessão, com a id eia criminosa de falsa superioridade espiritual. O apego às manifestações exteriores desorientou -me por completo. Acendia luze s para os outros, preferindo, porém, os caminhos escuros e esquecendo a mim mesmo. Somente aqui, de volta, pude verificar a extensão da minha cegueira. “Por vezes, após longa doutrinação sobre a paciência, impondo pesadíssimas obrigações aos desencarnados, abria as janelas do grupo de nossas atividades doutrinárias para descompor as crianças que brincavam inocentemente na rua. Concitava os perturbados invisíveis a conservarem serenidade para, daí a instantes, repreender senhoras humildes, presentes à reuniã o, quando não podiam conter o pranto de algum pequenino enfermo. Isso, quanto a coisas mínimas, porque, no meu estabelecimento comercial, minhas atitudes eram inflexíveis. Raro o mês que não mandasse promissórias a protesto público. Lembro -me de alguns var ejistas menos felizes, que me rogavam prazo, desculpas, proteção. Nada me demovia, porém. Os advogados conheciam minhas deliberações implacáveis. Passava os dias no escritório estudando a melhor maneira de perseguir os clientes em atraso, entre preocupaçõe s e observações nem sempre muito retas e, à noite, ia ensinar o amor aos semelhantes, a paciência e a doçura, exaltando o sofrimento e a luta como estradas benditas de preparação para Deus. “Andava cego. Não conseguia perceber que a existência terrestre, p or si só, é uma sessão permanente. Talhava o Espiritismo a meu modo. Toda a proteção e garantia para mim, e valiosos conselhos ao próximo. Ao demais disso, não conseguia retirar a mente dos espetáculos exteriores. Fora das sessões práticas, minha atividade doutrinária consistia em vastíssimos comentários dos fenômenos observados, duelos palavrosos, narrações de acontecimentos insólitos, crítica rigorosa dos médiuns”. Monteiro deteve -se um pouco, sorriu e continuou: – “De desvio em desvio, a angina encontrou -me absolutamente distraído da realidade essencial. Passei para cá, qual demente necessitado de hospício. Tarde reconhecia que abusara das sublimes faculdades do verbo. " André Luiz," Como ensinar sem exemplo, dirigir sem amor? Entidades perigosas e revoltadas aguardaram -me à saída do plano físico. Sentia, porém, comigo, singular fenômeno. Meu raciocínio pedia. socorro divino, mas meu sentimento agarrava -se a objetivos inferiores. Minha cabeça dirigia -se ao Céu, em súplica, mas o coração colava -se à Terra. Nesse estado triste, vi -me rodeado de seres malévolos que me repetiam longas frases de nossas sessões. Com atitude irônica, recomendavam -me serenidade, paciência e perdão às alheias faltas; perguntavam -me, igualmente, porque me não desgarrava do mundo, estando já desencarnado. Vociferei, roguei, gritei, mas tive de suportar esse tormento por muito tempo. “Quando os sentimentos de apego à esfera física se atenuaram, a comiseraç ão de alguns bons amigos me trouxe até aqui. E imagine o irmão que meu Espírito infeliz ainda estava revoltado. Sentia -me descontente. Não havia fomentado as sessões de intercâmbio entre os dois planos? Não me consagrara ao esclarecimento dos desencarnados ? “Percebendo -me a irritação ridícula, amigos generosos submeteram -me a tratamento. Não fiquei satisfeito. Pedi à Ministra Veneranda uma audiência, visto ter sido ela a intercessora da minha oportunidade. Queria explicações que pudessem atender ao meu capr icho individual. A Ministra é sempre muito ocupada, mas sempre atenciosa. Não marcou a audiência, dada a insensatez da solicitação; no entanto, por demasia de gentileza, visitou -me em ocasião que reservara a descanso. Crivei -lhe os ouvidos de lamentações, chorei amargamente e, durante duas horas, ouviu -me a benfeitora por um prodígio de paciência evangélica. Em silêncio expressivo, deixou que me cansasse na exposição longa e inútil. Quando me calei, à espera de palavras que alimentassem o monstro da minha i ncompreensão, Veneranda sorriu e respondeu: – Monteiro, meu amigo, a causa da sua derrota não é complexa, nem difícil de explicar. Entregou -se, você, excessivamente ao Espiritismo prático, junto dos homens, nossos irmãos, mas nunca se interessou pela verda deira prática do Espiritism o junto de Jesus, nosso Mestre. Nesse instante, Monteiro fez longa pausa, pensou uns momentos e falou, comovido: – Desde então, minha atitude mudou muitíssimo, entendeu? Aturdido com a lição profunda, respondi, mastigando palavra s, como quem pensa mais, para falar menos: – Sim, sim, estou procurando compreender. " André Luiz," Ponderações de Vicente Não estava farto de lições, mas, para o momento, havia aprendido bastante. Impressionado com o que me fora dado observar, não insisti com Vicente para prolongar nossa demora no Centro de Mensageiros. Deixando grandes grupos em conversação ativa, reconstituindo projetos e refazendo esperanças, segui o companheiro que me convidava a visitar os imensos jardins. Roseirais enormes balsamizavam a atm osfera leve e límpida. – Sinto -me fortemente impressionado – murmurei –. Quem diria pudessem caber tantas responsabilidades a essas criaturas? Não conheci pessoalmente nenhum médium ou doutrinador do Espiritismo, justificando agora minha surpresa. Vicente sorriu e ponderou: – Você, meu caro, procede das Câmaras de Retificação, onde os trabalhos são muito reservados e circunscritos. Talvez sua impressão provenha dessa circunstância. Verá, porém, com o tempo, que existem aqui locais de conversações dessa natu reza, referentes a todas as oportunidades perdidas. Já visitou alguma dependência do Ministério do Esclarecimento? – Não. – Localizam -se, ali, os enormes pavilhões das escolas maternais. São milhares de irmãs que comentam, por lá, as desventuras da materni dade fracassada, buscando reconstituir energias e caminhos. Ainda ali, temos os Centros de Preparação à Paternidade. Grandes massas de irmãos examinam o quadro de tarefas perdidas e recordam, com lágrimas, o passado de indiferença ao dever. Nesse mesmo Min istério, temos a Especialização Médica. Nobres profissionais da Medicina, que perderam santas oportunidades de elevação, lá discutem seus problemas. Nesse instante o interrompi, observando: – Entretanto, somos médicos e não nos achamos lá. – Sim – explicou Vicente, bondoso –, infelizmente para nós ambos, caímos em toda a linha. Não só na qualidade de médicos, mas muito mais como homens, pois que, se disse a você o que sofri, ainda não contei o que fiz. – É verdade – concordei, desapontado, recordando minha condição de suicida inconsciente. " André Luiz," – Ainda no Esclarecimento – prosseguiu o companheiro –, temos o Instituto de Administradores, onde os Espíritos cultos procuram restaurar as forças próprias e corrigir os erros cometidos na mordomia terrestre. Nos Campos d e Trabalho, do Ministério da Regeneração, existem milhares de trabalhadores que se renovam para a recapitulação das grandes tarefas da obediência. – Somos numerosos – continuou, sorridente – os falidos nas missões terrestres e note -se que todos os que haja m chegado a zonas como “Nosso Lar” devem ser levados à conta dos extremamente felizes. Temos aqui dois Ministérios Celestiais, como o da Elevação e o da União Divina, cuja influenciação santificante eleva o padrão dos nossos pensamentos sem que o percebamo s de maneira direta. O estágio aqui, André, representa uma bênção do Senhor e, por muito que trabalhássemos, nunca retribuiríamos a esta colônia na medida de nosso débito para com ela. Nossa situação é a de abrigados em verdadeiro paraíso, pelo ensejo de serviço edificante que se nos oferece. Quanto a outros companheiros nossos... Fez longo hiato e continuou: – Quanto a muitos, estão fazendo angustiosas estações de aprendizado nas regiões mais baixas. São infelizes prisioneiros uns dos outros, pela cadeia de remorsos e malignas recordações. No que concerne à Medicina, os colegas em bancarrota espiritual são inúmeros. A saúde humana é patrimônio divino e o médico é sacerdote dela. Os que recebem o titulo profissional, em nosso quadro de realizações, sem dele se utilizarem a bem dos semelhantes, pagam caro a indiferença. Os que dele abusam são, por sua vez, situados no campo do crime. Jesus não foi somente o Mestre, foi Médico também. Deixou no mundo o padrão da cura para o Reino de Deus. Ele proporcionava soco rro ao corpo e ministrava fé à alma. Nós, porém, meu caro André, em muitos casos terrestres, nem sempre aliviamos o corpo e quase sempre matamos a fé. As palavras sensatas do amigo caiam -me n’alma como raios de luz. Tudo era a verdade, simples e bela. Aind a não pensara, de fato, em toda a grandeza do serviço divino de Jesus Médico. Ele expulsara febres malignas, curara leprosos e cegos de nascença, levantara paralíticos, mas nunca ficava apenas nisto. Reanimava os doentes, dava -lhes esperanças novas, convid ava-os à compreensão da Vida Eterna. Engolfara -me em pensamentos grandiosos, quando o companheiro voltou a falar: – Tenho um amigo, nosso colega de profissão, que se encontra nas zonas inferiores, há alguns anos, atormentado por dois inimigos cruéis. Acont ece que ele muito faliu como homem e médico. Era cirurgião exímio, mas, tão logo alcançou renome e respeito geral, impressionou -se com as aquisições monetárias e caiu desastradamente. Nos dias de grandes negócios financeiros, deslocava a mente das obrigaçõ es veneráveis, colocando -a distante, na esfera dos banqueiros comuns. Não fosse a proteção espiritual, essa atitude teria comprometido oportunidades vitais de muita gente. A colaboração do pobre amigo tornara -se quase nula, e alguns desencarnados nas inter venções " André Luiz," cirúrgicas que ele praticava, notando -lhe a irresponsabilidade, atribuíram -lhe a causa da morte física, quando não a esperavam, votando -lhe ódio terrível. Amigos do operador prestaram esclarecimentos justos a muitos; entretanto, dois deles, mais ignorantes e maldosos, perseveraram na estranha atitude e o esperaram no limiar do sepulcro. – Horrível! – exclamei. Se ele, porém, não é culpado da desencarnação desses adversários gratuitos, como pode ser atormentado desse modo? Explicou Vicente, em tom mais grave: – Realmente, não tem a culpa da morte deles. Nada fez para interromper -lhes a existência física. Mas é responsável pela inimizade e incompreensão criadas na mente dessas pobres criaturas, porque, não estando seguro do seu dever, nem tranq uilo com a consciência, o nosso amigo julga -se culpado, em razão das outras falhas a que se entregou imprevidentemente. Todo erro traz fraqueza e, assim sendo, o nosso colega, por enquanto, não adquiriu forças para se desvenc ilhar dos algozes. Perante a Justiça Divina, portanto, ele não resgata crimes inexistentes, mas repara certas faltas graves e aprende a conhecer -se a si mesmo, a entender as obrigações nobres e praticá -las, compreendendo, por fim, a felicidade dos que sabe m ser úteis com segurança de fé em Deus e em si mesmos. A noção do dever bem cumprido, André, ainda que todos os homens permaneçam contra nós, é uma luz firme para o dia e abençoado travesseiro para a noite. O nosso colega, tendo abusado da profissão, entr ou em dolorosa prova. – Ah! Sim – exclamei –, agora compreendo. Onde exista uma falta, pode haver muitas perturbações; onde apagamos a luz, podemos cair em qualquer precipício. – Justamente. Calou -se o amigo, andando, muito tempo, ao meu lado, como se estivesse surpreendido, como eu, defrontando as avenidas de rosas. Depois de longas meditações, convidou -me fraternalmente: – Regressemos ao nosso núcleo. Creio devamos ouvir Aniceto, ainda hoje, referentemente ao serviço comum. " André Luiz," Preparativos À noite, An iceto veio vernos, começando por dizer: – Amanhã deveremos partir os três, a serviço nas esferas da Crosta. Telésforo recomendou -me certas atividades de importância, mas posso atendê -las em particular, proporcionando a ambos uma estação semanal de experiên cia e serviço. Fiquei radiante. Muita vez regressara ao ninho doméstico, tornara à cidade em que desenvolvera a tarefa última e, todavia, não me detivera no exame das possibilidades extensas do concurso fraternal. De quando em vez, era defrontado por situa ções difíceis, nas quais velhos conterrâneos encaravam problem as de vulto; entretanto, sentia -me incapaz de auxiliá -los, eficientemente, na solução desejável. Faltava -me técnica espiritual para fazê -lo. Não tinha bastante confiança em mim mesmo. Deixando perceber que ouvira meus pensamentos profundos, Aniceto dirigiu -me a palavra de maneira especial, asseverando: – Você, André, ainda não pôde auxiliar os amigos encarnados porque ainda não adquiriu a devida capacidade para ver. É razoável. Quando na carne, somos muitas vezes inclinados a verificar tão somente os efeito s, sem ponderar as origens. No mendigo, vemos apenas a miséria; no enfermo, somente a ruína física. Faz -se indispensável identificar as causas. Depois de meditar alguns momentos, prosseguiu: – Procuraremos, contudo, remediar a situação. Amanhã, pela madrugada, você e Vicente apareçam no Gabinete de Auxílio Magnético às Percepções, que fica junto ao Centro de Mensageiros. Darei as providências para que vocês alcancem o necessário melhoramento da visão. Peço -lhes, todavia, receberem semelhante auxílio em prece. Roguem a Deus lhes permit a a dilatação do poder visual. Compenetrem -se da grandeza desse dom sublime. E, sobretudo, enviem à Majestade Eterna um pensamento de consagração ao seu amor e aos seus serviços divinos. Não desejo induzi -los a atitudes de fanatismo sem consciência. Não po demos abusar da oração aqui, segundo antigas viciações do sentimento terrestre. No círculo carnal, costumamos utilizá -la em obediência a delituosos caprichos, suplicando facilidades que surgiriam em detrimento de nossa própria iluminação. Aqui, todavia, An dré, a oração é compromisso da criatura para com Deus, compromisso de testemunhos, " André Luiz," esforço e dedicação aos superiores desígnios. Toda prece, entre nós, deve significar, acima de tudo, fidelidade do coração. Quem ora, em nossa condição espiritual, sintoniza a mente com as esferas mais altas e novas luzes lhe abrilhantam os caminhos. Diante da nobre autoridade de Aniceto, não me atrevi a falar e cheguei mesmo a recear a externação de qualquer pensamento. Deixou -nos o generoso instrutor com palavras carinhosas de amizade e incentivo. Vicente e eu acalentávamos projetos magníficos. Fiamos, pela primeira vez, cooperar a favor dos encarnados em geral. Nosso repouso noturno foi brevíssimo. Aguardávamos, ansiosamente, a alvorada, a fim de receber o auxílio magnético do Gabinete referido. Poucas vezes orei com a emoção daquela hora. Os esclarecidos técnicos da instituição colocaram -nos, primeiramente, em relação mental direta com eles e, em seguida, submeteram -nos a determinadas aplicações espirituais, que ainda não p osso compreender em toda a extensão e transcendência. Observei, contudo, que a colaboração magnética não nos retirava o sentido consciencial, e aproveitei a oportunidade para a oração sincera, que era mais um compromisso de trabalho que ato de súplica, propriamente considerado. Decorrido certo tempo, fomos declarados em liberdade para sair, quando nos prouvesse. A princípio, nada notei de extraordinário, embora sentisse, dentro do coração, nova coragem e alegria diferente. Experimentava bom ânimo, até então desconhecido. Meus sentidos da visão e da audição pareciam mais límpidos. Aniceto, que se mostrava muito satisfeito, esperava -nos no Centro, marcando a partida para o meio -dia. Ansioso, aguardei o instante aprazado. Não nos ausentamos de “Nosso Lar” como os viajores terrestres, geralmente carregados de matalotagens e volumes diversos. – Aqui – disse Aniceto jocosamente –, toda a nossa bagagem é a do coração. Na Terra, malas, bolsas, embrulhos; mas, agora, devemos conduzir propósitos, energias, conhecimento s e, acima de tudo, disposição sincera de servir. Alguns companheiros presentes riram -se com gosto. Nesse instante, nosso orientador fez algumas recomendações. Designou colegas para a chefia de turmas de aprendizado, estabeleceu programas de serviço e noti ficou que voltaria à colônia, diariamente, por algumas horas, deixando -nos, Vicente e eu, nos serviços da Crosta, em trabalhos e observações que deveriam prolongar -se por toda a semana. Despedimo -nos dos camaradas de luta, repletos de esperança. Era a noss a primeira excursão de aprendizado e cooperação aos semelhantes. Quando nos puséramos a caminho, nosso Instrutor observou: – Creio que a viagem para vocês será diferente. Certo, estão habituados à passagem livre, mantida por ordem superior para as atividad es normais de nossos trabalhos e trânsito dos irmãos esclarecidos, em vésperas de reencarnação. " André Luiz," – Como assim? – perguntou Vicente, admirado. – Pois não sabia? As regiões inferiores, entre “Nosso Lar” e os círculos da carne, são tão grandes que exigem uma e strada ampla e bem cuidada, requerendo também conservação, como as importantes rotas terrestres. Por lá, obstáculos físicos; por cá, obstáculos espirituais. As vias de comunicação normais destinam -se a intercâmbio indispensável. Os que se encontram nas tarefas da nossa rotina sagrada precisam livre trânsito e os que se dirigem da esfera superior à reencarnação devem seguir com a harmonia possível, sem contato direto com as expressões dos círculos mais baixos. A absorção de elementos inferiores determinaria sérios desequilíbrios no renascimento deles. Há que evitar semelhantes distúrbios. Nós, porém, seguimos numa expedição de aprendizado e experiência. Não devemos, por isso, preferir os caminhos mais fáceis. Identificando -nos a perplexidade, Aniceto concluiu : – Imaginemos um rio de imensas proporções. separando duas regiões diferentes. Existe o vau que oferece transporte rápido e há passagens diversas através de fundos precipícios. Pela expressão do bondoso instrutor, concluí que ele poderia voltar à colônia quando quisesse, que não encontraria obstáculos de qualquer ordem, em parte alguma, em razão do poder espiritual de que se achava revestido, mas fazia -se peregrino, como nós, por devotamento à missão de ensinar. Vicente e eu não dispúnhamos de expressão vi bratória adequada aos grandes feitos. Éramos vulgares, quanto o era a maioria dos habitantes da nossa cidade espiritual. Possuíamos apenas alguns princípios de volitação; contudo, permanecíamos muito distantes do verdadeiro poder. Nunca vira, pois, a energ ia e a humildade em tão belo consórcio. Aniceto dirigia -nos, firmemente, como orientador de pulso, vigoroso e sábio, mas não vacilava em se fazer igual a nós, a fim de servir como devotado companheiro. Meditando sobre a lição sublime, em pleno impulso voli tante, contemplei as torres de “Nosso Lar”, que iam ficando a distância... " André Luiz," A viagem Depois de empregarmos o processo de condução rápida, atravessando imensas distâncias, surgiu uma região menos bela. O firmamento cobrira -se de nuvens espessas e algu ma coisa que eu não podia compreender impedia -nos a volitação com facilidade. Creio que o mesmo não acontecia ao nosso instrutor, mas Vicente e eu fazíamos enorme esforço para acompanhá -lo. Aniceto percebeu, de pronto, nossos obstáculos e considerou: – Será conveniente utilizarmos a locomoção. A atmosfera começa a pesar muitíssimo e não devemos andar muito distante de Campo da Paz. Não precisaremos ir até lá; todavia, descansaremos no Posto de Socorro. Encontraremos, ali, os recursos indispensáveis. – Mas, que é isto? – perguntei, admirado da profunda modificação ambiente. – Estamos penetrando a esfera de vibrações mais fortes da mente humana. Achamo -nos a grande distância da Crosta; entretanto, já podemos identificar, desde logo, a influenciação mental da Humanidade encarnada. Grandes lutas desenrolam -se nestes planos e milhares de irmãos abnegados aqui se votam à missão de ensinar e consolar os que so frem. Em parte alguma escasseia o amparo divino. Nesse instante, chegáramos ao cume de grande montanha, envolvida em sombra fumarenta. No solo, desenhavam -se trilhas diversas, à maneira de labirintos bem formados. Observando -nos a estranheza, Aniceto falou com otimismo: – Sigamos! Nesse momento, ó Deus de Bondade! Alguma coisa imprevista me felicitava o coração. Contrastando as sombras, raios de luz desprendiam -se intensamente de nossos corpos. Extraordinária comoção apossou -se-me d'alma. Vicente e eu ajoel hamo -nos a um só tempo, banhados em lágrimas, enviando ao Eterno os nossos profundos agradecimentos, em votos de júbilo fervoroso. Estávamos embriagados de ventura. Era a primeira vez que me vestia de luz, luz que se irradiava de todas as células do meu co rpo espiritual. Aniceto, que se mantinha de pé, a contemplar -nos com expressão de alegria, falou comovidamente: " André Luiz," – Muito bem, meus amigos! Agradeçamos a Deus os dons de amor, sabedoria e misericórdia. Saibamos manifestar ao Pai o nosso reconhecimento. Quem não sabe agradecer, não sabe receber e, muito menos, pedir. Durante muito tempo, Vicente e eu mantivemo -nos em prece repleta de alegrias e de lágrimas... Em seguida, retomamos a marcha, como se estivéssemos vestidos em sublime luminosidade. As surpresas, n o entanto, sucediam -se ininterruptamente. Aquelas vias de comunicação eram muito diversas das que conhecia até ali. Mergulhávamos num clima estranho, onde predominavam o frio e a ausência de luz solar. A topografia era um conjunto de paisagens misteriosas, lembrando filmes fantásticos da cinematografia terrestre. Picos altíssimos semelhavam vigorosas agulhas de treva, desafiando a vastidão. Descíamos sempre, como viajores ladeando escuros precipícios, em país de exotismo ameaçador. Esquisita vegetação subia do solo, de espaço a espaço, entre os grandes abismos. Aves de horripilante aspecto surgiam, medrosas, de quando em quando, enchendo o silêncio de pios angustiados. Rija ventania soprava em todas as direções. Fundamente assombrado, cobrei ânimo e pergunte i ao nosso instrutor: – Que dizeis de tudo isto? Ignorava que houvesse tais regiões entre a Crosta e nossa cidade espiritual. À nossa frente, sinto um mundo novo, que me é totalmente desconhecido... Por quem sois, nobre Aniceto, nada vos pergunto por ocios idade, mas estas terras me surpreendem profundamente. Aniceto, sempre amável, sorriu docemente e respondeu: – Todo este mundo que vemos é continuação de nossa Terra. Os olhos humanos veem apenas algumas expressões do vale em que se exercitam para a verdade ira visão espiritual, como nós outros que, observando agora alguma coisa, não estamos igualmente vendo tudo. Este, André, é um domínio diferente. A percepção humana não consegue apreender senão determinado número de vibrações. Comparando as restritas possi bilidades humanas com as grandezas do Universo Infinito, os sentidos físicos são muitíssimo limitados. O homem recebe reduzido noticiário do mundo que lhe é moradia. É verdade que tem devassado com a sua ciência problemas profundos. A astronomia terrena conhece que o Sol, por medidas aproximadas, é .. vezes maior que a Terra e que a estrela Capela é . vezes maior que o nosso Sol; sabe que Arcturo equivale a milhares de sóis, iguais ao que nos ilumina; está informada de que Canópus corresponde a . sóis idênticos ao nosso, reunidos; mediu as distâncias entre o nosso planeta e a Lua; acompanha certos fenômenos em Marte, Saturno, Vênus e Júpiter; sonda os milhões de sóis aglomerados na Via Láctea; conhece as estrelas variáveis, as nebulosas espira is e difusas. E não param as observações humanas na grandeza ilimitada do Macrocosmo. A Ciência vai, igualmente, aos círculos atômicos analisa a materialização da energia, o movimento dos elétrons, estuda o bombardeio de átomos e esquadrinha corpúsculos di versos. Mas todo esse trabalho, com a colaboração das lunetas de alta potência e dos geradores de milhões de volts, ainda é serviço que apenas identifica os aspectos exteriores da vida. Há, porém, André, outros mundos sutis, dentro dos mundos grosseiros, m aravilhosas esferas que se " André Luiz," interpenetram. O olho humano sofre variadas limitações e todas as lentes físicas reunidas não conseguiriam surpreender o campo da alma, que exige o desenvolvimento das faculdades espirituais para tornar -se perceptível. A eletrici dade e o magnetismo são duas correntes poderosas que começam a descortinar aos nossos irmãos encarnados alguma coisa dos infinitos potenciais do invisível, mas ainda é cedo para cogitarmos de êxito completo. Somente ao homem de sentidos espirituais desenvo lvidos é possível revelar alguns pormenores das paisagens sob nossos olhos. A maioria das criaturas ligadas à Crosta não entende estas verdades, senão após perderem os laços físicos mais grosseiros. È da lei, que não devemos ver senão o que possamos observ ar com proveito. Nessa altura, Aniceto calou -se. Comovido com as instruções, guardei religioso silêncio. Agora, em meio das sombras, divisava alguns vultos negros, que pareciam fugir apressados, confundindo -se na treva das furnas próximas. Nosso orientador avisou, cauteloso: – Procuremos interromper os efeitos luminosos do nosso corpo espiritual. Bastará que pensem com vigor na necessidade dessa providência. Estamos atravessando extensa zona, a que se acolhem muitos desventurados, e não é justo humilhar os que sofrem com a exibição de nossos bens. Obedecendo ao conselho, verifiquei o efeito imediato. Os fios de luz que me irradiavam do corpo apagaram -se como por encanto. A excursão tornou -se menos agradável. Descíamos, milagrosamente, através dos despenhadei ros de longa extensão. A sombra fizera -se mais densa, a ventania mais lamentosa e impressionante. Após algum tempo de marcha em silêncio, divisamos ao longe um grande castelo iluminado. Aniceto fez um gesto significativo com o indicador e explicou: – É um dos Postos de Socorro de Campo da Paz. " André Luiz," No Posto de Socorro Deslumbrava -me a visão do castelo soberbo! Incapaz de exprimir a admiração que me dominava, acompanhei Aniceto em silêncio. Com grande surpresa, entretanto, verifiquei que a construção magní fica não se mantinha sem defesa. Cercavam -na pesados muros numa extensão que meus olhos não conseguiam abranger. Quem imaginasse uma tal instituição, localizada nas zonas invisíveis, dificilmente conceberia contrafortes daquela natureza. A noção de céu e inferno, fundamente arraigada na mente popular, não deixa perceber que os homens, de modo geral, não se modificam com a morte física, como a troca de residência não significa mudança de personalidade para a criatura comum. Espantado, notei que o nosso orien tador fazia mover quase imperceptível campainha, disfarçada na muralha. Creio que, se Aniceto estivesse só, não precisaria desse expediente, dado o seu poder espiritual acima de todas as resistências grosseiras; no entanto, estávamos em sua companhia e, mais uma vez, quis igualar -se a nós, por fidalguia de tratamento. Ocultar a própria glória é do código do bom tom nas sociedades espirituais nobres e santas. Atendendo -nos, dois servidores abriram a porta extremamente pesada, que rodou nos gonzos, como se da ria em qualquer edificação mais antiga do plano terrestre. – Salve! Mensageiros do bem! – disseram ambos ao mesmo tempo, fixando Aniceto, em atitude reverente. Aniceto levantou a mão, que se fez luminosa nesse instante, e balbuciou algumas palavras de amor , retribuindo a saudação respeitosa. Entramos. Fiquei admirado! Pomares e jardins maravilhosos perdiam -se de vista. A sombra, aí, não era tão intensa. Sentíamo -nos banhados em suavidade crepuscular, graças aos grandes focos de luz radiante. O interior apre sentava aspectos inesperados. Somente agora eu compreendia que a muralha ocultava a maioria das construções. Pavilhões de vulto alinhavam -se como se estivéssemos diante de prodigioso educandário. Turmas variadas de homens e mulheres dedicavam -se a serviços múltiplos. Ninguém parecia dar conta de nossa presença, tal o interesse que o trabalho despertava em cada um. Acompanhávamos Aniceto através de numerosas fileiras de árvores " André Luiz," senhoris, que se assemelhavam a carvalhos antiq uíssimos. Observava, todavia, que nesse abençoado Posto de Socorro a Natureza se fizera maternal. Havia, agora, mais luz no céu e o vento era mais fagueiro, sussurrando brandamente no arvoredo farto. O bondoso instrutor, notando a nossa admiração, esclareceu: – Esta paz reflete o estado me ntal dos que vivem neste pouso de assistência fraterna. Acabamos de atravessar uma zona de grandes conflitos espirituais, que vocês ainda não podem perceber. A Natureza é mãe amorosa em toda a parte, mas, cada lugar mostra a influenciação dos filhos de Deu s que o habitam. A explicação não poderia ser mais clara. Atingindo o edifício central, construído à maneira de formoso castelo europeu dos tempos feudais, fomos defrontados por um casal extremamente simpático. – Meu caro Aniceto! – falou o cavalheiro, abr açando o nosso orientador. – Meu caro Alfredo! Minha nobre Ismália! – respondeu Aniceto, sorridente. Após as saudações afetuosas, apresentou -nos, lisonjeiro. O casal abraçou -nos, evidenciando cordialidade e atenção amiga. – Nosso prezado Alfredo – continuo u Aniceto, elucidando – é o dedicado Administrador deste Posto de Socorro. Há muito tempo consagrou -se ao serviço de nossos irmãos ignorantes e desviados. – Oh! Oh! Não prossiga – revidou o apresentado, como a fugir às referências elogiosas –, consagrei -me simplesmente ao dever. E, como se quisesse modificar a conversação, prosseguiu, atencioso: – Mas, que surpresa agradável! Há muitos dias não temos visitas de “Nosso Lar”! Ainda bem que vieram hoje, quando Ismália veio igualmente ter comigo!... Pois quê? – considerei intimamente. Não seria aquela senhora, de lindo semblante, a esposa dele? Não viveriam ali juntos, como na Terra? Antes, porém, que pudesse chegar a qualquer conclusão, Alfredo conduzia -nos ao interior doméstico. As escadas de substância idênti ca ao mármore, impressionavam -me pela transparente beleza. De varanda extensa e nobre, onde as colunatas se enfeitavam de hera florida, muito diferente, porém, da que conhecemos na Terra, penetramos em vasto salão mobiliado ao gosto mais antigo. Os móveis delicadamente esculturados formavam conjunto encantador. Admirado, fixei as paredes, de onde pendiam quadros maravilhosos. Um deles, contudo, impunha -me especial atenção. Era uma tela enorme, representando o martírio de São Dinis, o Apóstolo das Gálias rudemente supliciado nos primeiros tempos do Cristianismo, segundo meus humildes conhecimentos de História. Intrigado, recordei que vira, na Terra, um quadro absolutamente igual àquele. Não se tratava de um famoso trabalho de Bonnat, célebre pintor francês do s últimos tempos? A cópia do Posto de Socorro, todavia, era muito mais bela. A lenda popular estava lindamente expressa nos mínimos detalhes. O glorioso Apóstolo, seminu, com a cabeça decepada, tronco aureolado de intensa luz, fazia um " André Luiz," esforço supremo por levantar o próprio crânio que lhe rolara aos pés, enquanto os assassinos o contemplavam, tomados de intenso horror; do alto, via -se descer um emissário divino, trazendo ao Servo do Senhor a coroa e a palma da vitória. Havia, porém, naquela cópia, profunda luminosidade, como se cada pincelada contivesse movimento e vida. Observando -me a admiração, Alfredo falou, sorrindo: – Quantos nos visitam, pela primeira vez, estimam a contemplação desta cópia soberba. – Ah! Sim – retruquei –, o original, segundo estou i nformado, pode ser visto no Panteão de Paris. – Engana -se – elucidou o meu gentil interlocutor –, nem todos os quadros, como nem todas as grandes composições artísticas, são originariamente da Terra. É certo que devemos muitas criações sublimes à cerebraçã o humana; mas, neste caso, o assunto é mais transcendente. Temos aqui a história real dessa tela magnífica. Foi idealizada e executada por nobre artista cristão, numa cidade espiritual muito ligada à França. Em fins do século passado, embora estivesse reti do no círculo carnal, o grande pintor de Bayonne visitou essa colônia em noite de excelsa inspiração, que ele, humanamente, poderia classificar de maravilhoso sonho. Desde o minuto em que viu a tela, Florentino Bonnat não descansou enquanto não a reproduzi u, palidamente, em desenho que ficou célebre no mundo inteiro. As cópias terrestres, todavia, não têm essa pureza de linhas e luzes, e nem mesmo a reprodução sob nossos olhos tem a beleza imponente do original, que já tive a felicidade de contemplar de perto, quando organizávamos, aqui no Posto, homenagens singelas para a honrosa visita que nos fez o grande servo do Cristo. Para movimentar as providências necessárias, visitei pessoalmente a cidade espiritual a que me referi. Grande espanto apossara -se-me do coração. Via, agora, explicada a tortura santa dos grandes artistas, divinamente inspirados na criação de obras imortais; agora, reconhecia que toda arte elevada é sublime na Terra, porque traduz visões gloriosas do homem na luz dos planos superiores. Parecendo interessado em completar meus pensamentos, Alfredo considerou: – O gênio construtivo expr essa superioridade espiritual com livre trânsito entre as fontes sublimes da vida. Ninguém cria sem ver, ouvir ou sentir, e os artistas de superior mentalidade costumam ver, ouvir e sentir as realizações mais altas do caminho para Deus. Mas, voltando -se, afável, para Aniceto, exclamou: – No entanto, o momento não comporta divagações. Sentemo -nos. Devem estar cansados da peregrinação difícil. Necessitam refazer energias e repousar algum tanto ; " André Luiz," O romance de Alfredo Depois de alguns minutos, utilizados por nós no serviço da higiene reconfortadora, Alfredo convidou -nos à mesa, onde Ismália, com extrema fidalguia, mandou servir frutos diversos. Os senhores do castelo não podiam ser mais gentis. Servidores iam e vinham, com grande júbilo a lhes transparecer do rosto. A palestra de Alfredo e as observações de Ismália estavam cheias de notas interessantes e educativas. – E qual a sua impressão dos serviços em geral? – perguntou Aniceto, atencioso, dirigindo -se ao dono da casa. – Excelente, quanto às oportunida des de realização que nos oferecem – respondeu Alfredo em tom significativo –; entretanto, não tenho o mesmo parecer quanto à situação em curso. As zonas a que servimos estão repletas de novidades dolorosas. O presente período humano é de conflitos devasta dores e as vibrações contraditórias que nos atingem são de molde a enfraquecer qualquer ânimo menos decidido. Desencarnados e encarnados empenham -se em batalhas destruidoras. É uma lástima. – Multiplica -se o número de necessitados que recorrem ao Posto? – continuou indagando nosso orientador. – Enormemente. Nossa produção de alimentos e remédios tem sido integralmente absorvida pelos famintos e doentes. Tenho quinhentos cooperadores, mas nos sentimos presentemente incapazes de atender a todas as obrigações. As massas de sofredores são incontáveis. Noutro tempo, nossa paisagem se mantinha sem sombras, durante muitas semanas, mas... Nesse instante, Ismália pediu licença para dirigir -se ao interior. E como Alfredo fixasse os olhos nos meus, aventurei -me a consi derar: – Ainda bem que tendes uma abnegada companheira ao vosso lado. Ele e Aniceto sorriram, quase a uni só tempo, falando -nos o administrador: – Ah! Meus amigos, por enquanto, não tenho essa felicidade em caráter definitivo. Minha esposa e eu temos o div ino compromisso da união eterna, mas ainda não lhe mereço a presença contínua. Ela é a bondade celeste, e eu, a realidade humana. Depois de pequena pausa, prosseguiu com gentileza: " André Luiz," – Aniceto conhece -nos a história. Vocês, porém, a ignoram. Sentir -me-ei, portanto, contente, em relatar algumas lembranças, com benefício duplo. Aliviarei o coração, uma vez mais, contando minhas faltas, e vocês dois, que talvez tenham em breve novos serviços na Terra, aproveitarão, por certo, alguma coisa das minhas experiências . “Ismália e eu guardávamos um escrínio de felicidade no mundo; no entanto, os salteadores perversos espreitavam -nos a ventura. Minha responsabilidade era enorme no campo dos negócios materiais e, longe de compreender as obrigações sublimes de esposo e pai , não procurava atender aos deveres justos para com o lar e os dois filhinhos que Deus me enviara ao círculo doméstico. Ismália, porém, era a providência de nossa casa. Esqueci -me, contudo, de que a virtude, a qualquer tempo, será atormentada pelo vicio e minha nobre companheira foi vítima da maldade de um amigo desleal, com quem tinha eu inúmeros interesses em comum, no campo monetário. Minha esposa sofreu, em silêncio, a perseguição dele por alguns anos consecutivos. E quando meu desventurado sócio verifi cou a inutilidade da atitude criminosa, em franco desespero buscou envenenar -me o espírito desprevenido. Começou por advertir -me, quanto ao procedimento dela. Atordoou -me, envolvendo -a em acusações descabidas. Subornou criados domésticos e colocou espiões que seguissem minha querida Ismália, nas tarefas de esposa e mãe. “Esse homem exercia profunda influência sobre mim e, atendendo aos laços que nos uniam, minha companheira jamais se sentiu com bastante coragem para denunciá -lo. Enquanto dava ouvidos à calú nia, fora de meu círculo doméstico, tornara -me intolerável dentro dele. Não sabia contemplar minha esposa com a despreocupação e a confiança absoluta de outra época. Via o mal nos seus mínimos gestos e queria descobrir segundas intenções nas suas frases ma is inocentes. Cheguei a acusá -la, veladamente. Ismália chorou e calou -se. Por fim, nosso infeliz perseguidor subornou um homem de baixa condição que permaneceu, certa noite, ao lado de nossos aposentos particulares como vulgar ladrão, às ocultas, sendo eu convocado à prova máxima. Penetrei no quarto em extremo desespero e acusei em voz alta ao ver a companheira profundamente tranq uila. Ismália levantou -se, receosa da minha saúde mental, mas não lhe atendi os rogos, procurando, como louco, o conspurcador da minha honra... Abri violentamente grande armário antigo, vasculhando o quarto. Nesse instante, o vulto de um homem esgueirou -se na sombra, do aposento próximo, e, antes que eu pudesse agarrá -lo no meu ódio infrene, saltou a janela, alcançando o pomar de no ssa casa. Corri, desesperado detonando balas a esmo, mas, nada consegui. Regressei ao quarto e, para cúmulo da calúnia odiosa, o desconhecido deixara, atrás de si, um chapéu novo, rigorosamente moderno, para que se acentuassem meus sentimentos terríveis. O lhos congestos, vomitando insultos, quis eliminar Ismália, banhada em lágrimas a meus pés; no entanto, alguma coisa, que nunca pude compreender na Terra, paralisou -me o braço quase homicida. Vociferando blasfêmias, surdo aos rogos dela, afastei -me do lar, tomado de horror . “No dia imediato, fiz valer meu direito exclusivo sobre os filhos e " André Luiz," providenciei para que Ismália, convertida em estátua de dor, fosse restituída à fazenda paterna. Contratei uma governanta para os meninos e, logo após, tomei um paquete para a Europa, on de me demorei mais de três anos. Nunca me propus a verificações sérias e, embora tivesse o espírito incessantemente atormentado, humilhei os sentimentos mais íntimos, jamais procurando notícias da companheira caluniada. “Certo dia, recebi uma carta lacônic a na costa francesa. Um parente dava -me informações da esposa. Após dois anos angustiosos, entre a saudade e o abandono, Ismália fora colhida pela tuberculose, falecendo em terrível martirológio moral. Deliberei, então, a volta. Fixei -me novamente no Rio, eduquei os filhinhos e conservei a dolorosa viuvez no desencanto do coração. “Os anos rolaram uns sobre os outros, quando fui chamado à cabeceira do ex-sócio agonizante. O infeliz, em face da morte, confessou o crime odioso, pedindo um perdão que, infelizm ente, não pude conceder. Transformei -me, desde então, num louco irremediável. Cansado, envelhecido, procurei a propriedade rural dos sogros, tentando reparar, de alguma sorte, a injustiça, mas a morte não me deu ensejo e voltei para a esfera dos desencarna dos, em tristes condições espirituais”. Nesse instante, fez uma pausa, para continuar comovido: – Não preciso dizer que recebi de Ismália todo o amparo de que necessitava. Todavia, infelizmente para mim, estávamos separados. Não mereci a bênção da união su blime. Ismália segue -me de perto, mas tem residência num plano superior, que devo esforçar -me por alcançar. Desde muito, dediquei -me aos serviços do nosso Posto de Socorro, consagrei -me aos ignorantes e sofredores, e minha santa Ismália vem até aqui, mensa lmente, incentivar -me o bom ânimo e amparar -me nas lutas. – Mas não poderia ela transferir -se definitivamente para aqui? – indagou Vicente, tão impressionado quanto eu, com o romance comovedor. Alfredo sorriu e falou: – Sei que Ismália tem trabalhado para isso, que seu ideal de união eterna é idêntico ao meu, atendendo à circunstância de estar o superior sempre em posição de dar ao inferior; mas não ignoro que foi advertida por nossos maiores, sobre as minhas atuais necessidades de esforço e solidão. Precis o conhecer o preço da felicidade, para não menosprezar, de novo, as bênçãos de Deus. Minha esposa deseja descer para encontrar -se definitivamente comigo; entretanto, é necessário que eu aprenda a subir e, por este motivo, ainda não recebemos a devida permi ssão para o definitivo consórcio espiritual. Observando -nos a emoção, concluiu: – Estou resgatando crimes de precipitação. Pela impulsividade delituosa, perdi minha paz, meu lar e minha devotada companheira. Conforme ouviram, não matei nem roubei a ninguém , mas envenenei -me a mim próprio. A calúnia é um monstro invisível, que ataca o homem através dos ouvidos invigilantes e dos olhos desprevenidos. " André Luiz," Informações e esclarecimentos A volta de Ismália ao circulo da conversação impediu o prosseguimento do assunto. Aproveitando, talvez, a oportunidade, Aniceto perguntou ao administrador: – Que me diz da continuação de nossa viagem? Estimaríamos alcançar, ainda hoje, as esferas da Crosta. Dirigiu -nos Alfredo significativo olhar e falou: – Não me sinto com o d ireito de alterar -lhes o plano de serviço, mas seria conveniente pernoitarem aqui. Nossos aparelhos assinalam aproximação de grande tempestade magnética, ainda para hoje. Sangrentas batalhas estão sendo travadas na superfície do globo. Os que não se encont ram nas linhas de fogo permanecem nas linhas da palavra e do pensamento. Quem não luta nas ações bélicas está no combate das id eias, comentando a situação. Reduzido número de homens e mulheres continuam cultivando a espiritualidade superior. É natural, por tanto, que se intensifiquem, ao longo da Crosta, espessas nuvens de resíduos mentais dos encarnados invigilantes, multiplicando as tormentas destruidoras. Aniceto escutava com atenção. – Não me preocupo com sua pessoa – continuou Alfredo, dirigindo -se de maneira particular ao nosso instrutor –, mas estes dois amigos, penso, seriam desagradavelmente surpreendidos. – Tem razão – concordou Aniceto. E, esboçando significativa expressão fisionômica, prosseguiu: – Avalio o sacrifício dos nossos companheiros espir ituais, nos trabalhos de preservação da saúde humana. – São grandes servidores – disse o senhor do castelo. – De quando em quando, observo -lhes, pessoalmente, os núcleos de atividade santa. A Humanidade parece preferir a condição de eterna criança. Faz e d esfaz os patrimônios da civilização, como se brincasse com bonecas. Nossos amigos suportam pesados fardos de serviço para que as tormentas magnéticas, invisíveis ao olhar humano, não disseminem vibrações mortíferas, a se traduzirem pela dilatação de penúri as da guerra e por epidemias sem conta. As colônias espirituais da Europa, mormente as de nosso nível, estão sofrendo " André Luiz," amargamente para atenderem às necessidades gerais. Já começamos a receber grandes massas de desencarnados, em conseq uência dos bombardeios . “Nosso Lar”, pela missão que lhe cabe, ainda não pode imaginar todo o esforço que o conflito mundial vem exigindo da nossa colaboração nas esferas mais baixas. Os Postos de Socorro de várias colônias, ligadas a nós, estão superlotados de europeus desenca rnados violentamente. Fomos notificados de que as súplicas da Europa dilaceram o coração angélico dos mais altos cooperadores de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aos terríveis bombardeios na Inglaterra, na Holanda, Bélgica e França, sucedem -se outros de não meno r extensão. Depois de reiteradas assembl eias dos nossos mentores espirituais, resolveu -se providenciar a remoção de, pelo menos, cinq uenta por cento dos desencarnados na guerra em curso, para os nossos núcleos americanos. Temos aqui o nosso campo de concen tração com mais de quatrocentos. – Mas não há dificuldade no socorro a essa gente? – indagou Aniceto em tom grave. – E a questão da linguagem? – Os serviços de socorro, apesar de intensos na Europa, têm sido muito bem organizados, explicou Alfredo –; para cada grupo de cinq uenta infelizes, as colônias, do Velho Mundo fornecem um enfermeiro -instrutor, com quem nos possamos entender, de modo direto. Desse modo, o problema não pesa tanto, porque nossa parte de colaboração consta de fornecimento de pessoal de serviço e de material de assistência. – Não seria, porém, mais justo – indagou Vicente – que os desencarnados dessa espécie fossem mantidos nas próprias regiões do conflito? Alfredo sorriu e explicou: – Nossos instrutor es mais elevados são de parecer que essas aglomerações seriam fatais à coletividade dos Espíritos encarnados. Determinariam focos pestilenciais de origem transcendente, com resultados imprevisíveis. Inúmeros de nossos irmãos que perdem o corpo nas zonas assoladas não conseguem subtrair -se ao campo da angústia; mas, quantos ofereçam possibilidades de transferência para cá, dentro das nossas cotas de alojamento, são retirados dali, sem perda de tempo, para que seus pensamentos atormentados não pesem em demasi a nas fontes vitais das regiões sacrificadas. Nesse ínterim, Aniceto interveio, esclarecendo: – Embalde voltarão os países do mundo aos massacres recíprocos. O erro de uma nação influirá em todas, como o gemido de um homem perturbaria o contentamento de mi lhões. A neutralidade é um mito, o insulamento uma ficção do orgulho político. A Humanidade terrestre é uma família de Deus, como bilhões de outras famílias planetárias no Universo Infinito. Em vão a guerra desfechará desencarnações em massa. Esses mesmos mortos pesarão na economia espiritual da Terra. Enquanto houver discórdia entre nós, pagaremos doloroso preço em suor e lágrimas. A guerra fascina a mentalidade de todos os povos, inclusive de grande número de núcleos das esferas invisíveis. Quem não empun ha as armas destruidoras, dificilmente se afastará do verbo destruidor, no campo da palavra ou da id eia. Mas, todos nós pagaremos tributo. É da lei divina, que nos entendamos e nos amemos uns aos outros. Todos sofreremos os " André Luiz," resultados do esquecimento da le i, mas cada um será responsabilizado, de perto, pela cota de discórdia que haja trazido à família mundial. Alfredo, que parecia ponderar seriamente os conceitos ouvidos, observou: – É justo. Aniceto voltou a considerar, após silêncio mais longo: – Estive p essoalmente, a semana passada, em “Alvorada Nova”, que fica em zonas mais altas, e vim a saber que avançados núcleos de espiritualidade superior, dos planetas vizinhos, desde as primeiras declarações desta guerra, determinaram providências de máxima vigilâ ncia, nas fronteiras vibratórias mantidas conosco. Ensinam -nos os vizinhos beneméritos que devemos suportar, nos próprios ombros, toda a produção de mal que levarmos a efeito. Somos, finalmente, a casa grande, obrigada a lavar a roupa suja nas próprias dependências. Sorrimos todos, com essa comparação. Ismália, que permanecia em silêncio, não obstante a funda impressão que se lhe estampara no rosto, considerou com delicadeza: – Infelizmente, na feição coletiva, somos ainda aquela Jerusalém escravizada ao er ro. Todos os dias somos curados por Jesus e todos os dias conduzimo -lo ao madeiro. Nossas obras estão reduzidas quase a simples recapitulações que fracassam sempre. Não saímos do estágio da experiência. E, dolorosamente para nós, estamos sempre a ensaiar, no mundo, a política com os Césares, a justiça com os Pilatos, a fé religiosa com os Fariseus, o sacerdócio com os rabinos do Sinédrio, a crença com os Jairos que acreditam e duvidam ao mesmo tempo, os negócios com os Anases e Caifases. Neste passo, não po demos prever a extensão dos acontecimentos cruciais. Encantado com as definições ouvidas, aventurei -me a dizer: – Como é angustiosa, porém, a destruição pela guerra! – Nestes tempos, contudo – observou Alfredo, bondosamente –, a prece é uma luz mais intens a no coração dos homens. Bem se diz que a estrela brilha mais fortemente nas noites sem luz. Imaginem que, para iniciar providências de recepção aos desencarnados em desespero, já fui, mais de uma vez, aos serviços de assistência na Europa. Há dias, em mis são dessa natureza, fomos, eu e alguns companheiros, aos céus de Bristol. A nobre cidade inglesa estava sendo sobrevoada por alguns aviões pesados de bombardeio. As perspectivas de destruição eram assustadoras. No seio da noite, porém, destacava -se, à noss a visão espiritual, um farol de intensa luz. Seus raios faiscavam no firmamento, enquanto as bombas eram arremessadas ao solo. A chefia da expedição recomendou nossa descida no ponto luminoso. Com surpresa, verifiquei que estávamos numa igreja, cujo recint o devia ser quase sombrio para o olhar humano, mas altamente luminoso para nossos olhos. Notei, então, que alguns cristãos corajosos reuniam -se ali e cantavam hinos. O Ministro do Culto lera a passagem dos Atos, em que Paulo e Silas cantavam à meia -noite, na prisão, e as vozes cristalinas elevavam -se ao Céu, em notas de fervorosa confiança. Enquanto rebentavam estilhaços lá fora, os discípulos do Evangelho cantavam, " André Luiz," unidos, em celestial vibração de fé viva. Nosso chefe mandou que nos conservássemos de pé, diante daquelas almas heroicas , que recordavam os primeiros cristãos perseguidos, em sinal de respeito e reconhecimento. Ele também acompanhou os hinos e depois nos disse que os políticos construiriam os abrigos antiaéreos, mas que os cristãos edificariam n a Terra os abrigos antitrevosos. – Às vezes – concluiu o senhor do castelo, em tom significativo – é preciso sofrer para compreender as bênçãos divinas. " André Luiz," O sopro Depois de interessantes considerações relativamente à situação dos círculos carnais, Ani ceto voltou a examinar nossas necessidades de serviço. Muito amável, Alfredo ponderou: – Em virtude da tormenta iminente, poderiam demorar conosco algumas horas, seguindo amanhã, ao alvorecer. E, com profunda surpresa, ouvi -o afirmar: – Poderão utilizar me u carro, até a zona em que se torne possível. Fornecerei condutor adestrado e ganharão muito tempo com a medida. Não podia caber em meu espanto. Embora conhecendo as operações dos Samaritanos em “Nosso Lar”, que empregavam grandes veículos de tração animal , em trabalhos de salvamento nas regiões inferiores e considerando as dificuldades de vulto que defrontáramos na caminhada longa, rumo ao Posto de Socorro, não supunha possível semelhante condução naquele instituto de auxilio. Soube, mais tarde, que os sis temas de transporte, nas zonas mais próximas da Crosta, são muito mais numerosos do que se poderia imaginar, em bases transcendentes do eletromagnetismo. Nosso orientador, que parecia meditar gravemente a situação, observou preocupado: – Entretanto, temos serviços urgentes nos círculos carnais. Vicente e André precisam iniciar aprendizado ativo. Alfredo sorriu, bondoso, asseverando: – Quanto a isso, não necessitaremos de maiores cuidados. Há sempre quefazeres em toda a parte. Onde houver espírito de coopera ção da criatura, existe igualmente o serviço de Deus. Nossos amigos poderiam colaborar conosco, ainda hoje, nas atividades de assistência. Acompanhar -nos-iam, por exemplo, nos trabalhos da prece, nos quais há sempre muita coisa a fazer e muita lição a apre nder. – Excelente sugestão! – exclamou nosso instrutor. – A oração individual, ou coletiva, é sempre vasto reservatório de ensinos edificantes. – Aliás – falou Ismália, afetuosa –, não devemos demorar. Estamos quase na hora. Nesse momento, como se fora cha mado, de súbito, à lembrança de grave compromisso de trabalho, falou o administrador, dirigindo -se à " André Luiz," companheira: – É preciso prevenir Olívia e Madalena das providências que se fazem imperiosas para a noite. Necessitaremos a colaboração de mais alguns técn icos do sopro. Temos alguns irmãos em estado grave, tomados de impressões físicas mais fortes. – Técnicos do sopro? – indaguei, assombrado, antes que Ismália pudesse fazer qualquer observação referente aos serviços. – Sim, meu amigo – respondeu Alfredo, at enciosamente –, o sopro curador, mesmo na Terra, é sublime privilégio do homem. No entanto, quando encarnados, demoramo -nos muitíssimo a tomar posse dos grandes tesouros que nos pertencem. Comumente, vivemos por lá, perdendo tempo com a fantasia, acreditan do em futilidades ou alimentando desconfianças. Quem pudesse compreender, entre as formas terrestres, toda a extensão deste assunto, poderia criar no mundo os mais eficientes processos soproterápicos. – Mas, semelhante patrimônio está à disposição de qualq uer Espírito encarnado? – perguntou Vicente, compartilhando minha surpresa. Nosso interlocutor pensou alguns instantes e respondeu, atencioso: – Como o passe, que pode ser movimentado pelo maior número de pessoas, com benefícios apreciáveis, também o sopro curativo poderia ser utilizado pela maioria das criaturas, com vantagens prodigiosas. Entretanto, precisamos acrescentar que, em qualquer tempo e situação, o esforço individual é imprescindível. Toda realização nobre requer apoio sério. O bem divino, para manifestar -se em ação, exige a boa vontade humana. Nossos técnicos do assunto não se formaram de pronto. Exercitaram -se longamente, adquiriram experiências a preço alto. Em tudo há uma ciência de começar. São servidores respeitáveis pelas realizações que atingiram, ganham remunerações de vulto e gozam enorme acatamento, mas, para isso, precisam conservar a pureza da boca e a santidade das intenções. Compreendendo o interesse que suas palavras despertavam, continuou o administrador, depois de pequena pausa: – Nos círculos carnais, para que o sopro se afirme suficientemente, é imprescindível que o homem tenha o estômago sadio, a boca habituada a falar o bem, com abstenção do mal, e a mente reta, interessada em auxiliar. Obedecendo a esses requisitos, teremos o sopro calmante e revigorador, estimulante e curativo. Através dele, poder -se-á transmitir, também na Crosta, a saúde, o conforto e a vida. E, como Vicente e eu não pudéssemos ocultar a perplexidade, Alfredo considerou: – Isto não é novo. Jesus, além de t ocar naqueles a quem curava, concedia -lhes, por vezes, o sopro divino. O sopro da vida percorre a Criação inteira. Toda página sagrada, comentando o principio da existência, refere -se a isso. Nunca pensaram no vento, como sopro criador da Natureza? Quanto a mim, desde o ingresso em Campo da Paz, quando fui ali recolhido em péssimas condições espirituais, tenho aprendido maravilhosas lições nesse particular. Tanto assim que, chefiando este Posto, tenho incentivado, com as " André Luiz," possibilidades ao meu alcance, a formação de novos cooperadores nesse sentido, oferecendo compensações aos que se decidam iniciar a tarefa de especialização, nem sempre fácil para todos. A esse tempo, Ismália recebia algumas colaboradoras de importância, que se preparavam para a tarefa. Impr essionado com o que ouvira, acompanhei de perto as providências que se organizavam. Encontrando -me, porém, mais a sós com Aniceto, transmiti lhe minha enorme surpresa, respondendo -me ele em tom confidencial: – Esquece m-se vocês de que a própria Bíblia, alu dindo aos primórdios do homem, narra que o Criador assoprou na forma criada, comunicando -lhe o fôlego da vida. Referindo -nos aos nossos irmãos encarnados, faz -se preciso reconhecer, André, que, mesmo partindo de homens imperfeitos, mas de boa vontade, todo sopro com intenção de aliviar ou curar tem relevante significação entre as criaturas, porque todos nós somos herdeiros diretos do Divino Poder. Aliás, é necessário observar também que não estamos diante de uma exclusividade. Você, por certo, passou muito ligeiramente pelo nosso Ministério do Auxílio. Temos, ali, grande instituto especializado nesse sentido, onde nobres colegas se votam a essa modalidade de cooperação. No plano carnal, toda boca, santamente intencionada, pode prestar apreciáveis auxílios, notando -se, porém, que as bocas generosas e puras poderão distribuir auxílios divinos, transmitindo fluidos vitais de saúde e reconforto. Esperava que Aniceto prosseguisse, mostrando -me as qualidades magnéticas do sopro, mas Alfredo acercara -se de nós, oper oso e solícito, exclamando: – Estamos no momento destinado aos trabalhos de assistência e oração. – Segui -lo-emos com prazer – respondeu nosso instrutor, sorrindo. Era necessário interromper a lição, atendendo a deveres diferentes. " André Luiz," Defesas contra o ma l Descemos as escadarias e, em frente dos muros altos, pude observar a extensão das defesas do soberbo edifício. Aquela construção grandiosa era muito mais importante que a de qualquer castelo antigo, transformado em fortaleza. Novamente no exterior, pod ia detalhar a visão panorâmica com mais exatidão. Reconhecia, agora, que entráramos por um baluarte avançado, identificando a imponência da construção majestosa. Apresentava m-se-me as linhas gerais com nitidez. Impressionavam -me, sobretudo, as fortificaçõe s. Via a torre de mensagem, consagrada, por certo, ao serviço de resistência; o baluarte agudo, elevando -se acima dos fossos que deixavam transbordar a água corrente; a torre de vigia, esbelta e alterosa. Observei o caminho da ronda, a cisterna, as seteira s e, em seguida, as paliçadas e barbacãs, refletindo na complexidade de todo aquele aparelhamento defensivo. E as armas? Identificava -lhes a presença na maquinaria instalada ao longo dos muros, copiando os pequenos canhões conhecidos na Terra. Entretanto, vi com emoção, no cume da torre de vigia, a enorme bandeira de paz, muito alva, tremulando ao vento como largo penacho de neve... O administrador percebeu a estranheza que se apossara de Vicente e de mim. – Já sei a impressão que a nossa defesa lhes causa – disse Alfredo, detendo -se para explicar. Fixando -nos com o olhar muito lúcido, continuou: – Naturalmente, não imaginavam necessárias tantas fortificações. Conforme veem , nossa bandeira é de concórdia e harmonia; no entanto, é imprescindível considerar qu e estamos em serviço que precisaremos defender, em qualquer circunstância. Enquanto não imperar a lei universal do amor, é indispensável persevere o reinado da justiça. Nosso Posto está colocado, aqui, igualmente, como “ovelha em meio de lobos” e, embora n ão nos caiba efetuar o extermínio das feras, necessitamos defender a obra do bem contra os assaltos indébitos. As organizações dos nossos irmãos consagrados ao mal são vastíssimas. Não admitam a hipótese de serem, todos eles, ignorantes ou inconscientes. A maioria se constitui de perversos e criminosos. São entidades " André Luiz," verdadeiramente diabólicas. Não tenham disso qualquer dúvida. – Deus meu! – exclamou Vicente, admirado – mas porque se organizam deliberadamente para o mal? Não sabem, porventura, que todos os patrimônios universais pertencem à Majestade Divina? Não reconhecem o Soberano Poder? – Ah! Meu amigo – falou Alfredo em tom grave –, fiz as mesmas perguntas quando aqui cheguei pela primeira vez. As respostas que tive foram incisivas e concludentes. Poder íamos, Vicente, formular na Crosta as mesmas interrogações. Os criminosos que fazem as vítimas da guerra, os exploradores da economia popular, os avarentos misérrimos, os sedentos de injustificado predomínio e os vaidosos cheios de fatuidade sabem, tão bem quanto os nossos adversários daqui, que tudo pertence a Deus, que o homem é simples usufrutuário dos divinos bens. Não ignoram que os antepassados foram chamados à verdade e a contas pela morte, e que eles seguirão os mesmos caminhos; entretanto, atormenta m-se na Crosta como verdadeiros loucos, amontoando possibilidades para a ruína e abusando das oportunidades mais santas. Aqui se verifica a mesma coisa. Querem dominar antes de se dominarem, exigem antes de dar e en tram em perene conflito com o espírito divino da lei. Estabelecido o duelo entre a fantasia deles e a verdade do Pai, resistem às corrigendas do Senhor e transforma m-se, esses desventurados, em verdadeiros gênios da sombra, até que, um dia, se decidam a no vos rumos. Intrigado com as profundas observações, perguntei: – Mas, como explicar as bases de semelhante atitude? Na Terra, compreendemos certos enganos, mas aqui... O generoso interlocutor não me deixou terminar e prosseguiu: – Na Crosta, nossos irmãos m enos felizes lutam pela dominação econômica, pelas paixões desordenadas, pela hegemonia de falsos princípios. Nestas zonas imediatas à mente terrestre, temos tudo isso em identidade de condições. Entre as entidades perversas e ignorantes, há cooperativas p ara o mal, sistemas econômicos de natureza feudalista, baixa exploração de certas forças da Natureza, vaidades tirânicas, difusão de mentiras, escravização dos que se enfraquecem pela invigilância, doloroso cativeiro dos Espíritos falidos e imprevidentes, paixões talvez mais desordenadas que as da Terra, inquietações sentimentais, terríveis desequilíbrios da mente, angustiosos desvios do sentimento. Em todo o lugar, meu amigo, as quedas espirituais, perante o Senhor, são sempre as mesmas, embora variem de i ntensidade e coloração. – Mas... e as armas? – perguntei – acaso são utilizadas? – Como não? – disse Alfredo, pressuroso – não temos balas de aço, mas temos projéteis elétricos. Naturalmente, a ninguém atacaremos. Nossa tarefa é de socorro e não de extermí nio. – No entanto – aduzi, sob forte impressão –, qual o efeito desses projéteis? – Assustam terrivelmente – respondeu ele, sorrindo – e, sobretudo, demonstram as possibilidades de uma defesa que ultrapassa a ofensiva. – Mas apenas assustam? – tornei a int errogar. Alfredo sorriu mais significativamente e acrescentou: " André Luiz," – Poderiam causar a impressão de morte. – Que diz! – exclamei com insofreável espanto. O administrador meditou alguns instantes e, ponderando, talvez, a gravidade dos esclarecimentos, obtempero u: – Meu amigo! Meu amigo! Se já não estamos na carne, busquemos desencarnar também os nossos pensamentos. As criaturas que se agarram, aqui, às impressões físicas, estão sempre criando densidade para os seus veículos de manifestação, da mesma forma que os Espíritos dedicados à região superior estão sempre purificando e elevando esses mesmos veículos. Nossos projéteis, portanto, expulsam os inimigos do bem através de vibrações do medo, mas poderiam causar a ilusão da morte, atuando sobre o corpo denso dos n ossos semelhantes menos adiantados no caminho da vida. A morte física, na Terra, não é igualmente pura impressão? Ninguém desaparece. O fenômeno é apenas de invisibilidade ou, por vezes, de ausência. Quanto à responsabilidade dos que matam, isto é outra co isa. E além desta observação, que é da alçada da Justiça Divina, temos a considerar, igualmente. Que, nesta esfera, o corpo denso modificado pode ressurgir todos os dias, pela matéria mental destinada à produção dele, enquanto que, para obter o corpo físic o, almas há que trabalham, por vezes, durante séculos... Vicente e eu caláramos, estupefatos. Alfredo sorriu serenamente e perguntou, bem humorado: – Vocês conhecem a lenda hindu da serpente e do santo? Ante a nossa expressão negativa, o administrador cont inuou: – Contam as tradições populares da Índia que existia uma serpente venenosa em certo campo. Ninguém se aventurava a passar por lá, receando -lhe o assalto. Mas um santo homem, a serviço de Deus, buscou a região, mais confiado no Senhor que em si mesmo . A serpente o atacou, desrespeitosa. Ele dominou -a, porém, com o olhar sereno, e falou: “Minha irmã, é da lei que não façamos mal a ninguém ”. A víbora recolheu -se, envergonhada. Continuou o sábio o seu caminho e a serpente modificou -se completamente. Proc urou os lugares habitados pelo homem, como desejosa de reparar os antigos crimes. Mostrou -se integralmente pacífica, mas, desde então, começaram a abusar dela. Quando lhe identificaram a submissão absoluta, homens, mulheres e crianças davam -lhe pedradas. A infeliz recolheu -se à toca, desalentada. Vivia aflita, medrosa, desanimada. Eis, porém, que o santo voltou pelo mesmo caminho e deliberou visitá -la. Espantou -se, observando tamanha ruína. A serpente contou -lhe, então, a história amargurada. Desejava ser b oa, afável e carinhosa, mas as criaturas perseguia m-na e apedrejava m-na. O sábio pensou, pensou e respondeu após ouvi -la: “Mas, minha irmã, houve engano de tua parte. Aconselhei -te a não morderes ninguém, a não praticares o assassínio e a perseguição, mas não te disse que evitasses de assustar os maus. Não ataques as criaturas de Deus, nossas irmãs no mesmo caminho da vida, mas defende a tua cooperação na obra do Senhor. Não mordas, nem firas, mas é preciso manter o perverso a distância, mostrando -lhe os teus dentes e emitindo os teus silvos. " André Luiz," Nesse momento, Aniceto sorriu de maneira expressiva. O administrador fez longa pausa e concluiu: – Creio que a fábula dispensa comentário. " André Luiz," Espíritos dementados Inúmeros servidores acompanhava m-nos ao serviço. Mov imentava m-se carregadores sem conta. Conduziam grandes botijas d'água, caldeirões de sopa, vasos de substância medicamentosa, em galeotas diversas. Mais alguns passos e notei que centenas de entidades se reuniam em vastos albergues, olhos vagueantes e rost os sombrios, parecendo uma assembl eia de loucos em manicômio de amplas proporções. Alfredo aconselhou umas tantas providências de serviço à maioria dos técnicos do sopro curativo, os quais se desviaram de nós, rumo às edificações situadas em zona diferente . Gentilmente nos explicava que os benfeitores de “Campo da Paz” localizavam, ali, grande número de Espíritos enfermos, mais desequilibrados que propriamente perversos. Os doentes que tínhamos sob os olhos permaneciam em melhores condições. Já se locomovia m e muitos deles já conversavam, apesar do desequilíbrio que lhes assinalava as palavras e pensamentos. Esclarecia -nos sobre as múltiplas obrigações do trabalho de rotina, quando algumas entidades se acercaram, respeitosas: – Senhor Alfredo – disse um velh o de barbas muito alvas –, estou aguardando o resultado da minha petição. Em que ficamos, quanto às minhas terras e os escravos? Paguei bom preço ao Carmo Garcia. Sabe o senhor que venho sendo perseguido durante muitos anos, e não posso perder mais tempo. Quando volto para casa? Creio esteja o senhor ciente da necessidade de eu voltar ao seio dos meus. Esperam -me a mulher e os filhos. Como excelente médico da alma, Alfredo prestou a maior atenção e respondeu, como se estivesse tratando com pessoa de bom sen so: – Sim, Malaquias, você reclama com razão, mas sua saúde não permite o regresso apressado. Você sabe que sua esposa, Dona Sinhá, pediu fosse você aqui tratado convenientemente. Creio que ela deve estar muito tranq uila a seu respeito. Suas id eias, porém, meu amigo, não estão ainda bem coordenadas. Temos alguma coisa mais a fazer. Porque preocupar -se tanto, assim, com as terras e os escravos? Primeiramente a saúde, Malaquias; não esqueça a saúde! O velho sorriu, como o doente apoiado na firmeza e no otimismo do médico. – Reconheço que as suas observações são justas, mas meus filhos não " André Luiz," se movem sem mim, são preguiçosos e necessitam da minha presença. Mas, do utrinando sutilmente o pobre velhinho, o administrador objetou: – Entretanto, donde vieram os filhos para os seus braços paternos? Não vieram das mãos de Deus? – Sim, sim... – afirmava o ancião, trêmulo e satisfeito. – Pois é isso, Malaquias, chegam instan tes na vida, em que precisamos devolver a Deus o que a Ele pertence. Além do mais, seus filhos são também responsáveis e, se forem ociosos, responderão pelos males que criarem em torno de si mesmos. Por agora, é indispensável que você se refaça, aclare as ideias e sossegue o coração. O velho sorriu, confortado, mas, antes que pudesse falar de novo, um cavalheiro, denotando nobre aprumo, adiantou -se, exclamando: – E a solução do meu processo, senhor Alfredo? Sinto -me prejudicado pelos parentes de má fé. Minh a parte na herança dos avôs é cobiçada pelos primos. Segundo já lhe fiz ver, meu quinhão é superior aos demais. Soube, todavia, que o Visconde de Cairu interpôs toda a sua influência contra mim. Ninguém ignora tratar -se de um grande velhaco. Que não poderá ele fazer com as artimanhas políticas? Está mal informado a meu respeito. O senhor enviou meu pedido ao Imperador? – Já expedi a mensagem – esclareceu Alfredo com carinho fraternal –, o Imperador certamente levará em conta a solicitação. – Entretanto, a d emora é muito grande!... – falou o cavalheiro, impaciente, como se estivesse diante de um subordinado vulgar. – Mas, meu caro Aristarco – respondeu o administrador, muito calmo –, acredito que você está sendo experimentado para conhecer a grandeza da heran ça divina. Que valem os patrimônios terrestres, ante os patrimônios imperecíveis? Não pense no que tem perdido; medite nos bens sublimes que poderá alcançar, diante da Vida Eterna. Esqueça os primos ambiciosos e o Visconde que não o compreendeu. Terão eles de deixar quanto possuem, no campo transitório, a fim de prestarem contas à Divindade. Nunca pensou nisto? Aristarco pareceu perder, por momentos, a inquietação, sorriu francamente e respondeu: – É verdade! Os tratantes morrerão... Uma senhora, mostrando -se aflita, pôs -se à nossa frente e interpelou, altiva: – Senhor Alfredo, peço -lhe não me retenha aqui. Meu marido é nosso próprio adversário. Prometeu perseguir as filhas, tão logo me ausentasse de casa. Aqui permanecendo, estou certa de que ele nos dissip ará os bens, desmoralizar -nos-á o nome. Por favor, autorize o meu regresso. O coração me diz que as filhinhas estão desesperadas. Convenço -me, cada vez mais, de que minha moléstia teve origem neste estado de coisas... – Já sei, minha irmã – respondeu o nos so amigo com a mesma solicitude –; no entanto, que adiantaria regressar, tão fortemente atormentada? Não será melhor curar -se, tranq uilizar o espírito para ajudar as filhinhas com " André Luiz," eficiência? – Mas, nem sequer sei onde estou – reclamou a pobre senhora, torcendo as mãos –, creio me tenham trazido ao fim do mundo, para tratamento de uma simples perda de sentidos! – Todavia, ninguém a maltrata – disse o interlocutor, bondosamente – e seu caso não é tão simples como parece. Tenha calma. Os laços consang uíneos são edificantes, mas, acima deles, vibra a família universal. Há criaturas suportando fardos muito mais pesados que o seu. Aprenda, quanto esteja em suas possibilidades, a desfazer -se de aquisições passageiras, para ganhar os eternos bens. A infeliz não sor riu como os outros. Fechando -se em sombria catadura, afastou -se pesadamente, olhos fulgurantes de cólera, como se a mente estivesse cravada muito longe, incapaz de qualquer compreensão. Adiantara m-se outros enfermos, mas o administrador falou em voz alta: – Não posso atender a todos no momento. Depois de amanhã, serão recebidos para explicações. E, voltando -se para nós, esclareceu a sorrir: – No circulo carnal, seriam todos absolutamente normai s; no entanto, aqui, são verdadeiros loucos. São desencarnados que, por muito tempo, se agarraram aos problemas inferiores. Reclamam providências, sem falar no ensejo de iluminação que menosprezaram, acusam os outros, sem relacionarem os próprios erros. Pr o curei ouvi -los para lhes dar uma id eia do nosso trabalho, no setor dos que se desequilibram mentalmente por excesso de centralização em propósitos inferiores. Não é crime interessar -se alguém pelas atividades rurais, pela recepção de uma herança, pelo be m-estar da família; mas, no fundo, o velhinho que reclama terras e escravos nunca pensou senão em tirania no campo; o cavalheiro, que aguarda a herança, deseja lesar os primos; e a senhora, que se revelou tão interessada pelo ambiente doméstico, desencarnou quando pretendia envenenar o marido, às ocultas. Conheço -lhes os processos, um a um. Acordaram de longo sono, na inconsciência, e julga m-se ainda encarnados, supondo igualmente que podem dissimular as pretensões criminosas. Eu estava assombrado. Expressando minh a profunda admiração, perguntei: – Esses doentes demora m-se aqui? Como alcançaram o Posto? Gentil, como sempre, Alfredo respondeu: – Foram recolhidos em pior estado. Já estiveram em pesado sono durante muito tempo e vão readquirindo a memória, gradativamen te, até que possam ser encaminhados aos Institutos Magnéticos de “Campo da Paz”, a fim de receberem maiores auxílios e necessários esclarecimentos. " André Luiz," Os que dormem Seguimos através de longas filas de arvoredo acolhedor, rumo às vastas edificações que obedeciam a linhas arquitetônicas singulares. Sem que eu pudesse explicar o fenômeno, as luzes diminuíam progressivamente. Que teria acontecido? Vicente e eu nos entreolhamos, assustados. Alfredo, Aniceto e os demais, todavia, caminhavam sem surpresa. A se renidade deles tranq uilizava -me o íntimo, embora o espanto insofreável. Mais alguns passos, atingimos os pavilhões diferentes, que se estendiam em área superior a três quilômetros, pelos meus cálculos. Lá dentro, contudo, as sombras se fizeram mais densas. Conseguia distinguir, vagamente, os quadros interiores, observando que se tratava, a meu ver, de espaçosas enfermarias com teto sólido, mas semiabertas ao longo das paredes altas, dando livre passagem ao ar. Dezenas de operários, devotados e operosos, seg uiam-nos em absoluto silêncio. Alfredo era o único a falar, notando -se, contudo, que se fizera extremamente discreto nas palavras. Tudo isso me dava a impressão de haver penetrado um cemitério escuro, onde os visitantes fossem obrigados a guardar todo o re speito aos mortos. Com estranheza, notei que um dos servidores entregara ao chefe do Posto pequenina máquina, que Alfredo nos deu a conhecer gentilmente, explicando: – Este é o nosso aparelho de sinalização luminosa. Estamos no centro dos pavilhões a que s e recolhem irmãos ainda adormecidos. Temos aqui, presentemente, quase dois mil. Os numerosos cooperadores dirigia m-se em ordem para a zona de serviços que lhes competiam. Depois de pequena pausa, falou o administrador com firmeza: – Iniciemos o trabalho de assistência. Ao primeiro sinal luminoso de Alfredo, acendera m-se numerosas lâmpadas elétricas e, então, dominando, a custo, a primeira impressão de horror, vi extensas filas de leitos ao rés do chão, ocupados todos por pessoas mergulhadas em profundo sono . Muitos tinham o semblante horrendo. Eram muito poucos os que traziam as pálpebras cerradas, parecendo tranq uilos. Em quase todos, estampava m-se-lhes nos olhos, aparentemente vitrificados, o " André Luiz," extremo pavor e o doloroso desespero da morte. Cadavérica palide z cobria -lhes a face. Recordando a literatura antiga, pensei nos velhos túmulos egípcios. Tínhamos, diante de nós, centenas de múmias perfeitas. Raríssimos pareciam dormir um sono natural. Aproximando -se de nós outros, Alfredo falou a Aniceto, em particula r: – Infelizmente, não podemos atender a todos. – Por quê? – indagou nosso orientador, comovido. – Estamos aguardando pessoal adestrado. Tenho aqui a colaboração de oitenta auxiliares para este gênero de serviço; entretanto, não pode cada qual atender a ma is de cinco doentes de uma só vez. A vista disso, dos nossos mil novecentos e oitenta abrigados, separei os quatrocentos mais suscetíveis de próximo despertar, a fim de submetê -los ao tratamento intensivo. – E os demais? – Recebem alimento e medicação mais densos uma vez por dia. Aniceto calou -se, pensativo. Profundamente tocado pelo que via, inclinei -me instintivamente para o abrigado mais próximo, tentando examinar -lhe o estado fisiológico. Identifiquei o calor orgânico, a pulsação regular e os movimentos respiratórios, embora verificasse a extrema rigidez dos membros, como que mergulhados em imobilidade cataléptica. Indescritível impressão apoderou -se de mim. Levantei -me assustado, dirigi -me a Aniceto com a máxima discrição, e interroguei: – Explicai -me, por Deus! Que vemos aqui? Estamos, acaso, na moradia da morte, depois da morte? O instrutor sorriu, complacente, e explicou em voz quase imperceptível: – Sim, André, este sono é, verdadeiramente, avançada imagem da morte. Aqui permanecem, com a bênção do a brigo, alguns milhões dos nossos irmãos que ainda dormem. São as criaturas que nunca se entregaram ao bem ativo e renovador, em torno de si, e mormente os que acreditaram convictamente na morte, como sendo o nada, o fim de tudo, o sono eterno. A crença na vida superior é atividade incessante da alma. A ferrugem ataca a enxada ociosa. O entorpecimento invade o Espírito vazio de ideal criador. Os que, nos círculos carnais, homens e mulheres, creem na vida eterna, ainda que não sejam fundamentalmente cristãos, estão desenvolvendo faculdades de movimentação espiritual e podem penetrar as esferas extraterrenas em estado animador, pelo menos quanto à locomoção e juízo mais ou menos exato. No entanto, as criaturas que perseveram em negação deliberada e absoluta, nã o obstante, por vezes, filiadas a cultos externos de atividade religiosa, que nada veem além da carne nem desejam qualquer conhecimento espiritual, são verdadeiramente infelizes. Muitos penetram nossas regiões de serviço, como embriões de vida, na câmara d a Natureza sempre divina. Um amigo nosso costuma designá -los por fetos da espiritualidade; entretanto, a meu ver, seriam felizes se estivessem nessa condição inicial. Temos a certeza, porém, de que " André Luiz," muitos se negaram ao contato da fé, absolutamente por indi ferença criminosa aos desígnios do Eterno Pai. Dormem, porque estão magnetizados pelas próprias concepções negativistas; permanecem paralíticos, porque preferiram a rigidez ao entendimento; mas dia virá em que deverão levantar -se e pagar os débitos contraí dos. Eis porque os considero sofredores. Primeiramente, demoram no sono em que acreditaram, mais tarde acordam; porém, a maioria não pode fugir à enfermidade e à perturbação, como acontece aos irmãos dementados, que vimos inda há pouco. Grande o meu assomb ro. Como Vicente se aproximasse, também, para ouvi -lo, falou Aniceto, esclarecendo a nós ambos: – A fé sincera é ginástica do Espírito. Quem não a exercitar de algum modo, na Terra, preferindo deliberadamente a negação injustificável, encontrar -se-á mais t arde sem movimento. Semelhantes criaturas necessitam de sono, de profundo repouso, até que despertem para o exame das responsabilidades que a vida traduz. Observando que o nosso orientador se esquivava a comentários longos, para que pudéssemos seguir, de m ais perto, os trabalhos de assistência, calei as muitas indagações que me escaldavam a mente. Com exceção de algumas senhoras que permaneciam junto de Ismália, todo os servidores se mantinham em posição de vigilância, ao pé dos grupos mumificados. A luz ar tificial iluminava os leitos, que se perdiam de vista, mas observei que nenhum dos albergados reagia à intensa claridade que se fizera. Continuavam rígidos, cadavéricos, prostrados. Notei, então, que Alfredo começou a mover o aparelho de sinalização, para emitir as ordens de serviço. Cada sinal determinava operação diferente. Vi os servidores do Posto distribuírem pequenas porções de alimento líquido e medicação bucal, em profundo silêncio. Em seguida, forneceram reduzidas quantidades de água efluviada aos infelizes, com exceção, porém, de muitos que pareciam preparados a receber, tão somente, caldo e remédio. Dois terços dos quatrocentos abrigados em tratamento receberam passes magnéticos. Alguns poucos receberam aplicações do sopro curador. Todos os movime ntos do trabalho eram transmitidos pela sinalização luminosa, partida das mãos do administrador, que parecia interessado na manutenção do máximo silêncio. Impressionado com o que via, perguntei ao orientador, em voz baixa, a razão de alguns enfermos não te rem sido beneficiados com a água e com o socorro de forças novas, através do passe e do sopro vivificante. Aniceto, todo bondade, inclinou -se aos meus ouvidos, com a ternura de um pai ansioso por tranq uilizar o filhinho inquieto, e falou: – Cada um na vida , meu caro André, tem a necessidade que lhe é peculiar. Aqui, compreendemos com amplitude esse imperativo da Natureza. " André Luiz," Pesadelos Enquanto Alfredo continuava dirigindo os serviços, nosso instrutor, com a permissão dele, conduziu -nos aos leitos distan tes, onde se asilavam os enfermos desatendidos quanto ao auxílio magnético. – Precisamos acentuar experiências e aproveitar oportunidades – afirmou Aniceto, sorridente. Acompanhamo -lo, curiosos, identificando as expressões isoladas, dolorosas ou terríveis, daquelas máscaras mortuárias. Quando nos encontrávamos a regular distância da zona central, o instrutor esclareceu, em tom grave: – Desejaria conhecer a extensão dos benefícios colhidos por vocês no Gabinete de Auxílio Magnético às Percepções. Para ajudar eficientemente aos nossos amigos encarnados, é necessário saibamos ver com clareza e precisão. Indicando os doentes imóveis, acrescentou: – Todos os que dormem nestes pavilhões permanecem dentro do mau sono. – Mas teremos, porventura, nas zonas espirituai s, os que estejam em bom sono? – interrogou Vicente, de modo brusco. – Sem dúvida – respondeu Aniceto, solícito –, temos na esfera de nossas atividades os que repousam períodos curtos, quais trabalhadores retos que esperam o repouso noturno, com a tranq uilidade dos que sabem trabalhar e descansar, de consciência aliviada. Fez uma pausa, como quem estudava o melhor meio de sintetizar, por não perder tempo, e acentuou: – Mas esses não precisam estacionar, como filhos da sombra, nas construções de emergência d e um Posto de Socorro. Em seguida, retomou o fio da lição e continuou: – Quem dorme em desequilíbrio, entrega -se a pesadelos. Todos estes irmãos desventurados que nos cercam, aparentemente mortos, são presas de horríveis visões íntimas. Vejamos o aproveita mento de vocês. Procedamos a observações rápidas. Antigamente, o inquérito anatômico, o exame das vísceras, a perquirição científica n as células, também aparentemente mortas; agora, a auscultação profunda da alma, a sondagem dos sentimentos, a visão do plano mental. " André Luiz," E, com expressão decidida, concluiu, resoluto: – Mãos à obra! Designando -me um corpo envelhecido de mulher, recomendou: – Você, André, examine detidamente essa irmã. Abstenha -se de todas as considerações do plano exterior. Observe -a com todas as possibilidades e percepções ao seu alcance. Sinceramente interessado em atender, não reparei nas ordens que o nosso instrutor transmi tia a Vicente. Procurei esquecer os quadros externos, focalizando aquela máscara feminina com todos os meus recursos mentais. À medida que me despreocupava dos interesses diferentes, observava a sombra cinzento -escura que se lhe ia condensando em torno da fronte. A visão parecia auxiliar -me o poder de concentração. Reconhecendo que o fenômeno se acentuava, não mais lembrei qualquer objeto ou situação exterior. Estupefato, comecei a divisar formas movimentadas no âmbito da pequena tela sombria. Surgiu uma ca sa modesta de cidade humilde. Tive a impressão de transpor -lhe a porta. Lá dentro, um quadro horrível e angustioso. Uma senhora de idade madura, demonstrando crueldade impassível no rosto, lutava com um homem embriagado. – “Ana! Ana! pelo amor de Deus! não me mates!” – dizia ele, súplice, incapaz de defender -se. – “Nunca! Nunca te perdoarei!! – exclamava a mulher, acrescentando em tom lúgubre – “Morrerás esta noite”. – vi o infeliz cair, exausto. – “Envenenaste -me com bebida mortal” – exclamava ele, lacrimo so – “perdoa -me se te causei algum mal! Sou pai! Ana! preciso viver para meus filhos! Não me mates, por piedade!” Ela ouviu co m frieza e respondeu duramente: – “Morrerás mesmo assim. Tenho a infelicidade de amar -te, a ti que pertences a outra mulher! Não q uiseste seguir -me e preciso vingar -me!” Rebolcando -se no assoalho, tomava o infeliz: – “Deus sabe que estou arrependido do meu criminoso passado! Quero viver para o bem, Ana! Perdoa -me por amor do Eterno Pai! Quem sabe poderei auxiliar -te como irmão? Ajuda -me para que te possa ajudar! Não me mates! Não me mates!” A mulher, porém, como se tivesse a maldade agravada, ao ouvir a expressão da virtude, tomou d e um pesado martelo e exclamou: – “Deus não existe! Deus não existe! Morrerás, infame!” E, de súbito, cr ivou -lhe o crânio de marteladas surdas. O homem expirou sem um grito. Logo após, vi a criminosa conduzindo o cadáver em carrinho de mão, através de um trilho ermo. Acompanhava -lhe os movimentos com interesse. A noite estava muito escura, mas observei a par ada junto à via férrea. Sondou os arredores, certificou -se do insulamento em que se encontrava e depôs a estranha carga sobre os trilhos. Via dispondo o cadáver para que a cabeça fosse decepada à passagem do comboio, retirando -se apressadamente, reconduzin do o pequeno carro vazio. Não esperei a máquina de ferro. Segui a mulher que me pareceu inquieta e pensativa. " André Luiz," Antes, porém, que depusesse o carrinho no extenso quintal, vi que arregalava os olhos como louca, cercada de seres que me pareceram bandidos de ne gras vestes. Era ela, agora, quem acusava estranha embriaguez de pavor. Vencera um pobre homem invigilante, mas, a meu ver, seria vencida por seres mais perversos, talvez, que ela própria: – “Acudam -me! Acudam -me!” – gritava, espavorida. E continuava a cena, em que a desventurada golfava súplicas em vão. Senti -me como espectador que precisasse movimentar qualquer socorro. E, graças à Bondade Divina, não experimentei pela mulher infeliz senão a mais viva compaixão. Ao primeiro impulso de revolta pelo crime consumado, recordei as lições já recebidas em “Nosso Lar” e pensei na possibilidade de ser a criminosa alguma pessoa querida ao meu coração. Se Ana estivesse no mundo, ao meu lado, na família do sangue, não desejaria auxiliá -la? Porque haveria de acusá -la, se não lhe conhecia o passado total? Ter -lhe-iam dado a educação na infância, a bênção do lar, a segurança de um afeto sem manchas? Quem sabe viera de longe, como pedra incompreendida, rolando nos abismos do sofrimento? Que laços a uniriam à vítima, igual mente digna de piedade fraternal? Como teria começado o drama doloroso? Não sabia. Enxergava somente a pobre mulher rodeada de sombras agressivas, implorando socorro. Ignorava como ajudá -la, mas recordei que Ana era minha irmã, filha do mesmo Pai, irmã que adoecera no caminho comum, sem que eu pudesse, pelo menos por agora, indagar a causa. Procurava, comigo mesmo, algum meio de auxiliá -la, quando alguém me chamou de súbito. Era Aniceto que exclamava, bondoso: – Venha, André! Vicente e você têm sabido aprov eitar alguma coisa. Estou satisfeito. Seus pensamentos de fraternidade e paz muito auxiliaram essa irmã infeliz. Guarde a certeza disso e continue buscando a compreensão para socorrer e ajudar com êxito. Conforme observaram de perto, sabem agora que cada u m dos que aqui dormem sono atormentado, vivem estranhos pesadelos, de que não podem isentar -se de um instante para outro. Não precisamos comentar qualquer episodio dessas existências vividas em oposição à Vontade Divina. Bastará lembrar sempre que a divida , em toda parte, anda com os devedores. E com expressivo olhar, acrescentou: – Voltemos ao centro. Devemos cooperar na oração. " André Luiz," A prece de Ismália Dentro de poucos instantes, reuníamo -nos, de novo, ao grupo. O administrador fez um sinal luminoso, em forma triangular, e observei que todos os cooperadores se puseram de pé, em atitude respeitosa. – É o momento da oração, no Posto de Socorro – disse Alfredo, gentil, como a prestar -nos esclarecimentos precisos. O Sol desaparecera no firmamento, mas toda a cúpula celeste refletia -lhe o disco de ouro, Os tons crepusculares encheram as vizinhanças de maravilhosos efeitos de luz, muito visíveis agora ao nosso olhar, porque Alfredo, sem que eu pudesse conhecer o motivo, mandara apagar todas as luzes artificiais, antes da oração. No centro dos pavilhões, a sombra se fizera, desse modo, muito intensa, mas o novo aspecto do firmamento, banhado em tonalidades sublimes, dava -nos a impressão da permanência em prodigioso palácio, em virtude do imenso teto azul iluminado a distância. Fundamente impressionado, procurei convizinhar -me mais do pequeno grupo de companheiros. Do quadro de colaboradores do castelo, apenas algumas senhoras permaneciam junto de nós, como se estivessem fazendo honrosa companhia à nobre Ismália. Os demais, homens e mulheres, mantinha m-se nos lugares de serviço que lhes competiam, não longe das criaturas mumificadas. Notei que, embora instado, Aniceto esquivou -se à chefia espiritual da oração, alegando que, por direito, essa posição cabia à devotada esposa de Alfredo. Ismália, então, num gesto de indefinível delicadeza, começou a orar, acompanhada por todos nós, em silêncio, salientando -se, porém, que lhe seguíamos a rogativa, frase por frase, atendendo a recomendações do nosso orientador, que aconsel hou repetir, em pensamento, cada expressão, a fim de imprimir o máximo ritmo e harmonia ao verbo, ao som e à id eia, numa só vibração. – “Senhor! – começou Ismália, comovidamente – dignei -vos assistir os nossos humildes tutelados, enviando -nos a luz de voss as bênçãos santificantes. Aqui estamos, prontos para executar vossa vontade, sinceramente dispostos a secundar vossos altos desígnios. Conosco, Pai, reúne m-se os irmãos que ainda dormem, anestesiados pela negação espiritual a que se entregaram no mundo. Despertai -os, Senhor, se é de vossos desígnios sábios e misericordiosos, " André Luiz," despertai -os do sono doloroso e infeliz. Acordai -os para a responsabilidade, para a noção dos deveres justos!... Magnânimo Rei, apiedei -vos de vossos súditos sofredores; Criador compass ivo, levantai as vossas criaturas caídas; Pai Justo, desculpai vossos filhos desventurados! Permiti caia o orvalho do vosso amor infinito sobre o nosso modesto Posto de Socorro!... Seja feita a vossa vontade acima da nossa, mas se é possível, Senhor, deixa i que os nossos doentes recebam um raio vivificante do Sol da vossa bondade!... ” A voz de Ismália penetrava -me o recesso do coração. Observando -a, por um momento, reparei que a esposa de Alfredo se transfigurara. Luzes diamantinas irradiavam de todo o seu corpo, em particular do tórax, cujo âmago parecia conter misteriosa lâmpada acesa. Em vista da ligeira pausa que imprimira à oração, observei a nós outros, verificando que o mesmo fenômeno se dava conosco, embora menos intensamente. Cada qual parecia, ali, apresentar uma expressão luminosa, gradativa. As senhoras que acompanhavam Ismália estavam quase semelhantes a ela, como se trajassem soberbos costumes radiosos, em que predominava a cor azul. Depois delas, em brilho, vinha a luz de Aniceto, de um lilás surpreendente. Em seguida, tínhamos Alfredo, cuja luz era de um verde suave e sugestivo, sem grande esplendor. Depois dele, vinham alguns servidores ostentando na fronte claridades sublimes, expressas em variadas cores, e, logo após, Vicente e eu, mostrávam os fraca luminosidade, a qual, porém, nos enchia de júbilo intenso, considerando que a maioria dos cooperadores em serviço apresentava o corpo obscuro, como acontece na esfer a carnal. Com voz pausada e comovedora, Ismália prosseguiu: – “Temos, ao nosso lad o, Senhor, infortunadas mães que não souberam descobrir o sentido sublime da fé, resvalando, imprudentemente, nos despenhadeiros da indiferença criminosa; pais que não conseguiram ultrapassar a materialidade no curso da existência humana, incapazes de ver a formosa missão que lhes confiastes; cônjuges desventurados pela incompreensão de vossas leis augustas e generosas; jovens que s e entregaram, de corpo e alma, aos alvitres da ilusão!... Muitos deles, atolara m-se no pantanal do crime, agravando débitos dolorosos! Agora dormem, Pai, à espera de vossos desígnios santos. Sabemos, contudo, Senhor, que este sono não traduz repouso do pen samento... Quase todos os nossos asilados são vitimas de terríveis pesadelos, por terem olvidado, no mundo material, os vossos mandamentos de amor e sabedoria. Sob a imobilidade aparente, movimenta -se-lhes o Espírito, entre aflições angustiosas que, por ve zes, não podemos sondar. São eles, Pai, vossos filhos transviados e nossos companheiros de luta, necessitados de vossa mão paternal para o caminho! Quase todos se desviaram da senda reta, pelas sugestões da ignorância que, como aranha gigantesca dos círcul os carnais, tece os fios da miséria, enredando destinos e corações! Deprecando vossa misericórdia para eles, rogamos, igualmente para nós, a verdadeira noção da fraternidade universal! Ensinai -nos a transpor as fronteiras de separação para que vejamos em c ada infeliz o irmão necessitado do nosso entendimento! Ajudai -nos a compreensão, a fim de que venhamos a perder todo impulso de " André Luiz," acusação nas estradas da vida! Ensinai -nos a amar como Jesus nos amou! Também nós, Senhor, que aqui vos rogamos, fomos leprosos espirituais, cegos do entendimento, paralíticos da vontade, filhos pródigos do vosso amor!... Também nós já dormimos, em tempos idos, nos Postos de Socorro da vossa misericórdia!... Somos simples devedores, ansiosos de resgatar imensos débitos! Sabemos que vossa bondade nunca falha e esperamos confiantes a bênção de vida e luz!...” Fizera Ismália nova pausa, agora mais longa. Enxuguei os olhos umedecidos de pranto. Suave calor, todavia, apossava -se-me da alma. E tão intensa era essa nova sensação de confort o, que interrompi a concentração em mim mesmo, a fim de olhar em torno. Fixando instintivamente o alto, enxerguei, maravilhado, grande quantidade de flocos esbranquiçados, de tamanhos variadíssimos, a caírem copiosamente sobre nós que orávamos, exceto sobr e os que dormiam. Tive a impressão de que eram derramados do céu sobre nossa fronte, caindo com a mesma abundância sobre todos, desde Ismália ao último dos servidores. Não cabia em mim de admiração, quando novo fenômeno me surpreendeu. Os flocos leves desa pareciam ao tocar -nos, começando, porém, a sair de nossa fronte e do peito grandes bolhas luminosas, com a coloração da claridade de que estávamos revestidos, elevando -se no ar e atingindo as múmias numerosas. Ainda aí, reparava o problema da gradação espi ritual. As luzes emitidas por Ismália eram mais brilhantes, intensas e rápidas, alcançando muitos enfermos de uma só vez. Em seguida, vinham as fornecidas pelas senhoras do seu círculo pessoal. Depois, tínhamos as de Aniceto, de Alfredo e dos demais. Os se rvos de corpo obscuro emitiam vibrações fracas, mas visivelmente luminosas. Cada qual, naquele instante de com tacto com o plano superior, revelava o valor próprio na cooperação que podia prestar. Observando -me o assombro, Aniceto falou -me aos ouvidos: – Na prece encontramos a produção avançada de elementos -força. Eles chegam da Providência em quantidade igual para todos os que se d eem ao trabalho divino da intercessão, mas cada Espírito tem uma capacidade diferente para receber. Essa capacidade é a conquis ta individual para o mais alto. E como Deus socorre o homem pelo homem e atende a alma pela alma, cada, um de nós somente poderá auxiliar os semelhantes e colaborar com o Senhor, com as qualidades de elevação já conquistadas na vida. " André Luiz," Efeitos da oração As luzes da prece inundaram o vasto recinto. Palpitava em tudo, agora, uma claridade serena, doce, irradiante, muito diversa da luminosidade artificial. Os flocos radiosos que partiam de nós multiplicava m-se no ar, como se obedecessem a misterioso proce sso de segmentação, e caíam sempre sobre os corpos inanimados e enrijecidos, dando a impressão de lhes penetrarem as células mais intimas. Eu estava boquiaberto. Não me fora permitido contemplar fenômenos dessa natureza em “Nosso Lar”. Aliás, concluía, ain da não recebera auxílio magnético às percepções, senão poucas horas antes da viagem. A claridade crescia e estendia -se em espetáculo prodigioso. Agora, porém, abandonáramos a atitude de recolhimento destinada à concentração de nossas próprias forças e emis são de energias vibratórias. Nossos corpos, todavia, continuavam envolvidos em vasto circulo irradiante. Prosseguindo, porém, o grande silêncio, notei que a luz da oração se fazia mais clara, mais penetrante. Comecei a ver, como no caso de Ana, que todos a queles esqueletos misérrimos apresentavam núcleos de sombra, além das máscaras mortuárias, núcleos que se mostravam dentro de formas variadíssimas. As bolhas luminosas caíam incessantemente, mas agora, como se fossem dirigidas por uma vontade inteligente, concentrava m-se quase todas sobre as frontes imóveis. Então, pude observar o inaudito e inconcebível para mim. As múmias, porque não posso dar outro nome aos irmãos que dormem, começaram a dar sinais de vida. Alguns daqueles infelizes deixavam escapar gemi dos angustiosos, outros falavam em voz alta, dando conta dos pesadelos que os atormentavam, como sonâmbulos prestes a despertar. Muitos moviam os pés e as mãos, como a se esforçarem por fugir ao sono doloroso. Eminentemente surpreendido, reparei que dois s e levantaram, distante de nós. Recordei que ambos faziam parte daqueles que haviam recebido toda espécie de assistência, inclusive o sopro curativo. Olhara m-nos de longe, como loucos que acordassem de súbito, e dispararam a correr, espavoridos, não obstant e a impressão de cadáveres ambulantes, que nos causavam. Admirado, verifiquei que ninguém esboçou a menor disposição de segui -los. E quando me propunha, instintivamente, a fazê -lo, Alfredo deteve -me, " André Luiz," exclamando: – Não se preocupe. Eles seriam amargamente s urpreendidos, se fossem notificados agora de sua permanência longa entre verdadeiras múmias. Acreditam sonhar e é melhor assim. Não poderão fugir às nossas fortificações e voltarão a pedir socorro noutras dependências, a que serão recolhidos para adequado tratamento. Continuamos silenciosos mais alguns minutos e notei que as luzes se foram apagando gradativamente, ao passo que os cadáveres retomavam a imobilidade anterior. Ismália declarou terminadas as nossas atividades da oração e o administrador, após o sinal luminoso, que notificava aos operários o término das obrigações, adiantou -se para nós, exclamando: – Gratíssimo pelo concurso fraternal. Realizamos belo serviço intercessório. Desde alguns dias, ninguém se levantava. Aniceto, percebendo -nos a perplex idade, falou a Vicente e a mim, de maneira significativa: – Conforme viram, o trabalho da prece é mais importante do que se pode imaginar no círculo dos encarnados. Não há prece sem resposta. E a oração, filha do amor, não é apenas súplica. É comunhão entr e o Criador e a criatura, constituindo, assim, o mais poderoso influxo magnético que conhecemos. Acresce notar, porém, já que comentamos o assunto, que a rogativa maléfica conta, igualmente, com enorme potencial de influenciação. Toda vez que o Espírito se coloca nessa atitude mental, estabelece um laço de correspondência entre ele o Além. Se a oração traduz atividade no bem divino, venha donde vier, encaminhar -se-á para o Além em sentido vertical, buscando as bênçãos da vida superior, cumprindo -nos adverti r que os maus respondem aos maus nos planos inferiores, entrelaçando -se mentalmente uns com os outros. É razoável, porém, destacar que toda prece impessoal dirigida às Forças Supremas do Bem, delas recebe resposta imediata, em nome de Deus. Sobre os que oram nessas tarefas benditas, fluem, das esferas mais altas, os elementos -força que vitalizam nosso mundo interior, edificando -nos as esperanças divinas, e se exteriorizam, em seguida, contagiados de nosso magnetismo pessoal, no intenso desejo de servir com o Senhor. E, procurando materializar o pensamento, para facilitar -nos a compreensão, acentuou: – Viram, vocês, cair sobre nós os elementos a que me refiro, e observaram a sua exteriorização com as luzes de cada um de nós, em benefício dos irmãos que dormem e sofrem. Concedeu -nos o Altíssimo a força de auxiliar, em porções iguais para todos, mas nós a espalhamos de acordo com a nossa possibilidade e coloração individuais. Ismália, cujos sentimentos são mais amplos e universalistas que os nossos, pôde receber com mais clareza o auxílio divino e distribuí -lo com mais abundância e eficiência. Temos, aqui, uma profunda lição. Como já disse, o Pai visita os filhos necessitados, através dos filhos que procuram compreendê -lo. Não poderíamos abusar do Senhor, como abusamos no círculo terrestre dos nossos pais humanos. Não vive Ele ao sabor " André Luiz," de nossos caprichos pessoais. Nunca poderia vir, em pessoa, enxugar o pranto do necessitado que chora, em conseq uência, aliás, do olvido das Divinas Leis. Compete ao necessitado cam inhar ao reencontro d’Ele. O Senhor, todavia, atende sempre a todos os homens de boa vontade, por intermédio dos homens bons, que se edificam na casa divina. Todos os nossos desejos e impulsos razoáveis são atendidos pelas bênçãos paternais do Eterno. Aind a que nos demoremos nas lágrimas e nas aflições, jamais permanecemos ao desamparo. Apenas devemos salientar que as respostas de Deus vão sendo maiores e mais diretas, à medida que se intensifique o nosso merecimento, competindo -nos reconhecer que, para sem elhantes respostas, são utilizados todos quantos trazem consigo a luz da bondade, ou já possuem mérito e confiança para auxiliar em nome de Deus. As explicações de Aniceto abriam -me novos campos de meditação. O esclarecido instrutor, contudo, não dera por finda a lição e, depois de longa pausa, concluiu: – Já que vocês se encontram comigo num curso de serviço auxiliador, espero aproveitem o máximo ensinamento desta hora. Reparem que, nestes pavilhões, temos mil e novecentos e oitenta abrigados que dormem. T odos recebem diariamente alimento e medicação comuns, mas só quatrocentos são atendidos com alimento e medicação especializados, por se mostrarem mais suscetíveis de justa melhora. Desses quatrocentos, apenas dois terços se revelaram aptos à recepção de passes magnéticos. Muitos não podem receber, por enquanto, a água efluviada. Poucos foram contemplados com o sopro curativo e somente dois se levantaram, ainda assim, profundamente perturbados. Já que iniciam um trabalho de cooperação fraternal, não esqueçam esta lição. Façamos todos o bem, sem qualquer ansiedade. Semeemo -lo sempre e em toda a parte, mas não estacionemos na exigência de resultados. O lavrador pode espalhar as sementes à vontade e onde quer que esteja, mas precisa reconhecer que a germinação, o crescimento e o resultado pertencem a Deus. " André Luiz," Ouvindo servidores Notei que o trabalho no Posto se desenvolvia em ambiente da mais bela camaradagem, não obstante o respeito natural às noções de hierarquia. Enquanto palestrávamos animadamente, Ismália recebia servidoras numerosas, em atitude verdadeiramente maternal, embora muitas mostrassem o rosto envelhecido, parecendo avós da esposa do administrador. Aniceto nos ministrava lições de vulto, extraídas de circunstâncias aparentemente inexpressivas, e Alfredo recebia os colaboradores de todas as condições, não só com espírito de solidariedade, mas também de imenso afeto. Ria -se carinhosamente ou fornecia pareceres, sem o mínimo gesto de impaciência ou irritação. Aquele clima de concórdia fazia -me enorme bem. Tudo respirava ordem e compreensão, bondade e harmonia. A atitude paterna do administrador do Posto de Socorro, expressa em energia e amizade, organização e entendimento, atraía -me com força. Pedi permissão ao nosso orientador para ouvir os esclareci mentos prestados àqueles numerosos cooperadores. Aproximei -me, impressionado. Nesse momento, um colaborador de maneiras simpáticas dirigia -lhe a palavra, com grande interesse. Tratava -se de um velhinho de humilde expressão, que lhe falava com mostras de ju sto respeito. – E o senhor recebeu as noticias? – Sim, Alonso – atendia o chefe, sem afetação –, nossos mensageiros cientificara m-me dos detalhes mínimos. Sua viúva continua muitíssimo acabrunhada, os filhinhos gozam saúde, mas permanecem na mesma ansiedad e por motivo de sua ausência. O velho, que parecia muito bondoso, esboçou um gesto de confirmação e acrescentou: – Tenho sentido tanta falta deles! Nos olhos transparecia a tristeza resignada, de quem deseja alguma coisa, medindo a extensão dos obstáculos. – Você, porém, Alonso – continuou Alfredo, comovido –, não deve angustiar -se. Sei que está trabalhando agora pelo futuro da família. Na Terra, na qualidade de pais, conseguimos movimentar muitas providências a favor dos filhos; entretanto, aqui, podemos realizar certas medidas em benefício deles, " André Luiz," com maior segurança. Nem sempre agimos no mundo com a necessária visão; mas aqui é possível sentir, de m ais perto, os interesses imperecíveis daqueles que amamos. O sentimento elevado é sempre um caminho reto para nossa alma; todavia, não podemos dizer o mesmo, a respeito do sentimentalismo cultivado no círculo da Crosta. É preciso que você tenha muito cuida do em não desorganizar a mente. A saudade que fere, impedindo -nos atender à Vontade Divina, não é louvável nem útil. É enfermidade do coração, precipitando -nos em abismos insondáveis do pensamento. Alonso deixou de sorrir, mostrou os olhos rasos d'água e f alou em voz súplice: – Reconheço, senhor Alfredo, a oportunidade de suas observações. Graças a Jesus, venho melhorando minha vida mental, nos deveres novos que me concedeu e, de fato, sinto -me renovado espiritualmente. Sei que sua palavra não me advertiria sem razão, mas, ousaria pedir licença para visitar a esposa e os filhos. À noite, quando me concentro nas preces habituais, sinto, em torno de mim, os seus pensamentos. Esses pensamentos me penetram fundo, atraindo -me toda a atenção para a Terra. Às vezes , consigo repousar um pouco, mas com muita dificuldade. Sei que a esposa e os filhos estão chamando, dolorosamente, por mim. Esta certeza me perturba de algum modo. Não tenho sentido a mesma firmeza para o trabalho diário e desejaria remediar a situação. R econheço que minhas obrigações, presentemente, são outras e que devo estar conformado; no entanto, confesso que minha luta espiritual tem sido bem grande. Estou certo de que me perdoará a fraqueza. Que chefe de família não se sentiria atormentado, ouvindo angustiosos apelos do lar, sem meios de atender, como se faz indispensável? E, revelando o enorme anseio d'alma, enxugou os olhos e prosseguiu: – Quisera rogar aos meus calma e coragem, esclarecendo que meu coração inda é frágil e necessita do amparo deles ; estimaria pedir -lhes esse auxílio para que eu possa atender às atuais obrigações, sem desfalecimentos. Quem sabe me concederá, agora, a permissão precisa? Temos bem perto de nossa casa um grupo de amigos espíritas... talvez não me fosse difícil transmiti r algumas palavras, breves que fossem, tentando tranq uilizar a esposa e os filhos!... Alfredo, imperturbável, não respondeu negativamente. Parecia compreender toda a inquietação do servidor simpático e humilde. Observei -lhe no olhar, muito lúcido, o desejo sincero de atender e, com extrema simpatia por sua conduta generosa, ouvi -o ponderar: – Não será impossível satisfazê -lo, meu caro Alonso! Nossos emissários poderão conduzi -lo, nas viagens comuns; entretanto, creia que, como amigo, ficaria preocupado com você, pela manutenção de sua paz. Não posso abusar da autoridade e sei que cada um tem a experiência que lhe cabe, mas creio seja de seu vital interesse o fortalecimento do coraç ão. É imprescindível conformarmo -nos com os desígnios do Eterno. Você e sua mulher não ficariam separados se não necessitassem de experiências novas. As dificuldades que ela vem amargando com a sua ausência sofre -as também você com a separação dela. " André Luiz," Tenho a impressão, Alonso, de que Deus nos deixa sozinhos, por vezes, a fim de refazermos o aprendizado, melhorando o coração. A soledade, porém, quando aproveitada pela, alma, precede o sublime reencontro. Além disso, você não deve ignorar que os filhos pertenc em a Deus, que cada um deles precisa definir responsabilidades e cogitar da própria realização. Por enquanto, vivem chorosos, desalentados. A revolta lhes visita a alma invigilante. Estabeleceu -se a desordem doméstica, depois da sua vinda. Entretanto, que fazer senão pedir para eles e para nós a bênção do Eterno? Precisam eles da conformação com a realidade justa e você, que já lhes deu o que era razoável, necessita, igualmente, evolver e aperfeiçoar -se na senda nova a que fomos chamados. Em que ficaria, meu caro, se permitisse a invasão total do sentimentalismo doentio em seus pensamentos? Tão dedicado é você à família do sangue, que, por agora, não o sinto com bastante preparo a tudo ver no antigo lar, sem sofrer desastrosamente. Há tempos, autorizei a vis ita de dois colegas nossos à esfera da Crosta, a fim de reverem as viúvas e abraçarem de novo os filhinhos; mas foram tão violentamente surpreendidos pela situação, que não puderam voltar aos seus deveres aqui, lá ficando agarrados ao ninho que haviam abandonado. Não vigiaram o coraçã o, convenientemente. Ouviram, em demasia, o pranto dos familiares terrestres, envolvera m-se nos pesados fluidos do clima doméstico e, passada a semana de licença, não conseguiram erguer -se para o regresso. Estavam como pássaros aprisionados pelo visgo das tentações. Os encarregados do noticiário particular voltaram ao Posto sem eles, com grande surpresa para mim. E, francamente, não sei quando poderão reassumir as funções que lhes cabem. O prejuízo de ambos é muito grande. Depois de pequena pausa, Alfredo r ematou: – Os voos de grande altura pedem asas fortes. Alonso, que ouvia de olhos arregalados, considerou resignado: – Desisto do pedido. O senhor tem razão. O administrador abraçou -o e murmurou: – Deus ilumine o seu entendimento. Admiradíssimo, reparei que outros colaboradores se aproximavam, rogando esclarecimentos, pareceres, edificando -me no exemplo do administrador amigo, que respondia em voz firme e afetuosa, demonstrando interesse de irmão. " André Luiz," O caluniador Enquanto o administrador se entregava a c onversações educativas com os numerosos subordinados, Aniceto chamou -nos a pequena construção isolada e falou: – Vejamos outro ensinamento. Avançamos na direção de algumas câmaras separadas. Nosso instrutor abriu uma porta e vimos um louco, que parecia fun damente irritado. Fixou em nós o olhar inexpressivo e gritou estentoricamente. Aniceto, porém, adiantou -se e cumprimentou -o, atencioso: – Como vai, Paulo? As palavras, ao que senti, emitiram certo fluxo magnético e o enfermo revelou profunda modificação. A quietou -se de súbito. Sentou -se mais calmo, embora trêmulo e espantadiço. – Tem sentido melhoras, Paulo? – perguntou nosso orientador, bondosamente, tocando -o no ombro. Ao contato pessoal de Aniceto, o doente mostrou algum raciocínio e respondeu: – Vou mel horando, graças... A vista da expressão reticenciosa, o instrutor falou em tom firme, como se desejasse auxiliar -lhe a vontade enfraquecida: – Termine! O doente fez enorme esforço e concluiu: – Graças a Deus! Anotando -lhe o sofrimento e a indecisão, lembre i dos enfermos das Câmaras, aos quais prestava Narcisa ampla colaboração afetuosa. Percebendo -me as íntimas considerações, disse o mentor esclarecido: – Veem a diferença entre os que dormem, os que estão loucos e os que sofrem? Em “Nosso Lar” não temos dos primeiros, e os que se encontram desequilibrados, nos serviços da Regeneração, sentem, na maioria, angústias cruéis. É necessário reconheçamos que os que gemem e sofrem, em qualquer parte, estão melhorando. Toda lágrima sincera é bendito sintoma de renova ção. Os escarnecedores, os ironistas e os perturbados que não registram a dor são mais dignos de piedade, por permanecerem embotados em estranha rigidez de entendimento. " André Luiz," E, designando o enfermo sob nossos olhos, afirmou: – Paulo é um doente a caminho de me lhora positiva. Ainda não possui a consciência exata da situação, mas já chora, já padece com as recordações do passado triste. Recebi o esclarecimento com atenção. Lembrei -me que, de fato, os doentes conduzidos pelos Samaritanos a “Nosso Lar”, em serviço diário, eram grandes sofredores. Os que não acusavam padecimentos atrozes, revelavam estranho pavor das sombras. A única entidade que ali observara, com absoluta inconsciência da própria miséria, fora a de pobre vampiro que não encontrara guarida nas Câmar as de Retificação. Nosso instrutor, sem qualquer preocupação de transformar o doente em cobaia, recomendou, afetuoso: – Concentrem no Paulo a capacidade de visão! Estimulado pela experiência anterior, fixei nele todo o meu potencial de observação. Aos pouc os, caracterizou -se a meus olhos a sua tela mental, parecendo form ada em compacta sombra noturna. Com surpresa, divisei formas diversas que se movimentavam. Vários vultos de mulher ali surgiam, despertando -me enorme admiração. Entre eles, reparei o de Ismá lia como que doente, enfraquecida, ansiosa. Alguns homens passavam, igualmente, mostrando desesperação, e notei, nessas imagens, o próprio Alfredo a evidenciar cansaço e extrema velhice prematura. Vozes misteriosas se faziam ouvir. Sobre Paulo choviam mald ições e blasfêmias. As mulheres pareciam acusá -lo, clamorosamente; os homens davam id eia de perseguidores ferozes, ocultos no mundo interior daquele enfermo estranho. Observando, porém, que os vultos de Ismália e Alfredo se movimentavam naquele painel escu ro, não pude sofrear a curiosidade e interrompi o minucioso exame, voltando a conversar com o nosso orientador, perguntando: – Como explicar o fenômeno? Estou assombrado! Antes, porém, que pudesse expressar maiormente o espanto que me dominara, Aniceto aju ntou: – Já sei. Admira -se da presença de Ismália e do seu marido nas reminiscências do enfermo. E, ante a minha perplexidade, continuou: – Lembra m-se da história de Alfredo? Temos diante de nós o falso amigo que lhe arruinou o lar. Paulo, contudo, não some nte cometeu a ingratidão, como envenenou o espírito doutras senhoras, traiu outros amigos e destruiu a alegria e a paz doutros santuários domésticos. Observando Ismália aflita e Alfredo desesperado, nas recordações dele, vemos as imagens criadas pelo calun iador, para seus próprios olhos. Nossos amigos deste Posto evoluíram, transpuseram a fronteira da mágoa, escaparam aos monstros do ódio, veste m-se hoje de luz; no entanto, Paulo os vê como imagina, para escarmento de suas culpas. O criminoso nunca consegue fugir da verdadeira justiça universal, porque carrega o crime cometido, em qualquer parte. Tanto nos círculos carnais, como aqui, a paisagem real do Espírito é a do campo " André Luiz," interior. Viveremos, de fato, com as criações mais intimas de nossa alma. Reparando -me a dificuldade para compreender de pronto, Aniceto prosseguiu, depois de pequeno intervalo: – Para melhor elucidação, recordemos a crucificação d o Mestre Divino. Sabemos que Jesus penetrou na glória sublime logo após a suprema dor do Calvário; entretanto, estamos ainda a vê -lo frequen temente pendurado na cruz, martirizado pelos nossos erros, flagelado pelos nossos açoites, porque a visão interior a isso nos compele . A condenação do Mestre foi um crime coletivo e esse crime estará conosco até ao dia em que nos vestirmos na divina luz da redenção. O esclarecimento não poderia ser mais lúcido. Sentia -me diante de nobre revelação. – O dever possui as bênçãos da confianç a, mas a dívida tem os fantasmas da cobrança – tornou o generoso mentor, com grave acento. Readquirindo a serenidade, interroguei: – Mas Paulo veio ter casualmente a este Posto? – Não – respondeu Aniceto, atencioso –; foi trazido pelo próprio Alfredo, que se sentiu necessitado de disciplinar o coração. Nosso amigo, que hoje dirige esta casa de amor, desprendeu -se do mundo, sob intensa vibração de ódio e desesperação. Sofreu muitís simo nos primeiros tempos, embora nunca fosse abandonado pela dedicação da abnegada companheira. Alfredo, todavia, não pôde ver Ismália enquanto não se desvencilhou das baixas manifestações do rancor. Socorrido em “Campo da Paz”, compreendeu as próprias ne cessidades. Tão logo adquiriu algum mérito, intercedeu pelo amigo infiel, buscou -o em recanto abismal, e tão nobremente se dedicou ao aperfeiçoamento de si mesmo, que conquistou a posição de administrador de um Posto de Socorro. Trouxe o tutelado em sua companhia e trata -o como irmão, atualmente. Não julguem que o marido de Ismália conseguiu essa vitória espiritual tão somente pelo fato de desejá -la. Ele desejou -a, procurou -a, alimentou -a e, agora, permanece na realização. Há muitos anos conversa com Paulo, diariamente. Nos primeiros tempos, aproximava -se do enfermo, como necessitado de reconciliação; depois, como pessoa caridosa; mais tarde adquiriu entendimento, comparando situações; em seguida, sentiu piedade; logo após, experimentou simpatia e, presentemente, conquistou a verdadeira fraternidade, o amor sublime de irmão pelo ex -inimigo. Fazendo pequena pausa, voltou a dizer, espirituosamente: – Como v eem , o ensinamento de Jesus, quanto ao “batei e abrir -se-vos-á”, muito extenso. No plano da carne, insistimos à porta das coisas exteriores, procurando facilidades e vantage ns; mas, aqui, temos de bater à porta de nós mesmos, para encontrar a virtude e a verdadeira iluminação. Vicente, que até então se conservara calado, indagou: – Paulo, todavia, permanecerá aqui, indefinidamente? Nosso instrutor fez um gesto significativo e c oncluiu: – Voltará breve à Terra. Ismália tem feito a seu favor inúmeras intercessões e não deseja que ele, ao retomar a razão plena, se sinta humilhado, " André Luiz," com o beneficio das próprias vítimas. Uma das irmãs, por ele caluniada no mundo, já voltou ao círculo carnal, e a abnegada esposa de Alfredo pediu -lhe que recebesse Paulo como filho, tão logo seja oportuno. " André Luiz," Vida social À noite, surpreendia m-me os sublimes aspectos do firmamento no Posto de Socorro. O luar safirino envolvia todas as coisas. O céu era qual infinita colcha de azul muito límpido, pontilhado de astros fulgurantes. As nuvens da tarde haviam desaparecido. Contemplando a beleza da noite, Alfredo acentuou: – Felizmente, os fenômenos magnéticos foram deslocados do nosso circulo. Os aparelhos, porém, continuam registrando enorme conflito de forças inferiores. Ia comentar a beleza do céu, ante a observação do administrador, quando a campainha retiniu suavemente. Chamavam à entrada. Alfredo e Ismália sorriram. Muito gentil, o chefe do Posto asseve rou: – Temos a visita de amigos do “Campo da Paz”. E, convidando -nos à recepção no baluarte avançado, acrescentou jovialmente: – Temos, também, aqui, a nossa vida social. Como não? É preciso saber viver. Encantado com essa nota alegre, acompanhei os donos da casa, verificando, com indizível surpresa, que tínhamos sob os olhos um belo carro tirado por dois soberbos cavalos brancos. Tratava -se de veículo confortável e interessante, quase idêntico aos velhos carros de serviço público, d o tempo de Luis XV , que eu vira, mais de uma vez, em publicações antigas. Nele chegara pequena família da colônia próxima, que, pelas informações de Aniceto, demorava a três léguas do Posto, aproximadamente. Alfredo apresentou -nos, cavalheirescamente, com exceção de nosso orienta dor, que era velho amigo dos recém -chegados. Constituía m-se os visitantes do casal Bacelar e duas filhas jovens. O chefe do grupo mostrava idade avançada, revelando, porém, excelentes disposições. A senhora dava impressão de madureza, aparentando, contudo, maravilhosa vivacidade, assim como as duas moças. A alegria era enorme. Não se observava qualquer nota de convencionalismo menos digno, como na Terra, Os gestos de cada um, a simplicidade, a despreocupação e as frases afetuosas demonstravam sinceridade pu ra. Permanecíamos num quadro social inacessível ao fingimento. " André Luiz," Voltando ao interior doméstico, entre grandes manifestações de júbilo familiar, observei que os recém -chegados eram amigos de muito tempo, que vinham ao encontro de Ismália. A nobre senhora par eceu -me contentíssima. Expediu recados afetuosos para algumas famílias do Posto e, em breves minutos, o castelo recebia inúmeras pessoas que concorriam ao brilhantismo da seleta reunião. Sentindo -me assaz insignificante, ao lado dos novos amigos, limitava -me a ouvir e observar. Logo aos primeiros instantes de conversação particularizada, ouvi Aniceto perguntar ao senhor Bacelar: – Como corre o serviço? O velho bondoso respondeu num sorriso largo: – Bem, sempre bem. Apenas não podemos fixar demasiada atenção nos companheiros encarnados. E ajuntou com graça: – É indispensável aprender a servir e passar. Nosso instrutor sorriu igualmente e observou: – Compreendo, compreendo. Aliás, o progresso humano não é uma questão de dias. Não tenhamos ilusões. E, percebend o que Vicente e eu poderíamos aproveitar com a palestra, Aniceto indicou o novo hóspede de Alfredo, explicando solícito: – Nosso amigo Bacelar é chefe de turmas de assistência aos nossos irmãos do círculo carnal. Tem longa experiência dos homens e conhece -os como ninguém. Há muito que aproveitar nas suas observações. – Não tanto, meus caros – exclamou o senhor Bacelar, de bom humor – não tanto. Sou simples companheiro de vocês, cumprindo deveres por acréscimo da misericórdia divina. Não posso fazer muito, e m razão de minhas eficiências naturais. – Estamos certos do grande proveito da sua palavra – objetou Vicente, até então calado. – Tudo o que nos disser sobre o problema de assistência constituirá, para nós, ensinamento precioso – disse por minha vez. O no vo amigo fitou -nos com inteligência, e perguntou: – Foram médicos no mundo? – Sim – respondemos a um só tempo. O senhor Bacelar pensou alguns momentos e acentuou: – Sempre gostei de conversar com os amigos, recorrendo aos símbolos sugeridos pela profissão que exercem. Mas, no tocante às minhas atividades, não teria muito o que dizer a médicos militantes. – Pelo contrário – aduzi –, seus esclarecimentos enriquecerão nossas experiências. O interlocutor sorriu, otimista, e declarou: – Não creia. Recorde os seu s doentes comuns. Muito raramente lembram a medicina preventiva. De modo quase invariável, esperam a positivação das moléstias para buscarem o recurso preciso. Necessitam de anestésicos para o socorro do bisturi. Fogem ao regime tão logo surja a " André Luiz," primeira m elhora. Confundem o método de tratamento, apenas se registre o primeiro sinal de cura. Detestam a dor que restabelece o equilíbrio. Descontenta m-se com a indicação de purgativos. Preferem a medicação de sabor agradável. E, sobretudo, quase sempre querem sa ber muito mais que os médicos. Esta síntese aplicável a corpos doentes representa, em nosso campo de serviço, o resumo do programa de assistência aos Espíritos enfermos, encarnados na Terra, e com agravantes de vulto, porque, em nosso setor, não podemos ma nipular a alma, à maneira do cirurgião que opera as amídalas. Somos forçados à preparação do campo mental conveniente, a proceder à semeadura de pensamentos novos, velar pela germinação, ajudar os rebentos minúsculos e aguardar a obra do tempo. Nossa luta não é simples, porque, se o clínico do mundo encontra sempre familiares amorosos, dispostos a cooperar com ele em benefício do doente, o que encontramos, por nossa vez, são enormes legiões de elementos adversos à nossa atividade restauradora e curativa. Em geral, o médico do mundo presta socorro a quem deseja recebê -lo, pelo menos nas ocasiões de graves perigos; nós, porém, meus amigos, muitas vezes temos de prestar assistência aos que não a desejam, por viverem sob véus de profunda ignorância. – Tem razão – murmurei, ouvindo comparações tão lógicas –; entretanto, vale po r conforto a certeza de que há muitos cooperadores encarnados no mundo prontos a colaborar na tarefa. O senhor Bacelar teve uma expressão fisionômica muito significativa, e revelou: – Nem sempre. A cooperação é outro problema. A maioria dos irmãos que se p ropõem ao serviço, partem daqui prometendo, mas gostam de viver descansados, no planeta. Poucos fogem ao estalão comum. Raramente encontramos companheiros encarnados com bastante disposição para amar o trabalho pelo trabalho, sem id eia de recompensa. A mai oria está procurando remuneração imediata. Nessas condições, não percebem que a mente lhes fica como aposento escuro, atulhado de elementos inúteis. À força de viciarem raciocínios, confundem igualmente a visão. Enxergam tormentas onde há paisagens celeste s, montanhas de pedra onde o caminho é gloriosa elevação. De pequenos enganos a pequenos enganos, formam o continente das grandes fantasias. Daí por diante, a recapitulação das experiências terrenas inclina -os, mais fortemente, para a exigência animal e, c hegados a esse ponto, raros voltam ao dever sagrado, para considerar a grandeza das divinas bênçãos. Nosso interlocutor fez uma pausa e tornou: – E o “desculpismo”? Nesse terreno de assistência espiritual, verão, um dia, quantos pretextos são inventados pe las criaturas terrestres por fugir ao testemunho da verdade divina, nas tarefas que lhes são próprias. Os mordomos da responsabilidade alegam excesso de deveres, os servidores da obediência afirmam ausência de ensejo. Os que guardam possibilidades financei ras montam guarda ao patrimônio amoedado, os que receberam a bênção da pobreza de recursos monetários aconselha m-se com a revolta. Os moços declara m-se muito jovens para cultivar as realidades sublimes, os mais idosos " André Luiz," afirma m-se inúteis para servi -las. Os casados reclamam quanto à família, os solteiros queixa m-se da ausência dela. Dizem os doentes que não podem, comentam os sãos que não precisam. Raros companheiros encarnados conseguem viver sem a contradição. O senhor Bacelar parecia disposto a prosseguir, mas as duas jovens foram buscá -lo, a ele e Aniceto, em nome de Alfredo, a fim de providenciar solução de problema intimo que lhes dizia respeito. " André Luiz," Notícias interessantes Em vista de apresentação mais íntima de Aniceto, que deixara as jovens em nossa companhia, entramos a conversar animadamente com Cecília e Aldonina. A primeira tinha sido filha dos Bacelar, quando na Crosta; a segunda era uma sobrinha do chefe da família, que aguardava a volta da mãezinha para a organização de um lar na cidade próxima. Ambas demonstravam magnífico desenvolvimento mental, robusta inteligê ncia e notável capacidade de expressão. E, enquanto os nossos maiores se conservavam afastados, cogitando de assunto privado, Vicente e eu ouvíamos as jovens, encantados com a sua nobreza e vivacidade. Verificava que o quadro era idêntico à paisagem social da Terra, apenas diferindo quanto aos sentimentos reais. Não havia qualquer nota de falsa apresentação. Em tudo a alegria pura, a simplicidade fiel, a sinceridade sem mácula. No desenvolvimento espontâneo da palestra, falou Cecília, com graça: – Estou tra balhando, há muito, para alcançar um prêmio de visita a “Nosso Lar”. Minhas superioras prometera m-me semelhante satisfação para o ano próximo... E, sorrindo, rematou expressivamente: – Entretanto, para consegui -lo, tenho de atender a umas tantas obrigações importantes. – Pois que! – perguntou Vicente, admirado – é preciso tanto? – Sem dúvida – tornou a jovem, bem humorada – o meu amigo talvez não esteja convencido, quanto ao brilho de sua atual posição. Viver em “Nosso Lar” é uma grande bênção. Acaso não o terá compreendido ainda? Sorrimos todos. E, reafirmando o conceito, Cecília continuou: – Segundo os instrutores que nos visitam em “Campo da Paz”, os seus Ministérios são verdadeiras universidades de preparação espiritual. O ensejo educativo, neles, é imen so. E chego a crer que, para avaliarem a extensão da benesse que Jesus lhes concedeu, seria necessário viverem alguns anos em nossa colônia, onde o trabalho ativo de vigilância, e assistência é mais imperioso, mais exigente. – Em “Nosso Lar”, porém – objet ei –, temos igualmente grande número de sofredores. A Regeneração é uma colm eia de milhares. " André Luiz," A interlocutora, todavia, revelando profunda acuidade nas observações, considerou: – Você diz muito bem, quando se refere a colm eia, significando possibilidades de trabalho. Creia que os sofredores que atingem o seu núcleo já se encontram a caminho de excelentes realizações. Naturalmente que os irmãos desequilibrados, que por lá existem, já se torturam pelo vagaroso despertar da consciência, já sentem remorsos e arr ependimentos indicativos de renovação. São sofredores que melhoram progressivamente, porque o ambiente da cidade é de elevação positiva. Onde a maioria vive com a bondade, a maldade da minoria tende sempre a desaparecer. “Nosso Lar”, portanto, mesmo para o s que choram, possui soberanas vantagens espirituais. Impressionado com o que ouvia, lembrei: – Eu mesmo trabalhei algum tempo, em cooperação, nas câmaras retificadoras. – Já ouvi diversas referências a essa instituição – exclamou Cecília, senhora do assun to –, mas, baseando -me nos informes de mentores amigos, continuo a manter minha opinião. E, como se já conhecesse nossos processos de serviço, asseverou, sorridente: – Vocês conhecem lá muitos Espíritos sofredores, mas, em “Campo da Paz”, conhecemos muitos Espíritos obsessores. Lá poderá existir muita gente que ainda chora; mas em nosso meio há muita gente que se revolta. É mais fácil remediar o que geme, que atender ao revoltado. Nas câmaras a que se refere, vocês retificam erros que já apareceram, dores que já se manifestaram; mas aqui, meu amigo, somos compeli dos a lutar com irmãos ignorantes e perversos, que se sentem absolutamente certos nas fantasias perigosas que esposaram, e vemo -nos obrigados a atender a doentes que não acreditam na própria enfermidade. Começava a entender a lógica daquela argumentação e, reconhecendo a impossibilidade de qualquer contradita, a jovem continuou, segura de si: – Aliás, é natural que assim seja. Estamos a pouca distância dos homens, nossos irmãos na carne. E sabemos que, na Crosta, a situação não é diferente. Quantos material istas se fantasiam, por lá, de filósofos? Quantos demônios com capa de santos? Quanta má fé a fingir generosidade e boas intenções? A influência da Humanidade encarnada em nosso núcleo de serviço é vigorosa e inevitável. Vicente, que ouvia atencioso, obtem perou: – Deduzo de tudo isso manifestações sacrificiais muito grandes, mas o trabalho em “Campo da Paz” deve ser altamente meritório. – Incontestavelmente – respondeu a jovem. – A história da fundação é interessante. Alguns benfeitores, reconhecidos a Jesu s, resolveram organizar, em nome dele, uma colônia em plena região inferior, que funcionasse como instituto de socorro imediato aos que são surpreendidos na Crosta com a morte física, em estado de ignorância ou de culpas dolorosas. O projeto mereceu a bênç ão do Senhor e o núcleo se criou, há mais de dois séculos. Nem todos os " André Luiz," Espíritos evolvidos, no entanto, estimam o serviço nesse órgão de assistência constante. A maioria dos missionários vitoriosos, ao se ausentarem da Terra, necessitam refazer energias, por direito natural do trabalhador fiel, e os mentores de nobre posição hierárquica têm seus programas de serviços, que não devem quebrar, em obediência aos desígnios do Senhor. Desse modo, nosso serviço é ativo, mas nossas aquisições são lentas e devemos sempre esperar por cooperadores que se eduquem na própria colônia, em benefício geral. Ganha -se excelente compensação, temos direito a grandes valores intercessórios, mas, por isso mesmo, nossas responsabilidades não são pequenas. Conhecendo a utilidade do s que servem em nossa colônia, não passamos nunca sem instrutores abnegados, que procedem da zona superior, alentando -nos o bom ânimo, O que pedimos, com fundamentação legítima, nunca é negado; e, se tarda o recurso, beneméritos orientadores de nossas ativ idades prestam explicações que nos libertam de qualquer angústia na espera. Por isso, nosso grupo está sempre coeso e muitos preferem adiar certas realizações sublimes, para permanecer ao lado de companheiros antigos, aos quais se unem com desvelado amor. Os esclarecimentos da jovem encantava m-me. Naquelas poucas palavras estava todo um resumo de lições sobre o sacrifício e o merecimento, o compromisso fraterno e a solidariedade compensadora. – A sua família sempre viveu lá? – perguntei com interesse. A jov em sorriu e explicou: – Meu pai, há mais de cinq uenta anos, foi socorrido pelos benfeitores de “Campo da Paz” e, restabelecida a saúde espiritual, fixou -se na colônia, com razoável impulso de amizade e gratidão. Mais tarde, minha mãe reuniu -se a ele e, faz precisamente vinte anos, Aldonina e eu fomos atraídas amorosamente por ambos, a fim de continuarmos, ali, no santuário familiar. Desse modo, trabalhamos ao lado deles, desde a primeira hora. – E tem muitos programas para o futuro? – indaguei. Cecília fez um gesto que lhe caracterizava o coração de moça sonhadora, e redarg uiu: – Tenho muitos projetos e problemas a resolver, mas estou aguardando a chegada de alguém que ainda se encontra na Terra. " André Luiz," Em palestra afetuosa Voltávamo -nos em conversação amiga para as belezas de “Nosso Lar”, quando Aldonina interveio, acrescentando: – Alguns membros de nossa família visitam a cidade de vocês, de tempos a tempos. Nossa irmã Isaura, que se casou em “Campo da Paz”, há três anos, lá reside em companhia do esposo, q ue é funcionário dos Serviços de Investigação do Ministério do Esclarecimento. Percebendo -nos a curiosidade, prosseguiu: – Morava ele conosco, mas, desde muito tempo, foi convocado a serviços por lá, vindo, mais tarde, buscar a noiva. Vicente, que se manti nha em atitude expectante, exclamou: – Tocamos num assunto que muita admiração me tem despertado, desde que regressei dos círculos terrenos. Não tinha, no mundo, a menor id eia de que pudéssemos cogitar de uniões matrimoniais, depois da morte do corpo. Quan do assisti a festividades dessa natureza, em “Nosso Lar”, confesso que minha surpresa raiou pela estupefação. Cecília, vivaz, acentuou, sorrindo: – Isto se deu também conosco. Entretanto, é forçoso reconhecer que tal estado d'alma resulta do exclusivismo p ernicioso a que nos entregamos no plano carnal, porque, se o casamento humano é um dos mais belos atos da existência na Terra, porque deixaria de existir aqui, onde a beleza é sempre mais quintessenciada e mais pura? E, além do mais, é imprescindível ponde rar que não vivemos à revelia de leis sábias e justas. – E como são felizes os que se casam em nossos planos! – acentuou o companheiro, denotando aspirações secretas do coração. Aldonina esboçou um gesto expressivo e considerou: – Sim, para possuirmos aqui essa ventura, é preciso ter amado na Terra, movimentando os mais nobres impulsos do espírito. Para colher os júbilos dessa natureza, é necessário ter amado com alma. Os que se consagram exclusivamente aos desejos do corpo, não sabem amar além da forma, sã o incapazes de sentir as profundas vibrações espirituais do amor sem morte. Desejando, porém, retomar o assunto referente a Isaura, interroguei, curioso: – Continuem falando -nos da irmã que se mudou para “Nosso Lar”. " André Luiz," Estimaria saber como se realizou o cons órcio. Se você, Cecília, está aguardando um prêmio de visita à nossa cidade, como se casou ela, transferindo -se para lá definitivamente? Cecília sorriu e retrucou: – Isto é outro caso. Isaura não poderia correr atrás do noivo, porque estava em situação inf erior à dele, mas Antônio, como superior, poderia descer a buscá -la. Não creiam, porém, que o matrimônio se tenha verificado sem qualquer preparação ou exigência. O noivo poderia conduzi -la sem qualquer formalidade, desde que recebesse o devido consentimen to, porquanto obtivera permissão das autoridades de “Nosso Lar”, mas um dos chefes de serviço aconselhou a Isaura, nesse sentido, explicando -lhe que, como administrador de uma colônia em condições de inferioridade, não podia opor qualquer embargo, mas pedi a à noiva preparar -se, por seis anos sucessivos, em “Campo da Paz”, antes da partida definitiva, acrescentando sensatamente que, num casamento de almas, é indispensável apurar o enxoval dos sentimentos. Nossa irmã, que foi sempre muito prudente, aceitou a solicitação e trabalhou durante todo esse tempo em nossa colônia, adquirindo valores culturais e aprimorando o campo do pensamento. Recebia essas delicadas informações, sem disfarçar a enorme surpresa. – Já fui visitar o casal, uma vez – disse Aldonina, ho nrada –, quando ganhei o prêmio de assiduidade e bom ânimo. Estive em “Nosso Lar”, durante uma quinzena inesquecível para mim; no entanto, embora visitasse sublimes instituições como o Bosque das Águas, o Salão da Arte Divina, o Campo da Prece Augusta, reconheço ter voltado muito longe de um conhecimento integral da enorme cidade. Lá irei, contudo, mais tarde, pois continuo em meu trabalho e nossos instrutores afirmam sempre que tudo de bom deve aguardar do destino quem saiba servir ao bem e trabalhar com e sperança. Admirando a beleza de sentimentos daquelas jovens, indaguei emocionado: – Mas não têm vocês, em “Campo da Paz”, instituições semelhantes? Não existirão, por lá, templos de alegria abertos à juventude? – Ah! Sim – murmurou Cecília como quem não de sejava ser ingrata às Bênçãos do Eterno –, muito nos dá o Senhor, em nossa colônia; entretanto, permanecemos na vizinhança dos irmãos encarnados – As tempestades que nos atingem, obriga m-nos a serviços constantes. Os quadros interiores que nos cercam são p rofundamente dolorosos. Nossa cidade não possui Ministérios da União Divina, nem da Elevação. Não podemos receber a influência superior com muita facilidade. Nossos trabalhos de comunicação e auxílio necessitam ainda de muita gente educada no Evangelho, pa ra funcionar com eficiência. Além disso, temos os problemas de finalidade. Nossa colônia foi instituída para socorro urgente. A nosso ver, “Campo da Paz” é, mais que tudo, um avançado centro de enfermagem, rodeado de perigos, porque os irmãos ignorantes e infelizes nos cercam o esforço por todos os lados. De dez em dez quilômetros, nas zonas de nossa vizinhança, há Postos de Socorro como este, que funcionam como instituições de assistência fraternal e sentinelas ativas, ao mesmo tempo. " André Luiz," A jovem fez uma pausa mais longa, observando o efeito de suas palavras, e rematou: – Nosso governador, quando se agravam os serviços, costuma asseverar que estamos num Campo de batalha, com a Paz de Jesus. Imagem alguma define tão bem o nosso núcleo, como esta. No exterior, o trabalho é rigoroso e incessante, mas, dentro de nós, existe uma tranq uilidade que nós mesmos dificilmente podemos compreender. – O serviço circunscreve -se à cidade? – perguntei. – Não – o trabalho é multiforme. Eu e Aldonina, por exemplo, temos grandes ta refas de assistência junto dos recém -encarnados. Nossa cidade prepara, em média, quinze a vinte reencarnações diárias e torna -se imprescindível assistir os companheiros ou tutelados, pelo menos no período infantil mais tenro, que compreende os primeiros se te anos de existência carnal. E talvez porque lesse em nossos olhos a mais viva admiração, a jovem adiantou -se, explicando: – Felizmente, porém, temos as faculdades de volitação bastante adestradas. Raramente encontramos empecilhos vibratórios e podemos, p or isso mesmo, agir com grande economia de tempo. Além disso, somente nossos instrutores vão ao serviço sozinhos. Quanto a nós, não saímos, a não ser em grupos. Necessitamos auxílio recíproco, não só no que diz com a eficiência, senão também no que se refe re ao amparo magnético. E, sorrindo de modo singular, concluiu: – No trabalho de assistência aos outros e defesa de nós mesmos, não podemos dispensar a prática avançada e justa da cooperação sincera. " André Luiz," Cecília ao órgão Poucas vezes, no circulo carnal, tivera o prazer de assistir a reunião tão seleta. Todos os lustres estavam magnificamente acesos e, lá fora, as grandes árvores, docemente agitadas pelo vento brando, pareciam refletir o clarão lunar. Pares graciosos passeavam ao longo da varanda e das es cadarias extensas. O castelo enchera -se de alegria, com a crescente multiplicação de convidados. O administrador mostrava -se orgulhoso de confraternizar com os colaboradores diretos da sua obra, na recepção condigna aos amigos da colônia próxima. O júbilo transparecia em todos os rostos e eu, observando a beleza do espetáculo, meditava na ventura da vida social, no ambiente daqueles que começavam a compreender e praticar o “amai -vos uns aos outros”, distanciados da hipocrisia e das convenções aviltantes. Conversávamos, animadamente, quando Alfredo nos convidou para o Salão de Música. Houve geral contentamento. A senhora Bacelar, dando o braço à nobre Ismália, parecia encantada com a lembrança. Dirigimo -nos para o grande recinto, prodigiosamente iluminado por luzes de um azul doce e brilhante. Deliciosa música embalava -nos a alma. Observei, então, que um coro de pequenos músicos executava harmoniosa peça, ladeando um grande órgão, algo diferente dos que conhecemos na Terra. Oitenta crianças, meninos e meninas, surgiam, ali, num quadro vivo, encantador. Cinq uenta tangiam instrumentos de corda e trinta conservava m-se, graciosamente, em posição de canto.. Executavam, com maravilhosa perfeição, uma linda barcarola que eu nunca ouvira no mundo. Comovidíssimo, ouvi o administrador explicar: – As crianças do Posto são as nossas flores vivas. Dão -nos perfume, encantamento, alegria, suavizando -nos todos os trabalhos. Abeiramo -nos do órgão, sentando -nos todos em confortáveis poltronas. Quando as crianças terminaram, sob a plausos calorosos, Ismália pediu a Cecília executasse alguma coisa. – Eu? – disse a jovem, corando – se a senhora vem das altas esferas, onde a harmonia é santificada e pura, como poderei executar para os seus ouvidos? – Não diga isso, Cecília – tornou, so rridente, a generosa esposa do administrador –, a música elevada é sublime em toda parte. Vá, minha filha! " André Luiz," Lembre -me o lar terreno nos dias mais belos!... E, antes que a jovem Bacelar perguntasse qual a peça preferida, Ismália continuou: – Os serviços musi cais do Posto leva m-me a recordar a velha Fazenda, quando voltava do Internato... Meus pais estimavam as composições europ eias e, quase todas as noites, ensaiava ao piano... E, fixando em Cecília os olhos úmidos e brilhantes, rematou: – Sua mamãe deve lemb rar comigo a música predileta de meu velho e carinhoso pai... Notei que a senhora Bacelar disse alguma coisa à filha, em voz baixa, e vimos Cecília caminhar para o grande instrumento, sem hesitação. Com emoção indizível, ouvimo -la executar, magistralmente, a ‘Tocata e Fuga em Ré Menor”, de Bach, acompanhada pelas crianças exultantes. Fixei o rosto de Ismália, notando, pela luz do seu olhar, que seus pensamentos vagueavam longe, talvez em torno do antigo ninho doméstico. Via enxugar as lágrimas discretas e a braçar Cecília carinhosamente, ao findar a execução. – Agora, Cecília, cante alguma canção da própria alma! – falou a nobre senhora com ternuras de mãe – mostre -nos seu coração... Os senhores Bacelar estavam satisfeitos e emocionados. Lia -se-lhes nos gesto s o carinho com que acompanhavam os menores movimentos da filha. A jovem sorriu, voltou ao teclado, mas permanecia, agora, fundamente transfigurada. Seu belo semblante parecia refletir alguma luz diferente, que vinha de mais alto. Começou a cantar, de mane ira misteriosa e comovedora. A música parecia sair-lhe das profundezas do coração, mergulhando -nos em sublime emotividade. Procurei guardar as palavras da maravilhosa canção, mas seria impossível repeti -las integralmente, no círculo dos encarnados na Terra . A sombra da meia -noite não poderia traduzir o revérbero da aurora. Mas de algo me lembro, para registrar aqui, com a fidelidade de que é suscetível minha memória imperfeita. Como se fora rodeada de claridades diversas daquela em que nos banhávamos, Cecíl ia cantou com voz veludosa e cariciante: “Guardei para os teus olhos As estrelas brilhantes do céu calmo... Guardei para tua alma Todos os lírios puros dos caminhos!... Amado meu, amado meu, Como é longa a viagem entre escolhos Neste oceano imenso da sauda de, Ao sublime luar da eternidade!... Em vão, a fada Esperança Acende a luz dentro de mim... Porque te foste ao mundo, assim? Volta, amado! " André Luiz," Ainda mesmo Que as tuas mãos estejam frias E que teus pés sangrem de dor. Trago comigo o bálsamo, a ternura, Volta a mim, Vem respirar, de novo, no jardim Da Imortal união!... Curarei tuas chagas de amargura, Dar-te-ei o roteiro para a estrada, Amarei os que amas, Para que me abençoes com o teu sorriso. Volta, amado! Esquece a dor e a sombra do passado, Volta, de novo, ao nosso paraíso!...” Quando desferiu as últimas notas, vi -lhe o semblante lavado em lágrimas, como se fora banhado em pérolas de luz. Observei que a senhora Bacelar, muitíssimo comovida, tocou de leve a mão de Ismália, e falou: – Cecília nunca o esquece. A esposa do administrador, mostrando -se extremamente sensibilizada, indagou: – Não têm vocês novas notícias de Hermínio? – O pobrezinho tem vivido de queda em queda – esclareceu a nobre interlocutora – e Cecília sabe que não poderá contar com ele, por mui to tempo ainda, guardando, por esse motivo, muita mágoa íntima. Entretanto, nossa filha não desanima e trabalha, incessantemente, cheia de esperança. Nesse momento, porém, a jovem regressava ao círculo familiar, enxugando os olhos. A esposa de Alfredo abra çou-a e falou: – Minhas felicitações! Não sabia que você progredira tanto na arte divina! E que bela canção!... Cecília fez um gesto de timidez, beijou a mão da carinhosa amiga e retrucou: – Perdoe -me, querida Ismália, meu coração permanece ainda muito ligado à Terra!... Ismália, porém, de olhos úmidos e compreendendo -lhe o sofrimento intimo, conchegou -a ao peito e murmurou: – Devotar -se não é crime, minha boa Cecília. O amor é luz de Deus, ainda mesmo quando resplandeça no fundo do abismo. " André Luiz," Melodia sub lime Num gesto nobre, Aniceto pediu a Ismália que executasse algum motivo musical de sua elevada esfera. A esposa de Alfredo não se fez rogada. Com extrema bondade, sentou -se ao órgão, falando, gentil: – Ofereço a melodia ao nosso caro Aniceto. E, ante n ossa admiração comovida, começou a tocar maravilhosamente. Logo às primeiras notas, alguma coisa me arrebatava ao sublime. Estávamos extasiados, silenciosos. A melodia, tecida em misteriosa beleza, inundava -nos o espírito em torrentes de harmonia divina. P enetrava -me o coração um campo de vibrações suavíssimas, quando fui surpreendido por percepções absolutamente inesperadas. Com assombro indefinível, reparei que a esposa de Alfredo não cantava, mas no seio caricioso da música havia uma prece que atingia o sublime – oração que eu não escutava com os ouvidos mas recebia em cheio na alma, através de vibrações sutis, como se o melodioso som estivesse impregnado do verbo silencioso e criador. As notas de louvor alcançava m-me o âmago do espírito, arrancando -me lágrimas de intraduzível emotividade: “O Senhor Supremo de Todos os Mundos E de Todos os Seres, Recebe, Senhor, O nosso agradecimento De filhos devedores do teu amor! Dá-nos tua bênção. Ampara -nos a esperança, Ajuda -nos o ideal Na estrada Imensa da vida... Seja para o teu coração, Cada dia, Nosso primeiro pensamento de amor! Seja para tua bondade Nossa alegria de viver!... Pai de amor infinito Dá-nos tua mão generosa e santa. Longo é o caminho. Grande o nosso débito, " André Luiz," Mas inesgotável é a nossa esperança. Pai A mado, Somos as tuas criaturas, Raios divinos De tua Divina inteligência. Ensina -nos a descobrir Os tesouros imensos Que guardaste Nas profundezas de nossa vida, Auxilia -nos a acender A lâmpada sublime Da Sublime Procura! Senhor, Caminhamos contigo Na etern idade!... Em Ti nos movemos para sempre. Abençoa -nos a senda, Indica -nos a Sagrada Realização. E que a glória eterna Seja em teu eterno trono!... Resplandeça contigo a Infinita Luz, Mane em teu coração misericordioso A Soberana Fonte do Amor, Cante em tua Criação Infinita O sopro divino da eternidade. Seja a tua bênção Claridade aos nossos olhos, Harmonia ao nosso ouvido, Movimento às nossas mãos, Impulso aos nossos pés. No amor sublime da Terra e dos Céus!... Na beleza de todas as vidas, Na progressão de t odas as coisas, Na voz de todos os seres, Glorificado sejas para sempre, Senhor.” Que melodia era aquela que se ouvia através de sons inarticulados? Não pude conter as lágrimas abundantes. Cecília comovera -nos a sensibilidade, lembrando as harmonias terre nas e os afetos humanos. Ismália, no entanto, arrebatava -nos o Espírito, elevando -nos ao Supremo Pai. Nunca ouvira oração de louvor como aquela! Além disso, a esposa de Alfredo glorificava o Senhor de maneira diferente, inexprimível na linguagem humana. A prece tocara -me as recônditas fibras do coração e reconhecia que nunca meditara na grandeza divina, como naquele instante em que uma alma santificada falava de Deus, com " André Luiz," a maravilha de suas riquezas espirituais. E não era só eu a chorar como criança. Anice to enxugava os olhos, de maneira discreta, e algumas senhoras levavam o lenço ao rosto. Compreendi que a oração terminara, porque a música mudou de expressão. O caráter heroico cedeu lugar a lirismo encantador. Experimentando a profunda serenidade ambiente , vi que luzes prodigiosas jorravam do Alto sobre a fronte de Ismália, envolvendo -a num arco irisado de efeito magnético e, com admiração e enlevo, observei que belas flores azuis partiam do coração da musicista, espalhando -se sobre nós. Desfazia m-se como se feitas de caridosa bruma anilada, ao tocar -nos, de leve, enchendo -nos de profunda alegria. A maior parte caía sobre Aniceto, fazendo -nos recordar as palavras amigas da dedicatória. Impressionava m-me profundamente aquelas corolas fluídicas, de sublime az ul-celeste, multiplicando -se, sem cessar, no ambiente, e penetrando -nos o coração como pétalas constituídas apenas de colorido perfume. Sentia -me tão alegre, experimentava tamanho bom ânimo que não conseguiria traduzir as emoções do momento. Mais alguns mi nutos e Ismália terminou a magistral melodia. A esposa do administrador desceu até nós, coroada de intensa luz. Alfredo avançou, beijando -a no rosto, ao mesmo tempo em que Aniceto lhe estendia a destra, agradecido. – Há muito tempo não ouvia músicas tão su blimes como as desta noite – exclamou nosso orientador, sorrindo. Cecília falou -nos do sublime amor terrestre, Ismália arrebatou -nos ao divino amor celestial. Id eia feliz a de permanecermos no Posto! Fomos igualmente socorridos pela luz da amizade, que nos revigorou o bom ânimo! Aproximara m-se os Bacelares, eminentemente comovidos. – Que maravilhosas flores nos deste, querida amiga! – disse a mãezinha de Cecília, abraçando a esposa de Alfredo. – Voltaremos ao trabalho, repletos de energia nova! – acrescento u o senhor Bacelar, sorridente. A extensa sala estava cheia de notas de reconhecimento e júbilo sincero. A melodia de Ismália constituíra singular presente do Céu. A alegria e o bom ânimo transpiravam em todos os rostos. Observando que Aniceto se retirava para um canto do salão, procurei -o, ansioso. Desejava esclarecer o fenômeno da prece sem palavras, das harmonias, das luzes e das flores. Antes, porém, das interpelações do aprendiz, o orientador amigo sorriu, amável, e explicou: – Conheço a sua sede, Andr é. Não precisa perguntar. Impressionou -se você com a grandeza espiritual da nobre companheira do nosso amigo. Não precisarei alinhar esclarecimentos. Recorda -se de Ana, a infeliz criatura que dorme nos pavilhões, entre pesadelos cruéis? Lembra -se de Paulo, o caluniador? Não os viu carregando pesados fardos mentais? Cada um de nós traz, nos caminhos da vida, os arquivos de si mesmo. Enquanto os maus exibem o inferno que criaram para o íntimo, os bons revelam o paraíso que edificaram no próprio coração. Ismál ia já amontoou muitos tesouros que as traças não " André Luiz," roem. Ela já pode dar da infinita harmonia a que se devotou pela bondade e pelo divino amor. A luz que vimos é a mesma que jorra do plano superior, de maneira incessante, inundando os caminhos da vida, mas a melodia, a prece e as flores constituem sublime criação dessa alma santificada. Ela repartiu conosco, neste momento, uma parte dos seus tesouros eternos! Peçamos ao Senhor, meu amigo, que não tenhamos recebido em vão as sublimes dádivas! " André Luiz," A caminho da Crosta Após nos refazermos pela manhã, considerando a viagem ainda longa, despedimo -nos, comovidos. Pelo menos, quanto a mim, podia afirmar que me afastava com mágoa, tão belas as lições ali colhidas! Alfredo e a esposa nos abraçaram, sensibilizados, de sejando -nos jornada feliz e êxito no trabalho. Vários amigos da véspera estavam presentes, saudando -nos jubilosos. Tomamos o carro, agradavelmente surpreendidos. Ser-me-ia muito difícil descrever a pequena máquina, que mais se assemelhava a pequeno automóv el de asas, a deslocar -se impulsionado por fluidos elétricos acumulados. Sempre atencioso, Aniceto explicou: – Aceitei a cooperação do aparelho, não porque os deseja escravizados ao menor esforço, mas porque a permanência, embora ligeira, no Posto de Socor ro, constituiu ensejo dos mais frutuosos à aquisição de conhecimentos necessários. Receberam vocês lições intensivas, relativamente aos nossos irmãos perturbados e sofredores, bem como sobre os efeitos da prece. Desse modo, temos nosso expediente bastante adiantado, considerando que se encontram ambos em tarefa de observação e aprendizado, acima de tudo. E, depois de pequena pausa, continuou: – Não creiam, todavia, que possamos aproveitar a máquina até a Crosta. Calculo que só poderemos voar até ao meio -dia. Em seguida, prosseguiremos a pé. Aniceto calou -se por instantes, sorriu noutra expressão fisionômica, e acentuou: – Isto, porém, acontecerá somente enquanto não hajam vocês criado asas espirituais, que possam vencer todas as resistências vibratórias. Sem elhante realização pode não estar distante. Dependerá do esforço que desejarem despender no trabalho aquisitivo. Todo aquele que opere, e coopere de espírito voltado para Deus, poderá aguardar sempre o melhor. Não é promessa de amizade. É lei. O pequeno ap arelho nos conduziu por enormes distâncias, sempre no ar, mas conservando -se a reduzida altura do solo. Quase precisamente ao meio -dia, estacionamos em humilde pouso, " André Luiz," destinado a abastecimento e reparação de maquinaria de natureza daquela em que havíamos v iajado. Despediu -se de nós o condutor, que nos desejou boa viagem, preparando -se para regressar. A paisagem tornou -se, então, muito fria e diferente. Não estávamos em caminho trevoso, mas muito escuro e nevoento. Tornara -se densa a atmosfera, Alterando -nos a respiração. Aniceto contemplou, conosco, a vastidão caliginosa e falou em tom grave: – Com quatro horas de locomoção, estaremos na Crosta. Reparem as sombras que nos rodeiam, identifiquem a mudança geral. Infelizmente, as emissões vibratórias da Humanid ade encarnada são de natureza bastante inferior, em nos referindo à maioria das criaturas terrestres, e estas regiões estão repletas de resíduos escuros, de matéria mental dos encarnados e desencarnados de baixa condição. Atravessaremos grandes zonas, não propriamente tenebrosas, mas muito obscuras ao nosso olhar. Daqui a duas horas, porém, encontraremos sinais da luz solar. Nossa peregrinação, francamente, foi muito pesada e dolorosa, e, somente aí, avaliei, de fato, a enorme diferença da estrada comum, qu e liga a Crosta a “Nosso Lar” e aquela que agora percorríamos a pé, vencendo obstáculos de vulto. Imaginei, comovido, o sacrifício dos grandes missionários espirituais que assistem o homem, compreendendo, então, quão meritório lhes é o serviço e como neces sitam disposições especiais e extraordinário bom ânimo, para auxiliarem as criaturas encarnadas, de maneira constante. Os monstros, que fugiam à nossa aproximação, escondendo -se no fundo sombrio da paisagem, eram indescritíveis e, obedecendo a determinaçõe s de Aniceto, não posso ensaiar qualquer informe nesse sentido, a fim de não criar imagens mentais de ordem inferior no espírito dos que, acaso, venham a ler estas humildes notícias. No horário previsto por nosso orientador, começamos a vislumbrar, de novo , a luz do Sol, como se estivéssemos em madrugada clara. O espetáculo era magnífico e novo para mim. Calor brando começou a revigorar -nos. Aniceto fixou o quadro maravilhoso dos raios de luz atravessando as sombras, e falou, de olhos úmidos: – Agradeçamos ao Senhor dos Mundos a bênção do Sol! Na Natureza física, é a mais alta imagem de Deus que conhecemos. Temo -lo, nas mais variadas combinações, segundo a substância das esferas que habitamos, dentro do sistema. Ele está em “Nosso Lar”, de acordo com os elem entos básicos de vida, e permanece na Terra segundo as qualidades magnéticas da Crosta. É visto em Júpiter de maneira diferente, ilumina Vênus com outra modalidade de luz. Aparece em Saturno noutra roupagem brilhante. Entretanto, é sempre o mesmo, sempre a radiosa sede de nossas energias vitais! Avançamos, comovidos, e, dai há algum tempo, surgiu -nos o astro sublime, na posição que antecede o crepúsculo. Doutras vezes, viajando sempre através da estrada luminosa e fácil de ser percorrida, em vista das possi bilidades de volitação, não fizera maior reparo. Agora, porém, que atravessara névoas compactas, anotava diferenças profundas. " André Luiz," A certa distância, surgia a Terra, não na forma esférica, porque nos achávamos não longe da Crosta, mas como paisagem além, a int erpenetrar -se nas extensas regiões espirituais. O Sol resplandecia, rumo ao Poente, como enorme lâmpada de ouro. Aniceto, que parecia alegrar -se sobremaneira, exclamou: – Entramos na zona de influenciação direta da Crosta. Poderemos, doravante, praticar a volitação, utilizando nossos conhecimentos de transformação da força centrípeta. A luz que nos banha resulta do contato magnético entre a energia positiva do Sol e a força negativa da massa planetária. Prossigamos. Não tardaremos a entrar no Rio de Janeiro . A essa altura, assaltou -me o desejo de perguntar alguma coisa relativamente à direção. – Como nos orientaremos? – indaguei, curioso. – Antes de tudo – respondeu o instrutor – é preciso não esquecer que nossas colônias estão situadas no campo magnético da América do Sul. Qualquer bússola seria sensível, de agora em diante, mas, em nosso caso, é indispensável educar o pensamento e orientar -nos dentro da energia que lhe é peculiar. Empregamos, de novo, a capacidade volitante e, dentro em pouco, as matas de P etrópolis estavam à vista. Mais alguns minutos e perlustrávamos as grandes artérias cariocas. Por sugestão do instrutor, abeiramo -nos do mar, em exercício respiratório de maior expressão. Vicente e eu estávamos positivamente exaustos. Reconhecíamos que o esforço fora significativo para nossas escassas forças. Indiferentes à nossa presença, os transeuntes passavam apressados, de mente chumbada aos problemas de ordem material. Fonfonavam ônibus repletos. A grande baía figurava -se-nos cheia de forças renovador as. Quando se acendiam as primeiras luzes elétricas, Aniceto convidou -nos, amavelmente: – Vamos ao reconforto! Vocês estão fatigadíssimos. Irei mostrar -lhes que “Nosso Lar” tem, igualmente, alguns refúgios na Crosta. " André Luiz," Oficina de “Nosso Lar” Entre dez oito e dezenove horas, atingimos uma casa singela de bairro modesto. No longo percurso, através de ruas movimentadas, surpreendia -me, sobremaneira, por se me depararem quadros totalmente novos. Identificava, agora, a presença de muitos desencarnados de ord em inferior, seguindo os passos de transeuntes vários, ou colados a eles, em abraço singular. Muitos dependurava m-se a veículos, contemplava m-nos outros, das sacadas distantes. Alguns, em grupos, vagavam pelas ruas, formando verdadeiras nuvens escuras que houvessem baixado repentinamente ao solo. Assustei -me. Não havia anotado tais ocorrências nas excursões anteriores ao círculo carnal. Aniceto, porém, explicou que não fora vão o auxílio recebido para intensificação do poder visual. Estávamos em tarefa de observação ativa, com vistas ao aprendizado. Não dissimulava, entretanto, minha surpresa. As sombras sucedia m-se umas às outras e posso assegurar que o número de entidades inferiores, invisíveis ao homem comum, não era menor, nas ruas, ao de pessoas encarna das, em contínuo vaivém. Não havia, ali, a serenidade dos ambientes de “Nosso Lar”, nem a calma relativa do Posto de Socorro de Campo da Paz. Receios imprevistos instalava m-se-me n'alma, desagradáveis choques íntimos assaltava m-me o coração, sem que lhes pudesse localizar a procedência. Tinha a impressão nítida de havermos mergulhado num oceano de vibrações muito diferentes, onde respirávamos com certa dificuldade. Nosso instrutor esclarecia que, com o tempo, seriam dilatados nossos poderes de resistência e que as penosas sensações experimentadas obedeciam à circunstância de ser aquela a primeira vez que descíamos ao ambiente da Crosta em serviço de análise mais intenso. Recomendava -nos bom ânimo e, sobretudo, a conservação da fortaleza mental, ante quaisque r quadros menos estimáveis que nos defrontassem de imprevisto. A eficiência do auxilio, exclamava ele, necessita educação persistente. Não seria possível ajudar alguém, prendendo -nos a fraquezas de qualquer espécie. Os conselhos de Aniceto acalmava m-nos a alma surpreendida e inquieta, e eu tudo fazia, no íntimo, para ajustar -me aos alvitres do bondoso orientador, mesmo porque asseverava ele que diversos companheiros adiavam nobres realizações, em virtude das manifestações de injustificável receio. " André Luiz," Aquela re sidência de aspecto tão humilde, que alcançávamos, agora, proporcionava -me cariciosa impressão de conforto. Estava lindamente iluminada por clarões espirituais, que recordavam precisamente nossa cidade tão distante. Fundamente surpreendido, reparei que o n osso orientador se detivera. Notando a nossa admiração, Aniceto indicou a casa pobre, e falou: – Teremos aqui o nosso refúgio. É uma oficina que representa “Nosso Lar”. Profundo assombro empolgou -me o íntimo, mas não tive ensejo para indagações. Precisava seguir o instrutor, que tomara a direção da casa pequenina. Aproximamo -nos do jardim que rodeava a construção muito simples e, estupefato, observei que numerosos companheiros espirituais assomavam à janela, saudando -nos alegremente. Que significava tudo aq uilo? De outras vezes, visitara minha cidade e meu antigo lar, mas nunca vira tal coisa. Aniceto compreendeu -me a perplexidade e explicou: – Os irmãos que nos saúdam são trabalhadores espirituais que se abrigam nesta tenda de amor. Um cavalheiro muito simp ático e acolhedor abriu -nos a porta. Este pormenor foi outra nota imprevista. Tal não sucedia quando voltava à minha velha casa terrena. As portas cerradas não me ofereciam obstáculos. Ali, porém, vigorava um sistema vibratório de vigilância que eu não con hecia, até então. Nosso instrutor envolveu o anfitrião num abraço amistoso, apresentando -nos em seguida. – Aqui, meu caro Isidoro – disse a indicar -nos, carinhoso –, são nossos amigos Vicente e André, novos cooperadores de serviço, em “Nosso Lar”. – Muito bem! Muito bem! – exclamou Isidoro, abraçando -nos – nossas atividades precisam de trabalhadores operosos. Entrem! E acrescentou, hospitaleiro: – A casa pertence a todos os cooperadores fiéis do serviço cristão. Era a primeira vez que eu via uma entidade es piritual com tão segura chefia de uma casa terrestre. Penetramos o ambiente modesto. Altamente surpreendido, reparei o interior. A paisagem material mostrava alguns móveis singelos, velhos quadros a óleo nas paredes alvas, velha máquina de costura moviment ada por uma jovem aparentando dezesseis anos, um rapazote de doze anos presumíveis, atento a cadernetas de exercício escolar, três crianças de nove, sete e cinco anos, aproximadamente, e, como figura central do grupo doméstico, uma senhora de quarenta anos , mais ou menos, tricoteando uma blusa. Notei, porém, que da fronte, do tórax, do olhar e das mãos dessa senhora irradiava -se luz incessante que me não permitia sofrear minhas expressões admirativas. Aniceto designou -a, respeitoso, e falou: – Temos, aqui, a nossa irmã Isabel. Para os olhos humanos ela é a viúva de Isidoro, mas para nós é uma servidora leal nas atividades da fé. " André Luiz," Reparei que Dona Isabel parecia, de algum modo, registrar a nossa presença, acusando certa surpresa no olhar, mas Aniceto adiantou -se, esclarecendo: – Nossa amiga é senhora de grande vidência psíquica, mas os benfeitores que nos orientam os esforços recomendam não se lhe permita a visão total do que se passa em torno de suas faculdades mediúnicas. O conhecimento exato da paisagem espi ritual, em que vive, talvez lhe prejudicasse a tranq uilidade. Isabel, portanto, apenas pode ver, mais ou menos, a vigésima parte dos serviços espirituais em que colabora, de modo direto... A essa altura, Isidoro nos indicou pequena sala ao lado, e falou a Aniceto em particular: – Desculpe m-me se não lhes posso acompanhar no repouso necessário. Descansem, contudo, à vontade. Tenho serviços urgentes na recepção de outros amigos. Nosso mentor agradeceu, comovidamente, e, acompanhando -o, alcançamos modesto salã o pobremente mobiliado, mas quase repleto de entidades evolvidas em conversação edificante. Confortadoras luzes brilhavam em todos os recantos. Havia ali um velho relógio, tosca mesa de grandes proporções, uma dúzia de cadeiras e alguns bancos rústicos. A claridade espiritual reinante, todavia, era de maravilhoso efeito. Muita gente esclarecida e generosa do plano invisível aos humanos aí se reunia. Aniceto cumprimentou os grupos que lhe eram mais íntimos, de modo especial, e apresentou -nos com a bondade de sempre. Sentindo -nos a admiração, esclareceu, quando nos vimos mais a sós num canto do salão: – Estamos numa oficina de “Nosso Lar”. Isidoro e Isabel edificara m-na, num ato de heroísmo e fé, tendo saído de nossa cidade para essa tarefa, vai para mais de q uarenta anos. Graças a Deus, ambos têm vencido, galhardamente, árduas provas, e mantêm seus compromissos corajosamente, em serviço na Crosta. Há três anos, voltou ele para nossa esfera, e contudo, graças ao altruísmo da esposa e aos vínculos de amor espiri tual que conservam acima de todas as expressões físicas, continuam estreitamente unidos, como no primeiro dia do reencontro na existência material. Dada esta circunstância invulgar, as autoridades de “Nosso Lar” concederam -lhe permissão para continuar nest a casa como esposo amigo, pai devotado, sentinela vigilante e trabalhador fiel. E, observando talvez a nossa maior surpresa, Aniceto acrescentou: – Sim, amigos, o acaso não define responsabilidades nem atende a construção séria. A edificação espiritual ped e esforço e dedicação. Assim como os navios do mundo necessitam de âncoras firmes para atenderem eficientemente à sua tarefa nos portos, também nós precisamos de irmãos corajosos e abnegados que façam o papel de âncoras entre as criaturas encarnadas, a fim de que, por elas, possam os grandes benfeitores da Espiritualidade Superior se fazerem sentir entre os homens ainda animalizados, ignorantes e infelizes. " André Luiz," Culto doméstico Nas primeiras horas da noite, Dona Isabel abandonou a agulha e convidou os filh inhos para o culto doméstico. Notando o interesse que me despertavam as crianças, Aniceto explicou: – As meninas são entidades amigas de “Nosso Lar”, que vieram para serviço espiritual e resgate necessário, na Terra. O mesmo, porém, não acontece ao pequeno , que procede de região inferior. De fato, eu identificava perfeitamente a situação, O rapazola não se revestia de substância luminosa e atendia ao convite materno, não como quem se alegra, mas como quem obedece. Com tamanha naturalidade se sentaram todos em torno da mesa, que compreendi a antig uidade daquele abençoado costume familiar. A filha mais velha, que atendia por Joaninha, trazia cadernos de anotações e recortes de jornais. A viúva sentou -se à cabeceira e, após meditar breves instantes, recomendou à pequena Neli, de nove anos, fizesse a oração inicial do culto, pedindo a Jesus o esclarecimento espiritual. Todos os trabalhadores invisíveis sentara m-se, respeitosos. Isidoro e alguns companheiros mais íntimos do casal permaneceram ao lado de Dona Isabe l, sendo quase todos vistos e ouvidos por ela. Tão logo começou aquele serviço espiritual da família, as luzes ambientes se tornaram muito mais intensas. Profunda sensação de paz envolvia -me o coração. A pequena Neli, em voz comovente, fez a prece: – Senho r, seja feita a vossa vontade, assim na Terra como nos Céus. Se está em vosso santo desígnio que recebamos mais luz, permiti, Senhor, tenhamos bastante compreensão no trabalho evangélico! Dai-nos o pão da alma, a água da vida eterna! Sede em nossos coraçõe s, agora e sempre. Assim seja!... Dona Isabel pediu à filha mais velha lesse uma página instrutiva e consoladora e, em seguida, algum fato interessante do noticiário comum, ao que Joaninha atendeu, lendo pequeno capitulo de um livro doutrinário sobre a irreflexão, e um episódio triste de jornal leigo. A primogênita de Isidoro, que revelava muita doçura e afabilidade, parecia impressionada. Tratava -se de uma jovem de bairro distante, vitima de suicídio doloroso. O repórter gravara a cena " André Luiz," com característicos muito fortes. A leitora estava trêmula, sensibilizada. Assim que Joaninha terminou, Dona Isabel abriu o Novo Testamento, como se estivesse procedendo ao acaso, mas, em verdade, eu via que Isidoro, do nosso plano, intervinha na operação, ajudando a focaliza r o assunto da noite. A seguir, fixou o olhar na página pequenina e falou: – A mensagem -versículo de hoje, meus filhos, está no capítulo do Evangelho de São Mateus. E lendo o versículo , fê -lo em voz alta: – “Outra parábola lhes propôs, dizendo: – O R eino dos Céus é semelhante ao grão de mostarda que o homem tomou e semeou no seu campo”. Observei, então, um fenômeno curioso. Um amigo espiritual, que reconheci de nobilíssima condição, pelas vestes resplandecentes, colocou a destra sobre a fronte da gene rosa viúva. Antes que lhe perguntasse, Aniceto explicou em voz quase imperceptível: – Aquele é o nosso irmão Fábio Aleto, que vai dar a interpretação espiritual do texto lido. Os que estiverem nas mesmas condições dele, poderão ouvir -lhe os pensamentos; mas, os que estiverem em zona mental inferior, receberão os valores interpretativos, como acontece entre os encarnados, isto é, teremos a luz espiritual do verbo de Fábio na tradução do verbo materializado de Isabel. Nosso mentor não poderia s er mais explícito. Em poucas palavras fornecera -me a súmula da extensa lição. Notei que a viúva de Isidoro entrara em profunda concentração por alguns momentos, como se estivesse absorvendo a luz que a rodeava. Em seguida, revelando extraordinária firmeza no olhar, iniciou o comentário: – Lemos hoje, meus filhos, uma página sobre a irreflexão e a notícia de um suicídio em tristíssimas circunstâncias. Afirma o jornal que a jovem suicida se matou por excessivo amor; entretanto, pelo que vimos aprendendo, estamos certos de que ninguém comete erros por amar verdadeiramente. Os que amam, de fato, são cultivadores da vida e nunca espalham a morte. A pobrezinha estava doente , perturbada, irrefletida. Entreg ou-se à paixão que confunde o raciocínio e rebaixa o sentimento. E nós sabemos que, da paixão ao sofrimento, ou à morte, não é longa a distância. Lembremos, todavia, essa amiga desconhecida, com um pensamento de simpatia fraternal. Que Jesus a proteja nos caminhos novos. Não estamos examinando um ato, que ao Senhor compete julgar, mas um fato, de cuja expressão devemos extrair o ensinamento justo. “A mensagem evangélica desta noite assevera, pela palavra do nosso Divino Mestre aos discípulos, que o reino do s céus é também semelhante ao grão de mostarda que o homem tomou e semeou no seu coração . Devemos ver, neste passo, meus filhos, a lição das coisas mínimas. A esfera carnal onde vivemos está repleta de irreflexões de toda sorte. Raras criaturas começam a refletir seriamente na vida e nos deveres, antes do leito da morte física. Não devemos fixar o pensamento tão só nessa jovem que se suicidou em condições tão dramáticas, ao nos referirmos aos ensinos de agora. Há homens e mulheres, " André Luiz," com maiores responsabilid ades, em todos os bairros, que evidenciam paixões nefastas e destruidoras no campo dos sentimentos, dos negócios, das relações sociais. As mentes desequilibradas pela irreflexão permanecem, neste mundo, quase por toda a parte. É que nos temos descuidado da s coisas pequeninas. Grande é o oceano, minúscula é a gota, mas o oceano não é senão a massa das gotas reunidas. Fala -nos o Mestre, em divino simbolismo, da semente de mostarda. Recordemos que o campo do nosso coração está cheio de ervas espinhosas, demora ndo, talvez, há muitos séculos, em terrível esterilidade. Naturalmente, não deveremos esperar colheitas milagrosas. É indispensável amanhar a terra e cuidar do plantio. A semente de mostarda, a que se refere Jesus, constitui o gesto, a palavra, o pensament o da criatura. “Há muitas pessoas que falam bastante em humildade, mas nunca revelam um gesto de obediência. Jamais realizaremos a bondade, sem começarmos a ser bons. Alguma coisa pequenina há de ser feita, antes de edificarmos as grandes coisas. O Senhor ensinou, muitas vezes, que o reino dos céus está dentro de nós. Ora, é portanto em nós mesmos que devemos desenvolver o trabalho máximo de realização divina, sem o que não passaremos de grandes irrefletidos. A floresta também começou de sementes minúsculas . E nós, espiritualmente falando, temos vivido em densa floresta de males, criados por nós mesmos, em razão da invigilância na escolha de sementes espirituais. A palestra de uma hora, o pensamento de um dia, o gesto de um momento, podem representar muito e m nossas vidas. Tenhamos cuidado com as coisas pequeninas e selecionemos os grãos de mostarda do reino dos céus. Lembremos que Jesus nada ensinou em vão. Toda vez que ‘pegarmos’ desses grãos, consoante a Palavra Divina, semeando -os no campo íntimo, receber emos do Senhor todo o auxilio necessário. Conceder -nos-á a chuva das bênçãos, o sol do amor eterno, a vitalidade sublime da esfera superior. Nossa semeadura crescerá e, em breve tempo, atingiremos elevadas edificações. Aprendamos, meus filhos, a ciência de começar, lembrando a bondade de Jesus a cada instante. O Mestre não nos desampara, segue -nos amorosamente, inspira -nos o coração. Tenhamos, sobretudo, confiança e alegria!” Reparei que Fábio retirou a mão da fronte da viúva e observei que ela entrava a me ditar, como quem sentira o afastamento da id eia em curso. Havia grande comoção na assembl eia invisível às crianças que, por sua vez, também pareciam impressionadas. Dona Isabel voltou a contemplar maternalmente os filhos, e falou: – Procuremos, agora, conv ersar um pouco. " André Luiz," Mãe e filhos No comentário evangélico, eu recolhia observações interessantes. Tal como no caso de Ismália, quando lhe ouvíamos a sublime melodia, a interpretação de Fábio estava cheia de maravilhas espirituais que transcendiam à capa cidade receptiva de Dona Isabel. A viúva de Isidoro parecia deter tão somente uma parte. Desse modo, as crianças recebiam a lição de acordo com as possibilidades mediúnicas da palavra materna, enquanto que a nós outros se propiciava o ensinamento com marav ilhoso conteúdo de beleza. Sempre solícito, o instrutor esclareceu: – Não se admirem do fenômeno! Cada qual receberá a luz espiritual conforme a própria capacidade. Há muitos companheiros nossos, aqui reunidos, que registram o comentário de Fábio com mais dificuldade que as próprias crianças. Experimentam, ainda, grandes limitações. Havia grande respeito em todos os desencarnados presentes. Fábio Aleto sentou -se em plano superior, ao passo que Isidoro se acomodava junto da esposa, no impulso afetivo do pai que se aproxima, solícito, para a conversação carinhosa com os filhos bem -amados. Nesse instante, a pequenina Marieta, que parecia haver atingido os sete anos, aproveitando o momento de palavra livre, perguntou à mãezinha, em tom comovedor: – Mamãe, se Jes us é tão bom, porque estamos comendo só uma vez por dia, aqui em casa? Na casa de Dona Fausta, eles fazem duas refeições, almoçam e jantam. Neli me contou que no tempo de papai também fazíamos assim, mas agora... Por que será? A viúva esboçou um sorriso al go triste e falou: – Ora, Marieta, você vive muito impressionada com essa questão. Não devemos, filhinha, subordinar todos os pensamentos às necessidades do estômago. Há quanto tempo estamos tomando nossa refeição diária e gozando boa saúde? Quanto benefíc io estaremos colhendo com esta frugalidade de alimentação? Joaninha interveio, acrescentando: – Mamãe tem toda a razão. Tenho visto muita gente adoecer por abuso da mesa. " André Luiz," – Além disso – acentuou Dona Isabel, confortada –, vocês devem estar certos de que Je sus abençoa o pão e a água de todas as criaturas que sabem agradecer as dádivas divinas. É verdade que Isidoro partiu antes de nós, mas nunca nos faltou o necessário. Temos nossa casinha, nossa união espiritual, nossos bons amigos. Convença m-se de que o pa pai está trabalhando ainda por nós. Nessa altura da palestra, dada a nossa comoção, Isidoro enxugou os olhos úmidos. Noemi, a caçula pequenina, falou em voz infantil: – É mesmo, é verdade! Eu vi papai ajudando a segurar o bolo que Dona Cora nos trouxe domi ngo. – Também vi, Noemi – disse Dona Isabel, de olhos vivamente brilhantes –, papai continua auxiliando -nos. E voltando -se para todos, acentuou: – Quando sabemos amar e esperar, meus filhos, não nos separamos dos entes queridos que morrem para a vida físic a. Tenhamos certeza na proteção de Jesus!... Marieta, parecendo agora absolutamente tranq uila, assentiu: – Quando a senhora fala, mamãe, eu sinto que tudo é verdade! Como Jesus é bom! E se nós não tivéssemos a senhora? Tenho visto os pequenos mendigos aban donados. Talvez não comam coisa alguma, talvez não tenham amigos como os nossos! Ah! Como devemos ser agradecidos ao Céu!... A viúva, que se confortava visivelmente, ouvindo aquelas palavras, exclamou com profunda emoção: – Muito bem, minha filha! Nunca de veremos reclamar e sim louvar sempre. E possivelmente não saberia você compreender a situação, se estivéssemos em mesas lautas. Observei, porém, que o menino não compartilhava aquele dilúvio de bênçãos. Entre Dona Isabel e as quatro filhinhas havia permuta constante de vibrações luminosas, como se estivessem identificadas no mesmo ideal e unidas numa só posição; mas o rapazote permanecia espiritualmente distante, fechado num círculo de sombras. De quando em quando, sorria irônico, insensível à significação do momento. Valendo -se da pausa mais longa, ele perguntou à genitora, menos respeitosamente: – Mamãe, que entende a senhora por pobreza? Dona Isabel respondeu, muito serena: – Creio, meu filho, que a pobreza é uma das melhores oportunidades de elevação, ao nosso alcance. Estou convencida de que os homens afortunados têm uma grande tarefa a cumprir, na Terra, mas admito que os pobres, além da missão que lhes cabe no mundo, são mais livres e mais felizes. Na pobreza, é mais fácil encontrar a amizade sincera, a visão da assistência de Deus, os tesouros da natureza, a riqueza das alegrias simples e puras. É claro que não me refiro aos ociosos e ingratos dos caminhos terrenos. Refiro -me aos pobres que trabalham e guardam a fé. O homem de grandes possibilidades fi nanceiras muito dificilmente saberá discernir entre a afeição e o interesse mesquinho; crente de que tudo pode, nem sempre consegue entender a divina proteção; " André Luiz," pelo conforto viciado a que se entrega, as mais das vezes se afasta das bênçãos da Natureza; e em vista de muito satisfazer aos próprios capri chos, restringe a capacidade de alegrar -se e confiar no mundo. Apesar da beleza profunda daquela opinião, o rapazola permaneceu impassível, respondendo algo contrariado: – Infelizmente, não posso concordar com a senhora. Até os garotos do jardim de infânci a pensam de modo contrário. Dona Isabel mudou a expressão fisionômica, assumiu a atitude de quem instrui com a noção de responsabilidade, e acentuou: – Não estamos aqui num jardim de infância, meu filho. Estamos no jardim do lar, competindo -nos saber que a s flores são sempre belas, mas que a vida não pode prosseguir sem a bênção dos frutos. Por onde andarmos no mundo, receberemos muitos alvitres da mentira venenosa. É preciso vigiar o coração, Joãozinho, valorizando as bênçãos que Jesus nos envia. O rapazin ho, entretanto, demonstrando enorme rebeldia íntima, tornou: – A senhora não considera razoável alugar este salão a fim de termos algum dinheiro a mais? Estive conversando, ontem, com o “seu” Maciel, quando vim da escola. Ele nos pagaria bem, para ter aqui um depósito de móveis. Dona Isabel, de ânimo decidido, respondeu com energia, sem irritação: – Você deve saber, meu filho, que enquanto respeitarmos a memória de seu pai, este salão será consagrado às nossas atividades evangélicas. Já lhes contei a histór ia do nosso culto doméstico e não desejo que vocês sejam cegos às bênçãos do Cristo. Mais tarde, Joãozinho, quando você entrar diretamente na luta material, se for agradável ao seu temperamento, construa casas para alugar; mas agora, meu filho, é indispensável que você considere este recanto como algo de sagrado para sua mamãe. – E se eu insistir? – perguntou, mal humorado, o pequeno orgulhoso. A viúva, muito cal ma, esclareceu firme: – Se você insistir, será punido, porque eu não sou mãe para criar ilusões perigosas ao coração dos filhinhos que Deus me confiou. Se muito amo a vocês, precisarei incliná -los ao caminho reto. O pequeno quis retrucar, mas a luz emitida pelo tórax de Dona Isabel, ao que me pareceu, confundiu -lhe o espírito rebelde e vi -o calar -se, a contragosto, amuado e enraivecido. Admirei, então, profundamente, aquela bondosa mulher, que se dirigia à filha mais velha como amiga, às filhinhas mais nova s como mãe, e ao filho orgulhoso como instrutora sensata e ponderada. Aniceto, que também se mostrava satisfeito, disse -nos em tom significativo: – O Evangelho dá equilíbrio ao coração. A pequena Neli, amedrontada, pediu, humilde: – Mamãe, não deixe Joãozi nho alugar a sala! A viúva sorriu, acariciou o rostinho da filha e asseverou: – Joãozinho não fará isso, saberá compreender a mamãe. Não falemos " André Luiz," mais neste assunto, Neli. E fixando o relógio, dirigiu -se à primogênita: – Joaninha, minha filha, ore agradecen do, em nosso nome. Nosso horário está findo. A jovem, com expressão nobre e carinhosa, agradeceu ao Senhor, tocando -nos os corações. " André Luiz," No santuário doméstico Terminado o culto familiar, um dos companheiros também rendeu graças. – Esperemos que esses c eleiros de sentimentos se multipliquem – disse Aniceto, sensibilizado. – O mundo pode fabricar novas indústrias, novos arranha -céus, erguer estátuas e cidades, mas, sem a bênção do lar, nunca haverá felicidade verdadeira. – Bem -aventurados os que cultivam a paz doméstica – exclamou uma senhora simpática, que estivera presente ao nosso lado, durante a reunião. Dois cooperadores de “Nosso Lar” servira m-nos alimentação leve e simples, que não me cabe especificar aqui, por falta de termos analógicos. – Em ofici nas como esta – explicou o instrutor amigo – é possível preservar a pureza de nossas substâncias alimentícias, Os elementos mais baixos não encontram, neste santuário, o campo imprescindível à proliferação. Temos bastante luz para neutralizar qualquer mani festação da treva. E, enquanto a família humana de Isidoro fazia frugal refeição de chá com torradas, numa saleta próxima, fazíamos nós ligeiro repasto, entremeado de palestra elevada e proveitosa. O ambiente continuou animado, em teor de franca alegria. Depois das vinte e três horas, a viúva recolheu -se com os filhos, em modesto aposento. Intraduzível a nossa sensação de paz. Aniceto, Vicente e eu, em companhia doutros amigos, fomos ao pequeno jardinzinho que rodeava a habitação. As flores veludosas recend iam. A claridade espiritual ambiente, como que espancava as sombras da noite. Respirando as brisas cariciosas que sopravam da Guanabara, reparei, pela primeira vez, no delicado fenômeno, que não havia observado até então. Uma pequena carinhosa, enquanto a mãezinha palestrava com um amigo, despreocupadamente, colheu um cravo perfumoso, num grito de alegria. Vi a menina colher a flor, retirá -la da haste, ao mesmo tempo em que a parte material do cravo emurchecia, quase de súbito. A senhora repreendeu -a, com c alor: – Que é isso, Regina? Não temos o direito de perturbar a ordem das coisas. Não repitas, minha filha! Desgostaste a mamãe! Aniceto, sorrindo bondoso, explicou discretamente: " André Luiz," – Esta é a nossa Irmã Emilia, servidora em “Nosso Lar”, que vem ao encontro d o esposo ainda encarnado. – E ele virá até aqui? – interrogou Vicente, curioso. – Virá pelas portas do sono físico – acrescentou nosso orientador, sorridente. – Estas ocorrências, no círculo da Crosta, dão -se aos milhares, todas as noites. Com a maioria de irmãos encarnados, o sono apenas reflete as perturbações fisiológicas ou sentimentais a que se entregam; entretanto, existe grande número de pessoas que, com mais ou menos precisão, estão aptas a desenvolver este intercâmbio espiritual. Estava surpreendid o. Aquele trabalho interessante, a que nos trazia Aniceto, com tão vasto campo de serviços gerais, fazia -me intensamente feliz. Em cada canto pressentia atividades novas. Embora as luzes que nos rodeavam, notei que os céus prometiam aguaceiros próximos. As brisas leves transformava m-se repentinamente, em ventania forte. Não obstante, as sensações de sossego eram agradabilíssimas. – O vento, na Crosta, é sempre uma bênção celeste – exclamou Aniceto, sentencioso. – Podemos avaliar -lhe o caráter divino, em vir tude da nossa condição atual. A pressão atmosférica sobre os Espíritos encarnados é, aproximadamente, de quinze mil quilos. – Todavia, é interessante notar – aduziu Vicente – que não sentimos tamanho peso sobre os ombros. – É a diferença dos veículos de ma nifestação – esclareceu Aniceto, atencioso. – Nossos corpos e os de nossos companheiros encarnados apresentam diversidade essencial. Imaginemos o círculo da Crosta como um oceano de oxigênio. As criaturas terrestres são elementos pesados que se movimentam no fundo, enquanto nós somos as gotas de óleo, que podem voltar à tona, sem maiores dificuldades, pela qualidade do material de que se constituem. A essa altura do esclarecimento, notei que formas sombrias, algumas monstruosas, se arrastavam na rua, à proc ura de abrigo conveniente. Reparei, com espanto, que muitas tomavam a nossa direção, para, depois de alguns passos, recuarem amedrontadas. Provocavam assombro. Muitas, pareciam verdadeiros animais perambulando na via pública. Confesso que insopitável recei o me invadira o coração. Calmo, como sempre, Aniceto nos tranq uilizou: – Não temam – disse. Sempre que ameaça tempestade, os seres vagabundos da sombra se movimentam procurando asilo. São os ignorantes que vagueiam nas ruas, escravizados às sensações mais fortes dos sentidos físicos. Encontra m-se ainda colados às expressões mais baixas da experiência terrestre e os aguaceiros os incomodam tanto quanto ao homem comum, distante do lar. Buscam, de preferência, as casas de diversão noturna, onde a ociosidade en contra válvula nas dissipações. Quando isto não se lhes torna acessível, penetram as residências abertas, considerando que, para eles, a matéria do plano ainda apresenta a mesma densidade característica. E, demonstrando interesse em valorizar a lição do mi nuto, acrescentou: " André Luiz," – Observem como se inclinam para cá, fugindo, em seguida, espantados e inquietos. Estamos colhendo mais um ensinamento sobre os efeitos da prece. Nunca poderemos enumerar todos os benefícios da oração. Toda vez que se ora num lar, prepar a-se a melhoria do ambiente doméstico. Cada prece do coração constitui emissão eletromagnética de relativo poder. Por isso mesmo, o culto familiar do Evangelho não é tão só um curso de iluminação interior, mas também processo avançado de defesa exterior, p elas claridades espirituais que acende em torno. O homem que ora traz consigo inalienável couraça. O lar que cultiva a prece transforma -se em fortaleza, compreenderam? As entidades da sombra experimentam choques de vulto, em contato com as vibrações lumino sas deste santuário doméstico, e é por isso que se mantêm a distância, procurando outros rumos... Daí a momentos, penetrávamos, de novo, no salão abençoado da modesta residência. Como quem estivesse atravessando um país de surpresas, outro fato me desperta va profunda admiração. Isidoro e Isabel vieram a nós, de braços entrelaçados, irradiando ventura. Aquela viúva pobre do bairro humilde vestia -se agora lindamente, não obstante a adorável singeleza de sua presença. Sorria contente, ao lado do esposo, via -nos a todos, cumprimentava -nos, amável. – Meus amigos – disse ela, serena –, meu marido e eu temos uma excursão instrutiva para esta noite. Deixo -lhes as nossas crianças por algumas horas e, desde já, lhes agradeço o cuidado e o carinho. – Vá, minha filha! – respondeu uma senhora idosa – aproveite o repouso corporal. Deixe os meninos conosco. Vá tranq uila! O casal afastou -se com a expressão dum sublime noivado. Nosso orientador inclinou -se para nós e falou: – Observam vocês como a felicidade divina se manifes ta no sono dos justos? Poucas almas encarnadas conheço com a ventura desta mulher admirável, que tem sabido aprender a ciência do sacrifício individual. " André Luiz," Atividade plena No salão acolhedor de Dona Isabel, permanecíamos em plena atividade. Lá fora, co meçara o aguaceiro forte, mas tínhamos a nítida impressão de grande distância da chuva torrencial. Logo às primeiras horas da madrugada, o movimento intensificou -se. Muita gente ia e vinha. – Numerosos irmãos – explicou o orientador – encontra m-se neste pouso de trabalho espiritual, na esfera a que os encarnados chamariam sonho. Não é fácil transmitir mensagens de teor instrutivo, nessa tarefa, utilizando lugares comuns, contaminados de matéria mental menos digna. Nas oficinas edificantes, porém, onde conse guimos acumular maiores quantidades de forças positivas da espiritualidade superior, é possível prestar grandes benefícios aos que se encontram encarnados no planeta. Acentuei minhas observações, verificando que muitas das pessoas recém -chegadas pareciam c onvalescentes, titubeantes... Algumas se mantinham de pé, sob o amparo de braços carinhosos. Eram os amigos encarnados a se valerem do desprendimento parcial, pelo sono físico, que se reuniam a nós, aproveitando o auxílio de entidades generosas e dedicadas . Reconhecia, entretanto, que a maior parte não entendia, com precisão, o que se lhes desejava dizer. Muitos pareciam doentes, incompreensivos. Sorriam infantilmente, revelando boa vontade na recepção dos conselhos, mas grande incapacidade de retenção. Eu estudava os quadros ambientes, com justa estranheza. Sempre cuidadoso, Aniceto veio ao encontro de nossa perplexidade. – Os Espíritos encarnados – disse –, tão logo se realize a consolidação dos laços físicos, ficam submetidos a imperiosas leis dominantes na Crosta. Entre eles e nós existe um espesso véu. É a muralha das vibrações. Sem a obliteração temporária da memória, não se renovaria a oportunidade. Se o nosso campo lhes fora francamente aberto, olvidariam as obrigações imediatas, estimariam o parasiti smo, prejudicando a própria evolução. Eis porque raramente estão lúcidos ao nosso lado. Na maioria dos casos, junto de nós, permanecem vacilantes, enfraquecidos... Vejam aquela jovem senhora encarnada, em conversa com a vovozinha que trabalha conosco, em “ Nosso Lar”. Assim dizendo, Aniceto indicou um grupo mais próximo. A anciã, de olhos brilhantes e gestos decididos, abraçava -se à neta, lânguida e palidíssima. " André Luiz," – Nieta – exclamava a velhinha, em tom firme –, não dês tamanha importância aos obstáculos. Esqu ece os que te perseguem, a ninguém odeies. Conserva tua paz espiritual, acima de tudo. Tua mãe não te pode valer agora, mas crê na continuidade de nossa vida. A vovó não te esquecerá. A calúnia, Nieta, é uma serpente que ameaça o coração; entretanto, se a encararmos de frente, fortes e tranq uilas, veremos, a breve tempo, que a serpente não tem vida própria. É víbora de brinquedo a se quebrar como vidro, pelo impulso de nossas mãos. E, vencido o espantalho, em lugar da serpente, teremos conosco a flor da vir tude. Não temas, querida! Não percas a sagrada oportunidade de testemunhar a compreensão de Jesus!... A jovem senhora não respondia, mas seus olhos semilúcidos estavam cheios de pranto. Demonstrava no gesto vago uma consolação divina, recostada ao seio car inhoso da devotada velhinha. – Esta irmã se lembrará de tudo, ao despertar no corpo físico? – perguntei, intrigado, ao nosso orientador. Aniceto sorriu e esclareceu: – Sendo a avó superior e ela inferior, e, examinando ainda a condição dos planos de vida e m que ambas se encontram, a jovem encarnada está sob o domínio espiritual da benfeitora. Entre ambas, portanto, há uma corrente magnética recíproca, salientando -se, porém, que a vovó amiga detém uma ascendência positiva. A neta não vê o ambiente com precis ão, nem ouve as palavras integralmente. Não esqueçamos que o desprendimento no sono físico vulgar é fragmentário e que a visão e a audição, peculiares ao encarnado, se encontram nele também restritas, O fenômeno, pois, é mais de união espiritual que de per cepções sensoriais, propriamente ditas. A jovem está recebendo consolações positivas, de Espírito a Espírito. Não se recordará, despertando nos véus materiais mais grosseiros, de todas as minúcias deste venturoso encontro que acabamos de presenciar. Acorda rá, porém, encorajada e bem disposta, sem poder identificar a causa da restauração do bom ânimo. Dirá que sonhou com a avó num lugar onde havia muita gente, sem recordar as minudências do fato, acrescentando que viu, no sonho, uma cobra ameaçadora, que log o se transformou em serpente de vidro, quebrando -se ao impulso de suas mãos, para transformar -se em perfumosa flor, da qual ainda conserva a lembrança agradável do aroma. Afirmará que soberano conforto lhe invadiu a alma e, no fundo, compreenderá a mensage m consoladora que lhe foi concedida. – Não se lembrará, contudo, das palavras ouvidas? – indagou Vicente, curioso. – Precisaria ter adquirido profunda lucidez no campo da existência física – prosseguiu Aniceto, explicando – e devo esclarecer que recordará as imagens simbólicas da víbora e da flor, porque está em relação magnética com a veneranda avozinha, recebendo -lhe a emissão de pensamentos positivos. A benfeitora não fala apenas. Está pensando fortemente também. A neta, todavia, não está ouvindo ou vend o pelo processo comum, mas está percebendo claramente a criação mental da anciã amiga e dará notícia exata dos símbolos entrevistos e arquivados na memória real e profunda. Desse modo, não terá " André Luiz," dificuldade para informar -se quanto à essência do que a bondos a avó deseja transmitir -lhe ao coração sofredor, compreendendo que a calúnia, quando fere uma consciência tranq uila não passa de serpente mentirosa, a transformar -se em flor de virtude nova, quando enfrentada com o valor duma coragem serena e cristã. A liç ão fora profundamente significativa para mim. Começava a adquirir amplas noções do intercâmbio entre as duas esferas. Pensei no longo esforço dos que indagam o mundo dos sonhos. Quanta riqueza psíquica, suscetível de conquista, se os pesquisadores consegui ssem deslocar o centro de estudo, das ocorrências fisiológicas para o campo das verdades espirituais! Lembrei a psicanálise, a tese freudiana, as manifestações instintivas, inferiores. Percebendo -me as elucubrações, o devotado mentor dirigiu -me a palavra d e maneira especial: – Freud – asseverou Aniceto – foi um grande missionário da Ciência; no entanto, manteve -se, como qualquer Espírito encarnado, sob certas limitações. Fez muito, mas não tudo, na esfera da indagação psíquica. Pela pausa do nosso instrutor , percebi que ele não desejava entrar em minucioso exame da teoria famosa. Lembrando, porém, a extraordinária importância atribuída pelo grande cientista às tendências inferiores, indaguei, um tanto tímido: – Haverá, porém, centros de reunião para os Espír itos desequilibrados no mal, como acontece, aqui, aos amigos interessados no bem? O generoso mentor sorriu, benévolo, e falou: – Não haja dúvidas quanto a isto. Através das correntes magnéticas suscetíveis de movimentação, quando se efetua o sono dos encar nados, são mantidas obsessões inferiores, perseguições permanentes, explorações psíquicas de baixa classe, vampirismo destruidor, tentações diversas. Ainda são poucos, relativamente, os irmãos encarnados que sabem dormir para o bem... E, fazendo um gesto p or demais expressivo, concluiu: – Livre -nos o Senhor de cair novamente... " André Luiz," Trabalho incessante Ao alvorecer, observei que Aniceto recebia numerosos amigos, com os quais se entendeu em particular. Informou -nos o estimado orientador, por espírito de delicadeza, que trazia consigo incumbências várias, de acordo com as instruções de Telésforo, das quais era forçado a tratar em caráter privado, não nos ocultando, todavia, o objetivo essencial, que era, ao que disse, o combate ativo a uma grande cooperativa de desencarnados ignorantes, congregados para o mal. Enquanto ele se mantinha em conversação íntima, ouvíamos, por nossa vez, outros amigos da faina espiritual. O dia raiava, agora, com soberano esplendor. Tínhamos a impressão de que a chuva da noite varr era as sombras do firmamento. Pelo número de trabalhadores espirituais que pernoitaram na casinha humilde, reconheci a importância daquele núcleo de serviço, tão apagado aos olhos do mundo. Uma senhora, que se aproximara de nós, exclamava, comovida: – Que o Senhor recompense a nossa irmã Isabel, concedendo -lhe forças para resistir às tentações do caminho. Por haver descansado neste pouso de amor, pude encontrar minha pobre filha, desviando -a do suicídio cruel. Graças à Providência Divina! Incapaz de sofrear o desejo de aprender, perguntei, curioso: – Mas como a encontrou, minha irmã? – Em sonho – respondeu a velhinha bondosa. – Minha Dalva ficou viúva há três anos e, faz onze meses, deixei -a só, por haver também desencarnado. A pobrezinha não tem resistido a o sofrimento quanto devera e deixou -se empolgar por entidades maléficas, que lhe tramam a ruína. Embalde me aproximo dela, durante o dia, mas, com a mente engolfada em negócios e complicações materiais, não me pôde sentir a influenciação. Precisava encontr ar-me com ela à noite e isso não era fácil, porque não tenho bastante elevação espiritual para operar sozinha e o grupo em que sirvo não poderia demorar na Crosta uma noite inteira por minha causa. Foi então que uma amiga me trouxe a este posto de serviço de “Nosso Lar”. Aqui descansei e pude agir com os grupos de tarefa permanente, ajudada por infatigáveis operários do bem. " André Luiz," – E conseguiu seus fins com facilidade? – indagou Vicente, interessado. – Graças a Jesus! – respondeu a senhora, evidenciando enorme satisfação – agora sei que minha filha recebeu meus alvitres carinhosos de mãe e estou certa de que me atenderá as rogativas. – Escute, minha amiga – interroguei –, há muitos postos de “Nosso Lar”, como este? – Ao que me informaram, há regular número deles, não somente aqui, mas também noutras cidades do país, além de numerosas oficinas que representam outras colônias espirituais, entre as criaturas corporificadas na Terra. Nesses núcleos, há sempre possibilidades avançadas, imprescindíveis ao nosso abasteci mento para a luta. Nesse instante, dois camaradas que nos haviam dirigido a palavra durante a noite, despertando -nos sincera simpatia, apresentara m-nos saudações. – Mas, como? – perguntei – retira m-se tão cedo? – Vamos ao trabalho – respondeu -me um deles –; hoje, à noite, realizar -se-á o estudo evangélico e devemos auxiliar os irmãos ignorantes e sofredores que estejam em condições de vir até aqui. – Há também semelhante tarefa? – indaguei, espantado. – Como não, meu caro? O próprio Jesus já dizia, há muito s séculos, que a seara é grande. Há trabalho para todos. E cumpre -nos reconhecer que esta oficina de assistência cristã funciona, há quase vinte anos, de maneira incessante. – Vocês, no entanto – interroguei –, permanecem aqui desde os primórdios da fundaç ão? O interlocutor esclareceu prontamente: – Não. Muitos, como nós, fazem aqui estágios de serviço. Somente alguns cooperadores de Isidoro e Isabel aqui estacionam desde o início da instituição. Nós outros, contudo, não nos demoramos em trabalho por mais d e dois anos consecutivos. Um posto, como este, é sempre uma escola ativa e santa, e os que se encontrem no clima da boa vontade não devem perder ensejo de aprender. – Desculpe m-me tantas interrogativas – tornei –, mas estimaria saber se vocês são os únicos com as atribuições de recrutar os que ignoram e sofrem, para a instrução e o consolo. – Não. Hildegardo e eu somos auxiliares apenas de alguns quarteirões no centro urbano. Nesse ramo de socorro, os colaboradores são numerosos. A essa altura, um dos irmão s, que me parecia integrar o corpo de orientação da casa, aproximou -se e falou ao nosso interlocutor, de maneira especial: – Vieira, recomendo a você e ao Hildegardo a melhor observância do nosso critério doutrinário. Será inútil trazerem até aqui entidade s vagabundas ou de má fé, obedecendo aos alvitres da simpatia pessoal. Não podemos perder tempo com Espíritos escarninhos e ociosos, nem com aqueles que se aproximam de nossa tenda alimentando certas intenções de natureza inferior. " André Luiz," Não faltarão providência s de Jesus para essa gente, em outra parte. Lembre m-se disso. Não é falta de caridade, é compreensão do dever. Temos um programa de trabalho muito sério, no capitulo da evangelização e do socorro, não podemos abusar da concessão de nossos maiores da Espiri tualidade Superior. Quem aceita um compromisso não vive sem contas. Por muito que vocês amem a alguma entidade ociosa ou irônica, não facilitem os abusos dela. Ajude m-na de maneira individual, quando disponham de tempo e possibilidades para isso. Não arras tem o grupo a dificuldades. Não se esqueçam de que existem determinados núcleos de tarefa para os surdos e cegos voluntários. Vieira e o colega fizera m-se palidíssimos, não respondendo palavra. Quando o orientador se afastou, sereno e ativo, Vieira explico u, desapontado: – Recebemos uma admoestação justa. E porque visse nosso desejo de aprender, prosseguiu, atencioso: – Infelizmente, Hildegardo e eu temos alguns parentes desencarnados em dolorosas condições espirituais. Na reunião passada, trouxemos meu tio Hilário e o primo Carlos, embora soubéssemos que ambos não se encontram preparados para reflexões sérias, pelo desrespeito às leis divinas em que se movimentam, nos ambientes inferiores. Manifestara m-se ambos, porém, tão desejosos de renovação, que ouvimo s, acima de tudo, a simpatia pessoal, esquecendo a necessidade de preparação conveniente. Vieram conosco, sentara m-se entre os ouvintes numerosos. Mas, em meio dos estudos evangélicos, tentaram assaltar as faculdades mediúnicas da irmã Isabel, para transmi ssão de uma mensagem de teor menos edificante. Sentindo -nos a vigilância e surpreendidos pelos cooperadores desta santificada oficina, revoltara m-se, estabelecendo grande distúrbio. Não fossem as barreiras magnéticas do serviço de guarda, teriam causado ma les muito sérios. Assim, a reunião foi menos frutuosa, pela grande perda de tempo. Ora, naturalmente, fomos responsabilizados... – Meu Deus! – exclamou Vicente, admirado – quanta lição nova! – Ah! Sim, meu amigo – tornou Vieira, resignado –, aqui não devem os abusar tanto do amor, como no circulo carnal! Ninguém está impedido de ajudar, querer bem, interceder; todos podemos auxiliar os que amamos, com os recursos que nos sejam próprios, mas a palavra “dever” tem aqui uma significação positiva para quem desej e caminhar sinceramente para Deus. " André Luiz," Rumo ao campo Quase todos os servidores espirituais pusera m-se a caminho de tarefas variadas. Somente alguns amigos permaneceriam na residência de Dona Isabel, em missão de auxílio e vigilância. Notei que Aniceto c ontinuava distribuindo instruções diversas, dirigindo -se, em caráter confidencial, a determinados companheiros, a respeito da missão que lhe confiara Telésforo. Antes do meio -dia, porém, convidou -nos a acompanhá -lo. – Na oficina – disse -nos, bondoso – enco ntramos revigoramento imprescindível ao trabalho. Recebemos reforços de energia, alimentamo -nos convenientemente para prosseguir no esforço, mas convenhamos que, para muitos de nós, a noite representou uma série de atividades longas e exaustivas. Necessita mos de algum descanso. Voltaremos ao crepúsculo. Aonde iríamos? Ignorava. Recordei que, de fato, se alguns haviam repousado no santuário doméstico, durante a noite, a maioria havia trabalhado intensamente, e conclui que, se muitos pela manhã haviam tomado rumo às obrigações, outros teriam buscado o repouso indispensável. – Aonde vão? – perguntou um companheiro da vigilância, que se fizera nosso amigo. Antes que respondêssemos, Aniceto esclareceu: – Vamos ao campo. E, dirigindo -se especialmente a Vicente e a mim, considerou: – Utilizemos a volitação, mesmo porque não temos objetivos imediatos no centro urbano. Notei que movimentava agora minhas faculdades volitantes com facilidade crescente. A excursão educativa, com escala pelo Posto de Socorro de Campo da Paz, fizera -me grande bem. Melhorara em adestramento, sentia -me fortalecido ante as vibrações de ordem inferior, mobilizava os recursos próprios sem dificuldade. Reparei, igualmente, que minhas possibilidades visuais cresciam sensivelmente. Volitando, não o bservara, até então, o que agora verificava, extremamente surpreendido. Dantes, via somente os homens, os animais, veículos e edifícios chumbados ao solo. Agora, a visão dilatava -se. Reconhecia, de longe, o peso considerável do ar que se agarrava à superfí cie. Tive a impressão de que nadávamos em alta zona do mar de " André Luiz," oxigênio, vendo em baixo, em águas turvas, enorme quantidade de irmãos nossos a se arrastarem pesadamente, metidos em escafandros muito densos, no fundo lodoso do oceano. – Estão vendo aquelas m anchas escuras na via pública? – indagava nosso orientador, percebendo -nos a estranheza e o desejo de aprender cada vez mais. Como não soubéssemos definir com exatidão, prosseguia explicando: – São nuvens de bactérias variadas. Flutuam quase sempre também, em grupos compactos, obedecendo ao princípio das afinidades. Reparem aqueles arabescos de sombra... E indicava -nos certos edifícios e certas regiões citadinas. – Observem os grandes núcleos pardacentos ou completamente obscuros!... São zonas de matéria me ntal inferior, matéria que é expelida incessantemente por certa classe de pessoas. Se demorarmos em nossas investigações, veremos igualmente os monstros que se arrastam nos passos das criaturas, atraídos por elas mesmas... Imprimindo grave inflexão às pala vras, considerou: – Tanto assalta o homem a nuvem de bactérias destruidoras da vida física, quanto às formas caprichosas das sombras que ameaçam o equilíbrio mental. Como veem , o “orai e vigiai” do Evangelho tem profunda importância em qualquer situação e a qualquer tempo. Somente os homens de mentalidade positiva, na esfera da espiritualidade superior, conseguem sobrepor -se às influências múltiplas de natureza menos digna. Interessado, contudo, em maior esclarecimento, perguntei: – Mas a matéria mental emi tida pelo homem inferior tem vida própria como o núcleo de corpúsculos microscópicos de que se originam as enfermidades corporais? O mentor generoso sorriu singularmente e acentuou: – Como não? Vocês, presentemente, não desconhecem que o homem terreno vive num aparelho psicofísico. Não podemos considerar somente, no capítulo das moléstias, a situação fisiológica propriamente dita, mas também o quadro psíquico da personalidade encarnada. Ora, se temos a nuvem de bactérias produzidas pelo corpo doente, temos a nuvem de larvas mentais produzidas pela mente enferma, em identidade de circunstâncias. Desse modo, na esfera das criaturas desprevenidas de recursos espirituais, tanto adoecem corpos, como almas. No futuro, por esse mesmo motivo, a medicina da alma abso rverá a medicina do corpo. Poderemos, na atualidade da Terra, fornecer tratamento ao organismo de carne. Semelhante tarefa dignifica a missão do consolo, da instrução e do alívio. Mas, no que concerne à cura real, somos forçados a reconhecer que esta perte nce exclusivamente ao homem -Espírito. – Deus meu! – exclamou Vicente, espantado – a que perigos está submetido o homem comum! – Por isso – tornou Aniceto, cuidadoso –, a existência terrestre é uma gloriosa oportunidade para os que se interessam pelo conhec imento e elevação de si mesmos. E, por esta mesma razão, ensinamos a necessidade da fé religiosa " André Luiz," entre as criaturas humanas. Desenvolvendo essa campanha, não pretendemos intensificar as paixões nefastas do sectarismo, mas criar um estado positivo de confia nça, otimismo e ânimo sadio na mente de cada companheiro encarnado. Até agora, apenas a fé pode proporcionar essa realização. As ciências e as filosofias preparam o campo; entretanto, a fé que vence a morte, é a semente vital. Possuindo -lhe o valor eterno, encontra o homem bastante dinamismo espiritual para combater até a vitória plena em si mesmo. Compreendendo que precisaria completar o esclarecimento, exclamou, depois de pausa mais longa: – Todos precisamos saber emitir e saber receber. Para alcançarem a posição de equilíbrio, nesse mister, empenha m-se os homens encarnados e nós outros, em luta incessante. E já que conhecemos alguma coisa da eternidade, é preciso não esquecer que toda queda prejudica a realização, e todo esforço nobre ajuda sempre. As exp licações recebidas não poderiam ser mais claras. Aquela visão, porém, de ruas repletas de pontos sombrios a se deslocarem vagarosos, atingindo homens e máquinas, nas vias públicas, assombrava -me. Sequioso de ensinamentos, tornei ao assunto: – A lição para mim tem valores incalculáveis. E quando penso no alto poder reprodutivo da flora microbiana... Aniceto, contudo, não me deixou terminar. Conhecendo, de antemão, minha pergunta natural, cortou -me a frase, exclamando: – Sim, André, se não fosse o poder muito maior da luz solar, casada ao magnetismo terrestre, poder esse que destrói intensivamente para selecionar as manifestações da vida, na esfera da Crosta, a flora microbiana de ordem inferior não teria permitido a existência dum só homem na superfície do gl obo. Por esta razão, o solo e as plantas estão cheios de princípios curativos e transformadores. E, abanando significativamente a cabeça, concluiu: – Nada obstante esse poder imenso, recurso divino, enquanto os homens, herdeiros de Deus, cultivarem o campo inferior da vida, haverá também criações inferiores, em número bastante para a batalha sem tréguas em que devem ganhar os valores legítimos da evolução. " André Luiz," Entre árvores Decorridos alguns minutos, atingíamos pequena propriedade rural, povoada de arvor edo acolhedor. Laranjeiras em flor perdia m-se de vista. Bananeiras estendia m-se em leque, enquanto o goiabal, de longe, semelhava -se a manchas fortes de verdura. A relva macia convidava ao descanso. E o vento calmo passava de leve, sussurrando alguma coisa através da folhagem. Aniceto respirou a longos haustos, e falou: – Os desencarnados, embora não se fatiguem como as criaturas terrestres, não prescindem da pausa de repouso. Em geral, nossas operações, à noite, são ativas e laboriosas. Apenas um terço dos companheiros espirituais, em serviço na Crosta, conserva -se em atividade diurna. E, notando -nos a curiosidade justa, sentenciou: – Aliás, isto é razoável. O dia terrestre pertence, com mais propriedade, ao serviço do Espírito encarnado. O homem deve apren der a agir, testemunhando compreensão das leis divinas. Pelo menos durante certo número de horas, deve estar mais só com as experiências que lhe dizem respeito. Nosso instrutor amigo sorriu e observou: – O dia e a noite constituem, para o homem, uma folha do livro da vida. A maior parte das vezes, a criatura escreve sozinha a página diária, com a tinta dos sentimentos que lhe são próprios, nas palavras, pensamentos, intenções e atos, e no verso, isto é, na reflexão noturna, ajudamo -la a retificar as lições e acertar as experiências, quando o Senhor no -lo permite. Calando -se o nosso orientador, tivemos a atenção exclusivamente voltada para a beleza circundante. Aquele campo amigo e hospitaleiro caracterizava -se por ambiente muito diverso. Não mais as emanaçõe s pesadas da cidade grande, mas o vento leve, embalsamado de suavíssimos perfumes. Refletia eu na bondade do Senhor, que nos oferecia recursos novos, quando Aniceto voltou a dizer: – A Natureza nunca é a mesma em toda parte. Não há duas porções de terra com climas absolutamente iguais. Cada colina, cada vale, possui expressões climatéricas diferentes. É forçoso reconhecer, porém, que o campo, em qualquer condição, no círculo dos encarnados, é o reservatório mais abundante e vigoroso de princípios vitais. Em geral, todos nós, os cooperadores " André Luiz," espirituais, estimamos o ar da manhã, quando a atmosfera permanece igualmente em repouso, isenta dos glóbulos de poeira convertidos em microscópicos balões de bacilos e de outras expressões inferiores. Entretanto, os trab alhos de hoje não nos permitiram o descanso mais cedo... Apoiamo -nos no veludoso relvado e, percebendo -nos a sede de saber, Aniceto prosseguiu: – Assim me explico, porque na floresta temos uma densidade forte, pela pobreza das emanações, em vista da imperm eabilidade ao vento. Aí, o ar costuma converter -se em elemento asfixiante, pelo excesso de emissões dos reinos inferiores da Natureza. Na cidade, a atmosfera é compacta e o ar também sufoca, pela densidade mental das mais baixas aglomerações humanas. No campo, desse modo, temos o centro ideal... Indicando, prazeroso, as frondes balouçantes, acentuou: – Reina aqui a paz relativa e equilibrada da Natureza terrestre. Nem a selvageria da mata virgem, nem a sufocação dos fluidos humanos. O campo é nosso generoso caminho central, a harmonia possível, o repouso desejável. Embalados ao pio de algumas juritis solitárias, repousamos algumas horas, magnificamente asilados no templo da Natureza. Com as primeiras tonalidades do crepúsculo, Aniceto nos convidou a passeio rápido pelas imediações. Reconhecia que estávamos muito mais bem dispostos. – Somente depois de nos locomovermos por alguns minutos, observei que nas vizinhanças havia grande quantidade de trabalhadores espirituais. Em face das minhas interrogações, nosso mentor explicou, bondosamente: – O campo é também vasta oficina para os serviços de nossa colaboração ativa. E apontando os servidores, que iam e vinham, considerou: – O reino vegetal possui cooperadores numerosos. Vocês, possivelmente, ignoram que muitos irmãos se preparam para o mérito de nova encarnação no mundo, prestando serviço aos reinos inferiores. O trabalho com o Senhor é uma escola viva, em toda parte. Nesse momento, nossa atenção foi atraída por significativo movimento na estrada próxima. Dirigi mo-nos para lá, seguindo os passos de Aniceto, que parecia adivinhar o acontecimento. Observei, então, um quadro interessante: um homem jazia por terra, numa poça de sangue, ao lado de pequeno veículo sustentado por um muar impaciente, dando mostras de gra nde inquietação. Dois companheiros encarnados prestavam socorro ao ferido, apressadamente. “É preciso conduzi -lo à fazenda sem perda de tempo”, dizia um deles, aflito, “temo haja fraturado o crânio.” O número de desencarnados que auxiliava o pequeno grupo, todavia, era muito grande. Um amigo espiritual que me pareceu o chefe, naquela aglomeração, recebeu Aniceto e a nós com deferência e simpatia, explicou rapidamente a ocorrência. O carroceiro havia recebido a patada de um burro e era necessário socorrer o ferido. Serenada a situação, vi o referido superior hierárquico chamar um " André Luiz," guarda do caminho, interpelando: – Glicério, como permitiu semelhante acontecimento? Este trecho da estrada está sob sua responsabilidade direta. O subordinado, respeitoso, considero u sensatamente: – Fiz o possível por salvar este homem, que, aliás, é um pobre pai de família. Meus esforços foram improfícuos, pela imprudência dele. Há muito procuro cercá -lo de cuidados, sempre que passa por aqui; entretanto, o infeliz não tem o mínimo respeito pelos dons naturais de Deus. É de uma grosseria inominável para com os animais que o auxiliam a ganhar o pão. Não sabe senão gritar, encolerizar -se, surrar e ferir. Tem a mente fechada às sugestões do agradecimento. Não estima senão a praga e o chicote. Hoje, tanto perturbou o pobre muar que o ajuda, tanto o castigou, que pareceu mais animalizado... Quando se tornou quase irracional, pelo excesso de fúria e ingratidão, m eu auxílio espiritual se tornou ineficiente. Atormentado pelas descargas de cólera do condutor, o burro humilde o atacou com a pata. Que fazer? Minha obrigação foi cumprida... O Superior, que ouvia atenciosamente as alegações, respondeu sem hesitar: – Tem razão. E como dirigisse o olhar a Aniceto, desejando aprovação, nosso orientador afirmou: – Auxiliemos o homem, quanto esteja em nossas mãos, cumpramos nosso dever com o bem, mas não desprezemos as lições. Esse trabalhador imprudente foi punido por si mesm o. A cólera é punida por suas conseq uências. Ao mal segue -se o mal. Se os seres inferiores, nossos irmãos no grande lar da vida, nos fornecem os valores do serviço, devemos dar -lhes, por nossa vez, os valores da educação. Ora, ninguém pode educar odiando, nem edificar algo de útil com a fúria e a brutalidade. E, indicando o grupo que conduzia o ferido a uma casa próxima, concluiu, imperturbável: – Como homem comum, nosso pobre amigo sofrerá muitos dias, chumbado ao leito; entre as aflições dos familiares, d emorar -se-á um tanto a restabelecer o equilíbrio orgânico; mas, como Espírito eterno, recebeu agora uma lição útil e necessária. Altamente surpreendido, reparei na grande serenidade do nosso orientador e comecei a compreender que ninguém desrespeita a Natu reza sem o doloroso choque de retorno, a todo tempo. " André Luiz," Evangelho no ambiente rural Apagados os comentários mais vivos, relativamente ao episódio desagradável, o superior hierárquico daquela grande turma de trabalhadores espirituais indagou do nosso or ientador, com delicadeza: – Nobre Aniceto, valendo -vos da oportunidade, poderíeis interpretar para nós outros alguma das lições evangélicas, ainda hoje? Aniceto aquiesceu, pressuroso. Notei que o interesse em torno do assunto era enorme. Com grande surpres a, vi que os servidores da gleba traziam ao estimado mentor um livro, que não tive dificuldades em identificar. Era um exemplar do Evangelho, que Aniceto abriu firmemente, como quem sabia onde estava a lição do momento. Fixando a página escolhida, começou a meditar, enquanto sublimada luz lhe aureolava a fronte. Houve profundo silêncio. Todos os colaboradores demonstravam grande interesse pela palavra que se fazia. Tudo era de aspecto imponente e calmo na Natureza. Um rebanho bovino acercara -se de nós, atraído por forças magnéticas que não consegui compreender. Alguns muares humildes chegaram, igualmente, de longe. E as aves tranq uilizara m-se nas frondes fartas, sem um pio. A única voz que toava, leve e branda, era a do vento, sussurrando harmonia e frescur a. A paisagem não podia ser mais bela, vestida em ouro líquido do Poente. Excetuada a rusticidade natural do quadro vivo, o ambiente sugeria recordações fiéis dos verdes salões de “Nosso Lar”. Aniceto, mergulhando o olhar no Sagrado Livro, leu em voz alta os versículos , e do capítulo , da Epístola aos Romanos: – Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperan ça de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Em seguida, refletiu alguns instantes e comentou, com evidente inspiração: – “Irmãos, recebamos a bênção do campo, louvando o Amor e a Sabedoria de Nosso Pai! " André Luiz," “Exaltemos o Soberano Espírito de Vida, que sopra em nós a força eterna da incessante renovação! “Ponderemos a palavra do Apóstolo da Gentilidade, para extrair -lhe o conteúdo divino!... Há milênios a Natureza espera a compreensão d os homens. Não se tem alimentado tão somente de esperança, mas vive em ardente expectação, aguardando o entendimento e o auxílio dos Espíritos encarnados na Terra, mais propriamente considerados filhos de Deus. Entretanto, as forças naturais continuam sofr endo a opressão de todas as vaidades humanas. Isto, porém, ocorre, meus amigos, porque também o Senhor tem esperança na libertação dos seres escravizados na Crosta, para que se verifique igualmente a liberdade na glória do homem. Conheço -vos de perto os sa crifícios, abnegados trabalhadores espirituais do solo terrestre! Muitos de vós aqui permaneceis, como em múltiplas regiões do planeta, ajudando a companheiros encarnados, acorrentados às ilusões da ganância de ordem material. Quantas vezes, vosso auxílio é convertido em baixas explorações no campo dos negócios terrestres? A maioria dos cultivadores da terra tudo exige sem nada oferecer. “Enquanto zelais, cuidadosamente, pela manutenção das bases da vida, tendes visto a civilização funcionando qual vigorosa máquina de triturar, convertendo -se os homens, nossos irmãos, em pequenos Moloques de pão, carne e vinho, absolutamente mergulhados na viciação dos sentimentos e nos excessos da alimentação, despreocupados do imenso débito para com a Natureza amorável e generosa. Eles oprimem as criaturas inferiores, ferem as forças benfeitoras da vida, são ingratos para com as fontes do bem, atendem às indústrias ruralistas, mais pela vaidade e ambição de ganhar, que lhes são próprias, que pelo espírito de amor e utilidad e, mas também não passam de infelizes servos das paixões desvairadas. Traçam programas de riqueza mentirosa, que lhes constituem a ruína; escrevem tratados de política econômica, que redundam em guerra destruidora; desenvolvem o comércio do ganho indébito, colhendo as complicações internacionais que dão curso à miséria; domi nam os mais fracos e os exploram, acordando, porém, mais tarde, entre os monstros do ódio! “É para eles, nossos semelhantes encarnados na Crosta, que devemos voltar igualmente os olhos, com espírito de tolerância e fraternidade. Ajudemo -los ainda, agora e sempre! Não esqueçamos que o Senhor está esperando pelo futuro deles! Escutemos os gemidos da criação, pedindo a luz do raciocínio humano, mas não olvidemos, também, a lágrima desses escravos da corrupção, em cujas fileiras permanecíamos até ontem, auxilia ndo-os a despertar a consciência divina para a vida eterna! Ainda que rodeiem o campo de vaidades e insolências, auxiliemo -los ainda. O Senhor reserva acréscimos sublimes de valores evolutivos aos seres sacrificados. Não olvidará Ele a árvore útil, o anima l exterminado, o ser humilde que se consumiu em benefício de outro ser! Cooperemos, por nossa vez, no despertar dos homens, nossos irmãos, relativamente ao nosso débito para com a Natureza maternal. Sempre, ao voltarmos à Crosta, envolvendo -nos em fluidos do círculo carnal, levamos muito longe a aquisição de nitrogênio. " André Luiz," “Convertemos em tragédia mundial o que poderia constituir a procura serena e edificante. “Como sabemos, organismo algum poderá viver na Terra sem essa substância e, embora se locomova, no oc eano de nitrogênio, respirando -o na média de mil litros por dia, não pode o homem, como nenhum ser vivo do planeta, apropriar -se do nitrogênio do ar. Por enquanto, não permite o Senhor a criação de células nos organismos viventes do nosso mundo, que proced am à absorção espontânea desse elemento de importância primordial na manutenção da vida, como acontece ao oxigênio comum. Somente as plantas, infatigáveis operárias do orbe, conseguem retirá -lo do solo, fixando -o para o entretenimento da vida noutros seres . Cada grão de trigo é uma bênção nitrogenada para sustento das criaturas, cada fruto da terra é uma bolsa de açúcar e albumina, repleta do nitrogênio indispensável ao equilíbrio orgânico dos seres vivos. “Todas as indústrias agropecuárias não representam, na essência, senão a procura organizada e metódica do precioso elemento da vida. Se o homem conseguisse fixar dez gramas, aproximadamente, dos mil litros de nitrogênio que respira diariamente, a Crosta estaria transformada no paraíso verdadeiramente espir itual. Mas, se muito nos dá o Senhor, é razoável que exija a colaboração do nosso esforço na construção da nossa própria felicidade. Mesmo em Nosso Lar , ainda estamos distantes da grande conquista do alimento espontâneo pelas forças atmosféricas, em caráte r absoluto. E o homem, meus amigos, transforma a procura de nitrogênio em movimento de paixões desvairadas, ferindo e sendo ferido, ofendendo e sendo ofendido, escravizando e tornando -se cativo, segregado em densas trevas! Ajudemo -lo a compreender, para qu e se organize uma era nova. Auxiliemo -lo a amar a terra, antes de explorá -la no sentido inferior, a valer -se da cooperação dos animais, sem os recursos do extermínio! Nessa época, o matadouro será convertido em local de cooperação, onde o homem atenderá ao s seres inferiores e onde estes atenderão às necessidades do homem, e as árvores úteis viverão em meio do respeito que lhes é devido. Nesse tempo sublime, a indústria glorificará o bem e, sentindo -nos o entendimento, a boa vontade e a veneração às leis div inas, permitir -nos-á o Senhor, pelo menos em parte, a solução do problema técnico de fixação do nitrogênio da atmosfera. Ensinemos aos nossos irmãos que a vida não é um roubo incessante, em que a planta lesa o solo, o animal extermina a planta e o homem as sassina o animal, mas um movimento de permuta divina, de cooperação generosa, que nunca perturbaremos sem grave dano à própria condição de criaturas responsáveis e evolutivas! Não condenemos! Auxiliemos sempre!” A assembl eia, tanto quanto nós, estava sob f orte impressão. Aniceto calou -se, contemplou com simpatia os animais e as aves próximas, como se estivesse a endereçar -lhes profundos pensamentos de amor e, a seguir, fechou o Livro Sagrado, com estas palavras: – Observamos com o Evangelho que a criação ag uarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus encarnados! Concordamos que as criaturas " André Luiz," inferiores têm suportado o peso de iniq uidades imensas! Continuemos em auxilio delas, mas não nos percamos em vãs contendas. Os homens esperam também a nossa mani festação espiritual! Desse modo, ajudemos a todos, no capitulo do grande entendimento. " André Luiz," Antes da reunião Os preparativos espirituais para a reunião eram ativos e complexos. Chegamos de regresso à residência de Dona Isabel, quando faltavam poucos minu tos para as dezoito horas e já o salão estava repleto de trabalhadores em movimento. Observando, com estranheza, determinadas operações, fiz algumas perguntas ao nosso orientador, que me esclareceu com bondade: – Realizar uma sessão de trabalhos espirituai s eficientes não é coisa tão simples. Quando encontramos companheiros encarnados, entregues ao serviço com devotamento e bom ânimo, isentos de preocupação, de experiências malsãs e inquietações injustificáveis, mobilizamos grandes recursos a favor do êxito necessário. Claro que não podemos auxiliar atividades infantis, nesse terreno. Quem não deseje cuidar de semelhantes obrigações, com a seriedade devida, poderá esperar fatalmente pelos Espíritos menos sérios, porquanto a morte física não significa renovaç ão para quem não procurou renovar -se. Onde se reúnam almas levianas, ai estará igualmente a leviandade. No caso de Isabel, porém, há que lhe auxiliar o esforço edificante. Em todos os setores evolutivos, é natural que o trabalhador sincero e eficiente rece ba recursos sempre mais vastos. Onde se encontre a atividade do bem, permanecerá a colaboração espiritual de ordem superior. Calara -se o bondoso amigo. Continuei reparando as laboriosas atividades de alguns irmãos que dividiam a sala, de modo singular, uti lizando longas faixas fluídicas. Aniceto veio em socorro da minha perplexidade, explicando, atencioso: – Estes amigos estão promovendo a obra de preservação e vigilância. Serão trazidas aos trabalhos de hoje algumas dezenas de sofredores e torna -se impresc indível limitar -lhes a zona de influenciação neste templo familiar. Para isso, nossos companheiros preparam as necessárias divisões magnéticas. Observei, admirado, que eles magnetizavam o próprio ar. Nosso instrutor, porém, informou, gentil: – Não se impre ssione, André. Em nossos serviços, o magnetismo é força preponderante. Somos compelidos a movimentá -lo em grande escala. E, sorrindo, concluiu: – Já os sacerdotes do antigo Egito não ignoravam que, para atingir " André Luiz," determinados efeitos, é indispensável impregn ar a atmosfera de elementos espirituais, saturando -a de valores positivos da nossa vontade. Para disseminar as luzes evangélicas aos desencarnados, são precisas providências variadas e complexas, sem o que, tudo redundaria em aumento de perturbações. Este núcleo é pequenino, considerado do ponto de vista material, mas apresenta grande significação para nós outros. É preciso vigiar, não o esqueçamos. Enquanto as atividades de preparação espiritual seguiam intensas, Dona Isabel e Joaninha, noutra ordem de ser viço, chegaram ao salão, dispondo arranjos diferentes. Usaram, largamente, a vassoura e o espanador. Revestiram a mesa de toalha muito alva e trouxeram pequenos recipientes de água pura. A uma ordem de um dos superiores daquele templo doméstico, espalhara m-se os vigilantes, em derredor da moradia singela. Nos menores detalhes estava a nobre supervisão dos benfeitores. Em tudo a ordem, o serviço e a simplicidade. Logo após alguns minutos além das dezoito horas, começaram a chegar os necessitados da esfera in visível ao homem comum. Se fosse concedida à criatura vulgar uma vista de olhos, ainda que ligeira, sobre uma assembl eia de espíritos desencarnados, em perturbação e sofrimento, muito se lhes modificariam as atitudes na vida normal. Nessa afirmativa, devem os incluir, igualmente, a maioria dos próprios espiritistas, que fr equen tam as reuniões doutrinárias, alheios ao esforço autoeducativo, guardando da espiritualidade uma vaga id eia, na preocupação de atender ao egoísmo habitual. O quadro de retificações individuais, após a morte do corpo, é tão extenso e variado que não encontramos palavras para definir a imensa surpresa. Aqueles rostos esqueléticos causavam compaixão. Chegavam ao recinto aquelas entidades perturbadas, em pequenos magotes, seguidas de orient adores fraternais. Pareciam cadáveres erguidos do leito de morte. Alguns se locomoviam com grande dificuldade. Tínhamos diante dos olhos uma autêntica reunião de “coxos e estropiados”, segundo o símbolo evangélico. – Em maioria – esclareceu Aniceto – são i rmãos abatidos e amargurados, que desejam a renovação sem saber como iniciar a tarefa. Aqui, poderemos observar apenas sofredores dessa natureza, porque o santuário familiar de Isidoro e Isabel não está preparado para receber entidades deliberadamente perv ersas. Cada agrupamento tem seus fins. Com efeito, os recém -chegados estampavam profunda angústia na expressão fisionômica. As senhoras em pranto eram numerosas. O quadro consternava. Algumas entidades mantinham as mãos no ventre, calcando regiões feridas. Não eram poucas as que traziam ataduras e faixas. – Muitos – disse -nos o mentor – não concordam ainda com as realidades da morte corporal. E toda essa gente, de modo geral, está prisioneira da id eia de enfermidade. Existem pessoas, e vocês, como médicos, as terão conhecido largamente, que cultivam as moléstias com verdadeira volúpia. Apaixona m-se pelos diagnósticos exatos, acompanham no corpo, com indefinível ardor, a manifestação dos indícios mórbidos, estudam a teoria da doença de que são portadoras, com o jamais analisam um dever justo no quadro " André Luiz," das obrigações diárias, e quando não dispõem das informações nos livros, estimam a longa atenção dos médicos, os minuciosos cuidados da enfermagem e as compridas dissertações sobre a enfermidade de que se constitu em voluntárias prisioneiras. Sobrevindo a desencarnação, é muito difícil o acordo entre elas e a verdade, porquanto prosseguem mantendo a id eia dominante. Ás vezes, no fundo, são boas almas, dedicadas aos parentes do sangue e aproveitáveis na esfera restri ta de entendimento a que se recolhem, mas, no entanto, carregadas de viciação mental por muitos séculos consecutivos. E num gesto diferente, nosso instrutor considerou: – Demoramo -nos todos a escapar da velha concha do individualismo. A visão da universali dade custa preço alto e nem sempre estamos dispostos a pagá -lo. Não queremos renunciar ao gosto antigo, fugimos aos sacrifícios louváveis. Nessas circunstâncias, o mundo que prevalece para a alma desencarnada, por longo tempo, é o reino pessoal de nossas c riações inferiores. Ora, desse modo, quem cultivou a enfermidade com adoração, submeteu -se-lhe ao império. É lógico que devemos, quando encarnados, prestar toda a assistência ao corpo físico, que funciona, para nós, como vaso sagrado, mas remediar a saúde e viciar a mente são duas atitudes essencialmente antagônicas entre si. A palestra era magnificamente educativa; entretanto, o número crescente de entidades necessitadas chamava -nos à cooperação. Muitas choravam baixinho, outras gemiam em voz mais alta. Depois de longa pausa, Aniceto advertiu: – Vamos ao serviço. Para nós, coo peradores espirituais, os trabalhos já começaram. A prece e o esforço dos companheiros encarnados representarão o termo desta reunião de assistência e iluminação em Jesus Cristo. " André Luiz," Assistência A paisagem de sofrimento, desdobrada aos nossos olhos, lem brava -me o ambiente das Câmaras de Retificação. Entendeu -se Aniceto com Isidoro e falou, resoluto: – Mãos à obra! Distribuamos alguns passes de reconforto! – Mas – objetei – estarei preparado para trabalho dessa natureza? – Porque não? – indagou o instruto r em voz firme – toda competência e especialização no mundo, nos setores de serviço, constituem o desenvolvimento da boa vontade. Bastam o sincero propósito de cooperação e a noção de responsabilidade para que sejamos iniciados, com êxito, em qualquer trab alho novo. Semelhantes afirmativas estimulara m-me o coração. Recordei Narcisa, a dedicada irmã dos infortunados, que permanecia, em “Nosso Lar”, quase sempre sem repouso, como prisioneira do sacrifício. Pareceu -me, ainda, ouvir -lhe a voz fraterna e carinho sa: – “André, meu amigo, nunca te negues, quanto possível, a auxiliar os que sofrem. Ao pé dos enfermos, não olvides que o melhor remédio é a renovação da esperança; se encontrares os falidos e os derrotados da sorte, fala -lhes do divino ensejo do futuro; se fores procurado, algum dia, pelos Espíritos desviados e criminosos, não profiras palavras de maldição. Anima, eleva, educa, desperta, sem ferir os que ainda dormem. Deus opera maravilhas por intermédio do trabalho de boa vontade!” Sem mais hesitação, di spus -me ao serviço. Aniceto designou -me um grupo de seis enfermos espirituais, acentuando: – Aplique seus recursos, André. Com a nossa colaboração, os amigos em tarefa nesta casa poderão atender a responsabilidades diferentes e também imperiosas. Os mais a pagados trabalhadores do bem rejubile m-se pela exemplificação nas lutas comuns e edifique m-se no Senhor Jesus, porque nenhuma de suas manifestações fica perdida no espaço e no tempo. Naquele instante em que fora chamado a prestar auxílios reais, eu não rec orria aos meus cabedais científicos, não me reportava tão somente à técnica da medicina oficial, a que me filiara no mundo, mas recordava aquela Narcisa humilde e simples, das Câmaras de Retificação, enfermeira devotada e carinhosa, que conseguia muito mai s com amor do que com medicações. " André Luiz," Aproximei -me duma senhora profundamente abatida, lembrando o exemplo da generosa amiga de “Nosso Lar”, entendendo que não deveria socorrer utilizando apenas a firmeza e a energia, mas também a ternura e a compreensão. – Minha irmã – disse, procurando captar -lhe a confiança –, vamos ao passe reconfortador. – Ai! Ai! – respondeu a interpelada – nada vejo, nada vejo! Ah! O tracoma! Infeliz que sou! E me falam em morte, em vida diferente... Como recuperar a vista?! Quero ver, q uero ver!... – Calma – respondi, encorajado –, não confia no Poder de Jesus? Ele continua curando cegos, iluminando -nos o caminho, guiando -nos os passos! Somente mais tarde lembrei que, naquele instante, olvidara a curiosidade doentia, não pensei na impres são deixada pelo tracoma naquele organismo espiritual, nem me preocupei com a expressão propriamente científica do fenômeno, vendo, apenas, à minha frente, uma irmã sofredora e necessitada. E, à medida que me dispunha a observar a prática do amor fraternal , uma claridade diferente começou a iluminar e a aquecer -me a fronte. Lembrando a influência divina de Jesus, iniciei o passe de alivio sobre os olhos da pobre mulher, reparando que enorme placa de sombra lhe pesava na fronte. Pronunciando palavras de anim ação, às quais ligava a melhor essência de minhas intenções, concentrei minhas possibilidades magnéticas de auxílio nessa zona perturbada. Dentro de alguns instantes, a desencarnada desferiu um grito de espanto. – Vejo! Vejo! – exclamou, entre o assombro e a alegria – Grande Deus! Grande Deus! E ajoelhando -se, num movimento instintivo para render graças, dirigia -me a palavra, comovidamente: – Quem sois vós, emissário do bem? Dominava -me profunda emoção, que não conseguia sofrear. Confundia -me a bondade do E terno. Quem era eu para curar alguém? Mas a alegria daquela entidade, libertada das trevas, afirmava a ocorrência, na qual não queria acreditar. A luz daquela dádiva como que mostrava mais fortemente o fundo escuro de minhas imperfeições individuais e o pr anto inundou -me as faces, sem que pudesse retê -lo nos recônditos mananciais do coração. Enquanto a enferma espiritual se desfazia em lágrimas de louvor, também eu me absorvia numa onda de pensamentos novos. O acontecimento surpreendia -me. Desejava socorrer o doente próximo e, contudo, estava enlaçado em singular deslumbramento intimo. Aniceto, porém, aproximou -se delicadamente e falou em voz baixa: – André, a excessiva contemplação dos resultados pode prejudicar o trabalhador. Em ocasiões como esta, a vaida de costuma acordar dentro de nós, fazendo -nos esquecer o Senhor. Não olvides que todo o bem procede d’Ele, que é a luz de nossos corações. Somos seus instrumentos nas tarefas de amor. O servo fiel não é aquele que se inquieta pelos resultados, nem o que pe rmanece enlevado na contemplação deles, mas justamente o que cumpre a vontade " André Luiz," divina do Senhor e passa adiante. Aquelas palavras não poderiam ser mais significativas, O generoso mentor voltou ao serviço a que se entregara, junto de outros irmãos, e, valend o-me do amoroso aviso, dirigi -me à reconhecida senhora, acentuando: – Minha amiga, agradeça a Jesus e não a mim, que sou apenas obscuro servidor. Quanto ao mais, não se impressione em demasia com a visão dos aspectos exteriores; volte o poder visual para d entro de si mesma, para que possa consagrar ao Senhor da Vida os sublimes dons da visão. Notei que a ouvinte se surpreendia com as minhas palavras, que lhe pareceram, talvez, inoportunas e transcendentes, mas, novamente firme na compreensão do dever, acerq uei-me do enfermo próximo. Tratava -se dum infeliz irmão que falecera na Gamboa, vitimado pelo, câncer. Toda a região facial apresentava -se com horrífico aspecto. Apliquei os passes dê reconforto, ministrando pensamentos e palavras de bom ânimo, e reparei q ue o pobrezinho se sentia tomado de considerável melhora. Prometi -lhe interesse amigo, a fim de internar -se em alguma casa espiritual de tratamento, recomendando que preparasse a vida mental para colher semelhante benefício, oportunamente. Em seguida, aten di a dois ex -tuberculosos do Encantado, a uma senhora que desencarnara em Piedade, em conseq uência de um tumor maligno, e a um rapaz de Olaria, que se desprendera num choque operatório. Nenhum destes quatro últimos, contudo, manifestou qualquer alivio. Per sistiam as mesmas indisposições orgânicas, os mesmos fenômenos psíquicos de sofrimento. Terminada a tarefa que me fora cometida, reuni -me ao nosso instrutor e Vicente, que me esperavam a um canto da sala. – As atividades de assistência – exclamou Aniceto, cuidadoso – se processam conforme observam aqui. Alguns se sentem cura dos, outros acusam melhoras e a maioria parece continuar impermeável ao serviço de auxílio. O que nos deve interessar, todavia, é a semeadura do bem. A germinação, o desenvolvimento, a flor e o fruto pertencem ao Senhor. Vicente, que se mostrava fortemente impressionado, observou: – O número de entidades perturbadas espanta. Vemo -las, em diversos graus de desequilíbrio, desde “Nosso Lar” até a Crosta. Aniceto sorriu e falou em tom grave: – Devemos esmagadora percentagem desses padecimentos à falta de educação religiosa. Não me refiro, porém, àquela que vem do sacerdócio ou que parte da boca de uma criatura para os ouvidos de outra. Refiro -me à educação religiosa, íntima e profunda, que o homem nega sistematicamente a si mesmo. " André Luiz," Mente enferma Observando e trabalhando sempre, Aniceto considerou: – Aqui não comparecem apenas os desencarnados enfermos. Reparem os encarnados, igualmente. Entre o nosso círculo e a assembl eia dos irmãos corporificados, a percentagem de trabalhadores em relação ao número de doentes e necessitados é quase a mesma. Designando um cavalheiro aprumado e bem posto, que se mantinha em palestra com o senhor Bentes, doutrinador naquele grupo, acrescentou: – Vejam este amigo rodeado de sombra, em conversação como colaborador de nossa irmã Isabel. Ouçam -lhe a palavra e, depois, ajuízem. Com efeito, o cavalheiro indicado rodeava -se de pequenas nuvens, mormente ao longo do cérebro. Fixando nele a atenção, eu o ouvia distin tamente: – Há muito – asseverava com ênfase – frequen to as reuniões espiritistas, à procura de alguma coisa que me satisfaça; no entanto – e sorriu irônico –, ou a minha infelicidade é maior que a dos outros ou estamos diante de mistificação mundial. Atento à respeitosa atitude do orientador encarnado, prosseguia, orgulhoso: – Tenho estud ado muitíssimo, não me furtando ao crivo da razão rigorosa. Já devorei extensa literatura relativa à sobrevivência humana e, todavia, nunca obtive uma prova. O Espiritismo está cheio de teses sedutoras, mas o terreno se mostra cheio de dúvidas. A obra de K ardec, inegavelmente, representa extraordinária afirmaçã o filosófica; entretanto, encontramos com Richet um acervo de perspectivas novas. A metapsíquica corrigiu muitos voos da imaginação, trazendo à análise pública observações mais profundas sobre os desconhecidos poderes do homem. No exame dessas verdades cie ntíficas, o mediunismo foi reduzido em suas proporções. Precisamos dum movimento de racionalização, ajustando os fenômenos a critério adequado. Todavia, meu caro Bentes, vivemos em paisagem de mistificações sutis, distantes das demonstrações exatas. A essa altura, o interlocutor, muito calmo e seguro na fé, interveio, considerando: – Concordo, Dr. Fidélis, em que o Espiritismo não deva fugir a toda " André Luiz," espécie de considerações sérias; contudo, creio que a doutrina é um conjunto de verdades sublimes, que se dirigem, de preferência, ao coração humano. É impossível auscultar -lhe a grandeza divina com a nossa imperfeita faculdade de observação, ou recolher -lhe as ág uas puras com o vaso sujo dos nossos raciocínios viciados nos erros de muitos milênios. Ao demais, temos aprendido que a revelação de ordem divina não é trabalho mecânico em leis de menor esforço. Lembremos que a missão do Evangelho, com o Mestre, foi prec edida por um esforço humano de muitos séculos. Antes de morrerem os cristãos nos circos do martírio, quantos precursores de Jesus foram sacrificados? Primeiramente, devemos construir o receptáculo; em seguida, alcançaremos a bênção. A Bíblia, sagrado livro dos cristãos, é o encontro da experiência humana, cheia de suor e lágrimas, consubstanciada no Velho Testamento, com a resposta celestial, sublime e pura, no Evangelho de Nosso Senhor. O cavalheiro, que respondia pelo nome de Dr. Fidélis, sorria de modo vago, entre a ironia e a vaidade ofendida. Bentes, contudo, não perdeu a oportunidade e continuou: – Se todo serviço sério da existência humana é alguma coisa de sagrado aos nossos olhos, que dizer da expressão divina no trabalho planetário? E considerando a essência do serviço na organização do mundo, que seria de nós se um punhado de Espíritos amigos e sábios nos arrebatass em à visão ampla de orbes superiores, impelindo -nos para eles, precipitadamente, tão só pelo fato de nos dispensarem, como indivíduos; uma estima santa? Estaríamos preparados para a mudança radical? Saberemos o que venha a ser a vida num orbe superior? Ter emos trabalhado bastante para entender os divinos desígnios? E a Terra? E as nossas milenárias dívidas para com o planeta que nos tem suportado as imperfeições? Como residir nos andares mais altos, sem drenar os pântanos que jazem em baixo? Estas considera ções toma m-se imprescindíveis no exame de argumentação como a sua, porquanto não poderemos ajuizar, com precisão, as correntes generosas de um rio caudaloso, observando tão somente as gotas recolhidas no dedal das nossas limitações. O pesquisador renitente acentuou a expressão irônica do rosto e revidou: – Você fala como homem de fé, esquecendo que meu esforço se dirige à razão e à ciência. Quero referir -me às ilações inevitáveis da consulta livre, às farsas mediúnicas de todos os tempos. Você está informad o de que cientistas inúmeros examinaram as fraudes dos mais célebres aparelhos do mediunismo, na Europa e na América. Ora, que esperar de uma doutrina confiada a mistificadores continentais? Bentes respondeu, muito sereno e ponderado: – Está enganado, meu amigo. Estaríamos laborando em erro grave, se colocássemos toda a responsabilidade doutrinária nas organizações mediúnicas. Os médiuns são simples colaboradores do trabalho de espiritualização. Cada um responderá pelo que fez das possibilidades recebidas, como também nós seremos compelidos a contas necessárias, algum dia. Não " André Luiz," poderíamos cometer o absurdo de atribuir a concentração de todas as verdades divinas somente na cabeça de alguns homens, candidatos a novos cultos de adoração. A doutrina, Dr. Fidélis, é uma fonte sublime e pura, inacessível aos pruridos individualistas de qualquer de nós, fonte na qual cada companheiro deve beber a água da renovação própria. Quanto às fraudes mediúnicas a que se refere, é forçoso reconhecer que a pretensa infalibilidad e científica tem procurado converter os mais nobres colaboradores dos desencarnados em grandes nervosos ou em simples cobaias de laboratório. Os pesquisadores, atualmente batizados como metapsiquistas, são estranhos lavradores que enxameiam no campo de ser viço sem nada produzirem de fundamentalmente útil. Inclina m-se para a terra, contam os grãos de areia e os vermes invasores, determinam o grau de calor e estudam a longitude, observam as disposições climáticas e anotam as variações atmosféricas, mas, com g rande surpresa para os trabalhadores sinceros, desprezam a semente. O interlocutor deixou de sorrir e observou: – Vamos ver, vamos ver... Espero a mensagem dos meus com os sinais iniludíveis da sobrevivência, após a morte... Aniceto nos tocou de leve, e fa lou: – Repararam como este homem traz a mente enfermiça? É um dos curiosos doentes, encarnados. Tem vasta cultura e, todavia, como traz o sentimento envenenado, tudo quanto lhe cai nos raciocínios participa da geral intoxicação. É pesquisador de superfície , como ocorre a muita gente. Tudo espera dos outros, examina seu semelhante, mas não ausculta a si mesmo. Quer a realização divina sem o esforço humano; reclama a graça, formulando a exigência; quer o trigo da verdade, sem participar da semeadura; espera a tranq uilidade pela fé, sem dar -se ao trabalho das obras; estima a ciência, sem consultar a consciência; prefere a facilidade, sem filiar-se à responsabilidade, e, vivendo no torvelinho de continuadas libações, agarrado aos interesses inferiores e à satisfação dos sentidos físicos, em caráter absoluto, está aguardando mensagens espirituais... Estávamos admirados, ante as conclusões intere ssantes do instrutor amigo. Vicente, que se mantinha sob forte impressão, perguntou: – Afinal de contas, que deseja este homem? Aniceto sorriu e respondeu: – Também ele teria imensas dificuldades para responder. Para nós outros, Vicente, o Dr. Fidélis é um desses enfermos que ainda não se dispuseram a procurar o alivio, pelo demasiado apego à sensação. " André Luiz," Aprendendo sempre Segundo informações de Aniceto, faltava mais de uma hora para o início da preleção evangélica, sob a responsabilidade do senhor Bent es, na esfera dos frequen tadores encarnados, mas o movimento de serviço espiritual tornara -se intensíssimo. Reunia m-se ali, para olhos humanos, trinta e cinco individualidades terrestres e, no entanto, em nosso círculo, o número de necessitados excedia de duas centenas, porquanto, agora, a assembl eia estava acrescida de muitas entidades que formavam o séquito perturbador da maioria dos aprendizes ali congregados. Para elas, organizou -se uma divisão especial, que me pareceu constituída por elementos de maior vigilância, visto chegarem, quase obrigatoriamente, acompanhando os que buscavam o socorro espiritual, sem a indicação dos orientadores em serviço nas vias públicas. A movimentação era enorme e o tempo era escasso para qualquer observação, sem movimento a tivo. Todos os servidores da casa se mantinham a postos, desenvolvendo a melhor atenção. Reparei que num ângulo da grande mesa havia numerosas indicações de receituário e assistência. Os mais variados nomes ali se enfileiravam. Muitas pessoas pediam consel hos médicos, orientação, assistência e passes. Quatro facultativos espirituais se moviam diligentes e, secundando -lhes o esforço humanitário, quarenta cooperadores diretos iam e vinham, recolhendo informações e enriquecendo pormenores. Aproximamo -nos do gr ande número de papéis nominados e, enquanto curiosamente buscava examiná -los, Aniceto explicou: – Temos aqui a indicação das pessoas que se afirmam necessitadas de amparo e socorro imediato. – Mas recebem elas tudo quanto pedem? – indagou Vicente, curioso. Nosso mentor sorriu e respondeu: – Recebem o que precisam. Muitos solicitam a cura do corpo, mas somos forçados a estudar até que ponto lhes podemos ser úteis, no particularismo dos seus desejos; outros reclamam orientações várias, obrigando -nos a equilibrar nossa cooperação, de modo a lhes não tolher a liberdade individual. A existência terrestre é um curso ativo de preparação espiritual e, quase sempre, não faltam na escola os alunos oci osos, que perdem " André Luiz," o tempo ao invés de aproveitá -lo, ansiosos pelas realizações mentirosas do menor esforço. Desse modo, no capítulo das orientações, a maior parte dos pedidos é desassisada . A solicitação de terapêutica para a manutenção da saúde física, pel os que de fato se interessem pelo concurso espiritual, é sempre justa; todavia, no que concerne a conselhos para a vida normal, é imprescindível muita cautela de nossa parte, diante das requisições daqueles que se negam voluntariamente aos testemunhos de conduta cristã. O Evangelho está cheio de sagrados rotei ros espirituais e o discípulo, pelo menos diante da própria consciência, deve considerar -se obrigado a conhecê -los. O instrutor amigo fez pequena pausa, mudou a inflexão de voz, como para acentuar fortemente as palavras, e considerou: – Possivelmente, você s objetarão que toda pergunta exige resposta e todo pedido merece solução; entretanto, nesse caso de esclarecer determinadas solicitações dos companheiros encarnados, devemos recorrer, muitas vezes, ao silêncio. Como recomendar humildade àqueles que a pregam para os outros; como ensinar a paciência aos que a aconselham aos semelhantes, e como indicar o bálsamo do trabalho aos que já sabem condenar a ociosidade alheia? Não seria contra ssenso? Ler os regulamentos da vida para os cegos e para os ignorantes é obra meritória, mas, repeti -los aos que já se encontr am plenamente informados, não será menosprezo ao valor do tempo? Alma alguma, nas diversas confissões religiosas do Cristianismo, recebe noticias de Jesus, sem razão de ser. Ora, se toda condição de trabalho edificante traduz compromisso da criatura, todo conhecimento do Cristo traduz responsabilidade. Cada aprendiz do Mestre, portanto, está no dever de observar a consciência, conferindo -lhe os alvitres profundos com as disposições evangélicas. Vicente, que escutava com grande interesse, aventou: – No entan to, ousaria lembrar os que formulam semelhantes pedidos levianamente... – Sim – elucidou Aniceto, sorrindo –, mas nós não poderemos copiar -lhes o impulso. Os desencarnados e os encarnados, que ainda abusam das possibilidades do intercâmbio entre as esferas visíveis e invisíveis ao homem comum, pagarão alto preço pela invigilância. – Neste caso – perguntei, respeitoso –, como corresponder aos pedidos de orientação? – Alguns, raros – esclareceu nosso orientador –, merecem o concurso da nossa elucidação verbal , na hipótese de se referirem aos interesses eternos do Espírito, quando isso nos seja possível; entretanto, quase sempre é indispensável nada responder de maneira direta, auxiliando os interessados na pauta de nossos recursos, em silêncio, mesmo porque, não temos grande tempo para relembrar a irmãos encarnados certas obrigações que lhes não deviam escapar da memória, para felicidade de si mesmos. Calou -se por momentos o bondoso instrutor, considerando em seguida, interessado em nos subtrair quaisquer dúvidas: – Muitas entidades desencarnadas estimam o fornecimen to de palpites " André Luiz," para as diversas situações e dificuldades terrestres, mas esses pobres amigos estacionam desastradamente em questões subalternas, incapazes de uma visão mais alta, em face dos horizontes infinitos da vida eterna, convertendo -se em meros escr avos de mentalidades inferiores, encarnadas na Terra. Esquecem que o nosso interesse imediato, agora, deve ser, acima de todos, aquele que se refira à espiritualidade superior. Nossos irmãos inquietos, que forneçam palpites a preguiçosas mentes encarnadas, sobre assuntos referentes à responsabilidade justa e necessária do homem, devem fazê -lo de própria conta. – Que acontece, então? – perguntou Vicente, curioso. Nosso mentor, contudo, respondeu com outra pergunta: – Que acontece ao homem de responsabilidade que se põe a brincar? Nesse instante, um dos clínicos espirituais, aproximando -se, foi gentilmente saudado por Aniceto, que lhe disse, depois de apresentar -nos: – Disponha da nossa colaboração humilde. Aqui estamos na qualidade de médicos itinerantes, pro ntos ao concurso ativo. – Vêm de “Nosso Lar”? – indagou o novo companheiro, respeitosamente. – Sim – respondeu Aniceto, prestativo. – Pois bem – considerou ele – se possível, estimarei receber -lhes o auxílio, após a reunião, para dois casos urgentes. Trata -se de uma jovem desencarnada hoje e de um agonizante, meu amigo. – Sem dúvida – acentuou nosso orientador, solícito –, aguardaremos suas indicações. " André Luiz," No trabalho ativo A interpretação de Bentes, obedecendo à inspiração de um emissário de nobre posiç ão, presente à assembl eia, era recebida com respeito geral, no circulo das entidades desencarnadas. Na esfera dos encarnados, porém, não se notava o mesmo traço de harmonia. Observava -se apreciável instabilidade de pensamento. A expectativa ansiosa dos pre sentes perturbava a corrente vibratória. De quando em quando, surpreendíamos determinados desequilíbrios, que afetavam, particularmente, a organização mediúnica de Dona Isabel e a posição receptiva do comentarista, que parecia perder “o fio das id eias”, ta l qual se diria na linguagem comum. Colaboradores ativos restabeleciam o ritmo, quanto possível. Reparamos que alguns irmãos encarnados se mantinham irrequietos, em demasia. Mormente os mais novos em conhecimentos doutrinários exibiam enorme irresponsabili dade. A mente lhes vagava muito longe dos comentários edificantes. Via m-se-lhes, distintamente, as imagens mentais. Alguns se prendiam aos quefazeres domésticos, outros se impacientavam por não lograrem a realização imediata dos propósitos que os haviam le vado até ali. Aniceto, que não perdia ocasião de prestar -nos esclarecimentos novos, considerou, discreto: – Muitos estudiosos do Espiritismo se preocupam com o problema da concentração, em trabalhos de natureza espiritual. Não são poucos os que estabelecem padrão ao aspecto exterior da pessoa concentrada, os que exigem determinada atitude corporal e os que esperam resultados rápidos nas atividades dessa ordem. Entretanto, quem diz concentrar, forçosamente se refere ao ato de congregar alguma coisa. Ora, se os amigos encarnados não tomam a sério as responsabilidades que lhes dizem respeito, fora dos recintos de prática espiritista, se, porventura, são cultores da leviandade, da indiferença, do erro deliberado e incessante, da teimosia, da inobservância intern a dos conselhos de perfeição cedidos a outrem, que poderão concentrar nos momentos fugazes de serviço espiritual? Boa concentração exige vida reta. Para que os nossos pensamentos se congreguem uns aos outros, fornecendo o potencial de nobre união para o be m, é indispensável o trabalho preparatório de atividades mentais na meditação de ordem superior. A atitude íntima de relaxamento, ante as lições evangélicas recebidas, não pode conferir ao crente, " André Luiz," ou ao cooperador, a concentração de forças espirituais no s erviço de elevação, tão só porque estes se entreguem, apenas por alguns minutos na semana, a pensamentos compulsórios de amor cristão. Como v eem , o assunto é complexo e demanda longas considerações e ensinamentos. Reparei com mais atenção os circunstantes encarnados. Não fosse o devotamento dos colaboradores do nosso plano, tornar -se-ia impossível qualquer proveito concreto. Isidoro e outros amigos devotados trabalhavam com ardor, despertando alguns dorminhocos e reajustando o pensamento dos invigilantes, p ara neutralizar determinadas influências nocivas. Eu reconhecia que os benefícios imediatos da doutrinação de Bentos eram muito mais visíveis entre os desencarnados. No grupo destes, não havia um só que não recebesse consolações diretas e sublime conforto. Finda a interpretação, pouco antes de se entregar Dona Isabel ao trabalho do receituário, observei que uma senhora desencarnada se aproximara de Isidoro, pedindo, emocionada: – Ser-lhe-á possível, meu irmão, entender -se por mim com os nossos orientadores quanto à possibilidade de me comunicar diretamente com a minha filha, presente à reunião? Estou certa de que, com a permissão devida, nossa Isabel me atenderá a angústia materna. O interpelado mostrou sincero desejo de ser útil, mas, depois de trocar algum as palavras com o instrutor mais graduado da reunião, que se colocara entre a médium e o doutrinador, veio trazer a resposta, algo constrangido, com grande surpresa para mim: – Minha irmã – disse ele –, o nosso nobre Anselmo não julga viável o seu pedido. Asseverou que sua filhinha ainda não está em condições de receber essa bênção. Ela tem necessidade de testemunhar, agora, o que aprendeu do seu exemplo, no mundo, e precisa permanecer no campo da oportunidade, sem repousar indevidamente nos seus braços. E como a senhora denotasse tristeza, Isidoro continuou em tom fraternal: – Não somente por isso, minha amiga, nosso instrutor se vê forçado a desatender. A medida traria inconveniente grave para o seu sentimento maternal. No estado evolutivo em que se encont ra, e considerando o velho hábito adquirido, a filhinha se agarraria excessivamente ao seu auxílio. Prender -se-ia à mãezinha afetuosa e sensível, e talvez a irmã se visse perturbada em sua nova carreira espiritual. Ela precisa estar mais livre para testemu nhar, enquanto o seu coração deve permanecer em liberdade, por nobre merecimento conquistado ao preço do seu suor e lágrimas, quando na Terra. Considerando, embora, o caráter sagrado do amor em sua feição maternal, nossos orientadores não podem conceder à sua filha o direito de perturbá -la. Compreende? Não se atormente com esta impossibilidade transitória. Lembre -se de que todos somos filhos de Deus. O Senhor terá recursos para atender à jovem, em seu lugar. Quanto ao mais, alegremo -nos em nossos serviços. Recorde que o auxílio não se verificará pelo processo direto, mas podemos recorrer ao método indireto. Quem sabe? Amanhã, " André Luiz," possivelmente, poderá encontrar -se com sua filha, em sonho. A interpelada sorriu, confortada, e obtemperou: – É verdade. Devo compreen der a nova situação. Nesse instante, acercou -se de Isidoro uma entidade amiga, que solicitou: – Meu caro, estimaria suas providências junto dos receitistas, para que forneçam novas indicações ao Amaro. Meu sobrinho necessita de amparo à saúde física. O esp oso espiritual de Isabel tomou uma expressão significativa e respondeu: – Não posso, meu amigo, não posso. Se Amaro pedir e os receitistas cederem, tudo estará muito bem; mas você não ignora que o nosso doente é muito rebelde. Já lhe providenciei a obtenção de conselhos médicos do nosso plano, por cinco vezes, sem que ele correspondesse aos nossos esforços. Não se resolve a adquirir os remédi os indicados, e quando os obtém, por obséquio de amigos, despreza os horários e julga -se superior ao método. Critica mordazmente as indicações obtidas e serve -se delas com desprezo. Naturalmente não estou agastado com isso, como adulto que se não aborrece com as brincadeiras de uma criança; mas você compreende que estamos lidando com um material muito sagrado e não há tempo para conviver com os que estimam a brincadeira. Além disso, não será caridade o ato de dar aos que não querem receber. Isidoro falava com uma inflexão de bondade fraternal, que afastava todos os característicos da franqueza contundente. Compreendi que, para atender a tanta gente e movimentar -se entre tantos propósitos heterogêneos, não seria possível tratar os assuntos de outro modo. O serv iço prosseguia com enorme demonstração educativa para Vicente e para mim. O esforço dos clínicos espirituais, aliado à abnegação da intermediária, comovia -me o coração. Era necessário, de fato, grande renúncia para atender ao trabalho compacto e numeroso, no setor de assistência aos encarnados, porque poucos fr equen tadores do grupo pareciam manter atitude correspondente à sublime dedicação fraternal em nome do Mestre. Aniceto, porém, adivinhando meus pensamentos, falou com bondade: – Um dia, André, você com preenderá, com Jesus, que melhor é servir que ser servido; mais belo é dar que receber. " André Luiz," Pavor da morte Numerosas explicações do orientador atendia m-me às indagações naturais; no entanto, restava aprender alguma coisa. Por que motivo se reuniam ali tantos desencarnados? Já que recebiam assistênc ia espiritual, não poderiam congregar -se em lugares igualmente espirituais? Respeitosamente, interroguei Aniceto nesse sentido. – De fato, André – respondeu o generoso mentor –, a maioria dos desencarnados recebe esclarecimentos justos em nossa esfera de a ção. Você mesmo, nos primórdios da nova experiência espiritual, não foi conduzido ao ambiente de nossos amigos corporificados para o necessário encaminhamento. Grande número de criaturas, porém, na passagem para cá, sente m-se possuídas de “doentia saudade do agrupamento”, como acontece, noutro plano de evolução, aos animais, quando sentem a mortal “saudade do rebanho”. Para fortalecer as possibilidades de adaptação dos desencarnados dessa ordem ao novo “habitat”, o serviço de socorro é mais eficiente, ao contato das forças magnéticas dos irmãos que ainda se encontram envolvidos nos círculos carnais. Esta sala, em momentos como este, funciona como grande incubadora de energias psíquicas, para os serviços de aclimação de certas organizações espirituais à vida nova. E, designando a grande assembl eia de necessitados, continuou: – Os irmãos, nas condições a que me refiro, ouve m-nos a voz, consola m-se com o nosso auxilio, mas o calor humano está cheio dum magnetismo de teor mais significativo, para eles. Com semelh ante contato , experimentam o despertar de forças novas. Por isso, o trabalho de cooperação, em templos desta espécie, oferece proporções que você, por agora, não conseguiria imaginar. Não observou os preguiçosos, os dorminhocos e invigilantes que vieram co lher benefícios nesta casa? Pois eles também deram alguma coisa de si... Deram calor magnético, irradiações vitais proveitosas aos benfeitores deste santuário doméstico, que manipulam os elementos dessa natureza, distribuindo -os em valiosas combinações flu ídicas às entidades combalidas e inadaptadas. E, sorrindo, concluiu, bondoso: – Tudo tem algum proveito, André. Nosso Pai nada cria em vão. Terminada a reunião com benefícios gerais, que não me cabe descrever " André Luiz," pormenorizadamente, atendeu Aniceto ao facultat ivo desejoso de aproveitar -lhe o concurso nobre, junto aos clientes. – Grande número de vezes – exclamou o receitista do grupo de Dona Isabel, como a prestar informações a Vicente e a mim – não só ministramos medicação aos corpos doentes, mas também orient amos os desencarnados que, no curso da moléstia, se encontram sob nossa assistência. – E são sempre muitos? – indaguei. – Número crescente – elucidou, atencioso. Há ocasiões em que contamos com a cooperação de amigos ou parentes espirituais dos enfermos; mas, na maioria dos casos, somos forçados a agir por nós mesmos. Felizmente, quase nunca estamos sem auxiliares dedicados e ativos. Há companheiros que se consagram a cuidar de tuberculosos, cegos, aleijados, leprosos, perturbados e moribundos, isoladamente. São eles nossos devotados colaboradores em todas as situações. Puséramo -nos a caminho e, a breves minutos, estacionávamos diante dum edifício de vastas proporções. O colega, gentil, conduz iu-nos ao interior de espaçoso necrotério, onde defrontamos um quadro interessante, O cadáver de uma jovem, de menos de trinta anos, ali jazia gelado e rígido, tendo a seu lado uma entidade masculina, em atitude de zelo. Com assombro, notei que a desencarn ada estava unida aos despojos. Parecia recolhida a si mesma, sob forte impressão de terror. Cerrava as pálpebras, deliberadamente, receosa de olhar em torno. – Terminou o processo de desligamento dos laços fisiológicos – exclamou o facultativo atento –, ma s a pobrezinha há seis horas que está dominada por terrível pavor. E apontando o cavalheiro desencarnado, que permanecia junto dela, cuidadoso, o receitista esclareceu: – Aquele é o noivo que a espera, há muito. Aproximamo -nos um tanto e ouvimo -lo exclamar carinhosamente: – Cremilda! Cremilda! Vem! Abandona as vestes rotas. Fiz tudo para que não sofresse mais... Nossa casinha te aguarda, cheia de amor e luz!... A jovem, todavia, cerrava os olhos, demonstrando não querer vê -lo. Notava -se, perfeitamente, que seu organismo espiritual permanecia totalmente desligado do vaso físico, mas a pobrezinha continuava estendida, copiando a posição cadavérica, tomada de infinito horror. Aniceto, que tudo pareceu compreender num abrir e fechar de olhos, fez leve sinal ao r apaz desencarnado, que se aproximou comovido. – É preciso atendê -la doutro modo – disse o nosso orientador, resoluto –, vejo que a pobrezinha não dormiu no desprendimento e mostra -se amedrontada por falta de preparação espiritual. Não convém que o amigo se apresente a ela já, já... Não obstante o amor que lhe consagra, ela não poderia revê -lo sem terrível comoção, neste instante em que a mente lhe flutua sem rumo... – Sim – considerou ele, tristemente –, há seis horas chamo -a sem cessar, identificando -lhe o terror. " André Luiz," Redarg uiu Aniceto, conselheiral: – Ausência de preparação religiosa, meu irmão. Ela dormirá, porém, e, tão logo consiga repouso, entregá -la-emos aos seus cuidados. Por enquanto, conserve -se a alguma distância. E fazendo -se acompanhar do facultativ o, que assistira espiritualmente a jovem nos últimos dias, aproximou -se da recém -desencarnada, falando com inflexão paternal: – Vamos, Cremilda, ao novo tratamento. Ouvindo -o, a moça abriu os olhos espantadiços e exclamou: – Ah, doutor, graças a Deus! Que pesadelo horrível! Sentia -me no reino dos mortos, ouvindo meu noivo, falecido há anos, chamar -me para a Eternidade!... – Não há morte, minha filha! – objetou Aniceto, afetuoso – creia na vida, na vida eterna, profunda, vitoriosa! – É o senhor o novo médico ? – indagou, confortada. – Sim, fui chamado para aplicar -lhe alguns recursos em bases magnéticas. Torna -se indispensável que durma e descanse. – É verdade... – tornou ela de modo comovente –, estou muito cansada, necessitando de repouso... Recomendou -nos o instrutor, em voz baixa, prestássemos auxílio, em atitude íntima de oração, e, depois de conservar -se em silêncio por instantes, ministrou -lhe o passe reconfortador. A jovem dormiu quase imediatamente. Deslocou -a Aniceto, afastando -a dos despojos, com o z elo amoroso dum pai, e, chamando o noivo reconhecido, entregou -a carinhosamente. – Agora, poderá encaminhá -la, meu irmão. O rapaz agradeceu com lágrimas de júbilo e vi -o retirar -se de semblante iluminado, utilizando a volitação, a carregar consigo o fardo suave do seu amor. Nosso mentor fixou um gesto expressivo e falou: – Pela bondade natural do coração e pelo espontâneo cultivo da virtude, não precisará ela de provas purgatoriais. É de lamentar, contudo, não se tivesse preparado na educação religiosa dos pensamentos. Em breve, porém, ter-se-á adaptado à vida nova. Os bons não encontram obstáculos insuperáveis. E, desejoso talvez de consubstanciar a síntese da lição, rematou: – Como v eem , a id eia da morte não serve para aliviar, curar ou edificar verdadeira mente. É necessário difundir a id eia da vida vitoriosa. Aliás, o Evangelho já nos ensina, há muitos séculos, que Deus não é Deus de mortos e, sim, o Pai das criaturas que vivem para sempre. " André Luiz," Máquina divina Não se passaram muitos minutos e estávamos a o lado do agonizante, cuja situação preocupava o clínico espiritual. Era um cavalheiro de sessenta anos presumíveis, que a leucemia aniquilava morosamente. – Há muitos dias se encontra em coma – explicou o facultativo –, mas temos necessidade de mais forte auxílio magnético, para facilitar o desprendimento. No aposento, além de duas senhoras desencarnadas – a mãe do agonizante e uma parenta próxima –, via m-se familiares encarnados, dando mostras de grande aflição. Nosso orientador examinou o enfermo detidam ente e sentenciou: – Nada resta senão a necessidade de concurso para o desligamento final. Aniceto, a seguir, recomendou observássemos o moribundo com atenção. Concentrando todas as minhas possibilidades, fixei o enfermo prestes a desencarnar. Notei, com m inúcias, que a alma se retirava lentamente através de pontos orgânicos insulados. Assombrado, verifiquei que, bem no centro do crânio, havia um foco de luz mortiça, candelabro aceso às ondulações brandas do vento. Enchia toda a região encefálica, despertan do-me profunda admiração. – A luz que você observa – disse o instrutor amigo – é a mente, para cuja definição essencial não temos, por agora, conceituação humana. Notando minha estranheza, Aniceto colocou -me a destra na fronte, transmitindo -me vigoroso inf luxo magnético, e acentuou: – Repare a máquina divina do homem, o tabernáculo sagrado que o Senhor permitiu se formasse na Terra para sublime habitação temporária do espírito. Agora, André, não está você diante duma demonstração anatômica da ciência terres tre, examinando carne morta e músculos enrijecidos. Observe agora! O olho mortal não poderá contemplar o que se encontra à sua vista neste instante. O microscópio é ainda pobre, não obstante representar uma nobre conquista para a limitada visão humana. A cooperação magnética do querido mentor modificara a cena e fui compelido a concentrar todas as minhas energias, a fim de não inutilizar a observação pelo golpe do espanto. A luz mental, embora fosca, tornara -se mais nítida e o corpo do " André Luiz," moribundo agigantou -se, oferecendo -me espetáculo surpreendente aos olhos ansiosos. Parecia -me o corpo, agora, maravilhosa usina nos mais íntimos detalhes. O quadro científico era simplesmente estupefativo. Identificava, em grandes proporções, os nove sistemas de órgãos da máqu ina humana; o arcabouço ósseo, a musculatura, a circulação sang uínea, o aparelho de purificação do sangue consubstanciado nos pulmões e nos rins, o sistema linfático, o maquinismo digestivo, o sistema nervoso, as glândulas hormonais e os órgãos dos sentido s. Tal revelação histológica era diferente de tudo que eu poderia sonhar nos meus trabalhos de medicina. A circulação do sangue semelhava -se a movimento de canais vitalizadores daquele pequeno mundo de ossos, carne, água e resíduos. Milhões de organismos microscópicos iam e vinham na corrente empobrecida de glóbulos vermelhos. Presenciava a passagem de formas esquisitas, à maneira de minúsculas embarcações carregadas de bactérias mortíferas. Elementos maiores da flora microbiana transformava m-se em pequenin os barcos hospedando feras minúsculas, às centenas. Invadiam todos os núcleos organizados. Os órgãos, como os pulmões, o fígado e os rins, estavam sendo assaltados, irremedia velmente, por incalculável quantidade de sabotadores infinitesimais. E à medida qu e se consolidavam os micróbios invasores, em determinadas regiões celulares, alguma coisa se destacava, lentamente, da zona atacada, como se um molde sempre novo fosse expulso da forma gasta e envelhecida, reconhecendo eu, desse modo, que a desencarnação s e operava através de processo parcial, facultando -me ilações preciosas. Reparei que algumas glândulas faziam desesperado esforço para enviar aos centros invadidos determinadas porções de hormônios, que eram incontinenti absorvidos pelos elementos letais. O plasma sanguíneo figurava -se líquido estranho e gangrenoso. Pela excessiva movimentação da onda mental, observei que o moribundo tentava readquirir a direção dos fenômenos orgânicos, mas em vão. Todos os complexos celulares atritavam entre si e as bactéri as pareciam gozar o direito de multiplicação crescente e festiva. – Está vendo a máquina divina, formada pelo molde espiritual preexistente? – perguntou Aniceto, compreendendo -me a profunda admiração. – O corpo do homem encarnado é um tabernáculo e uma bên ção. Nesta hecatombe angustiosa de uma existência, pode você reparar que todos os movimentos do corpo estão subordinados à administração da mente. O organismo vivo, André, representa uma conquista laboriosa da Humanidade terrestre, no quadro de concessões do Eterno Pai. Pode você, agora, identificar os movimentos da matéria viva. Cada órgão é um departamento autônomo na esfera celular, subordinado ao pensamento do homem. Cada glândula é um centro de serviços ativos. Há muita afinidade entre o corpo físico e a máquina moderna. São ambos impulsionados pela carga de combustível, com a diferença de que no homem a combustão química obedece ao senso espiritual que dirige a vida organizada. É na mente que temos o governo dessa usina maravilhosa. Não possuímos, aí, tão somente o caráter, a razão, a memória, a direção, o " André Luiz," equilíbrio, o entendimento; mas, também, o controle de todos os fenômenos da expressão corpórea. Na sede mental e, cons equen temente, no cérebro, temos todos os registros de distribuição dos princípios vitais aos núcleos celulares, inclusive a água e o açúcar. Os centros metabólicos são grandes oficinas de trabalho incessante. A mente humana, ainda que indefinível pela conceituação científica limitada, na Terra, é o centro de toda manifestação vital no planeta. Cada órgão, cada glândula, meu amigo, integra o quadro de serviço da máquina sublime, construída no molde sutil do corpo espiritual preexistente e, por isso mesmo, chegará o tempo em que a ciência reconhecerá qualquer abuso do homem como ofensa ca usada a si mesmo. A usina humana é repositório de forças elétricas de alto teor construtivo ou destrutivo. Cada célula é minúsculo motor, trabalhando ao impulso mental. Aniceto calou -se por momentos e, enquanto eu via, aterrado, os mais estranhos fenômenos microbianos no corpo do moribundo, volveu ele à palavra educativa: – Vemos aqui um irmão no momento da retirada. Repare a incapacidade dele para governar as células em conflito. A corrente sang uínea transformou -se em veículo de invasores mortíferos, que n ão encontraram qualquer fortificação na defensiva. Observe e identificará milhões de unidades da tuberculose, da lepra, da difteria, do câncer, que até agora estavam contidos nos porões da atividade fisiológica, pela defesa organizada, e que se multiplicam assustadoramente, de par com outros micróbios tão prolíferos quão terríveis. A nutrição foi interrompida. Não há possibilidade de novos suprimentos hormonais. O agonizante retrai -se aos poucos e ainda não abandonou totalmente a carne, por falta de educaçã o mental. Vê -se pelo excesso de intemperança das células, sobre as quais não exerce nem mesmo um controle parcial, que este homem viveu bem distante da disciplina de si mesmo. Seus elementos fisiológicos são demasiadamente impulsivos, atendendo muito mais ao instinto que ao movimento da razão concentrada. A falar verdade, este nosso amigo não se está desencarnando, está sendo expulso da divina máquina, onde, pelo que vemos, não parece ter prezado bastante os sublimes dons de Deus. " André Luiz," A desencarnação de Fe rnando Quando Aniceto retirou a destra da minha fronte, perdi a possibilidade de prosseguir nas observações do infinitesimal. Minha visão abrangia minúcias muito importantes ao interesse comum; entretanto, estava longe daquele poder de apreensão que me t ransmitira o mentor amigo, ao contato do seu elevado potencial magnético. Centralizando minhas energias visuais, analisava ainda o sistema ósseo, o sangue, os tecidos, os humores, mas aquelas batalhas microscópicas haviam desaparecido como por encanto. De qualquer modo, porém, minha surpresa era enorme, porque agora identificava, em mim mesm o, a potencialidade do “raio X”. Aniceto, depois de proporcionar a Vicente o mesmo estudo, movimentava providências novas. No aposento, conservava -se determinado número de parentes aflitos. Um médico encarnado examinava o moribundo, com atenção. Foi aí que as duas entidades que se mantinham no quarto, e que apenas nos haviam dispensado a usual saudação, se aproximaram do nosso instrutor, solicitando -lhe uma cooperação mai s enérgica. – Por favor, nobre amigo – disse a irmã que havia sido genitora do moribundo –, ajude -nos a retirar meu pobre filho do corpo esgotado. Há muitas horas, estamos à espera de alguém que nos possa auxiliar neste transe. Tenho procurado confortá -lo, mas em vão! – acentuou a nobre senhora em tom lastimoso – ele continua num estado de incompreensão dolorosa e terrível. Está absolutamente preso às sensações de sofrimento físico, como esteve ligado, no curso da existência, às satisfações do corpo. Anicet o concordou, acrescentando: – Nota m-se, de fato, grandes lacunas na expressão mental do moribundo. Vê-se que atravessou a vida humana obedecendo mais ao instinto que à razão. Observa m-se-lhe no mundo celular gestos complexos de indisciplina. Poderemos, contudo, ajudá -lo a desvencilhar -se dos laços mais fortes, no que se refere ao círculo carnal. – Será um caridoso obséquio – redarg uiu a genitora, aflita. – A irmã está incumbida de encaminhá -lo? – perguntou o instrutor, compreendendo a magnitude da tarefa. – Precisamos ponderar, quanto a isto, porque o desprendimento integral se verificará dentro de poucos minutos. " André Luiz," Ela esboçou um gesto triste e respondeu: – Desejaria sacrificar -me ainda um pouco por meu desventurado Fernando, mas apenas obtive permissão para socorrê -lo nos seus últimos instantes. Meus superiores prometem ajudá -lo, mas aconselhara m-me a deixá -lo entregue a si mesmo durante algum tempo. Fernando precisa reconsiderar o passado, identificar os valores que, infelizmente, desprezou. As lágrimas e os remorsos, na solidão do arrependimento, serão portadores de calma ao seu espírito irrefletido. Grande é o meu desejo de conchegá -lo ao coração, regressando aos dias que já se fo ram; todavia, não posso prejudicar, com a minha ternura materna, a marcha do serviço divino. Fernando, em verdade, é filho do meu afeto; contudo, tanto ele como eu, temos contas com a Justiça do Eterno e, no que respeita a mim, estou cansada de agravar os meus débitos. Não devo contrariar os desígnios de Deus. A essa altura do diálogo, interveio o clínico espiritual que nos encaminhara até ali, informando, atencioso: – Nossa amiga tem razão. Fernando não poderá acompanhá -la, mas tão nobre tem sido a interce ssão materna que tenho instruções para conduzi -lo a lugar seguro, a uma casa de socorro, onde poderá colher o melhor proveito do sofrimento, porquanto será asilado em zona vibratória inacessível às influências inferiores e criminosas, embora situada em reg iões baixas. – Já sei – murmurou Aniceto com grave entono –, trata -se de medida muito acertada. Em seguida, acentuou como quem não tinha tempo a perder: – A aflição dos familiares encarnados, aqui presentes, poderá dificultar -nos a ação. Observem como todo s eles emitem recursos magnéticos em benefício do moribundo. De fato, uma rede de fios cinzentos e fracamente iluminados parecia ligar os parentes ao enfermo quase morto. – Tais socorros – tornou Aniceto – são agora inúteis para devolver -lhe o equilíbrio o rgânico. Precisamos neutralizar essas forças, emitidas pela inquietação, proporcionando, antes de tudo, a possível serenidade à família. E, aproximando -se ainda mais do agonizante, tomou a atitude do magnetizador, exclamando: – Modifiquemos o quadro do com a. Após alguns minutos em que nosso mentor operava, secundado pelo nosso respeitoso silêncio, ouvimos o médico encarnado anunciar aos parentes do moribundo: – Melhoram os prognósticos. A pulsação, inexplicavelmente, está quase normal. A respiração tende a calmar -se. Três senhoras suspiraram aliviadas. – Dona Amanda – dirigiu -se o assistente à esposa do moribundo –, convém que vá repousar, levando as suas cunhadas. O senhor Fernando está muito tranq uilo e a situação é francamente favorável. Ficaremos velando, o senhor Januário e eu. As senhoras e mais dois cavalheiros, que se prontificavam a retirar, " André Luiz," agradeceram satisfeitos e comovidos. Permaneceram no aposento somente o médico e um irmão do agonizante. A melhora súbita tranq uilizara a todos. E, aos poucos, os fios cinzentos que se ligavam ao enfermo desapareceram sem deixar vestígios. – Abramos a janela – disse o médico satisfeito –, o ar talvez acelere as melhoras do nosso amigo. O senhor Januário atendeu, abrindo a ampla vidraça. Fundamente espantado, repare i que três rostos horríveis pela expressão diabólica surgiram, de repente, no peitoril, e interrogaram em voz alta: – Como é? Fernando vem ou não vem? Ninguém respondeu. Notei, porém, que Aniceto lhes dirigiu significativo olhar, compelindo -os, tão só com essa medida, a desaparecer. Meia hora passou, dentro da qual o médico e o senhor Januário, quase despreocupados do agonizante, pelas melhoras havidas, encetaram uma conversação animada, relativamente a problemas do mundo. Aproveitou Aniceto a serenidade am biente e começou a retirar o corpo espiritual de Fernando, desligando -o dos despojos, reparando eu que iniciara a operação pelos calcanhares, terminando na cabeça, à qual, por fim, parecia estar preso o moribundo por extenso cordão, tal como se dá com os n ascituros terrenos. Aniceto cortou -o com esforço. O corpo de Fernando deu um estremeção, chamando o médico humano ao novo quadro. A operação não fora curta e fácil. Demorara -se longos minutos, durante os quais vi o nosso Instrutor empregar todo o cabedal d e sua atenção e talvez de suas energias magnéticas. A família do morto, informada pelo senhor Januário, aflita penetrou no quarto, ruidosamente. A genitora do desencarnado, porém, auxiliada por Aniceto e pelo facultativo espiritual que nos levara até ali, prestou ao filho os socorros necessários. Daí a instantes, enquanto a família terrena se debruçava em pranto sobre o cadáver, a pequena expedição constituída por três entidades, as duas senhoras e o clínico, saía conduzindo o desencarnado ao instituto de assistência, reparando eu, contudo, que não saíam utilizando a volitação, mas caminhando como simples mortais. Sentia -me fortemente impressionado. Intrigava -me, sobretudo, o aparecimento daqueles rostos satânicos quando se abrira a janela. Porque semelhante menosprezo a um agonizante? Retirando -nos da residência, o Instrutor me fitou atento e, antes que formulasse qualquer pergunta, esclareceu: – Não se preocupe tanto, André, com os vagabundos que esperavam nosso irmão infeliz – Só não penetraram na câmara d e dor porque a nobre presença maternal impedia tal assédio. E, depois de calar -se por momentos, acrescentou: – Cada criatura, na vida, cultiva as afeições que prefere. Fernando estimava os companheiros desregrados. Não é, pois, estranhável, que tenham vind o esperá -lo na estação de volta à existência real. Paulo de Tarso, no capitulo da Epístola aos Hebreus, afirma que o homem está cercado de uma grande “nuvem de testemunhas”. " André Luiz," Ora, essa informação foi endereçada ao espírito humano há quase vinte séculos. Cada um, pois, tem o séquito invisível a que se devota na Terra. Mais tarde, quando a coletividade apreender a grandeza das lições evangélicas, todo homem terá cuidado na escolha de suas testemunhas. " André Luiz," Nas despedidas Depois de outras atividades espiri tuais numerosas, findou a semana de serviço a que Aniceto nos admitira em sua companhia. Seguíramos o nobre instrutor, através de tarefas variadas e complexas. Sediados no templo acolhedor de Isabel, atendêramos a considerável número de doentes, bem como a irmãos outros perturbados, abatidos, transviados e moribundos. Nosso orientador tinha, para todos os casos, maravilhosos recursos de improvisação, sempre atencioso e otimista. Aqueles poucos dias de trabalho novo enchera m-me o cérebro de raciocínios novos e o coração de sentimentos que até então desconhecera. Ao contato das revelações de Aniceto, nos domínios da eletricidade e do magnetismo, reformara todos os meus antigos conhecimentos de medicina. A ascendência mental no equilíbrio orgânico, as forças ra dioativas, o campo das bactérias, a visão mais ampla da matéria organizada, compelia m-me a nova conceituação científica na arte de curar os corpos enfermos. Alargara -se, sobretudo, em minh’alma, o entendimento acerca do Médico Divino que restabelece a saúd e do Espírito imortal. A claridade extensa, que me felicitava agora o Espírito, fornecia mais largo conhecimento de Jesus. Compreendi, então, que a fé não constitui uma afirmativa de lábios, nem uma adesão de ordem estatística. Procurá -la-ia, em vão, na es fera sectária, nas disputas vulgares, nos cultos exteriores alteráveis todos os dias. Era, sim, uma fonte d'água viva, nascendo espontaneamente em minha alma. Traduzia -se em reverência profunda, aliada ao mais alto conceito de serviço e responsabilidade, diante das sublimes concessões do Eterno Pai. Encontrara um tesouro inacessível à destruição e um bem intransferível, por nascido e consolidado em mim mesmo. Quando o instrutor nos convidou a regressar, sentia -me positivamente outro. Guardava a impressão de haver encontrado as notícias diretas do Senhor Jesus, na descoberta do meu próprio mundo interior. Como poderia pagar ao prestimoso Aniceto semelhante capitalização de bens imortais? Havia terminado o serviço de orações, na última reunião semanal da resid ência de Isidoro e Isabel. Os trabalhos, sempre ativos, haviam representado esfera de observações e experiências sempre novas. " André Luiz," Grande número de amigos de Aniceto acercara m-se do instrutor, ansiosos por partilharem a luz da conversação de despedidas. O devo tado orientador oferecia a todos a sua palavra de bom ânimo, otimismo, alegria e confiança no Senhor, como um príncipe de legenda, cuja boca fosse fonte inesgotável de ouro espiritual. Vicente e eu tínhamos os olhos úmidos, desejosos de externar -lhe verbal mente nosso reconhecimento pelas bênçãos recolhidas; mas, ao nos aproximarmos, o abnegado orientador sorriu e antecipou: – Agradeçam a Jesus pelo muito que nos tem dado. E tomando a Bíblia, como interessado em fixar o assunto geral no amor às coisas santif icadas, leu em voz alta, no capítulo segundo dos Provérbios de Salomão: – “Filho meu, se aceitares as minhas palavras e guardares contigo os meus mandamentos, para fazeres atento à sabedoria o teu ouvido e para inclinares o teu coração ao entendimento; e s e clamares por entendimento, e por inteligência alçares a tua voz, se como a prata a buscares e como a tesouros ocultos a procurares, então entenderás o temor do Senhor, e acharás o conhecimento de Deus”. Deixou em seguida o livro sagrado sobre a mesa, e sentenciou: – Lembremo -nos do Senhor em nossas despedidas. Ratifiquemos, irmãos, nossos compromissos de trabalho e testemunho. Em tão pequeno trecho dos Provérbios encontramos muitos verbos que interessam os Espíritos cristãos. Aceitar os mandamentos divin os e guardá -los, tornar o ouvido atento e o coração esclarecido, pedir entendimento e inteligência alçando a voz acima dos objetivos inferiores, buscar os tesouros do Cristo e procurar -lhe o programa de serviços, representa o esforço nobre daquele que, de fato, deseja a Divina Sabedoria. Não esqueçamos esses deveres. Como a pausa se fizesse mais longa, um irmão rogou ao querido amigo prosseguisse na interpretação do texto, mas Aniceto replicou em tom fraternal: – Por agora, meu irmão, não é mais possível. O utras obrigações nos chamam de longe. E, dirigindo -se particularmente a Vicente e a mim, acentuou: – Já que voltaremos pela estrada comum, poderemos esperar por nossa amiga Isabel, para apresentar -lhe nossos agradecimentos e despedidas. Daí a momentos, a n obre companheira de Isidoro, abandonando o corpo ao repouso do sono, veio até nós, junto do esposo espiritual, atendendo ao convite mental do nosso dedicado orientador. Aniceto exprimiu -lhe profundo reconhecimento, falou -lhe da nossa alegria, das oportunid ades santas do serviço que a bondade divina nos havia proporcionado. Dona Isabel agradeceu, comovidamente, deixando transparecer as lágrimas da gratidão que lhe dominava o espírito. – Nobre Aniceto – disse enxugando os olhos –, se for possível, voltai semp re ao nosso modesto lar. Ensinai -me a paciência e a coragem, generoso Provérbios, : – Nota do Autor espiritual. " André Luiz," amigo! Quando puderdes, não me deixeis transviar nos deveres de mãe, tão difíceis de cumprir na carne, onde os interesses menos dignos se entrechocam com violência. Amparai -me as obrigaç ões de serva do Evangelho de nosso Senhor! Por vezes, profundas saudades da família espiritual me dilaceram o coração... Desejaria arrebatar meus filhos à esfera superior, incliná -los ao bem, para que a nossa união divina não tarde nos planos mais altos da vida. E essas saudades de “Nosso Lar” me pungem a alma, ameaçando, por vezes, minha tarefa humilde na Terra. Nobre Aniceto, não vos esqueçais desta amiga pobre e imperfeita. Sei que Isidoro me segue passo a passo, mas ele e eu precisamos de amigos fortes na fé, como vós, que nos reavivem o bom ânimo na jornada dos deveres cristãos!... A irmã Isabel não pôde continuar, porque o pranto lhe embargara a voz. Aniceto, de olhos brilhantes e serenos, enlaçou -a como pai e falou, brandamente: – Isabel, segue em teu s testemunhos e não temas. Estaremos contigo, agora e sempre. Muitas criaturas admiráveis tiveram a tarefa, mas não esqueçamos, filha, que Jesus teve a tarefa e o sacrifício no mundo. Não nos faltará no caminho redentor o terno cuidad o do Guia Vigilante. Tem bom ânimo e caminha! Em seguida, olhando -nos a todos, de frente, o nobre amigo exclamou: – Agora, irmãos, auxilie m-me a orar! E conservando Isabel e Isidoro, unidos ao seu coração, Aniceto fixou os olhos no alto e falou com sublime beleza. – Senhor, ensina -nos a receber as bênçãos do serviço! Ainda não sabemos, Amado Jesus, compreender a extensão do trabalho que nos confiaste! Permite, Senhor, possamos formar em nossa alma a convicção de que a Obra do Mundo te pertence, a fim de que a vaidade não se insinue em nossos corações com as aparências do bem! “Dá-nos, Mestre, o espírito de consagração aos nossos deveres e desapego aos resultados que pertencem ao teu amor! “Ensina -nos a agir sem as algemas das paixões, para que reconheçamos os teus santos objetivos! “Senhor Amorável, ajuda -nos a ser teus leais servidores; Amoroso, concede -nos, ainda, as tuas lições; Juiz Reto, conduze -nos aos caminhos direitos; “Médico Sublime, restaura -nos a saúde; “Pastor Compassivo, guia -nos à frente das águas vivas; “Engenheiro Sábio, dá -nos teu roteiro; “Administrador Generoso, inspira -nos a tarefa; “Semeador do Bem, ensina -nos a cultivar o campo de nossas almas; “Carpinteiro Divino, auxilia -nos a construir nossa casa eterna; Oleiro Cuidadoso, corrige -nos o vaso do coração; “Amigo Desvelado, sê indulgente, a inda, para com as nossas fraquezas; “Príncipe da Paz, compadece -te de nosso espírito frágil, abre nossos olhos e mostra -nos a estrada de teu Reino!” " André Luiz," Aniceto calou -se comovido e, de olhos úmidos, contendo a custo as lágrimas do meu reconhecimento, incorpore i-me à nobre caravana que seguiria conosco de regresso a “Nosso Lar”. 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